Biblia: Como 1er a

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Como 1er a

Biblia livro por livro

Um guia de estudo panorámico da Biblia

Gordon Fee e Douglas Stuart Autores do best-seller Entendes o que les?

VIDA NOVA

Quem conhece Fee e Stuart : Entendes o que les? ja pode caminhar m luito na arte de interpretar adequadamente :ada tipo de c literatura da Biblia, como ivros da Le i. os os 1 históricos, poéticos, >s no AT, bem profetice como os e o Apocalipse Evangelhos, cartas i no NT. estrés do ar Agora, os mesmos mi por todos os assunto nos levam a cammh Apocalipse, livros da Biblia, de Génesis a, para nos mostrar no detalhe entender melhor o texto da f Deus: as énfases específicas, particularidades acipais. É a de cada livre peculiaridades qualidade e dos textos pnt oportunidade de crescer em :m profundidade na Palavra < Luiz Sayao. Pastor, professor e autor das perguntas e respostas da Biblia de Estudo Esperanza

emérito e autor de Edigoes Vida Nova dos programas de discipulado e do currícuk da Escola Bíblica Dominical de toda igr_,_ So falta agora um roteiro para viabilizar essa proposta. Com este excelente Guia de estudo panorámico da Biblia, Fee e Stuart nos conduzem, passo a passo, por urna jomada de descoberta das verdades principáis (e de muito mais) de cada livro da leitor individual quanto para o facilitador de urna classe de leitura da Biblia toda. Valdemar Kroker. Professor, pastor e editor.

Como 1er a

Biblia livro por livro

Dados Internacionais de Catalogacáo na Publicacjáo (CIP) (Cámara Brasíleira do Livro, SP, Brasil) Fee, Gordon D. Como 1er a Biblia livro por livro: um guia de estudo panorámico da Biblia / Gordon D. Fee e Douglas Stuart; traducáo Tilomas Neufeld de Lima e Daniel Hubert Kroker. - Sao Paulo: Vida Nova, 2013. Título original: How to read the Bible book by book ISBN 978-85-275-0527-7 1. Biblia - Crítica e interpretaclo 2. Biblia - Leirura I Sttiart, Doug as. II. Título.

12-14970

CDD-220.6

índice para catálogo sistemático: 1. Biblia : Leitura 220.6

Como 1er a

Biblia livro por livro

Um guia de estudo panorámico da Biblia

Gordon Fee e Douglas Stuart Autores do best-seller Entendes o que Les7

Traducao Thomas Neufeld de Lima (capítulos referentes ao AT) Daniel Hubert Kroker (capítulos referentes ao NT)

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VIDA NOVA

Copyright ©2002, Gordon D. Fee e Douglas Stuart Título original: How to read the Bible book by book Originalmente publicado e traduzido, com permissáo, a partir da primeira edicáo publicada pela ZONDERVAN, GRAND RAPIDS, MICHIGAN, 49530 EUA 1.a edicao: 2013 Publicado no Brasil com a devida autorizacáo e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDICÓES VIDA NOVA, Cauta Postal 21266, Sao Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br | [email protected] Proibida a reprod^áo por quaisquer mcios (mecánicos, eletrónicos, xerográficos, fotográficos, gravacáo, estocagem em banco de dados etc.), a nao ser em citacóes breves com indicacáo de fonte. ISBN 978-85-275-0527-7 Impresso no Brasil / Printed in Bra-z.il

SUPERVISAO EDITORIAL Marisa K. A. de Siqueira Lopes COORDENACÁO EDITORIAL E REVISAD

Valdemar Kroker COORDENACÁO DE PRODUfAO

Sergio Siqueira Moura REVISAO DE PROVAS

Mauro Nogueira DlAGRAMACAo

Luciana Di lorio CAPA Wesley Mendonca

Todas as citacóes bíblicas, salvo indicacáo contraria, foram extraídas da versáo Almeida Século 21, publicada com todos os direitos reservados por Edicoes Vida Nova.

Para Walker, Maia e Emma Joshua, Julia, Cherisa, Nathan e Benjamín Zachary ejackson Maricel e Annalise e

Mariwether e Honour e Mcaela para quepossam aprender a ler hem a historia e amar aquele de cuja historia se trata (SI 71.14-18; SI 103.17)

Sumario

Apresentacáo ......................................................................................... 9 Abreviares ......................................................................................... 11 Prefacio .............................................................................................. 12 A historia bíblica: um panorama ......................................................... 17

A NARRATIVA DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA (INCLUSIVE A LEÍ) Génesis .................................. 29

Rute .........................................92

Éxodo .................................... 41 Levítico ................................. 51

le2Samuel ...............................97

Números ................................ 58 Deuteronómio ........................ 66

le2Reis .................................108 1 e 2Crónicas ....................... 117

Josué ...................................... 75

Esdras-Neemias ................... 127

Juízes ..................................... 83

Ester ....................................... 134

OS ESCRITOS DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA Jó ......................................... 144

Eclesiastes .............................. 182

Salmos ................................. 155

Cántico dos Cánticos ............. 191

Proverbios ........................... 171

Lamentacóes ......................... 197

COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

OS PROFETAS DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA Isaías .................................... 206 Jeremías ............................... 220 Ezequiel ............................... 231 Daniel .................................. 241 Oseias .................................. 249 Joel....................................... 256 Amos ................................... 262 Obadias ............................... 270

Joñas .................................... 273 Miqueias .............................. 278 Naum................................... 284 Habacuque .......................... 289 Sofonias .............................. 294 Ageu .................................... 299 Zacarías ............................... 303 Malaquias ............................ 310

OS EVANGELHOS E ATOS NA HISTORIA BÍBLICA Mateus ................................. 318 Marcos ................................. 328 Lucas ................................... 338

Atos ...................................... 349 Joao ....................................... 358

AS CARTAS E APOCALIPSE NA NARRATIVA BÍBLICA Romanos ............................. 374 ICoríntios ............................ 383 2Coríntios ............................ 393 Gálatas ................................ 401 Efésios ................................. 409 Filipenses ............................ 416 Colossenses ......................... 423 lTessalonicenses ................. 430 2Tessalonicenses ................. 436 ITimóteo ............................. 441 2Timóteo ............................ 448

Tito ......................................453 Filemom .............................. 458 Hebreus ............................... 462 Tiago ................................... 471 IPedro ..................................477 2Pedro ..................................483 ljoao..................................... 488 2Joáo .................................... 495 3Joao .................................... 498 Judas ....................................502 Apocalipse ...........................506

Glossário .......................................................................................... 519 Apéndice: Lista cronológica dos livros bíblicos .................................... 526

Apresentagáo

CRUZANDO MUNDOS Cresci numa parte da cidade onde as criancas brincavam em seguranza. Depois de urna manhá na escola e do breve descanso no inicio da tarde, a alegría ruidosa tomava conta de nossa vizinhanza: eram as crianzas que saíam para algumas horas de divertimento até a hora do jantar, quando todos nos recolhíamos e o silencio voltava a reinar. Naquele tempo, nosso único temor era "cruzar de mundos"; era as-sim que nos referíamos ao desafio diario de atravessar as rúas de nosso bairro, pois nossa escola ficava "do outro lado". Lembro-me de como nos organizávamos em pequeños grupos em torno de um adulto que nos ajudava a superar aquele desafio. Ir á escola em grupo era também motivo de festa e mais urna oportunidade para brincar, mas "cruzar mundos" era algo perigoso. As vezes, por alguma razáo, perdíamos o horario e nao conseguíamos ir com o grupo; nesse caso sempre espera-vamos um adulto que nos tomasse pelas maos e nos ajudasse a superar o grande desafio. Com o passar do tempo apareceram os guardas escolares e tornaram nossa vida muito mais fácil. Lembrei-me dessa experiencia da infancia quando pela primeira vez tomei este livro em minhas maos. A possibilidade de ser guiado por maos seguras neste "cruzar de mundos", no caso o mundo bíblico, de ser guiado livro por livro das Escrituras, com orientazóes que me auxiliariam na leitura e na compreensáo do texto, me deixou cheio de entusiasmo para urna nova leitura panorámica de toda a Biblia. A medida que fui aprendendo a usá-lo como auxilio em minha leitura

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

bíblica, meu ánimo foi crescendo de tal forma que este livro passou a ocupar um lugar especial em minha estante, o lugar dos livros que nao podiam ser emprestados. Afinal eu só tinha um exemplar! Ele se tornou urna obra de reserva exclusiva. Em tom de brincadeira, eu dizia aos meus amigos: "Para ter acesso a este livro, só visitando minha casa, para consultá-lo em minha presenca"! Fiquei muito feliz quando sou-be que esse tesouro estava sendo traduzido para o portugués. Posso assegurar a vocé que sua leitura bíblica nunca mais será a mesma depois que vocé passar a fazer uso desta ajuda idónea para "cruzar mundos". Tive o privilegio de conhecer um de seus autores e de vé-lo expor a Biblia com reverencia, profundidade e paixáo. Vocé encontrará essas mesmas características no texto que agora tem em suas máos e nao me surpreenderei se este livro acabar fazendo parte de sua reserva exclusiva. Espero que desfrute muito deste recurso e que possa, como eu fazia na infancia, "cruzar mundos" de forma alegre e confiante. Meu desejo é que sua leitura das Escrituras Sagradas ganhe novo ánimo com este guia panorámico, de forma que vocé se torne apto e plenamente preparado para toda boa obra! Um grande abraco deste seu companheiro de leitura Ziel Machado Pastor da Igreja Metodista Livre Nikkei em Sao Paulo e diretor académico do Seminario Servo de Cristo.

Abreviagóes ANTIGO TESTAMENTO Gn

Génesis

Ec

Eclesiastes

Éx

Ct Is

Ne Et

Éxodo Levítieo Números Deuteronómio Josué Juízes Rute 1 Samuel 2Samuel IReis 2Reis lCrónicas 2Crónicas Esdras Neemias Ester





SI Pv

Salmos Proverbios

Cántico dos Cánticos Isaías Jeremías Lamen tacoes Ezcquiel Daniel Oseias Joel Amos Obadias Joñas Miqueías Naum Habacuque Sofonias Ageu Zacarías M alaquias

Mt

Mateus

lTm

1 Timoteo

Me Le At Rm ICo 2Co GI Ef Fp Cl lTs 2Ts

Marcos Lucas Joao Atos Romanos ICoríntios 2Coríntios Gálatas Efésios Filipenses Colossenses 1 Tes salo nicenses 2Tessalonicenses

2Tm Tt Fm Hb Tg IPe 2Pe IJo 2Jo 3Jo

2Timóteo Tito Filemom Hebreus Tiago IPedro 2Pedro lJoáí> 2Joáo 3Joáo Judas Apocalipse

a.C.

antes de Cristo

lit.

literalmente

AT

Antigo Testamento circa, aproximadamente confer, conferir, comparar capítulo/capítulos depois de Cristo especialmente et cetera, e o restante idestj'v&to é

NT

Novo Testamento página/páginas paralelos (paralelos textuais) por exemplo e o/s seguinte/s ver, versículo/versículos ver especialmente número de ve7.es que ocorre urna forma

Lv Nm Dt

Js Jz Rt ISm 2Sm IRs 2Rs lCr 2Cr

Ed

Jr Lm Ez Dn Os

Jl Am Ob

Jn Mq Na He Sf Ag Zc MI

NO VO TESTAMENTO

Jo

C.

ef. cap./caps. d.C. esp. etc. i.e.

Jd

Ap

Ppar. p. ex. s./ss. V.

v. esp. X

Prefacio

Este livro pretende acompanhar o volume Entendes o que les? Aquele livro visa ajudar as pessoas a se tornarem melhores leitores da Biblia, auxiliando-as a identificar os géneros literarios diversos que formam as Escrituras cristas. Pela compreensáo de como "funcionam" esses diversos géneros, como eles diferem entre si e como, finalmente, suscitam varios tipos de questoes hermenéuticas, buscamos, com aquele livro, ajudar as pessoas a 1er a Biblia de urna forma mais bem informada. O éxito do primeiro livro nos deu a coragem para realizar este novo volume. Nosso objetivo continua sendo o mesmo: ajudar as pessoas a se tornarem melhores leitores da Biblia. Pretendemos, neste livro, ir um passo além do anterior: tomando por base os principios do primeiro, queremos ajudar vocé a 1er — e a compreender — cada um dos livros bíblicos em si, mas, particularmente, queremos ajudar vocé, leitor, a perceber a maneira especial pela qual, juntos, os livros cooperam para formar a grande narrativa da Biblia. Mas este livro teve urna evolucáo própria. Há alguns anos, fomos solicitados a escrever um livro-texto de visao panorámica da Biblia, do tipo que muitos estudantes puderam conhecer ao longo dos anos. Por muitas razóes, mas principalmente porque nunca conseguimos nos empenhar de coracáo nesse livro, o projeto simplesmente nao decolou. Sem dúvida, continuamos esperando que este livro sirva aos propósitos dos cursos que pretendem passar urna visao panorámica da Biblia, mas buscamos, de forma intencional, escrever algo diferente que vá além. Essas diferencas, como nos as entendemos, sao varias.

PREFACIO

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Em primeiro lugar, nosso objetivo nao se resume a fomecer informacóes sobre os diversos livros da Biblia — o tipo de informacóes que ajuda as pessoas a passar em provas de conhecimento bíblico sem jamáis terem lido a Biblia! Esses livros e exames costumam abordar um grande número de dados, mas frequentemente fazem pouco no sentido de elucidar como os diversos livros da Biblia funcionam como entidades individuáis, ou como partes que, juntas, formam a historia de Deus. Nosso interesse, nesta obra, é quase exclusivamente pela segunda abordagem. De todo modo, o objetivo é fazer de vocé um leitor melhor da Biblia; se vocé comecar a aprender algumas outras coisas sobre cada livro ao longo dessa caminhada, tanto melhor. Em segundo lugar, queremos mostrar como cada entidade em particular — cada um dos livros bíblicos — integra o todo, a sua maneira, para contar a historia de Deus. Essa é uma das preocupacóes fundamentáis do livro, e por isso ele contém uma introducao com uma breve visáo panorámica da historia bíblica — aquilo que os estudiosos das narrativas chamam de metanarrativa da Biblia. Esse é o quadro geral, a historia principal, da qual todas as outras historias sao uma parte, cooperando para dar forma ao todo. Em terceiro lugar, na nossa abordagem dos diversos livros bíblicos, um por um, seguimos em geral um formato que isola as questóes de introducao no inicio do capítulo sob o título "Informacóes básicas sobre...". Essas questóes (de autoría, data, destinatarios, ocasiáo e se-melhantes) costumam formar a maior parte das obras que visam a dar um panorama da Biblia. Para essas questóes (as vezes importantes) há diversas sínteses, introducóes e dicionários bíblicos, tanto para o Antigo quanto para o Novo Testamento, que vocé pode consultar. Mas essas questóes sao frequentemente discutíveis, e debaté-las — o que pode consumir bastante espaco — nem sempre tem uma relevancia imediata para a leitura do texto bíblico no seu contexto mais ampio. Limitamonos, portanto, a oferecer algumas opcóes possíveis, fazer referencia ao ponto de vista tradicional ou decidir por alguma opcáo específica a ser adotada por este guia. Mas é preciso fazer mais uma observacáo sobre a questao da autoría, especialmente no caso dos livros do Antigo Testamento, porque os autores daquele período nao costumavam incluir seu nome no que

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

escreviam (exceto quando escreviam cartas, nao havendo nenhum livro desse género no Antigo Testamento). Quando os individuos se refe-rem a si próprios num dado livro (p. ex., Moisés, Neemias, Qphelet ["Mestre'V'agregador" em Eclesiastes]), podemos aprender algo sobre sua autoría que de outra forma provavelmente nao teríamos como saber. Mas, em grande parte, nao havia no Israel antigo o mesmo interesse que existe hoje por data e autoría, o que a ausencia dessas informacóes na maioría desses livros deixa evidente. Muitos dos livros do Antigo Testamento (p. ex., quase todos os livros históricos e poéticos) sao completamente anónimos. E mesmo que a fonte do conteúdo de alguns deles seja citada — na forma de título editorial no inicio —, e multas vezes seja possível deduzir urna correspondencia entre fonte e autor, a preocupacáo quanto a identidade do verdadeiro autor nao é algo proeminen-te no próprio livro. Quanto á data, somente quatro livros — Ezequiel, Daniel, Zacarías e Ageu — datam alguma parte do seu material, e den-tre esses, somente Ageu o faz de forma consistente. Por isso, optamos por minimizar a importancia da autoría neste guia de leitura, omitindo a questáo inteiramente quando o próprio livro bíblico é anónimo (nao se pode ficar dizendo "autor desconhecido" o tempo todo!). O nosso interesse está em vocé 1er o documento bíblico e a sua forma canónica final, nao no debate das questóes de data, fontes e autoría. Concentramos a maior parte da nossa energía, portanto, em tres grandes secóes de cada capítulo. A primeira, "Visáo geral de...", busca apresentar o livro dando urna nocáo do seu tema como um todo. De certa forma, trata-se de um breve desenvolvimento da(s) frase(s) do "Conteúdo" da secáo "Informacóes básicas sobre...". A segunda, "Orientagóes para a leitura de...", tende a desenvolver as "Enfases" da secáo "Informacóes básicas sobre...". Aqui apresentamos urna manei-ra de 1er o texto, alguns temas-chave para manter em mente durante a leitura, ou algum material crucial de antecedentes — tudo com o propósito de ajudar vocé quando estiver lendo o texto por conta própria. A segao final, "Urna Caminhada por...", toma o leitor pela máo, por as-sim dizer, e o conduz através do livro, mostrando como as suas diversas partes interagem para formar o todo. As vezes, isso assume a forma de um esbogo; outras, por urna tentativa deliberada de manter breves os capítulos, vocé caminhará apassos de gigante. É compreensível que os

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livros de Salmos e Proverbios tenham sido os mais difíceis de encabcar nesse padráo; mas mesmo nesses casos, tentamos ajudá-lo a ver como foi reunida a coletánea em que cada livro consiste. Ácima de rudo, tentamos escrever um livro que trata dos livros da Biblia, mas que nao deve substituir a leitura da própria Biblia. Esperamos, antes, que ao ajudá-lo a elucidar o sentido dos livros biblicos, este livro gere em vocé um desejo renovado de lé-los. TOME NOTA: A chave para usar este livro é vocé 1er as primei-ras tres secSes de cada capítulo ("Informacóes básicas", "Visáo geral" e "Orientacóes para a leitura"), e entáo ler o texto bíblico em conjunto com a secáo intitulada "Urna Caminhada por...". Se vocé ler apenas "Urna Caminhada por", isso servirá somente para acumular mais dados. O nosso objetivo é que, primeiramente, vocé possa contar com alguns dados preliminares importantes, e entáo queremos de rato caminhar com vocé pela leitura do livro bíblico. Isso sem dúvida será muito mais difícil no caso dos livros mais extensos, assim como foi difícil para nos condensar tanto material dentro dos parámetros estreitos que estabelecemos. Mas mesmo nesses casos, enquanto vocé estiver lendo durante um período mais longo, esperamos que vocé encontré neste material um guia útil. Apresentamos um glossário para aqueles que precisam de conducáo através do emaranhado de termos técnicos que os estudiosos da Biblia tendem a usar sem maiores explicacóes (v. p. 519).Também remecemos urna lista cronológica sugerida dos livros para aqueles que quiserem ledos nessa ordem (v. o apéndice ao final do livro, p. 526). Tentamos escrever de tal maneira que vocé consiga seguir o que se está dizendo, nao importa a versáo da Biblia que esteja usando, contanto que se trate de urna versáo contemporánea (cf. cap. 2 de Entendes o que les?). [Nesta edicáo do livro em portugués, empregamos a Versáo Almeida Século 21, A21.] Algumas palavras sobre nossas pressuposicóes. Em primeiro lugar, embora nao presumamos que o leitor tenha lido Entendes o que les?, re-ferimo-nos, vez ou outra, a esse livro (os números das páginas sempre se referem á 3a edicáo revisada e ampliada, 2011), para nao precisar repetir algumas pressuposicóes daquele livro (p. ex., as fontes dos Evangelhos). No caso de Atos e Apocalipse, que receberam capítulos individuáis em Entendes o que les?, o material é reformulado para este livro, mas o leitor ainda assim fará bem em ler aqueles capítulos também.

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COMO LER A BÍBLIA ÜVRO POR LIVRO

Em segundo lugar, os autores se situam abertamente na tradícao evangélica da igreja. Isso significa, entre outras coisas, que eremos que o Espirito Santo inspirou os autores (e os compiladores) bíblicos na sua tarefa — embora seja mais comum, quando falamos sobre os documentos, falarmos em termos do que o autor humano (inspirado) está fazendo. Ao mesmo tempo, na maioria dos casos buscamos nos valer dos estu-dos bíblicos mais recentes — embora seja possível que qualquer estudioso que venha a consultar esta obra se pergunte se, de fato, consultamos seu último trabalho. Além da nossa própria leitura do texto, reconhecemos, com gratidáo, que incorporamos aqui sugestóes — e as vezes o próprio fraseado — de outros autores, tantas que nao haveria como mencionar todas. Esperamos que, se algum autor reconhecer algumas das suas ideias neste livro, isso lhe traga satisfacáo; confiamos, também, que eles nos sejam generosos nos momentos em que preferimos trilhar nosso próprio caminho em vez de nos fiar no trabalho de outros estudiosos.

Os autores também fazem os seguintes reconhecimentos com grande gratidáo: ao Regent College, cuja generosa política de períodos sabáticos tornou possível que o professor Fee trabalhasse no livro durante o semestre da primavera de 1998 e o do invernó de 2001; a colegas e amigos que leram capítulos escolhidos e contribuíram com valiosos comentarios: lain Provan, V. Philips Long, Rikk Watts, John Stek, Bruce Waltke e Wendy Wilcox Glidden. A esposa do professor Fee, Maudine, demonstrou grande interesse por este projeto e leu cada palavra, contribuindo com sugestóes importantes que aprimora-ram em muito o nosso trabalho. E, durante o mes de marco de 2001, enquanto o professor Fee se recuperava de urna cirurgia, ela se uniu a ele na leitura do manuscrito todo e da Biblia toda em voz alta — o que resultou em inúmeras alteracóes no livro, já que os ouvidos, as vezes, ouvem melhor do que vecm os olhos. Nao podemos enfatizar o bastante o valor da leitura bíblica em voz alta! Dedicamos o livro Entendes o que les? a nossos pais, tres dos quais já partiram para estar com o Senhor. Estamos dedicando este presente empreendimento a nossos netos — que, por ocasiáo desta composicáo, já contam doze da parte dos Fee, os mais velhos já sendo adolescentes, e tres da parte dos Stuart. Assim, em certa medida, este livro é a nossa própria refiexáo sobre Salmos 71.14-18.

A historia bíblica: um panorama

Quando os autores eram meninos, recebendo a criacáo típica de um lar cristáo, urna das maneiras em que nos — e nossos amigos — rece-bíamos ensino bíblico era a leitura diaria de um algum texto da Biblia extraído da Caixinha de Promessas, que nunca deixava, na hora do devocional, de ser depositada sobre a mesa da cozinha. Além disso, muitos crentes da nossa geracao — e de varias geracóes anteriores —• tinham aprendido um tipo de leitura bíblica devocional que enfatizava a leitura de apenas determinadas passagens bíblicas, ñas quais se bus-cava urna "palavra para o dia". Embora a ideia por tras dessas abordagens da Biblia fosse muito salutar (urna exposicáo constante as promessas seguras da Palavra de Deus), também tinha os seus pontos fracos, pois ensinava a 1er textos de maneira isolada da grande historia da Biblia. O propósito e o interesse deste livro sao ajudar vocé a 1er a Biblia como um todo, e mesmo quando esse "todo" se restringir a "livros in-teiros", é importante ter consciéncia do papel que o livro desempenha na historia mais ampia da Biblia (acerca desse assunto, v. Entendes o que les?, p. 111-2). Mas para fazer isso, vocé precisa antes ter urna ideia do que é, afinal, essa grande historia. Em primeiro lugar, sejamos claros: a Biblia nao é um mero guia divino, nem urna mina de proposicóes a serem cridas ou urna longa lista de ordens a serem cumpridas. E verdade, recebemos déla urna abundancia

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COMO LER A BÍBLIA UVRO POR LIVRO

de orientacóes, e ela de fato contém muitas proposicoes verdadeiras e ordens divinas. Mas a Biblia é infinitamente mais do que isso. Nao é por acaso que a Biblia vem a nos principalmente por meio da narrativa — mas nao urna narrativa qualquer. Aqui temos a narrativa mais sublime de todas — a própria historia de Deus. Isto é, ela nao se propóe ser apenas mais urna historia da busca da humanidade por Deus. Nao, essa é a historia de Deus, o relato da busca dele por nos, urna historia contada essencialmente em quatro capítulos: Criacáo, Queda, Redencáo e Consumacáo. Nessa historia, Deus é o protagonista divino, Satanás é o antagonista, e o povo de Deus, os agonistas (embora muitas vezes, também, os antagonistas), em que a redencáo e a reconciliacáo formam a resolucáo da trama. (V. definicáo de "antagonista" e "agonista" no glossário.)

CRIACÁO Como essa é a historia de Deus, ela nao comeca, como no caso de todas as outras historias semelhantes, com um Deus escondido, que as pessoas estáo buscando e a quem Jesús, finalmente, as conduz. Ao contrario, a narrativa bíblica comeca com Deus como o Criador de rudo o que há. Ela nos conta que "no principio Deus...": que Deus é antes de todas as coisas, que ele é a causa de todas as coisas, que ele portanto está ácima de todas as coisas e que ele é o alvo de todas as coisas. Ele está na origem de todas as coisas como a causa única de todo o universo, em toda a sua vastidáo e complexidade. E toda a Criacáo — toda a própria historia humana — tem o Deus eterno, por meio de Cristo, como o seu propósito e consumacáo fináis. Lemos, aínda, que a humanidade é a gloria e a coroa da obra do Criador — seres feitos a imagem do próprio Deus, com quem ele poderia ter comunháo, e em quem poderia ter satisfacáo; seres que conheceriam o puro prazer da sua presenca, amor e favor. Criada á imagem de Deus, a humanidade, dessa maneira, desfrutou de forma singular da visáo de Deus, e viveu em comunháo com Deus. Mesmo assim, somos seres criados e destinados a ser dependentes do Criador no tocante á vida e existencia no mundo. Essa parte da historia é narrada em Génesis 1—2, mas é repetida e repercute de muitas maneiras diferentes ao longo de toda a narrativa.

A HISTORIA BÍBLICA: UM PANORAMA

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QUEDA O segundo capítulo na historia bíblica é longo e trágico. Comeca em Génesis 3, e essa linha sombria da narrativa percorre toda a historia bíblica, quase até o fim do último capítulo (Ap 22.11,15). Esse "capítulo" nos conta que o homem e a mulher desejaram e cobicaram um estado de divindade, e que num momento terrível da historia do nosso planeta, eles escolheram esse estado em vez de se contentarem com o seu estado de mera criatura, com a posiclo de dependencia que ele implica. Eles escolheram ser ¿«dependentes em relaqáo ao seu Criador. Mas nao fomos projetados para viver assim, e o resultado dessa es-colha foi urna queda — urna queda colossal. (Na verdade, essa nao é urna parte muito popular da historia hoje, mas essa rejeicáo contemporánea faz parte da própria Queda, e é esse o inicio de todas as falsas teologias.) Feitos para desfrutar de Deus e ser dependentes dele, e para encontrar o nosso significado básicamente na nossa própria condifáo de criatura, agora caímos dcbafxo da ira de Deus, e assim passamos a experimentar as terríveis consequéncias da nossa rebeldía. A calamidade da nossa condigáo caída é tríplice. Em primeiro lugar, perdemos a nossa visáo de Deus com respeito a sua natureza e caráter. Sendo nos mesmos culpados e hostis, projeta-mos essa culpa e hostilidade sobre Deus. Deus deve ser culpado: "Por que tu me fizeste assim?", "Por que tu és táo cruel?" sao os lamentos queixosos que percorrem toda a historia da nossa raca. Dessa forma, tornamo-nos idólatras, criando, agora, deuses á nossa própria imagem; toda e qualquer expressao grotesca da nossa condicáo caída foi reconstruida em algum deus. Paulo formulou isso desta forma: "Dizendo-se sabios, tornaram-se loucos e substituíram a gloria do Deus incorruptí-vel por imagens semelhantes ao homem corruptível, as aves, aos qua-drúpedes e aos reptéis [...] pois substituíram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram á criatura em lugar do Criador, que é bendito eternamente" (Rm 1.22,23,25). Ao substituirmos a verdade a respeito de Deus por urna mentira, passamos a ver Deus como alguém cheio de caprichos, contradicóes, hostilidade, cobica e vinganca (tudo isso sendo projecóes do nosso eu caído). Mas Deus nao se assemelha as nossas idolatrías grotescas.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Na verdade, se ele está escondido, diz Paulo, é porque nos tínhamos nos tornado escravos do deus deste mundo, que cegou a nossa mente, de modo que estamos sempre buscando, mas nunca conseguimos encontrá-lo (v. 2Co 4.4). Em segundo lugar, a Queda também nos levou a distorcer — e embaralhar — a imagem divina em nos mesmos, rolando-a na lama, por assim dizer. Em vez de sermos amorosos, generosos, altruistas, atenciosos, misericordiosos — como Deus é —, nos nos tornamos avarentos, egoístas, desamorosos, rancorosos, odiosos. Criados para refletir e, assim, representar Deus em rudo o que somos e fazemos, aprendemos, em vez disso, a levar a imagem do Maligno, o inimigo implacável de Deus. A terceira consequéncia da Queda foi a nossa perda da presenta divina, e, com isso, do nosso relacionamento — nossa comunháo — com Deus. No lugar da comunháo com o Criador, tendo nos um propósito na criacáo dele, nos nos tornamos rebeldes, ficamos perdidos e jogados a deriva, criaturas que violaram as leis de Deus, abusaram da sua criacáo e sofreram as terríveis consequéncias da condicáo caída na nossa destruigáo, alienagáo, solidáo e sofrimento. Debaixo da tiranía do nosso pecado — na verdade, somos escravos dele, diz Paulo, e somos culpados —, descobrimos que nao estamos dispostos, e nem somos capazes, de voltar ao Deus vivo na busca de vida e restauragáo. Além disso, passamos adiante a nossa condigáo destruida sob a forma de todo tipo de relacionamentos destruidos entre nos (isso é ressaltado em letras garrafais em Génesis 4—11). A Biblia nos diz que estamos caídos, que há urna distancia tremenda entre nos e Deus, e que somos como ovelhas que estáo se perdendo (Is 53.6; IPe 2.25), ou como um filho rebelde e sabe-tudo, que vive numa térra distante entre os porcos, querendo comer a comida deles (Le 15.11-32). Nos nossos momentos de maior lucidez, sabemos que essa é a verdade, urna verdade que nao se aplica apenas ao assassino, ao estuprador ou áquele que abusa de criangas, mas que também se aplica a nos — egoístas, avarentos e orgulhosos. Nao admira que as pessoas vejam Deus como nosso inimigo; nos nossos momentos de maior lucidez, sabemos que merecemos a sua ira pelo tipo de pessoas repulsivas que na verdade somos.

A HISTORIA BÍBLICA: UM PANORAMA

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REDENCÁO A Biblia também nos diz que o santo e justo Deus, cuja perfeicáo moral se inflama contra o pecado e a rebeldia das criaturas, é, ao mes-mo tempo, um Deus cheio de misericordia e amor — e de fidelidade. A realidade é que Deus amou e se compadeceu dessas criaturas cuja rebeldia e rejeicáo da sua condicáo de dependencia as levaram a urna queda tao vil, e portanto a experimentar a dor, a culpa e a alienacáo em que consiste sua condicáo de pecado. Mas como nos alcancar, como nos resgatar de nos mesmos, com todas as nossas percepcóes erradas de Deus, e com o desespero da nos-sa trágica condicáo caída? Como nos levar a ver que Deus é por nos, e nao contra nos (cf. Rm 8.31)? Como levar o rebelde nao só a erguer a bandeira branca da rendicáo, mas a espontáneamente mudar de lado e, assim, descobrir novamente a alegria e o sentido da vida? E disso que trata o capítulo 3 da historia. E esse é o capítulo mais longo, um capítulo que conta como Deus se propós redimir e restaurar essas suas criaturas caídas, para que ele pudesse restaurar em nos a visao perdida de Deus, renovar em nos a imagem divina e restabelecer o nosso relacionamento com ele. Mas também, entremeado em todo esse capítulo, está o outro tema — o tema da nossa resistencia constante. Lemos, assim, que Deus veio a um homem, Abraáo, e fez com ele urna aliaba — para abencoá-lo e, por meio dele, abencoar as na-c5es (Gn 12—50) — e com sua descendencia, Israel, que havia se tornado um povo escravo (Éxodo). Por meio do primeiro dos seus profetas, Moisés, Deus (agora conhecido pelo seu nome Yahweh-]a.vé) os libertou da sua escravidáo e fez urna alianca com eles no monte Sinai — segundo a qual ele, que os tinha libertado, seria o seu Salvador e Protetor para sempre, que estaria singularmente presente entre eles, ao contrario de todos os demais povos do mundo. Mas eles também teriam de manter essa alianca com ele, ao permitirem ser forjados a semelhanca dele. Assim, ele lhes dcu a Lci como seu presente, tanto para lhes revelar como ele era, quanto para protegé-los uns dos outros durante esse processo de se tornarem semelhantes a ele (Levítico-NúmerosDeuteronómio).

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Mas a historia nos conta que eles se rebelaram repetidas vezes, e viram esse presente da Lei como urna maneira de privá-los da sua liberdade. Como pastores que estavam sendo levados para urna térra agrícola (Josué), eles nao tinham certeza de que o seu Deus — um Deus de pastores, como eles supunham — também lhes daria pros-peridade ñas colheitas,voltando-se, portante, aos deuses da fertilidade agrícola (Baal e Astarote) dos povos que viviam á volta deles. Dessa forma, passaram por varios ciclos de opressáo e livramento (Juízes), mesmo que, em meio a tudo isso, algumas pessoas de fato tenham se revestido do caráter de Deus (Rute). Finalmente, Deus lhes enviou mais um grande profeta (Samuel), que ungiu para eles o rei ideal (Davi), com quem Deus fez urna nova alianca, especificando que um de seus descendentes reinaria sobre o seu povo para semprc (l-2Samuel). Mas, infelizmente, o caldo entorna de novo (l-2Reis; l-2Crónicas), e Deus, em seu amor, novamente lhes envia profetas (Isaías-Malaquias), cantores (Salmos) e sabios (Jó; Proverbios; Eclesiastes). No fim, a infidelidade constante do povo acaba sendo demais, e Deus o julga com as maldicbes prometidas em Levítico 26 e Deuteronómio 28. Mas mesmo aqui (v. Dt 30) há urna promessa para o futuro (v., p. ex., Is 40—55; Jr 30— 32; Ez 36—37), segundo a qual viria um novo "filho de Davi" e um derramamento do Espirito de Deus no coracáo do seu povo, de forma que eles seriam vivificados e transformados a semelhanca de Deus. Essa bénqáo final também incluiría pessoas de todas as nacóes ("os gentíos"). Finalmente, imediatamente antes da última cena, com seu final e epílogo, lemos sobre o maior evento de todos — o fato de que o grande e último "filho de Davi" nao é ninguém menos que o próprio Deus, o Criador de toda a grandeza e majestade do universo, que entrou no palco humano, como um de nos e á nossa semelhanca. Nascido como filho de urna mocu camponesa, no aprisco de um povo oprimido,Jesus, o filho de Deus, viveu e ensinou entre eles. E finalmente, com urna morte horrível, seguida de urna ressurreicáo que derrotou a morte, ele lutou com os "deuses" — todos os poderes que nos foram hostis — e os venceu, ele próprio carregando todo o peso da culpa e da punicáo pela rebeliáo das criaturas.

A HISTORIA BÍBLICA: UM PANORAMA

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Aqui está a esséncia da historia: um Deus amoroso e redentor, na sua encarna9áo, restaurou a nossa visáo perdida de Deus (tirou a venda dos nossos olhos, por assim dizer, para que pudéssemos ver claramente o que Deus é de fato), e pela sua crucifica9áo e ressurreÍ9áo tornou possível a nossa restaura9áo a imagem de Deus (v. Rm 8.29; 2Co 3.18), e por meio da dádiva do Espirito se tornou presente conosco em urna comunháo constante. Essa é urna revela9áo, urna reden9áo, maravilhosa, quase inacreditável. O aspecto extraordinario da historia bíblica está no que ela nos conta sobre o próprio Deus: um Deus que se sacrifica a si próprio na morte por amor pelos seus inimigos; um Deus que prefere sofrer a morte que nos merecemos a ficar afastado das pessoas que criou para a sua satisfa9áo; um Deus que assumiu ele próprio a nossa semelhan9a, experimentou a nossa condÍ9áo de criatura e carregou os nossos pecados, para que dessa forma pudesse prover perdáo e reconcilia9áo; um Deus que nao nos abandonaría, mas nos perseguiría — a todos nos, mesmo os piores entre nos — para poder nos restaurar a comunháo alegre com ele próprio; um Deus que, em Cristo Jesús, de tal forma se identificou para sempre com suas criaturas amadas que veio a ser conhecido e louvado como "o Deus e Pai de nosso Senhor Jesús Cristo" (IPe 1.3). Essa é a historia de Deus, a historia do seu amor e gra9a, da sua misericordia e perdáo insondáveis — e é assim que ela também veio a se tornar a nossa historia. Essa historia nos conta que nos nao merecemos nada, e no entanto recebemos rudo; que merecemos o inferno, mas recebemos o céu; que merecemos ser eliminados, apagados da memoria, mas recebemos o seu abra9o carinhoso; que merecemos a rejeÍ9áo e o juízo, mas recebemos, de presente, a filia9áo divina, para levarmos em nos a sua semelhan9a, para podermos chamá-lo de Pai. Essa é a historia da Biblia, a historia de Deus, e que ao mesmo tempo é, também, a nossa historia. Na verdade, ele permitiu, inclusive, que suas criaturas humanas tivessem urna parte na sua composi9áo!

CONSUMACÁO Como a historia ainda nao terminou, o último capítulo ainda está sendo escrito — mesmo que saibamos, com base no que foi escrito até aqui, como será o fim do último capítulo. O que Deus já pos em

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movimento, assim lemos, por meio da encarnacáo, morte e ressurreicáo de Jesús Cristo, e pela dádiva do Espirito Santo, será finalmente consumado de forma plena. Assim, o que torna essa historia táo diferente de todas as outras historias do género é que a nossa historia está repleta de esperanca. Existe um Fim — urna conclusáo gloriosa para essa historia presente. É Jesús, parado diante do túmulo do seu amigo Lázaro, dizendo a Marta, irmá de Lázaro, que ele próprio, Jesús, era a sua esperanca para a vida, tanto no agora quanto no porvir: "Eu sou a ressurreicáo e a vida", ele lhe disse, "quem eré em mim, mesmo que morra, vivera" — porque Jesús é a própria ressurreicáo. E como ele é, também, a vida, ele prossegue: "e todo aquele que vive, e eré em mim, jamáis morrerá" (Jo 11.25,26). E entáo ele foi adiante e validou o que havia dito, res-suscitando Lázaro do túmulo. O próprio Jesús se tornou a confirmacáo final dessas palavras com a sua própria ressurreicáo. Os perversos e os religiosos o mataram.Náo suportavam a sua presenca entre eles, porque ele se opunha a todas as suas formas mesquinhas de religiáo e autoridade, baseadas na própria condicáo caída deles — e entáo ele ainda teve a audacia de lhes dizer que ele era o único caminho para o Pai (v. Jo 14.6). Assim, mataram--no. Mas como ele mesmo era a Vida — e o autor da vida para todos os outros —, o túmulo nao pode reté-lo. E sua ressurreicáo nao só con-firmou as suas próprias reivindicac;5es e vindicou a sua própria vida no nosso planeta, mas também ditou o comeco do fim da própria morte, e se tornou urna garantía para aqueles que sao seus — tanto agora quanto para sempre. E disso que trata o episodio final (o Apocalipse) — a conclusáo que Deus dá á historia, quando a sua justica póe fim ao grande Antagonista e a todos os que continuam a levar a imagem dele (v. Ap 20), e quando Deus em amor restaura a Criacáo (Edén) como um novo céu e urna nova térra (v. Ap 21— 22). Essa é, entáo, a metanarrativa, a grande historia, de que os diversos livros da Biblia sao, cada um, urna parte. Ainda que busquemos, vez após vez, indicar a maneira como cada livro se encaixa no todo, en-quanto vocé os 1er poderá perceber por si mesmo como eles se encai-xam nessa narrativa. Esperamos, também, que vocé se pergunte como vocé mesmo se encaixa nessa historia.

A narrativa de Israel na historia bíblica (Inclusive a Lei)

Precisamos, primeiro, observar que a ordem dos livros do Antigo Testamento na Biblia Hebraica é um pouco diferente da ordem na nossa Biblia em portugués. A ordem da nossa Biblia veio até nos por meio da traducáo grega do século segundo a.C, conhecida como Septuaginta. A Biblia Hebraica é dividida em tres partes: a Lei (o Pentateuco, ou os "cinco livros de Moisés"), os Profetas (os Profetas Anteriores, incluindo os livros de Josué até Reis [menos Rute], e os Profetas Posteriores, incluindo Isaías, Jeremias, Ezequiel e o Livro dos Doze [os chamados Profetas Menores]) e os Escritos (Salmos [incluindo Lamentacoes], os livros da Sabedoria [Jó, Proverbios, Eclesiastes, Cántico dos Cánticos], Daniel e os quatro livros de narrativas, Rute, Ester, Esdras-Neemias e Crónicas). Neste livro, seguiremos a ordem dos livros na Biblia em portugués, exceto no caso de Lamentacoes, no Antigo Testamento, que se sitúa entre os Escritos, e de Atos, no Novo, que, com o Evangelho de Lucas, pertence mais devidamente ao conjunto das obras de Lucas. Como observamos em Entendes o que les? (p. 29), apesar da manara em que muitas pessoas tenientes a Deus lidam com a Biblia, ela nao é, na verdade, urna mera coletánea de proposicoes a serem cridas e imperativos a serem obedecidos. Antes, a natureza essencial da Biblia — de toda a Biblia — é de urna narrativa, urna narrativa em que tanto as proposicoes quanto os imperativos integram, de maneira

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profunda e essencial, o todo de que sao parte. A Biblia comeca, portante, com uma serie de livros narrativos — o que se aplica inclusive a Levítico e Deuteronómio, que podem parecer diferentes por serem compostos em grande parte de leis, mas que, na verdade, nao podem ser adequadamente entendidos a parte da estrutura narrativa em que estáo situados. Assim, o inicio da historia bíblica está enraizado na longa narrativa que conta a historia do povo escolhido de Deus, Israel. O primeiro dos cinco livros de Moisés (Génesis) relata o inicio de todas as coisas (Criacao e Queda), e entáo concentra o foco especialmente no chamado de Deus e na sua alianca com Abraao e sua descendencia, prometendo tanto fazer deles um povo numeroso quanto lhes dar a térra de Canaá. Depois de salvar o povo da escravidáo no Egito (o Éxodo), Deus tem um encontró com eles no monte Sinai, no vasto deserto do mesmo nome. Aqui ele faz uma segunda alianca com Israel, que assume uma forma de "lei", e que inclui a construcáo do tabernáculo (Éxodo), o lugar em que Deus habitaría entre o seu povo, e onde eles deveriam adorá-lo com ofertas e sacrificios adequados (Levítico) como parte da forma pela qual cumpririam o seu lado da alianca. Quando o povo se prepara para partir do Sinai e tomar o caminho da térra prometida, sao contados os homens com idade a partir de vinte anos (os que serao os guerreiros de Israel), c eles sao colocados em volta do tabernáculo em formacáo de batalha (Números). Dessa forma, eles sao preparados para tomar o seu lugar na guerra santa, na qual devem conquistar a térra que Deus prometeu a seus pais — Abraao, Isaque e Jaco. Antes de se lancarem nessa conquista, Moisés lhes apresenta uma recapitulacáo da sua historia, bem como mais uma visáo geral da Lei e das béncáos e maldicóes (promessas e ameacas) do tipo que costuma acompanhar as antigás aliancas; no caso deles, a desobediencia a alianca de Deus significa o exilio, mas com a promessa de uma restauracáo ainda mais gloriosa na forma de um novo éxodo (Deuteronómio). Depois da historia da conquista e ocupacáo inicial da térra (Josué), vém historias dos fracassos por parte do povo ao nao cumprir a sua alianca com Deus, seu verdadeiro Rei (Juízes). Nesta última historia

A NARRATIVA DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA (INCLUSIVE A LEÍ)

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(incluindo Rute), somos preparados para o grande momento seguinte da linha principal da historia: Deus governará Israel por meio de um rei terreno. Os livros de Samuel entáo contam a historia de Davi, com quem Deus faz mais urna alianca — segundo a qual nunca faltará no trono de Israel um de seus filhos, desde que guardem a alianca com Deus. Assim como em muitas monarquias antigás, o próprio Davi era visto também como urna personificacáo do povo, um elemento-chave em muitos salmos e no desenrolar final da historia de Jesús de Nazaré. Mas lamentavclmente a historia de Israel se rcpcte, a medida que os reis, um após o outro, conduzem Israel pelo caminho da idolatria (l-2Reis). Alias, em apenas duas geracóes o reino de Davi já está dividido em dois. O Reino do Norte (Israel; as vezes chamado de Efraim pelos salmistas e profetas) cai diante dos assírios em 722 a.C, e para todos os efeitos deixa de existir como entidade distinta. O Reino do Sul (Judá) cai diante dos babilonios em 586 a.C. Nesse caso, os líderes do povo levados ao Exilio na Babilonia fazem parte, entáo, do rema-nescente pelo qual Deus ainda executará os seus planos de redencáo. O Exilio trouxe miseria e traumas incontáveis ao povo de Deus, porque os privou da sua térra prometida e do seu templo — a evidencia principal da presenca especial de Deus e do fato de eles serem seu povo. O ministerio profético de Ezequiel contribuiu de maneira especial para mantcr a cocsáo entre os exilados. Muitos, ainda que nem de longe a maioria, foram finalmente levados de volta á sua térra sob os persas, e entáo reconstruíram o templo (Esdras 1—6; Neemias). Durante csse período de restauracáo geral, a historia de Judá é contada de urna perspectiva mais positiva (l-2Crónicas), enquanto Ester conta a historia do livramento dos exilados de Judá espalhados por todo o Imperio Persa, que foram, assim, salvos da aniquilacáo. Ao 1er os livros dessa secáo da Biblia, vocé vai encontrar diversas linhas que mantém unida a narrativa mais ampia: as alianzas de Deus com o seu povo; a.fidelidade de Deus para com eles, apesar da repetida infidelidade deles para com seu Deus; a escolha que Deus faz dos mais fracos e menos favorecidos (a sua escolha das "coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes" [lCo 1.27]); Deus liberta o seu povo da escravidáo para fazer deles o seu tesouro pessoal; Deus habita entre

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

eles no tabernáculo e no templo, como uma dádiva da sua presenca renovada na térra (perdida na Queda); o presente divino da Lei a fim de formá-los novamente segundo a sua imagem; a provisáo divina de um sistema sacrificial — a "linha vermelha" de sangue derramado pela vida de outro — como sua maneira de oferecer perdáo; a escolha divina de um rei de Judá que o representarla na térra, e assim prepararía o caminho para a sua própria vinda na pessoa de Jesús. Esses sao os elementos que fazem com que a historia toda se mantenha coesa como uma única historia. Fique atento para eles durante a sua leitura.

Génesis

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE GÉNESIS ■ Conteúdo: a historia da Criacáo, da desobediencia humana e suas trágicas consequéncias, e da escolha, por parte de Deus, de Abraáo e sua descendencia — o inicio da historia da redencao ■ Abrangéncia histórica: da Criacáo do mundo até a morte de José, no Egito (c. 1600 a.C?) ■ Enfases: Deus como o Criador de rudo o que existe; a criacáo dos seres humanos a imagem de Deus; a natureza e as consequéncias da desobediencia humana; o inicio das aliancas divinas; a escolha, por parte de Deus, de um povo por meio do qual ele abencoará as nacóes

VISÁO GERAL DE GÉNESIS Para os leitores modernos, Génesis pode parecer um livro estranho, já que comeca com Deus e a Criacáo e concluí com José num caixáo no Egito! Mas essa estranheza é prova de que, embora aprésente integridade como livro (estrutura e organizacáo evidentes), Génesis tem o propósito, ao mesmo tempo, de dar inicio a toda a historia bíblica. A primeira palavra do livro {Bereshit = "em [o] principio"), além de lhe servir de título, sugere o seu conteúdo. Assim, ele fala do principio da historia de Deus — Criacáo, desobediencia humana e redencao divina

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— enquanto, ao mesmo tempo, dá inicio ao Pentateuco, a historia da escolha de um povo, por parte de Deus, e do estabelecimento de urna aliaba com esse povo, por meio do qual ele aben9oaria todos os povos (Gn 12.2,3). A narrativa de Génesis apresenta duas partes básicas: urna "pré--história" (caps. 1—11), que consiste ñas historias da Cria9áo, da ori-gem dos seres humanos, da Queda da humanidade e do progresso implacável do mal — tudo isso tendo como fundo a paciencia e o amor incansáveis de Deus —, e a historia do inicio da reden9áo por meio de Abraáo e sua descendencia (caps. 12—50), o foco estando ñas historias de Abraáo (11.27—25.11), de Jaco (25.12—37.1) e de José (caps. 37—50). Essas historias, em parte, sao estruturadas em torno de urna frase que ocorre dez vezes: "Estas sao as gera9Óes [genealogías/ historias/relatos de familia] de", um termo que pode se referir tanto as "genealogías" em si (como nos casos de Sem, Ismael e Esaú) quanto as "historias de familias". Vocé perceberá que as historias principáis de Abraáo, Jaco e José estao todas na historia de familia de seus respectivos pais (Terá, Isaque e Jaco). A narrativa geral de Génesis, portanto, cornea imediatamente após o prólogo (1.1—2.3), com a primeira familia humana no jardim do Edén, passando, a partir da familia de Adáo, por Noé e Sem e chegando, assim, a Terá e Abraáo, e passando, finalmente, por Isaque e chegando, assim, a Jaco (Israel), e portanto até José. Ao mesmo tempo, também sao fornecidas as linhagens familiares dos filhos rejeitados (Caim, Ismael, Esaú), destacando, assim, o contraste entre a "descendencia eleita" e o "irmáo rejeitado" (aquela tem urna historia, este, só urna genealogía). Finalmente, perceba mais um recurso estrutural que dá forma a maior parte do livro: Deus usa Noé para preservar a vida humana durante o grande diluvio (caps. 6—9), e usa José para preservar a vida humana durante a grande seca (caps. 37—50).

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE GÉNESIS A medida que vocé lé esse primeiro livro da Biblia, além de saber que a narrativa se desenvolve segundo as historias de familias, também atente para a forma como a trama principal, por um lado, e varias

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subtramas, por outro, cooperam para moldar a historia de familia mais ampia, que é a historia do povo de Deus. A trama principal diz respeito a intervencao de Deus na historia da condicáo caída da humanidade ao escolher ("eleger") um homem e sua familia. Porque embora as familias de Abraao, de Isaque e de Jaco sejam, por assim dizcr, os personagens principáis, vocé nao deve jamáis esquecer que Deus é o Protagonista último — o que se aplica a todas as narrativas bíblicas. Esta é, ácima de rudo, a historia dele. Deus fala, e dessa forma cria o mundo e um povo. A historia se torna do povo (e nossa) apenas na medida em que Deus traz essa familia á existencia, faz promessas a ela e realiza com ela urna alianpa para ser o seu Deus. Permane9a atento, portante, á forma como a trama principal se desenvolve, e a como os personagens primarios se tornam parte da historia de Deus. Ao mesmo tempo,náo deixe de observar as varias tramas menores, que sao cruciais para a historia maior do povo de Deus no Antigo Testamento — e em alguns casos, também, para a historia do povo constituido pela nova alianpa. Seis dessas subtramas merecem aten-9áo especial. A primeira — crucial para toda a historia bíblica — é a ocorrén-cia das primeiras duas aliabas entre Deus e o seu povo. A primeira alianpa é com toda a humanidade, por meio de Noé e seus filhos, prometendo que Deus nunca mais eliminará a vida da térra (9.8-17). A segunda aliaba é com Abraao, e promete duas coisas em especial — a dádiva da "semente/descendéncia" que se tornará urna grande na9áo para abenpoar as na9¿>es, e a dádiva da térra (12.27; 15.1-21; cf. 17.3-8, em que a aliaba é ratificada pela marca identificadora da circuncisáo). A segunda aliaba é repetida a Isaque (26.3-5) e a Jaco (28.13-15) e serve, por sua vez, como base para as duas aliabas se-guintes no Antigo Testamento: a dádiva da Lei (Ex 20—24) e a dádiva da monarquia (2Sm 7). A segunda subtrama é um pouco sutil no próprio Génesis, mas é importante para o dcscnrolar posterior do tema da guerra santa (v. glos-sário) na historia bíblica. Ela come9a com a maldÍ9áo de Deus sobre a serpente, de que Deus pora "inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendencia [sementé] e a descendencia déla" (3.14,15). O termo

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crucial aqui é "descendencia" (sementé), retomado em 12.7 em relacáo ao povo escolhido. Essa maldicáo prenuncia o tema da guerra santa, que é particularmente acentuado em Éxodo (a guerra sendo entre Moisés e o faraó, portante entre Deus e os deuses do Egito; v. Ex 15.1-18), é desenvolvido na conquista e derrota de Canaá e de seus deuses (o que explica a maldicáo de Canaá em Gn 9.25-27) e culmina no Novo Testamento (na historia de Jesús Cristo, e esp. em Apocalipse). Embora em Génesis esse tema nao assuma a forma da guerra santa propríamen-te, pode se vé-la, nao obstante, especialmente no conflito entre irmaos, ou seja, entre a descendencia divina e a nao divina (Caim/Abel; Ismael/ Isaque; Esaú/Jacó), em que o mais velho persegue o mais novo, por meio de quem Deus escolheu operar (v. Gl 4.29). A escolha, por parte de Deus, do mais jovem (ou do mais fraco, ou do mais improvável) para levar adiante a descendencia justa é urna tercena subtrama que comeca em Génesis. Aqui, ela assume duas formas em particular que sao, entáo, repetidas ao longo da historia bíblica. Em primeiro lugar, Deus regularmente ignora o filho primogénito na execucáo dos seus propósitos (urna ruptura considerável, da parte de Deus, com as normas culturáis entáo correntes): nao Caim, mas Sete; nao Ismael, mas Isaque; nao Esaú, mas Jaco; nao Rúben, mas Judá. Em segundo lugar, a descendencia divina frequentemente é gerada por urna mulher antes estéril (Sara, 18.11,12; Rebeca, 25.21; Raquel, 29.31). A medida que vocé le a historia bíblica inteira, é urna boa ideia prestar atencáo nesse tema recorrente (v., p. ex., lSm 1.1—2.11; Le 1). Ligado a esse tema está o fato de que os escolhidos nao devem a escolha de Deus á própria bondade; alias, os defeitos desses escolhidos sao fielmente narrados (Abraáo em Gn 12.10-20; Isaque em 26.1-11; Jaco ao longo da sua narrativa [repare no quanto a familia no capítulo 37 é disfuncional!]; Judá em 38.1-30). Deus nao os escolhe em vista do caráter inerente deles; o que faz deles a descendencia santa, antes, é que eles confiaram, no final, em Deus e na sua promessa de que seriam o seu povo — um povo extraordinariamente numeroso — e de que herdariam a térra a qual primeiro vieram como estrangeiros. Urna quarta subtrama vem á tona mais tarde na historia, em que Judá assume o papel de líder entre os irmaos na longa narrativa de

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José (caps. 37—50). Ele aparece pela primeira vez no capítulo 38, em que suas fraquezas e sua pecaminosidade sao expostas. Mas seu papel principal tem inicio em 43.8,9, em que ele garante a seguranca de seu irmáo Benjamim, e atinge o climax com sua disposicáo em tomar o lugar de Benjamim, em 44.1834. Tudo isso prenuncia a béncáo de Jaco em 49.8-12, segundo a qual o "cetro nao se afastará de Judá"(apontan-do para o reino davídico e, indo além deste, para Jesús Cristo). Uma quinta subtrama é encontrada na prenunciacáo do "capítulo" seguinte na historia — a escravidáo no Egito. O interesse no Egito comeca com a genealogia de Cam (10.13,14; Mizraim é o termo hebraico para "Egito"). A narrativa familiar básica (de Abraáo até José) comeca com uma fome que leva Abraáo até o Egito (12.10-20) e concluí com outra fome que leva Jaco e toda a sua familia a se estabelecer no Egito, enquanto Isaque, na sua viagem para o Egito durante ainda outra fome, recebe a ordem expressa de nao ir até lá (26.15). Finalmente, o interesse em detalhar as origens dos vizinhos próximos de Israel, que se lhe tornam espinhos na carne ao longo da historia do Antigo Testamento, forma uma sexta subtrama. Além dos personagens principáis, Egito e Canaá (10.13-19), observe também, respectivamente,Moabe e Amom (19.30-38), Edom (25.23; 27.39,40; 36.1-43), e o papel menor de Ismael (39.1; cf. SI 83.6).

UMA CAMINHADA POR GÉNESIS D 1.1—2.3

Prólogo

Embora seja escrito em prosa, há uma dimensao claramente poética nesse prólogo criacional. Parte da poesía está na estrutura meticulosa da primeira "semana", em que o primeiro dia corresponde ao quarto, o segundo corresponde ao quinto, e o terceiro corresponde ao sexto. Repare como os dois grupos de dias correspondem ao faro de a térra ser "sem forma e vazia" (1.2): os dias 1-3 dáo "forma" á térra (luz, céu, térra seca), enquanto os dias 4-6 dáo conteúdo a essa forma. Desse modo: Dia 1 (1.3-5) Dia 2 (1.6-8)

Luz Céu e mares

Dia 3 (1.9-13)

Terra seca/vida vegetal

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Dia 4 (1.14-19)

Sol, lúa, estrelas

Dia 5 (1.20-23)

Céu e animáis marinhos

Dia 6 (1.24-31)

Animáis terrestres se alimentam da vida vegetal

Dia 7 (2.2,3)

Deus descansa desse trabalho

Preste atencáo ñas varias énfases a medida que vocé le, algumas das quais sao retomadas posteriormente na historia bíblica — a énfase de que a fala de Deus traz todas as coisas á existencia (cf. SI 33.6; Jo 1.1-3); de que Deus abencoou aquilo que criou, incluindo o mundo material, declarando que tudo é "bom"; de que os seres humanos, homem e mulher, sao criados segundo a própria imagem de Deus, e recebem dele o dominio sobre o restante da Criacáo; de que Deus descansou no sétimo dia, e o separou como santo (estabelecendo, assim, o padráo de seis dias de trabalho e um de descanso; cf. Ex 20.8-11, a grande dádiva de descanso de Deus para os ex-escravos).

D 2.4—4.26

O relato da origem humana

Esse é o primeiro dos seis "relatos" que formam a pré-história de Génesis 1— 11. Ele se divide em tres partes claramente distintas, se-guindo a atual divisáo em capítulos. Comec,a (2.4-25) com os seres humanos sendo criados e colocados no Edén, no centro do qual estáo as duas árvores (da vida; do conhecimento do bem e do mal — ambas refletindo o ser do próprio Deus); há, também, a advertencia para nao comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, e a criacáo de Eva a partir da costela de Adáo, com énfase no caráter mutuo e cooperativo da relacáo entre os dois. Observe como, a partir desse momento, a historia entra em rápido declínio: a serpente os persuade á desobediencia (3.1-13), a que se seguem a maldicáo de Deus sobre a serpente e a térra, e o seu juízo sobre a mulher e o homem (3.14-19), e, após um alivio momentáneo (3.21), a punicáo deles — a perda da presenca de Deus (3.22-24). E importante lembrar, aqui, que o Edén é visto como restaurado na visáo final de Apocalipse (Ap 22.1-5)! O declínio é consumado com a historia do assassinato de Abel por seu irmáo, Caim, e o consequente banimento de Caim da presenca de Deus (4.118), concluindo com as notas irmás da arrogancia dos descendentes de Caim (4.19-24) e do nascimento de Sete, e com a

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nota esperancosa, por outro lado, de que "nesse tempo [...] os homens comecaram a invocar o nome do SENHOR" (4.25,26).

D 5.1—6.8 O relato da linhagem familiar de Adáo Essa genealogía faz um contraste com a linhagem de Caim (v. a di-ferenca entre os dois Lameques no final de cada urna). Observe duas coisas importantes sobre essa genealogía: em primeiro lugar, ela co-meca (5.3) e termina (5.29) com ecos do prólogo (Sete faz paralelo com Adáo; Noé trará alivio da maldicáo). Em segundo lugar, um dos homens dessa linhagem, Enoque (5.21-24), continua a experimentar a presenca de Deus. Apesar de alguns detalhes desconcertantes, nao perca de vista o sentido de 6.1-8: a degenerado total da rafa humana leva Deus a agir em juízo (6.6,7); mas, por clemencia divina, "Noé [...] encontrou graca aos olhos do SENHOR" (6.8).

I 6.9—9.29

O relato de Noé

Essa narrativa é táo conhecida que é fácil deixar de perceber seus aspectos significativos. Observe como, no comeco, a justica de Noé faz eco ao fato de que Enoque "andava com Deus" (6.9). Repare também como a historia ecoa a historia original da Criacáo, de modo que, com efeito, ela acaba sendo urna narrativa da "segunda criacáo": o diluvio faz a térra retornar á sua condicáo "sem forma e vazia" (1.2), mas Noé e os animáis constituem urna ligafáo com o mundo anterior, ao mes-mo tempo que comecam algo novo. A alianza com Noé está repleta de ecos de Génesis 1—2 — o restabelecimento do ciclo das estacóes (8.22; cf. 1.14); a ordem para que se multipliquem (9.1,7; cf. 1.28); a humanidade á imagem de Deus (9.6; cf. 1.27). Aqui Deus está come-cando de novo, e portanto faz urna alianca que consiste na promessa de nunca mais destruir a térra inteira dessa forma. A historia, infelizmente, termina com urna nota amarga (9.20-23) — urna "queda", no-vamente, que leva á maldicáo do descendente de Cam, Canaá — mas conclui com a béncáo de Sem (de cuja descendencia vira a redencáo).

D 10.1—11.9 O relato de Sem, Cam e Jafé Aqui se vé o desenvolvimento da civilizacáo humana em tres grupos étnicos básicos, conhecidos dos israelitas. Mizraim (forma hebraica de

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

"Egito") e Canaá (10.13-20) recebem destaque especial. A historia de Babel conclui esses relatos, e leva diretamente a narrativa abraámica, o foco deixando as nacóes espalhadas e passando diretamente ao ho-mem que fundará urna nova nacáo, e por meio do qual todas as nacóes seráo abencoadas.

D 11.10-26 O relato de Sem Essa lista de nomes nao é urna leitura muito estimulante, mas conduz o leitor de Sem, filho de Noé, até Abráo (Abraáo), e portanto ao "pai" do povo eleito.

D 11.27—25.11

O relato de Terá

Nao há como ignorar o fato de que o filho de Terá, Abraáo, é o per-sonagem predominante nessa historia de familia. Aqui vocé pode observar a habilidade com que a narrativa é elaborada. Ela apresenta a familia de Abraáo, a meio caminho de Canaá (11.27-32), com urna nota especial sobre a esterilidade de Sara (11.30). Os momentos principáis estáo em 12.1-9, em que Deus chama Abraáo para sair de Hará e ir "para a térra que eu te mostrarei" (12.1), e promete fazer dele "urna grande nacao" e abencoar "todas as familias da térra" por meio dele (v. 2,3). Depois de viajar obedientemente para a térra habitada pelos cananeus (v. 4,5), Abraáo percorre a térra inteira, e entáo recebe a promessa de que "Darei esta térra a tua descendencia [sementé]" (v. 6,7), e entáo, ali, ele "edificou um altar ao SENHOR e invocou o seu nome" (v. 8,9). No restante da narrativa, vocé verá esses varios temas ocorren-do de urna forma ou outra: a térra prometida será dada a descendencia prometida, que se tornará urna grande nacáo e, portanto, urna béncáo para as nacóes — muito embora os cananeus, por ora, possuam a térra, e Sara seja estéril! —, e portanto Abraáo adora e confia no Deus que prometeu essas coisas. Assim, a primeira narrativa, que trata do malogro de Abraáo no Egito (12.10-20), está ligada á protecáo, por parte de Deus, da descendencia prometida. O primeiro ciclo de Ló (caps. 13—14) se concentra na grande nacáo e na térra prometida, ao mesmo tempo que introduz Sodoma e Gomorra e indica a importancia considerável de Abraáo

GÉNESIS

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naquela térra. As narrativas dos capítulos 15—16, emendadas urna na outra, retornam ao tema da descendencia prometida que se origina de urna mulher estéril, enquanto a narrativa central do capítulo 17 se concentra em todos os temas ao mesmo tempo. A narrativa seguinte se concentra, novamente, na descendencia prometida que vem de urna mulher estéril (18.1-15), tema retomado na serie de tres narrativas nos capítulos 20—21 (Abimeleque, o nascimento de Isaque, a expulsáo de Ismael). Essas narrativas encerram o primeiro ciclo de Ló. O segundo ciclo (18.16—19.38) cornea com a grande nac:áo que será urna bén-cáo para as nacóes (18.18). Aqui, a destruicáo de Sodoma e Gomorra e a concepcáo incestuosa de Moabe e Amom fazem contraste com a confianca de Abraáo em Deus quanto a térra prometida, um tema retomado em 21.22-34. Quatro narrativas cruciais concluem, entáo, a historia da familia de Terá. Primeiro vem a provacáo de Abraáo, que testa sua disposicáo de entregar seu primogénito a Deus (cap. 22). Nessa narrativa crucial, nao deixe de observar (1) a renovacáo das promessas (v. 15-18), (2) a obediencia e a confianca implícita de Abraáo em Deus o tempo todo e (3) a provisáo feita por Deus de um sacrificio no lugar de Isaque. Consideradas em conjunto, as mortes de Sara (cap. 23) e de Abraáo (25.711) completam o tema da térra prometida — urna porcáo da futura térra prometida é comprada para que seus corpos possam descansar ali, aguardando que o futuro seja cumprido! Elas também encerram a historia do casamento de Isaque, que é incluida na serie de Abraáo porque dá continuidade ao tema da térra prometida, como também o faz a apresentacáo da narrativa da morte de Abraáo (25.1-6). Observe, finalmente, que as escolhas feitas sem sabedoria em momentos de fé debilitada nao frustram os propósitos de Deus (as historias do faraó e de Abimeleque nos caps. 12 e 20, e Hagar no cap. 16), enquanto Abraáo, por sua vez, "creu no SENHOR; e o SENHOR atri-buiu-lhe isso como justica" (15.6, um texto que assume importancia

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COMOLERABÍBLIALIVROPORLIVRO

especial ñas cartas de Paulo). Assim, a resposta regular de Abraáo a Deus é de adoracáo e obediencia (12.7,8; 13.4,18; 14.17-20; 22.1-19).

_J 25.12-18

O relato de Ismael

Esta, a mais breve das historias de origem, confirma que Deus cum-priu a sua promessa (16.10) de fazer de Ismael, e nao só de Isaque, urna grande nacáo de doze tribos.

D 25.19—35.29

O relato de Isaque

A historia de Isaque trata principalmente de Jaco, que representa a linhagem eleita. Observe como as promessas feitas a Abraáo sao repetidas tanto para Isaque (26.3-5) quanto para Jaco (28.13-15). Mais urna vez, seguindo-se á oracáo, a descendencia prometida é gerada por urna mulher estéril (25.21-26). O dcsprezo de Esaú pelo seu direito de primogenitura (25.29-34) mostra o seu caráter (cf. Hb 12.16) e, por implicacáo, o caráter de seus descendentes, os edomitas — perenes inimigos de Israel (v. o livro de Obadias). No capítulo 26, Isaque repete o fracasso de Abraáo (caps. 12; 20), e, como antes, Deus intervém para proteger a descendencia prometida. Nos capítulos 27—28, apesar de Jaco usurpar de Esaú a béncáo de seu pai (agindo, assim, segundo o seu nome, "ele engaña"), observe que Deus renova a alianca abraámica com ele (28.10-22). Esse evento tam-bém marca o comeco de urna mudanca no caráter de Jaco, evidenciada pelos eventos que giram em torno da sua reconciliacáo com Esaú (caps. 32—33; repare, especialmente, na narrativa em que o seu nome é mudado, de Jaco para Israel). Nos capítulos 29—31, vocé pode comecar a seguir de perto a ex-pansáo da nacáo de Israel. A familia eleita, agora, conta doze filhos, cuja descendencia formará as doze tribos, um conceito refletido de-pois nos distritos tribais da térra, e ainda depois na escolha, por parte de Jesús, de doze discípulos, e, por último, na arquitetura final da nova Jerusalém que desee dos céus (Ap 21.12,14,21). Infelizmente, os filhos de Jaco (cap. 34) refletem o caráter do Jaco mais jovem, um fator que desempenha um papel muito importante no comeco (37.12-36) da última historia de familia de Génesis (caps. 37—50).

GÉNESIS

n 36.1— 37.1

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O relato de Esaú

Os edomitas, a linhagem de Esaú, tornam-se urna grande nagao, como prometido, mas também estáo entre os vizinhos que amea9am continuamente o povo eleito e sua seguraba na térra prometida.

J 37.2—50.26

O relato de Jaco

A última historia de familia trata principalmente de José, a quem Deus usa para resgatar Israel (e as na9Óes, dessa forma aben9oando-as, 12.2,3) da fome, para que a descendencia prometida possa ser preservada. Vocé perceberá que a leitura dessa historia é urna experiencia diferente das anteriores, já que consiste em urna única narrativa coesa (a mais longa do género na Biblia), com apenas tres interrup95es (a historia de Judá no cap. 38, a genealogía em 46.827, e a "bén9ao" de Jaco no cap. 49). Repare em como ela come9a e termina na mesma nota — seus irmaos se inclinando diante dele (37.5-7; 50.18; cf. 42.6). Atente para os varios temas que dáo coesáo á historia: Deus derruba o mal dos irmaos contra José, permite que José sofra na prisao (o que sucedeu porque José se recusou a pecar), mas, finalmente, o salva e o exalta por meio da sua habilidade divinamente concedida de interpretar sonhos (observe as repeticóes de "o SENHOR estava com José", 39.2,3,21,23) — mais urna vez, Deus opera por meio de um filho mais jovem, desprezado. Observe, também, como no finí (cap. 48), a bényáo de Jaco sobre os dois filhos de José dá continuidade ao padráo da escolha divina do mais jovem (o menos favorecido). Finalmente, é proveitoso observar o papel que Judá desempenha na narrativa. Embora seu corneo nao seja nem um pouco salutar (cap. 38), Judá, depois, evidencia um cora9áo arrependido pelo seu papel anterior na historia (44.18-34). E ele é, por fim, aben9oado como "o leáozinho" por meio de cuja linhagem vira o rei davídico (49.8-12), e depois o próprio rei messiánico, Cristo Jesús. Ainda que a narrativa conclua com José num caixáo no Egito (50.26), isso também prenuncia a parte seguinte da narrativa, o livro de Éxodo, em que se faz nota especial do fato de que os israelitas le-varam os ossos de José consigo, porque este os tinha feito realizar um

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

juramento: "Certamente Deus vos visitará, e fareis transportar daqui os meus ossos" (Ex 13.19).

Génesis inicia a historia bíblica com Deus como Criador, os seres humanos como criados á imagem de Deus, mas caídos, e a resposta de Deus por meio da criacáo redentora de um povo eleito — o que ele faz por meio de toda sorte de circunstancias (boas e más), e apesar das falhas do povo.

Éxodo

INFORMALES BÁSICAS SOBRE ÉXODO ■ Conteúdo: a libertacáo de Israel do jugo egipcio, sua constituicáo como povo por meio da Lei da alianca e instrucoes para a construcáo do tabernáculo — o lugar da presenca de Deus ■ Abrangéncia histórica: da morte de José (c. 1.600 a.C?) até o acampamento de Israel no Sinai (ou 1440 ou 1260 a.C.) ■ Enfases: o milagroso resgate divino de Israel do jugo egipcio por meio de Moisés; a Lei da alianca entregue no monte Sinai; o tabernáculo como o lugar da presenca de Deus e da adoracáo apropriada de Israel; a revelacáo, por parte de Deus, de si próprio e do seu caráter; a tendencia de Israel a se queixar e a se rebelar contra Deus; o juízo e a misericordia de Deus para com o seu povo quando este se rebela

VISÁO GERAL DE ÉXODO É possível que vocé encontré mais diñculdade em 1er Éxodo até o fim do que foi o caso em Génesis. A primeira metade (caps. 1—20) nao apresenta dificuldades, já que continua a narrativa que comecou em Génesis 12, mas depois disso vem urna serie de leis (caps. 21—24), seguidas de instrucoes detalhadas sobre os materiais e os utensilios do tabernáculo (caps. 25—31). A narrativa, entáo, volta por tres capítulos

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(caps. 32—34), a que se segué (caps. 35—40) urna repetifáo dos capítulos 25—31, que descrevem a construcáo do tabernáculo e dos seus utensilios exatamente de acordó com as instrucoes. Tanto os detalhes quanto a natureza repetitiva dos capítulos 25—31 e 35—40 podem acabar distraindo o leitor, a nao ser que sejam mantidos no contexto do quadro geral, tanto do próprio livro de Éxodo quanto da historia maior encontrada no Pentateuco como um todo. A parte narrativa comeca com a escravizacáo de Israel no Egito (cap. 1), seguida do nascimento de Moisés, sua fuga e chamado subsequente (em que o nome de Javé é revelado), e sua volta ao Egito (caps. 2—4). A isso se segué o Éxodo em si (5.1—15.21), incluindo os trabalhos forcados de Israel, o confuto de Javé com o faraó na guerra santa por meio das dez pragas, o milagre do mar Vermelho, e um hiño celebrando a vitória de Deus, o Guerreiro Divino, sobre o faraó. O resto da narrativa (15.22—19.25) leva Israel até o Sinai em preparacáo para a entrega da lei da alianca (caps. 20—23) e sua ratificacáo (cap. 24). Parte dessa narrativa consiste ñas queixas constantes de Israel para Deus, que nos capítulos 32—34 culminam em plena rebeliáo idólatra, a que se seguem o juízo e a renovacáo da alianca. O livro concluí com um momento narrativo final (40.34-38) em que a gloria de Deus (sua presenca) enche o tabernáculo, o último ato essencial de preparacáo, assim deixando o povo pronto para a peregrinacáo rumo á térra prometida. Observe especialmente como as duas partes dessa breve cena prenunciam os dois livros seguintes do Pentateuco: a gloria do Senhor enchendo o tabernáculo/tenda da revelacáo ["tenda do encontró" ou "tenda da congregacáo" em outras versoes] leva diretamente a Levítico, onde Deus fala com Moisés (e, portanto, ao povo) a partir da tenda da revelarlo, e dá instrucoes sobre o uso do tabernáculo (Lv 1.1; "tenda da revelacáo" e "tabernáculo" sao usados de forma intercambiável daí em diante), e a nuvem reaparece perto do comeco da narrativa de Números, para servir de guia quando Israel finalmente levanta acampamento e parte em direcáo á térra prometida (Nm 9.15-23). Entre as partes da lei incluidas na narrativa de Éxodo estáo os Dez Mandamentos (cap. 20), o Livro da Alianca (caps. 21—23) — varias

ÉXODO

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leis que tratam, em geral, dos relacionamentos entre o povo — e as instrucoes quanto ao tabernáculo (caps. 25—31), seguidas da sua construcáo e implementacáo (35.1—40.33).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE ÉXODO Para evitar qualquer confusáo na leitura desse livro, é importante que se tenha um senso do porqué da sua estrutura geral. Por que, especialmente, as instrucoes sobre a construcáo, e a construcáo em si do tabernáculo, nessa narrativa? Por que nao esperar até Levítico, que parece um livro mais apropriado para isso? A resposta é que Éxodo narra as questoes cruciais que definem Israel como um povo em um relaciona-mento com o seu Deus, Javé. Á medida que vocé lé, portante, atente especialmente para os tres momentos absolutamente definitivos na historia de Israel, que dáo sentido á inclusáo de partes da Lei nessa narrativa: (1) a libertacáo milagrosa de Israel da escravidáo, por acáo de Deus, (2) o retorno da presenca de Deus, distinguindo dessa forma o seu povo de todos os outros povos da térra e (3) a dádiva da lci como o meio de estabelecer a sua alianca com eles. Em primeiro lugar, o momento definitivo crucial, ao qual ocorrem numerosas referencias ao longo do Antigo e do Novo Testamentos, é o Éxodo em si. Israel é repetidamente lembrado de que "o SENHOR vos tirou com máo forte e vos resgatou da casa da escravidáo, da máo do farad, rei do Egito, porque vos amou e quis manter o juramento que havia feito a vossos pais." (Dt 7.8); o próprio Israel afirma repetidas vezes: "o SENHOR nos tirou do Egito com máo forte e braco estendido" (Dt 26.8). Observe as formas como a narrativa sublinha esse evento — os fatos de que a historia de Moisés é fornecida somente em virtude do papel dele no Éxodo; de que a situacáo de desamparo total de Israel é superada por meio da intervencáo milagrosa de Deus em favor deles; de que essa é a vitória, sobretudo, de Deus, tanto sobre o farad quanto sobre os deuses que ele representa; de que a vitória de Deus é come-morada com o primeiro dos dois hinos celebratórios no Pentateuco (15.1-21; cf. Dt 31.10—32.43), enfatizando a sua grandeza sem rival e o seu triunfo na guerra santa. Javé, aqui, "adota" Israel como o seu

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primogénito, que deve ser libertado "para que me cultue" (Ex 4.22,23). Quanto a isso, observe, finalmente, como a narrativa é interrompida duas vezes, tanto antes quanto depois do Éxodo em si (12.1-28; 12.43—13.16), para o fornecimento de instrucoes sobre a Páscoa (a celebracáo anual do Éxodo) e para a consagracáo do filho primogénito dos israelitas (como lembrete de que Deus os resgatou como o seu primogénito, enquanto protcgcu os primogénitos deles). Em segundo lugar, a presenca divina, perdida no Éden, agora é restaurada como o aspecto central da existencia de Israel. Esse tema comeca com o chamado de Moisés no "monte de Deus"(3.1), onde ele nao ousou "olhar para Deus" (3.6). Ele é retomado no capítulo 19, em que o povo acampa "em frente do monte" (19.2) e experimenta urna epifania (manifestacáo visível de Deus) espetacular, acompanhada de advertencias para nao tocar a montanha. A natureza extraordinaria desse encontró com o Deus vivo é sublinhada, ainda, pela subida e des-cida de Moisés, "até Deus" (19.3,8,20) e de volta ao povo (19.7,14,25), respectivamente. A natureza fundamental desse tema pode ser vista especialmente nos capítulos 25—40, e ajuda a explicar a ocorréncia dupla das orien-tacóes relativas ao tabernáculo, urna antes e outra depois dos capítulos 32—34. Pois o tabernáculo deveria assumir o papel da "tenda da re-velacáo" (40.6), e deveria, portanto, funcionar como o lugar em que o Deus de Israel habitaría em meio ao povo (após ter"deixado"o monte, por assim dizer). Dessa forma, o fiasco no deserto (cap. 32) é seguido da súplica de Moisés a Javé para que nao os abandone, pois "Se [tu] ["tua Presenfd'], nao fores conosco [...] Quem mais poderá distinguir a mim e a teu povo de todos os demais povos da face da térra?" (33.15,16,

NVI;

grifo do autor; Prexenga mais tarde identificada, em Is

63.7-14, como o Espirito Santo). Observe, finalmente, que Éxodo conclui com a gloria de Deus cobrindo o tabernáculo/ tenda da revela-cáo, significando que os israelitas agora estáo prontos para sua jornada á térra prometida. Ao mesmo tempo, esses últimos capítulos (25—40) preparam o caminho, especialmente, para os regulamentos sobre a adorarlo e os sacrificios que aparecem no livro seguinte, Levítico.

ÉXODO

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Em terceiro lugar, há a entrega da Lei, com seu elemento central, os Dez Mandamentos (cap. 20), a que se segué o Livro da Alianga (caps. 21—24). Essas leis, juntas, se concentram no relacionamento do povo de Israel, tanto com Deus quanto entre si, o relacionamento do povo entre si devendo refletir, na prática, o caráter de Deus. A primeira expressáo da Lei na narrativa de Éxodo, portanto, prepara o caminho para sua elaboracáo posterior nos tres livros fináis do Pentateuco. Quanto á natureza dessas leis e como elas funcionam em Israel, ver Entendes o que les?, p. 195-216. Também é importante observar aqui que essas leis seguem o pa-dráo de alianfas antigás conhecidas como "tratados de suserania", que consistem num tratado feito por um vencedor com os vencidos, em que aquele os beneficia com sua protecáo e cuidado contanto que estes sigam as estipulacoes do tratado. Há seis partes nesse tipo de alianca: 1. O preámbulo, que identifica aquele que dá a alianca ("o SENHOR teu Deus", 20.2). 2. O prólogo, que serve como lembrete do relacionamento entre o suserano e o povo ("que te tirou da térra do Egito", 20.2). 3. As estipulacoes, que sao varias leis/obrigacóes por parte do povo (20.3—23.19; 25.1—31.18). 4. A cláusula do documento, que faz provisáo para a leitura periódica e o reaprendizado da alianga. 5. As sancoes, que descrevem as béncáos e as maldicoes como incentivos para a obediencia. 6. A lista de testemunhas da alianca. Vocé perceberá que apenas os primeiros tres desses seis elementos de urna alianca sao encontrados em Éxodo. Trata-se apenas da primeira porcáo da alianca inteira, que continua em Levítico e em Números e conclui, por fim, no final de Deuteronómio. Nao obstante, já em Éxodo os elementos principáis da alianca sao evidentes — (1) a reve-lacáo de quem Deus é, e do que ele deseja do seu povo, e (2) o registro da obediencia como o caminho da lealdade na alianca, e portanto a forma de manter suas béncáos.

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UMA CAMINHADA POR ÉXODO U 1.1—2.25

O contexto: desenvolvimento e opressáo de Israel no Egito

Aqui vocé encontra as duas narrativas principáis que formam o contexto para o Éxodo: (1) a multiplica9áo dos israelitas e sua sujeÍ9áo a faraó, incluindo o infanticidio numa tentativa va de controle populacional (cap. 1); (2) a entrada em cena de Moisés, um israelita cuja cria9áo é a de egipcio privilegiado, mas que assume a causa do seu próprio povo (2.1-15). Anos depois, como um fugitivo fora da lei, avadado em anos, estabelecido no Sinai (v. 16-22), ele é um candidato bastante improvável para o papel de libertador de Israel (v. 23-25), a narrativa retomando, assim, um tema central de Génesis. ] 3.1 —6.27

O chamado e o comissionamento de Moisés

Atente para varios elementos importantes nessa narrativa: a revela9áo de Deus de si próprio, que surpreende a Moisés, e que inclui a revela9áo do seu nome (Javé, "aquele que faz existir"; traduzido por "SENHOR", com letras maiúsculas na maioria das versóes em portugués); a declara9áo repetida de Deus de que ele viu a miseria do seu povo no Egito e pretende libertá-lo com seu grande poder; o quádruplo "Nao, obrigado" de Moisés em resposta ao chamado; e seu primeiro encontró com o faraó, que leva ao aumento da opressáo e a rejeÍ9áo de Moisés por parte de Israel. O episodio atemorizante em 4.24-26 nos lembra que Moisés, como pai israelita, nao tinha sequer circuncidado o próprio filho, táo limitado era o seu preparo para essa tarefa. D 6.28—15.21

O milagroso livramento da escravidáo

Essa narrativa se divide em quatro partes, cada urna desembocando naturalmente na seguinte. Preste aten9áo nessas essas transÍ9Óes durante a leitura. Na primeira parte, há o confronto com o faraó (6.28—11.10), que come9a com a vara se transformando numa serpente e engolindo as serpentes dos feiticeiros egipcios (ccoando, talvcz, a maldÍ9áo da serpente no Edén), a que se seguem as nove pragas e o anuncio da décima; cada urna destas ataca a esséncia da idolatría e arrogancia egipcias.

ÉXODO

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A segunda parte (12.1-30) entretece de forma cuidadosa a institui-cáo da Páscoa na narrativa da décima praga. A razáo para a instrucáo aqui é que a Páscoa deve ser urna celebracáo anual, em que o evento de grande importancia da libertacáo é recontado. Observe, também, o prenuncio da libertacáo por meio do derramamento de sangue, que no Novo Testamento ocorre na ocasiáo em que o "primogénito" de Deus derrama o seu sangue (Cl 1.15-20), quando assume o papel do cordei-ro e, portanto, vive urna forma inversa dessa narrativa. A terceira parte é o relato do Éxodo em si (12.31—14.31). Observe especialmente como alguns lembretes das duas primeiras partes sao meticulosamente entretecidos nessa narrativa: ela comeca com re-gulamentos adicionáis para a Páscoa e sobre a lei do primogénito; a travessia em si do mar Vermelho envolve um confronto final com o faraó — e termina com o fim de todo o seu exército. Aqui, também, é apresentado o tema da murmurafüo (14.10-12; cf. 5.21), que se tornará o tema principal da secáo seguinte da narrativa. A quarta parte é o cántico de celebracáo de Moisés, Israel e Miriá (15.121). Repare que ele comeca como urna celebracáo do triunfo de Deus, o Guerreiro, sobre o faraó e seus deuses (v. 1-12) e conclui prenunciando essa mesma vitória na conquista de Canaá (v. 13-16) e na futura presenca estabelecida de Javé em Siáo (v. 17,18; cf. SI 68). Pode ser útil observar com que frequéncia esse aspecto da vitória de Deus continuou a ser celebrado nos hinos de Israel (Ne 9.9-11; SI 66.5-7; 78.12,13; 106.8-12; 114.3,5; 136.10-15).

D 15.22—18.27 A jornada ao Monte Sinai A primeira coisa que se vé após o grande livramento de Israel é urna serie de tres episodios no deserto em que o povo murmura contra Moisés e, portanto, póe Deus á prova (15.22—17.7); esses episodios prenunciam muitos momentos semelhantes ao longo do restante da historia. A isso se segué o primeiro encontró com forcas hostis ao longo do caminho (17.8-16), o que também prenuncia futuros encontros do mesmo tipo, bem como a futura lideranca de Josué. A historia de Moisés, á medida que ele segué o conselho de Jetro quanto á lideranca compartilhada, especialmente no que diz respeito ao julgamento das

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

causas do povo (cap. 18), prenuncia nao apenas a organizacáo posterior das tribos, mas também muitas das leis no Livro da Alianca (21.1—23.19; p. ex., 21.6,22; 22.8,9).

D 19.1—24.11

A alianga no Sinai

O preludio (cap. 19) c especialmente importante para a narrativa. Observe a forma como ele comeea (v. 3-6). Aqui, Deus combina o livra-mento de Israel "sobre asas de águias" (v. 4) com o chamado a obediencia e a adogáo do povo como "propriedade exclusiva" ("tesouro pessoal",

NVI)

(grande parte da

linguagem desses versículos é retomada pelos autores do Novo Testamento em referencia á igreja). O restante assume a forma de urna grande teofania, como um lembrete sobre a tremenda e impressionante distancia entre o Deus vivo e santo e o seu povo. Observe, também, que Deus anuncia os Dez Mandamentos (as "Dez Palavras", 20.1-17), diretamente aopovo (20.18-21) — um sinal da primazia deles. Aqui se faz referencia a responsabilidades fundamentáis tanto para com Deus quanto para com o próximo, na devida ordem (primeiro "vertical", depois "horizontal"). Quando o povo clama por comunicacáo indireta com Deus, a primeira medida é repetir a advertencia contra a idolatria (20.22-26). O Livro da Aliaba (caps. 21—23) especifica o que as Dez Palavras significam na prática. Repare que elas tratam, principalmente, de varios aspectos da vida social — a forma de tratar os escravos/servos (que vem por primeiro, e está em contraste notável com as condigóes dos israelitas no Egito), compensacóes e penas por danos, leis de propriedade, estupro, justica nos negocios com os outros, e adoracáo. As leis concluem com urna promessa de orientacáo divina e da futura conquista de Canaá, que depende da obediencia do povo a alianga (23.20-33). A alianga é ratificada pelo consentimento de Israel, pela aspersáo de sangue e por urna refeigáo teofánica para os anciáos de Israel na presenga de Deus (24.1-11).

D 24.12—31.18 Instrucóes quanto ao tabernáculo Durante a leitura dessas instrugóes, tenha em mente a razáo para seus detalhes abundantes e muito precisos — o fato de que o tabernáculo

ÉXODO

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será o lugar da presera de Deus entre eles. Isso nao apenas é dito de maneira expressa (25.8,22; cf. Lv 16.2), mas também explica a ordem das instru9Óes. A arca, onde Javé habita entre os querubins (25.22; cf. Lv 16.2), vem em primeiro lugar, seguida da mesa sobre a qual sao depositados "os páes consagrados" (25.30; "páes da Presera", NVI). Todos os demais utensilios e elementos, incluindo o altar de bronze e a indumentaria dos sacerdotes, refletem a realidade primaria de que Javé escolheu habitar aqui na térra em meio ao seu povo. Observe, por exemplo, que as vestes dos sacerdotes visam dar a eles "gloria e ornamento" (28.2,40). E quando chegar a Levítico, vocé verá que o altar de bronze tem em vista os sacrificios, de modo que os sacerdotes possam se aproximar de Javé no lugar do povo. Observe como essa se9áo encerra com urna renova9áo da ordem sobre o sábado, que é especialmente relacionado ao "descanso" de Javé (repetido aqui porque ele é urna dádiva de Deus aos ex-escravos que trabalhavam o dia todo, todos os dias da semana). D 32.1—34.35 Rebeliáo, quebra da alianqa, renovaqáo da alianqa Repare no contraste: enquanto Moisés está no topo do Sinai, recebendo instru9oes sobre o lugar da habita9áo de Javé entre eles, seu irmáo está embaixo, levando o povo a construir e adorar ídolos (32.1-26) — embora, observe-se, eles estáo alegadamente adorando Javé (v. 5). A punÍ9ao (32.27-29) segue-se a intercessáo de Moisés pelo povo, garantindo, assim, a promessa de Deus de que sua Presera os acompanhará e, dessa forma, os distinguirá de todos os outros povos (32.30—33.23). Esse é o sentido de incluir aqui as breves narrativas sobre a tenda da revela9áo (33.7-11) e avisáo (ou antegosto) da gloria de Deus (33.18-23). No capítulo 34, a aliaba é renovada (v. 1-28; urna breve condensa9áo do Livro da Aliaba [caps. 21—23] é incluida) no contexto de outra teofania significativa. A linguagem da autorrevela9áo de Javé nos versículos 4-7 é um dos momentos mais importantes da historia bíblica, fazendo-se referencia a ela ao longo do restante do AntigoTestamento. A última narrativa — que trata da volta de Moisés da tenda da revela9áo com um semblante que irradia a gloria de Deus (34.29-35;

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COMO LER A BÍBUA UVRO POR LIVRO

cf. 2Co 3) — prenuncia a gloria que descera sobre o tabernáculo quando sua construcáo for concluida (40.34-38). D 35.1—39.43

A construcáo do tabernáculo e seus utensilios e demais elementos

Essa longa repeticáo das questóes dos capítulos 25—31 serve para realcar ainda mais a importancia do tabernáculo como o lugar da presenta de Deus. Observe que a ordem muda um pouco, de modo que o tabernáculo esteja pronto antes que o símbolo da Presenca (a saber, a arca) seja construido. Mas ela comega com o mandamento do sábado (35.1-3). Mesmo algo importante como a construcáo do tabernáculo nao deve suplantar a dádiva do sábado. U 40.1-38 O tabernáculo é estabelecido e a gloria desee Observe como esse evento final em Éxodo segué o padráo anterior: instrucóes sobre o estabelecimento do tabernáculo (v. 1-16), seguidas da sua implementacáo (v. 17-33). Tudo isso para que a gloria de Javé — a mesma gloria que tanto impressionou os israelitas quan-do foi vista no Monte Sinai — possa cncher o tabernáculo (v. 34; cf. IRs 8.10,11), assumindo a forma de urna coluna de nuvem de dia e de fogo a noite (v. 38), um constante lembrete visível da presenga de Deus cm mcio ao scu povo.

Éxodo tem um papel especialmente importante no restante da historia bíblica,já que conta a historia básica de como Deus salvou o seu povo da escravidáo e deu a lei aos israelitas, para que se tornassem o povo da sua presenga. Éxodo também serve como padráo para o "segundo éxodo" prometido em Isaías (esp. os caps. 40—66), e portante para a própria partida (éxodo) de Jesús, que seria cumprida em Jerusalém (Le 9.30, citada na presenga de Moisés [!] e Elias).

Levítico

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE LEVÍTICO ■ Conteúdo: varias leis tratando da santidade diante de Deus e do amor ao próximo, incluindo sacrificios, pureza ritual e obrigacóes sociais, bem como leis para os levitas sobre suas funcóes sacerdotais ■ Énfases: o preparo adequado para a adoracáo, tanto para o povo quanto para os sacerdotes; a instituicáo do sacerdocio sob Aráo; leis protegendo a pureza ritual, incluindo a expiacáo dos pecados (o Dia da Expiacáo); leis regulando as relacóes sexuais, a vida familiar, as punicóes pelos crimes graves, os festivais e os anos especiáis (sabáticos e jubileus)

VISÁO GERAL DE LEVÍTICO O título do livro (que vem da forma latina do grego levitikon) significa "com respeito aos levitas", que nao é apenas uma boa descricáo do seu conteúdo básico, mas também indica por que a sua leitura, com tanta frequéncia, nao é do agrado dos leitores contemporáneos — sem mencionar que há táo pouca narrativa nele (caps. 8—10; 24.10-23 sao as excedes). Mas com um pouco de ajuda, vocé pode obter uma compreensáo básica tanto do seu conteúdo quanto do seu lugar na narrativa do Pentateuco — mesmo que a natureza de algumas leis, bem como a razáo para elas, possam nao ficar claras (quanto a isso,

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talvez vocé queira consultar um bom comentario; p. ex., Gordon J. Wenham, The Book o/Leviticus; [em portugués, R. K. Harrison, Levítico] [v. Entendes o que les?, p. 195]). E importante observar que Levítico comeca exatamente onde Éxodo terminou — com o Senhor falando a Moisés "da tenda da revelacáo", e dizendo: "Fala aos israelitas ...". Desse ponto em diante, a passagem de urna secáo para a outra é sinalizada pela frase: "O SENHOR disse a Moisés" (4.1; 5.14; 6.1,8; e assim em diante). Nao surpreenderá, portante, descobrir que a primeira parte principal do livro (caps. 1—16, geralmente conhecida como o Código Levítico) trata primariamente dos regulamentos para o povo e os sacerdotes que dizem respeito diretamente ao tabernáculo, que apareceu perto do fim de Éxodo (caps. 25—31; 35—40). Esse código assume forma naturalmente. Comeca com as ofertas do povo (1.1—6.7), seguidas de instrucóes para os sacerdotes (6.8—7.38). A essas, seguem-se (lógicamente) a instituicáo do sacerdocio arónico (caps. 8—9) e o juízo sobre dois filhos de Aráo que pensaram poder realizar sua funcáo do seu próprio jeito (10.1-7), com instrufóes adicionáis para os sacerdotes (10.8-20). A secáo seguinte (caps. 11—15) comeca, entáo, com um novo título: "O SENHOR falou a Moisés e a Aráo" (11.1, grifo do autor; v. também 13.1; 14.33; 15.1, mas em ne-nhuma outra parte de Levítico). Aqui vocé encontra leis que lidam, especialmente, com a pureza ritual — visando evitar o que ocorreu com os dois filhos de Aráo. Aqui, também, aparece pela primeira vez a ordem expressa de grande importancia: "Sede santos, porque eu sou santo" (11.44,45). A isso se segué, apropriadamente, a instituicáo do Dia da Expiacáo (cap. 16). O que vem a seguir (caps. 17—25) é conhecido, em geral, como o Código de Santidade, que é governado pela ordem repetida: "Sede santos, porque eu sou santo" (comecando em 19.2 e daí em diante). Mas agora, um dos aspectos importantes de ser santo é: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (19.18). Assim, a secáo consiste numa colecáo de varias leis lidando com o relacionamento de cada pessoa tanto com Deus quanto com os outros. No fim, há requerimentos para os anos sabáticos e do jubileu (cap. 25), e o livro conclui com béncáos

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e maldicoes da alianca (cap. 26) que fornecem urna conclusáo formal á estrutura da alianca que comeca em Éxodo 20.0 livro em si conclui com um apéndice que trata de juramentos e dízimos (Lv 27).

ORIENTAfdÓES PARA A LEITURA DE LEVÍTICO Para tirar o melhor proveito possível da leitura, vocé precisa lembrar de duas coisas: (1) essas leis sao parte da alianca de Deus com Israel, e portanto nao consistem em meros ritos religiosos, mas dizem respeito a relacionamentos, e (2) Levítico integra a narrativa maior do Pentateuco, e deve ser entendido a luz do que ocorreu antes e do que vem a seguir. Vamos comecar pelo segundo ponto: assim como as passagens jurídicas de Éxodo fazem sentido quando vocé vé o seu lugar na narrativa maior, assim também vocé deve ver Levítico como urna expressáo mais extensa do mesmo quadro antes de a narrativa ser retomada em Números. Um fato crucial aqui é que Israel ainda está acampado ao pé do Sinai — urna área desértica —, onde os israelitas passaráo um ano inteiro sendo moldados para se tornar um povo antes de Deus os levar para a conquista de Canaá. Aqui eles precisaráo de protecáo dupla — de doencas de varios tipos e uns dos outros! Portanto, para que desses individuos que cresccram na escravidáo seja formado o povo de Deus, há urna grande necessidade para que eles ponham em ordem duas especies de relacionamento, a saber, seu relacionamento com Deus e o relacionamento uns com os outros. Repare, entáo, que Levítico continua com a mesma ordenacáo encontrada nos Dez Mandamentos (primeiro vertical, depois horizontal). O aspecto ligado a alianca dessas varias leis é o mais importante. Relembre as partes da alianca comentadas no nosso capítulo sobre Éxodo (p. 41). Deus, soberanamente, livrou esse povo da escravidáo e o trouxe ao Sinai; aqui ele prometeu torná-lo sua "propriedade exclusiva" dentre todas as nacóes da térra (Éx 19.5), que também será para ele, portanto, "reino de sacerdotes e nacáo santa" (v. 6). Isto é, seu papel como um "reino" é servir como os sacerdotes de Deus para o mundo, e para tanto eles precisam ter a semelhanca dele ("sede santos, porque eu sou santo"). Dessa forma, Deus, da parte dele, faz alianca com eles para abencoá-los (Lv 26.1-13); o que ele exige da parte deles é que, embora sejam sua

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propriedade exclusiva, eles mantenham temor santo e obediencia para com ele. Portanto, observe, nesse sentido, com que frequéncia, especialmente nos capítulos 18—26, a exigencia é pontuada com as palavras: "Eu sou o SENHOR [Javé]" ou "Eu sou o SENHOR VOSSO Deus". Assim, a primeira serie de leis em Levítico visa ajudar o povo a "fa-zer direito" a sua parte quando se apresenta a Deus com varios sacrificios. Vocé observará que nao se diz a eles o que os sacrificios significam (o que eles já sabiam), mas como realizá-los da maneira apropriada — embora possamos inferir alguma coisa sobre seu significado a partir des-sas descricóes. A natureza aliancística desses sacrificios aparece de tres maneiras: em primeiro lugar, o sacrificio constituí um presente da parte dos adoradores para o Deus da sua alianca; em segundo lugar, alguns dos sacrificios implicam urna comunháo da parte do adorador com Deus; em terceiro lugar, o sacrificio as vezes funciona como urna forma de curar urna ruptura no relacionamento — urna forma de expiacáo. Assim também acontece com as leis de pureza. Aqui, novamente, a preocupacáo é que o povo tenha um senso adequado do que significa o fato de Deus estar presente entre eles (v. 15.31). A questáo, aqui, é quem pode ficar no acampamento, em cujo centro o próprio Deus habita, e quem deve permanecer fora dele (por ser impuro). Incluida, aqui, está a classificacáo de certos animáis e insetos entre puros e impuros. Na esséncia de tudo isso está o fato de que "Deus é santo", e portanto seu povo também deve ser santo. Mas a santidade nao consiste apenas em ritos e em ser puro. A san-tidade de Deus é vista especialmente na sua compaixáo amorosa que tornou os israelitas o seu povo. Portanto, as leis — particularmente no Código de Santidade — exigem que o povo de Deus aprésente a se-melhanca de Deus nesse aspecto. Visto que os israelitas foram todos ajuntados (de urna forma muito ordenada, é claro!) nesse acampamento bastante apertado, onde Deus habita em meio a eles, eles devem demonstrar o caráter dele nos seus relacionamentos uns com os outros. Assim, embora esse código também contenha leis adicionáis sobre o "relacionamento com Deus", ele diz respeito, especialmente, a como as pessoas na comunidade devem tratar urnas as outras. E ele incluí ordens no sentido de tratá-las de maneira justa e misericordiosa, que é a razáo

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de a coletánea de leis concluir com os anos sabáticos e do jubileu, de modo que a térra também possa "descansar", e possa ocorrer um tempo de "proclamar liberdade a todos" no sábado dos anos sabáticos (25.10). Se vocé atentar para esses momentos distintamente aliancísticos na leitura dessas leis, ela poderá ser urna experiencia bem mais inte-ressante do que talvez fosse de esperar.

UMA CAMINHADA POR LEVÍTICO D 1.1—7.38

tnstrucóes para as cinco ofertas

Vocé precisa saber que as ofertas (sacrificios) de Israel eram elementos cruciais, apresentadas regularmente, ñas refeÍ9Óes simbólicas. Urna porcáo do sacrificio era queimada no altar como a parte de Deus, mas o resto era consumido pelos adoradores e sacerdotes como urna refei-9áo de comunhao — urna refeiqáo na casa de Deus, na presera de Deus (v. Dt 14.22-29), com Deus como anfitriáo (v. SI 23.5,6; cf. "a mesa do Sénior" em ICo 10.21). Isso é especialmente importante na sua leitura das leis sobre as ofertas, já que nao se descreve a fun9áo ou o sentido délas, mas apenas seu preparo adequado. Nem todas as ofertas eram sacrificio pelos pecados. Algumas visavam á comunhao e tinham fillóes aliancísticas totalmente diferentes. Observe que somente a oferta queimada (cap. 1) era dedicada inteiramente a Deus, e era portanto inteiramente queimada ("holocausto") como urna expia9áo pelo pecado. Novamente, o principio era o seguinte: se vocé quer viver, algo precisa morrer no seu lugar (v. Ex 12.1-30). Levítico 2 descreve a oferta de cereais (varias op9Óes de azeite e ingredientes de farinha numa refeiqáo equilibrada). O capitulo 3 fala da oferta de comunhao (as vezes traduzida por "oferta de paz" ou "sacrificio pacífico"), urna oferta animal com o propósito geral de manter aquele que a realiza em comunhao com Deus. A oferta pelo pecado (ou para a "purifica9áo") (4.1—5.13) provia expiaqáo pelo pecado acidental, já que as "transgressóes" nao se limitavam á desobediencia intencional. Finalmente, a oferta pela culpa (as vezes de "restituiqáo" ou "repara9áo") em 5.14—6.7 prové um meio de fazer repara9§o pela transgressáo. O restante da se9áo (6.8—7.38) passa em

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revista o papel dos sacerdotes na supervisáo das cinco ofertas, e faz prescricáo quanto á parte deles do animal sacrificado.

U 8.1 —10.20

Comeqa o sacerdocio

Como os sacerdotes representavam Deus de maneira especial diante do povo, bem como representavam o povo diante de Deus, Aráo e seus filhos foram consagrados para suas funcoes (caps. 8—9), e os primeiros sacrificios oficiáis de Aráo sao listados. Observe que seus filhos falharam em seguir as regras claras, e portante morreram, o que mostra a importancia que Deus atribuía á adorafáo correta, que recebe énfase adicional em varias ordens de Moisés (cap. 10).

D 11.1 —16.34 Da pureza e impureza Vocé precisa saber que puro, aqui, significa aceitável a Deus na adora-cao. Impuro significa inaceitável para Deus e banido do tabernáculo, ou as vezes (no caso das doencas de pele) do próprio acampamento. Esse misto de leis sobre comida, saúde, saneamento e rituais tem o propósito, portanto, de ajudar o povo da alianca a mostrar que ele pertence a Deus e deve refietir a sua pureza (santidade, 11.44,45). As leis parecem tratar parcialmente de questóes de simples higiene e parcialmente de questóes de obediencia simbólica, mas sempre a luz da presenca divina (15.31). Assim, certos animáis, por razñes nao fornecidas, sao considerados impuros (cap. 11). O parto das mulheres (cap. 12) e certas doencas (cap. 13) exigem purifica^áo ritual (cap. 14) para que a pessoa possa recuperar a pureza. Os israelitas deveriam considerar todas as emis-soes corporais como impuras (cap. 15, talvez por em geral serem anti--higiénicas). O Dia da Expiaclo (cap. 16) era um dia solene e especial de perdáo, que nao só limpava o povo do seu pecado, mas também purificava o próprio tabernáculo e fazia com que este se mantivesse um lugar santo para a adoracáo.

O 17.1—25.55

O Código de Santidade

Repare que a primeira parte (17.1—20.27) se concentra na santidade pessoal e social na vida diaria. Ela comeca com proibicóes quanto aos sacrificios nao regulados e ao consumo de sangue (17.1-16),

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que pretendem especialmente se opor a práticas dos cananeus (idolatría, e beber sangue numa tentativa de absorver sua forca vital; cf. At 15.20,29; 21.25), a que se seguem regras para o comportamento sexual (Lv 18) e para a prática da boa vizinhanca, que significa realmente se importar com os outros, nao só com os que vivem perto de vocé (cap. 19). Aqui aparece pela primeira vez o segundo mandamiento de amor, "amarás o teu próximo como a ti mesmo" (19.18), retomado por Jesús (Me 12.28-34 e paralelos) e seus seguidores (p. ex., Rm 13.8-10). Observe como as punicóes pelos crimes serios em Levítico 20 respondem diretamente as proibicóes no capítulo 18. No capítulo 21, observe a volta ao tema da santidade ñas questóes de observancia religiosa — regras para os sacerdotes (cap. 21); para a oferta e o consumo adequados dos sacrificios (cap. 22); para a observancia dos festivais religiosos, tanto semanais (sábado) quanto anuais (cap. 23); e para o óleo das lámpadas e a oferta dos páes no tabernáculo (24.1-9). Finalmente, em 24.10-23 chega-se a outra narrativa — sobre a punicáo pela blasfemia (amaldicoar a Deus) — que é usada para apre-sentar prescricóes quanto a varios crimes. No final de Levítico, há leis tratando de anos especiáis: o sétimo (sabático) e o quinquagésimo (ju-bileu), que proviam livramento para quem tivesse dividas ou estivesse escravizado (cap. 25), bem como um sábado para a térra.

U 26.1-46 Sanqóes da alianqa Essas sanees (bénfáos e maldÍ9Óes como incentivos para manter a alianca) tanto concluem a alianca sinaítica como prenunciam a con-clusáo da alianca em Deuteronómio 27—28.

11 27.1-34 Leis de resgate Esse apéndice lida com o custo de resgatar pessoas que foram prometidas a Deus e do resgate dos dízimos (bens materiais pertencentes a Deus).

Levítico é a parte da historia de Deus em que os israelitas rece-bem instrucoes sobre como ser santos, como ser realmente aceitáveis a Deus e ter um bom relacionamento uns com os outros — o que nao poderiam alcancar sem a provisáo especial dele.

Números

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE NÚMEROS ■ Conteúdo: a longa estada dos israelitas no deserto, durante a sua peregrinacáo do monte Sinai até as planicies de Moabe, com leis aliancísticas suplementares ■ Abrangéncia historia: quarenta anos, período em que morreu a geracáo dos que saíram do Egito ■ Enfases: preparativos para a conquista militar da térra prometida; a lealdade aliancística de Deus para com Israel em relacáo a térra; as falhas repetidas de Israel em manter a alianca com Deus; a lideranca, por parte de Deus, do seu povo e sua confirmacáo da lideranca de Moisés; preparativos para a entrada e a adoracáo na térra prometida; conquista e estabelecimento na térra a leste do rio Jordáo

VISÁO GERAL DE NÚMEROS Se Levítico tende a ser um livro pouco atraente para o leitor contemporáneo, Números, entáo, deve ser um dos livros que mais fácilmente geram perplexidade no leitor. O problema, para nos, é que o livro trata de urna notável mistura de géneros — narrativa, leis adicionáis, listas de recenseamento, oráculos de um profeta pagáo, a conhecida béncáo arónica —, e nao é sempre fácil ver como essas partes se encabcam no todo.

NÚMEROS

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Números registra principalmente a peregrinacao de Israel pelo deserto, do pé do Monte Sinai até seu acampamento na planicie de Moabe (na margem leste do rio Jordáo), onde se prepara para a conquista. Mas é a segunda geracáo que acaba parando na margem leste — porque a geracáo do Éxodo se recusou a entrar pela rota mais direta do sul (em Cades), e portante foi julgada por Deus como indigna de entrar por onde quer que fosse. As narrativas básicas da peregrinacao estáo em 9.15—14.45 (do Sinai até Cades, incluindo a recusa de entrar e a declaracáo do juízo de Deus) e 20.1—22.1 (de Cades até a planicie de Moabe margeando o Jordáo). Há quatro outras secóes narrativas importantes, com funcoes ligeiramente diferentes: (1) 7.1—9.14 registra os preparativos para a jornada; (2) os capítulos 16—17 falam da questáo da lideranca, dada (e reconhecida) por Deus, de Moisés e Aráo; (3) o ciclo de Balaáo (22.2—24.25) e a seducáo em Sitim com o Baal-Peor (cap. 25) prenuncian! tanto Deus dando-lhes a térra quanto a propensáo dos israelitas, nao obstante, a serem seduzidos pela idolatria cananeia; (4) os capítulos 31—36 narram eventos na margem leste enquanto eles se preparam para a conquista. Entremeadas nessas narrativas, mas ao mesmo tempo acrescentando-lhes sentido, há duas listas de recenseamento (caps. 1—2; 26— 27), e urna genealogia/relato tanto da familia de Aráo como dos levitas (caps. 3—4), além de varias coletáneas de leis (caps. 5—6; 15; 18— 19; 28—30), a maioria délas retomando itens do Código Levítico (Lv 1—16; 21—22). É disso, entáo, que trata o livro de Números: a jornada até a porta da térra prometida e leis adicionáis sobre a adoracáo apropriada. A pergunta é: dá para extrair algum sentido da organizacáo do livro como narrativa?

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE NÚMEROS Para apreciar como funciona a narrativa de Números (tanto a jornada como as varias questoes que giram em torno déla), vocé precisa lembrar de varios elementos de Génesis e Éxodo. Em primeiro lugar, a terca motriz principal por tras de rudo é a promessa/alianca de Deus com Abraáo de que a descendencia deste

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

herdaria a térra de Canaa. É isso que dá ímpeto a todas as secóes dessa narrativa. E Deus fará com que se cumpra essa promessa da alianca, apesar da relutáncia e da desobediencia de Israel. Em segundo lugar, a conquista da térra envolve o segundo estágio da guerra santa. O primeiro estágio — contra o faraó, em Éxodo —, muito embora seja liderado por Moisés, deve seu éxito a intervencáo milagrosa de Deus, o Guerreiro Divino. Nesse segundo estágio, Deus deseja que o seu próprio povo se envolva. Ele o resgatou da escravidáo para torná-lo seu próprio povo e colocá-lo nessa térra, mas o povo precisa tomar posse da térra por meio da sua conquista. Isso explica as duas listas de recenseamento, que contam os homens capazes de lutar e póem as tribos em formacáo de batalha ao redor do tabernáculo. A lista no corneo (da qual o livro de Números deriva o seu nome) prepara a primeira geracáo para a conquista pelo caminho de Cades; já a segunda lista prepara a segunda geracáo para a conquista pelo caminho da Transjordánia. Esse tema também explica as varias narrativas no final, incluindo a sucessáo de Josué (27.12-23) e as varias questóes nos capítulos 31—36 que prenunciam a conquista. Em terceiro lugar, lembre-se que em Génesis 12.7, inmediatamente após a promessa da térra, Abraáo construiu um altar para o Senhor. Ao ler agora as varias secóes legáis entremeadas nessa narrativa, vocé per-ceberá que elas se concentram principalmente no relacionamento dos israelitas com o seu Deus. Assim, tanto o papel central do tabernáculo quanto as questóes sacerdotais em Números continuam a se concentrar em duas preocupacóes anteriores do Pentateuco nesse sentido: a presenta de Deus em meio ao seu povo — tanto o fato de estar com eles como o de guiar a sua jornada — e a devida adoragáo a Deus, urna vez eles estando estabelecidos na térra. Finalmente, o próprio povo de Deus nao faz muito bonito em Números. É difícil nao perceber a natureza incessante das suas re-clamacóes e desobediencia. Alias, com excecáo da béncáo futura que Deus declara por meio de um profeta pagáo, é difícil encontrar al-guma palavra boa a respeito do povo em toda a narrativa. As mes-mas reclamacóes contra Deus e seu líder escolhido, Moisés, que comecaram em Éxodo 15.22—17.7 — e dessa vez a murmuracáo

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é aínda maior — sao repetidas aqui (Nm 11—12; 14; 16—17; 20.1-13; 21.4-9). Nao se trata, básicamente, de urna leitura muito agradável. No Novo Testamento, a desobediencia dos israelitas serve de advertencia para nos (ICo 10.1-13; cf. Hb 3.7-13); no Antigo Testamento, embora seus pecados sejam expressamente lembrados, também é lem-brada a "grande misericordia" (seu "imenso amor leal", NVI) de Deus por eles (Ne 9.16-21; cf. SI 78.14-39; 106.24-33,44-46; v. também o convite e a advertencia em SI 95). Desse modo, ainda que a narrativa tenha algumas mudancas de foco abruptas, Números dá prosseguimento ao tema central do Pentateuco em grande estilo. Vocé nao deve esquecer que, apesar da inconstancia de Israel, esta é, sobretudo, a historia de Deus, e Deus mantera a parte dele da alianca de Abraáo quanto a heranca da térra prometida que chegará a descendencia do patriarca. A questáo é se Israel mantera a sua alianca com Deus — e Números lembra o leitor, vez após vez, de que a provisao divina para os israelitas poderem fazé-lo está sempre ao alcance.

UMA CAMINHADA POR NÚMEROS (J 1.1—2.34 O recenseamento no Sinai Essa introducáo a Números se divide em duas partes: (1) o recenseamento e (2) a organizacáo das tribos em torno da tenda da revelacáo (o lugar da presenca de Deus; "tenda do encontró" ou "tenda da congregafáo", em outras versóes). Observe que o recenseamento é para aqueles "de idade de vinte anos para cima, isto é, todos os de Israel que podem sair a guerra" (1.3), e que a organizacáo das tribos conclui, em cada caso, com "Todos os contados do acampamento de...". Esses sao preparativos para o engajamento dos israelitas na guerra santa; eles, um povo de ex-escravos, estáo sendo transformados num exército.

□ 3.1—4.49

O relato dos levitas

Observe como essa secáo narrativa comeca com a introducáo vista em Génesis ("Estes eram os descendentes de..."). Durante a sua leitura, relembre duas coisas anteriores: (1) o papel central da tenda da revelacáo, com sua arca da alianca, que é o lugar da presenca de Deus,

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para a jornada até Canaá — e além — e (2) ao realizar urna alianca com Israel no Sinai (onde o povo ainda está), Javé o adotou como um "reino de sacerdotes e nacáo santa" (Ex 19.6). Daí a razáo para esse material: isso é parte do que faz deles um "reino de sacerdotes", urna nacáo separada para Dcus. D 5.1—6.27

Purificando o acampamento

Observe como essa seváo é estruturada em torno do título de Levítico: "O SENHOR disse a Moisés" (Nm 5.1,5,11; 6.1,22), que, por sua vez, deve instruir o povo. Lembre-se também do chamado deles para ser urna "nacáo santa". Dessa forma, á narrativa sobre a purificacáo do acampamento (5.1-4) seguem-se tres series de leis: (1) a restituicáo pelas ofensas (5.5-10, eles precisam estar em harmonía uns com os outros); (2) pureza/fidelidade no casamento (5.11-31, maniendo, assim, pura a descendencia santa); (3) os nazireus, leigos que se dedicam ao servico de Deus, como ilustracáo especial do chamado santo de Israel (6.1-21). A secáo conclui com a béncao arónica (6.22-27), urna reafirmacáo da promessa da alianca de Deus para com os israelitas enquanto eles vislumbram a conquista da térra prometida. □ 7.1—9.14 Preparativos fináis para a partida Repare como 7.1 retoma a narrativa de Éxodo 40.2, de modo que cada parte dessa secáo lida com os preparativos fináis para a jornada. Tudo agora gira em torno do tabernáculo, o lugar do sacrificio (adoracáo) e da presenca de Deus. Essa parte da narrativa, entáo, comeca com a dedicacáo do altar, que dura doze dias (Nm 7.1-89), passa pelo preparo das lámpadas (8.1-4), pela purificacáo dos levitas (8.5-26) e conclui com a celebracáo da Páscoa, quando eles partem (9.1-14; cf. Ex 12). D 9.15—14.45 Do Sinai até Cades Israel agora está pronto para partir; observe, portanto, como essa narrativa comeca: com o lembrete de Éxodo 40.34-38 sobre a presenca de Deus, simbolizada especialmente pela nuvem que guiaría o povo (Nm 9.15-23) e com o soar das trombetas (10.1-10). Assim, eles partem em formacáo de batalha (10.11-28). Veja também como finda

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cada dia: com urna chamada para que Deus, o Guerreiro Divino, lidere a batalha e retorne a Israel (10.35,36). É difícil nao perceber a énfase no restante da narrativa (11.1— 14.45): Israel se queixa diante de Deus e rejeita a lideranca de Moisés. Observe o quanto isso lembra Éxodo 15.22—18.27 e 32.1—34.35, em que Israel murmura em vez de oferecer adoracáo e gratidáo a Deus, e em que Deus dá aos israelitas o que eles precisam, mas também os julga; a intercessáo de Moisés pelo povo (em Nm 14.18, retomando as próprias palavras de Ex 34.6,7); os setenta andaos, que agora também prenunciam a profecia inspirada pelo Espirito em Israel; a reafirmacáo, por parte de Deus, da lideranca de Moisés. Observe, também, os papéis cruciais de Josué e de Calebe (de Efraim [o Reino do Norte] e de Judá [o Reino do Sul], respectivamente). A historia deles continuará (Nm 27.12-23; o livro de Josué; Jz 1.1-26), bem como o papel das duas tribos que eles representam (l-2Rs). D 15.1-41

Leis suplementares

Já que a próxima gerajáo entrará na térra prometida, essa parte de Números registra a concessáo de leis de Deus para o seu povo na expectativa desse tempo. Observe que isso inclui provisoes até mesmo para os pecados nao intencionáis, nao importa como ocorra a falha. Observe também como a morte de um violador do sábado (15.32-36) dá prosseguimento ao tema da obediencia á alianca, tanto desde o cornejo da historia bíblica (Gn 2.1-3) quanto desde o cornejo da alianja em si (Ex 20.8-11). D 16.1—19.22 A crise quanto á lideranga e ao sacerdocio A parte narrativa dessa sejáo (caps. 16—17) diz respeito a Moisés como líder escolhido por Deus e Aráo como o sumo sacerdote escomido por Deus. Essa segunda questáo também explica a inserjáo, aqui, do trecho constituido de leis (caps. 18—19). □ 20.1 —25.17 De Cades até a planicie de Moabe Ao ler essa próxima sejáo da narrativa da jornada, atente para varias pistas narrativas: (1) a morte de Miriá e de Aráo (20.1,22-29) indica

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que os quarenta anos estao chegando ao fim, e a transicáo para a geracáo seguinte está comecando. (2) A recusa de Edom (descendentes de Esaú, irmáo de Jacó/Israel) a deixar Israel passar por suas térras marca o comeco de urna longa historia de inimizade (v. o livro de Obadias). (3) A derrota do rei cananeu de Arade (21.1-3) e dos reis amorreus (21.21-35) sinaliza o come9o das vitórias de Israel na guerra santa e prefigura o livro de Josué; é de alguma importancia o fato de que a primeira vitória (Arade, 21.1-3) elimina um inimigo que os tinha derrotado urna geracáo antes (Nm 14.45; cf. Js 12.14). (4) O ciclo de Balaao (caps. 22—24) e sua sequéncia — a imoralidade cúltica com o Baal-Peor (Nm 25) — tanto recapitulam a historia até esse ponto como prefiguram o restante da historia do Antigo Testamento. Observe, especialmente, como o ciclo de Balaao é narrado em tom de troca — com algum humor (urna jumenta fala e Balaao acha sensato responder!) e ironía, Deus usando um profeta pagáo (!) para anunciar o cumprimento certo da sua alianca, mes-mo que muitos em Israel caiam na prostituicáo cúltica e, portanto, na idolatría.

J 26.1—36.13 Em Moabe: preparativos para a entrada na térra Novamente, preste atencáo ñas varias pistas narrativas que dáo sentido a essa secáo e prenunciam a possessáo da térra em si: (1) o segundo recenseamento (cap. 26) reafirma a promessa de Deus de que a nova geracáo entrará, de fato, na térra prometida, como o faz a repeticáo dos estágios da jornada em 33.1-49. (2) Varias questóes de sucessáo e de heranca (caps. 27; 32; 34—36) reafirmam a promessa de Deus de urna longa permanencia na térra, como o fazem (3) a repeticáo (e o realce) do ciclo anual de festivais de adoracáo (caps. 28—29). (4) A vinganca contra os midianitas (cap. 31) prefigura a longa historia de éxitos e fracassos em Juízes (cf. Nm 33.50-56). (5) A santidade do povo e da térra deve ser preservada (cap. 35), porque se trata da "térra em que [...] habitarei, pois eu, o SENHOR [Javé], habito no meio dos israelitas" (v. 34).

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A parte significativa da historia de Israel que vemos em Números figurou longamente na memoria de Israel (Dt 1—4; Ne 9; SI 78; 105; 106; 135; At 7), enfatizando a fidelidade de Deus para com o seu povo apesar das muitas falhas deste, urna historia cujo cántico é entoado até hoje pela igreja crista ("Guide-me, O Thou Great Jehovah — "Jornada do Crente": "Guia, ó Deus, a minha sorte / Nesta peregrinacao...").

Deuteronómio

INFORMAgÓES BÁSICAS SOBRE DEUTERONÓMIO ■ Conteúdo: repeticáo da aliaba para urna nova geracáo de israelitas imcdiatamente antes da conquista ■ Abrangéncia histórica: durante as últimas semanas a leste do Jordáo ■ Énfases: o caráter uno e único de Javé, o Deus de Israel, ácima de todos os outros deuses; o amor de Javé por Israel revelado na alianca, fazendo dele o seu povo; a soberania universal de Javé sobre todos os povos; Israel como o modelo de Javé para as nacóes; a importancia e o significado do santuario central onde Javé deve ser adorado; a preocupacáo de Javé com a justica — que o seu povo refuta o seu caráter; as béncáos da obediencia e os perigos da desobediencia

VISÁO GERAL DE DEUTERONÓMIO Assim como em Génesis, dois tipos de estrutura sao evidentes em Deuteronómio ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, o livro apresenta urna estrutura concéntrica (quiliástica), que no inicio olha para tras, e no fim olha para frente. Desse modo: A Quadro exterior: olhando para tras (caps. 1—3) B Quadro interior: a grande exortacáo (caps. 4—11) C Centro: as estipulacóes da alianja (caps. 12—26)

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B* Quadro interior: a cerimónia da alianga (caps. 27—30) A* Quadro exterior: olhando para frente (caps. 31—34) Observe como as segoes complementares da narrativa, conforme delineadas na tabela, podem fácilmente ser lidas como uma narrativa continua: os capítulos 1—3 e 31—34; os capítulos 4—11 e 27—30. A primeira parte do quadro exterior (A) repete a narrativa essencial de Números, até a parte em que Moisés é proibido de entrar na térra; a segunda parte (A*) retoma a narrativa a partir desse ponto e concluí com o comissionamento de Josué, a canelo de Moisés, sua béncao e morte. A primeira parte do quadro interior (B), que chama Israel a devogáo absoluta a Deus, concluí com o anuncio de que Deus está estabelecendo diante deles "a béncao e a maldicáo" (11.26); a segunda parte (B*) retoma a narrativa exatamente nesse ponto, apresentando o conteúdo das béngáos e maldicóes. Esse insight sobre como o livro de Deuteronómio funciona também realga seu segundo aspecto estrutural — o fato de que Deuteronómio apresenta essa reafirmagáo da alianga de Deus (para a nova geragáo) no estilo de um tratadoalianga de suserania do antigo Oriente Próximo (v. segáo "Orientagóes para a leitura de Éxodo", p. 43), com preámbulo, prólogo, estipulagóes, cláusula do documento, sangóes e testemunhas. Esses tres últimos itens tanto suplementam quanto reiteram os tres elementos fináis da alianga de Éxodo 20—Levítico 27. Assim, como uma reafirmagáo da alianga, Deuteronómio comega com um preámbulo e um prólogo histórico (caps. 1—4), que fitam, ao mesmo tempo, o passado e o futuro. Deus foi fiel no passado, recompensando a fidelidade de Israel e punindo-o, igualmente, por sua infidelidade. Agora, os israelitas devem se comprometer, mais uma vez, em ser o seu povo. As estipulares (caps. 5— 26) comegam com uma reafirmagáo dos Dez Mandamentos, enquanto as leis nos capítulos 12—26 tendem a seguir sua ordem vertical/horizontal, tratando primeiro do relacionamento do individuo com Deus e entáo dos individuos entre si. As cláusulas do documento, lembretes dos termos da alianga, sao encontradas principalmente nos capítulos 27 e 31, a que imediatamente se segué uma longa lista de béngáos e maldigoes

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(prosa nos caps. 28—29 e poesia nos caps. 32—33), que fazem o papel das sanpes da alianca. Finalmente, há tres tipos de testemunhas da alianca: "o céu e a térra" (4.26; 30.19,20), a cancáo de Moisés (31.19; 31.30—32.43) e as palavras da própria lei (31.26). Nessa leitura, a morte de Moisés e a sucessáo de Josué na lideranca (cap. 34) formam uma especie de epílogo — nao uma parte da alianca em si, mas uma narrativa que conecta Deuteronómio ao livro de Josué, que vem em seguida.

ORIENTACZÓES PARA A LEITURA DE DEUTERONÓMIO Deuteronómio teve, talvez, maior influencia sobre o resto da historia bíblica (tanto Antigo quanto Novo Testamentos) do que qualquer ou-tro livro da Biblia. A continuacáo da historia de Israel (Josué—Reis) é escrita, na maior parte, da perspectiva desse livro, de modo que essa parte da historia veio a ser conhecida como a Historia Deuteronó-mica. Deuteronómio, igualmente, teve influencia considerável sobre os profetas de Judá e de Israel, especialmente Isaías e Jeremías, e por meio destes influenciou profundamente as figuras principáis do Novo Testamento (esp. Jesús e Paulo). Durante a sua leitura, vocé perceberá qual é, do comeco ao fim, a forca motriz de Deuteronómio — um monoteísmo inflexível, sem concessóes, junto com a preocupacáo igualmente profunda de que a lealdade de Israel para com Javé ("o SENHOR"), o seu Deus, seja tam-bém de um compromisso absoluto. Isso aparece de varias formas diferentes, mas seu momento principal é o Shemá (6.4,5), que se tornou a marca distintiva do judaismo e é identificado por Jesús como "o pri-meiro mandamento": "Ouve, ó Israel: O SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coracáo, com toda a tua alma e com todas as tuas forcas". O motivo pelo qual eles devem amar a Javé dessa maneira é que ele os amou primeiro — quando eram escravos e desprezados: "O SENHOR nao se agradou de vos nem vos escolheu porque fósseis mais numerosos do que todos os outros povos [...] mas [...] vos resgatou da casa da escravidáo [...] porque vos amou e quis manter o juramento que havia feito a vossos

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pais" (7.7,8; cf. 4.37). Assim, tudo depende do amor e da fidelidade de Javé, e suas acóes fluem a partir desse amor e fidelidade. Essa preocupacáo, por sua vez, explica os outros aspectos característicos do livro, tres em particular bastante alinhados com esse pri-meiro. Preste atencao nos seguintes aspectos: 1. O lembrete constante de que Israel está prestes a possuir "a térra" (termo que ocorre mais de cem vezes em Deuteronómio). Deus, em seu amor, está prestes a cumprir o juramento que fez a Abraáo. Mas a térra, por ora, está sob o controle dos cananeus. 2. A exigencia incessante de que, quando entrar na térra, Israel nao apenas evite a idolatría, mas destrua completamente nao só os lugares de adoracáo dos cananeus, mas o próprio povo cananeu. Se nao o fizerem, a idolatría cananeia destruirá a própria razáo de ser de Israel. Esse tema comeca no prólogo histórico (2.34; 3.6) e continua como uma exigencia divina ao longo de todo o livro (7.1-6,23-26; 12.1-3; 13.6-18; 16.21—17.7; 20.16-18; cf. 31.3). A única esperaba para que Israel de fato abencoe as nacoes (4.6) está em eliminar todas as formas de idolatría e andar no caminho do Deus que redimiu os israelitas para serem o seu povo (5.32,33). 3. A exigencia de que adorem regularmente em um santuario central, "um lugar que o SENHOR, vosso Deus, escolherá para ali fazer habitar o seu nome" (12.11). Vocé reconhecerá que isso dá prosseguimento ao tema da presenca de Deus no tabernáculo, agora no novo contexto da térra prometida. Observe com que frequéncia esse tema, que cornea em 12.5, é repetido depois (12.11,14,18,26; 14.23-25; 15.20; 16.2-16; 17.8-10; 26.2). Javé, o único e verdadeiro Deus, habitará entre seu povo único num lugar único; ele nao é como os muitos deuses pagaos, que podem ser adorados em numerosos lugares elevados por toda a térra. Por que essas questoes sao táo importantes? A razáo é que toda a historia bíblica depende délas. A questao nao se resume a uma escolha entre Javé e Baal — embora isso também esteja envolvido —, mas

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envolve o sincretismo, i.e., pensar que Javé pode ser adorado na forma de Baal e Astarote (Aserá), os deuses cananeus da fertilidade, ou junto com elcs. Como Javé é um Senhor, e nao muitos — como o sao os deuses pagaos —, ele nao deve ser adorado nos lugares elevados onde Baal e Astarote eram adorados; e como Javé criou os seres humanos para que eles, e apenas eles, apresentassem a sua imagem (Gn 1.26,27), e como ele nao tem "forma" como tal (o segundo mandamento), os israelitas nao devem pensar que os seres humanos podem dar alguma forma a ele (v. esp. Dt 4.15-20). Vbcé perceberá como essa questáo aparece varias vezes ao longo do restante da historia, indo até 2Reis, e continuando como um aspecto predominante nos profetas. Dois itens fináis: o amor de Deus ao redimir o seu povo e torná-lo seu, e entao ao dar a ele "esta boa térra" (9.6), também está por tras da natureza especial do Código Legal em Deuteronómio (12.1—26.19). Atente para como o código segué o padráo dos Dez Mandamentos, comecando com exigencias que dizem respeito a amar a Deus (caps. 12—13), e continuando com varias leis ligadas aos dias sagrados e ao amor ao próximo (caps. 14—26). Mas observe, especialmente, com que frequéncia se exige que o povo de Deus inclua "o necessitado e [...] o pobre" (v. 15.11; 24.14), o que em Deuteronómio assume específicamente a forma de "o peregrino, o órfáo e a viúva", e as vezes incluí "o levita" (26.13). O denominador comum entre essas pessoas é que elas nao possuem térra, e isso entre um povo que se tornará urna cultura agraria. Durante a sua leitura, observe com que frequéncia essas leis sao ligadas ou ao caráter de Deus ou á redencáo de Israel. Finalmente, nao perca de vista outra característica importante de Deuteronómio, a saber, seu impulso narrativo que visa sempre o futuro, e que pode ser percebido ao longo de todo o livro. Isso nao incluí apenas a geracáo imediata, que está prestes a tomar posse da térra, mas também as geracóes futuras (4.9,40). Esse tema em particular cria urna tensáo ao longo do livro, entre a bondade de Deus ao trazé-los para "esta boa térra" e a consciéncia, da parte de Deus, de que mesmo assim Israel falhará. Assim, tanto no comeco como no fim, há profecías de que as maldicoes a certa altura os alcancaráo; sua falha por nao manter a alianca resultará na perda da térra e no exilio (4.25-28; 30.1;

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v. 29.19-28 e 32.15-25), mas o amor constante de Deus resultará em que eles sejam restaurados á térra por meio de um "segundo éxodo" (4.29-31; 30.2-10; 32.26,27,36-43). Durante a sua leitura da Biblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, vocé verá que esse tema reaparece muitas vezes.

UMA CAMINHADA POR DEUTERONÓMIO D 1.1— 3.29 Prólogo histórico Vbcé perceberá que a maior parte desse prólogo reconta, de maneira sucinta e cuidadosa, as porcóes narrativas de Números. Observe como o preámbulo (1.1-5) apresenta o formato de Deuteronómio — um discurso de Moisés pelo qual Deus fala ao seu povo. A historia é recontada em tres partes, cada urna tendo em vista o resto do livro: (1) A designacáo dos líderes, pois Moisés nao entrará na térra (1.6-18), (2) um lembrete das oportunidades perdidas e da rebeliáo em Cades (1.19-46), e (3) um lembrete de que Deus esteve com eles apesar de tudo, e os levou até onde estáo agora (2.1—3.29).

D 4.1-43 Introducáo á grande exortaqáo Observe como essa introducáo estabelece as énfases do restante do livro: Deus pronunciando a sua alianca diretamente ao povo na forma dos Dez Mandamentos (v. 12-14); a natureza única de Deus, tanto quanto ao seu caráter como em contraste com os ídolos, que nao podem falar ou ouvir (v. 15-31); a escolha de Israel por parte de Deus para ser o seu povo único (v. 32-38); a profecia do fracasso e restauragáo futuros de Israel (v. 25-31).

D 4.44—11.32 A grande exortaqáo Veja,agora,como os temas apresentados em 4.1 -43 sao desenvolvidos nesse eloquente discurso. Ele comeca com os Dez Mandamentos (5.1-21), pois esse é o código que será explicado em detalhes nos capítulos 12—26. A isso se segué um lembrete do papel mediador de Moisés em Horebe/ Sinai (5.22-33), mas, mesmo aqui,a énfase está em Deus e no seu anseio pela obediencia dos israelitas. Entáo vem o principal mandamento de todos, isto é, de que eles devem amar plenamente a Javé, o seu Deus

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(6.1-25), com énfase nos fatos (1) de que Javé é o único Deus que há, (2) de que ele os resgatou para torná-los o seu povo e (3) do seu gracioso presente de urna térra abundante. A seguir vem a necessidade de que os israelitas destruam os povos pagaos que ora habitam a sua térra prometida, para que Israel nao sucumba a idolatría sincretista (7.1-26), e entáo Moisés insta com eles para que nao se esquecam de Deus no meio da abundancia deles (8.1-20), e com isso vem o lembrete de que o presente da térra abundante nao teve nenhuma relacáo com a própria justica deles (9.1-6). Na verdade, a historia de Israel é urna historia de teimosia (9.7-29). A secáo final (10.1—11.32) prenuncia o que vem a seguir, lcmbrando o povo do papel central da arca da alianza, e instando para que temam e obedecam a Deus. A escolha é deles quanto a se haverá béncáo ou maldicáo (11.26-32).

D 12.1 —2 6.19 O Código Deuteronómico Essa segunda entrega da lei {deutero-nomos = "segunda lei") é a essén-cia do livro de Deuteronómio. Perto do fim ela é chamada de o "livro desta lei" (28.61; 29.21; 30.10; 31.26), urna expressáo retomada cinco vezes em Josué para se referir a Deuteronómio (como a cerimonia de renovacáo da alianca no monte Ebal, em Js 8.30-35, com suas referencias a Dt 11.29,30 e 27.12,13, deixa claro). Leis sobre a adoracüo (12.1—16.17). Observe como inicia o código legal específico de Deuteronómio: com a futura substituicáo do tabernáculo por um santuario central como o lugar onde Deus escolherá por o seu Nome (12.4-32, que no final será Jerusalém). Isso é cercado de lembretes para destruir os lugares elevados idólatras (12.1-3) e para evitar qualquer vestigio de idolatría (13.1—14.2). A isso se seguem os estatutos de pureza e impureza (14.3-21; cf. Lv 11), nesse caso limitados aos alimentos, já que isso também distinguía Israel das nacóes ao redor. Essas leis levam a regulamentos sobre o dízimo da colheita dos campos e das primeiras crias dos animáis, que devem ser comidos no santuario central e compartilhados com os levitas (Dt 14.22-29; 15.19-23). Entremeados nessas duas últimas leis há estatutos ligados ao cuidado dos pobres (15.1-18), que devem ser lembretes constantes do livramen-to dos israelitas da escravidáo. A adoracáo inclui o ciclo anual de festas,

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cujos regulamentos também incluem lembretes da redencáo dos israelitas e da sua necessidade de cuidar dos pobres (16.1-17). Leis sobre a lideranca (16.18—18.22). Observe que a maior parte da serie seguinte de leis retoma o tema da "lideranca após Moisés" do prólogo (1.9-18). Essas leis tratam, respectivamente, de juízes (16.18-20, 17.8-13, entre essas passagens havendo outra proibicao a idolatria, 16.21—17.7), reis (17.14-20), sacerdotes e levitas (18.1-8) e profetas (18.14-22), entre os últimos dois vindo mais outra proibicao as prá-ticas idólatras, em 18.9-13. Observe, especialmente, a énfase na Justina social por parte dos líderes, que sao de importancia fundamental, portanto, para as duas questóes cruciais envolvidas na obediencia do povo a Deus, a saber, detestar a idolatria e promover a justica social (cf. Isaías; Oseias; Amos; Miqueias). Leis sobre a vida em comunidade (19.1—25.19). Nao deixe de atentar, aqui, para o fato de que a maior parte do resto do código lida com questóes da segunda metade dos Dez Mandamentos, e se concentra especialmente nos relacionamentos pessoais e da comunidade. Observe, também, como varios temas aparecem diversas vezes. Por exemplo, as leis que tratam da guerra (20.1-20) demonstram urna preocupa9áo especial pelos homens e suas familias (v. 5-10), e mesmo pelas árvores (v. 19,20), enquanto ao mesmo tempo repetem a ordem para destruir as na9Óes idólatras (v. 10-18). Nao deixe de perceber a preocupa9áo recorrente pela Justina social, especialmente o cuidado pelos pobres e necessitados. Conclusáo (26.1-19). Observe como as leis específicas de Deute-ronómio concluem, com lembretes da necessidade de que os israelitas sempre ponham Deus em primeiro lugar (primicias e dízimos, v. 1-15), e com urna ordem final á obediencia.

D 27.1—30.20 A cerimónia da alianqa A medida que Deuteronómio volta, agora, para o quadro interior, re-lembre o que foi dito antes (e em Éxodo) sobre os tratados de suserania. Aqui, em sequéncia, vocé vé a cláusula do documento (27.1-8), um vislumbre de como Israel deverá preservar suas leis para o futuro, e suas sancóes na forma de béfaos e maldÍ9óes (27.9—28.68). A parte final

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da cerimónia da alianca contém urna última ordem de Moisés, que prenuncia a rebeliáo e o exilio futuros de Israel, bem como a restauracáo dos israelitas, por acáo divina, a térra mais urna vez (caps. 29—30).

D 31.1 —34.12

O olhar para o futuro

A conclusáo do quadro exterior de Deuteronómio está repleta de expectativas quanto ao futuro. A sefáo mais extensa (caps. 32—33, em que as sancoes da alianca recebem expressáo poética) oferece o cántico de Moisés — urna palavra profética sobre a rebeliáo e a restauracáo futuras — e a béncáo das doze tribos por parte de Moisés (cf. José em Gn 49). Elas vém emolduradas pelas duas questóes transicionais es-senciais: (1) a sucessáo de Josué, incluindo outra predicáo de rebeliáo futura (Dt 31), e (2) a morte de Moisés, com um elogio fúnebre no final (cap. 34). Observe a palavra de Moisés a Josué: "Sé forte e corajoso" (31.23), que é, entáo, como comeca o livro de Josué (Js 1.6,7,8,9,18).

Deuteronómio conclui o Pentateuco com lembretes constantes do amor e da fidelidade de Deus, apesar da rebeliáo constante do seu povo. Mas a palavra final é urna palavra de esperanca, a esperanca de que Deus, no fim, terá éxito com o seu povo.

Josué

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE JOSUÉ ■ Conteúdo: a conquista parcial da térra prometida, sua distribuicáo e o estabelecimento dos israelitas nela ■ Abrangéncia histórica: do inicio da conquista até a morte de Josué ■ Enfases: a execucáo da guerra santa, á medida que Deus, por meio do seu povo, derrota repetidas vezes os cananeus idólatras; a dádiva da térra ao povo de Deus, cumprindo, assim, sua promessa da alian9a aos patriarcas; a neccssidade de Israel de fidclidade continua na aliaba com o único e verdadeiro Deus

VISÁO GERAL DE JOSUÉ Seguindo-se aos cinco livros de Moisés, Josué dá inicio á segunda grande se9áo da Biblia hebraica, conhecida como Profetas Anteriores (Josué—2Reis, com exce9áo de Rute). Em estudos bíblicos mais recentes, esse grupo de livros recebe o nome de I listória Deuteronómica. Ambas as designa9Óes sao bastante pertinentes. Essa se9áo do Antigo Testamento pretende ser profética, no sentido de que registra a historia de Israel com o propósito de instruir e explicar, da perspectiva divina, como e por que as coisas ocorreram da maneira que ocorreram; os livros sao deuteronómicos porque o ponto de vista do qual a historia é contada pertence decididamente ao livro de Deuteronómio. Assim,

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por exemplo, o discurso de despedida de Josué no capítulo 23 repete a linguagem da exortacáo de despedida de Moisés em Deuteronómio 7, mas agora da perspectiva depois da conquista; ao mesmo tempo, Josué conclama á obediencia ao "livro da lei de Moisés" (Js 8.31), uma expressáo que, no Pentateuco, só ocorre em Deuteronómio — e aparecerá, novamente, no fim dos Profetas Anteriores, em 2Reis (2Rs 14.6; 22.8,11; cf. 23.2). O livro de Josué conta a historia de como uma segunda geracáo, que se sucedeu a uma geracáo de ex-escravos, teve éxito em invadir e tomar posse de Canaá, herdando, assim, a térra que Deus tinha prometido a Abraáo e sua descendencia centenas de anos antes (Gn 12 e 15). Essa historia é contada em quatro partes: Os capítulos 1.1—5.12 se concentram na entrada de Israel na térra (com varios ecos do relato da saída de Israel da térra do Egito). Após algumas qucstóes preparatorias cruciais, o rio Jordáo é atravessado. Relatos da circuncisao e da celebracáo da Páscoa (lembre-se de Ex 12) encerram essa parte da historia. Os capítulos 5.13—12.24 contam a historia da conquista (parcial) da térra. Figuram, aqui, o triunfo divino sobre Jericó (cap. 6) e a derrota em Ai (cap. 7), que sao narradas em detalhe e servem de paradigma para o que vem a seguir — o fato de que essa é a guerra santa de Deus, e nao deles, e tudo depende da obediencia e lealdade á aliaba com Javé. A cerimónia da renovafáo da alianfa (8.30-35), portanto, vem imediatamente depois da tomada de Ai (8.1-29). Após o engaño gi-beonita (cap. 9), que serve como base para a vitória no sul (cap. 10), o resto da conquista é brevemente resumido (caps. 11—12). Os capítulos 13—21 narram a distribuicáo da térra, estabelecendo a organizafáo administrativa do reino terreno de Javé. Após repetir o estabelecimento das tribos orientáis (cap. 13; cf. Nm 32), o foco se volta sobre as tribos que desempenharáo os papéis principáis na historia que vem a seguir (Judá, Effaim; Js 14—17); Benjamim (de quem vem o primeiro rei) lidera a lista das demais tribos (caps. 18—19). Essa parte conclui com a garantia de protecáo para aqueles que matarem sem intenf áo (cap. 20) e para os levitas, que, de outro modo, nao herdam a térra (cap. 21).

JOSUÉ

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Os capítulos 22—24 tratam principalmente da lealdade continua de Israel a Javé, e concluem, assim, com a renovado da alianza em Siquém (cf. 8.30-35).

ORIENTAOÓES PARA A LEITURA DE JOSUÉ Vocé perceberá que a historia de Josué é contada da perspectiva de um tempo posterior, o narrador mencionando, repetidas vezes, certos me-moriais que "ali estáo até o dia de hoje" (4.9; 5.9; 7.26; 8.28,29; 10.27), como também estáo varios povos cananeus (13.13; 15.63; 16.10). Aqueles servem de lembrete da fidelidade de Deus no passado, e estes de lembrete daquilo que nao tinha sido feito. Tanto a estrutura do livro como as palavras iniciáis de Deus a Josué (1.2-9) revelam as tres preocupacóes principáis. Primeiro, há o engaja-mento na guerra santa. Repare como a énfase está sempre na iniciativa e na participacáo de Deus ("estarei contigo", 1.5). A primeira batalha (Jericó), portante, é táo somente de Deus; depois disso, os próprios israelitas se envolvem militarmente, mas sempre com Deus lutando por eles (8.1; 10.14; 23.10); como Davi diria depois, "a batalha é do SENHOR" (ISm 17.47). Essa é a guerra santa de Deus, nao só para dar a térra a Israel, mas especialmente para livrá-la da idolatría (falsos deuses) — tudo isso para que Javé possa habitar como Rei entre um povo que deve refletir a sua semelhanca e caminhar nos caminhos dele. Quanto a isso, atente também para as varias ocasioes em que o autor fala do presente do "descanso" que se segué á guerra santa (Js 1.13,15; 14.15; 21.44; 22.4; 23.1), tema retomado negativamente em Salmos 95.11 com respeito a geracáo do deserto e depois em Hebreus 4.1-11 como advertencia e encorajamento. Em segundo lugar, embora os capítulos 13—21 nao sejam em si muito agradáveis de 1er, eles sao profundamente importantes para a historia, pois aqui, finalmente, tem-se o cumprimento da promessa de Deus a Abraáo e sua descendencia de que um dia eles herdariam essa térra. Ela deveria ser seu territorio especial precisamente para que, ali, Deus pudesse desenvolver um povo que, ao honrar e servir a Javé, abencoaria as nacóes.

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Em terceiro lugar (o ponto mais importante), tudo está ligado a fidelidade de Israel ao Deus único na aliaba com ele. Esse é o elemento central ñas palavras de Deus a Josué que iniciam o livro ("Nao afastes de tua boca o livro desta lei, antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de obedecer a tudo o que nele está escrito", 1.8). Esse é o fator central na derrota em Ai (7.11,15). Também explica a insenpáo precipitada da renova9áo da aliaba no monte Ebal (8.30-35) e a renova9áo final da aliaba em Siquém, com que a narrativa conclui (24.1-27). Será fácil perceber como praticamente toda a narrativa retoma e dá prosseguimento as preocupa9oes de Deuteronómio: a guerra de Deus contra os falsos deuses; a promessa da térra por parte de Deus; e a preocupa9áo com a lealdade ao único e verdadeiro Deus em oposÍ9áo a todas as formas de idolatría. Duas outras coisas podem ajudar vocé a fazer urna boa leitura de Josué. Em primeiro lugar, tenha bons mapas em máos (como os encontrados no comentario de Marten Woudstra sobre Josué [v. lista de comentarios em Entendes o que les?, p. 323]). Isso lhe dará um bom senso da geografía mencionada ao longo do livro. Em segundo lugar, pode ser útil saber que, na época da invasáo de Israel, Canaa nao era ocupada por nenhuma potencia mundial, como tinha sido tempos antes pelos egipcios e pelos hititas. Israel nao precisou, portante, enfrentar esse tipo de oposÍ9áo poderosa. A térra, antes, era organizada na forma de varias cidades-estado, cada cidade principal e suas vilas circundantes tendo seu próprio rei, e cada rei sendo politicamente independente. Essa organiza9áo significou que os israelitas, embora fossem eles próprios um povo pequeño, puderam lutar contra cada estado ou pequeño grupo de estados (9.1,2; 10.5-27; 11.1-9) separadamente, e dessa forma tomar posse, gradualmente, de grande parte da térra.

UMA CAMINHADA POR JOSUÉ D 1.1-18 Introduqáo Esse capítulo apresenta todos os temas principáis: Deus como o protagonista da historia; o chamado de Josué e o reconhecimento do seu papel como o verdadeiro sucessor de Moisés; o fato de que Josué

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levaría o povo a herdar a térra que Deus tinha prometido a seus an-tepassados; e a preocupacao central da fidelidade á aliaba. Observe a exorta9áo repetida de Javé a Josué, "esfor9a-te e sé corajoso" (v. 6,7,9), repetida no fim do capítulo pelo povo (v. 18), e por Josué ao exército no corneo da campanha do sul (10.25). Observe, também, o inicio do tema do "descanso" (1.13,15).

D 2.1 —5.12 Preparativos e entrada na térra prometida Preste aten9áo na maneira como as varias narrativas desses capítulos descrevem os preparativos do povo para a conquista da térra. Os pri-meiros preparativos sao de natureza militar (cap. 2): enviam-se espides a Jericó que, protegidos por Raabe, ficam sabendo do temor que as vitórias anteriores de Israel (Nm 21.21-35) tinham suscitado no povo daquela cidade. Os segundos preparativos sao a travessia milagrosa do Jordáo (Js 3—4), que ecoa a travessia anterior do mar Vermelho durante o Éxodo. Os últimos preparativos sao espirituais: a renova9áo do rito da circuncisáo e a celebra9áo da Páscoa. Israel só pode possuir a térra como um povo circuncidado (lembre-se de Gn 17.9-14), com a "humilha9áo do Egito" removida (Js 5.9), e a Páscoa, agora, pode ser celebrada novamentc (após um hiato de 39 anos; v. Ex 12.25 e Nm 9.1-14), quando cessa a dádiva do maná (Js 5.10-12). Observe, também, o papel importante que Gilgal desempenhará no resto da conquista (5.9; 9.6; cap. 10); Gilgal se torna, depois, um dos lugares sagrados de Israel (ISm 7.16; 11.14) e a certa altura um lugar de idolatría sincretista (Os 4.15; 9.15; 12.11; Am 4.4; 5.5).

D 5.13—8.35 Jericó e Ai Observe especialmente como a conquista conrea — com o encontró de Josué com "o chefe do exército do SENHOR" (JS 5.13-15). Já estando em cena para assumir a lideran9a da conquista, ele é a garantía para Josué (e para Israel) de que o exército celestial de Javé está comprometido com a conquista — urna conquista da qual Josué e seu exército sao o contingente terreno. Esse item está repleto de ecos e de contrastes significativos com o encontró de Moisés com Javé na sarca ardente (Ex 3.1—4.17).

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Observe o quanto as duas historias de Jericó e de Ai estáo ligadas, tanto na narrativa presente quanto depois (Js 9.3; 10.1). Juntas, elas revelam as condicóes ñas quais Israel pode conquistar e, entáo, reter a possessáo da térra. Nao deixe de perceber os aspectos importantes do conhecido relato da queda de Jericó — de que se trata inteiramente da vitória de Deus; de que, exceto pelas trombetas, o papel do exército de Israel tem pouco de militar; e o aspecto de que se trata das primicias da vitória, e portante tudo na cidade pertence a Deus (a própria cidade é queimada como algo "consagrado ao SENHOR", 6.21; suas pedras e metáis preciosos iráo para a casa do Senhor); e também de que Raabe e sua familia sao poupados porque ela havia confessado que o futuro pertence ajavé (2.8-13). A primeira parte da historia de Ai (cap. 7) retoma o tema das "coisas consagradas" do capítulo 6, concentrando-se na derrota de Israel por causa da desobediencia a alianca por parte de um homem (7.11,15; cf. 22.18-20). Observe a importancia de Acá, um homem de Judá cuja historia pode ser lida em contraste com o paño de fundo do relato de Raabe, a prostituta (Acá e sua familia perdem toda sua heranca na térra, enquanto Raabe, a estrangeira, e sua familia recebem heranca). A segunda parte da historia de Ai (cap. 8) narra, entáo, como Deus capacitou Israel, por meio de um sagaz estratagema militar, a derrotar e destruir Ai. Essas duas vitórias decisivas no ponto da entrada, urna milagrosa e a outra por meio da instrumentalidade humana — e contadas, como sao, em detalhes — sugerem ao leitor como entender as demais historias, que nao sao contadas em detalhes. Nesse ponto, entáo, o narrador inclui a renovacáo da alianca no monte Ebal (8.30-35; v. Dt 27.4-8).

D 9.1—10.43 O ardil gibeonita e suas consequéncias O primeiro relato após a cerimónia de renovacáo da alianca é outra quebra da alianca, dessa vez pelo próprio Josué, que "nao [pediu] conselho ao SENHOR" (9.14); observe que os gibeonitas sao heveus (9.7; 11.19), um dos sete povos cananeus que devem ser totalmente destruidos (9.1; cf. Dt 7.1,2). Nao obstante, seu ardil leva diretamen-te á derrota dos cinco "reis dos amorreus", que pretendem subjugar

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Gideáo, mas sao eles próprios, entáo, derrotados (Js 10.1-28). Isso, por sua vez, leva a narrativa á conquista das cidades-estado do sul (v. 29-43); observe que o exército se dirige imediatamente as cidades dos reis que foram morios.

D 11.1—12.24 A conquista do norte e a lista dos reis derrotados Aqui, como antes, a derrota dos reis do sul leva, por sua vez, á derrota de muitos no norte (cap. 11). O capítulo 12, entáo, faz urna lista de todos os reis e suas cidades-estado que foram destruidos.

D 13.1—21.45 A distribuicáo da térra Embora essa parte de Josué nao seja urna leitura empolgante, vocé precisa estar consciente da sua importancia para o resto da historia bíblica. Pois aqui vemos o cumprimento da promessa da térra feita a Abraáo e sua descendencia. Mas observe especialmente a importancia dada a certas partes da narrativa — tanto pelo seu lugar na narrativa quanto pelo espaco dedicado a elas. O relato comeca com um lembrete do que ainda precisa ser feito (13.1-7), que se torna importante para a leitura tanto de Juízes quanto de 2Samuel 5 e 8, em que Davi finalmente tem éxito na derrota desses povos. Após repetir a distribuicáo de térras feita entre Gade, Rúben e meia-tribo de Manassés (13.832; cf. Nm 32), o foco se concentra, principalmente, em Calebe e na tribo de Judá (caps. 14—15), e entáo ñas duas tribos de José (Efraim e meia-tribo de Manassés, Js 16—17). Observe que urna interrupcáo visível (18.1,2), ressaltada pelo apare-cimento da tenda da revelacáo em Silo, separa essas distribuicóes das demais, que vém a seguir (18.3—19.48); observe, além disso, que estas últimas comecam com Benjamim, que incluí Jerusalém (18.28), muito embora ainda nao tenha sido conquistada. A narrativa da distribuicáo em si concluí com a designacáo de térra a Josué (19.49-51), de modo que Calebe e Josué encerram essa narrativa (v. comentarios sobre Nm 9.15—14.45, p. 62). Como apéndice dessa narrativa da distribuicáo, há duas outras questóes importantes que tratam da térra: prescricóes para o caso

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de assassinato nao intencional (cap. 20) e para os levitas (cap. 21). Observe como aquí se repete Números 35, mas na ordem inversa e condensando-se um e expandindo-se o outro. 3 22.1—24.33

Epílogo

Os tres capítulos que concluem Josué tém a lealdade a Deus e á alianca como denominador comum. A quase eclosáo de urna guerra por causa do altar erigido pelas tribos orientáis se deve ao medo de que houvessem sido infléis para com o Deus de Israel (22.16). Os dois discursos de despedida de Josué tém a lealdade á alianca como tema singular. Observe como muito dessas falas enfatiza novamente as preocupacoes de Deuteronómio. O livro concluí com a nota encorajadora de que, nao apenas Josué e Eleazar estáo enterrados na térra prometida, mas os ossos de José, primeiro enterrados no Egito (Gn 50.26; cf. Ex 13.19), também foram reenterrados em Siquém, ñas térras tribais do filho de José, Efraim. E, assim, Deus mantém a alianca com o seu povo! Infelizmente, o capítulo seguinte na historia (Juízes) narra o constante rompimento da alianca com Deus por parte de Israel.

Josué contribuí para a historia da redencáo de Deus ao consumar a promessa da alianca sobre a térra prometida, feita em Génesis (e em todo o restante do Pentateuco), preparando, assim, o palco para as etapas seguintes da historia.

Juízes

INFORMALES BÁSICAS SOBRE JUÍZES ■ Conteúdo: a narrativa cíclica da época dos juízes, com énfase na constante falta, por parte de Israel, de fidelidade á alianga ■ Abrangéncia histórica: da morte de Josué até o corneo da monarquia ■ Enfases: o tenue resultado da conquista; o resgate constante do povo por parte de Deus, apesar da falha habitual de Israel em manter a aliaba; a situagáo desalentadora, em geral indo de mal a pior, durante esse período; a necessidade de um bom rei

VISÁO GERAL DE JUÍZES O livro de Juízes, que conta a historia de Israel entre Josué e o corcho da monarquia (1 Samuel), é urna narrativa de composigáo cuidadosa, dividida em tres partes essenciais: 1.1—3.6

Introducao: um "preludio" apresentando os temas principáis 3.7—16.31 Ciclo narrativo principal: urna serie de "varia9óes" desses temas 17.1—21.25 Epílogo: urna conclusao ilustrando o tema principal Durante a leitura do livro, atente para a forma em que essas varias partes interagem entre si, levando a narrativa como um todo a

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retratar um quadro vivido da época, concluindo com o refráo repetido de que muito do que o livro narra está relacionado a ausencia de um rei em Israel. A introducáo é em duas partes. A Parte 1 (1.1—2.5), que retoma e realca parte da narrativa da conquista de Josué, tem duas énfases, ambas encontradas na conclusao (2.1-5): (1) Deus nao rompeu a alianca com Israel, mas os israelitas romperam a alianca com Deus ao nao expulsar os cananeus (1.21,2736), e (2) Deus nao vira mais em socorro deles nessa causa; em vez disso, os cananeus "seráo vossos adversarios, e os deuses deles serao urna armadilha para vos" (2.3). Essa parte, portante, dá a razáo básica para o que vem a seguir. A Parte 2 (2.6—3.6) ensaia brevemente a maneira como a narrativa se desenvolverá. Aqui o ciclo deuteronómico básico é apresentado: 1. Israel pratica o mal aos olhos de Javé ao servir os baalins cananeus (2.11-13). 2. Eles provam da ira de Javé na forma do malogro na batalha e na opressáo pelos seus inimigos (v. 14,15). 3. O povo clama na sua afiicáo, e Deus os resgata, enviando um juizlibertador (v. 16,18). 4. Quando o juiz morre, o ciclo inteiro comeca de novo (v. 17,19-23). Vocé perceberá que o epílogo tem duas partes, relatando, nos mais terríveis detalhes, casos do sincretismo de Israel e da sua falha por nao manter a alianca com Deus. Enquadrada entre essas duas secóes, há a própria narrativa principal, na qual o ciclo é repetido vez após vez, mas com a énfase ñas historias de libertacáo. Um elemento comum a todas essas historias é o fato de que Deus está por tras de todos os livramentos, mesmo que os libertadores raramente sejam, cíes próprios, cxemplos radiantes de devocáo a Javé! Essa serie central parece ter sido cuidadosamente elaborada, apre-sentando doze "juízes", que correspondem ao número das tribos israelitas. Ela comeca com Otoniel, cuja historia é narrada brevemente

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e serve de padráo para o resto. A isso se seguem os feitos de cinco juízes (Eúde, Débora/Baraque, Gideáo/Abimeleque, Jefté e Sansáo), e entremeadas nessa passagem tem-se básicamente urna lista de outros juízes-libertadores do género (Sangar, Tola, Jair, Ibsá, Elom, Abdom). Emoldurando essa serie há os relatos de dois solitarios (Eúde, um benjamita; Sansáo, um danita). No quadro interior das historias (Débora/Baraque, Jefté), a libertacao depende de urna mulher e de um excluído/foragido. No centro, há o relato de Gideáo e seu filho Abimeleque (cujo nome significa "pai do rei"), e aqui vém a tona as duas questóes centráis da narrativa: quem é o verdadeiro Deus? Quem é o rei de Israel? É a partir daí que as narrativas de Samuel e Reis retomam essa questáo.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE JUÍZES Para nao perder o foco na leitura de Juízes, há tres coisas que precisamos saber de antemáo. Em primeiro lugar, a palavra tradicionalmente traduzida por "juízes" {shophetim) nao se refere primariamente, neste livro, a oficiáis de justica (embora a palavra também tenha, de fato, esse sentido; v., p. ex., Ex 18.13). Eles eram, antes, líderes militares e chefes de clás que Deus usou para livrar Israel dos inimigos que ameacaram parte do seu territorio por um longo período. Algumas versees, portanto, sacrificam parte do sentido ao traduzir o substantivo da forma tradicional, mas usam "lidera/liderou" para o verbo. Em segundo lugar, embora termos no sentido de "liderou Israel" e "liderou os israelitas" aparecam regularmente, vocé nao deve imaginar que cada um (ou qualquer um) desses juízes tenha sido o líder de toda a nacáo de Israel no sentido em que Moisés e Josué o foram. Alias, a medida que as historias se desenrolam, vocé perceberá que parte da preocupacáo do narrador é mostrar que a verdade é justamente o contrario — que urna ou varias tribos sao oprimidas, e pedem ajuda a outras tribos, ajuda que as vezes vem e outras, nao, resultando, muitas vezes, em conñitos intertribais. A ironia da narrativa é que só no fim, num caso de guerra intertribal disciplinar, todas as doze tribos sao "unidas", por assim dizer. Observe, por exemplo, as palavras pungentes na cancáo de Débora sobre Rúben (5.15,16), que num tempo

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de crise após muita inquietagáo e indecisáo ficou em casa ouvindo "o balido dos rebanhos". Em terceiro lugar, e relacionado a tudo isso, há a questáo da cro-nologia geral. Vocé perceberá a frequéncia com que se emprega urna linguagem cronológica ("Depois da morte de" e "a térra teve sossego por [...] anos"), e que o esquema geral da narrativa reflete a historia desses tempos, comecando com a opressáo esporádica (Moabe ao leste) e concluindo com a opressáo filisteia, que é o ponto que a narrativa de Samuel retoma. Mesmo assim, vocé nao deve pensar que isso tudo se dá em ordem cronológica. A paz num lugar nao significa que haja paz no outro. E a nota parentética em 20.27,28 localiza essa historia bastante cedo nesse período (o sacerdote em Betel é neto de Aráo). O narrador nao está muito interessado, portanto, numa linha temporal, mas antes em retratar um quadro geral da época da qual está tratando. Mas a questáo cronológica crucial para a narrativa é a deterioracáo gradual, mas continua, da situacáo cm Israel ate a época de Samuel. Isso é retratado, em primeiro lugar, pela própria estrutura da narrativa, com suas historias conclusivas nos capítulos 17—21. Também se reflete no retrato dos seis juízes principáis. Os retratos de Otoniel, Eúde e Débora sao básicamente positivos, apesar de algum subterfugio da parte de Eúde e Jael (4.18-21). Mas, comegando com Gideáo, as coisas comecam a desandar. A historia de Gideáo comega bem, mas acaba mal devido a um colete sacerdotal idólatra (8.24-27) e um filho assassino, Abimeleque (cap. 9). As historias de Jefté e de Sansáo mostram o Espirito de Deus usando líderes nao muito exemplares. Outra forma em que esse tema é conduzido é o uso de "aos olhos de" ou "o que lhe parecía cerro". Observe como cada historia do ciclo comega: "Mas os israelitas voltaram a fazer o que era mau aos olhos do SENHOR". NO fim, o livro nos conta o que isso significa: "Naquela época, nao havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecía cerro" (17.6; 21.25). O ponto de imensa importancia nesse tema é exprimido num termo geralmente traduzido de forma diferente ñas tradugoes modernas da Biblia; Sansao deseja, de maneira rebelde, urna jovem

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filisteia como mulher porque, em traducáo literal do texto bíblico, "ela é certa aos meus olhos" (14.3,7). Mas apesar de tudo isso, o cuidado de Deus pelo seu povo permite que a historia se mantenha coesa. Pode se perceber esse fato especialmente na observacáo repetida de que "o Espirito do SENHOR [Javé]" — mencionado na historia inicial de Otoniel, mas ausente nos episodios de Eúde e de Débora — de fato vem sobre Gideáo (6.34), Jefté (11.29) e Sansao (13.25; 14.6,19; 15.14). Mesmo assim, o que está perceptivelmente ausente em Juízes é qualquer mencüo á presenca de Deus, ou mesmo qualquer senso déla em meio ao seu povo. A tenda da revelacáo, que Josué estabeleceu em Silo (Js 18.1), reaparece ali em 1 Samuel 2.22. Em Juízes, lemos que a idolatría da tribo de Da continua durante "todo o tempo em que o santuario de Deus esteve em Siló"(18.31), mas Israel nunca consulta Javé ali para ouvir a orientacáo dele. Israel é um povo desencaminhado e que perdeu sua identidade, e só Deus, em sua misericordia, pode colocar ordem nesse caos.

UMA CAMINHADA POR JUÍZES D 1.1—2.5

O problema básico: Israel nao destrói oscananeus

Perceba como o propósito do narrador se desenrola. Após repassar algumas das Vitorias no sul, lideradas por Judá (1.1-18), ele comenta o fato de que Israel nao expulsou todos os cananeus (1.19-21). O mesmo acontece novamente no norte — vitória em Betel (1.22-26), mas, em geral, fracasso (1.27-36). Esse fracasso, entáo, é denunciado como um ato de desobediencia (2.1-5), de modo que Deus, agora, deixará os cananeus na térra como "adversarios" de Israel. E isso significa que os deuses cananeus "seráo urna armadilha" para eles (2.3).

D 2.6—3.6 Estabelecimento do padráo Em 2.6-19 vocé encontra o ciclo deuteronómico, que estabelece o padráo para o restante do livro: O povo deixa de servir a Javé; ele os abandona aos seus inimigos; eles sao subjugados; oram por ajuda; o Espirito de Deus vem sobre urna pessoa que os lidera na derrota dos inimigos; eles entáo se tornam complacentes e o ciclo se repete. Observe que o

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restante dessa introducáo (2.20—3.6) retoma o tema de 2.1-5, mas agora indicando que o próprio Deus deixou as nacóes hostis dentro e ñas cercanias da térra prometida para afligirem os israelitas. D 3.7-11

Otoniel (de Judá/contra os arameus)

Observe que nesse episodio inicial tratando de um juiz, o ciclo (2.6-19) está plenamente representado: Israel abandona a Deus (v. 7), suscitando a ira dele e a subjugacáo dos israelitas aos arameus (v. 8); isso resulta, a certa altura, em oracóes por ajuda que levam Deus a enviar um libertador (v. 9). O "Espirito do SENHOR" entáo dá a Otoniel a sabedoria para liderar, de modo que "a térra teve sossego"(v. 11). D 3.12-31

Eúde (de Benjamim/contra os moabitas) eSangar

"Mas os israelitas voltaram a fazer o que era mau aos olhos do SENHOR", o que leva a subjugacáo deles ñas máos de um (extremamente gordo) rei moabita. Observe como a obesidade de Eúde e o fato de ele ser canhoto constituem a intriga que dá impulso a historia. Embora se trate básicamente da historia de um solitario, Eúde nao obstante prepara o caminho para a vitória israelita (v. 26-30). O Espirito nao é mencionado aqui, mas mesmo assim "o SENHOR" é responsável pela vitória (3.28). O relato cm apéndice sobre Sangar (3.31) apresenta os filisteus, que mais tarde se tornam o pior inimigo estrangeiro de Israel. II 4.1—5.31

Débora (de Efraim/contra os cananeus do norte)

A trama da historia é o seu foco em duas mulheres, Débora e Jael, que sobressaem ao "libertador" em si, Baraque. Observe que Débora inicia a acáo em nome do Senhor, e que a recusa de Baraque de batalhar sem ela leva á profecía de que o Senhor entregará Sisera a urna mu-lher — mas a mulher acaba nao sendo Débora, mas Jael! A cangáo de Débora (v. 5.7; também cantada por Baraque, 5.1) reconta a historia com alguns detalhes adicionáis, enquanto exalta a Deus e humilha as tribos que nao ajudaram.

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[.! 6.1—10.5 Gideáo (de Benjamimí'contra os midianitas e os amalequitas), e Tola e Jair Observe como nesse caso o narrador preenche as varias partes do ciclo com mais detalhes do que antes. Como sempre, a narrativa comeca com "Mas os israelitas voltaram a fazer o que era mau aos olhos do SENHOR" (6.1). A opressáo vem das legióes de orientáis, lideradas por Midiáe Amaleque,e a situacáo é particularmente desesperadora (6.2-6), de modo que Israel clama a Deus, que novamente os lembra de que eles romperam a alianca com ele (6.710). Mas a maior elaborafáo diz respeito ao libertador e á historia do triunfo de Israel. Durante a leitura, atente para sinais do tema do movimento decadente dentro da própria narrativa. Gideáo é retratado como temeroso e tímido (6.11-19), obediente mas desconfiado (6.20-40). Ele comeca bem — destruindo o altar de Baal (6.2432) e "liderando" urna vitória decisiva, orquestrada por Deus, contra Midiá (cap. 7). Mas entáo um Gideáo bem diferente per-segue Zebá e Zalmuna (8.118); nao obstante, muito embora seu zelo represente algo no sentido de urna vinganca pela morte de seus irmáos (8.19-21), ele continua sendo retratado como dando continuidade á guerra santa. Mas ele acaba fazendo um colete sacerdotal que se torna idólatra, e seu filho Abimeleque é totalmente degenerado. Essencial nesse episodio é a exigencia dos israelitas de que Gideáo governe sobre eles (8.22), o que ele rejeita — urna rejeicáo que inclui os seus filhos — em favor do governo de Javé (v. 23). Observe como a historia atinge um ponto babeo com o filho de Gideáo, Abimeleque, que se torna rei após matar todos menos um dos seus setenta irmáos. Mas observe, também, a ironía: urna mulher cujo nome nao é mencionado o mata atirando-lhe na cabeca urna pedra de moinho (9.50-53). Israel, portanto, é liberto de um dos seus! As observacóes sobre Tola (10.1,2) e Jair (v. 3-5), que representam Issacar (e Efraim) e Gileade (Manassés oriental), concluem o ciclo de Gideáo e preparam o cami-nho para Jefté. Ao mencionar de forma táo breve Tola e Jair, o narrador lembra ao leitor que as historias sao deliberadamente escolhidas, urnas em detrimento de outras, nao se tratando de um relato exaustivo de tudo o que se passou.

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□ 10.6—12.14 Jefté (de Manassés oriental/contra os amonitas) e Ibsá, Elom e Abdom O movimento decrescente, de mal a pior, continua. Jefté é urna especie de fora da lei bem-sucedido (11.3-6) quando os gileaditas, seus parceiros, apelam a ele para ajudá-los contra os amonitas. Ele é retratado como alguém impetuoso e egoísta, um homem para quem um juramento vale mais do que urna fuña. Ele tem éxito na batalha porque o Espirito do Senhor está sobre ele (11.29), mas também é responsável pela morte de milhares de israelitas (12.1-6). Os relatos de Ibsá, Elom e Abdom (12.8-15) sao, aparentemente, os breves lembretes por parte do autor de que Deus continuou a operar por meio dos juízes em varias regióes. □ 13.1—16.31

Sansáo (de Dá/contra os filisteus)

Esta última historia do ciclo é a mais trágica — e a mais ambigua — de todas. Sansáo, na sua própria pessoa, representa tudo o que há de errado em Israel no tempo dos juízes: nascido de urna mulher estéril, dedicado para ser um servo especial de Javé desde o nascimento (cap. 13), invencível quando o Espirito de Javé está com ele — mas ele rompe seu juramento (v. comentarios sobre Nm 5.1—6.27, p. 62) ao tomar mel de um leáo (filisteu) morto, ao se casar com urna estrangeira (Jz 14) e ao se envolver com urna prostituta (cap. 16). Observe como tudo isso reflete a própria historia de Israel, que se prostituiu com os baalins e as astarotes. Mesmo assim, o Espirito de Deus continua a vir sobre ele para derrotar pequeños grupos de filisteus. Cegó e aprisionado, Sansáo é capacitado por Deus a destruir um templo cheio de filisteus, ele próprio morrendo no processo (16.23-30). Essa narrativa também prepara o cenário para a longa luta com os filisteus que marca as historias vindouras de Saúl e de Davi, mas, mais imediatamente, serve de transicáo dos pecados de Israel como um povo para os pecados dos individuos narrados nos capítulos 17—21. D 17.1—21.25 Duas historias que ilustram a corrupqáo de Israel Observe como essa conclusáo c cuidadosamente elaborada em torno da frase "Naquela época, nao havia rei em Israel; cada um fazia o

JUÍZES

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que lhe parecia certo [o que era certo aos seus próprios olhos]" (17.6; 21.25; cf. 18.1; 19.1). Com essas palavras, o narrador fornece a perspectiva da qual a historia toda foi contada: Israel está em desordem; nao há lideranca central — e nao há, tampouco, um santuario central geralmente aceito, como foi ordenado em Deuteronómio. Assim, o primeiro episodio (cap. 17) na primeira historia ilustra o sincretismo de Israel (a máe de Mica consagra sua prata a Javé para que seu filho faca um ídolo), enquanto a segunda (cap. 18) ilustra tanto o contexto danita do qual veio Sansáo quanto as condicóes desorganizadas de Israel devidas ao fracasso na conquista da térra com que o livro comecou. Ambos os episodios ilustram a falha da verdadeira adoracáo em Israel. A natureza terrível da segunda historia (caps. 19—21) ilustra tanto o abismo da corrupcáo moral de Israel que é guardada na memoria tempos depois (v. Os 9.9,10) quanto a realidade de que o povo vive na iminéncia constante de guerras intertribais. Israel precisa do rei designado por Deus.

O padráo trágico em Juízes aponta para a fase seguinte da grande historia da redencáo de Deus, que comecará a avancar consideravelmente ao longo das historias de Rute e do seu bisneto, Davi.

Rute

INFORMALES BÁSICAS SOBRE RUTE ■ Conteúdo: urna historia de lealdade a Javé durante o tempo dos Juízes, em que a historia da vida de Noemi reflete a realidade de Israel no raesmo período (e fornecendo, também, a linhagem do rei Davi) ■ Abrangéncia histórica: alguns poucos anos em torno de 1.100 a.C. ■ Énfases: a vida num povoado que permanece leal a Javé durante o tempo dos juízes; a acolhida de urna mulher estrangeira sob a protecáo de Javé; o cuidado e a superintendencia de Deus, dando a Israel o seu grande rei.

VISÁO GERAL DE RUTE Que alivio 1er Rute depois de Juízes! De fato, temos aqui, num relevo marcante, mais urna historia do mesmo período, sobre um ho-mem bom e duas muflieres igualmente bondosas, para nao mencionar a comunidade inteira, retratada como fiel a alianca. Embona o livro de Rute (junto com o de Ester) apareca entre os Escritos do canon hebraico, na Biblia grega — usada pela tradicáo crista — o livro de Rute foi incluido depois de Juízes e antes de lSamuel, o que muito provavelmente se deve a maneira como o livro comeca ("Na época em que os juízes govemavam") e concluí ("Obede gerou Jessé, e Jessé

RUTE

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gerou Davi"). Vocé verá como a inclusáo do livro nesse lugar da Biblia foi pertinente. O livro de Rute é as vezes considerado urna historia de amor — e, em alguns aspectos, trata-se de fato de urna historia de amor, mas esse nao é um romance. O amor de Javé por Israel é exprimido, aqui, pelo cuidado amoroso que Rute e Boaz dispensam a Noemi, bem como no cuidado de Boaz para com ambas Noemi e Rute. Embora a passagem essencial da historia traga as acóes de Rute e de Boaz, a figura central ao longo do livro é Noemi, como deixam claro o prólogo (1.1-5) e o epílogo (4.13-17). O enredo dessa narrativa lida com a mudanca de Noemi, que passa do "vazio" numa térra estrangeira á "plenitude" de volta ao lar, em Belém de Judá, e que deixa urna especie de esterilidade (a viuvez sem um herdeiro homem) e assume a heranca plena quando Boaz toma sobre si as responsabilidades de seu resgatador e, ao se casar com Rute, dá a ela um herdeiro homem — e que herdeiro ele acabou se saindo! A historia é contada em quatro cenas, cada urna comecando com urna frase temática de abertura e, exceto pela última, encerrando com urna frase que prepara o leitor para a cena seguinte. As cenas, respectivamente, retratam o "vazio" de Noemi (1.6-22), o despertar da sua esperanca (cap. 2), o progresso rumo a realizacáo desta (cap. 3) e a plenitude consumada no nascimento de um herdeiro (cap. 4). E como vem essa plenitude? Ela vem por meio de Rute, urna jovem viúva moabita, e de Boaz, um homem estabelecido, rico e íntegro de Judá — extremos opostos na escala sociológica —, ambos agindo em favor da mulher necessitada (Noemi) da maneira que podem, e sem levar em conta seu próprio beneficio, e ambos arriscando rudo para isso. De fato, o papel desempenhado pelos seus dois antagonistas (Orfa e o outro párente próximo) realca o fator de risco para cada um.

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE RUTE Ao contar a historia da sua maneira, o narrador provavelmente pretende que o leitor veja, aqui, urna analogía com Israel como um todo no tempo dos juízes (1.1). Num tempo de fome, a familia de Elimeleque busca urna vida longe da térra prometida de Javé, na térra de Moabe,

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

encontrando ali morte e vazio. Ao voltar para casa — a Belém, a "casa de pao" com sua colheita abundante — aquela cujo nome significa "doce", mas que se diz "amarga" (1.20), inicia urna jornada que vai da esperanga á realiza9áo, e a um "filho" que será o resgatador pelo qual ela ansiava. E, ao fazé-lo, ela desencadeia eventos que culminante na recep9áo, por parte de Israel, do seu principal rei. Nao há como ignorar a bén9áo final das mulheres de Belém sobre Noemi, em 4.14: "Que o seu nome se torne famoso em Israel"! De fato! Nesse sentido, é importante atentar tambérn para a maneira como tanto a cidade de Belém, em geral, como os tres personagens, em particular, sao retratados como leáis a Javé e á aliaba, experimentando portante as béfaos da alianga (v. esp. Dt 28.3-6) durante "a época em que os juízes governavam"(l.l).Isso aparece de varias maneiras: a determina9áo de Rute de seguir a Javé em virtude da relagao déla com Noemi (1.16-18); as sauda9oes de Boaz e dos ceifeiros, refletindo a presenqa e a bén9áo de Deus (2.4); as boas-vindas de Boaz a Rute, que escolheu se refugiar sob a prote9áo de Javé (2.12); a generosidade e a simpatía de Boaz (2.8,9,14-18); e a"bén9áo"de Noemi sobre Boaz (2.20). Mas esse tema é especialmente evidente na forma como o narrador entretece na historia indica9oes da obediencia deles a lei da alian-9a — espigas debcadas para urna estrangeira; o párente-resgatador; heran9a por meio das leis referentes a casamento e hera^a no ambiente da aliaba. O narrador toma por certo que os leitores conhe-cem todos esses fatores ligados á aliaba. Essas pessoas nao precisam ser retratadas como consultando a Lei para obter orientartáo sobre o que fazer; elas estáo, antes, simplesmente demonstrando sua lealdade a Javé dentro da alianqa pela forma como vivem e tratam as pessoas. O autor parece preocupado, no film, em mostrar que os antepassados de Davi eram eles próprios javistas fiéis, num tempo em que grande parte de Israel nao o era. Observe, finalmente, como a própria Rute se torna um exemplo da béncáo de Abraáo sendo desenvolvida na prática (Gn 12.3: "todas as familias da térra seráo aben9oadas por meio de ti"). Ela é urna estrangeira, de urna térra estranha que é odiada (Dt 23.3). Mas ela escolhe seguir o Deus de Israel e torna-se, assim, parte do seu povo (Rt 1.16,17);

RUTE

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como tal, ela própria ama a Noemi (4.15) ao mostrar a bondade de Javé (2.11,12) a alguém que experimentou exilio e amargura (1.19-21). Por sua vez, ela é abencoada por Boaz como alguém que escolheu entrar debabeo do cuidado e da béncao de Javé (2.12); e no fim Javé permitiu, portante, "que ela engravidasse" (4.13). Embora fosse urna estrangeira sem a historia da alianca que os demais israelitas podiam reivindicar, ela demonstrou, nao obstante, o amor e a lealdade que definem essa alianca de urna forma que a maioria dos israelitas, durante esse período da sua historia, nao demonstravam. Ela, urna nao israelita, é usada como exemplo para os próprios "primogénitos" de Israel (v. Ex 4.22). Ela é, portante, urna das quatro mulheres gentias incluidas na genealogía de Mateus (Mt 1.5b; cf. v. 3,5a,6), que no seu Evangelho prenuncia o evangelho como as boas-novas para "todas as na9Óes" (Mt 28.19). UMA CAMINHADA POR RUTE □ 1.1-5 Prólogo Observe como o autor dá o contexto para toda a historia com esse prólogo. Por causa da fome, Elimeleque, Noemi e os filhos deixam a térra de Javé e váo para Moabe; Noemi acaba se vendo exilada numa térra estrangeira, desamparada, sem marido ou filhos. □ 1.6-22

Cena 1: Noemi e Rute — aflicáo, lealdade e conversáo

Com a primeira frase (v. 6), o narrador prepara o cenário para essa primeira cena: a determina9áo de Noemi de voltar a Belém. Vocé perceberá que a esséncia dessa cena inicial é a determina9áo de Rute de se manter leal a sogra e, portanto, de se converter e se tornar, ela mesma, urna verdadeira javista. Observe como a última frase (v. 22) prenuncia a cena seguinte. D 2.1-23

Cena 2: Rute, Boaz e Noemi — bondade inesperada

Perceba o crescendo de expectativa a medida que esse capítulo se desenrola. O leitor é apresentado a Boaz (v. 1) e á iniciativa de Rute (v. 2), que, "por coincidencia" (!), recolhia espigas nos campos de Boaz (v. 3).

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Entáo chega a vez de Boaz demonstrar sua bondade (v. 4-17): ele abencoa Rute, em nome de Javé,pela sua bondade para com Noemi (v. 12), ela trabalha e come com os ceifeiros sob a protecáo dele (v. 9,14) e a quantidade que ela colhe se torna deliberadamente maior (v. 15,16). Observe também como, perto do fim, Noemi abencoa Boaz (v. 19,20) pela sua bondade para com Rute e, por meio desta, para com a própria Noemi. Com urna frase final (v. 23), o narrador passa ao fim da colheita visando preparar o leitor para o que vem a seguir. D 3.1 -18 Cena 3: Noemi, Rute e Boaz — Rute pede casamento Noemi agora toma a iniciativa — presumindo, de maneira obvia e correta, a bondade de Boaz —, enquanto executa o plano (v. 1-9). Sua acao no versículo 9 convida Boaz a se tornar o resgatador de Noemi, e portando a tomar Rute como esposa. Boaz aceita, mas a lei exige que antes ele a ofereca a alguém mais qualificado (v. 10-12). Observe o cuidado com que o autor retrata Boaz como um homem de nobreza moral, assim como fez com Rute na cena anterior. Novamente, a última frase (v. 18) prepara a cena final. D 4.1-22

Cena 4: Boaz, Rute e Noemi... e Davi — Casamento e um filho

Seguindo o costume antigo ñas cidades israelitas, a questáo é decidida entre Boaz e seus parentes na presenca dos andaos na porta da cidade. Boaz se arrisca, assim como Rute tinha se arriscado antes. Boaz, afinal, casa-se com Rute; e Noemi agora tem um herdeiro — o "amargo" volta a ser "doce" (v. comentario na p. 93) — e Israel, passando-se algum tempo, vem a ter o seu primeiro rei.

O livro de Rute conta a historia da fidelidade de Javé para com seu povo num caso específico, a historia em que urna mulher moabita se torna parte da historia da redencao que Deus traz.

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INFORMALES BÁSICAS SOBRE 1 E 2SAMUEL ■ Conteúdo: a transicáo do último juiz, Samuel, para o primeiro rei, Saúl; a ascensao e o reinado de Davi ■ Abrangéncia histórica: do nascimento de Samuel (c. 1.100 a.C.) até o fim do reinado de Davi (970 a.C.) ■ Enfases: o comeco da monarquia em Israel; a preocupagáo com a monarquia e com a lealdade á aliaba; a arca da alianca representando a presenca de Deus; a escolha de Jerusalém como a "Cidade de Davi"; a alianca davídica, com suas nuancas messiánicas; o adulterio de Davi e suas consequéncias

VISÁO GERAL DE 1 E 2SAMUEL Os livros de Samuel e Reis formam, juntos, urna historia continua da monarquia israelita, do tempo de Samuel até o seu fim, em 587/6 a.C. É importante lembrar, enquanto vocé os le, que na Biblia hebraica esses livros pertencem aos Profetas Anteriores. Assim como os livros dos Profetas Posteriores, esses livros apresentam a perspectiva de Deus sobre a historia do seu povo; embora se concentrem nos reis de Israel, os profetas também tém um papel importante neles. O livro de Samuel conta a historia do comeco da monarquia em Israel até os anos do dcclínio do reinado de Davi. A historia se

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concentra em tres personagens fundamentáis: Samuel, o último dos juízes e o profeta que unge os dois primeiros reis; Saúl, o primeiro rei de Israel; e Davi, o rei mais importante de Israel. O livro em si se divide em quatro partes básicas, ligadas a esses tres homens. A parte 1 trata exclusivamente de Samuel (ISm 1—7). Essenciais, aqui, sao o nascimento, o chamado e o comeco da carreira de Samuel (1.1—4.1a), e a perda e retorno da arca da alianca (4.1b—7.1), a que se segué, logo adiante, urna grande vitória sobre os filisteus (7.2-14). Na parte 2 (ISm 8—15), figuram tanto Samuel como Saúl. Duas questóes sao essenciais aqui: (1) as afirmacóes e as advertencias de Javé quanto á monarquia (caps. 8—12; cf. Dt 17.14-20) e (2) o comeco do reinado de Saúl e a rejeicáo, por parte de Javé, dele como rei (ISm 13—15). Na parte 3 (ISm 16—31), figuram Saúl e Davi. A historia essencial é contada no comeco e no fim: a uncáo de Davi para substituir Saúl como rei (16.1-13) e a morte de Saúl e do seu herdeiro legítimo, Jónatas (cap. 31). A historia, portanto, se concentra na ascensáo de Davi e no declínio de Saúl, bem como na constante perseguicáo de Saúl a Davi para matar o rival arrogante que pretende usurpar sua dinastía. A parte 4 (2Samuel) se concentra em Davi — embora a preocupacao com Saúl continué (caps. 1—4; 9; 21) —, enquanto Nata (caps. 7; 12) e Gade (cap. 24) agora vestem o manto profético de Samuel. Os capítulos 1—9 narram a historia básica do reinado de Davi, a parte mais importante desta sendo a alianca no capítulo 7, que estabelece a dinastía de Davi "para sempre"(v. 15,16). Os capítulos 10—20 narram o pecado de Davi com Bate-Seba, que acaba expondo as debilidades internas na familia de Davi e a natureza frágil do reino unido. Os capítulos 21—24 formam urna especie de apéndice que reflete sobre a historia de Davi.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE 1 E 2SAMUEL O livro de Samuel está repleto de historias intrigantes e que prendem a atencáo. Mas justamente esse fato, que torna a leitura de Samuel táo interessante, também pode fazer com que vocé deixe de perceber

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certos detalhes importantes quanto ao quadro geral da historia de Israel. Para fazer urna boa leitura de Samuel, vocé precisa ter alguns desses detalhes em mente, em especial certos temas deuteronómicos que permeiam o livro. A historia em si se passa por volta do século 11 a.C, numa época em que nao havia nenhuma potencia mundial dominando a Palestina (v. "Orienta9oes para a leitura de Josué", p. 77). Era um tempo propicio, portanto, para que um poder local forte ascendesse e dominasse os dentáis, e foi exatamente isso que Davi fez (v. 2Sm 8). O maior obstáculo a tal programa nao veio dos cananeus, mas dos filisteus, vistos pela pri-meira vez no livro de Juízes (Sangar, Sansáo).Tratava-se de um povo marítimo, que tinha se estabelecido na costa do mar Mediterráneo e dominava a área costeira (e com certa frequéncia também áreas mais para o interior) a partir das suas cinco maiores cidades (Gaza, Asdode, Asquelom, Gate e Ecrom). É a influencia dos filisteus que pressiona as tribos israelitas no sentido da unificagáo e prote9áo que a monarquia pode fornecer, e é a presera desse povo que está por tras de grande parte da historia do livro de Samuel, até Davi,"depois disso", derrotá--lo (2Sm 8.1). O livro de Samuel, portanto, consiste especialmente na historia de varias transÍ9Óes — do governo periódico e parcial dos juízes para urna monarquia institucionalizada e hereditaria; de um rei que se as-semelha ao típico monarca do Oriente Próximo (sobre quem Samuel, como profeta, advertiu, ISm 8.1018) para um rei que é leal a Javé; da ausencia de um lugar central onde o Nome de Deus habita para um novo centro em Jerusalém.Tudo isso é narrado de maneira formidável — com gra9a, ironia, suspense, jogos de palavras —, mas concentran-do-se, sobrenado, no que Deus está realizando no seu povo e operando entre ele, mesmo quando lhes dá um rei. Urna das preocupa9Óes centráis (deuteronómicas) do livro, evidente na sua própria estrutura, é a verdadeira adora9áo a Deus no lugar da sua morada (sua presera). Esse tema cornea com urna profecia contra a casa de Eli, porque eles desprezam "o meu sacrificio e a mi-nha oferta, que ordenei se fizessem na minha morada" (ISm 2.29). Os capítulos 4—7 se concentram, entáo, na arca da aliaba, cuja captura

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significou que "a gloria se foi de Israel" (4.22). Mais tarde, um dos aspectos centráis do reinado de Davi é o fato de ele trazer a arca a Jerusalém (2Sm 6), onde deseja construir um templo para ela, o que acaba lhe sendo proibido (cap. 7). E o livro conclui com Davi cons-truindo um altar na eirá de Araúna (24.1825), que o leitor visado pelo autor do livro reconheceria como o lugar exato em que o templo estaría futuramente. Ligado a isso, há outro tema que é um dos aspectos centráis da narrativa — a tensáo entre monarquia e lealdade a alianca. Vocé perce-berá como essa tensáo é estabelecida perto do comeco do livro — ñas inclinacóes contrastantes de Samuel e do povo em ISamuel 8—12. A medida que a historia prossegue, o leitor é regularmente lembrado de que mesmo os reis divinamente designados podem agir, e de fato agem, como os outros reis (como se adverte em Dt 17.14-20). Mas a lealdade essencial de Davi a Javé está no cerne da historia, e Deus faz urna alianca com ele segundo a qual sua dinastia durará para sempre (2Sm 7) — urna alianca que se torna um aspecto central em boa parte do restante da historia de Deus. Observe como essa tensáo está no centro das historias contrastantes de Saúl e Davi (ISm 16—31). A questáo para o narrador, no finí, nao é se Israel tem um rei, mas que tipo de rei ele terá. Essencial aqui é se o rei seraje/ a Javé e ao mesmo tempo demonstrará o seu caráter, já que, nao obstante qualquer outra afirmacáo verdadeira sobre o rei de Israel, ele deve ser o representante terreno do próprio reinado de Javé sobre Israel. Assim, embora Saúl seja ungido por Samuel e pareca comecar bem a sua carreira, há serios defeitos no seu caráter, muiros deles sutilmente presentes já no comeco. No fim, ele é rejeitado porque pensa como qualquer outro rei — pensa estar ácima da lei e que pode agir de forma autónoma. Além disso, a tradicáo profética em Israel, representada por Samuel e Nata, serve de lembrete constante de que os reis nao eram autónomos. Israel pode, de fato, ter rejeitado a teocracia (governo direto por Deus) e escolhido a monarquia (ISm 8), mas o papel do seu rei era mediar o governo de Javé em Israel, e por-tanto de liderar o povo de Deus na obediencia a Javé.

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Urna ambivalencia parecida também permeia a historia do reinado de Davi (2Sm 5—20). O fato de os feitos regios de Davi serem meramente resumidos em 2Samuel 8, enquanto a historia do seu pecado e do mal que ele suscitou no reino é narrada em detalhes consideráveis (caps. 10—20), deveria chamar nossa atencáo! O narrador nos lem-bra de varias maneiras, portante, da genuína lealdade de Davi a Javé, das quais urna das maiores é o fato de ele estabelecer os dois grandes poemas que exprimem a devocao e a adoracáo de Davi ao Senhor (22.1—23.7) como o centro do apéndice em que se faz um resumo do todo (caps. 21—24). Porém, esse retrato do "homem de fé" (21.1517; 23.13-17) aparece no contexto do "homem de fraqueza" (24.1-17) — mas que, quando confrontado com o seu pecado, se arrepende por meio de oracao e sacrificio. Vocé também fará bem em atentar para dois aspectos de urna sub-trama de Génesis ("Orientacoes para a leitura de Génesis", p. 30) que também aparecem nessa historia: (1) o tema da mulher estéril, que dá inicio á historia de Samuel (ecoada de varias maneiras em Lucas 1) e (2) a escolha, por parte de Deus, de alguém "inferior" para cumprir os propósitos da sua alianca (Davi, o menino pastor de ovelhas). Há outra questao importante que vocé deve ter em mente na leitura de Samuel, ligada á maneira como essa narrativa se encaixa na metanarrativa geral da historia bíblica. No antigo Oriente Próximo, o rei era considerado tanto a corporificacáo do seu povo (isto é, ele ocupava a posicáo, em todo tempo, de representante do povo) quan-to o representante da divindade para o povo (cf. SI 2.7, em que o rei davídico é chamado de "Filho de Deus"). E por isso que Samuel e Reis contam a historia de Israel quase exclusivamente como a historia dos seus reis; é também o motivo de o rei falar pelo povo nos salmos. Mas isso também explica por que a monarquía era urna perspectiva táo assustadora em Israel. Ao mesmo tempo, todavía, o papel de Davi na historia bíblica é afirmado, pois no fim é o Filho mais sublime de Davi que vem como a verdadeira corporificacáo de Israel, ao mesmo tempo que, como o verdadeiro Filho de Deus, também representa Deus a Israel. É por isso que a natureza regia de Jesús tem

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

um papel táo importante na forma como o Novo Testamento conta a sua historia. UMA CAMINHADA POR 1 E 2SAMUEL A historia de Samuel (1Sm 1—7) O narrador pretende apresentar Samuel como alguém admirável, que serve como o último juiz de Israel e aquele que sucede Moisés como seu próximo grande profeta. Ele também ungirá os dois primeiros reis de Israel. □ 1 Samuel 1.1—4.1a

O nascimento e o chamado de Samuel

Observe o papel decisivo que Ana desempenha nessa historia: urna mulher estéril orando por um filho (1.1-20), dedicando-o a Deus (1.2128) e regozijando-se no Senhor (2.1-11). Observe, também, como sua oracáo prefigura pelo menos dois temas da historia — (1) Deus abencoa o fraco, em vez do forte, e (2) Deus dará forca ao seu rei. Fazse um contraste, entáo, entre as origens de Samuel e a ini-quidade dos filhos de Eli (2.12-36), a que se seguem o chamado de Samuel (3.1-18) e um sumario do seu ministerio, que conclui essa parte (3.19—4.1a). Observe como a aceitacáo de Eli do fato de Javé rejeitá-lo como sacerdote (3.18) realfa a recusa posterior de Saúl do fato de Javé rejeitá-lo como rei. □ 1 Samuel 4.1 b—7.17 A perda e a volta da arca Observe como essa secáo é dominada pela perda e retorno da gloría de Deus, associada com a arca, onde Deus "está entre os querubins" (4.4). A arca nao é um talismá para Israel usar como bem quiser (4.1b-22), mas nem tampouco devem os filisteus pensar que conquistaram o Deus de Israel (cap. 5), de modo que a arca é devolvida, ficando a meio caminho do lugar em que ficará no final (6.1—7.1). Uns vinte anos depois, Samuel conclama a nacáo ao arrependimento, o que resulta na ajuda de Deus na derrota que Israel impoe aos filisteus (7.2-13, ecos de Juízes). Observe como a secüo que conclui essa parte resume o

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ministerio de Samuel, embora haja mais coisas a dizer sobre ele (cf. o papel de iSm 15.34,35 na narrativa de Saúl).

A historia de Samuel e Saúl (1 Sm 8—15) Preste atencáo, aqui, na tensáo entre a monarquía em Israel e a lealdade á alianca; Samuel adverte sobre isso tres vezes, e o primeiro rei vem entáo representar a deslealdade a alianca.

D 1 Samuel 8.1—12.25 Saúl é ungido rei E urna boa ideia 1er essa passagem á luz de Deuteronómio 16.18— 17.20. Observe como ela inicia (8.1-3) com ecos de Deuteronómio 16.18-20 (juízes que distorcem a justica e demonstram parcialidade). O restante da secáo comeca e concluí com duas advertencias sobre os potenciáis males da monarquía, incluindo afirmacóes sobre o povo rejeitar o reinado de Javé (8.4-22 e 11.14—12.25). Essas advertencias enquadram as narrativas sobre como Saúl se tornou rei — primeiro sua uncáo por Samuel (9.1—10.8), que enfatiza o comeen humilde de Saúl, e depois sua apresentacáo ao povo e a confirmacáo do seu reinado por este (10.9—11.13), enfatizando a continuidade de Saúl com a tradicáo profética, sua natureza tímida e seu sucesso militar (a guerra santa).

□ 1 Samuel 13.1—15.35 O malogro do reinado de Saúl Aqui, todo o reinado de Saúl (13.1) é reduzido a tres incidentes que ocorreram quando ele já reinava havia um tempo considerável. As duas narrativas que enquadram a narrativa central demonstram a sua infidelidade á alianca — oferecendo seu próprio sacrificio (13.2-15) e violando as regras da alianca quanto á guerra santa (15.1-35; cf. o pecado de Acá em Js 7). A narrativa central (13.16—14.48) demonstra sua fraqueza de caráter e seu fracasso pessoal no engajamento na guerra santa. Cada um desses fatos é sintomático da sua desobediencia geral, e evidencia sua falta de fé verdadeira em Javé. Este, portanto, rejeita Saúl como o rei de Israel (o que é encapsulado em 15.22,23). Observe como, apesar de Saúl continuar vivendo até o capítulo 31, o seu reinado efetivamente termina em 15.35, quando ele é rejeitado (ainda que lamentado) por Samuel e por Javé.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

A historia de Saúl e Davi (1 Samuel 16—31) Ao ler essa parte da historia, repare em como a ascensáo de Davi ao poder, embora ele seja um fugitivo, é entremeada com o declínio de Saúl. E preciso ter em mente que o autor nao está táo interessado, no comeco, com a cronología dos eventos quanto com seu significado para a historia como um todo.

D 1 Samuel 16.1—17.58 A ascensáo de Davi Observe como a historia inicial da uncáo de Davi como rei futuro (16.1-13) concluí numa nota dupla: o Espirito de Javé vem sobre Davi (v. 13), mas se afasta de Saúl (v. 14). As primeiras duas cenas (16.14-23; 17.1-58) preparam o programa: o relacionamento positivo inicial de Davi com Saúl; o primeiro feito de Davi — um menino pastor que confia em Javé ("abatalha é do SENHOR [de Javé]", 17.47) mata o herói filisteu Golias (portanto, sucesso na guerra santa).

D 1 Samuel 18.1—31.13 Declínio e monte de Saúl Essa seqáo comeqa com urna historia que ilustra o seu tema central: a in-veja que Saúl tem de Davi e suas tentativas de matá-lo (cap. 18). Observe como o restante da secáo é dominado pela perseguicáo de Saúl a Davi, enquanto este, por sua vez, tem duas oportunidades de matar Saúl, mas nao ousa levantar a máo contra "o ungido do SENHOR" (caps. 24 e 26, que enquadram a passagem em que Abigail salva Davi da sua própria ira). Entremeados nesse tema há (1) outros relatos do declínio moral de Saúl, que no fim consulta urna médium (cap. 28), encerrando sua jornada em vergonha (cap. 31); (2) relatos da existencia de Davi como o líder de um bando de revoltosos em fuga; (3) evidencias da obediencia de Davi a Javé, e urna considerado sobre o seu caráter (p. ex., sua atitudc generosa para com Saúl e Jónatas) — observe, especialmente, como a fala de Abigail em 25.26-31 nao apenas salva Davi de um ato vingativo e erróneo mas, com efeito, permite que o narrador exprima o tema pretendido nesses capítulos; e (4) as frequentes estadas temporarias de Davi em territorio inimigo, onde Deus o protegeu de agressóes e da infidelidade á alianca em condicóes que poderiam ter produzido ambos esses resultados.

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A historia de Davi (2Samuel) Vocé perceberá que a primeira parte da historia é dominada pelo tema da lealdade de Davi á alianca, que culmina na alianca davídica; no entanto, um momento particular de infidelidade á alianca prepara grande parte das coisas que dao errado no restante da historia (le2Reis). □ 2Samuel 1.1—4.12 A historia de Davi como rei de Judá Essa secáo mostra as consequéncias da morte de Saúl; observe como ela enfatiza a nao participacáo de Davi na guerra civil que veio a seguir. Ele pranteia, portanto, Saúl e Jónatas (cap. 1). Após o relato em que Davi foi ungido rei de Judá (cap. 2), ele é notavelmente isentado de todas as tragedias que vém em seguida (caps. 3—4). Fique atento para a rixa entre norte e sul, que é novamente retomada nos capítulos 19—20 e se torna final em 1 e 2Reis. □ 2Samuel 5.1—9.13 A historia de Davi como rei sobre todo o Israel Seguindo-se á uncáo de Davi como o rei de todo o Israel (5.1-5), há urna sequéncia de quatro narrativas (5.6—7.29) que sao especialmente cruciais: (1) a conquista de Jerusalém por Davi, (2) a subjugacáo dos filisteus, (3) a mudanca da arca a Jerusalém e, ácima de tudo, (4) a alianca de Deus com Davi de que "sua dinastia e seu reino permaneceráo para sempre diante de mim"(NVi) (7.1-16), ao que Davi responde com adorafáo e gratidáo efusivas (7.18-29). A importancia das narrativas anteriores é sublinhada pela brevidade do capítulo 8, que serve para levar a conquista ao seu fim (v. Josué). Aqui,veem-se os muitos anos de Davi como rei condensados em dois breves resumos. E, como o interesse principal do narrador nao está nos feitos regios de Davi, mas no seu caráter, ele concluí com outra narrativa sobre a bondade de Davi para com a casa de Saúl (cap. 9), em que os "aleijados" adentram o palacio — apesar do ditado em 5.8! Mas observe como essa cena forma um contraste com a historia triste que vem em seguida.

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COMO LERA BIBLIA LIVRO POR LIVRO

D 2Samuel 10.1—20.26 O pecado de Davi e suas consequéncias Observe agora como o pecado de Davi contra Bate-Seba e Urias é contado em detalhes. Ele é narrado no capítulo 10, recontado no 11 e condenado no 12. E observe a ironia no capítulo 11 — o fiel estrangeiro Urias honra um rei israelita infiel; o estrangeiro se mantém sexualmente puro durante a guerra, enquanto o rei tem um caso com a mulher dele; o rei, que nao guerreou pessoalmente, envia o soldado fiel á própria morte na batalha. O rei é retratado ao longo de toda a narrativa como alguém que deve prestar contas a Deus pelos seus atos (observe o quanto o capítulo 12 é crucial para a visáo de Israel sobre a condicáo de rei), mas, em contraste com Saúl, Davi se arrcpende — e se enche de remorso, entáo, pela crianca que está morrendo, resultado do seu pecado. Esse evento desencadeia o restante da historia (caps. 13—20) de duas maneiras. Primeiro, repare como a sexualidade expressa de forma ilícita, o assassinato e a intriga sao multiplicados na familia de Davi, cumprindo a predicáo de Nata (12.10-12). Há, sucessivamente, estupro, fratricidio, traicáo, rebeliao, rapto das concubinas de Davi e guerra civil, e as friccoes entre norte e sul retratadas em 19.8b—20.26 prenuncian! o abismo intransponível relatado em lReis 12. E, em segundo lugar, observe como toda essa serie de eventos está ligada á questáo mais tarde suscitada por Bate-Seba em lReis 1.20: "quem se assentará no teu trono depois de ti[?]". □ 2Samuel 21.1—24.25 Reflexóes fináis sobre Davi e seu reino Repare como o narrador também resume a historia de Davi, como fez com Samuel e Saúl, antes de ela realmente concluir (cf. lSm 7.15-17; 15.34,35). Mas nesse caso trata-se da organizacáo deliberada (num padráo concéntrico, nao cronológico) de duas narrativas, dois relatos dos poderosos guerreiros de Davi e dois poemas. Estes últimos (2Sm 22.1-51 [urna versáo de SI 18] e 23.1-7) relembram, primeiro, os poderosos atos de Deus em favor de Davi e por meio dele e, depois, a promessa de Deus associada á alianca de um trono perpetuo. Observe especialmente como ambos os poemas, do comeco ao fim, atribuem

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a gloria a Deus. Se Davi é "a lámpada de Israel" (21.17), é Deus quem, na verdade, é a lámpada de Davi (22.29). O quadro interior dessas afirmacoes compreende dois relatos dos guerreiros poderosos de Davi (21.15-22; 23.8-39), lembrando o leitor do papel de Deus tanto na batalha quanto nos momentos em que se testemunham a humanidade e a vulnerabilidade de Davi. Significativamente, as historias de fome e praga (3 anos/3 dias) que enquadram o todo (21.1-14; 24.1-25) concluem com obediencia e sacrificio. Observe mais urna vez a ironia: seguindo-se aos dois poemas e á lista dos homens poderosos de Davi, 2Samuel conclui com a historia de Davi contando os seus homens que podem lutar, violando dessa forma a lei da guerra santa, visando comecar os preparativos para conquistas adicionáis e para estabelecer a sua própria importancia (24.1-17). Ao mesmo tempo, o sacrificio no local do futuro templo (24.18-25) abre caminho para 1 e 2Reis.

Com o livro de Samuel, a historia de Deus avanca para a monarquía, em especial por meio da historia do rei Davi, um homem de fé, ainda que um homem com flaquezas. A alianca de Deus com Davi é a base para o messianismo judaico, que é finalmente realizado no mais sublime Filho de Davi, Jesús de Nazaré.

1 e 2Reis

INFORMAgÓES BÁSICAS SOBRE 1 E 2REIS ■ Conteúdo: comecando com o reino de Salomáo, a historia do declínio e posterior dissolucáo da monarquia em Israel e da expulsao do povo de Deus dessa térra ■ Abrangéncia histórica: da morte de Davi (970 a.C.) até o Exilio de Judá no século sexto (586 a.C.) ■ Énfases: urna avaliacáo da monarquia com base na lealdade á alianca; as serias consequéncias nacionais da deslealdade a Javé, resultando finalmente na expulsao da térra; o cisma e as guerras civis entre norte e sul; a ascensao de potencias que, sob a direcáo de Deus, subjugaram Israel e Judá; o papel dos profetas que falam em nome de Deus na vida nacional de Israel

VISÁO GERAL DE 1 E 2REIS Assim como no caso de Samuel, o livro de Reis foi dividido em dois rolos. O título conta a historia do seu conteúdo, mas também é importante lembrar que, na Biblia hebraica, o livro de Reis conclui os Profetas Anteriores como urna descricáo do veredicto de julgamento, por parte de Deus, sobre a historia de Israel. E nao há como nao perceber a importancia do papel que os profetas desempenham nesse livro.

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O livro de Reis compreende a parte da historia da monarquía que vai de Salomao, passa pela sua divisáo subsequente em dois reinos e concluí com o fim do Reino do Norte (Israel) e o exilio do último rei do sul (Judá). Isso praticamente descreve, também, as "partes" em que ele se divide: IReis 1—11 fornece um relato resumido do reinado de Salomao. Quatro coisas sao importantes para o narrador: (1) a forma como Salomao subiu ao trono, (2) o renome que sua sabedoria lhe deu, (3) a construcáo do templo e do seu palacio e (4) o seu fim e os motivos deste. Os acontecimentos envolvendo o cisma sao narrados em IReis 12—14. Crucial aqui é o reinado de Jeroboáo i, que declara, ecoando Aráo e o bezerro de ouro, que seus bezerros de ouro em Dá e em Betel sao "teus deuses que te tiraram da térra do Egito" (12.28; Ex 32.4). A isso seguem-se, entáo, relatos alternados sobre os reis do norte e do sul, a medida que seus reinos se interseccionam (IRs 15—2Rs 17), os reis do norte sendo julgados por Deus, um de cada vez, como "andando nos caminhos de seu pal [Jeroboáo] e no [seu] pecado" (p. ex., IRs 15.26,34). A narrativa aqui é dominada pela atividade profética no norte, especialmente de Elias e Eliseu (IRs 17—2Rs 13), até a captura e destruicáo de Samaría, a capital do norte. O restante do livro (2Rs 18—25) conta a historia de mais 150 anos de reis em Judá, até a queda de Jerusalém em 587/6 a.C. Mais de metade dessa última secáo se concentra em dois reis notavelmente bons (Ezequias, caps. 18—20; Josias, caps. 22—23), e incluí a atividade profética de Isaías (caps. 19—20).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE 1 E 2REIS Embora a historia seja sempre escrita de determinado ponto de vista, nem todos os historiadores revelam sua perspectiva com a clareza desse narrador (observe seu próprio resumo da historia após a queda de Samaría, 2Rs 17.7-23). A perspectiva deuteronomica da historia de Israel, que comecou em Josué, é especialmente evidente na sua forma de contar a historia, tanto pelos ecos nítidos de temas deu-teronómicos como pela forma como a narrativa é estruturada. Nao surpreende, portante — já que todos os reis do norte e a maior parte

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dos reis do sul demonstraram infidelidade —, que a historia tenha distintos ecos de Juízes e da sua narrativa de um declínio geral, a medida que as maldicóes prometidas em Deuteronómio 28.15-68 chegam á sua inevitável realizacáo. Tudo se resume, essencialmente, a se determinado rei foi leal ou nao a alianca com Javé. Em Reis, isso é exprimido em termos deu-teronómicos — a atitude do rei em relacáo ao santuario central (o templo em Jerusalém) e se ele favoreceu ou nao o sincretismo (p. ex., os bezerros de ouro de Jeroboáo; v. 2Rs 17.41) ou a própria adoracáo exclusiva a deuses rivais, especialmente a adoracáo cananeia a Baal (observe como essas distincóes sao pressupostas em IRs 16.31,32 e 2Rs 10.28,29). Esse "programa" é estabelecido pela narrativa de Salomáo, cujo longo e próspero reinado é finalmente reduzido a duas questóes. Seu feito significativo é a construido do templo em Jerusalém, que é preenchido pela gloria de Deus (a presenca de Deus, IRs 8.10,11), precisamente como aconteceu com o tabernáculo em Éxodo 40.34,35. Mas ele é julgado, no fim, por seguir o caminho de todos os reis (v. Dt 17.16,17; lSm 8.11-18) e promover a idolatría por meio das suas muitas mulheres estrangeiras (IRs 11.1-13). Esses dois itens aparecem lado a lado em IReis 8— 9 — na oracáo de Salomáo e na resposta de Javé. A primeira enfatiza a importancia do templo em relacáo á lealdade de Israel a Javé, e a segunda repete as bencenos e as maldicóes deuteronómicas, delineando especialmente a natureza destas: "extcrminarei Israel da térra que lhe dei" (9.7, grifo do autor), "[porque] abandonaram o SENHOR [Javé], seu Deus [...] e se ape-garam a deuses estranhos" (v. 9). Para o narrador, isso prenuncia a historia que ele entáo passa a contar. Essa perspectiva das coisas também é acentuada por varias questóes estruturais. Em primeiro lugar, todos os reis sao inseridos na historia por meio de urna fórmula regia comum: 1. quando um rei passava a reinar (em Israel ou Judá) em relacáo a outro rei 2. por quanto tempo reinou e em que capital 3. (para os reis de Judá) o nome de sua máe

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4. sua política religiosa: para os reis do norte, isso assume consistentemente a forma de seguir "os pecados de Jeroboáo, filho de Nebate"; para Judá, a questáo era se o rei seguia a Javé e se ele tinha ou nao removido "os altares das colinas" 5. frequentemente, fonte de informacóes sobre o rei 6. no fim, informacóes sobre sua morte/sepultamento e quem o sucedeu Os itens 4 e 5 sao especialmente reveladores. O item 4 é a única base pela qual o rei é julgado — nao importa por quanto tempo ele te-nha reinado ou quais seus outros feitos ou realizacoes possam ter sido; o item 5, portante, diz ao leitor onde outros tipos de material sobre os reis podem ser encontrados, por exemplo, "no livro das crónicas dos reis de" etc. A segunda questao estrutural pode ser especialmente penosa para quem talvez prefira um tipo diferente de relato histórico. Sobre muitos dos reis nao se diz quase nada além do que revela a fórmula regia comuna. E o que se narra sobre os reis que recebem maior atencao, fora os relatos sobre guerras civis, diz respeito, quase exclusivamente, á sua lealdade ou deslealdade a Javé. Isso resulta em grandes e deliberadas desproporcóes: a narracáo dos reinados de Jeroboáo n de Israel (41 anos em Samaría) e de Azarias (Uzias) de Judá (52 anos em Jerusalém), que ocorrem mais ou menos na mesma época, resume-se a meros sete versículos para cada reinado (2Rs 14.23-29; 15.1-7), enquanto o reí-nado de 22 anos de Acabe e o reinado de 29 anos de Ezequias abran-gem cada um varios capítulos. Em terceiro lugar, isso também explica o espaco desproporciona! dado aos profetas Elias e Eliseu. Eles se tornam os agentes de Deus na guerra santa, mas agora contra os próprios reis do norte e a baalista Jezabel, nascida em térra estrangeira. Por meio deles, Deus mostra que ele continua sendo Senhor sobre toda a térra (criacáo, natureza; as nacóes; Israel). E, assim, o ciclo deuteronómico leva a historia a um fim cataclísmico no norte; a mesma coisa acaba acontecendo no sul no Exilio anunciado.

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Finalmente, observe que, em contraste com o livro de Samuel, essa historia é contada no devido tempo no contexto das grandes potencias que emergiram — a Assíria, e depois a Babilonia e o Egito. Eles se tornam o instrumento do juízo de Deus, que expulsam o seu povo da térra, mas o fazem porque Javé é o Deus das nacóes, e as levou a ter esse poder exatamente com esse propósito (Dt 28.49-52).

UMA CAMINHADA POR 1 E 2REIS D 1Reis 1.1—2.46 Salomeo se torna reí Essa seqáo inicial fala da sucessao de Davi por Salomáo (1.1-53) e das instrucóes de Davi a Salomáo (2.1-12), a que se segué, entáo, a consolidacáo da sua posicáo por Salomáo ao se livrar de Adonias e seus conspiradores cúmplices, Joabe e Abiatar (2.13-46). Observe a questáo sobre a sucessao que está sendo respondida (1.20): Como pode Davi ter sido sucedido por Salomáo, que nao era o primeiro na linha sucessória (1.6; 2.22; cf. as narrativas de Gn 12—50)? A resposta está num juramento feito a Bate-Seba. Observe, também, como a se-cáo concluí em IReis 2.46 ("Assim foi confirmado o reino na máo de Salomáo"), que prepara o que vem em seguida.

D 1 Reis 3.1—11.43

O reinado de Salomáo

Vocé deve atentar para duas coisas importantes nessa narrativa: (1) o narrador indica que (a) com o reinado de Salomáo, a promessa a Abraáo de um vasto aumento populacional foi realizada (4.20; v. Gn 22.17; 32.12), e (b) com a construcáo do templo, o Éxodo agora está completo, pois agora Javé tem a sua morada permanente em Jerusalém (IRs 6.1). Portanto, (2) a parte central dessa secáo é a narrativa do templo (5.1—9.9), que é relatada em certo grau de detalhes, enquanto os muitos e longos anos do reinado de Salomáo sao meramente resumidos antes e depois déla. De fato, a leitura atenta dessa passagem deixa claro que a relacáo de Salomáo com o templo é a única coisa que o "salva", por assim dizer. Fora isso, o narrador demonstra urna atitude bastante ambivalente em relacáo a Salomáo. Na sua leitura, observe, por exemplo, quanto de 3.1—4.34 e 9.10—11.43 realiza a profecia de Samuel (lSm 8.11-18).

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O narrador reconhece que a sabedoria e o esplendor de Salomáo sao dons de Deus e, na esséncia de rudo, há o fato de que Salomáo é filho de Davi (IRs 3.3,7,14; 8.15-26; 9.4,5). Mas ele sabe, também, que as sementes do declínio e cisma futuros estáo sendo plantadas (tributos elevados e trabalho escravo, 4.27,28; 5.13-18; cf. 12.4; observe o contraste com a reparacáo do templo por Joás, 2Rs 12.4-16 [ofertas livres e trabalhadores pagos!]). O juízo de Deus sobre Salomáo dá o tom do resto da historia ("nao guardaste a minha alianca e os meus estatutos que te ordenei", IRs 11.11,33). Portanto, apesar da grandeza, sabedoria e esplendor de Salomáo, e da construcáo do templo, e apesar do fato de que Deus apareceu a ele duas vezes (11.9; cf. 3.5-15; 9.2-9), no fim Salomáo abandonou a Deus para adorar ídolos (11.1-10), e assim dividiu a na9áo em duas, suscitando a ira de Deus (11.11-40).

D 1 Reis 12.1—16.20

O reino se divide (931-885 a.C.)

Os capítulos 12—14 descrevem a dissolu9áo da na9áo em duas: Israel, politicamente instável c religiosamente rebelde (dez tribos no norte), e Judá, relativamente mais estável e ortodoxa (incluindo-se, as vezes, Benjamim, 12.20-23). Repare em quatro énfases: (1) o papel dominante dos profetas, que tanto revelam os planos de Deus como cha-mam os reis do norte a prestar contas (12.22-24; 13.1-4; 14.1-18; 16.1-4; cf. 11.29-39); (2) a guerra civil que opóe o norte ao sul, com aliabas estrangeiras (15.6,7,16-22); (3) o compromisso de Deus com Judá por causa de Davi (14.8; 15.4,5,11; observe especialmente o eco de 2Sm 21.17 de que Davi é "a lámpada de Israel"; cf. 2Rs 8.19); (4) a "sucessáo" no norte ocorre por meio de traÍ9óes e jogos de poder (IRs 16.9-13), nao pela vontade de Deus. A historia de Jeroboáo i é especialmente importante para o restante da narrativa. Veja como o narrador conta a historia de Jeroboáo em duas partes: seu conreo ecoa o de Moisés (escolhido por Deus, ele deixa o Egito para libertar um povo que trabalha sob "pesado jugo"; 12.1-4; cf. Ex 6.6,7), mas no fim ele se assemelha a Aráo (Ex 32), produzindo bezerros de ouro e repetindo suas próprias palavras: "aqui estáo teus deuses que te tiraram da térra do Egito" (IRs 12.28). Essa repetÍ9áo da rebeliáo no Sinai caracteriza todos os demais reis

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de Israel, que andavam "nos caminhos de seu pai [Jeroboáo]" (p. ex., 15.26,34). É importante ressaltar que isso é urna forma de sincretismo (adoracao a Javé na forma de urna deidade egipcia), nao baalismo, como 2Reis 10.28,29 e 17.41 deixam claro. n 1 Reís 16.21—2Reis

70.36 O reino dividido: a dinastía de Onri (885-841 a.C.)

Com Onri, corneja outra dinastia que nem descende de Davi nem adora em Jerusalém. O filho de Onri, Acabe, supera o próprio Jeroboáo no seu pecado, casando-se com urna adoradora de Baal, acrescentando assim a adoracao desse deus ao culto dos bezerros de ouro. Observe como isso causa a guerra santa, em que o profeta Elias luta por Javé contra os profetas de Baal. Observe também que apesar de todos os seus pecados, é quando Acabe toma a vinha de Nabote por meio de traicáo e assassinato (violando assim a lei da alianca de varias maneiras; cf. Dt 19.14) que o julgamento de Deus vem sobre ele e Jezabel (IRs 21.17-24). E ainda que o próprio Acabe morra segundo o juízo profético (22.37,38), esperamos até 2Reis 9—10 para que o restante da profecia seja cumprida contra Jezabel e contra a casa de Acabe. O juízo, assim, fica em suspenso enquanto Eliseu sucede a Elias e realiza milagres semelhantes aos deste, e Acabe é sucedido por dois de seus filhos. A execucáo é realizada por um zeloso (porém sanguinario) javistajeú, que destrói a adoracao a Baal, mas nao destrói os bezerros de ouro em Da e Betel. Tenha em mente também, na leitura dessa secáo, que as pressoes externas por enquanto vém apenas de reinos vizinhos locáis (AráVDamasco), mas tudo isso mudará na secáo seguinte, quando a potencia da Assíria corneja a figurar no horizonte (2Rs 15.19). Observe, por último, como essa parte da historia se concentra no que se passa em Israel; as excecoes tratando de Judá consistem em breves resumos sobre Josafá (IRs 22.41-50, um rei "bom") e sobre Jeoráo e Acazias (2Rs 8.16-29), reis perversos que seguiram o caminho dos reis de Israel. A intriga dessas historias é que Joráo se associa por casamento com a casa de Onri; Atarla, filha de Acabe e Jezabel, acaba se saindo igual á máe, e quase consegue exterminar a dinastia davídica (2Rs 11).

1 E 2REIS

I 2Reis 11.1—17.41

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O reino dividido: de Jeú até a queda de Samaría (841-722 a.C.)

A partir daqui, a historia comeca a se concentrar novamente nos reis de Judá. Observe como os reis de Israel sao meramente resumidos, urna historia de infidelidade a alianca seguindo-se a outra, até a derrota de Samaria e a anexacáo de Israel ao Imperio Assírio. Observe como o resumo do autor em 17.7-23 conta a historia da forma que ele espera que vocé a leia. A reocupacáo da térra por parte da Assíria (v. 24-41) póe em movimento as muitas dificuldades que serao enfrentadas em Esdras e Neemias — incluindo habitantes do norte de etnia mista, que vocé encontrará novamente sob o nome de samaritanos nos Evangelhos do Novo Testamento. Tres reis de Judá figuram nessa secáo, sublinhando questóes vistas antes nessa narrativa. A historia de Joás (caps. 11—12) é importante por duas razoes: (1) ele representa o compromisso de Deus de manter "a lampada de Davi" (8.19); tendo sido protegido pela tia, ele é proclamado rei, enquanto a usurpadora Atalia, de Samaria, exclama ter havido "Traicáo!", mas é morta (11.14-16). (2) Ele reforma o templo — e faz isso com as ofertas livres do povo (12.4,5)! Amazias (14.1-22), outro rei "bom", continua a política do seu pai Joás, mas quanto a ele, notase sobretudo a guerra civil com o norte a que deu continuidade. E obviamente nao vai tudo bem em Jerusalém, visto que tanto ele como o pai sao assassinados por oficiáis anónimos. Acaz (cap. 16), diferentemente de seu pai Davi, "nao fez o que era correto diante do SENHOR seu Deus". Ele é lembrado principalmente por levar Judá para debaixo da influencia assíria e, em contraste com Joás, que reformou o templo, por reconfigurar o templo com base em influencias estrangeiras.

D 2Reis 18.1—25.30 Os anos fináis de Judá: o Exilio babilónico (722-560 a.C.) Em contraste com a historia de Israel, em que a narrativa se concentra nos atos sórdidos dos seus piores reis (julgados segundo o criterio deuteronómico), a historia de Judá tende a se concentrar nos reis bons. Observe como isso ocorre especialmente no episodio final, em que

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apenas dois reis, Ezequias (caps. 18—20) e Josias (caps. 22—23), fazem o que é certo aos olhos de Javé. E, mais urna vez, eles sao julgados com base na lealdade á aliaba (18.5,6; 22.11; 23.1-3). No caso de Ezequias, sua lealdade a Javé é o motivo para ele escapar da conquista assíria, mas alguns dos seus atos na verdade prognosticam o Exilio babilónico (20.12-21). E apesar das reformas de Josias e da sua devo9áo a Javé, a sorte foi lacada pelo reino idólatra de Manassés (23.24-27), de modo que a historia a partir desse ponto ruma inexoravelmente para o Exilio. O livro de Reis concluí com Judá no Exilio, mas a soltura de Joaquim apresenta ao leitor um raio de esperaba quanto a "lámpada de Davi", mesmo no final.

O livro de Reis pretende, no fundo, responder a seguinte pergunta: "A luz da aliaba de Deus com Abraáo [a térra] e com Davi [um trono perpetuo], como tudo isso aconteceu para nos?". E a resposta é: Deus nao falhou em rela9áo ao seu povo; foi o povo, guiado pelos seus reis, que falhou em rekcáo a Deus. A fidelidade de Israel, afinal, é urna contingencia que está escrita ñas próprias aliabas. Mas a aliaba também promete a volta do Exilio para aqueles que voltarem a Javé (Dt 30.1-10).

1 e 2Crónicas

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE 1 E 2CRONICAS ■ Conteúdo: urna historia pós-exílica e positiva dos reis de Judá, com énfase no templo e na sua adoracáo ■ Abrangéncia histórica: urna genealogía inicial que remonta a Adáo; a narrativa em si compreende o reino de Judá de Davi (c. 1000 a.C.) até o decreto de Ciro (539/8 a.C.) ■ Enfases: a continuidade do povo de Judá (e outros) durante o Exilio e além dele; a lealdade á alianca demonstrada por Davi e Salomáo como modelo para o tempo da restauracáo; o papel central do templo e da adoracáo para a restaurado; a verdadeira adoracáo como vinda do coracáo e transbordando de alegria e cancáo; a béncáo divina e o descanso como resultados da obediencia, e a retribuicáo divina pela desobediencia

VISÁO GERAL DE 1 E 2CRÓNICAS O livro de Crónicas é o último livro da Biblia hebraica, ocupando o final dos Escritos. Seu lugar atual na Biblia e sua divisáo em dois livros vém da Biblia grega, que pos o livro (de forma perceptiva) após Reis e antes de Esdras-Neemias. Usando Samuel e Reis como sua narrativa básica, o Cronista acrescenta outros materiais — genealogías, listas, salmos, discursos — para apresentar a historia continua

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de Israel (esp. Judá), desde Adáo até o decreto de Ciro, que encerrou oficialmente o Exilio. A historia em si se divide em tres partes. Comeca com as famosas genealogías (lCr 1—9), que fizeram do livro um dos mais negligencia-dos do Antigo Testamento. O fato crucial aqui é que o Cronista fez a linhagem de descendencia remontar bem até o comeco, ao próprio Adáo, e depois se concentrou, finalmente, em Judá e nos levitas (que sao o interesse da sua narrativa). A Parte 2 (lCr 10—2Cr 9) conta a historia da monarquía unida sob Davi e Salomáo, urna secáo algumas páginas mais longa do que todo o restante da historia, que vai de Roboáo até o fim do Exilio. Concentrando-se apenas na dimensáo positiva da vida deles, o autor também justapoe deliberadamente as suas historias. Desse modo, lCrónicas 10—21 conta a historia de Davi apenas, lCrónicas 22—29 introduz Salomáo na historia de Davi, a quem Davi prepara para a construcáo do templo, e 2Crónicas 1—9 retoma, entáo, a historia de Salomáo, que constrói o templo. O templo e a devida adoracáo sao o foco evidente dessa secáo. Mais da metade da historia de Davi trata dos preparativos (lCr 22—26; 28—29), e mais de dois tercos da historia de Salomáo tratam da sua construqáo e dedicacáo (2Cr 2—7). Esses mesmos assuntos de destaque continuam na parte 3 (2Cr 10—36), que relata a historia de Judá (somente) durante o período da monarquía dividida. Mas aqui vocé também notará um pa-dráo adicional: o éxito na batalha e a prosperidade material estáo diretamente ligados a obediencia a Javé, enquanto o fracasso se deve á infidelidade ou á falta de fé. A historia inclui o Exilio, concluindo com o edito de Ciro, rei da Pérsia, que, em cumprimento a profecia de Jeremías, foi "encarregado" por Javé "de lhe construir um templo em Jerusalém", e portanto convida o povo a subir até lá (2Cr 36.22,23).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE 1 E 2CRÓNICAS Para urna leitura proveitosa de Crónicas, é bom ter alguma compreen-sáo da época em que o Cronista escreveu. Foi urna era de restauracáo, um período que comecou tímidamente no fim do século sexto a.C. com o projeto repetidamente adiado, mas finalmente completado, da

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constru9áo do templo (v. "Orienta9Óes para a leitura de Ageu", p. 300; "Zacarías", p. 304; Esdras 1—6, p. 129), que só engrenou de verdade com as reformas sistemáticas de Esdras e Neemias em meados do século quinto. O Cronista, ao que tudo indica, escreveu nesse período — um tempo de crise de identidade na provincia persa de Judá. Até entáo, a restaura9áo estava muito longe do glorioso "segundo éxodo" vislumbrado por Isaías (p. ex., Is 35.1-10; 40.1-11; 44.1-5). Ciro, técnicamente, havia inaugurado a nova era, que incluiu a reconstru9áo simbólica inicial de Jerusalém e do templo (Is 44.28—45.5,13). Mas na verdade só um punhado de judeus, relativamente falando, tinha voltado á "térra prometida", e o segundo templo nao tinha nem a grandiosidade do templo de Salomáo (Ag 2.3) nem havia, tampou-co, atingido ainda a sua prometida gloria (Ag 2.6-9) — enquanto Jerusalém em si estava numa situa9áo de decadencia geral, com poucos habitantes (Ne 1; 11). Instaurou-se, portanto, um período de declínio espiritual generalizado, que incluiu, de forma crescente, um bom número de casamentes mistos (Ed 9—10, urna forma segura de se perder a identidade nacional). É nesse contexto, entáo, que entram Ageu e Zacarías para incitar o trabalho de um sacerdote (Josué) e de um governador (Zorobabel). Urna gera9áo depois, foram um sacerdote (Esdras) e um governador (Neemias) que se apresentaram pessoalmente com um movimento de reforma — e com melhores resultados. No mesmo contexto geral também entra o Cronista, recontando de forma brilhante a historia de Judá, pretendendo assim dar á gera9§o presente um senso de continui-dade com seu grande passado, e concentrar-se no templo e na sua ado-ra9áo como o lugar em que a continuidade poderia agora ser mantida. Na sua leitura, vocé perceberá que varias énfases sobressaem: o interesse do Cronista está todo na dinastía davídica, e no Reino do Norte apenas na medida em que ele tem aliaba com Judá. Quanto a Judá, seu interesse se concentra em duas questoes: a dinastía davídica (Davi e Salomáo) e o templo em Jerusalém. Quanto a este, o autor se concentra inteiramente na natureza e na pureza da adora9áo (mais de 60% da historia). Combinem-se essas énfases com o fato de que o livro concluí com o edito de Ciro para que o templo seja reconstruido,

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e dá para ver onde, segundo o autor, está a esperanca para o futuro: em se fazer tudo direito, dessa vez, em relacáo ao templo. Mas fazer as coisas direito, para o Cronista, nao é urna questáo de mero ritual. Atente para suas énfases repetidas na necessidade de se dispor "o coracáo e a alma para buscardes ao SENHOR [Javé], vosso Deus" (lCr 22.19; cf. 29.17; 2Cr 6.38; 7.10; 15.12), bem como um chamado a "cantarem com alegría" (lCr 15.16), em que aparece a én-fase nos levitas. Há no livro urna linguagem abundante de adoracáo, acoes de gracas e alegría na bondade e no amor de Deus. Observe especialmente a expressáo, repetida tres vezes, "ele é bom [...]; o seu amor dura para sempre"— (1) quando a arca é trazida a Jerusalém, e entáo (2) ao templo, e (3) quando o templo é consagrado (lCr 16.34; 2Cr 5.13; 7.3). A presen£a de Deus (o Deus do Éxodo) é, assim, renovada em Israel. O foco do Cronista no Reino do Sul, contudo, nao se opoe ao Reino do Norte como tal; antes, ele conta a historia do norte apenas em termos da sua falha por nao adorar no lugar em que Deus cscolheu, ou seja, o templo em Jerusalém. Por exemplo, ele usa regularmente a expressáo "todo o Israel", querendo dizer norte e sul juntos em lealda-de a adoracáo no templo em Jerusalém. Quanto a isso, vocé verá como esses dois temas principáis (a autenticidade da dinastia davídica e o templo em Jerusalém) se fundem no discurso de Abias em 2Crónicas 13.4-12 como o verdadeiro ponto da condenacáo de Jeroboáo e seus sucessores. Observe, além disso, o convite de Ezequias — e a aceitacáo por parte de alguns — ao norte (que agora nao atua mais como nacáo) para se unir mais urna vez á adoracáo em Jerusalém, após ele ter purificado o templo (2Cr 30.1—31.1). E nesse sentido também que vocé deve entender a apresenta9áo de Davi e Salomáo pelo Cronista. O que para alguns pode parecer urna narrativa omissa quanto as falhas deles é mais bem entendido como a concenmupáo do autor apenas na dimensáo das suas historias que serve como ideal tanto para o povo como um todo (quando este nao tem mais rei) quanto para as énfases apropriadas conforme eles vivem vislumbrando o futuro (a devida adora9áo no templo). O Cronista sabe que os leitores conhecem bem os defeitos desses reis (v. Ne 13.26).

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Mas ele está interessado em como suas realizacóes positivas podem inspirar esperanca para um novo dia. E assim que vocé também deve entender as énfases na narrativa do reino dividido — que Deus abencoa os que obedecem e pune os que nao o fazem. Embora a vida nao seja exatamente táo simples, o Cronista sabe que esse é um padráo bíblico estabelecido desde o principio. E, portanto, ele reconta a historia para encorajar tal lealdade mima nova geracáo que vive em Jerusalém e ao seu redor (lCr 9). Finalmente, vocé também deve observar o interesse do Cronista no papel das "nacóes". Em meio á presente sensacáo de insignificancia dos leitores, ele os lembra de que nao só as nacoes estáo, no fundo, sob o controle de Javé (p. ex., Sisaque, rei do Egito, 2Cr 12.5-9; Ciro, rei da Pérsia, 2Cr 36.22,23), mas ao inserir o salmo 105 no meio da narrativa de Davi (lCr 16.8-36), ele enfatiza que é a bondade de Deus para com Israel que tornará Javé conhecido entre as nacóes (lembre-se da béncáo de Abraáo, Gn 12.3).

UMA CAMINHADA POR 1 E 2CRÓNICAS D 1 Crónicas 1—9 As genealogías Há varias coisas importantes para observar durante a leitura dessas genealogías. Em primeiro lugar, o fato de o Cronista comecar sua narrativa com elas diz algo sobre o que ele deseja que a comunidade pós-exílica entenda: que ela tem urna continuidade com um passado divinamente ordenado, que remonta em última análise a própria criacao do mundo. Em segundo lugar, repare que tanto o foco do narrador quanto o espaco maior na narrativa sao dedicados as tribos de Judá, Benjamim e Levi. Essas sao as tribos sobreviventes do Reino do Sul que também representam, respectivamente, a dinastía davídica, Jerusalém e a adoracáo adequada no templo; elas também lideraram o primeiro retorno da Babilonia (Ed 1.5). Assim, a primeira serie de genealogías (1.1—4.23) passa pelos filhos de Israel (2.1,2) para só entáo se concentrar primariamente em Judá (2.3—4.23), com a dinastía davídica como elemento central (3.1-16) e incluindo a linhagem real após o Exilio (3.17-24) — a época do nosso autor.

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Observe como as genealogías das demais tribos (4.24—7.40) tém, entáo, os levitas como seu elemento central (cap. 6), com énfase especial nos músicos do templo (v. 31-47). Finalmente, a genealogía de Benjamim é ampliada no capítulo 8 (v. 7.6-12). O capítulo 9 nao é urna genealogía, mas urna lista dos exilados babilónicos que haviam retornado, com énfase especial nos levitas que ministraram no templo. Observe que em 9.35-44, a última parte da genealogía benjamita (8.29-38) é repetida para apresentar Saúl no inicio da narrativa em si.

D 1 Crónicas 10—21

A monarquía unida: a historia de Da vi

Atente para os interesses do Cronista conforme eles emergem nes-sa secao, observando sua organizacáo e énfases. Ele conrea (cap. 10) com a morte do rei fracassado (Saúl) para apresentar o grande rei (Davi) como contraste. Entáo, nos capítulos 11—12, ele seleciona e organiza varios materiais de 2Samuel (5.1-3,6-10; 23.8-39) e de ou-tras fontes para enfatizar que "todo o Israel" se uniu para tornar Davi rei (lCr 11.1,4,10; 12.38). A secao seguinte (caps. 13—16) conta a historia de como a "arca da alianca do SENHOR [Javé]" (15.25) foi trazida a Jerusalém. Observe (1) como isso dá prosseguimento ao tema de "todo o Israel" (13.1-4); depois disso, o autor expande consideravelmente 2Samuel 6, separando as suas duas fases (lCr 13.1-14; 15.1—16.6) de modo que, em contraste com a morte de Uzá, ele possa se concentrar especialmente no papel dos levitas com suas canfoes de alegría (15.2-24); (2) como ela atinge o climax numa maravilhosa colagem de porcóes de tres salmos (lCr 16.8-36 = SI 105.1-15; 96.1-13; 106.1,47,48), exaltando a grandeza de Deus em toda a térra e sobre as nacoes, e especialmente sua bondade para com o seu povo; e (3) como o salmo concluí com um clamor a Deus: "livra-nos das nacóes" (lCr 16.35,36), a que o povo respondeu com "Amém!" e depois "louvou ao SENHOR" (refletindo as-sim a situacáo do próprio autor). Depois disso vem a alianca davídica (cap. 17), com sua énfase agora em Salomáo como aquele que edificará a "casa" de Deus, a que se segué

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por sua vez (caps. 18—21) urna colagem de 2Samuel 8—21 tratando das guerras de Davi. Vocé fará bem em atentar especialmente para dois pontos aqui: (1) essa secáo pretende explicar por que Davi nao podia construir o templo — ele era um homem de guerra (lCr 22.8), enquanto seu filho, Salomáo (cujo nome significa "paz") é um "homem pacífico" (v. 9), e (2) ela concluí com a única historia negativa sobre Davi (21.1—22.1), que é necessário relatar porque a eirá de Orna [Araúna, em outras versoes] que Davi recusa como presente, mas que em vez disso compra, é onde será construido o templo (22.1).

□ 1 Crónicas 22—29 A monarquía unida: Davi e Salomáo O material dessa secáo trata do que é essencial para a transicáo entre Davi e Salomáo. Observe como os temas que o Cronista tem em mente sao ressaltados pela sua própria estrutura. A secáo central, mais extensa (caps. 23—27), fala da preparacáo dos levitas por Davi para a adoracáo no templo. Ela é enquadrada por tres discursos de Davi (caps. 22; 28; 29), que tratam da esséncia dos temas visados pelo autor aqui. O primeiro discurso (22.5—16) se dirige ao próprio Salomáo e repete a esséncia da alianca davídica (17.10b-14), concentrando--se especialmente no seu chamado para edificar o templo; o segundo (28.2-10) repete a esséncia disso a todos os oficiáis de Israel; enquanto o terceiro (29.15) os conclama a seguir o exemplo de Davi de doacóes generosas para o projeto. A secáo concluí entáo com béncáo e acóes de gracas da parte de Davi (v. 10-19). O propósito geral, portanto, é (1) designar Salomáo como o construtor divinamente escolhido do templo e (2) garantir o apoio de "todo o Israel" para o seu reinado e para a edificacáo do templo. A secáo conclui, portanto, com o reco-nhecimento de Salomáo como rei por todo o Israel (v. 2125) e com a morte de Davi (v. 26-30).

D 2Crónicas 1—9 A monarquía unida: a historia de Salomáo Observe duas coisas em particular na leitura dessa secáo. Em primeiro lugar, toda a ambiguidade em relacáo a Salomáo vista em 2Reis foi removida, já que ele serve para o nosso autor como o exemplo principal

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de devo9ao a Javé no ponto essencial — na fidelidade ao templo como o lugar da verdadeira adoracáo. Portanto, e em segundo lugar, a maior parte dessa secáo é sua parte central (2Cr 2—7) — os preparativos para a construcáo do templo, e a construcáo propriamente e sua dedi-cacáo. Duas adicoes á narrativa de lReis refletem os temas importantes para o Cronista: (1) o tema, duas vezes repetido, do salmo de Davi (lCr 16.34) em 2Crónicas 5.13 e 7.3 — quando a arca da presenca de Deus repousa no templo que é dedicado a ele — enfatiza a bondade de Deus para com o seu povo; (2) a passagem mais conhecida desse livro — o acréscimo á resposta que Deus deu á prece de Salomao (7.13-16) — parece ter sido incluida tendo em vista especialmente os leitores do próprio autor.

D 2Crónicas 10—36 A monarquía dividida: a dinastía davídica O restante da historia trata dos reis que sucederam Salomao. Além de continuar todos os temas da narrativa até esse ponto ("todo o Israel"; a dinastía davídica; o lugar central do templo), aqui o Cronista também dá énfase especial a intervencáo direta de Deus, em béncáo ou em juízo, com base ou na humilhacáo ou busca de Javé por parte dos reis, por um lado, ou na sua renuncia a ele, por outro. Capítulos 10—12. Há tres coisas a observar no relato do Cronista sobre Roboáo: (1) o reino dividido é obra de Javé (11.2-4); (2) nao obstante, ele é imediatamente seguido do tema de todo o Israel vindo a Jerusalém para sacrificio (11.5-17); e (3) o novo tema do juízo por renunciar a Javé comeca com Roboao e os líderes de Israel (12.2-5). Capítulo 13. Observe como o autor usa um discurso de Abias a Jeroboáo e Israel (13.4-12) para estabelecer suas próprias énfases: Javé deu um reinado a Davi e aos seus descendentes para sempre (v. 5), e a verdadeira adoracáo ocorre apenas em Jerusalém, no templo (v. 10-12). Depois disso, as tribos do norte sao incluidas quando se juntam a Judá em Jerusalém (15.9-15) ou sao convidadas a isso (29.1—31.1). Observe também que isso se deu quando o povo exclamou a Javé que "Deus feriu Jeroboáo" (13.14,15).

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Capítulos 14—16. Nesse relato mais extenso sobre Asa, observe duas énfases: (1) o fato de que Asa "clamou ao SENHOR, seu Deus" (14.11), a que Deus responde aniquilando os etíopes (v. 12), e (2) que em resposta a urna palavra profética, Asa instituí urna reforma com respeito ao templo e a devida adora9áo (cap. 15). Mas observe também que seu longo reinado termina numa nota um tanto amarga, devido á sua falha por nao depender de Javé (16.19,11,12) e a opressáo de parte do povo (16.10). Capítulos 17—20. No relato ainda mais extenso de Josafá, observe que ele é elogiado por ter andado, nos seus primeiros anos, "conforme os primeiros caminhos de Davi, seu antepassado" (17.3-6), o que foi exprimido na instnrpao dos levitas ao povo por meio da Lei (17.7-9; 19.4-11). A parte central da narrativa é a derrota de Moabe e Amom (20.1-30), que é pontuada por um discurso no templo (v. 4-19) e por a9Óes de gra9as, calóes e adora9áo por parte das tropas (v. 20-26). Mas essa narrativa é enquadrada por urna aliaba ímpia com Israel (18.1—19.3; 20.31-37), que acaba levando ao declínio de Josafá. Capítulos 21—24. A seguir vém dois reis perversos, Jeoráo e Acazias, que se aliaram a Acabe (21.1—22.9). Observe que Acazias "fez o que era mau diante do SENIIOR" (22.4); portanto "Deus pro-vocou a queda de Acazias" (v. 7, NVI).

Mesmo assim, a dinastía continua devido a aliaba de Javé com Davi

(21.7; cf. 23.18). O relato de Joás se concentra em dois temas: o resgate divino da dinastía davídi-ca (22.10—23.21) e a restaura9áo do templo (24.1-16). Observe que ambos rea^am o ministerio do sumo sacerdote Joiada, cuja morte é sucedida por Joás sendo influenciado por oficiáis que abandonam Javé (24.17-27), chegando ao ponto de matar o filho de Joiada. Infelizmente, o filho de Joás segué, entáo, nos mesmos passos. Capítulos 25—28. Joás é sucedido por dois reis (Amazias e Uzias) em rela9áo aos quais o Cronista demonstra considerável ambiguidade. Eles sao seguidos, respectivamente, por um rei que é elogiado (Jotáo) e por outro que é condenado (Acaz). Observe como é ampio e profundo, aqui, o tema da bén9áo ou maldÍ9áo dependendo da lealdade ou deslealdade do rei a Javé. Observe especialmente que essa serie conclui com Acaz fechando as portas do templo de Javé (28.24).

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Capítulos 29—32. Entáo vem Ezequias, cuja historia se concentra na purificacáo do templo; é aqui também que vocé encontra todos os temas notados ácima no parágrafo introdutório sobre 2Crónicas 10— 36 (p. 124) reunidos nesse bom rei. Capítulos 33—36. Finalmente, após Manassés, um rei mau que se arrepende no fim, e seu filho, Amom, que nao se arrepende, vem a historia de Josias. Observe que o Cronista se concentra novamente numa grande renovacáo da Páscoa, chamando a atencáo especialmente para o papel central dos sacerdotes e levitas (35.1-19). Com a morte de Josias, o livro passa rápidamente pelos últimos quatro reis e chega á queda de Jerusalém, mas, dada a énfase do Cronista, nao surpreende que as palavras fináis do livro Icmbrem o leitor do decreto de Ciro para que o templo seja reconstruido (36.23).

Ao narrar de novo a historia do povo de Deus, o Cronista nos lembra do papel central da adoracüo; para os leitores do Novo Testamento, o livro também vislumbra aquele cuja própria "purificacao" do templo, morte e ressurreicáo substituem o templo como o lugar da presenca de Deus (Jo 2.19-22).

Esdras-Neemias

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE ESDRAS-NEEMIAS ■ Conteúdo: reconstrucáo e reformas no Judá pós-exílico ao longo da segunda metade do século quinto a.C. ■ Abrangéncia histórica: do primeiro retorno (539/8 a.C.) até o fim do século quinto, mas especialmente de 458 a 430 a.C, durante o reinado de Artaxerxes da Pérsia ■ Enfases: o éxito na conclusáo do segundo templo apesar da oposicáo; o éxito na reconstrucáo, apesar da oposicáo, dos muros de Jerusalém; a crise dos casamentos mistos e da identidade nacional; preocupacáo quanto á renovacáo da alianca e á reforma, baseada na Lei, entre os exilados que haviam retornado a Jerusalém

VISÁO GERAL DE ESDRAS-NEEMIAS Assim como Samuel, Reis e Crónicas, os livros de Esdras e Neemias, que aparecem ñas nossas Biblias modernas como livros separados, formavam originariamente um só livro na Biblia hebraica. Sua separacáo em livros distintos só ocorreu quando a era crista já estava bem avanzada. É uma boa ideia lé-los juntos, já que de fato eles contam uma só historia, nao duas. Valendo-se das memorias (diarios?) de Esdras e de Neemias (o que se percebe pelo uso recorrente da palavra "eu"), além de cartas de

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arquivos e listas de varios tipos, o autor-compilador desse livro (concebivelmente o próprio Neemias) registra a historia da reforma judaica entre 458 e 430 a.C. Essa reforma inclui a construcao dos muros em volta de Jerusalém (dando definicáo, assim, ao "lugar que escolhi para estabelecer o meu nome", Ne 1.9; cf. Dt 12.5,11), o arrependi-mento quanto aos casamentos mistos e urna cerimónia de renovacáo da alianca, com a leitura do Livro da Lei como ponto central. Dessa maneira, o autor nos fornece a fonte mais importante da historia de Judá no período pós-exílico. Se vocé atentar para a transic^áo entre as narrativas em primeira e em terceira pessoa, é fácil perceber o fluxo da narrativa. Ela comeca (Ed 1—6) lembrando alguns eventos históricos de setenta anos antes — ligados á construcao do segundo templo (538/7 a 516 a.C). Baseando-se em varios registros de arquivos, essa rememoracáo en-fatiza o papel dos reis persas em garantir que o templo fosse, de fato, concluido. Ao mesmo tempo, o autor insere, como digressao (4.6-23), urna oposicáo bem mais tardia á construcao dos muros, que é o problema mais imediato de Esdras-Neemias. Com esse recurso literario, ele une os dois eventos, ambos apresentando o mesmo tipo de dificul-dades, provenientes de fontes semelhantes. As memorias de Esdras (Ed 7—10) comecam identificando-o como pertencente a linhagem de Aráo, ou seja, de ascendencia sacerdotal, e entáo relatam sua volta junto com os outros (em 458 a.C) sob os auspicios de Artaxerxes. O foco principal aqui é na reconstrucáo da comunidade religiosa dentro e em volta de Jerusalém, em meio a um contrito envolvendo os casamentos mistos, reconhecidos como urna das principáis fontes dos desvios idólatras que consistem em adoracáo a deuses estranhos. A primeira das memorias de Neemias (Ne 1—7) conta a historia da reconstrucáo dos muros de Jerusalém apesar da oposicáo intensa a partir de diferentes grupos, incluindo mesmo alguns judeus que ti-nham se restabelecido ou permanecido na térra (e eram notavelmente sincretistas); ela conclui (7.6-73) repetindo a lista dos que voltaram, vista no comeen do livro (Ed 2).

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A isso se segué o ponto alto da narrativa (Ne 8—10) — urna ce-rimónia de renovacáo da alianca, que cornea com urna reinstituicáo da festa dos tabernáculos e continua por vinte e quatro dias (cap. 8), chegando ao climax numa grande confissáo nacional (cap. 9) e num documento da comunidade assinado pelos líderes, compromctcndo-se a obedecer a aspectos específicos da "Lei de Deus, que foi dada por intermedio de Moisés" (cap. 10). Após duas outras listas (do repovoamento de Jerusalém e cercanías e dos sacerdotes e levitas, 11.1—12.26), o livro conclui com a segunda parte das memorias de Neemias (12.27—13.31). Estas descrevem a consagracáo do muro (12.27-47) e algumas reformas fináis (cap. 13).

ORIENTALES PARA A LEITURA DE ESDRAS-NEEMIAS Antes de 1er Esdras-Neemias, talvez vocé queira dar mais urna olhada no que foi dito sobre esse período histórico em "Orientacóes para a leitura de 1 e 2Crónicas" (p. 118), já que o mesmo contexto histórico e religioso básico também se aplica ao livro de que tratamos agora. Vocé deve prestar atencáo em varias énfases na narrativa que dáo pistas para entender as coisas durante a sua leitura. Principalmente, e coadunando-se com tudo o que veio antes dele até aqui, nosso autor (refletindo suas principáis fontes, Esdras e Neemias) tem urna preocupacáo intensa quanto á pureza da fé em Javé, o Deus de Israel. Essa pureza é encontrada seguindo-se os man-damentos no "Livro da Lei de Deus". Todas as reformas mencionadas no livro baseiam-se na Lei, e o arrependimento em Esdras 10 e Neemias 9—10 ocorre, em ambos os casos, apenas a luz do que é dito na Lei. Isso também explica a énfase nos sacerdotes e levitas (como em Crónicas), devido ao seu papel tanto no ensino da Lei quanto em manter a pureza da adoracáo. Nessa reforma, a crise quanto á identidade nacional é crucial: quem constituí o verdadeiro remanescente do povo de Deus, e está, portanto, em genuína continuidade com o passado? E nesse contexto que fica mais fácil entender a preocupacáo urgente quanto ao casamento misto (Ed 9—10; Ne 9.2; 10.28-30; 13.23-28). Assim, a sugestáo de que Esdras-Neemias trata principalmente da construcáo da comunidade

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nao está muito equivocada; trata-se, de fato, da reconstrucáo da comu-nidade de Deus, baseada ñas realidades religiosas do passado. A crise da identidade nacional é também o contexto no qual se deve entender a paixao pela construcáo dos muros de Jerusalém. Os muros nao servem apenas para manter as pessoas indesejadas do lado de fora; em tempos antigos, elas estabeleciam limites e portanto da-vam identidade a urna cidade e ao seu povo. Neemias vivia num tempo em que Jerusalém, a Cidade de Davi e o lugar em que Deus tinha decidido que o seu Nome habitaría, tinha se tornado o símbolo maior da identidade nacional e religiosa de Israel (um tema que permeia o livro de Salmos e é crucial para o Apocalipse de Joáo). Finalmente, essa preocupacáo com um povo puro de Deus adorando num templo purificado em urna cidade que recebe urna nova consagracáo (palavra assim traduzida em Ne 3.1 é usada comumente para a "consagracáo" das coisas santas) também é o contexto no qual se deve entender a atitude (as vezes ambivalente) em relacáo aos reis persas. Por um lado, o povo, mesmo os que retornaram, é regularmente chamado de "os exilados" (v. esp. Ed 10) — e ele sofre com sua falta geral de urna condifáo independente como povo ("escravos", Ed 9.9; Ne 9.36). Por outro lado, elcs sabem muito bem que tanto o seu templo quanto o muro em volta de Jerusalém só sao possíveis por causa do decreto e da protecáo dos seus senhores persas — o que lhes dá urna margem de seguranca quanto á oposicáo local. Essa é urna das principáis razóes para a narrativa da construcáo do templo em Esdras 1—6, já que sua construcáo sob o decreto de Ciro serve de introducáo ao projeto principal de Esdras-Neemias, a saber, a construcáo do muro — dessa vez, com base em cartas oficiáis de Artaxerxes (Ne 2.7-9).

UMA CAMINHADA POR ESDRAS-NEEMIAS D Esdras 1—6 Rememoraqáo da reconstrucáo do Templo (538-516 a.C.) Observe a arte narrativa do autor-compilador na leitura dessa introducáo ao livro. Com excecáo de 4.6-23, ele básicamente recapitula os eventos que cercam a construcáo do templo, iniciada sob Ciro em 538/7 e concluida sob Dario em 516. Ele descreve, respectivamente,

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o decreto de Ciro (cf. 2Cr 36.22,23) e sua contribuicáo ao projeto (Ed 1); a lista dos exilados que retornaram naquele tempo (cap. 2), concentrando-se especialmente nos sacerdotes e nos levitas (o foco, afinal, está no templo!); o inicio bem-sucedido do projeto, comecando com o altar e entáo com os fundamentos do próprio templo (cap. 3; nao deixe de reparar na repeticáo, no v. 11, do tema de Crónicas); a oposicáo ao projeto, que levou a reconstrucáo a ser interrompida (4.1-5,24) até o tempo de Ageu e Zacarías (é urna boa ideia 1er ao menos o livro de Ageu em relacáo a essa parte de Esdras); a oposicáo renovada em 520 a.C. que suscitou a troca de cartas oficiáis (Ed 5.1—6.12) e abriu o caminho para sua conclusáo (6.13-18), seguida de urna celebracáo da Páscoa (6.19-22). O que nao se encaixa cronológicamente nessa recontagem, é claro, é a insercáo da oposicáo posterior a urna tentativa aparentemente malograda de reconstruir os muros (4.6-23 [c. 448]), que é incluida aqui com um fim literario, prenunciando a oposicáo que Neemias enfrentaría mais tarde.

J Esdras 7—8

O retorno de Esdras e outros a Jerusalém (458 a.C.)

Observe como o autor comeca essa secáo com urna apresentacáo de Esdras e do seu retorno, enfatizando o fato de ele ser sacerdote e mes-tre da Lei de Moisés entregue por Javé (7.1-10). A isso se seguem as memorias do próprio Esdras (7.11—8.36, observe a mudanca para o pronome da primeira pessoa ["nossos pais"; "sobre mim"] em 7.27,28), que falam das circunstancias da sua saída da Babilonia (7.11-28, observe especialmente o papel do rei persa), dos que o acompanharam (8.1-14) e das circunstancias do retorno em si (8.15-36).

u Esdras 9—10 A crise dos casamentos mistos Com essa secáo, chega-se á primeira grande ameaca para o nosso autor, a saber, o fato de que os que voltaram — inclusive muitos sacerdotes e levitas (10.18-24) — "com as filhas desses povos [...] misturaram o povo santo" (9.2) ao realizar casamentos mistos com eles. Observe como a oracáo de Esdras (9.6-15) estabelece as questóes principáis (e incluí a tensáo entre a "escravidáo" atual deles e a bondade dos reis

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da Pérsia). O capítulo 10, entáo, descreve a reforma em si. Observe também que tudo isso vem das memorias de Esdras. D Neemias 1—7 Reconstruírtelo os muros sob o governo de Neemias (444 a.C.) Valendo-se das memorias de Neemias, o narrador descreve em algum detalhe as circunstancias envolvendo a reconstrucáo dos muros. Ele comeca com a forma como Neemias, figura proeminente na corte, conseguiu do rei a permissáo e a autoridade para retornar a Jerusalém (como governador, o que ficamos sabendo em 5.14) para reconstruir o muro (caps. 1—2). O capítulo 3 descreve em detalhes quem participou do projeto e onde eles participaram, enquanto o capítulo 4 descreve a oposicáo (lembrando assim Esdras 4.6-23) e seu insucesso. Observe também como o tema da guerra santa vem a tona aqui (Ne 4.20). O interludio do capítulo 5 relata como Neemias lidou com um confuto que dizia respeito aos pobres de Jerusalém — reinstituindo a cláusula contra a usura da Lei Mosaica (Éx 22.25; Dt 23.19,20). Mais oposi-gáo e a conclusáo do projeto sao relatadas em Neemias 6.1—7.3. Mas perceba a habilidade do narrador aqui. Em vez de ir para a dedicacao, que aparece em 12.27-43, ele conduz a primeira longa segáo da sua narrativa (Ed 1—Ne 7) ao fim repetindo, quase palavra por palavra, a lista dos que retornaram que aparece em Esdras 2. Esse enquadramento, que também mantém a narrativa em suspenso, é sua forma de chamar atencáo especial aos dois acontecimentos que vem a seguir. D Neemias 8—10 A renovaqáo da alianqa Com esse relato, vocé chega ao primeiro dos dois momentos de climax da narrativa do nosso autor. Antes do repovoamento de Jerusalém e da dedicacao dos seus muros (caps. 11—12) vem a cerimónia de importancia primaria para ele — um tempo de renovacáo nacional da alianca. Ela comega com urna longa leitura celebratória da Lei (7.73b—8.12) e inclui a grande celebragáo da festa dos tabernáculos (8.13-18). Depois disso vem um tempo de confissáo comunitaria (cap. 9), em que se relata a longa historia da desobediencia do povo (cf. SI 106), e a assinatura corporativa do acordó de renovagáo (Ne 10).

ESDRAS-NEEMIAS

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□ Neemias 11—12

O restabelecimento e a dedicacáo do muro

Observe a perceptividade da narrativa, fazendo esse evento vir depois da cerimónia de renovacáo da alianca. Urna vez estando estabelecida a lealdade a alianca por parte da comunidade renovada, sao listadas, respectivamente, a nova populacáo (cap. 11) e a comunidade dos sacerdotes (12.1-26). Com isso, é dedicado o muro que lhes dá definicáo e protecáo (12.27-43) — em grande pompa cerimonial e com muita música e adoracao (a razáo da existencia dos levitas!). Neemias 13

Conclusáo: a pureza da comunidade é reforcada

Observe que a preocupacáo final do livro é a mesma que voce viu ao longo de todo ele — de que a comunidade da fé renovada seja pura em relacáo a fé. Ressalta-se a exclusáo dos amonitas dos lugares sagrados (v. 1-14), a pureza do sábado (v. 15-22) e (o que nao surpreende) o casamento misto (v. 23-29).

Esdras-Neemias continua a historia bíblica descrevendo o ímpeto inicial das reformas necessárias em Jerusalém, que mais tarde serviriam como a base para o judaismo de que emergem Jesús e a igreja primitiva.

Ester

INFORMAgOES BÁSICAS SOBRE ESTER ■ Conteúdo: a historia da preservacáo providencial dos judeus por parte de Deus durante sua estada no Imperio Persa, por meio de Mardoqueu e de sua sobrinha, Ester ■ Abrangéncia histórica: a maior parte da historia se passa durante um único ano, no reinado de Xerxes (486-465 a.C), urna geracáo antes dos eventos registrados em Esdras-Neemias ■ Énfases: o cuidado providencial dos judeus por parte de Deus no contexto de um pogrom contra eles; a lembranca judaica da sua sobrevivencia por meio da festa de Purim

VISÁO GERAL DE ESTER Assim como ocorre com o livro de Rute, Ester aparece entre os Escritos na Biblia hebraica, mas na Septuaginta foi incluido no seu contexto histórico básico, ainda que após Esdras-Neemias. Demonstrando maravilhosa sutileza e ironia, e com evidente habilidade literaria, o autor conta a historia de como os judeus no Imperio Persa foram salvos do genocidio instigado por um membro da corte real, que pode ele próprio ter sido um nao persa — possivelmente um amalequita que trazia consigo o antigo odio do seu povo pelo povo de Deus.

ESTER

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A historia gira em torno das acóes dos seus quatro personagens principáis: (1) o rei persa Xerxes (nominalmente mencionado 29 ve-zes), um arrogante déspota oriental que serve como o antagonista de Deus na historia; (2) o viláo Hamá (48 vezes), um estrangeiro que foi elevado á posicáo mais alta no imperio, próximo ao próprio Xerxes — sendo ainda mais arrogante do que este, e cheio de odio pelos judeus; (3) o herói judeu Mardoqueu (54 vezes), um oficial menor da corte que descobre um plano contra o rei e salva a vida dele, mas cuja recusa em se prostrar diante de Hamá póe em movimento a intriga básica da trama — um plano para matar todos os judeus no imperio, que no fim acaba saindo pela culatra e voltando-se contra Hamá; e (4) a heroína, a prima mais nova de Mardoqueu, Hadassa, que recebe o nome persa Ester (48 vezes), que ao vencer um concurso de beleza se torna a rainha de Xerxes e a responsável pela descoberta do plano de Hamá, salvando, assim, os judeus da aniquilacáo. O enredo da historia em si é fácil de seguir. Comeca com urna festa suntuosa dada por Xerxes e a deposicáo da sua rainha Vasti, que tinha se recusado a vir e ser apresentada diante dos convivas do rei; isso leva, por sua vez, ao coroamento de Ester (1.1—2.18). O enredo básico da historia, com suas varias intrigas, desenrola-se na secáo central (2.19—7.10), que atinge o climax em duas festas particulares que Ester realiza para Xerxes e Hamá. O resto da historia diz respeito, principalmente, á derrota que os judeus infligem aos seus inimigos (a guerra santa, mais urna vez), e á sua celebracáo, que mais tarde se torna a festa de Purim (caps. 8—9). Nesse enredo básico há a historia de Mardoqueu, que representa o favor de Deus para com o seu povo, de modo que o livro concluí com a exaltacáo de Mardoqueu a posicáo de Hamá, na qual realizou muitas coisas boas para o povo judeu (cap. 10; cf. o papel de Daniel no século anterior).

ORIENTACJÓES PARA A LEITURA DE ESTER Na leitura dessa historia de sobrevivencia do povo judeu, vocé fará bem em atentar para dois fatores que ajudam a fazer a historia funcionar. O primeiro é literario. O autor é um mestre em contar historias, o que se evidencia nao só pela maneira como ele desenrola os personagens e o

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enredo, mas especialmente pela sua inclusáo de detalhes que dáo um tom de ironia e humor á historia. Como nao sorrir diante da ideia de um rei que, em resposta á obstinacao da sua mulher, edita um decreto no imperio todo segundo o qual "cada homem deveria liderar em sua casa" (1.22)? Como se isso fosse resolver o problema do rei! Afinal, tinha-lhe sido dito que, com base nesse decreto, "todas as mulheres daráo honra a seus maridos, tantos aos mais ricos quanto aos mais pobres" (1.20)! E difícil nao perceber outros momentos irónicos na trama, aínda que menos bem-humorados: Hamá, que pretende destruir os ju-deus, acaba destruindo a si próprio e a sua familia; a forca erigida para Mardoqueu é aquela em que Hamá acaba sendo enforcado; o edito de Hamá pretendía pilhar a fortuna dos judeus — em vez disso, seu próprio patrimonio cai em máos judias; Hamá, ao redigir a escritura para sua própria honra e reconhecimento, acaba escrevendo-a para Mardoqueu, e em vez de receber essa honra, Hamá acaba tendo de conduzir Mardoqueu pelas rúas de Susá, a cávalo. E esses nao sao os únicos momentos irónicos; portanto, preste atencáo neles durante a sua leitura. O segundo fator é religioso. Embora o livro de Ester seja conhecido pelo fato de o nome de Deus nao ser mencionado nele (cf. Cántico dos Cánticos), o autor espera, nao obstante, que os leitores visados por ele vejam a acáo de Deus em todas as reviravoltas da historia. Em primeiro lugar, o próprio Xerxes é retratado como o antagonista de Deus: aquele que exibia "as riquezas do seu glorioso reino e o esplendor da sua majestade" (Et 1.4) acaba se revelando pouco mais que um fantoche, manipulado ao bel-prazer dos que o cercam — enquanto o leitor sabe que o Deus cuja gloria e majestade sao eternas está por tras de tudo o que acontece na historia. Assim, o que o leitor nao instruido quanto a essa providencia talvez veja como algo que "simplesmente está acontecendo" deve ser reconhecido, em vez disso, como a própria soberanía de Deus, que está por tras, por exemplo, da escolha de Ester para rainha (2.1518), da noite insone do rei em que ele descobre ter falhado em honrar Mardoqueu (6.1-3), do fato de que após um jejum de tres dias Ester recebe o cetro dourado quando se aproxima do rei sem ser chamada (4.11; 5.1,2) e assim por diante ao longo do livro.

ESTER

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O outro fator religioso importante de observar é o reconhecimen-to por parte do autor de que a acáo de Ester e Mardoqueu — e dos judeus que sao poupados da aniquilacáo — é urna expressáo da guerra santa. Isso vem á tona, primeiro, no confuto entre Hamá e Mardoqueu, que continuam o confuto entre os israelitas e os amalequitas que já vem de séculos. Como os primeiros a atacar Israel após seu livramento do Egito (Ex 17.8-16), os amalequitas vieram a ser vistos como a epítome das nacóes que cercavam e se opunham a Israel. Mas essa historia especialmente deve ser lida com base no contexto de 1 Samuel 15. Provavelmente nao é incidental o fato de nessa historia Hamá ser regularmente designado como um descendente de Agague (urna ligacáo intencional com o rei amalequita em ISm 15 que Saúl se recusou a matar?), enquanto Mardoqueu — como o foi Saúl — é um benjamita que também pertence a linhagem de outro Quis (ISm 9.1,2). Esse "fi-Iho de Quis"(Et 2.5), de fato, desfere o golpe decisivo nesse "Agague". É assim também que vocé deve entender a narrativa nos capítulos 8—10. De maneira semelhante á narrativa em Josué, os judeus se reú-nem em todas as cidades do imperio e "ninguém conseguia resistir--lhes" (9.2). O fato de que eles viam isso como urna continuacáo da guerra santa é sublinhado pela observacao repetida do autor de que eles nao tocariam os despojos de guerra (9.10,15,16; cf. a acáo de Saúl em ISm 15.7-9), muito embora o rei tivesse decretado que eles de-veriam tomá-los (Et 8.11). Na guerra santa, as primicias do espolio pertencem a Deus (cf. Dt 13.16).

UMA CAMINHADA POR ESTER D 1.1—2.18

O contexto: Xerxes, Vasti, Mardoqueu e Ester

A historia comeca num complexo de palacios em Susá, onde Xerxes dá um grande banquete de Estado como exibicáo da sua fortuna e esplendor, enquanto sua rainha, Vasti, está dando um banquete para as mulheres. A recusa desta em também ser apresentada aos convivas do rei leva á sua deposicáo, o que prepara o palco para Ester. Entram na historia, agora, herói e heroína (2.5-7). As acóes de Mardoqueu — e de Ester — quanto a essa questáo nao deixam de apresentar suas

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falhas éticas, mas tanto a beleza de Ester como sua discrigáo em relacáo as próprias origens sao cruciais para a historia que se segué. Observe como essa primeira secáo concluí com outro banquete, dessa vez em homenagem a Ester — mas especialmente como maneira de o rei ostentar sua nova rainha. D 2.19—3.15 O enredo se complica: Mardoqueu e Hamá Observe como essa segáo comeca reiterando a prontidáo de Ester em seguir as instrugóes do primo. O enredo em si comeca com Mardoqueu se valendo da posigáo de Ester para advertir o rei de urna trama de assassinato. A essa altura aparece o viláo (3.1), que é elevado a urna alta posigáo e exige, portanto, ser honrado por todos os demais, mas Mardoqueu nao se prostrará nem lhe dará honras. Com o orgulho ofendido, Hamá poe em movimento urna trama para exterminar Mardoqueu e o scu povo do imperio. Observe como esse "capítulo" concluí com o rei e Hamá se sentando para beber (em contraste com os judeus, que proclamaráo um jejum). 3 4.1—7.10

O enredo se desenrola: Mardoqueu e Ester, Hamá e Xerxes

Mais urna vez, Mardoqueu pede a ajuda de Ester, dessa vez afirmando que "foi para este momento que [Ester foi] conduzida á realeza" (4.14). Observe especialmente a habilidade literaria do autor nos capítulos 5— 7, em que ele enquadra a ironía da troca de papéis entre Mardoqueu e Hamá, incluindo a noite insone de Xerxes e a retomada da questáo de 2.21-23, no quadro geral dos dois banquetes de Ester. No final do segundo banquete, a ironía maior é narrada: Hamá é exe-cutado na forca que havia preparado para Mardoqueu! D 8.1 -17

O edito de Xerxes em favor dos judeus

Como Xerxes nao pode revogar seu edito anterior, ele escolhe a segunda melhor opgáo: Mardoqueu o ajuda a elaborar um novo decreto, que permite aos judeus se defenderem de todos os ataques no dia do pur (o dia em que "a sorte" caiu para os exterminadores dos judeus; v. 3.7). Repare como o decreto é enviado a todas as provincias, em suas

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respectivas línguas, e que o resultado final é a conversáo de muitos gentios (continuando a cumprir a alianca abraámica, Gn 12.3). D 9.1—10.3

O triunfo dos judeus

Aqui vocé verá as tres maneiras em que se conclui a historia: (1) os judeus entram em guerra santa e matam muitos dos seus inimigos, (2) a última fcsta do livro é narrada — a festa de Purim, que será celebrada anualmente no décimo quarto e décimo quinto dias de Adar — e (3) Mardoqueu é promovido a urna posicao na qual ele pode beneficiar dirctamente (e nao pelo intermedio menos seguro da rainha) os judeus.

O livro de Ester conta a historia da protecáo providencial de Deus ao seu povo durante um momento tenebroso no Imperio Persa, preservando-os, assim, para a futura dádiva do Messias.

Os Escritos de Israel na historia bíblica

Os livros que na tradicáo judaica levam o nome de "Escritos" ocupam a segáo final da Biblia hebraica, depois da Lei e dos Profetas. Nos Escritos, o Salterio vem primeiro, seguido dos quatro livros que per-tencem á tradicáo da Sabedoria, acrescidos de Rute — portanto, Jó, Proverbios, Rute, Cántico dos Cánticos e Eclesiastes —, concluindo com Lamentacóes, Ester, Daniel, EsdrasNeemias e Crónicas. Mas quando as traducoes gregas dos livros bíblicos foram reunidas numa única colecáo (a Septuaginta), os Escritos foram reorganizados no que parece ser principalmente urna ordcm cronológica c/ou autoral, ordem herdada pelas nossas Biblias modernas. Assim, na nossa organizacáo atual, apenas cinco desses livros permanecem juntos, embora a ordem judaica tradicional seja digna de nota. Esses livros diversos desempenham um papel importante na historia bíblica. Porque aqui, numa variedade de formas, vocé encontra respostas humanas inspiradas as palavras e aos feitos de Deus registrados na Lei e nos Profetas. Assim, ainda que aparecam muitos momentos de instrucáo nos salmos, na maior parte eles sao oragñes dirigidas a Deus, sendo as tradigoes principáis da historia bíblica (promessas, éxodo, entrega da Lei etc.) o fundamento a partir do qual essas oragóes sao feitas — e posteriormente recitadas e cantadas na comunidade dos que creem. Urna das coisas, portanto, para a qual vale a pena atentar na leitura dos salmos sao os varios momentos que ecoam a historia

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bíblica — tanto a revelacáo de Deus e do seu caráter quanto a historia de Israel. O mesmo se aplica ao livro de Lamentacóes, que incluímos nesta secáo para que vocé o possa 1er a luz do que dizemos aqui sobre o livro de Salmos. A tradÍ9áo da Sabedoria, por outro lado, é bem diferente. Esses livros contém poucas referencias a essas tradi9óes principáis. Em vez disso, tem-se aqui escritos em que os autores ou compiladores en-frentam muitas questóes que também sao encontradas ñas tradi9óes de sabedoria de outras culturas. Dessa forma, embora o conteúdo dos livros tome o Deus e a historia de Israel como base para suas refle-xóes, seu método é muito semelhante ao que se encontra nessas outras tradicoes. Em geral, os livros da Sabedoria se concentram na conduta humana na sociedade diante de Deus. E o leitor presumido é "meu fi-lho", que pode se referir, é claro, ao próprio filho do mestre que escreve o livro, ou ao seu aluno, mas também a qualquer pessoa na gera9áo seguinte que precise dessa instruqáo. O que torna os livros bíblicos essencialmente diferentes das outras tradÍ9Óes é o fato de eles tomarem por certo, fundamentalmente, o fato de que "o temor do SENHOR [Javé] é o principio do conhecimento [sabedoria]" (Pv 1.7 e ao longo de todos os livros). Embora isso nao seja afirmado com tanta frequéncia nos dois livros pertencentes a tra-dÍ9áo "especulativa" da Sabedoria (Jó e Eclesiastes), Deus e a sua historia sao, nao obstante, fundacionais para a luta que esses livros travam com as questóes mais importantes da vida — a saber, como entender o sofrimento imerecido dos inocentes (Jó) e como se deve viver o breve tempo (mero "vapor", por assim dizer) que Deus concedeu aos nossos anos (Eclesiastes). E, na esséncia de ambos esses livros, há o lembrete de que a verdadeira sabedoria está ligada ao temor a Deus (Jó 28.28; Ec 12.13,14). O "livro estranho" entre esses é Cántico dos Cánticos, que nem chega a mencionar Deus, e que reflete a trad'^áo da Sabedoria de urna forma muito mais particular. Apesar disso, mesmo aqui, em que a énfase é no deleite do amor monogámico e da sexualidade humana, a historia presume aquilo que é dito em Génesis 1—2, em que Deus

OS ESCRITOS DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA

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criou homem e mulher para que sua relacáo no casamento fosse precisamente como o livro de Cántico a descreve. Portanto, em vez de se perguntar por que Deus escolheu incluir na Biblia livros que falam a nos "a partir do nosso próprio nivel", por assim dizer, vocé pode, antes, se maravilhar justamente diante do fato de ele o ter feito. O prazer na leitura desses livros está exatamente no fato de eles nos lembrarem vez após vez de que o amor e a fidelidade de Deus, que estáo na esséncia da historia que eles contam, exigem do seu povo urna serie de respostas diferentes. E assim, a rica variedade desses livros suscita e orienta nossas próprias respostas pessoais á fidelidade e ao amor divinos.



INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE JÓ ■ Conteúdo: o livro enfrenta de maneira brilhante a questáo do sofrimento dos justos e da justica de Deus, enquanto também trata de urna questáo mais abrangente: "Onde se achara a sabedoria?". ■ Data: a historia se passa no período dos patriarcas; já as sugestoes quanto a data da composicáo do livro sao variadas ■ Enfases: a sabedoria, no fim, é encontrada apenas em Deus; a sabedoria humana nao é capaz, sozinha, de sondar os caminhos de Deus; nao há resposta fácil para o sofrimento imerecido; Deus nao tem obrigacáo para com os humanos caídos de lhes explicar todas as coisas; o temor do Senhor é o caminho da verdadeira sabedoria

VISÁO GERAL DE JÓ O livro de Jó é um dos tesouros literarios do mundo. Sua questáo central é o esforco para entender os caminhos de Deus, especialmente sua justica quando os justos sofrem nao por máos humanas, mas devido a "aros de Deus". Ao mesmo tempo, o autor levanta a questáo: "Onde se achara a sabedoria?", que no final do livro é respondida de maneira poderosa no sentido de que ela se encontra táo somente em Deus, enquanto os participantes do diálogo — os tres amigos, o jovem



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Eliú e o próprio Jó — sao silenciados um por um diante da sabedoria insuperável de Deus. A estrurura do livro, importante para os propósitos do autor, é fácil de perceber. As duas partes mais extensas (caps. 3—27; 29.1—42.6) consistem em tres series de discursos cada. A Parte 1 é urna serie de diálogos. Enquadrados pelo lamento de Jó (cap. 3) e pelo seu discurso, no final (caps. 27), os diálogos também sao organizados num padráo de tres ciclos — discursos de Elifaz, Bildade e Zofar, com urna resposta dejó a cada um deles. O ciclo de diálogos torna-se um terco mais breve a cada novo diálogo — a medida que os participantes váo carecendo de coisas novas a acrescentar e a discordancia mutua vai ficando mais sincera. A Parte 2 consiste em tres monólogos: de Jó (caps. 29—31), de Eliú (caps. 32—37) e de Deus (caps. 38—41) — que tem a última palavra.Tudo isso, com excecáo dos trechos narrativos que enquadram o livro, é exprimido numa rica linguagem poética. As passagens narrativas enquadram de maneira habilidosa esses poemas (caps. 1—2; 42.7-17), dando ao leitor um acesso ao que está acontecendo nos bastidores da trama, privilegio nao compartilhado pelos seus participantes: o sofrimento dejó é resultado de urna disputa na corte celestial, Satanás tendo argumentado que as pessoas só sao justas porque sao "retribuidas" por sé-lo — a questáo teológica crucial que o livro está pondo á prova. Percebe-se um segundo recurso de enquadramento usado pelo livro na posicáo central em que aparece o discurso de sabedoria do próprio autor (cap. 28), prenunciando as respostas de Deus nos discursos fináis sobre a questáo de "onde se achara a sabedoria?". Dessa maneira: capítulos 1—2 capítulos 4—27 capítulo 28 capítulos 29—41 capítulo 42

prólogo os tres diálogos-disputas o discurso sobre "de onde vem a sabedoria?" os tres monólogos epílogo

Os quatro que debatem com Jó expressam todos urna forma acentuada de sabedoria convencional — de que um Deus justo nao permitiria

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que os justos sofressem injustamente, e que o sofrimento de Jó, portante, é resultado direto de algum pecado específico. Jó sabe que isso nao é verdade, mas no fim ele próprio acaba protestando contra urna serie de outras coisas. Deus, portante, se pronuncia de dentro da tempestade, conclamando Jó — e o mundo todo — a um reconhecimento humilde de que a sabedoria humana, afinal, nao é nada diante de Deus.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE JÓ É crucial, na leitura de Jó, entender do que em última análise o autor está tratando, tanto pela forma como ele organiza o livro como pelo conteúdo dos varios discursos. Seus interesses principáis se concen-tram em dois pontos: (1) o desafio de Satanás a Deus (1.9): "Será que [as pessoas] temem a Deus sem intencóes?"e (2) a pergunta que o próprio autor faz (28.12,20): "onde se achara a sabedoria?". As questóes sao duas: Como criaturas totalmente dependentes de Deus para seu bem-estar, iráo os justos amar a Deus pelo que ele é, ou apenas pelos beneficios que ele concede? Como criaturas dotadas de sabedoria cria-tural, estio os justos dispostos a viver nos limites dessa sabedoria (que é ser alguém "que teme a Deus e se desvia do mal", 1.8; 2.3; 28.28), ou exigiráo eles participar da sabedoria de Deus como pares dele? Assim, a dependencia e a sabedoria das criaturas sao os pontos em questáo. Eles seráo exprimidos por meio da questáo da teodiceia — que dominará a maior parte dos discursos humanos —, a saber, a questáo que trata de como reconciliar o sofrimento imerecido com um Deus que é ao mesmo tempo todo-poderoso e justo. Cada um dos participantes de-sempenha um papel importante nesse drama divinohumano. Satanás desempenha o papel crucial de por Deus no banco dos réus, por assim dizer, quanto a questáo do relacionamento básico entre Deus e suas criaturas humanas: essa alegría recíproca entre eles nao seria apenas resultado do beneficio que a criatura humana tem nes-sa relacáo? A mulher de Jó desempenha o papel de Satanás na térra, instando com Jó: "Amaldicoa a Deus e morre" (2.9). Dá para imaginar Satanás sussurrando no ouvido de Jó: "Isso, isso!". A questáo é se no fundo os seres humanos nao amam a Deus pelo que ele é, mas pelo que podem ganhar nesse relacionamento — o que os coloca no banco

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do motorista, por assim dizer. Mas apesar de rudo o que Jó venha a fazer ou dizer, ele nao amaldicoará a Deus, algo de que Deus, em sua sabedoria, está ciente. Elifaz, Bildade e Zofar desempenham o papel (igualmente) crucial de certo género de "sabedoria convencional" — os teólogos inflexíveis e sabichoes que creem que sua sabedoria é suficiente para entender a forma de Deus agir no mundo: Deus é tanto todo-poderoso quan-to justo; o sofrimento é resultado do pecado humano; portanto, nao existe algo como sofrimento imerecido, e Jó deve admitir esse fato e confessar os seus pecados (secretos) para que seja restaurado. O papel de Eliú é o da autoconfianca excessiva dos jovens, que pensam realmente superar os mais idosos em sabedoria. Ao mesmo tempo, irónicamente, ele de fato tem um ponto adicional a acrescentar que os outros tres nao mencionam — o fato de que além da punicáo obviamente merecida de Jó, há nessa punicao um fator de disciplina que ele deve estar disposto a aceitar. Jó tem o papel central. Para ele a situacáo toda é um frustrante enigma. Ele eré que suas calamidades procedem, em última análise, de Deus, mas nao há correlacáo clara de causa e efeito. Mas esse também é o seu problema, já que está em jogo a sua integridade — reconhecida por Deus na narrativa que inicia o livro. Ele é, dessa forma, ao mesmo tempo o sofredor inocente e aquele para quem as respostas simples nao funcionam mais. Embora saiba que ninguém é sem pecado (9.2), apesar disso, no caso dele, nao há correlacáo entre a enormidade do que lhe sucedeu e o seu pecado, e confessar pecados que ele na ver-dade nao cometeu significaría perder sua integridade — e assim, tirar dele algo muito mais valioso que a própria vida. Portanto, ele procura continuamente urna explicacáo para o seu sofrimento, e muitas de suas falas consistem em apelos reivindicando o seu direito de se defender diante de Deus. Jave, é claro, desempenha o papel de maior importancia. Como o iniciador da historia, ele está no controle desde o comeco, o que incluí fazer com que Satanás pense sobre Jó — e nao o inverso. No fim, o jogo vira completamente: (1) a questáo de onde se pode encontrar a sabedoria é respondida nao apenas em termos "táo somente em Deus",

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mas também silenciando-se todas as vozes humanas que insistem em que Deus lhes deve urna explicacáo, e (2) a questáo de se alguém servirla a Deus sem receber beneficios por isso é respondida com um sonoro sim! — o papel crucial que Jó terá na historia. O aspecto brilhante desse livro é que, embora pareca se tratar de urna teodiceia (seres humanos levando Deus a julgamento, insistindo em receber explicacoes para atos divinos), ele acaba sendo urna teologia (Deus levando os seres humanos a julgamento quanto a se confiaráo nele nao só quando nao receberem beneficios imediatos, mas também quando ele nao lhes der as explicacoes que eles exigem — e, portante, se viverao dentro dos limites da sabedoria criatural). O sentido todo dos últimos discursos dirigidos a Jó é que a sabedoria de Deus evidenciada na ordem criada tanto é visível aos olhos quanto está além da compreensáo humana (e nao sao fornecidas explicacoes). Se é assim, entáo Jó deve confiar em Deus e na sabedoria dele também na questáo do seu sofrimento — ao que Jó oferece a resposta última de humildade e arrependimento. Urna última questáo. Quanto aos longos discursos dos cinco debatedores (incluindo Jó), devemos lembrar que eles nao devem ser considerados como urna palavra de Deus. Embora Jó em geral diga coisas mais acertadas que os demais (42.8), todos dizem coisas que contém aquele grau incompleto de verdade que as torna perigosas. Mas seus discursos nao sao palavras de Deus; este só se pronuncia no final, quando toda voz humana foi silenciada. Na leitura desses diálogos, é importante ter ciencia do grau de verdade que há neles, mas também das suposicóes falsas que eles contém. Nao é má ideia 1er os trechos poéticos em voz alta. A poesia do livro é boa demais para ser lida de forma rápida e casual. Esses oradores, além de enfrentarem questóes profundas, contam com um senso apurado da forca das palavras, nao hesitando em articular e rearticular os seus pensamentos frequentemente. Observe, por exemplo, quantas vezes se fazem comparacóes que entáo sao consideravelmente desenvolvidas, mesmo que isso nao seja estritamente necessário para o sentido da analogia. Assim, ao reclamar que seus amigos nao podem ajudá-lo em coisa alguma (6.14-23), Jó os compara a ribeiros sazonáis (v. 15), urna comparacáo que ele elabora de maneira rica e eloquente ao longo



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de varios versos antes de voltar ao tema da inutilidade da ajuda deles (v. 21). A forca poética do livro torna a sua leitura bastante aprazível, ainda que em meio a tanta dor e angustia.

UMA CAMINHADA POR JÓ H 1.1—2.13 Prólogo A moral principal do livro nao se encontró, nessa narrativa inicial; esta consiste apenas no enquadramento no qual os discursos que se seguem devem ser entendidos. Observe que a introducáo tem quatro partes (indicadas por títulos em algumas versóes): 1.1-5 dá a informacáo essencial que faz a historia funcionar; Jó entáo é testado quanto a se ele servirá a Deus caso seja privado de suas posses (v. 6-22); quando Satanás pende esse round da disputa, ele tenta mais urna vez (2.1-10) — e perde de novo, embora a mulher de Jó tome o partido de Satanás; com a visita dos tres amigos (v. 11-13) o palco está pronto, entáo, para os diálogos.

3 3.1-26 O lamento de Jó Jó finalmente rompe o silencio com urna maldicáo contra o dia e a noite do seu nascimento (v. 3-10); observe como as indagacóes "Por qué?" no lamento seguinte (v. 11-26) o associam de perto a essa maldicáo. Jó pode desejar nunca ter nascido, mas nao tirará a própria vida. A dor, portanto, é sua única opcáo. L¡ 4.1—14.22

Primeiro ciclo de discursos

O lamento de Jó dá inicio ao primeiro ciclo de discursos, em que cada amigo fala por sua vez e, um por um, ouve a resposta de Jó. Observe que o discurso de Elifaz é o mais longo dos tres; depois disso, os discursos de Jó váo ficando mais longos enquanto os de Bildade e de Zofar se tornam mais breves. Capítulos 4—5. Elifaz comeca o diálogo com urna exposicáo eloquente da teologia básica "dos sabios". Nao sendo ainda acusatorio (cf. 4.1-6), esse discurso prepara o caminho para os demais. A retribui-fáo divina é inevitável (4.7-11), porque ninguém é inocente diante de Deus (4.12-21). Jó deve, portanto, apelar a Deus por ajuda (5.1-16);

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insta-se com ele, além disso, para que reconheca sua calamidade como urna disciplina e busque a Deus pelos seus beneficios (5.17-26) — o que o levaría a tomar o partido de Satanás! Observe a confianca suprema de Elifaz na sua própria sabedoria (5.27). Capítulos 6—7. Jó responde defendendo seu lamento inicial (6.113), acusando seus amigos de nao serem nenhum conforto para ele (v. 14-23), protestando que é inocente (v. 24-30) e apelando, finalmente, de forma direta a Deus pelo conforto que nao encontra nos amigos (7.1-21), concluindo de novo com indagacoes "Por qué?". Capítulo 8. Bildade adota a posicáo de Elifaz, argumentando que Deus é justo, e que a calamidade é portanto urna punicáo pelo pecado (v. 1-7), baseando-a no ensinamento tradicional (v. 8-10) e ñas leis da natureza (v. 11-22). Observe como o versículo 20 exprime a posicáo básica dele: bem e mal sao claramente definidos segundo o que acontece com as pessoas. Capítulos 9—10. Os amigos dejó nao o ajudam em nada;Jó, portanto, agoniza, perguntando-se se deve apresentar a sua causa a Deus, porque nao sabe o que acontecerá se o fizer (cap. 9); assim, ele irrompe em lamentos (cap. 10). Observe, de passagem, que grande parte de 9.110 prenuncia os capítulos 38—39. Capítulo 11. A verdade que Zofar finalmente enuncia a respeito do arrependimento (v. 13-20) provém, infelizmente, de sua presuncáo de que a calamidade de Jó deve ser resultado do seu pecado (v. 1-12). Como os "justos" podem ser duros as vezes! Capítulos 12—14. Jó foi atingido (12.1-3); seguir os conselhos deles (que se alinham continuamente com Satanás) significa comprometer sua própria integridade. Portanto, após defender sua destreza em sabedoria equivalente á deles (12.4—13.12), Jó pondera se deve apresentar urna causa legal diante de Deus, que é a sua única esperanca (13.13—14.22), mas essa, novamente, é urna alternativa temível. D 15.1—21.34 Segundo ciclo de discursos Nesse segundo round de discursos, os tres acusadores desempenham variacóes de um mesmo tema — o tormento presente e o destino final dos ímpios. As respostas de Jó apresentam debéis indicios de



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esperanfa, que os demais nao hesitam em dissipar, de modo que Jó acaba afirmando, finalmente, que os perversos nem sempre sofrem. Capítulo 15. Elifaz apela mais urna vez á sabedoria tradicional deles: sao os perversos que sofrem tormentos, e Jó, portante, deve ser perverso, e sua própria boca o condena automáticamente quando ele questiona o próprio sofrimento. Capítulos 16—17. Jó concorda que a sua afiicáo vem de Deus, mas ele também nao faz ideia do porqué. Sua única esperanza está num defensor celestial (16.18-21). Capítulo 18. Bildade mal consegue aguentar (v. 1-4), entáo ele retoma a fala de Elifaz, observando o destino terrível dos ampios — como Jó! —, e dizendo que Deus portante nao o ouvirá (v. 5-21). Capítulo 19. Jó reclama de seus amigos (v. 1-6) e do tratamento que recebe de Deus, como se Jó fosse um inimigo (v. 7-11), o que resulta,finalmente, no total ostracismo (v. 13-20). Seu apelo por ajuda vem acompanhado de outra nota de esperanca (v. 21-27) antes de ele advertir seus amigos (v. 28,29). Capítulo 20. Zofar rejeita a nota de esperanca de Jó, repetindo o refráo do destino dos malfeitores. Capítulo 21. Jó agora questiona a insistencia dos seus conselheiros na prontidáo de Deus em punir os perversos (v. 7-33), queixando-se de seus amigos em ambos os lados (v. 1-6,34). D 22.1—26.14

Terceiro ciclo de discursos

O debate comefa a arrefecer. Observe (1) que esse último ciclo tem um terco da extensáo do primeiro, (2) que nao há nenhum discurso de Zofar aqui e (3) quanta repeticao há nesse ciclo de argumentos anteriores. Capítulo 22. Observe as acusacoes falsas de Elifaz contrajo (v. 6-9; cf. 31.13-23), que se presume serem verdadeiras porque a teología de Elifaz o exige; de modo que, após instruir Jó sobre os caminhos de Deus mais urna vez (22.12-20), ele insta com ele mais urna vez para que se arrependa (v. 21-30).

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Capítulos 23—24. Jó exprime mais uma vez um desejo de defender a sua causa diante de Deus (23.1-7), indicando ao mesmo tempo uma confianca hesitante (v. 8-12) e medo trémulo (v. 13-17). Seja como for, Elifaz está simplesmente errado. O mundo está cheio de injustica (24.1-17); que os perversos sejam malditos (24.18-25). Capítulo 25. Bildade profere a palavra final dos conselheiros: Deus é grande demais para que Jó o questione. Capítulo 26. Jó concorda quanto á majestade de Deus, mas (como se vé a seguir) discorda quanto as implicacóes que eles inferem déla. G 27.1-23

O discurso final de Jó

Observe a fórmula introdutória (v. 1), indicando que esses versículos enquadrarao (com o cap. 3) os discursos. Depois de argumentar que a integridade exige que defenda a sua inocencia (27.1-6), Jó entáo vira o jogo com os seus amigos, que se tornaram seus inimigos (v. 7-12), lembrando-os finalmente — e irónicamente — do destino dos malfeitores (v. 13-23)! D 28.1-28 Suscitando a questáo da verdadeira sabedoria Leia esse capítulo fundamental com atencáo. Aqui o autor — nao Jó ou os seus "amigos" — suscita as questóes essenciais: Onde se pode encontrar a sabedoria (v. 12)? De onde ela vem, e onde reside (v. 20)? A resposta, é claro, é "só Deus" (v. 23-27), e a sabedoria humana deve ser encontrada no temor ao Senhor (v. 28). Essa insercáo entre as duas series de discursos prenuncia de forma clara a resposta final dos capítulos 38—41. D 29.1—31.40 Jó reivindica seu direito de de fesa No primeiro monólogo dessa serie de tres, Jó apresenta sua causa final diante de Deus. Ele primeiro comenta a honra e as béncáos de que desfrutava no passado (cap. 29) e entáo menciona sua desonra e sofrimento atuais (cap. 30), passando entáo a descrever de maneira específica sua retidáo quanto á verdade e ao casamento (31.1-12). Ele concluí com feitos em favor das pessoas com quem o próprio Deus se



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importa — as viúvas e os órfáos (v. 13-34; opondo-se á acusagáo de Elifaz em 22.6-9) — antes de fazer seu apelo final (31.35-40).

□ 32.1—37.24

Os discursos de Eliú

Depois de urna apresentagáo (32.1-5), Eliú fala (com urna autocon-fianga exagerada) em nome dos jovens, fazendo quatro discursos cujo ponto básico se encontra no primeiro (caps. 32—33, esp. cap. 33) — afirmando que, em vez de defender sua inocencia, Jó deveria aprender sobre a natureza disciplinar de seu sofrimento. Dizendo isso, Eliú vai consideravelmente além de Elifaz, Bildade e Zofar, reconhecendo pelo menos que os justos, de fato, as vezes sofrem. Mas em seu segundo discurso (cap. 34) ele concorda com os tres debatedores mais velhos quanto ao fato de Deus governar um universo justo, sem excegáo; de modo que, no terceiro discurso (cap. 35), ele observa a inutilidade das reivindicagóes de inocencia de Jó. No quarto (caps. 36—37), conclui voltando ao tema do seu primeiro discurso (36.6-26), antes de exaltar a majestade de Deus (cap. 37), o que (irónicamente) prepara Jó para o que vem a seguir.

□ 38.1—42.6 Deus fala e Jó responde Aqui vocé chega ao climax do livro. Deus fala de dentro da tempesta-de, quebrando o silencio em resposta ao profundo anseio de Jó. Mas em vez de defender Jó (como este esperava) ou reprová-lo (como esperavam scus amigos), Deus simplesmente questiona a sabedoria humana, demonstrando de forma poderosa, vez após vez, com base na criagáo — tanto suas origens como seu cuidado por ela — que a sabedoria está táo somente com ele. No primeiro discurso (caps. 38—39), Deus comega com a pergun-ta básica para toda a sabedoria humana: "Quem é este que obscurece o conselho com palavras sem conhecimento?" (38.2). Depois disso há urna litania de perguntas sobre a criagáo que pretende dar perspectiva ajó (e aos seus amigos). "Onde estavas tu, quando eu langava os fundamentos da térra?" (38.4). E Jó responde a Deus, apropriadamcnte, com vergonha e silencio (40.3-5).

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O segundo discurso (40.6—41.34) relata os poderes tremendos de Deus e entáo desafia Jó a demonstrar a sua própria forca — como se ele pudesse — derrotando as duas bestas, o Beemote e o Leviatá. A grande questáo suscitada pelo livro encontra resposta na réplica dupla dejó (42.1-6), a saber,sua admissáo de que ele falou sem entendimento, e entáo seu arrependimento depois de ele ter realmente "visto"Javé! Essa também, é claro, é a reacáo que o autor espera dos leitores.

D 42.7-17

Epílogo

Observe que o epílogo é em duas partes: primeiro (v. 7-9) Deus pronuncia seu veredicto em favor de Jó e contra os seus amigos; em segundo lugar (v. 10-17), Deus finalmente recompensa Jó — que manteve sua confianca em Deus quer recebesse beneficios por ela ou nao — com urna porcáo dobrada de tudo o que ele tinha perdido.

O livro de Jó tem um lugar importante na historia bíblica, nao só por nos conclamar a urna confianca total em Deus mesmo ñas situacóes de maior provacáo, mas também ao preparar o caminho para Jesús Cristo, que, ao assumir o papel do sofredor inocente como o Deus encarnado, dá a resposta final á pergunta de Jó — só que nesse caso para carregar os pecados de todo o mundo.

Salmos

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE SALMOS ■ Conteúdo: 150 Salmos ricamente diversos que, na organizacáo em que os temos, serviram de "hinário" ao judaismo pós-exílico (segundo templo) ■ Data da composicáo: os salmos em si datam do comeco da monarquía até um tempo após o Exilio (c. 1000 a 400 a.C); a colegio de salmos na sua forma atual talvez seja parte do movimento de reforma refletido em Crónicas e em Esdras-Neemias ■ Énfases: connanga em Javé e adoragao a ele pela sua bondade; lamentos pela perversidade e pelas injustigas; Javé como rei do universo e das nagóes; o rei de Israel como o representante de Javé em Israel; Israel (e os israelitas individualmente) como o povo da alianga de Deus; Siáo (e o seu templo) como o lugar especial da presenga de Javé na térra

VISÁO GERAL DE SALMOS As 150 composigóes que formam o livro de Salmos originariamente consistiam em 147 salmos diferentes (um deles ocorre duas vezes — 14 e 53; dois salmos forana divididos, respectivamente, em duas partes — 9 e 10,42 e 43). Cada salmo foi originariamente composto de forma independente; sendo assim, cada um apresenta integridade

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e sentido próprios. Mas os salmos nao foram reunidos a esmo; antes, foram ordenados e reunidos de maneira que o todo aprésente um sentido e, ao mesmo tempo, realce as afirmacoes de cada salmo individual. Dessa forma, no Salterio vocé pode buscar sentido tanto nos salmos individuáis como na sua relacáo ordenada uns com os outros. Essa re-lapáo é a énfase especial neste capítulo, e encorajamos o leitor a atentar para ela na sua leitura do livro de Salmos. Embora a organizapáo atual do Salterio derive do período pós--exílico, ela também mantém a integridade das colecoes menores que já eram usadas como parte da historia continua de Israel. Além de tres colecoes de salmos davídicos (3—41; 51—70; 138—145), também há duas colecoes de salmos de "Asafc/filhos de Cora" (42—50; 73—88), além de quatro colecoes ordenadas por assunto (Deus como rei, 93—100; salmos de louvor, 103—107; cánticos de degraus/da subida [cánticos de peregrinacáo], 120—134; e salmos de Aleluia, 111—113 e 146—150). A colecáo na sua organizapáo presente foi reunida na forma de cinco livros, provavelmente tendo em vista o Pentateuco ("Davi", dessa forma, corresponde a "Moisés"): Livro 1 Salmos 1—41: todos menos os salmos 1,2 e 33 intitulados "de Davi" Livro 2 Salmos 42—72: Salmos 42—50 "dos filhos de Cora" ou "de Asafe"; Salmos 51—70 "de Davi"; concluindo com um "de Salomáo" (72; observe que o salmo 71 nao tem título), com urna coda no fim, "Terminam aqui as orapóes de Davi, filho de Jessé" Livro 3 Salmos 73—89: todos intitulados, em geral "de Asafe" ou "dos filhos de Cora" Livro 4 Salmos 90—106: a maioria sem título, com excepáo dos salmos 101 e 103 ("de Davi") Livro 5 Salmos 107—150: a maioria sem título, mas quinze sao "de Davi", incluindo Salmos 138—145; também inclui quinze "cánticos dos degraus" (120—134) e conclui com cinco salmos de "Aleluia" (146—150)

SALMOS

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Vocé perceberá que cada livro conclui com uma doxologia semelhante (41.13; 72.18,19; 89.52; 106.48; e todo o salmo 150). Nos primeiros quatro casos, elas nao sao parte do salmo original; tratam-se, antes, de obra do compilador final, e servem para concluir os livros em si. Também é importante observar que, embora a vasta maioria dos salmos seja enderecada a Deus, em muitos deles há palavras que se dirigem ao próprio povo (presumindo, dessa forma, um contexto corporativo), enquanto alguns salmos funcionam primariamente como instrucáo (esp. os salmos de Torá-Sabedoria; p. ex., 1; 33; 37). Quanto a isso, compare Colossenses 3.16 e Efésios 5.19 (hinos sobre Cristo, cantados em acóes de gracas a Deus, também servem para instruir o povo).

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE SALMOS Os salmos foram escritos sobretudo para serem cantados — um por um, e nao necessariamente na ordem canónica; é assim também que eles costumam ser lidos — como cancóes. Como o capítulo 11 de Entendes o que les? pretende ajudá-lo a 1er os salmos dessa maneira, o conteúdo daquele capítulo servirá de base para a nossa discussáo, especialmente as informacóes sobre os varios tipos e formas de salmos e sobre a natureza da poesia hebraica. Nosso interesse agora é duplo: (1) ajudá-lo a ver o sentido da organizacáo canónica do Salterio e (2) oferecer um guia mínimo para a leitura dos salmos como parte da historia bíblica. Ao mesmo tempo, vocé deve atentar constantemente para as pressuposicóes teológicas básicas dos salmos, consideradas em termos de como eles se enquadram nessa historia. (Uma analogia seriam os hinários cristáos, que nao tém o propósito de ser lidos do comeco ao fim, mas que nao deixam de apresentar uma organizacáo cuidadosa, em geral segundo linhas teológicas ou do calendario da igreja.) É importante ter em mente que, embora a maioria dos salmos seja pré-exílica, a colecáo de Salmos como a temos constituía o hinário do judaismo do segundo templo (pós-exílico). Quando vocé se lembra da énfase em Crónicas e em Esdras-Neemias nos músicos ligados ao templo, é fácil imaginar o Salterio atual assumindo sua forma durante esse período, e o sentido que sua organizacáo tinha para eles.

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Os cinco livros estáo organizados de forma meticulosa de modo a refletir a historia de Israel do tempo de Davi até depois do Exilio. Os Livros 1 e 2 básicamente presumem o tempo do inicio da monarquia, Davi falando palavras de lamento e de adoracáo, tanto por si mesmo quanto pelo povo, baseando-se na bondade e Justina infindas de Deus. Ambos os livros sao enquadrados, juntos, por dois salmos de coroacáo (2 e 72) que exaltam o rei como o ungido de Javé que representa o seu povo. No Livro 2, especialmente na colefáo coraíta inserida no come-co, vocé também encontra um bom número de hinos de exaltazáo ao rei e a Siáo, que se concentram no rei mas agora enfatizam especialmente Jerusalém e seu templo como o lugar da presenca e do reino de Deus. Ambos os livros, portanto, se concentram em Davi como rei sob o reinado maior e final de Javé. O Livro 3, por outro lado, só tem um salmo davídico; em seu lugar, dada a presenca de alguns proeminentes lamentos exílicos e pós-exíli-cos, o livro presume a queda de Jerusalém. Retomando a nota amarga do salmo 44, os salmistas repetidamente se perguntam "Por qué?" e "Até quando?" em relacáo a sua rejeicáo por Javé. Esse livro comeca, assim, com um salmo de sabedoria cujo autor se pergunta em voz alta quanto á "prosperidade dos ímpios" (73.3); ele conclui primeiro com o salmo mais "tenebroso"do Salterio (SI 88), cuja única nota de esperanza está no primeiro versículo, que se dirige a Deus ("Deus da minha salvacáo"), e entao com um tocante lamento quanto ao presente fim (aparente) da alianza davídica (SI 89). Em resposta, o Livro 4 comefa retornando a Moisés com um salmo que lembra Israel de que Deus tem sido a sua morada ao longo de todas as gerazoes. Depois, após dois salmos sobre confianza e ázoes de gragas (91— 92), vem a colezáo que trata do reinado de Javé (93—100). Apesar do estado presente da monarquia davídica, Javé reina! Esse livro entáo encerra com salmos de adorazáo (101—106), cuja última palavra é um apelo a Javé para que reúna os exilados (106.47). O Livro 5 comeza com um salmo de adorazáo que presume a reuniáo dos exilados (107.2,3), seguido do salmo 108, que exalta o governo de Deus sobre todas as nazóes. O restante desse livro, mais heterogéneo que os demais, vislumbra de varias maneiras o grande

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futuro de Deus para o seu povo. Estáo inclusos alguns salmos regios (110; 118) que eram usados na expectativa da vinda do grande rei futuro; nao é de surpreender, portante, o papel importante que esses salmos tiveram na compreensáo que os primeiros cristáos tinham de Cristo. Igualmente, os salmos dos degraus teriam sido usados em peregrina9Óes daquele tempo (e na expectativa do futuro) do povo de Deus a Siao — enquanto os cinco "Aleluias" fináis (146—150) os lembram da soberania última de Deus sobre todas as coisas. Assim, na organiza9áo final das coisas, nos tres primeiros livros predominam os lamentos, enquanto os salmos nos dois últimos sao principalmente de adora9áo e a95es de gra9as. A luz dessa organiza9áo geral, é urna boa ideia 1er os salmos tendo em mente as bases teológicas subjacentes sobre as quais esses poemas (cánticos, preces e ensinamentos) foram escritos. Em primeiro lugar, embora grande parte deles consista em lamentos individuáis ou hinos de adora9áo, a coletánea em si toma por certo que mesmo esses salmos tém urna dimensáo ligada ao "povo de Deus": O individuo está sem-pre consciente de ser parte do povo que, junto, pertence a Deus numa rela9áo de aliaba e que compartilha a mesma historia. Como nos demais livros bíblicos, Javé é o centro de tudo, e os salmistas tém plena consciéncia de que sua própria vida depende do seu rclacionamento de aliaba com Javé. Dessa forma, seus cánticos lembram regularmente aos que os cantam que Javé é o Criador de tudo o que há, e portanto o Senhor de toda a térra, incluindo todas as na-9Óes — lembretes que gcralmentc tambcm afirmam o carátcr de Javé, especialmente seu amor e fidelidade (cf. Ex 34.4-6), mas também sua misericordia, bondade e justÍ9a. Ao mesmo tempo, eles ecoam repetidamente os momentos significativos da sua historia sagrada como povo de Deus. Varios salmos, alias, relatam a própria historia maior de Israel, seja em parte ou no todo, e por diferentes razSes (SI 78; 105—106; 136). A medida que vocé lé, portanto, atente para essas afirma9óes sobre Deus (incluindo as maravilhosas metáforas) e para os ecos da historia em si: Cria9áo, eleÍ9áo, livramento, a guerra santa, heran9a da térra, o papel de Siáo/Jerusalém como o lugar da presera de Deus e morada do seu vice-regente, o rei, e o papel de Israel na bén9áo das na9oes.

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Finalmente, é importante observar que os salmos 1 e 2, que nao tém título e sao enquadrados pela expressáo "Bem-avenrurado(s) aquele(s) que..." (1.1; 2.12), servem de introducáo a todo o Salterio. O salmo 1 (um salmo de Torá-Sabedoria) tem a honra do seu lugar porque estabelece a pressuposicáo teológica básica na qual todo o resto se sustenta, a saber, o fato de que Deus abencoa aqueles que se comprazem na lei e portanto se comprometem em ser leáis a alianza, enquanto o oposto acontece com os iníquos. Isso serve de base á maioria das lamentacóes, bem como aos cánticos de adoracáo e acoes de gracas, visto ser verdade mesmo quando a experiencia sugere algo diferente. O salmo 2 apresenta, entáo, o papel do rei, que como o "Ungido" e "Filho" de Deus (Israel como filho de Javé [Ex 4.22,23] agora se concentra no seu rei), é o protetor de Javé para o seu povo. O salmo 2, assim, serve como base nao só para as dimensóes ligadas a Siáo e ao rei no Salterio — para nao mencionar a agonia do salmo 89 —, mas posteriormente se torna central para o messianismo do Novo Testamento, esses salmos vindo a ser reconhecidos como cumpridos em Jesús Cristo. UMA CAMINHADA POR SALMOS Livro 1 (Salmos 1—41) D Salmos 1—2

Introducáo ao Salterio

Embora esses dois salmos apresentem o Salterio como um todo (v. ácima), o salmo 1 também introduz a linha principal do Livro 1 em particular, enquanto o salmo 2 apresenta os assuntos principáis do Livro 2. D Salmos 3—7

Cinco lamentos (apelos por ajuda)

Como o Livro 1 consiste de maneira predominante em lamentos, é apropriado que tres afirmacoes de confianza á noite e de manhá (3.5; 4.8; 5.3) estejam no inicio da colecáo de salmos. Esses lamentos costumam combinar urna ora9áo a Javé com afirmaqóes sobre ele e de confian9a nele, que também é o tema do que se diz aos outros em Salmos 4.2-5 (cf. 6.8,9). Os salmos 3, 5 e 7 clamam pelo livramento das máos dos inimigos, enquanto o salmo 4 clama por alivio em tempo de seca,

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e o salmo 6, por cura. Observe também as pressuposicóes teológicas (o papel de Deus na guerra santa; a presenca de Javé em Siáo [3.4; 4.5; 5.7]; o caráter de Deus [misericordioso, justo]) e o fato de que cada urna délas pressupóe as coisas básicas que sao presumidas no salmo 1. _7J Salmo 8 Adoraqáo ao Criador Esse hiño se regozija em Javé e na sua majestade como Criador, e se maravilha diante da sua graciosa magnanimidade em relacáo á raca humana e ao papel desta na ordem da Criacáo, ecoando, assim, Génesis 1 e 2. □ Salmos 9—13

Lamento pelo livramento dos "justos pobres"

Juntos, esses cinco (ou quatro) salmos tém exatamente a mesma extensáo que os primeiros cinco lamentos (3—7). Os salmos 9 e 10 juntos formam urna oracáo acróstica por livramento, cada verso comecando com urna letra sucessiva do alfabeto hebraico (v. SI 119). A primeira metade (SI 9) é um clamor por livramento da opressáo das nacóes ímpias; a segunda (SI 10) assume a posicáo do justo pobre, a pes-soa desamparada que é recipiente de injustica social (v. Ex 22.22-27; Amos; Isaías; e Miqueias). Depois de urna afirmacáo de confianca no governo justo de Javé (SI 11), dois lamentos adicionáis clamam por ajuda e livramento (12; 13). Na sua leitura, atente para as varias afirmagües ostensivas e tácitas sobre Deus que marcam esses salmos. D Salmo 14 A insensatez da humanidade (v. salmo 53) Observe como esse salmo serve para concluir essa segunda serie de lamentos, como o salmo 8 conclui a primeira, apontando a total insensatez e o mal daquela parte da humanidade que nao reconhece a Deus (ecoando, assim, Gn 3), enquanto encoraja o justo pobre. D Salmos 15—24 Sobre o acesso ao templo Juntas, essas series de salmos formam um padráo quiástico. No enquadramento exterior, os salmos 15 e 24 fazem a mesma indagacáo básica: "Quem tem acesso ao templo de Javé?" (15.1; 24.3). A resposta, é claro, é: "Aqueles que sao justos", o que está de acordó com o salmo 1

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(observe como cada salmo afirma aspectos diferentes da Lei). No enquadramento seguinte, os salmos 16 e 23 exprimem confianca em Javé, ambos concluindo numa nota de alegría por se estar na presenca dele (16.11; 23.6). Os salmos 17 e 22 sao, entao, apelos por libertacáo, que exprimem de maneira especial a confianca em Javé. No enquadramento interior, os salmos 18 e 20—21 exprimem juntos oracáo e adoracáo pelo livramento do rei dos seus inimigos (retomando, assim, o salmo 2). O elemento central nesse grupo é o salmo 19, que se gloria na criacáo (SI 8) — especialmente o sol de veráo enquanto atravessa o céu — e na Lei (SI 1). Mais urna vez, na sua leitura, atente para as afirmacoes teológicas básicas (o amor de Javé, Javé como Guerreiro Divino etc.) e os ecos da historia de Israel (a Lei, heranca da térra, eleicáo [o sentido de 22.22-31], seu papel entre as nacoes etc.). D Salmos 25—33 Oracáo, adoracáo e confianqa no Rei da Criacáo Como no caso do grupo anterior, também se identifica um padráo quiástico aqui. No enquadramento exterior (ambos acrósticos), o salmo 25 oferece oracáo e adoracáo a Javé pelas suas misericordias da alianca, enquanto o salmo 33 (sem título) é um hiño de adoracáo pelo governo gracioso de Javé. No enquadramento seguinte, o salmo 26 é a oracáo de alguém que é impecável diante da Lei da alianca de Javé, enquanto o salmo 32 exprime a felicidade daquele a quem Javé perdoou. Os salmos 27 c 31 ambos rogam a Javé para que os defenda dos falsos acusadores (observe como eles concluem com exortacoes praticamente idénticas: "anima-te e fortalece teu coracáo"). No enquadramento seguinte, o salmo 28 é a oracüo de urna pessoa descendo "á cova" (v. 1), enquanto o salmo 30 consiste na adoracáo daquele que foi tirado "da sepultura" (v. 3). A exemplo do grupo anterior, o salmo central (SI 29) louva o Rei da Criacáo, dessa vez á luz de um ruidoso temporal. Novamente, observe as varias afirmacoes teológicas expressas nesses hinos. D Salmos 34—37 Instruqáo na sabedoria divina e apelos contra os impíos Esse grupo de quatro salmos também forma um quiasmo. Os salmos 34 e 37 sao acrósticos alfabéticos, ambos ensinando a sabedoria

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SALMOS

segundo os principios de Deus (refletindo mais urna vez o salmo 1), enquanto os salmos entre estes dois apelam a Javé, como Guerreiro Divino, para que os defenda dos difamadores maldosos (SI 35) e dos perversos que nao temem a Deus (SI 36, que tem seu próprio pa-dráo quiástico: v. 1-4, 5-9, 10-12). Observe que, seguindo-se a tradi-cáo da Sabedoria (v. "Visao geral de Proverbios", p. 171), o "temor do SENHOR."está no centro do salmo 34 (cf. v. 7,9,11),precisamente aquilo que os homens perversos nao tém (36.1). D Salmos 38—41

Quatro lamentos: oraqáo e confissáo de pecados

Esses lamentos fináis no Livro 1 tém um denominador comum quádruplo: (1) o salmista passa por grande aflicáo (enfermidade em tres desses casos), que ele percebe resultar de pecado (de novo, SI 1); (2) seus inimigos zombam dele; (3) ao apelar por misericordia, ele confessa seu pecado; e (4) o apelo é baseado em sua confianca em Javé. Um fato algo interessante é que, na colecao davídica original, o salmo 51 seria o seguinte nessa ordem, continuando o tema da confissáo de pecados. Livro 2 (Salmos 42—72) Nesse livro figuram Siáo, o templo e o rei — todos eles em relacáo a Javé, que habita no templo em Siáo e cujo reinado sobre Israel é representado pelo rei humano — embora vocé possa observar que nesse livro o nome genérico "Deus" (Elohim) ocorre com maior frequéncia do que Javé ("SENHOR"). O livro comeca e concluí com urna serie de tres oraches seguidas de um salmo real (42—44 e 45; 69—71 e 72), cujo quadro central é urna colecáo de salmos de Siáo (46—48) e um maravilhoso salmo celebrando a própria entronizacáo de Javé no templo em Siáo (68). D Salmos 42—45

7rés oraqóes e um salmo regio

Vocé perceberá que os salmos 42 e 43 constituem praticamente um mesmo salmo (observe o refráo, repetido tres vezes, em 42.5; 42.11; 43.5). O lugar deles no comeco do Livro 2 está ligado ao anseio do salmista para se unir á peregrinacáo a Siáo (42.4; 43.3,4), enquanto

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COMO tER A BÍBtIA LIVRO POR UVRO

o salmo 44 prenuncia o Livro 3 ao lamentar urna derrota nacional de proporcóes consideráveis (mas sem mencionar a devastacáo de Jerusalém, como no salmo 74). Observe especialmente os apelos á historia de Jerusalém e á fidelidade para com a alianca. O salmo regio que vem em seguida (45) fbi composto para celebrar o casamento do rei. D Salmos 46—48 Celebrando Siáo O trio de salmos sobre Siáo é central para o Livro 2, celebrando a seguranca do povo em Siáo (46 e 48) e o reinado de Javé sobre toda a térra (47). Nao importava o que eles sentissem quanto á dinastia davídica, os cantores de Israel lembravam bem que o verdadeiro "palacio" real em Siáo era o templo do todo-poderoso Javé. D Salmos 49—53 Da atitude adequada diante de Deus Atente para os ecos do governo de Javé com base em Siáo nesse grupo de salmos (50.1-15; 51.18,19; 52.8,9; 53.6), mesmo que eles se concentrem em outras questóes. Como grupo, eles contrastam atitudes adequadas com inadequadas diante de Deus — nao confiar na fortuna (49), mas apresentar sacrificios baseados na lealdade a alianca (50), especialmente um espirito penitente (51), porque Deus rejeita os maus (52) e expóe a tolice deles (53). D Salmos 54—59 Seis lamentos: oracóes por ajuda Observe o que esses lamentos tém em comum: todos eles presumem a presenca do rei em Jerusalém, presumem a presenca de Javé em Jerusalém, consistem em queixas contra os inimigos e, finalmente, a principal arma de ataque destes é a boca (calúnia, mentiras etc.). □ Salmos 60—64 Cinco oraqóes com temas comuns Esses cinco salmos sao emoldurados por um lamento da comunidade (60) e um lamento individual contra os inimigos (64). Observe como todos dáo continuidade a alguns dos temas anteriores: sao proferidos pelo rei; a presenca de Javé em Siáo está na esséncia tanto da ora-cáo como da adoracáo; eles esperam de Javé protecáo ou livramento dos inimigos.

SALMOS

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□ Salmos 65—68 Louvor aos prodigios e á presenca de Deus O tema principal do Livro 2 passa a receber atencáo plena com esse grupo de hinos e acoes de gracas que exaltam o reinado de Javé ao lembrar seus "prodigios", primeiro em favor de toda a térra (65 e 67) e depois em favor de Israel (66 e 68). O salmo 68 é especialmente crucial, tanto para o Livro 2 quanto para o Salterio todo, porque celebra a entronizacáo de Javé em Siáo — observe como ele deixa o Sinai e se estabelece em Siáo, sendo portante Rei sobre Israel e as nacóes, para nao mencionar a térra inteira. O salmo 72, que conclui o Livro 2, deve ser lido á luz desse salmo.

□ Salmos 69—72

Tres oracóes e um salmo regio

O Livro 2 agora conclui de maneira bem semelhante ao seu cornejo — com tres apelos por ajuda que concluem com um salmo real. Observe como o apelo no salmo 69 assume de maneira especial o papel de Davi como rei em relacáo ao povo. Observe, além disso, que os salmos 70 e 71 reelaboram/reafirmam partes de Salmos 40.13-17 e 31.1-5.0 salmo final (72) é crucial para os interesses maiores do Salterio: um salmo de entronizacáo atribuido ao filho de Davi, Salomáo, ele funciona junto com o salmo 2 para enquadrar a dimensáo ligada á realeza dos Livros 1 e 2; ao mesmo tempo, ele contrasta notoriamente com a conclusáo do Livro 3 (89), que lamenta o fracasso do momento da dinastía davídica.

Livro 3 (Salmos 73—89) Os varios e proeminentes lamentos exílicos e pós-exílicos nessa cole-cáo (incluindo varios lamentos da comunidade) refletem o tempo após Siáo ter sido devastada, o templo, profanado e a dinastía davídica, com sua "alianca eterna" (v. 2Sm 7.14-16), agora estar sem rei. Assim, mesmo os varios salmos préexílicos (p. ex., 76; 78; 83; 84; 87) sao mais bem entendidos sob essa luz; a saber, á luz do fato de que eles contém a memoria que os salmos que os circundam agora lamentam.

D Salmos 73—78 Sobre rejeiqáo e esperanqa para Siáo Como no Livro 1, um salmo de Sabedoria abre o Livro 3, meditando sobre o enigma da prosperidade dos maus e estabelecendo, assim, o

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COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVRO

tom para o que vem a seguir. Junto com o salmo 78 (outro salmo de Sabedoria), ele enquadra duas oracoes (74; 77) que exclamam a questáo básica do Livro 3 ("por que nos rejeitaste?'7"0 Senhor rejeita para sempre [...]?"). Estas oracóes, por sua vez, encerram um salmo de acóes de gracas e outro de Siáo (75/76), que sublinham as razóes dos lamentos. Observe que o salmo 78 é um dos quatro salmos que contam novamente a historia de Israel em maiores detalhes (cf. 105; 106; 136), nesse caso relembrando rebelióes passadas e suas trágicas conscquéncias como advertencia para o que poderia acontecer — e de fato aconteceu — de novo, numa escala ainda maior. D Salmos 79—83

Sobre rejeiqáo e esperanqa para Siáo, novamente

Esse grupo de cinco salmos é compreendido por duas series de salmos que mais urna vez exprimem o tema básico do Livro 3. Embora os salmos 79 e 80 reflitam duas épocas diferentes (antes e depois da queda de Jerusalém), eles tém em comum a questáo básica de "Até quando?" (79.5; 80.4). Igualmente, os salmos 82 e 83 tém em comum o apelo que conclui o primeiro (82.8) e inicia o segundo (83.1): "nao fiques em silencio nem te detenhas" (NVI). Juntos, eles encerram urna exortacáo a Israel que sugere o motivo da sua queda (81). n Salmos 84—89 Em celebraqáo a Siáo, e lamento pelo seu fim Esse grupo final é formado por duas series de tres salmos, cada serie tendo um padráo semelhante. Elas comecam (84) com urna celebracáo dos tabernáculos de Javé e o anseio por eles. A isso se segué outro salmo que faz a pergunta que é tema do livro ("Permanecerás para sempre irado contra nos?" 85.5), a que se segué, por sua vez, o único salmo davídico do Livro 3 (SI 86) — um clamor por misericordia baseado na grande revelacáo de Javé no Sinai, de que ele é "Deus compassivo e misericordioso, muito paciente, rico em amor e em fidelidade"(v. 15; cf.Éx 34.4-6). A segunda serie segué o mesmo padráo — comecando com urna celebracáo de Siáo (SI 87), seguida do lamento lúgubre do salmo 88 e concluindo com um salmo em tres partes (89) que ecoa questóes

SALMOS

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do salmo 86. A primeira parte (89.1-18) celebra o amor e a fidelida-de de Javé ao seu povo, especialmente evidenciados pela alianca com Davi (v. 19-37); juntas, essas partes se tornam a base para o lamento sobre o presente fracasso da dinastia davídica (v. 38-51). Observe que a secao que encerra o salmo 89 contém a questáo tema: "Até quando, SENHOR?"(V. 46). Livro 4 (Salmos 90—106) Em resposta direta a devastacáo de Jerusalém e á lacuna presente na dinastia davídica, o Livro 4 comeca com o lembrete de que Javé tem sido o "refugio" de Israel ao longo de todas as gerac5es. A parte essencial dessa colecáo, portanto, é a serie de salmos que celebra o reinado de Javé — tanto sobre Israel quanto sobre todas as nacóes. O livro encerra com urna serie de respostas ao reinado de Javé, concluindo com duas que contam novamente a historia de Israel a partir de perspectivas diferentes. D Salmos 90—92 Javé, nossa morada Remontando ao único salmo intitulado "de Moisés", o organizador do Salterio pos essc salmo no comeco do Livro 4, com sua garantía inicial de que Deus tem sido o "refugio" de Israel "de geracao em geracáo". A isso se segué um salmo de confianca, que tem como parte central o fazer "do Altíssimo, tua habitacao" (91.9), e um salmo de adoracáo ao "Altíssimo" (92.1) pelos seus muitos beneficios, incluindo a derrota dos adversarios. D Salmos 93—99 Javé reina, regozije-se o povo O tema comum desse grupo de salmos é a celebracáo — de variadas maneiras e por varias razóes — do fato de que Javé reina sobre Israel, as nacóes e toda a térra. A única excecáo aparente (94) toma por certo, nao obstante, o reinado de Javé enquanto clama por justica contra aqueles que rejeitam a lei de Javé. Observe também a advertencia inerente de 95.7-11, que retoma as questóes do salmo 78 e prenuncia o salmo que conclui esse livro (106), sendo também a base para a exortacáo em Hebreus 3.7—4.11.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

□ Salmos 100—106 Louvor a Javé e esperanca de restaurando Esse grupo final no Livro 4 forma uma especie de mini-Saltério, os salmos refletindo diferentes respostas ao reinado de Javé: celebracáo (100); uma promessa de viver em fidelidade (101); uma oracáo pela futura reconstrucáo de Siáo (102; observe especialmente o v. 12, que presume o reinado de Javé mas também roga para que ele retorne a Siáo); louvor pelo grande amor de Javé (103); e louvor a Javé como Criador (104). Os dois salmos que concluem esse grupo contam a historia de Israel a partir de duas perspectivas diferentes: uma conclamacáo ao povo a que lembre de todas as misericordias de Deus nessa historia (105) e uma advertencia para que nao repitam a rebeliáo que aparece nessa mesma historia (106). Observe como o Livro 4 conclui com uma oracáo por livramento do exilio (106.47, refletindo Dt 30.1-10).

Livro 5 (Salmos 107—150) Esse livro final do Salterio é muito mais variado, tanto na forma quanto no conteúdo, do que os quatro que o antecedem. Ele comeca com um salmo de acóes de gracas cujos primeiros versículos (107.1-3) sao uma resposta direta a oracáo em Salmos 106.47; o livro conclui com os cinco salmos de Aleluia. Além do papel central do salmo 119, que ecoa as questóes do salmo 1, a maior parte do livro é composta por tres series de salmos: (1) 110—118, que comecam e terminam com salmos que, ao menos nesse contexto, vislumbram a renovacáo do reinado davídico; (2) 120—134, os cánticos dos degraus — agora entoados no contexto do segundo templo, mas visando também ao futuro; e (3) 138—145, uma coletánea davídica que funciona como uma especie de reprise, voltando o olhar para os Livros 1 e 2, e concluindo na nota da natureza eterna do reino de Deus e da sua fidelidade as promessas (145.1113). Assim, no todo, esse livro contém salmos que refletem a situacáo atual e os anseios em relacáo ao futuro do judaismo pós-exílico.

D Salmos 107—109

Louvor a Deus pelo resgate do seu povo e dois lamentos davídicos

Embora nao tenha sido escrito com o retorno da comunidade exilada em mente, esse hiño inicial de acoes de gracas pelo livramento comeca

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com o tema da "reuniao" (107.1-3), e serve assim para apresentar o Livro 5. Observe a prontidáo com que o salmo 108 responde a isso, combinando o louvor (v. 1-5) com um apelo a Javé para que auxilie Israel na luta contra seus inimigos (v. 6-13) — um salmo construido a partir de 57.7-11 e 60.5-12 — enquanto o salmo 109 retoma esse apelo, enunciando em detalhes os pecados do inimigo e pedindo ao Juiz divino por justica equivalente. □ Salmos 110—118 O Re i vindouro e salmos festivos Esse grupo de salmos é emoldurado por dois salmos regios (110; 118), que no judaismo pós-exílico eram reconhecidos como messiánicos, o que explica por que, juntos, eles tiveram um papel táo importante no próprio ministerio de Jesús (Me 11.4—12.12,35-37) c na igreja primitiva (o salmo 110 em particular; At 2.34,35; Rm 8.34; ICo 15.25; Cl 3.1; Hb 1.13). Eles encerram urna serie de salmos (com excecáo do 114) que ou comefam ou concluem com "Aleluia", e que eram usados nos grandes festivais de Israel. O salmo 114 é urna das maiores celebra95es de Israel do Éxodo — contendo imagens maravilhosas (o mar "viu isso e fugiu", os montes "saltaram como cordeiros"). n Salmo 119

Celebraqáo da Leí, a palavra fiel de Javé

Esse grande poema que celebra a Lei forma a parte central do Livro 5, levando-nos mais urna vez, portante, ao salmo que introduz o Salterio, o salmo 1. Um acróstico alfabético (oito versos de poesía para cada letra do alfabeto hebraico), ele foi composto por alguém que reconhecia os beneficios da dádiva da alianca de Deus ao seu povo e se gloriava neles. D Salmos 120—134

Cánticos dos degraus/da subida/ das peregrinaqóes

Essa colecáo de salmos, todos com título, pertence á tradicáo da peregrinacáo a Siáo por ocasiáo dos tres festivais anuais. No contexto do judaismo pós-exílico, é quase certo que também há neles urna dimensáo que vislumbra o futuro. Esteja atento para os muitos temas teológicos e ligados á historia de Israel encontrados nesses salmos.

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D Salmos 135—137

COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVRO

Em resposta as peregrinajes

Os salmos 135 e 136, por diferentes que sejam, ambos presumem a chegada dos peregrinos ao santuario de Javé para adorar. Observe como o primeiro salmo o louva pela Criacáo e pela eleizáo (em contraste com aqueles cujos deuses sao ídolos), e o segundo conta mais urna vez a historia de Israel, com resposta antifonal. O salmo final (137) lamenta a realidade do Exilio, quando a peregrinacáo nao era possível. [j Salmos 138—145 A coleqáo davídica final O corpo principal do Salterio conclui, apropriadamente, com urna colecao final de salmos atribuidos a Davi. Eles comecam com adoracáo (138), passam a um reconhecimento da grandeza de Javé como o onisciente e sempiterno Deus — o que se exprime numa linguagem de espanto e admiracáo, nao de medo (139) —, a que se seguem cinco oraches por livramento (140—144). Eles concluem com outro acróstico alfabético (145) que louva a Javé pelos seus feitos maravilhosos e seu caráter (bondade, compaixáo, fidelidade, justica). Observe especialmente os versículos 11-13, que prefiguram o reino eterno de Deus. D Salmos 146—150 Aleluia quíntuplo Esses "Aleluias" que concluem o livro destacam o ponto principal do Salterio: Deus deve ser louvado — por ser o auxiliador dos desamparados (146); como Criador e restaurador do seu povo (147; observe como esses dois temas estao entrelazados); céus e térra devem louvá-lo (148); com danca, com os labios e com a espada na mao (149); e conclamando-se ao louvor com todo tipo de música e danza (150). Este último salmo parece ter sido deliberadamente composto para concluir tanto o Livro 5 quanto o Salterio como um todo. Faremos bem em seguir sua exortazao continuamente. Deus é digno. Aleluia!

A colezao de salmos, que é a voz do povo de Javé cantando a ele em louvor e orazao, também serve para lembrá-lo — e a nos — do papel central da adorazáo na historia bíblica, adorazáo que se concentra no Deus vivo ao lembrar da sua bondade e amor essenciais e dos seus maravilhosos feitos em favor do seu povo.

Proverbios

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE PROVERBIOS ■ Conteúdo: urna serie inicial de poemas louvando a sabedoria e advertindo contra a insensatez, seguidos de varias colecoes de proverbios de sabios que ensinavam a sabedoria a Israel, comecando por Salomáo ■ Autor(es): colecoes de proverbios originados de Salomáo, varios homens sabios, Agur e a máe de Lemuel — reunidos e organizados para as geracóes posteriores por alguém que de outro modo é desconhecido ■ Enfases: a sabedoria comeca com o temor a Javé e a confianca nele; no nivel prático, consiste em tomar decisóes sabias entre o comportamento bom e o comportamento mau; tal sabedoria deve ser desejada ácima de tudo o mais para que se viva urna vida plena e justa

VISÁO GERAL DE PROVERBIOS A maior parte do livro de Proverbios consiste em seis colccócs de proverbios/aforismos, isto é, dizeres ligados a sabedoria, em geral parelhas de versos (dísticos) que visam orientar os jovens — embora seu valor nao se limite de modo algum a qualquer faixa etária — sobre como viver de forma moral e benéfica no mundo. Enquadrando essas colecoes de proverbios, de ambos os lados, há um prólogo de varios poemas

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

(1.18—9.18) que enfatiza a importancia de dar ouvidos aos sabios, e um epílogo consistindo em um poema (31.10-31) que idealiza urna esposa caracterizada pela sabedoria. Um preámbulo (1.1-7) fornece o título, o propósito e o tema do livro. Os grupos de proverbios e aforismos sao todos identificados no próprio livro: Proverbios de Salomáo i (10.1—22.16) Dizeres dos Sabios i (22.17—24.22) Dizeres dos Sabios n (24.23-34) Proverbios de Salomáo n (25.1—29.27) Dizeres de Agur (30.1-33) Dizeres de Lemuel (31.131) Todos estes tém o propósito de ser lidos e estudados á luz do prólogo, com sua énfase na necessidade de alcancar a sabedoria e rejeitar a insensatez e a tolice (andar em retidáo e rejeitar o mal). Aqui vocé também encontra a perspectiva teológica fundamental do livro: "O temor do SENHOR é o principio da sabedoria; e o conhecimento do Santo é o entendimento"(9.10; cf. 1.7). Porque embora muiros desses proverbios sejam comuns a outras culturas, os proverbios desse livro foram adaptados especialmente para a vida na comunidade da alianca de Israel. Eles pressupóem nao apenas a alianca da Lei (6.16-19) — de fato, temer a Javé é odiar o mal (8.13) —, mas também a vida do povo de Deus na sua térra prometida (2.21,22; cf. 10.27-30).

ORIENTALES PARA A LEITURA DE PROVERBIOS Assim como no caso de Salmos, 1er o livro de Proverbios do comeco ao fim nao é a forma mais apropriada de manejar esses proverbios (quem leria urna coletánea de citacoes familiares dessa maneira?). Por outro lado, o preámbulo, o prólogo e a macroestrutura do livro como um todo indicam urna organizado geral algo cuidadosa, que provavelmente tinha o propósito de ser memorizada pelos jovens (v. 3.3; 4.21; 7.3; 22.17,18). Há, portanto, duas questóes importantes a observar para que sua leitura de Proverbios seja proveitosa.

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Em primeiro lugar, algumas observagóes sobre a estrutura do livro. O preámbulo (1.1-7) prepara vocé para a leitura do livro como um todo, estabelecendo seu tema (v. 2, alcangar a sabedoria), seu propósito (v. 3-5), os contrastes básicos entre sabedoria e insensatez (v. 7) e seu fundamento teológico (v. 7). Ao mesmo tempo, o versículo 6 dá urna ideia do livro como um todo, referindo-se aos seus principáis "autores" (proverbios pertencentes a Salomáo c os dizeres dos sabios). É importante observar que o contraste entre sabedoria e insensatez também é um contraste (primariamente) entre a justiga e a impieda-de. Esses contrastes se tornam o tema predominante dos poemas no prólogo (1.8—9.18),em que os dois temas ilustrativos principáis sao o dinheiro fácil (dinheiro tomado por meios corruptos) e o sexo fácil (ser seduzido pela mulher de outro homem). No fim do prólogo, a sabedoria e a insensatez sao personificadas na forma de mulheres pedindo aos jovens que as sigam. Nao surpreende, portanto, que a passagem central desses poemas (caps. 5—7) exorte o jovem a amar a sua mulher pela vida toda (5.15-19) e a nao ser tentado pela mulher imoral, exortagóes que servem, por sua vez, como analogias sobre amar a sabedoria em vez da insensatez (caps. 8—9). Isso também ajuda a entender o poema acróstico com que a colegáo inteira de proverbios conclui (31.10-31), em que a mulher idealizada é um modelo da sabedoria, sendo análoga á senhora Sabedoria.Também nao surpreende que esses poemas assu-mam principalmente a forma de admoestagóes. Esses contrastes entre sabedoria e insensatez perduram ao longo da primeira metade de Salomáo i (10.1—15.29), agora em geral na forma de proverbios que consistem em dois versos antitéticos (o segundo verso contrastando fortemente com o primeiro) em vez das admoestagóes. Aqui, sabedoria/justiga quer dizer diligencia no trabalho e cuidado da térra, uso prudente do dinheiro (recursos), relacionamento caridoso para com os vizinhos e na familia, uso apropriado da língua e atitudes e atos adequados (ser humilde, evitar a ira etc.); enquanto a insensatez é retratada como o oposto disso. A segunda metade de Salomáo i (15.30—22.16) continua esses temas, predominando agora os dísticos sintéticos (o segundo verso completa ou desenvolve o primeiro), com a inclusáo digna de nota de varios proverbios que se concentram no rei e sua corte.

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COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVRO

Em segundo lugar, alguns comentarios sobre os proverbios em si e o que os faz funcionar. Primeiro, eles tém urna forma poética. Mas trata-se de poesia hebraica, ou seja, algumas coisas sao fácilmente traduzidas para as nossas línguas modernas, mas outras, nao. Pense como deve ser difícil verter para outras línguas aforismos como "Melhor prevenir do que remediar", "Deus ajuda quem cedo madruga" ou "Pao, pao; queijo, queijo". Proverbios desse tipo costumam ser rítmicos e assonantes, o que os torna facéis de lembrar. Quando traduzidos para outra língua, nem sempre há como capturar esses aspectos, embora o sentido essencial do proverbio possa ser claro. É o que acontece com esses proverbios hebraicos, que sao breves e incisivos (em geral apenas tres ou quatro palavras hebraicas por verso) e cheios de aliteracoes, trocadilhos, métrica etc. — sem mencionar alusbes e metáforas pertencentes ao seu contexto cultural original, nem todas das quais sao facéis de capturar para nos. Afuncáo dos proverbios é oferecer instrucoes práticas para os jovens, concentrando-se em como viver de maneira justa e boa numa sociedadc que se vé a si mesma como estando sob o govcrno de Deus. É importante lembrar que esses proverbios visavam primariamente a vida em familia, para reforcar os beneficios de se viver de maneira prudente e proveitosa no cotidiano; nao se trata de instrucáo religiosa como tal. Mesmo assim, seu objetivo é moldar o caráter dos jovens de modo que ele se conforme á lei, mesmo que esta nao seja mencionada. O método dos proverbios é o método universal do género — exprimir verdades importantes para a vida prática de maneiras facéis de lembrar, e portante de repetir. Isso se faz por meio de afirmacoes algo exageradas, frases do tipo "tudo ou nada" ou trocadilhos dos quais nao se deve esperar urna precisáo total. As vezes, é o próprio exagero da expressáo — que afirma a verdade, mas nao toda a verdade — que transmite o sentido do proverbio. Tome-se, por exemplo, o proverbio americano "Moeda poupada é moeda lucrada". Embora isso seja verdade, o sentido aqui é a frugahdade, nao a ideia de que nunca se deva gastar dinheiro. Ou tome-se o proverbio oposto, "O tolo e o dinheiro logo se separam", que nos lembra da importancia da frugalidade de urna forma diferente. Este último proverbio tem um antecedente em Proverbios 17.16: "Para que serve o dinheiro na mao do tolo, se ele nao tem entendimento

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para comprar a sabedoria?". O importante, portante, na sua leitura dos proverbios, é determinar o seu sentido atentando para seu conteúdo e forma poética, cuidando para nao buscar neles mais sentido do que eles de fato tém — e para nao ignorar os contra-proverbios, que também dizem a verdade (v. Entendes o que les?, p. 278-290).

UMA CAMINHADA POR PROVERBIOS O preámbulo (1.1-7) Varias questoes importantes para a leitura da cole9ao de proverbios sao apresentadas aqui. Os proverbios se originam com Saloman, que é significativamente mencionado como o filho de Davi, rei de Israel (v. 1); declara-se o propósito deles (v. 2-5) — alcafar urna vida prudente que também seja íntegra e justa; eles se dirigem aos jovens e aos "simples" (v. 4, esta palavra querendo significar algo como "ingenuo"— aqueles que sao fácilmente engañados); vislumbra-se o seu conteúdo (v. 6); e sua perspectiva e contrastes básicos sao enunciados (v. 7).

O prólogo (1.8—9.18) Para entender a cok^áo de proverbios que conrea em 10.1, é importante prestar bastante aten9áo nesse prólogo. Vocé verá que ele consiste numa serie de dez fillóes de um pai para o(s) filho(s), retomando especialmente as antíteses de 1.7; vocé também observará que a maior parte desse material consiste em admoesta9óes. Cada nova li-9áo comeqa com a introdujo de varios proverbios de alguns dísticos ("Meu filho, atenta para a minha sabedoria" etc.), seguidos da l'^áo em si. As li9óes sao estruturadas e organizadas de forma cuidadosa, e culminam no climax do capítulo 9, em que sabedoria e insensatez fazem seus apelos fináis.

D 1.8-33

Licjáo 1 Ce interludio 1): Advertencia e repreensáo

Observe que essa primeira introdu9áo (v. 8,9) inclui ambos pai e máe (cf. o come90 da cole9áo em 10.1). Vocé verá que essa lÍ9áo é urna seria advertencia contra a seducao dos ímpios (v. 10-19) que tramam o mal contra os outros para lograr um dinheiro fácil ("a renda do ímpio").

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Vocé também verá que, no interludio (v. 20-33), a personifica9áo da sabedoria toma a palavra, repreendendo nao o "filho", mas os "insensatos" e os "ímpios", aqueles que desejam seduzir o filho para longe da sabedoria de seus pais. Sua repreensáo básicamente descreve o justo fim de tais pessoas. D 2.1-22 Liqáo 2: Protecáo contra os ímpios Observe as quatro partes distintas dessa Ü9áo. Urna introdu9áo mais longa insta com o filho para que busque a sabedoria (v. 1-4); entáo "entenderás o temor do SENHOR e acharas o conhecimento de Deus" (v. 5,6), que por sua vez protegerá o caminho dele (v. 7,8) e entrará no seu cora9áo para guardá-lo (v. 9-11). O que se segué, entáo, sao as duas coisas principáis no prólogo das quais o filho precisa de prote9áo: (1) dos "maus" (v. 12-15) e (2) da "mulher imoral" (v. 16-19). Os versículos 20-22 entáo retornam ao tema de trilhar o caminho do justo. ü 3.1-35

Licúes 3 e 4: O valor da sabedoria

A liqáo 3 (v. 1-10) enuncia as promessas de Deus e as obrigaqoes do filho: amor e fidelidade = favor da parte de Deus e do povo (v. 3,4); confianqa no Senhor = caminhos retos (v. 5,6); humildade = boa saúde (v. 7,8); dízimos e ofertas = colheitas abundantes (v. 9,10). A liqáo 4 (versículos 13-26) apresenta tres poemas que sublinham o valor da sabedoria (observe o arranjo em dísticos 6-2-6) — suas bénqáos e valor (v. 13-18; observe o "feliz" no comeqo e no fim); seu papel na criaqáo (v. 19,20), retomando o tema da "árvore de vida" do versículo 18; e mais urna vez as suas bénqáos (v. 21-26), retomando agora especialmente o tema de paz e prosperidade do versículo 2. Observe agora como os versículos 27-35 no fim da liqáo 4 corresponden! a liqáo 3 ao oferecer admoestaqóes e advertencias negativas. □ 4.1-27 Licúes 5, 6 e 7: A preeminencia da sabedoria A primeira dessas tres liqóes (v. 1-9) enfatiza a heranqa de sabedoria da familia e insta com os filhos, portante, para que continuem nela. A liqáo 6 entáo conclama o filho a ficar longe do mau caminho, o caminho da iniquidade (v. 10-19), enquanto a liqáo 7 o adverte a nao se desviar do caminho correto, a vereda dos justos (v. 20-27).

PROVERBIOS

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0 5.1—6.19 Ligáo 8: Advertencias contra o adulterio, a insensatez e a iniquidade Retomando 2.16-19, essa ligáo adverte contra o adulterio (5.3-14,20), o que também inclui urna admoestagáo quanto á fidelidade no casamento (v. 15-19); a isso se segué urna advertencia adicional contra os impíos (v. 21-23) e contra dois tipos de insensatez (ser fiador de estranhos, 6.1-5; preguiga, v. 6-11). Ela concluí com a advertencia final do prólogo contra os impíos (6.12-19). 11 6.20-35 Licáo 9: Mais urna advertencia contra o adulterio Observe como essa introdugáo comega como as outras (v. 20-23), mas concluí com urna nota de advertencia (v. 24,25) que entáo é desenvolvida. Com urna serie tripla de dísticos (v. 26-29,30-33 e 34,35), a ligáo aponta as temíveis consequcncias do adulterio (punigáo, desgraga, um marido vingativo). □ 7.1—8.36

Ligáo 10 (e interludio 2): A mulher adúltera e o chamado da Sabedoria

Essa ligáo final corresponde a ligáo 8, concentrando-se agora ñas taúcas de sedugáo da mulher infiel, adúltera. Repare que ela servirá como analogía para o convite da Insensatez no final do prólogo (9.13-18; cp. 9.18 com 7.27; e 9.14 com 5.8). Observe como o segundo interludio (8.1-36) corresponde ao primerio (1.20-33), que se seguiu á advertencia contra os "maus". Dessa vez a Sabedoria se elogia a si mesma para os "simples" e os "loucos" (v. 5), para que reconhegam seu valor tanto para os reis quanto para os prósperos (v. 12-21), e alias para o próprio Javé (v. 22-31). E no fim (v. 32-36), ela assume o papel do pai e convida os filhos a vigiarem diariamente a porta déla (diante da sedutora). D 9.1-18 Epílogo: Banquetes rivais da Sabedoria e da Insensatez Observe como essa serie final comega e concluí com convites rivais a todos os "simples" a banquetearem ñas casas da Sabedoria e da Insensatez, respectivamente (v. 1-6; 13-18), e observe especialmente

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

como a Insensatez tanto imita a Sabedoria quanto ecoa as seducóes da mulher adúltera. Entre os dois convites fináis há duas breves licúes (v. 7-9; 10-12) contrastando os sabios com os escarnecedores — tudo isso para que vocé leia os proverbios em si com diligencia e consideracáo.

Proverbios de Salomeo i (10.1—22.16) D 10.1—15.29 Salomeo l. Parte 1 Nossa divisáo de Salomáo i em duas partes pretende sublinhar o fato de que os dísticos nessa secáo sao, em sua maioria, antitéticos, seguin-do de maneira enfática as antíteses do prólogo. Mas em contraste com ele, mal se encontram admoestacóes entre esses versículos. A secáo comeca com um dístico (10.1) que nao só retoma a "instrucáo" dos jovens do prólogo, mas também acrescenta ambos os pais ao quadro, junto com o contraste entre a crianca sabia e a insensata. A medida que vocé le essa colecáo de proverbios, observe como certos temas caracterizando os contrastes entre sabedoria/insensatez e justica/impiedade sao repetidos vez após vez de diferentes maneiras e com diferentes imagens. Há varios padrees que unem grupos menores de proverbios que só foram descobertos pelos estudiosos mais recentemente, padrees frequentemente ligados aos grupos de proverbios anteriores e posteriores. Mas muitos desses padroes sao difíceis de identificar na traducáo em portugués. Há duas coisas que podem ajudá-lo quanto a isso na sua leitura dos proverbios. Em primeiro lugar, repare nos muitos proverbios instrutivos que se parecem bastante com as introducóes as licóes no prólogo (p. ex., 10.17; 12.1; 13.13). Esses proverbios instrutivos gcralmente formam urna "costura" que une duas partes na colecáo; atente, portante, para os pequeños grupos antes e depois desses proverbios. Em segundo lugar, pode ser proveitoso usar cañetas coloridas para sublinhar alguns temas recorrentes. Além de temas mais genéricos como os contrastes entre sábio/insensato e justo/ímpio, observe a fre-quéncia de contrastes como fartura/pobreza, trabalho/indoléncia, e de temas como a fala (verdade/mentira etc.), os relacionamentos (vizi-nhos, familia, rei) e as atitudes (ira, amor/ódio etc.).

PROVERBIOS

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Podemos identificar, por exemplo, os seguintes temas nos 32 dísticos do capítulo 10: o contraste entre os justos e os ímpios (de maneira ostensiva ou implicada) ocorre 18 vezes, tanto genéricamente (10 vezes, em que essc c o sentido do proverbio [v. 3,6,7,9,24,25,27-30]) quanto em conjuncáo com outros temas (8 vezes, v. 2,11,16,20,21,23,31,32); o contraste entre a sabedoria e a insensatez ocorre duas vezes num sentido genérico (v. 1,23) e oito vezes em conjuncáo com outros temas (v. 5,8,13,14,18,19,21,31); o contraste entre a fala apropriada e a inadequada ocorre 11 vezes (v. 8,10,11,13,14,18-21,31,32) e constituí o tema principal na maior parte dessas ocorréncias; o contraste entre trabalho e preguica é o tema do proverbio em tres ocasióes (v. 4,5,26); e o contraste entre abundancia e miseria ocorre 3 vezes (v. 15,16,22), ocorrendo em conjuncáo com trabalho/preguica no versículo 4. O único proverbio nesse capítulo que nao diz respeito a essas questóes é o versículo 17, que trata da disciplina (cf. também v. 13). O fato de muitos desscs versículos estarem relacionados e organizados dessa maneira sugere que eles nao foram simplesmente agrupados a esmo. Vocé pode tentar identificar esses padróes á medida que outros pequenos grupos de proverbios surgirem na sua leitura do livro. D 15.30—22.16 Salomeo I, Parte 2 Enquanto essa secáo de Salomáo i continua nos temas e énfases da parte l,há duas diferencas notáveis aqui. Em primeiro lugar, vocé verá que, embora continúen! ocorrendo dísticos antitéticos, a maioria dos dísticos agora é sintética, ambos os versículos somando para afirmar um mesmo aspecto. Em segundo lugar, dessa vez há um maior número de dísticos refletindo o rei e sua corte (e outros tipos de relacionamentos "verdeáis", o que comeca em 14.28,35 na parte 1). Os dizeres dos sabios (22.17—24.34) O 22.17—24.22

Primeira coleqáo de dizeres dos sabios

Duas coisas marcam essa colecáo para distingui-la de Salomáo i: (1) os versículos nao sao uniformes, cada um indo de dois a varios versos, e (2) eles voltam as admoestacoes que caracterizaram o prólogo. Observe

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COMO LER A BÍBUA UVRO POR LIVRO

também que eles sao apresentados e numerados como "trinta" (22.20, segundo algumas versóes; v. nota textual NVI), o que provavelmente também inclui a introdu9áo (22.17-21) como o primeiro deles. Observe o vasto e interessante alcance dos assuntos de que trata essa se9áo.

D 24.23-34 Segunda coleqáo de dizeres dos sabios Essa coleqáo é separada, porque "trinta ditados" (22.20, segundo algumas versóes; v. nota textual NVI) estabelece limites para a cole9áo anterior. Os cinco dizeres dessa segunda cole9áo sao diversos tanto na forma quanto no conteúdo, tratando de relacionamentos com os vizinhos e da diligencia no trabalho.

Proverbios de Salomeo u (25.1—29.27) Observe como essa coleqáo de proverbios salomónicos se afasta do estilo da coleqáo anterior, caracterizada por admoestaqoes. Estes proverbios foram reunidos pelos "homens" de Ezequias. Duas coleqóes sao evidenciadas (caps. 25—27; 28—29), o conjunto sendo menos uniforme no estilo do que Salomao i.

3 25.1—27.27

Salomeo II, Parte 1

Vocé perccbcrá que nessa primeira parte os proverbios sao mais vividos e diversos, compasees explícitas se tornando mais frequentes (observe o número de versículos que come9am com a palavra "Como"). A cole9áo come9a com urna serie ligada á corte do rei (25.2-8), que também estabelece um padráo para varios proverbios mais longos (as vezes denominados "proverbios poéticos": 25.16,17; 25.21,22; 26.23-26; 27.23-27). Fora isso, a maioria desses proverbios repete questoes encontradas na primeira cole9áo.

3 28.1—29.27

Salomeo II, parte 2

Essa segunda cole9áo é urna serie de 52 dísticos (na maioria antitéticos) que se concentram principalmente na questao dos ímpios e dos justos. Observe como o primeiro dístico, o do meio e o último tornam esse tema explícito (28.1,28; 29.27; mas v. também 28.12; 29.2,7,16), e o fato de que elas enquadram dísticos que básicamente tratam de governantes, ensino e justi9a para os pobres.

PROVERBIOS

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Mais dizeres dos sabios (30.1—31.31) D 30.1-33 Dizeres de Agur Essa colecáo diversa é muito interessante, tanto na forma como no conteúdo. Observe especialmente o seguinte: como os versículos 2-4 ecoam material dejó 38.5-11; a oracáo nos versículos 7-9 (a única em Proverbios); os quatro tipos de malfeitores identificados nos versículos 11-14; e os numerosos dizeres/enigmas nos versículos 15-31, que parecem simplesmente conter varios tipos de observacóes sobre a vida em vez de ensinamentos moráis específicos. D 31.1-9 Dizeres de Lemuel Essa colecáo final é única, relatando os dizeres de um rei ensinados a ele pela rainha sua máe. Ambas as partes desse capítulo final, portante, oferecem exemplos de mulheres sabias — servindo assim para encerrar o livro com o tema da instrugáo da senhora Sabedoria, a semelhan9a dos capítulos 1—9. D 31.10-31

Epílogo: A mulher sabia/idea I

Esse retrato final e idealista da "mulher virtuosa" provavelmente deve ser entendido como mais um dizer que a máe de Lemuel lhe ensinou. É um poema acróstico (cada versículo conrea com urna letra sucessiva do alfabeto de 22 letras hebraico). Observe como ele idealiza a mulher nos termos dos valores que foram ensinados ao longo do livro — conclusáo apropriada para a colecáo.

O livro de Proverbios se encaixa na historia bíblica dando instru9Óes práticas aos jovens (e quem mais quiser ouvi-las) para ajudá-los a seguir ñas veredas do Senhor e ter urna vida benéfica e frutífera na térra.

Eclesiastes

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE ECLESIASTES ■ Conteúdo: as meditacóes de um mestre da Sabedoria que luta com as realidades da vida; o que se ganha alcancando-se a fortuna ou a sabedoria quando no fim a morte reivindica tanto o rico como o pobre, tanto o sabio como o tolo; mas o livro se sitúa especialmente num contexto de se conhecer o temor de Deus ■ Data de composicáo: desconhecida; as estimativas dos estudiosos abarcam um vasto período ■ Enfases: a natureza transitoria da vida presente; como viver de maneira sabia num mundo em que as únicas certezas sao a morte e o julgamento; a futilidade dos projetos humanos que nao levam em conta o temor de Deus

VISÁO GERAL DE ECLESIASTES O livro de Eclesiastes vem a nos pelas máos de um editor (12.9-14) que compilou os ensinos e proverbios de um rei israelita que se autointitula Qphelet ("agregador"), título que alude ao seu papel como mestre de sabedoria numa assembleia — presumivelmente o povo de Deus (12.9). Um prólogo (1.1-11) estabelece a questáo básica que dirige toda a empreitada do Qphelet, a saber, a natureza hebel (= "sopro", "vapor"; "sem sentido") da vida humana em um mundo que continua

ECLESIASTES

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da forma como era antes e depois do tempo de vida de qualquer pessoa. O livro conclui com as palavras do editor-compilador, que conclama á contemplacáo das palavras do Qohelet como incentivos para os jovens, mas também adverte que há um limite adequado para tais especulacóes (12.12) — e no final ele assegura que tudo seja situado no contexto supremo da sabedoria bíblica: temer a Deus, guardándole os seus mandamentos, dá sentido a vida humana. As palavras do próprio Qohelet sao enquadradas (1.2; 12.8) pelo melancólico refráo Hebel, hebel!, diz Qohelet; Hebel de hebell Tudo é hebel. O restante trata da indagacáo de como se deve viver em tal mundo, já que a realidade nao é algo táo claro e ordenado como certas expressóes de sabedoria tradicional podem fazer crer. E a estrurura do livro reflete seu conteúdo, pois nao há nele urna ordem que se perceba de imediato. O que o autor faz é apresentar e reiterar certos temas, enquantovairumando para o seuconselho final aos jovens (11.9—12.7): que aproveitem a vida enquanto sao jovens, mas que o facam lem-brando-se do seu Criador. Se há alguma maneira coerente de dividir o material do Qohelet em subdivisóes, estas aparentemente seriam 1.12—6.12 e 7.1—12.7, a primeira afirmando e reiterando as preo-cupacóes principáis do Qohelet e a segunda, enquanto mantém esses temas na superficie, soando muito mais como a sabedoria proverbial.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE ECLESIASTES Tradicionalmente, nenhum outro livro na Biblia é de leirura táo difícil. Isso se deve (1) as observacóes um tanto divagantes do Qohelet — ao menos para a mente ocidental — (2), a algumas afirmacoes fortemente antitéticas no livro e (3) ao lado negativo de algumas dessas afirmacoes, que parecem táo contraditórias com o restante da Biblia. Mas se vocé tenta 1er o livro pela perspectiva do editor-compilador — a perspectiva de um mestre de sabedoria que, vivendo antes da revelacáo plena da res-surreicáo, reconhecia o valor da afirmaqáo do Qohelet de que a vida no mundo presente nem sempre faz sentido —, entáo vocé poderá perceber que a mensagem final do livro nao faz dele de maneira alguma o tratado hedonista ou fatalista que alguns o julgaram ser. Para entender esse fato é crucial apreciar o(s) ambiente(s) do próprio Qohelet.

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

Em primeiro lugar, seja como for, Qohelet foi escrito dentro da tradicáo de Sabedoria de Israel (v. a Introducáo aos Escritos, p. 142), urna tradicáo que nao tenta falar em nome de Deus da mesma forma que os profetas, mas que medita de maneira cuidadosa sobre a vida para ensinar aos jovens como viver bem diante de Deus. E, um pouco como o autor de Jó, mas em contraste com a aplicacáo mecánica que alguns podem fazer do livro de Proverbios, Qohelet está convencido de que os caminhos do Criador estáo além da nossa compreensáo. Embora mantenha urna firme confianca em Deus ao longo do livro (2.24; 3.11-14; 5.7b,19; 9.7) e creia que Deus é justo (3.17; 8.12,13), ele nao obstante vé o mundo real como um lugar nem de perto táo previsível como o julgavam, por exemplo, os "confortadores" de Jó, que viam urna relacáo certa de causa e efeito em tudo, e que representam, portanto, um tipo de "sabedoria" contra a qual Qohelet, da mesma forma, reage fortemente. Quatro realidades dominam a perspectiva geral do Qohelet: (1) Deus é a única realidade incontestável, o Criador de tudo e aquele de quem toda a vida vem como um presente (p. ex., 3.12-14), incluindo — para o Qohelet — sua natureza em geral penosa. (2) Os caminhos de Deus nao sao sempre compreensíveis, se é que jamáis o sao (3.11; 8.17). (3) Do lado humano, "o que se faz debaixo do sol" simplesmente nao parece refietir a ordem que se esperaría; de fato, grande parte desse labor nao faz nenhum sentido. A forma como as coisas deveriam ser (os justos recebem o bem, os maus recebem o mal) nao é, na verdade, como elas de fato sao — pelo menos, nao de forma consistente na vida aqui na térra. (4) O grande nivelador é a morte, que vem a ricos e pobres, a sabios e tolos, sem distingáo. Dada a ausencia de esperanca por parte do Qohelet na ressurreicáo, urna vez que vocé morre, aca-bou — sem memoria, esquecido, nao importa o que sua vida possa ter significado (9.5,6). E é essa realidade que faz a vida ter um aspecto de hebel (palavra que ocorre 37 vezes, pouco mais de metade das 73 ocorréncias no AT). A questáo é o que essa palavra significa para o Qohelet, já que ela literalmente significa "punhado de ar" ou "vapor". A maior parte do tempo, ele a usa como metáfora para a natureza da existencia humana.

ECLESIASTES

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Mas qual é o verdadeiro peso metafórico dessa palavra? Urna tradicáo que remonta a Septuaginta a traduz por "vazio" (cf. "vaidade" ñas versoes antigás, ou seja, "em váo"), indicando a natureza "vaporosa" da nossa vida humana (junto com seu companheiro, "perseguir o vento"). Outra tradicáo, seguida pela

NVI,

a traduz por "sem sentido". Embora qualquer urna dessas opcóes

funcione bem em alguns casos, elas nao ajudam em outros. Na maioria dos casos o sentido parece ser a natureza passageira/transitoria ou insubstancial das coisas, como o próprio vapor. Esse parece especialmente ser o seu sentido no prólogo, em que a vida humana, em contraste com a constancia e "antiguidade" do mundo, evapora com grande rapidez. Além disso, o "vapor" em que consiste a nossa vida também é fugidio, estando além do nosso próprio controle; ele é como "perseguir o vento" (um trocadilho irónico com hebel = "punhado de ar"). Como devemos entender, entáo, esse "vapor", esses poucos dias de natureza hebel pelos quais passamos como urna sombra (6.12; cf. 2.3; 5.18), especialmente á luz das desigualdades da vida e, para aquele que vive separado de Deus ("o insensato"), sua total falta de sentido? A resposta do Qphelet nao é, como alguns o acusaram, "Aproveite a vida ao máximo, porque só se vive urna vez" (um mal-entendido da sua repeticáo do tema "comer e beber", 2.24; 3.13; 5.18; 8.15; 9.7). O seu ponto, antes, parece ser que, mesmo que se saiba táo pouco, a nao ser pela certeza da sepultura, deve-se viver a vida, hebel, como ela costuma ser, como um presente de Deus. Isso porque, no fim, alegría e prazer nao vém de se "obter" (garantir o "lucro" por aquilo que se faz) — porque isso irá evaporar —, mas da própria jornada, a vida que Deus deu. A morte vem para todos, sem distincáo, mas nem todos vivem da mes-ma maneira; em um mundo como esse, alegría e satisfacáo devem ser encontradas em viver os ritmos da vida sem tentar estar no controle ou "obter lucro" de algo que é, em si, meramente transitorio. Mesmo lido dessa perspectiva, a sabedoria do Qphelet nao é intei-ramente confortadora. Mas trata-se, no geral, de um livro ortodoxo. Apesar da falta de qualquer mencáo aos grandes eventos da historia judaica, esse fato nao destoa da tradicáo da Sabedoria em geral, e se o leitor acha incómodo o fato de grandes porém contraditórias

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

realidades serem postas lado a lado, isso provavelmente se deve á nossa tendencia, igual a dos "confortadores" de Jó, a preferir que a realidade seja mais ajeitada do que ela de fato é. Mas no fim mesmo o próprio Qphelet nao deixa os jovens sem resposta. Há um caminho claramente preferível ao outro, e as chamadas contradÍ9Óes servem para sublinhar esse fato. O crente cristao, que agora le a partir da perspectiva da alegre esperanca na ressurreicáo e da certeza do juízo divino, deve estar tanto mais disposto a entender a apreciacáo da vida presente por parte do Qphelet, apesar da sua natureza hebel.

UMA CAMINHADA POR ECLESIASTES A 1.1-11

Apresentaqáo do tema

Depois do cabecalho, era que o Qphelet é identificado como um rei davídico (mas deliberadamente sem se mencionar o seu nome), os versículos 2-11 apresentam os temas principáis do livro: tudo é como um vapor; nenhuma coisa humana é permanente ou nova. A pergunta básica a ser respondida vem logo no inicio (v. 3): qual é, entáo, o lucro do trabalho humano? A razáo para isso é o versículo 4: os seres humanos vém e váo, mas a térra é permanente — o que entáo é ilustrado de varias maneiras (v. 5-7), e a passagem conclui com a nota da finitude humana em face da enorme realidade da historia (v. 8-11).

A 1.12—2.26

Varias maneiras de se tentar obter lucro do trabalho

A partir da perspectiva do seu papel como rei (aquele, portanto, que deveria mais ter lucrado na vida), o Qphelet retoma a questao do versículo 3 sobre a "vantagem" do labor humano. Ele comeca com seu tema básico, ou seja, a sabedoria (1.12-18). Por útil que esta seja, ela só traz maior amargura, porque leva a entender a natureza hebel das coisas. Ele entáo passa as questoes da busca pelo prazer (2.1-3) e do acumulo de fortuna e posses (2.4-11), mas essas coisas também sao efémeras, e portanto nada se ganha com elas, já que o mesmo destino — a mor-te — sobrevém a todas elas (2.12-16). O fato de que o lucro deve ser deixado para outra pessoa estraga tudo (2.17-23) — a nao ser que se esteja disposto a fazer alguns ajustes, a saber, aprender a aproveitar a

ECLESIASTES

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dádiva da vida como algo que vem de Deus, em vez de usá-la visando ao lucro (2.24-26). D 3.1-22

Tempo para tudo

Qphelet agora descreve de forma lírica a natureza da realidade que o leitor deveria apreciar: o mundo que Deus criou tem seus ritmos e estacóes (v. 1-8) que o fazem transcender o alcance do mero lucro (v. 9), mas trazem alegría quando nos ajustamos a eles (v. 10-22). Observe a insistencia do Qphelet em que isso é urna dádiva de Deus (v. 11-14), e no fato de que ele assume essa posicáo embora viva num mundo em que nao há certeza quanto ao futuro do individuo (v. 21). Ao mesmo tempo, ele volta a temas anteriores (a maldade humana; a morte como a grande niveladora). D 4.1-16 Sucesso, opressáo e solitude Retomando o tema da maldade (3.16-17), o Qphelet nota que o de-sejo de lucro resulta na opressáo aos outros, que se afigura algo táo terrível para ele que a nao existencia seria preferível (4.1-3); o trabalho e as conquistas (sucesso), prossegue ele, se originam na inveja (v. 4-6). Esse tipo de empenho é anti-próximo, e portanto solitario (v. 7,8); a alternativa melhor é viver em comunidade (v. 9-12). Usando urna ilustracáo da realeza (v. 13-16), ele concluí que a pobreza com sabedoria é melhor que o sucesso com insensatez: o jovem "sucessor" de um velho rei acaba sofrendo o mesmo destino do que seu antecessor. D 5.1-7 Sobre aproximarse de Deus Qphelet comepa sua litania contra o lucro e a opressáo conclamando a urna atitude apropriada quanto á adoracáo a Deus — que consiste em ser um ouvinte, cuja fala é breve e correta, como alguém cuja atitude diante do Senhor é de assombro e estupefacáo. D 5.8—6.12

Fortuna e opressáo

Voltando ao tema da opressáo e da busca por fortuna e de seu acumulo, o Qphelet agora se concentra no amor ao dinheiro em si (5.8-13); nessa mesma linha, ele reflete sobre a fortuna que é perdida devido ao acaso indesejado, nao sendo deixada heranca (5.14-17; cf. lTm 6.6-10,

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

em que Paulo reflete sobre essa passagem), antes de retornar ao tema do contentamento dado por Deus (Ec 5.18-20). Entáo, de maneira típica, o Qohelet reconhece como sao poucos os que receberam esse dom (6.1,2), dos quais o exemplo é — nessa cultura — o homem grandemente afortunado que nao recebe um sepultamento digno (6.36), a insensatez desse fato sendo resumida no versículo 7. A primeara metade do livro é entáo resumida cm 6.8-12. D 7.1-29 A vantagem da sabedoria Em 12.9, o Qohelet é chamado de coletor de proverbios; aqui temos enfim urna dcssas colectes — proverbios que seguem um padráo "Melhor é isto do que aquilo", ecoando questóes anteriores. Observe como ele trilha um meio-termo em relacáo a sabedoria, nem a idolatrando nem a odiando, mas vivendo á plena luz déla, já que mesmo na nossa existencia transitoria a sabedoria é melhor que a insensatez — e isso inclui aceitar a realidade da morte (v. 2-4). Na esséncia das coisas está o contentamento defendido antes (v. 7-24). Mas ainda que a sabedoria em si continué sendo fugidia (v. 23-25), é possível aprender algumas coisas sabias, como a necessidade de se evitar a mulher que prepara urna armadilha (v. 26; cf. Pv 2.16-19; 5.1-23) e a realidade de que os seres humanos se desencaminharam, apesar da forma como foram criados (v. 27-29). D 8.1-17

Lidando com um mundo injusto

Observe como o Qohelet "explica" a questáo do versículo 1 como se referindo ao homem sabio na corte do rei (v. 2-6), que prefere se retirar a confrontar o rei. Essa observacáo é entáo aplicada a pessoa sabia, que nao pode mudar as coisas como elas sao (v. 7,8). Nos versículos 9-15, ele retorna ao tema da iniquidade e injustica, insistindo que é melhor temer a Deus e aproveitar a vida que ele deu, mas concluindo com um comentario sobre o enigma da vida (v. 16,17). D 9.1-12

Vivendo em face da morte

Observe como varios temas anteriores sao retomados mais urna vez: a certeza da morte para todos (v. 1-6); o fato de que o sentido da vida está em desfrutar da vida que Deus concedeu, seja ela qual for

ECLESIASTES

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(v. 7-10), mesmo que o resultado da vida seja imprevisível e muitas vezes desagradável (v. 11,12).

□ 9.13—10.20

O caminho da sabedoria

Aqui o Qphelet mais urna vez reflete sobre as vantagens do caminho da sabedoria em oposicao á insensatez; observe especialmente a repeticáo do padráo "Melhor é isto que aquilo" em 9.13-18, en-quanto a maior parte do capítulo 10 reafirma isso como urna colecáo de material proverbial, especialmente sobre como sobreviver a um mau governo.

D 11.1-8 Sobre nao entender os caminhos de Deus Qphelet mais urna vez retorna a um tema anterior, dessa vez enfa-tizando nossa falta de controle sobre os tempos, baseada no nosso entendimento limitado (v. 1-6), e concluindo que a realidade da vida é agridoce (v. 7,8).

D 11.9—12.8 Urna palavra final aos jovens Tendo repetidamente defendido que se aproveite esta breve vida na medida do possível e enquanto ela durar, o Qphelet conclui concen-trando-se no jovem (o filho do homem sabio, 12.12). O fato de a juventude ser breve dá a ele um tempo ainda menor para aproveitar o melhor possível suas oportunidades. Recomenda-se portanto que ele viva a vida plenamente (11.9,10) á luz da lenta mas inexorável intru-sáo da morte na vida á medida que as pessoas envelhecem (12.1-7). É isso que significa "Lembra-te do teu Criador" (12.1,6). Observe como o versículo 8 serve para enquadrar o livro como um todo (1.2): a vida é passageira e fugidia.

□ 12.9-14 Epílogo: Qohelet como um homem sabio O compilador, cuja voz foi ouvida antes em 1.1,2 e 7.27, agora acres-centa um epílogo, sublinhando o valor dos argumentos do Qphelet mas apresentando brevemente sua própria perspectiva ortodoxa nos versículos 13,14 (cf. a perspectiva do Qphelet em 8.12,13). As medita-coes do Qphelet sao realmente verdadeiras; o vazio da vida na ausencia do temor a Deus e de urna existencia regida pelos seus mandamentos

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COMOLERABÍBLIAUVRO POR LIVRO

deveria levar os realmente sabios a renetir sobre essas "palavras agradáveis [escritas] com propriedade" (12.10).

O livro de Eclesiastes entra na historia bíblica como um lembrete constante da brevidade da vida á luz da eternidade, enfatizando nossa necessidade de temer a Deus enquanto também abre caminho para a revelacáo maior da nossa garantida ressurreicáo por meio de Jesús Cristo.

Cántico dos Cánticos

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE CÁNTICO DOS CÁNTICOS ■ Conteúdo: um poema de amor de varios episodios, celebrando o amor sexual entre urna mulher e um homem ■ Data da composicáo: desconhecida; as estimativas dos estudiosos abarcam um vasto período ■ Enfases: o amor apropriado de urna mulher e um homem um pelo outro; a natureza insaciável do amor puro; o deleite mutuo e o anseio um pelo outro que o verdadeiro amor desperta

VISÁO GERAL DE CÁNTICO DOS CÁNTICOS Cántico dos Cánticos é um livro bíblico único. Sem fazer mencáo a Deus e escrito numa linguagem poética maravilhosa, repleta de ima-gens vividas e evocativas, ele é urna celebracáo do amor sexual — e da fidelidade conjugal — entre urna mulher e um homem. Embora pos-sa ter se originado como varios poemas de amor distintos, seu título, Cántico dos Cánticos (singular), indica que na sua forma canónica se pretende que ele seja lido como varios episódios/cenas de um poema, tratando-se portante de urna "narrativa" apenas no sentido de que tal poesia está buscando retratar um determinado quadro.

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE CÁNTICO DOS CÁNTICOS Crucial para urna boa leitura de Cántico é reconhecer que o livro vem a nos em básicamente tres vozes diferentes: a mulher, que desempenha o papel principal ao longo do livro; o homem, que celebra especialmente a formosura da sua mulher e o seu amor por ela; e as companheiras da mulher, chamadas de "filhas de Jerusalém" (os títulos da NVI,"o amado" [o homem], "a amada" [a mulher] e "as amigas" [as companheiras da mulher] nao constam no texto hebraico; eles pretendem ajudar o leitor a perceber a mudanca de vozes). Outros personagens no livro servem básicamente como figurantes úteis (os pastores, 1.7,8; os guardas, 3.3; 5.7; os irmáos da mulher, 1.6; 8.8,9). O mais difícil de determinar é o papel de Salomáo. Embora seja possível 1er 3.6-11 como sugerindo que o homem no poema é o pró-prio Salomáo, e que esse parágrafo o apresenta como o noivo, nao é necessário adotar essa perspectiva para se apreciar a mensagem do Cántico. Alias, há pouca base para suportar essa perspectiva além da conjectura de que "Sulamita", o título da mulher em 6.13, queira dizer algo como "sra. Salomáo". O sobrescrito (1.1) é bastante ambiguo no hebraico, já que a preposicáo /' pode tanto ser possessiva (como na NVI) quanto urna forma de dedicacáo a Salomáo como aquele que originariamente comissionou o Cántico para um dos seus casamentas — mas com a intencáo de que ele pudesse encorajar o amor puro em qualquer outro casamento. Ao mesmo tempo, 3.6-11 é urna ocorrén-cia única no poema — a descricáo em terceira pessoa de alguém que é mencionado por nome —, e a alusáo ao seu harem em 6.8 e 8.11,12 parece ser um contraste intencional entre a "vinha" de Salomáo ser alugada aos arrendatarios (8.11) enquanto a "vinha" da mulher é déla própria, para fazer com ela como bem quiser (8.12). Essa ambiguidade originou varias leituras diferentes do texto; a leitura adotada aqui presume um contraste deliberado, sugerindo que jamáis se pretendeu urna aplicacáo do Cántico exclusiva a Salomáo, mas que a ideia era tornar todo casal que compartilha esse amor puro "rei" e "rainha" um do outro. Isto é, o "amado" na maior parte do Cántico nao é especificamente Salomáo, que como rei oriental possivelmente

CÁNTICO DOS CÁNTICOS

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nao solicitaría o amor, mas o tomaria como um privilegio da sua posi-cáo — e é ainda mais difícil imaginar o papel principal da mulher no livro no caso de ela ter integrado o seu harem. Por outro lado, fatores como a associacáo explícita com Salomáo e a natureza proverbial da conclusáo de Cántico (8.6-7) fizeram com que ele fosse incluido na tradicAo da sabedoria judaica. A mudaba constante de vozes e a poesia rica podem tornar a estrutura do livro difícil de delimitar. A pista parece estar em alguns refráos repetidos que concluem varias das cenas (p. ex., a ordem as filhas de Jerusalém, 2.7; 3.5; 8.4). A poesia em si é repleta de imagens ricas e vigorosas que pretendem estimular a imaginafáo. As imagens compreendem um vasto repertorio de paisagens e atividades humanas — o mundo natural (jardins, montanhas, florestas, animáis, plantas, aromas etc.), arquitetura (torres, muralhas, cidades etc.), roupas/joias e a guerra. A mulher, cujo corpo e amor sao descritos tres vezes quando o amado dirige a palavra a ela (4.1-15; 6.4-7; 7.1-9), é especialmente vista como um jardim e urna vinha repletos de aromas preciosos e vinho para o deleite do homem. O corpo do homem é descrito urna única vez — pela mulher para as filhas de Jerusalém — numa grande varicdade de imagens (5.10-16). Históricamente, a franqueza e o aspecto evocativo dessas descri-cóes tém sido

um

ponto

de

diíiculdade

para

muitos,

especialmente

aos

leitores/intérpretes do sexo masculino, tanto judeus como cristáos. O resultado em geral tem sido alegorizar o livro — tanto assim que um dos primeiros concilios da igreja (de 550 d.C.) proibiu qualquer inter-pretacáo de Cántico que nao fosse alegórica! Mas tal leitura parece ser urna capitulacáo á natureza decaída dos seres humanos, e á maneira em que o amor sexual foi frequentemente distorcido de modo a se tornar um meio de exploracáo, manipulacáo e destruicáo — sendo--o até hoje. Esse poema deve ser lido á luz de Génesis 1 e 2. Após a ordem "Frutificai e multiplicai-vos" (Gn 1.28), Deus planta um jardim (2.8) em que p5e o homem e a mulher que criou á sua própria imagem. A narrativa conclui com as palavras "o homem [...] se unirá á sua mulher, e eles seráo urna só carne. E os dois estavam ñus, o homem e sua mulher, e nao se envergonhavam (2.24,25, grifo do autor).

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COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVRO

O retrato do amor sexual em Cántico recupera essa cena em que o homem e a mulher se deleitam plenamente no corpo um do outro, e o fazem sem sentir vergonha. Essa é, portanto, a maneira de Deus de recuperar tanto a fidelidade quanto a unidade e a intimidade do casamento, que o inimigo tentou roubar do povo de Deus ao fazer o sexo parecer algo excitante fora do casamento ou algo vergonhoso e nao mencionável dentro dele. O autor inspirado de Cántico tem urna perspectiva diferente.

UMA CAMINHADA POR CÁNTICO 1.1-6 Os amantes sao apresentados Observe que — o que é típico no livro — a mulher assume o papel principal, de modo que nessa cena inicial, em que ambos sao apresentados, ela prepara o palco para o que vem a seguir — seu desejo pelo amado e seu deleite nele, com um convite para ser levada por ele. Se "o rei" é literal, entáo Salomáo está sendo designado; de outro modo, trata-se de urna metáfora, que usa imagens regias para exprimir a natureza excelsa do amor.

D 1.7—2.7 Prímeira cena: Os amantes juntos A medida que vocé le essa primeira cena, observe que o versículo 8 também poderia fácilmente ser a resposta do próprio homem á pergunta da amada. Isso significarla que a cena toda é um diálogo entre os dois amantes. Primeiro ela o procura entre os pastores (v. 7,8), a que se segué um diálogo de descricáo (v. 9-11,12-14) e deleite mutuo (v. 15,16), e entáo vem urna descricáo do cenário do amor deles (v. 17, urna floresta). Ela entáo invoca imagens de flores (2.1,2), enquanto ele é urna "macieira"em cuja sombra ela descansa e em cujo fruto se deleita (v. 3-6). Suas últimas palavras sao as filhas de Jerusalém, dizendo-lhes que deixem o amor seguir seu próprio rumo (v. 7).

D 2.8—3.5 Segunda cena: Esperanqa, convite e sonho Essa cena se caracteriza pelo anseio; ele é urna gazela saltitando pelos montes, e entáo espiando pela janela (2.8,9). Ela entáo recita as palavras

CÁNTICO DOS CÁNTICOS

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do convite dele — é primavera, tempo de amor (v. 10-13). Ele a chama a deixar os esconderijos (v. 14,15) e pede que se apanhem as "raposinhas" (aqueles que porventura se oponham ao amor deles) para que nao arruí-nem suas "vinhas" (o corpo deles; cf. 1.6,14), que ora florescem. Com o aspecto totalmente mutuo e a fidelidade exclusiva do amor (2.16), o amante déla entáo caminha "entre os lirios", mas (aparentemente) é mandado embora no final do dia (v. 17). Isso leva ao que provavelmente é urna cena de sonho (3.1-4), em que ela procura e encontra seu amado, concluindo mais urna vez com a admoestacáo as filhas de Jerusalém (v. 5). Observe também o papel menor e passivo dos guardas.

Q 3.6-11

A fortuna e a extravagancia de Salomeo

Essa secáo enigmática talvez pretenda apresentar um contraste ao amante da mulher, já que as descricóes deste até aqui tém se inspirado na natureza, nao em pompa e circunstancia; de outro modo, Salomáo é o amante e essa secáo introduz a cena de amor deles na cena seguin-te. Observe que esse é o único trecho que beira a narracáo em todo o poema, e a imagem que se sugere é de fortuna, poder e opulencia (ecoando, assim, lRs 10.14—11.6).

D 4.1—5.1

Terceira cena: Admiracáo e convite

Essa é a primeira cena em que o homem toma a iniciativa. Ele comeca com urna descricáo do corpo da mulher, da cabeca aos seios (4.1-5). Retomando a linguagem déla em 2.17, ele irá ao monte da mirra (v. 6,7, ecoando 1.13). Ele entáo a descreve como amante, um jardim de deleites e fragrancias (v. 8-15). A resposta déla é convidar os ventos a realcar a sua fragrancia, convidando dessa maneira o homem jardim adentro (v. 16), a que a resposta dele, após o amor (5.1), ecoa a linguagem da descricáo anterior (mirra e aloes [4.14], favos e mel [4.11], vinho [4.10] e leite [4.11]). A isso as filhas de Jerusalém respondem encorajando-os a comer e beber até a saciedade (5.1c).

G 5.2—6.3

Quarta cena: Sonho e busca

A mulher toma novamente a dianteira. No que parece ser outra cena de sonho, o amado vem e aceña para ela e entáo desaparece (5.2-6);

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

ela novamente o busca, mas dessa vez os guardas a atacam (v. 7). Em resposta ao breve diálogo com as filhas de Jerusalém (v. 8,9), ela dá sua única descricáo dele (v. 10-16), indo da cabeca as pernas do amado, mas concluindo, como no comeco (1.2), na lembranca dos seus beijos. A segunda pergunta (6.1) ela responde primeiro (v. 2) ecoando a linguagem da cena de amor anterior e entáo (v. 3) repetindo a palavra de mutualidade e fidelidade exclusiva (cf. 2.16). 7J 6.4—8.4 Quinta cena: Os deleites do amor Observe que nessa cena homem e mulher falam longamente. A cena comeca sendo liderada por ele, descreyendo a formosura da cabeca déla (6.4-7) — em contraste com as mulheres e concubinas do rei (v. 89b), que também a admiram (v.9c-10). Após um breve diálogo com elas (v. 11-13), ele entáo inicia sua última descricáo do corpo da amada, dessa vez indo dos seus pés aos seus cábelos (7.1-6), antes de voltar aos seus seios e boca (v. 7-9). Ela entáo retoma a imagem da sua boca como vinho, instando para que este vá direto áquele que a deseja, convidando mais urna vez a fazer amor (v. 10-13). O amor déla por ele é tal que ela de bom grado o expressaria em público, contra todas as normas culturáis (8.1-2a); seu desejo mais urna vez ecoa a lingua-gem anterior (v. 2b-3) antes de ela concluir com o refráo as filhas de Jerusalém (v. 4). D 8.5-14

Conclusáo: O amor é forte como a monte

O poema conclui com urna serie de breves quadros que sugerem a natureza insaciável do amor deles (8.5-7), apesar da oposicáo (v. 8,9,10-12), concluindo com um diálogo final de convite mutuo (v. 13,14).

Cántico dos Cánticos entra na historia bíblica como um lembrete de que o amor sexual que o Senhor criou é bom, e deve ser abracado em fidelidade e deleite dentro da vontade de Deus.

Lamentagoes

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE LAMENTACÓES ■ Conteúdo: urna serie de cinco lamentos sobre a queda de Jerusalém ■ Data da composicáo: desconhecida; provavelmente pouco depois da queda de Jerusalém (586 a.C.) ■ Enfases: a agonia espiritual e o sofrimento pessoal profundos experimentados após a queda de Jerusalém; a justica de Deus em levar a cabo a derrubada de Siáo; a esperanca está, no fim das contas, táo somente no caráter de Deus

V/SÁO GERAL DE LAMENTACIÓES Lamentacóes consiste em cinco lamentos escritos em resposta á queda de Jerusalém, em 586 a.C. Os lamentos, que correspondem aos cinco capítulos do livro, sao composicóes literarias cuidadosamente elaboradas, semelhantes em forma e conteúdo aos salmos 74 e 79 (cf. SI 89). Juntos, eles exprimem profunda angustia quanto á desolacüo de Siáo e ao Exilio de Israel — que se reconhece serem bem merecidos —, e lamentam o triste infortunio dos que permaneceram na cidade, agora desolada e perigosa; ao mesmo tempo, abordam questñes mais ampias sobre a justica e o futuro. O livro todo é escrito básicamente da perspectiva daqueles que foram deixados para tras.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Ao menos tres vozes distintas podem ser identificadas no livro: o narradorautor, a própria Siáo (Jerusalém personificada) e o seu povo (Javé nao se pronuncia no livro). Nos dois primeiros poemas (intimamente ligados), o narrador e Siáo tém a palavra; eles lamentam a queda da cidade, reconhecendo que isso ocorreu por causa dos seus pecados, de modo que o próprio Javé se tornara inimigo déla. Nos dois últimos poemas (estes também intimamente ligados), pronunciam-se o narrador e o povo de Siáo, que agonizam pelo povo na Jerusalém ocupada. No poema central (cap. 3), Jerusalém é essencialmente personificada, isto é, a única voz identificável é o autor, cuja agonia pessoal está ligada a de Jerusalém de tal forma que, de varias maneiras, elas se tornam urna só; aqui vocé também encontra a única expressáo de esperanca em todo o livro, e urna breve discussáo sobre o sentido do sofrimento.

ORIENTALES PARA A LEITURA DE LAMENTACÓES Para fazer urna boa leitura do livro, é preciso considerar suas características literarias básicas, bem como seu contexto histórico e sua perspectiva teológica. O aspecto literario mais marcante desses poemas é o fato de eles serem urna serie de acrósticos (cf. SI 34; 119), poemas em que os versos comecam com urna letra sucessiva do alfabeto hebraico (de 22 letras). Os primeiros dois poemas, portanto, tém 22 estrofes de tres versos cada, o primeiro verso de cada estrofe sendo o acróstico. O terceiro poema também tem 22 estrofes, mas nesse caso todos os tres versos de cada estrofe comecam com a mesma letra. O quarto poema volta a forma dos dois primeiros, mas agora com estrofes de dois versos cada, enquanto o quinto, embora nao seja acróstico, nao obstante é composto por 22 linhas. Dessa forma, o padráo segué um crescendo, que culmina ñas descricóes agonizantes do capítulo 3, arrefece um pouco no capítulo 4 e concluí em um murmurio débil no capítulo 5, padráo que refiete a destruicáo da cidade e suas consequéncias. Embora nem todos esses aspectos possam ser traduzidos para as línguas modernas, o padráo acróstico nao deixa de afetar a numeracáo dos versículos (22, 22, 66, 22, 22), e em certa medida explica a razáo de esses poemas conterem algumas mudancas temáticas abruptas (afinal, o alfabeto frequentemente limita o que se pode dizer em determinado

LAMENTAgÓES

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verso). Mas, ao longo do livro, a própria forma do lamento (v. Enfeudes o que les?, p. 255,259-62) encoraja de forma implícita a esperanga — embora nada seja garantido — em meio ao sofrimento. Quanto a perspectiva histórica e teológica do livro, é difícil para nos, do ponto em que estamos na historia, apreciar o que significou a devastagáo total que a queda de Jerusalém representou para o povo de Judá. Em primeiro lugar, houve a terrível dor do próprio aconteci-mento histórico, narrado em 2Reis 25. A cidade ficou sitiada por dois anos, enquanto dezenas de milhares de israelitas se refugiavam dentro de seus muros, na esperanga de que Javé interviesse. Mas em vez dis-so, as tropas babilonias romperam finalmente os muros, estupraram as mulheres e mataram grande parte dos habitantes de Jerusalém. A luz da situagáo subsequente da cidade, nosso autor se pergunta retoricamente se a morte nao teria sido melhor. Todas essas realidades horríveis — fome, sede, canibalismo, estupro, matanga — sao ecoadas nesses poemas. Mas, olhando-se para além disso, havia a questáo maior do chamado e papel de Israel como o povo de Deus. Aqui estava um povo cuja historia estava singularmente ligada ao Deus que os tinha redimido da escravidáo no Egito, que os havia criado como um povo para o seu Nome, feito alianga com eles no Sinai e, ao cabo, cumprido sua pro-messa de que a descendencia de Abraáo herdaria a térra. Na esséncia da compreensáo que Israel tinha de si mesmo estava o fato de que o seu Deus — que era o único Deus, o Deus vivo, e Criador de tudo o que há — tinha escolhido habitar pessoalmente entre os israelitas, primeiro no tabernáculo no deserto e finalmente no lugar que escolheu "para ali fazer habitar o seu nome" (Dt 12.11; Ne 1.9), a própria Jerusalém. Assim, tanto a térra como a cidade tinham um significado importante para Israel em termos de identidade, diferentemente da maior parte dos outros povos na historia. Alias, por causa disso, muitos tinham a ideia equivocada de que Siáo era inviolável (cf. Jr 7; 26; 28; Ez 13—14). E essa identificagáo total do povo com sua cidade como a habitagáo do próprio Deus que está por tras da enorme angustia desses poemas, e que torna os apelos quanto ao presente estado do povo israelita táo tocantes. E embora o autor tenha plena consciéncia

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COMO LER A BIBLIA LIVR0 POR LIVRO

de que a punicáo deles é justa, suas descricoes cheias de agonía indi-cam o quanto era difícil lidar com a realidade e a dimensáo da ruina e sofrimento de Israel (p. ex., Lm 2.20-22). Ao mesmo tempo, contudo, o autor enfrenta questoes que os profetas Habacuque e Obadias, por exemplo, também abordam. E como ficam os inimigos de Israel, igualmente merecedores da ira de Deus? E isso que está por tras das frequentes imprecacoes do livro (Lm 1.21,22; 3.61-66; 4.21,22). E no fim, ainda que Moisés e os profetas tenham predito tal desastre como resultado da infidelidade a alianca, nosso autor luta com essa questáo até o fim do último lamento, em que o futuro prometido nao passa de urna sombra distante. Mas no poema central, que é crucial aqui, ele também oferece um único (porém mui-to importante) raio de esperanca — o caráter do próprio Javé, que se revelou a Moisés, no Sinai, como um Deus cheio de amor e fidelidade (Éx 34.5-7; cf. o apelo em SI 89).

UMA CAMINHADA POR LAMENTACÓES D 1.1-22 Primeiro ¡amento: Siáo lamenta sua ruina Na primeira parte desse poema (v. 1-llb), o narrador estabelece as questoes básicas, que sao repetidas ao longo dos versos: Siáo e seu templo foram devastados, e seu povo foi exilado; durante o cerco, seus amigos a deixaram enquanto seus inimigos zombavam déla, e estes agora sao seus senhores. Os que permaneceram, sacerdotes e leigos, estáo em grandes apuros, as festas de peregrinacáo sendo agora coisa do passado; para eles, agora, tudo o que há é choro e ranger de dentes. E tudo isso por causa dos muitos pecados de Judá. Perto do fim da primeira parte, a própria Siáo clama a Javé, pe-dindo-lhe que volte os olhos para a sua aflicáo (v. 9c), o que entáo é repetido no comeco de seu próprio lamento (v. llc-22). Clamando a "vos que passais pelo caminho" (v. 12), ela básicamente repete as questoes de que tratam os versículos 1-11, mas agora em maiores detalhes e com dor e aflicáo mais intensas, concluindo com urna imprecacáo contra seus inimigos (v. 21,22). Observe especialmente o papel que Javé teve na sua destruicáo; observe também que seu lamento é brevemente interrompido, na metade, pela voz do próprio poeta (v. 17).

LAMENTACÓES

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J 2.1-22 Segundo lamento: Lamento e apelo de Siáo De forma ainda mais intensa, o poeta se pronuncia novamente, enunciando detalhadamente a causa principal da destruicáo de Jerusalém, a saber, a ira de Javé. O Guerreiro Divino, que no passado tinha lutado por Israel, agora se tornara seu inimigo — cidade, térra, líderes e povo todos inclusos (v. 1-9). O poeta entao se concentra nos remanescentes (v. 10-17). Observe aqui como ele fala na primeira pessoa (v. 11,13), e finalmente conclama a própria Siáo a clamar a Javé (v. 18,19), o que ela faz ñas palavras tocantes dos versículos 20-22, lembrando a Javé tanto a fome quanto a matanca subsequentes (de sacerdotes e profetas, jovens e idosos de maneira indiscriminada). 7J 3.1-66

Terceiro lamento: Desespero, esperanqa e ímprecacáo

Nesse poema central, o autor faz do desespero de Jerusalém o seu próprio, e vice-versa (v. 1-18, a que já se alude em 2.11). A questáo abordada aqui parece ser que a queda de Jerusalém implicou o sofrimento de muitos que eram fiéis a Javé e inocentes dos pecados da cidade como um todo, mas que se sentiam incansavelmente perseguidos por Javé. No fim, a única esperanqa do autor está na ndelidade de Javé á alianca, pois seu amor e ndelidade (ecoando-se aqui as palavras de Ex 34.6) se renovam a cada manhá (v. 19-24). A isso se segué urna especie de diálogo pessoal sobre o sentido do sofrimento e sua relaqáo com Javé, concluindo com um chamado ao arrependimento (v. 25-42). Observe que no fim o lamento é renovado (v. 43-51), o foco finalmente estando nos inimigos dele, que sao responsáveis pelo seu sofrimento (v. 52-62), concluindo-se com urna imprecacáo contra eles (v. 63-66). H 4.1-22

Quarto lamento: Vagueando como cegos pelas rúas

Com esse lamento, o autor volta sua atencáo á presente siruacáo horrível de Jerusalém, comparando-a com os anos do cerco e declarando que, nisso tudo, quem teve sorte foram os mortos (v. 1-11). Ele entao se concentra na aflicáo — e na culpa — dos profetas e sacerdotes (v. 12-16). Observe que o versículo 17 dá inicio ao lamento do próprio

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

povo, nesse caso lembrando os últimos e amargos dias do cerco (incluindo a fuga e captura do rei, Jr 52.7-11), enquanto o autor conclui com urna imprecacáo contra Edom (Lm 4.21,22). TI 5.1-22

Quinto lamento: O remanescente de Siáo chora

Nesse poema final, só o povo fala, clamando a Javé para que veja a presente aflicáo deles, refletindo especialmente o fato de que Judá ocupado é um lugar infeliz e perigoso para viver (v. 1-18). O poema e o livro entáo concluem com urna oracáo por restauracáo, que comeca com urna afirmacáo do reinado eterno de Javé, mas na qual se pergunta, de maneira típica nesse género de lamentacóes, se Deus porventura já se esqueceu deles (v. 19-22).

O livro de Lamentacóes reflete um ponto de virada significativo na historia bíblica — a queda de Jerusalém —, lembrando-nos, assim, de que Deus é fiel á sua palavra de que julgará a infidelidade; ao mesmo tempo, ele continua oferecendo esperanca para o futuro com base no seu caráter.

Os profetas de Israel na historia bíblica

A parte seguinte da historia bíblica vem na forma de 16 livros que chamamos de Profetas. Na tradicao judaica, eles sao conhecidos como os Profetas Posteriores, e geralmente eram contados como quatro livros, na seguinte ordem: Isaías, Jeremías, Ezequiel e o Livro dos Doze (conhecidos como Profetas Menores; Lamentacóes e Daniel eram incluidos entre os Escritos). A tradicao profética tinha urna longa historia em Israel, remontando ao próprio Moisés e incluindo Samuel. Mas os profetas cujas palavras vieram a ser escritas em pergaminhos con-tendo seus nomes atuaram de meados do século oitavo a.C. (por volta de 760) até a metade do século quinto a.C. (por volta de 460 a.C). Os profetas tém um papel especialmente crucial na historia de Israel, que faz parte da historia maior contada pela Biblia. Alias, nao há como entendé-los de forma adequada separadamente da funcáo deles em relacáo á Lei e aos Profetas Anteriores (Josué a 2Reis). Como os porta-vozes designados de Deus, eles conclamam o povo de Javé a voltar as suas raízes da alianca com o Senhor, anunciando tanto as béncáos quanto as maldicóes pela lealdade ou deslealdade á alianca (v. esp. Dt 27—30). Os profetas exilíeos também ajudaram o povo ao longo desse período de dupla privacáo — da presenca divina e da térra prometida —, desempenhando assim o papel de Moisés e Josué de forma inversa.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

Assim, os profetas constantemente chamam o povo de Deus de volta as realidades divinas: eles pertencem a Deus, Deus nao pertence a eles; Deus criou o seu povo com o propósito de redimir o que foi perdido na Queda e de abencoar as nacóes. Na esséncia da mensagem dos profetas, portanto, há urna preocupacáo profunda no sentido de que Israel deve refletir o caráter de Deus, andando nos seus cami-nhos e mantendo a alianca com ele. Ao mesmo tempo, eles lembram constantemente ao povo que Javé nao é urna divindade israelita local, mas o Deus soberano do universo — Criador e sustentador de todas as coisas, e portanto soberano, também, sobre todas as demais nacóes. Estas também tém um papel muito importante na parte da historia bíblica protagonizada pelos profetas. Por um lado, as nacóes sao incluidas na promessa abraámica (Gn 12.2,3), de modo que Israel é constantemente lembrado da sua falha por nao ser a "béncao" de Deus para elas. Essa dimensáo da promessa, portanto, é constantemente vista como integrando o cumprimento final das promessas por parte de Deus (v. Isaías em particular), um aspecto da tradicáo que se torna central no Novo Testamento. Por outro lado, como a promessa abraámica incluía a maldicáo de Deus sobre aqueles que amaldicoas-sem Abraáo, os profetas também pronunciam vez após vez o juízo de Deus sobre as nacóes. Assim, Israel nao está sozinho em ser justamente punido por Deus — alias, Obadias e Naum sao oráculos que falam exclusivamente contra as nacóes (Edom e Assíria, respectivamente). Grande parte dos capítulos seguintes, que tratam dos profetas, pressupóe o capítulo 10 de Entendes o que les?, que fala da natureza e funcáo dos oráculos profeticos (acáo judicial, infortunio, promessa etc.). Mas tres questóes abordadas ali sao especialmente cruciais, e precisam ser repetidas aqui para ajudá-lo a compreender esses livros (as vezes difíceis) a medida que vocé os lé. 1. De forma muito semelhante as cartas do Novo Testamento, esses escritos abordam situacóes específicas; alguma consciéncia, portanto, da situacáo social, religiosa e política a que os profetas se dirigiam é essencial para urna boa leitura. Assim, na secáo "Orientacóes para a leitura" de cada capítulo a natureza da situacáo específica de cada profeta será indicada.

OS PROFETAS DE ISRAEL NA HISTORIA BÍBLICA

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Por ora, tenha em mente as tres questóes importantes que se aplicam como um todo a essa época da historia de Israel: esse era um tempo de (1) significativa agitacáo política, militar, económica e social, (2) um grau muito elevado de infidelidade e desprezo pela alianca mosaica, e (3) enormes mudancas no(s) equilíbrio(s) de poder na cena internacional. E especialmente importante observar que todos esses profetas fala-ram numa época em que Israel tinha sido permanentemente dividido em norte (Israel/Efraim) e sul (Judá). A maioria deles se dirige aJudá, alguns se dirigem a situacáo do Exilio e varios falam depois do fim deste, quando um pequeño remanescente tinha retornado a sua térra histórica. Como será útil para sua leitura indicar as secóes de l-2Reis e l-2Crónicas que correspondem aos livros proféticos, as passagens pertinentes seráo regularmente indicadas. 2. Enquanto lé os profetas, tenha em mente a tensáo constante que há neles entre o futuro mais próximo e o futuro final, já que a consu-macáo de todas as coisas frequentemente serve de paño de fundo para o que eles dizem sobre o futuro iminente. Assim, Ageu, por exemplo, se dirige diretamente a situacáo da reconstruyo do templo após o retorno do Exilio. Contudo, ao encorajar o povo a voltar ao trabalho, ele fala tanto do futuro final do templo quanto do futuro próximo de Zorobabel como o herdeiro davídico. O mesmo se aplica á maior parte desses livros em sua forma final. 3. Também é importante lembrar que, na maior parte das vezes, a fala profética toma a forma de poesía. Aqui seria de grande proveito ler as páginas 236-8 de Entendes o que les?, e talvez algum verbete sobre poesía hebraica num dicionário bíblico recente, de modo que vocé possa apreciar os tipos de paralelismo envolvidos nos livros proféticos. Além disso, como esses livros sao poesía, é uma boa ideia lé-los pausadamente, reparando ñas imagens vigorosas e evocativas e ñas metáforas de que os profetas se valem regularmente para capturar a atencáo do povo. Aqui vemos Deus falando em alto e bom som (de forma mais clara, alias, do que alguns tendem a pensar!). Enquanto lé esses livros, tenha em mente nao só o que Deus estava dizendo ao povo do tempo dos profetas, mas também o quanto o que ele diz é relevante para nossos tempos e historia. (Será que Amos, talvez vocé se pergunte, andava lendo o New York Times?).

Isaías

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE ISAÍAS ■ Conteúdo: a majestade soberana e o amor redentor de Javé, revelados na sua relacáo com seu povo escolhido, os israelitas, que estáo destinados tanto para juízo quanto para salvacáo, em que as nacóes também seráo incluidas ■ Profeta: Isaías de Jerusalém ■ Data da atividade profética: de cerca de 740 a 687 a.C. (cf. 1.1) ■ Enfases: a santidade, majestade e justica de Javé; a compaixao e a graca salvíficas de Javé; o papel central de Israel nos planos de Javé para as nacóes e o mundo; o papel central de Siáo nesses planos; o papel redentor do Servo Soffedor de Deus; o glorioso futuro final que Deus reserva para aqueles que sao seus

VI SAO GE RAL DE ISAÍAS O livro de Isaías constituí, de muitas maneiras, a parte central da historia de Israel na historia bíblica. Vindo no comeco dos Profetas Posteriores, ainda que nao seja o primeiro em termos cronológicos, ele serve para guiar a sua leitura dos demais livros dessa tradicáo. Mas além disso, scu alcance teológico tem urna abrangéncia vasta, constantemente lembrando Israel de que Javé é o Deus vivo, o Criador e majestoso Soberano — e Juiz — de tudo o que há, bem como o redentor

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compassivo de Israel. Assim, Isaías vislumbra o julgamento de Israel, sua redencáo do Exilio por meio de um segundo éxodo e, por meio de seu Servo Rei vindouro, o cumprimento da alianca abraámica, que inclui as nacóes na salvacáo de Javé. E, no fim, o livro retrata a redencao final de Israel e das nacóes em um novo céu e urna nova térra, quando Siáo, o lugar em que Javé e as pessoas se encontram, será restaurada á sua gloria máxima. Isaías, portante, teve urna influencia enorme sobre os autores do Novo Testamento, que o citam ou aludem a ele com mais frequéncia do que fazem com qualquer outro livro do Antigo Testamento, exceto Salmos. O livro apresenta esse panorama glorioso de maneira cuidadosamente elaborada, dividindo-o em duas partes: os capítulos 1—39 lidam principalmente com Jerusalém durante o período da ameaca assíria, mas no fim Isaías profetiza a futura ameaca do Exilio na Babilonia. Os capítulos 40— 66 se concentram no futuro de Israel e Jerusalém perto do fim do cativeiro babilónico e além, culminando com a esperanca de um novo céu e urna nova térra, e urna Siáo escatológica final. Cada urna dessas partes tem sua própria estrutura e ritmo. Os capítulos 1— 5 apresentam a questáo principal de que trata a parte 1 — o fato de que Judá e Siáo falharam em seu chamado de ser o povo de Javé para ele e para as nacóes, e por isso devem ser julgados (enquanto 2.1-5 vislumbra o cumprimento desse chamado). Essa falha é tripla: (1) falta de confianca em Javé, que se exprime (2) no flerte constante com os ídolos e (3) na falta de justipa social entre eles. O chamado de Isaías (cap. 6) apresenta o restante da parte 1. Em sua visáo do "Santo de Israel" ele é purificado e recebe sua comissáo de anunciar o juízo de Deus sobre um povo que é exatamente igual aos seus ídolos — eles tém ouvidos que nao ouvem e olhos que nao veem. O restante da parte 1 é enquadrado por duas series de narrativas (caps. 7—9; 36—39), urna no comeco (com Acaz) e outra no fim (com Ezequias), sobre a longa carreira de Isaías — ambas durante ameacas externas, e ambas mencionando os mesmos detalhes geográficos (7.3; 36.2). Em ambos os casos, a questáo é a confianca em Javé: Acaz nao a tem; Ezequias, sim. Mas Ezequias entáo demonstra falta de confianca quanto aos enviados da Babilonia, o que leva a segunda parte do livro. Grande parte

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

da narrativa enquadrada na parte 1 consiste em urna serie de oráculos contra as nacóes, incluindo nacóes ñas quais Israel buscou apoio em vez de confiar em Javé. A parte 2 se divide básicamente em duas partes, cada urna des-tas também dividida em duas. Os capítulos 40—55 levam a historia adiante, para um tempo perto do fim do Exilio babilónico; os capítulos 40—48 sao de consolacáo e confronto ao mesmo tempo — este contra um povo estabelecido na Babilonia que nao deseja tomar parte em um novo éxodo —, enquanto os capítulos 49—55 refletem o fato de que o (agora adiado) novo éxodo finalmente será realizado pelo Servo de Javé, que dessa forma também reunirá as nacóes. Os capítulos 56—66 refletem as falhas continuas de Israel (caps. 56—59), mas entáo falam sobre o grandioso futuro que Deus tem para o seu povo e para as nacóes (caps. 60—66).

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE ISAÍAS Para urna leitura proveitosa de Isaías, vocé precisa ter alguma nocáo da historia que esse livro reflete, bem como das questóes teológicas que dáo ímpeto ao livro do comeco ao fim. A historia refletida nos capítulos 1—39 é dominada pelo papel da Assíria na cena internacional. O chamado de Isaías vem no último ano do longo reinado de Uzias em Jerusalém (792-740 a.C; v. 2Rs 15.1-7), que tinha sido um tempo de declínio assírio, e portanto de paz relativa em Judá e Israel. Mas na época da morte de Uzias, a Assíria tinha reafirmado seu poder no mundo do Oriente Próximo por meio de urna nova serie de reis (Tiglate-Pileser m L744727], Salmaneser v [726-722], Sargáo n [721-705] e Senaqueribe [704-681]). Grande parte das intrigas políticas em Samaría e em Jerusalém estava ligada á questáo de os reis israelitas e judaicos pagarem ou reterem o tributo á Assíria. Sao essas intrigas que estáo por tras das duas series de narrativas em Isaías 7— 9 e 36—39. Em cada caso, Isaías anuncia a libertacáo de Siáo, mas ele também prediz o Exilio na Babilonia (39.5-7). O cerco e queda de Jerusalém e a leva dupla para o Exilio na Babilonia formam a historia de que tratam Jeremias e Ezequiel. O contexto histórico previsto em Isaías 40—55 é a parte posterior desse

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Exilio, isto é, o tempo após as mensagens de Jeremias e Ezequiel te-rem sido seguidas e os exilados terem estabelecido urna nova vida na Babilonia. Toda essa secáo de Isaías é dominada pela expectativa de um novo éxodo — um éxodo para fora do Exilio, atravessando o deserto, com promessas de agua e de urna passagem segura de volta a Siáo, o lugar em que Javé restabelecerá sua morada. Mas os exilados nao aceitam essa mensagem de consolacáo — eles nao conseguem acreditar que Javé usará Ciro, um persa, para realizar seus propósitos —; e assim, o segundo éxodo se torna parte de um futuro mais distante. As paixóes teológicas de Isaías encontram seu foco em quatro pontos: (1) Javé como o "Santo de Israel" (termo que ocorre 30 vezes em Isaías e apenas seis no restante do

AT);

(2) Israel como o "povo santo" de Javé (62.12); (3)

Siao (Jerusalém) como a "santa cidade" (48.2) e o "santo monte" (11.9; 27.13) de Deus; e (4) a inclusáo das nacóes (gentíos) no seu povo (2.2; 52.15). Javé como o "Santo de Israel" é o que está na esséncia do livro todo — na visáo de Isaías (cap. 6), na justica e nos julgamentos de Deus (5.19-25) e na misericordia e compaixáo de Javé como o Redentor de Israel (41.14; 43.3-15; 62.12). Assim, em Isaías o termo santo com-preende ambas as características essenciais de Deus: (1) a natureza de Javé como absolutamente "outro" — o Criador e Sustentador de todas as coisas e todas as nacóes, aquele que nao tem rivais, porque nenhum outro deus existe. Nao há como nao perceber esse tema na sua leitura, especialmente quando ele assume a forma da repreensáo devastadora a natureza "sem vida"desses ídolos, cujos olhos nao podem ver e cujos ouvidos nao podem ouvir (v. esp. 44.6-20). (2) A santidade absoluta de Javé no sentido moral/ético. Como um Deus santo, ele exige do seu povo a santidade — os israelitas devem apresentar a semelhanca dele (compaixáo, amor, bondade, fidelidade), e nao a dos ídolos. Afinal, a idolatría leva inevitavelmente a injustica: os deuses sem vida sao injustos; seus adoradores tornam-se como eles. No centro da historia de Isaías está Israel, redimido porém inconstante, teimoso porém amado, e é o relacionamento de Javé com esse povo, contado vez após vez com lembrancas do Éxodo e da alianca davídica, que revela sua misericordia e compaixáo. E preciso julgá-los,

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COMO LER A BÍBLIA UVR0 POR LIVRO

mas ele nao desistirá de seu povo — e é aqui que o tema da salvacáo de um "remanescente" por parte de Javé pertence a historia. A historia dessa redencáo, assim, culmina com um Messias servo que redimirá tanto Israel quanto as na$óes, morrendo por eles — urna historia que se cumpre em Jesús Cristo e na cruz. O símbolo essencial do relacionamento entre Javé e seu povo é a sua presenca com eles em Jerusalém, no monte Siáo. Foi aqui que Israel profanou seu relacionamento com Deus (1.10-25), mas é aqui, também, que Javé pretende restaurá-lo (1.26-31), de modo que as nacóes se juntaráo a eles na adoracáo em Siáo (2.1-5). Assim, o livro comeca com urna Siáo profanada cuja restauracáo é prometida, e conclui (caps. 65—66) com a prometida manifestacáo final da Cidade Santa e seu Povo Santo, que inclui os gentíos. Há urna serie de aspectos adicionáis que ajudam a compor essa secáo maravilhosa da historia bíblica, mas atentar para os varios temas que mencionamos e ser sensível as imagens vigorosas e á cadencia da poesía desse livro ajudará vocé a ter urna percepcáo do seu esplendor, bem como do seu lugar importante na historia bíblica maior.

UMA CAMINHADA POR ISAÍAS A queixa de Javé a Judá, e o chamado de Isaías (caps. 1—6) Í.7I 1.1—2.5

Introducáo: Corrupcáo e futuro do povo santo e do Lugar Santo

Essa secáo introduz tanto os capítulos 1—5 quanto o livro como um todo; atente para os temas que a permeiam. Aqui a queixa de Javé assume a forma de um processo judicial em que se acusa Jerusalém de rebeliáo continua contra o Santo de Israel, que suscitou o juízo dele (v. 2-9,24,25); a religiño deles é inútil (v. 10-15d) por causa dos seus pecados — injustica social (v. 15e-17; cf. Amos) e idolatría (v. 29) —, mas também há urna oferta de misericordia (v. 18-20) e um futuro radiante (v. 26-28). Em 2.1-4 Javé deixa claro seu compromisso de redimir sua criacáo, com o monte Siáo fazendo as vezes de um novo monte Sinai, ao qual vém todas as nacóes (cumprindo assim os verdadeiros propósitos de Israel, segundo sua alianca com Abraáo). Observe como a secáo termina com um convite a Israel a andar, portanto, na luz de Javé.

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O 2.6—5.30 O dia vindouro do Senhor No primeiro oráculo (2.6-22), as questóes principáis sao a confiaba arrogante nos ídolos e a falta de confiaba em Javé; atente também para a repeticáo de alguns temas, que dá vigor á poesia. O desastre vindouro profetizado em 3.1—4.1 dirige-se especialmente aos líderes, e a questáo novamente é ajustica social— os ricos abusando dos pobres e da térra (incluindo o retrato explícito dessa situacáo em 3.16—4.1). Mas depois do desastre há esperanca (4.2-6), a primeira expressáo dos temas do "segundo éxodo" em Isaías. A cancáo da vinha (5.1-7; retomada em Jr 12.10; Ez 19.10-14; e por Jesús [Me 12.1-12; Jo 15.1-8]) se concentra na injustica social (Is 5.7), como o fazem os seis ais que vém em seguida (v. 8-25); assim, em vez de as nacoes agora virem adorar em Siáo (2.2-4), elas sao conclamadas a destruí-la (5.26-30). D 6.1-13

Vi sao e comissáo de Isaías

Uzias morreu (urna morte simbólica em termos do que está acontecendo com a dinastia davídica). No templo, o lugar da presenca de Javé, Isaías tem urna visáo do verdadeiro Rei de Israel, o Santo de Israel. Quebrantado por causa da impureza dele próprio e do seu povo, Isaías é perdoado, e entáo recebe a comissáo de pronunciar os juízos de Deus sobre um povo que se tornou como os ídolos que adora: um povo que nao consegue ver nem ouvir. Urna críse de confianca: Acaz e a coalizáo siro-efraimita (caps. 7—12) A questáo nos capítulos 7—39 é se Jerusalém, representada pelo seu rei, confiará em Javé ou ñas aliancas mistas (urna forma de idolatria). Observe que as narrativas sobre o fato de Acaz (7.1—8.10) e Ezequias (cap. 39) nao confiarem em Javé enquadram essa secáo maior. E é por isso que precisa haver um futuro rei fiel para Judá e as nac5es (9.1-7; 12.1-6; e em todos os oráculos contra as nacoes). D 7.1—8.22

Reinado falido em Judá

Observe como essa narrativa de abertura revela a hesitacao de Acaz diante de urna coalizáo siro-efraimita. O nome dos dois filhos de Isaías

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

refletem a resposta de Javé a Acaz — a ameaca de Israel ser pilhado (Maer-Salal-Has-Baz) e o mero remanescente que sobrará da alianca do norte após Javé julgá-los (Sear-Jasube) — enquanto Emanuel, o "sinal" de Javé para Acaz, o lembra da presenca do próprio Javé em Siáo (nesse caso, provavelmente como urna ameaca). A palavra de Javé a Isaías e a resposta deste (8.11-22) indicam qual é a questáo aqui — a confianca em Javé. D 9.1—12.6 Reinado futuro em Judá A questáo central aqui é o reinado em Israel. Observe, portanto, como o fato de Acaz nao confiar em Javé tem como resposta o anuncio de um grande rei davídico que está por vir (9.1-7; 11.1-16). Juntos, esses oráculos enquadram (1) o anuncio da queda de Samada (9.8—10.4; a cidade havia se aliado a Damasco contra Judá), (2) a punicáo de seu destruidor, a Assíria (10.5-19), e (3) a preservac/áo de Judá (10.20-34). Após o segundo anuncio do rei vindouro (11.1-16), a secáo conclui com Javé em Siáo como o verdadeiro rei de Judá (cap. 12). A queixa de Javé contra as naqóes (caps. 13—27) ü 13.1— 14.27 Contra a Babilonia e a Assíria Observe que ambos os oráculos contra esses dois inimigos históricos de Judá se caracterizam por palavras de esperanca para Judá (14.1-3,25). O oráculo contra a Babilonia é o primeiro, provavelmente porque esta acabaría vindo a ser o maior poder político do mundo na época, cujo colapso teda urna importancia monumental. Duas coisas nesse oráculo sao dignas de nota: (1) ele contém imagens da guerra santa, o próprio Javé reunindo o exército que destruirá a Babilonia (13.4-22); e (2) ele se concentra no rei em particular devido a sua arrogancia contra Javé (14.12-21). D 14.28—17.14 Contra os vizinhos de Judá: Filístia, Moabe e Damasco Esses oráculos se concentram no desastre que está por vir, e nao nos pecados dessas nacoes em si; em cada caso, como nos dois oráculos anteriores, observe a palavra de esperanca sobre o futuro de Siáo e seu povo (14.32; 16.5; 17.6,7).

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ü 18.1—20.6

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Contra Cuxe e o Egito

Observe como esses dois oráculos mais gerais (caps. 18—19) con-cluem com um oráculo históricamente específico contra ambos os dominios egipcios (cap. 20). Nos dois oráculos, observe que, como antes, a énfase está mais no anuncio do julgamento do que ñas razoes para ele, e novamente ele resultará na exaltacáo de Javé como rei (18.7; 19.19-21). O tamanho do oráculo contra o Egito provavelmente se deve a sua conclusáo: o fato de Judá ter buscado a ajuda do Egito.

D 21.1—23.18 Contra a Babilonia e seus aliados O oráculo contra Jerusalém (cap. 22) acompanha esses oráculos fináis contra a Babilonia e seus aliados (cap. 21), porque a ruina de Jerusalém vira pelas máos da Babilonia. Observe os temas que sao repetidos — a énfase na ruina, nao nos pecados em si; Jerusalém afastando-se de Javé, mas com um futuro para a casa de Davi (22.20-24); o julgamento de Javé sobre os arrogantes (23.9).

□ 24.1—27.13 Aflicáo das nacóes e celebraqáo no Santo Monte de Javé Os oráculos anteriores parecem implicar que Javé está meramente rea-gindo ao que as nacóes estáo fazendo; contudo, essa serie seguinte de oráculos defxa claro que ele é o Senhor Soberano das nacóes. No primei-ro oráculo, a destruicáo vindoura de Jerusalém (24.10-13) é apropriada-mente colocada num contexto da devastacáo total da térra. As nacóes respondem juntando-se a seu povo em uma grande festa escatológica no monte Siáo (cap. 25), enquanto a resposta de Judá (cap. 26) é renovar o compromisso de sua confianca em Javé e desfrutar da paz dele após a disciplina — a que Javé, tendo expiado o pecado déla, responde com uma cancáo renovada da vinha, Jaco lancando raízes mais uma vez (cap. 27).

Uma crise de confianqa: Ezequias e a ameaqa babilónica (caps. 28—39) □ 28.1—33.24 Ai de Efraim e Judá, que confiam no Egito Volta-se de novo á rcalidade presente de Judá; observe como esses oráculos retomam temas dos capítulos 6—12.Trata-se novamente de uma

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COMO LERA BÍBLIALIVRO POR LIVRO

crise de confianca em relacáo a Javé. Observe os pecados que suscitam essa serie de ais, primeiro contra a Samaría (28.1-6) e entao contra Judá e seus líderes (28.7—31.9) — especialmente os pecados de injustica (os ricos levando urna vida folgada, embebedando-se a custa do labor dos pobres), escarnio do profeta de Deus e idolatria, todos esses pecados refletindo a arrogancia de Judá, tanto na adoracáo quanto na política externa, com a concomitante falta de confianca em Javé, de que a principal evidencia é o fato de eles recorrerem ao Egito na busca de ajuda (cap. 31). Mas observe também como essas ameacas sao entremeadas de palavras de esperanca, que se concentram no futuro de Siáo e do rei justo de Deus. Essa esperaba futura torna-se entao o tema principal dos capítulos 32—33, entremeada por ameacas de julgamento. Observe especialmente que, quando o rei justo de Javé finalmente vier a reinar, os cegos finalmente enxergaráo, e os surdos ouviráo (32.3,4; cf. 6.9,10). Repare também nos muitos trocadilhos que caracterizam esses oráculos (Samaría como a "flor" que está murchando e será substituida por Javé como a "diadema" deles [28.1-5]; o escarnio a Judá torna-se o escarnio de Deus a eles [28.9-13; cf. v. 22]; nao tardará para que os próprios surdos oucam as palavras do pergaminho [29.11,12,18]; etc.).

fl 34.1—35.10 Mais urna vez: juízo sobre as naqóes e o futuro de Siáo Os dois últimos oráculos dessa parte de Isaías concluem com o amor de Javé por Siáo, em primeiro lugar anunciando o juízo do Guerreiro Divino contra as nacóes, especialmente Edom (cap. 34; cf. o fenómeno semelhante em Ez 35— 36), e em segundo lugar anunciando o novo éxodo que há de vir (Is 35.1-10); observe como o julgamento de 6.9,10 contra os cegos e os surdos, que se tornaram como os seus ídolos, é finalmente revertido para sempre (35.5), e os resgatados do Senhor entram em Siáo com alegría (v. 10). Esse oráculo final também abre caminho para os capítulos 40—55.

D 36.1—39.8

Confianqa em Javé quanto á Assíria, e falta déla quanto á Babilonia

A maior parte dessa narrativa é repetida em 2Reis 18.13,17—20.19. Em contraste com Acaz antes, Ezequias ouve Isaías e póe sua

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confianca em Javé, que livra Judá milagrosamente da Assíria. Observe mais urna vez a énfase em Siáo e no remanescente de Javé. Mas entao Ezequias deixa de confiar em Javé quando flerta com a Babilonia, nao reconhecendo, como Isaías reconhece profeticamente, que é justamente ali que está a ameaca contra Siáo. Essa narrativa, dessa forma, também serve de transicáo para os oráculos que vém a seguir.

Consolaqáo e confronto (caps. 40—48) D 40.1-11

Introduqáo

Veja como é apresentado o tema do segundo éxodo de Israel, de que tratam essencialmente os oráculos dessa secáo, éxodo ainda maior que o primeiro. O "trabalho" (NVI) imposto a Jerusalém no Exilio está che-gando ao fim (v. 1,2), o deserto agora devendo ser preparado para lites servir de estrada; e a gloria de Javé será revelada mais urna vez (v. 3-5). Tudo isso resulta da palavra inviolável de Deus (v. 6-8). O profeta, portanto, anuncia "boas-novas a Siáo"— de que Javé vira novamente em poder e será "pastor" do seu povo, conduzindo-o em seguranca para casa (v. 9-11; observe como o v. 9 responde a 35.4).

D 40.12—41.29 A consolaqáo de Israel Mas será que a Jerusalém exilada está pronta para isso? Observe como os oráculos comecam com Javé em contenda com o seu povo, afirmando que ele é o Senhor Soberano, em quem os israelitas podem confiar absolutamente. Sua sabedoria é insondável (40.12-14); nenhuma nacáo ou ídolo pode ser comparado a ele (v. 15-26), e portanto ele os fortalecerá para a jornada (v. 27-31; cf. v. 31 e Ex 19.4). Entáo Javé contende com as nacbes e seus ídolos (41.1-7 [que precisam ser criados para entrar nessa disputa!], v. 21-29), afirmando que táo somente / ele levantou "o que vem do oriente" (v. 2, NVI, referindo-se a Ciro), que / vem do norte contra a Babilonia (v. 2129). Esses oráculos tém obviamente o propósito de consolar o povo, visto que enquadram a passa-gem em que Javé encoraja Israel, seu "servo", dizendo aos israelitas que está com eles (como no éxodo anterior) e proverá para eles enquanto atravessam o deserto (v. 8-20).

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

D 42.1—44.23 Israel como servo relutante de Deus as nacóes A medida que vocé le essa empolgante serie de oráculos, atente para os seguintes temas que se repetem — de que a redencáo graciosa de Israel por parte de Deus pretende fazer de Israel o seu servo para as nacóes; de que Israel, ainda cegó e surdo (cf. 6.9,10), está relutando quanto a receber essa redencáo; de que Javé, portante, contende com eles, afirmando que só ele é Deus e além dele nao há outro; de que ele suscitará um segundo éxodo, que os levará a esquecer o primeiro; e de que tudo isso é para a gloria dele, o gracioso redentor de Israel. □ 44.24—45.25

O libertador escolhido de Javé, Ciro

Observe a énfase renovada na palavra inviolável de Javé que acompanha o que ele pretende fazer, incluindo o levantamento de Ciro, seu servo, pelo bem de seu servo Israel; observe especialmente a énfase repetida em "Eu sou o SENHOR [Javé], e nao há outro" (45.5,6,18; cf. 43.11; 45.14,21,22).Também se inclui nessa passagem urna observacáo sobre a rclutáncia de Israel (45.9,10). Nao obstante, Javé pretende usar a redencáo de Israel como apelo as nacóes (v. 14-25). D 46.1—48.22 A discussáo de Javé com a obstinada nacáo de Israel Nessa serie de oráculos, Javé anuncia finalmente a queda da Babilonia (46.1,2; 47.1-15). Mas sua contenda é com os cidadáos do obstinado Israel, que resistem áquilo que Javé planejou para eles (46.3-13; 48.119); ele conclui com um apelo final para que eles fujam da Babilonia (48.20-22). O servo vindouro de Javé, que trará a salvagáo (caps. 49—55) II 49.1—50.11

O Servo de Javé e a salvagáo de Israel

Observe como nesses oráculos o "Servo" de Javé, "Israel", se limita a um só servo, que representará Israel e redimirá tanto Israel quanto as nacóes em geral. Observe também que o novo éxodo é localizado, de forma mais clara, num futuro relativamente distante. O primeiro

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oráculo abre o caminho: o servo de Javé, Israel, se torna aquele que traz Israel — e as nacóes — de volta a Javé (49.1-7). A isso se segué o anuncio renovado do novo éxodo (49.8-13), acompanhado da relutáncia continua de Israel (49.14,24) e das respostas de Javé (49.1523,25,26), culminando com a resposta do próprio servo á sua comissáo (50.1-9) e o convite do profeta a Israel para que obedeca a Javé (50.10,11). D 51.1—52.12

O glorioso futuro de Siáo

Depois de Javé apelar aos fiéis de Israel que herdaráo as promessas (51.1-8), o profeta roga a Javé para que lidere o novo éxodo (51.9-11). Javé responde com palavras de consolacáo a Israel (51.12-16), de modo que o profeta conclama Israel a responder (51.17-21), já que o cálice da ira contra eles deverá ser passado para a Babilonia (v. 22,23). Siáo, portanto, deve se preparar para o grande éxodo que há de vir (52.1-6), que culmina com a volta de Javé a Siáo (v. 7-10) e um apelo final a que fujam da Babilonia assim como fugiram do Egito, mas sem pressa dessa vez (v. 11,12). □ 52.13—53.12

O Servo expía os pecados de Israel

Como se alcancará o novo éxodo? Por meio da obra redentora do Servo Sofredor de Javé, cujo ministerio efetivo é apresentado em 52.13-15, seus meios, em 53.1-9 e suas origens divinas e a apreciacáo de Deus por ele, em 53.10-12. Nao é de admirar que o Novo Testamento veja o

cumprimento dessa passagem em Jesús Cristo (Me 10.45; At 8.30-35; IPe 2.21-25). □ 54.1-17

O glorioso futuro de Siáo

A parte culminante da obra do servo agora é exprimida por meio de ecos das tres aliancas anteriores — de Abraáo (54.1-3), do Sinai (v. 48) e de Noé (v. 9,10) —, a gloria futura de Siáo sendo exprimida em riqueza de imagens poéticas (v. 11-17). Observe especialmente que os exilados continuam na Babilonia no capítulo 52, mas aqui eles aparecem em Siáo (v. 11). Como eles foram parar ali? Por meio do Servo Sofredor de 52.13—53.12!

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

D 55.1-13

O convite de Javé a Israel e as nacóes

A palavra final de Javé nessa se9áo é um convite — a Israel e as na9oes — a que recebam livremente a graciosa provisáo de Deus (55.1-7). Apelando mais urna vez a sua soberania e sua palavra inviolável (v. 8-11), Javé anuncia a grande reviravolta no destino daqueles que responderem (v. 12,13).

A presente falha e o glorioso futuro de Siáo (caps. 56—66) □ 56.1—59.21

A observancia do sábado e o verdadeiro jejum

Essa se9áo final de Isaías retoma, de certa forma, os temas com que o livro come90u. Um oráculo inicial (56.1-8) dá o tom da se9áo, falando da salva9áo imánente vinda da parte de Javé, da necessidade de Israel se manter fiel á aliaba, da observancia do sábado em um contexto de justÍ9a e do ajuntamento das na95es no monte santo. A serie de oráculos que vem a seguir continua falando desses temas, acrescentando a condena9áo dos líderes de Israel (56.9—57.4) e a idolatría (57.5-13). Mas entre essa condena9áo da idolatría e a condena9áo da religiáo sem justiqa (58.1-14) há um oráculo que fala da salva9áo para os humildes (57.14-21). Observe como todos esses temas ecoam 1.2—2.5. A se9áo conclui com um anuncio dos pecados que mantiveram Javé distante (59.1-8), urna ora9áo de arrependimento por parte do povo (v. 9-15) e a resposta de Javé anunciando a salva9ao vindoura (v. 16-21), que ecoa 1.1820. Observe especialmente como a secáo conclui anunciando o Redentor e o Espirito que háo de vir (59.20,21).

D 60.1—63.6 A gloria futura de Siáo e o Ungido de Javé Essa cole9áo de oráculos forma a parte crucial da seqáo que conclui o livro de Isaías. Ela cornea com um maravilhoso retrato da gloria futura de Siáo (cap. 60), incluindo também as naqoes (v. 10-14), como fizeram os oráculos até aqui. Entao vem o anuncio do Redentor que há de vir (cap. 61), que apresenta semelhanyas notáveis com o Servo

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dos capítulos 42—53 — urna passagem que Jesús anuncia como tendo sido cumprida nele próprio e no seu ministerio (Le 4.16-21). Observe também que os redimidos sao os pobres humildes dos oráculos anteriores. A isso se segué mais outro oráculo sobre o futuro glorioso de Siáo (Is 62), concluindo com o juízo apocalíptico do Redentor contra as na95es (63.1-6), passagem que Joáo retoma no Apocalipse (Ap 14.17-20). C 63.7—64.12

O povo de Javé ora

Essa ora9áo nos traz de volta a realidade presente, o povo de Deus aguardando seu grande futuro. Observe como ela come9a lembrando do primeiro Éxodo — que Javé esteve presente pelo seu Espirito e, em misericordia, os redimiu apesar da rebeldía deles (63.7-14) — o que leva á ora9áo para que Deus aja novamente em favor de seu povo (63.15—64.12), constituindo um dos momentos mais tocantes de Isaías. □ 65.1-16 Juízo e salvacáo Javé responde a ora9áo lembrando-os da inconstancia deles (v. 1-7), mas também da reden9áo que ele vez após vez prometeu (v. 8-16). u 65.17—66.24 A futura Siáo em um novo céu e urna nova térra Isaías chega ao fim contemplando mais urna vez a futura gloria de Siáo — que foi sempre o plano de Javé —, situada num contexto escatológico de novo céu e nova térra, com urna lembran9a do julgamento final que está por vir. Observe como o fim ecoa 2.2-4: a salva9áo de Deus abrange urna Siáo renovada, que incluirá as na9ñes (66.18-21).

O livro de Isaías situa-se na metade do Antigo Testamento, buscando lembrar que Javé é o Deus vivo, que julgará o mundo em Justina e salvará seu povo e as na95es em misericordia, por meio do seu "Servo Sofredor" que é o Messias. O livro, assim, reúne em si mesmo toda a historia do Antigo Testamento e prepara o caminho para o Novo.

Jeremías

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE JEREMÍAS ■ Conteúdo: oráculos de juízo contra Judá e as nagóes, junto com oráculos de esperanga futura, entremeados de narrativas sobre o papel de Jeremías nos dias fináis de Judá ■ Profeta: Jeremías, de linhagem sacerdotal, do povoado de Anatote, uns cinco quilómetros ao sul de Jerusalém ■ Data da atividade profética: de 627 a 585 a.C. (cf. 1.2,3) ■ Enfases: a infidelidade de Judá a Javé resultará na sua destruigáo; em conformidade com as promessas de Deuteronómio, Deus tem um futuro radiante para o seu povo — um tempo de restauragáo e de urna nova alianga; o coragáo do próprio Javé por seu povo revelado por meio do coragáo de Jeremías

VISÁO GERAL DE JEREMÍAS O livro de Jeremías consiste em urna colegáo dos muitos oráculos desse profeta — em geral poemas; a maioria deles contra Judá e Jerusalém — e um grande número de narrativas protagonizadas por ele. A colegáo, que talvez tenha sido "publicada" por Baruque (Jr 36.32; 45.1-5), divide-se em quatro segóes principáis. Os capítulos 1—25 contém oráculos e agóes simbólicas anunciando a ruina vindoura de Judá e Jerusalém; as agoes vém acompanhadas de interpretagáo. Grande

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JEREMÍAS

parte desse material aparece na forma de urna conversa ou diálogo entre o profeta e Javé. Nos capítulos 26—36, duas colecóes de narrativas (nao cronológicas) enquadram a mensagem — de grande importancia — dos capítulos 30—33, que fala de esperanca. Os capítulos 37—45 contém urna serie de narrativas em ordem cronológica, tratando de eventos que cumprem as profecías da parte 1. Os capítulos 46—51 contém oráculos contra as nacóes, e o capítulo 52 é um epílogo histórico, defendendo a autoridade profética de Jeremías. Dessa forma: A Profecías de juízo contra Jerusalém (caps. 1—25) B Narrativas que oferecem esperanca para o futuro (caps. 26—36) B* Narrativas que tratam da queda de Jerusalém (caps. 37—45) A* Profecías de juízo contra as nacóes (caps. 46—51) Epílogo (cap. 52) É importante observar que as narrativas dos capítulos 26—36 correspondem em muitas partes aos oráculos que as precedem. Por exemplo, o conteúdo do famoso sermáo do templo aparece em 7.1-29, enquanto a reagáo a ele aparece como a primeira narrativa (cap. 26); a política de se render á Babilonia e entrar no Exilio em 21.8-10 torna--se o foco principal das narrativas nos capítulo 27—29; e as razóes para os juízos contra os reis e os profetas de Judá apresentadas nos capítulos 22—23 tém sua expressáo narrativa nos capítulos 26—29 e 34—36. Isso sugere que a razáo para a primeira colecáo (nao cronológica) de narrativas é de natureza temática — e intencional.

ORIENTALES PARA A LEITURA DE JEREMÍAS Para 1er Jeremías com proveito, vocé precisa ter alguma nocao do ho-mem e do tempo em que ele viveu, bem como da natureza dos mate-riais que formam o seu livro. Facamos primeiro alguns comentarios sobre a época em que Jeremías viveu. Embora tenha recebido seu chamado durante o décimo terceiro ano (de 31 no total) do reinado de Josias, apenas um de seus oráculos data desse período (3.6-10). A maioria deles data

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COMO LER A BÍBLIA UVRO POR UVRO

dos tumultuosos anos em Jerusalém que se sucederam á morte de Josias, durante o reinado de seus dois filhos (Jeoaquim, 609-598 a.C. e Zedequias, 597-586 a.C). Josias havia reinado num período de vacuo no poder na cena internacional, a Assíria estando em serio declínio, e tanto Egito quanto Babilonia disputando a supremacia na área cos-teira que incluía Judá. Josias tinha morrido em batalha contra o faraó egipcio Ñeco (609 a.C), mas este, por sua vez, foi derrotado por Nabucodonosor da Babilonia em 605 a.C. O resto dos anos fináis de Judá está ligado aos acontecimentos políticos que vieram a seguir. Os filhos de Josias (e um de seus netos, Joaquim) passaram seus breves anos de governo num pingue-pongue político protagonizado por Egito e Babilonia; sempre sob controle babilónico, mas recorren-do vez após vez ao Egito para ajudá-los a se livrar de seu jugo político e conquistar algum grau de independencia. Essa política acabou resultando, finalmente, num cerco a Jerusalém liderado por Nabucodonosor em 598, que encerrou o breve reinado de tres meses de Joaquim; ele e a maior parte dos líderes de Jerusalém foram enviados ao Exilio na Babilonia (2Rs 24.8-17; Jr 29.2; v. Ezequiel). Mesmo assim, o último rei de Judá, Zedequias, retomou a mesma política ineficaz de seus pre-decessores, o que acabou levando a um segundo cerco e a destruicáo total de Jerusalém (586 a.C). Ainda outra rebeliáo da parte de um remanescente dos que haviam ficado em Judá resultou, finalmente, numa fuga ao Egito, tanto Jeremías como Baruque integrando o grupo dos que debandaram. Nao há como compreender o livro de Jeremías sem essa historia, pois o profeta teve um papel de grande importancia nela, pronun-ciando-se quanto a essas questóes políticas ao longo dos 22 anos dos reinados de Jeoaquim e Zedequias. As narrativas sao bastante reveladoras quanto a como funcionam as intrigas políticas, retratando tanto políticas agressivas quanto moderadas, tanto vozes a favor Egito quanto outras a favor da Babilonia. E como os oráculos e narrativas (até os acontecimentos do fim, caps. 37—45) de Jeremías nao estáo organizados em ordem cronológica, é urna boa ideia ter á máo esses nomes, datas e políticas durante a leitura do profeta.

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Em segundo lugar, Jeremias recebeu urna tarefa nada invejável: declarar oposicáo á casa real de Davi e aos profetas, sacerdotes e israelitas em geral, anunciando a destruicáo vindoura de Jerusalém e instando com eles para que aceitassem o Exilio na Babilonia se ain-da desejassem viver e ter algum futuro. A política pró-Babilónia de Jeremias (seguindo-se ao primeiro exilio sob Joaquim em 598) está em questáo, urna perspectiva contra a qual duas coisas militavam na corte real: muitos criam (1) que Jerusalém estava segura devido á alianca davídica e a presenca do templo de Javé (cf. 7.4-11) e (2) que o atual exilio de Joaquim seria breve (cf. 28.1-4). A mensagem de Jeremias é clara: Rendam-se á Babilonia e voces viveráo — mesmo que leve a vida toda para voltarem (!); se voces resistirem, morreráo. Por tras dessa resistencia está urna conviccáo, derivada do resgate de Jerusalém das máos dos assírios por parte de Javé (cf. Is 36—37), de que Siáo era inviolável — devido a seu templo, o lugar de morada/descanso de Javé. Em terceiro lugar, facamos alguns comentarios sobre o livro de Jeremias. Vocé precisa observar que os capítulos 1—25 constituem a parte essencial da palavra profética dele, e provavelmente representam grande parte do manuscrito que foi queimado por Jeoaquim e reescrito com a ajuda de Baruque (cap. 36). Os primeiros oráculos anunciam o juízo que há de vir e suas razóes (das quais a principal é a infidelidade a Javé, na forma de idolatria), estando ao mesmo tempo repletos de apelos a Judá, instando com ele no sentido de que, se o povo se arrepender, Javé terá compaixáo. Mas os apelos nao sao ouvidos; a certeza do juízo vindouro, portanto, acaba se seguindo a eles. Incluidos nessa colecao estáo os muitos momentos intrigantes da interacáo do próprio Jeremias com Javé (argumentos, diálogos, lamentos e queixas), cujos temas sao o desastre vindouro e o tratamento severo que Deus dispensa ao profeta. Atentar para as mudancas de vozes nesse livro há de facilitar a leitu-ra. Também estáo inclusas varias acóes simbólicas acompanhadas de interpretacáo, que ilustram o que Javé tem a dizer a Judá. Das varias influencias de Jeremias, as mais obvias sao Oseias e Deuteronómio. Jeremias faz uso considerável das imagens vividas de Oseias, que retrata Israel como urna noiva infiel que se tornou prostituta, por quem Javé tem grande amor, mas cuja infidelidade fará com

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que ele a entregue a seus "amantes". Isso, por sua vez, reflete varias influencias deuteronómicas, especialmente o apelo as estipulacóes da alianca, incluindo as maldicóes pela infidelidade no momento crucial em que se pergunta se eles serviráo a Javé e a ele apenas (Jr 11.1-13; cf. 17.5-8). Ligado a isso, há a imagem do coracao in/circunciso (4.4; 9.25; cf. Dt 10.16; 30.6) e a restaurafáo prometida após o Exilio, com urna nova alianca (Jr 30—33). Assim como em Deuteronómio, a questáo nao se resume a idolatría, mas incluí o sincretismo — a prática de adorar e servir a Baal e a Javé ao mesmo tempo. Mas só Javé é Deus, e portante um Deus zeloso que nao pode tolerar a idolatría deles; mas ele também é compassivo e amoroso para com o seu povo. É essa combinacáo de realidades que Jeremías exprime de maneira tocante. UMA CAMINHADA POR JEREMÍAS Oráculos de juízo contra Judá e Jerusalém (caps. 1—25) D 1.1-19 Introducáo Na leitura dessa introducto, observe varios detalhes relevantes para o restante do livro. O título (v. 1-3) sitúa Jeremías socialmente (ele vem de urna familia sacerdotal em um povoado) e históricamente. O seu chamado (v. 4-10) inicia o padráo de diálogo que vemos no livro; Jeremías, com a devida humildade profética, resiste ao chamado. A primeira visüo (v. 11,12) dá a ele a certeza do cumprimento da palavra de Deus por meio dele. A segunda visüo (v. 13-16) indica a procedencia do juízo vindouro de Deus (da Babilonia, ao norte). A convocacáo final (v. 17-19) vislumbra seu papel e a recepeáo que ele terá nesses acontecimentos. D 2.1—6.30 Oráculos contra a idolatría de Judá Essa primeira serie dá o tom para o restante do livro. A acusa9áo de Javé contra Judá/Jerusalém ocorre em 2.1—3.5. Observe a imagem básica de urna noiva que perdeu o seu amor (2.2), recorrendo á prostituicáo (2.20-25,32,33; 3.1-5), principalmente na forma de idolatría (mas v. também 2.34); observe também o papel dos líderes (reis, oficiáis, sacerdotes, profetas; 2.8,26; cf. caps. 21—23) e a perplexidade de Javé diante de tamanha loucura (2.10-19).

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Na colecao seguinte (3.6—4.4), observe os numerosos apelos á noi-va infiel para que ela nao seja como Samaría (que também precisa se arrepender, 3.12-14), mas que retorne ao seu marido, com a ameaca de ruina certa se ela nao obedecer. A seguir, vem o anuncio do desastre que vem do norte (4.5-31, retomando 1.14-16); observe como essa secáo alterna entre palavras diretas de Javé (4.5,6,9,11,12,15-18,22,27,28) e as palavras do próprio Jeremias (v. 7,8,10,13,14,19-21,23-26,29-31). O capítulo 5 é uma colecao de oráculos breves, com duas interven-coes de Jeremias (v. 3-6,12,13) que alternam entre anunciar o juízovin-douro (v. 9,10,15-17) e as razóes para ele: a injustica social (v. 26-28) mais uma vez se une a idolatría (v. 7,8,19). Observe o pensamento, ecoando Isaías, de que o povo se tornou como os seus ídolos (v. 21, olhos e ouvidos que nao podem ver ou ouvir). O capítulo 6 concluí a primeira colecao com o anuncio do cerco de Jerusalém. Observe especialmente os apelos imitéis de Jeremias, instando com o povo para que o ouca (v. 10,lla,24-26).

7J 7.1—10.25 Mais oráculos contra a idolatría As primeiras duas series de oráculos em prosa (7.1-29; 7.30—8.3) descrevem em numerosos detalhes o sincretismo que Judá passou a praticar, crendo todo esse tempo que a "devocáo" do povo a Javé e sua presenca o dentará seguro. Vocé pode 1er o capítulo 26 lado a lado com o sermáo do templo (7.1-29), que narra a reacáo a ele. Depois disso há uma serie de oráculos poéticos que retomam a maioria dos temas do primeiro ciclo (idolatría, abandono da Lei e juízo), mas agora entre-meados por numerosas intervencoes de Jeremias, em geral lamentos angustiados diante da destruicáo imánente de Jerusalém, ou palavras de adoracáo ao Deus que Judá rejeitou (observe também a intervencao do povo, 8.14-16). Observe como a serie concluí com uma oracáo (10.2325) que ecoa um tema profético comum: ainda que Judá me-reca o que lhe há de sobrevir, também o merecem as outras nacóes, prenunciando assim os oráculos nos capítulos 46—51.

□ 11.1—13.27 A alianca rompida Observe como o primeiro oráculo (11.1-17) ecoa o que veio antes, mas agora lancando máo da figura da noiva rompendo sua alianca

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com Javé. Veja o envolvimento profundo de Jeremias no resto dessa secáo — urna trama contra ele, por parte de seu próprio povo, resultará no julgamento deles (11.18-23); sua queixa renovada quanto á justica de Deus (12.1-4) é respondida com base no que o próprio povo de Jeremias fez a ele (12.5-13), mas a justica também sobrevirá as nacóes (v. 14-17); urna a9áo simbólica é entáo interpretada em termos da inutilidade de Judá e de sua destruicáo vindoura (13.1-14); e o próprio apelo de Jeremias a Judá (13.15-23) é novamente respondido segundo a figura da mulher infiel (v. 24-27), voltando-se assim ao tema da alianca rompida. D 14.1—17.27

O povo é rejeitado por Javé

Observe que essa serie continua no formato de diálogo entre Javé e Jeremias: Javé anuncia juízo (14.1-6); Jeremias ora pelo seu povo (v. 7-9), mas como o julgamento deles já está determinado, ele recebe a ordem de nao interceder (v. 10-16), mas prantear por eles (v. 17,18). Jeremias responde lembrando Javé de sua alianca (v. 19-22), ao que Javé responde que nem Moisés e Samuel poderiam ajudá-los agora (15.14,5-9; cf. 15.12-14). Jeremias responde com um lamento (v. 10,15-18), e Javé com um chamado para que se arrependam e se mantenham dentro desse chamado, garantindo a ele a libertacáo (v. 11,19-21). Após urna serie de proibicóes pessoais ligadas a juízos contra o povo (16.1-9), Jeremias recebe a comissáo de proclamar tanto juízo quanto cspcranca (v. 10-18), cnquanto a outro oráculo de juízo (16.21—17.8) segue-se mais um diálogo (17.9,10) e outro lamento pessoal (v. 11-18). O último oráculo anuncia juízo pela violacáo do sábado (v. 19-27; cf. Éx 23.10-12; 31.12-17; 35.1-3). □ 18.1—20.18 Símbolos e lamentos Duas acóes simbólicas interpretadas (18.1-17; 19.1-15) enquadram mais um lamento pessoal (18.18-23), a segunda acáo levando Jeremias a ser ferido (20.1-3), isso por sua vez servindo como mais um anuncio de juízo (v. 4-6). A isso se segué um último lamento pessoal (v. 7-18). Observe que o terror do norte é finalmente identificado: trata-se da Babilonia (v. 4).

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[121.1 —24.10 Juízo contra reís e profetas Oráculos contra Zedequias enquadram o comeco e o fim dessa secáo, que retoma 2.8 e 2.26. Um pedido de Zedequias (cap. 21) que ocorreu no comec;o do cerco (588 a.C.) dá inicio, assim, a urna serie de oráculos contra os reis de Judá (cap. 22, observe Jeoaquim [v. 18] e Joaquim [v. 24], que um dia seráo substituidos por um verdadeiro Ramo da linhagem de Davi (23.1-8). A estes se seguem oráculos contra falsos profetas e sacerdotes (23.33-40) e um oráculo final contra Zedequias e seus oficiáis (cap. 24). Atente especialmente para o oráculo messiánico em 23.5,6, que ecoa Isaías 11.1,10. Ele é repetido em 33.15,16 e retomado em Apocalipse 5.5. D 25.1-38

Sumario da Parte 1 e prenuncio da Parte 4

Observe como o anuncio de um exilio de setenta anos (v. 1—14) está repleto de razóes que remetem aos capítulos anteriores. Ele é seguido de um anuncio de juízos contra as nacóes (v. 15-33), que seráo retratados nos capítulos 46—51, e urna palavra final contra os pastores (v. 34-38), levando á conclusáo, também, os capítulos 21—24. Vocé verá as palavras contra a Babilonia em 25.10 ecoadas na ruina final da "Babilonia" de Joáo em Apocalipse 18.21-23. A palavra de Deus oferece esperanca, mas é rejeitada (caps. 26—36) G 26.1-24

Reacao ao sermáo do templo de Jeremías

O breve resumo dos versículos 1-6 apresenta a narrativa da reacáo de Jerusalém ao sermáo do templo de Jeremías em 7.1-29. Após a rea-9áo inicial (26.7-9), um julgamento organizado as pressas é realizado (v. 10-19), Jeremias sendo salvo pela discordancia entre sacerdotes e profetas, por um lado, e oficiáis, por outro, e por urna comparacáo com Miqueias. O relato final compara Jeremias a um profeta que nao se deu táo bem quanto ele (v. 20-23), e outro que sim (v. 24). n 27.1—29.32 Jeremias e os falsos profetas Essa secáo é dominada pelo conflito entre Jeremias e dois falsos profetas (Ananias e Semaías); o conflito está ligado á política pró-Babilónia

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de Jeremías. Em contraste com o próprio Jeremías (cap. 26), e no contexto de sua mensagem de esperanqa por meio do Exilio, ambos os homens morrem. Observe especialmente como a mensagem da esperanca por meio do Exilio prepara o caminho para a secáo seguinte. II 30.1—33.26 Restauraqáo prometida e urna nova alianqa Aqui vocé encontrará a razáo básica para a posicáo pró-Babilónia de Jeremías: nela está a única esperanca para o futuro. Assim, os capítulos 30—31 sao urna colecáo de breves oráculos que profetizam a volta do Exilio e a restauraqáo de Siáo (v. Dt 30.1-10); eles sao, contundo, entremeados por momentos de juízo (Jr 30.5-7,12-15,23,24), para lembrar o povo daquilo que os levou ao Exilio. Observe os varios agentes na historia da restauraqáo — o povo (tanto de Israel quanto de Judá), a térra, a cidade, o rei, os sacerdotes e especialmente a nova alianqa. Jeremías entáo compraum campo em Anatote (23.1-25) como o pagamento de urna entrada nesse futuro que vira após o seu tempo! A isso se segué outro anuncio de juízo no tempo do cerco (32.26-35), seguido de oráculos em prosa falando da restauraqáo futura (32.36—33.26). Observe como 33.15,16 retoma a promessa do Messias em 23.5,6. D 34.1—36.32 Zedequias, Jeoaquim e o manuscrito de Jeremías Em resposta aos capítulos 30—33, essas narrativas ilustram a infidelidade a alianqa (cap. 34) e entáo a fidelidade a alianqa (cap. 35), com a rejeiqáo das palavras de Jeremías por parte de Jeoaquim (cap. 36) concluindo a seqáo. A esperanqa verdadeira foi oferecida a Judá, mas rejeitada. Queda e posterior ruina de Jerusalém (caps. 37—45) I 37.1— 38.28 Jeremías e a política da corte As narrativas nesse ciclo final estáo em ordem cronológica, retratando varios episodios que assinalaram a ruina de Jerusalém. O primeiro (cap. 37) reflete a falsa esperanqa que Zedequias depositava no Egito, resultando na prisáo de Jeremías; o segundo reflete a política de Zedequias, que continua anti-Babilónia (38.1-13), o que leva Jeremías

JEREMÍAS

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a ser jogado numa cisterna; observe que no episodio final (v. 14-28), Jeremias repete o conselho de se renderem á Babilonia para que vivam. D 39.1—41.15 Jeremias e a queda de Jerusalém Essa serie de narrativas relata a queda de Jerusalém, bem como os acontecimentos sórdidos que se seguiram a ela, incluindo o assassinato de Gedalias. □ 41.16—45.5 Jeremias e a fuga para o Egito Essas narrativas fináis contém os últimos oráculos de Jeremias aos exilados no Egito, que continuam resistindo a Javé, e urna palavra final a Baruque. Oráculos contra as nacóes (caps. 46—51) Seguindo a tradicáo profética, por muitos anos Jeremias tinha proferido oráculos anunciando o juízo de Javé que haveria de sobrevir as nacóes. Esses oráculos aparecem no fim do livro — para que a mensagem divina da ruina da Babilonia seja a última palavra. G 46.1-28 A ruina do Egito Os oráculos prometidos contra as nacóes (cf. 1.10) concluem agora o livro. Eles comecam com a falsa csperanca de Judá, o Egito. Após a derrota do exército egipcio (46.2-12), vira a ruina de sua térra (v. 13-24); em apéndice, há urna nota sobre a esperance de Israel (v. 27,28). G 47.1—49.39 A ruina dos vizinhos de Judá Essa serie de oráculos condena os vizinhos mais próximos de Judá, que também sao seus inimigos históricos. Contando no sul (Filístia), o foco passa ao leste (Moabe, Amom, Edom) e entáo ao nordeste (Damasco, Hazor, Eláo). Eles sao julgados principalmente pelo seu orgulho e pela forma como trataram Israel. G 50.1—51.64 A ruina da Babilonia Embora Jeremias adotasse urna política pró-Babilónia quanto ao futuro de Israel, o profeta reconhecia que, ao cabo, o próprio destruidor também haveria de ser destruido. Aqui, em especial, vocé verá o tema

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de Javé o Guerreiro Divino empreendendo a guerra santa contra seus inimigos. Observe quanta coisa, nessa colecáo de oráculos que anunciam a ruina da Babilonia, está ligada ao futuro de Israel, comecan-do com 50.2-7. A desolacáo da Babilonia será ainda mais completa que a de Jerusalém, suscitada pela sua crueldade para com o povo de Deus, sua arrogancia e suas próprias idolatrías. Varios desses oráculos serviráo de base para o anuncio de Joao da ruina de urna "Babilonia" posterior — a cidade de Roma (Ap 18). Um epílogo (cap. 52) Observe como esse epílogo histórico final serve para justificar Jeremias como profeta. O rei que rejeitou as palavras dele morre em ignominia (52.6-11); o rei que as aceitou, ainda que aprisionado, continua a viver, e tem urna morte honrosa (v. 31-34).

O livro de Jeremias busca lembrar constantemente da fidelidade de Deus a sua palavra em Deuteronómio, de que seus eleitos seráo amaldicoados com o Exilio pela sua infidelidade a Javé, mas seráo restaurados num tempo posterior com a esperanca de urna nova alianca — que foi cumprida por meio de Jesús Cristo, o "Renovó justo" de Davi (Jr 23.5).

Ezequiel

INFORMALES BÁSICAS SOBRE EZEQUIEL ■ Conteúdo: urna serie de profecias anunciando a queda de Jerusalém, incluindo o afastamento de Javé, seguido da restauradlo posterior de Israel, com a volta de Javé ■ Profeta: Ezequiel, sacerdote e profeta israelita que foi levado á Babilonia no primeiro contingente de cativos de Judá em 598 a.C, contemporáneo mais jovem de Jeremías ■ Data de atividade profética: de 593 (Ez 1.2) a 571 a.C. (29.17) ■ Énfases: a queda de Jerusalém é inevitável por causa de seus pecados, especialmente a idolatría; a soberanía transcendental de Deus como Senhor de todas as nacóes e de toda a historia; a perda e restauracáo da térra e da presenta de Javé entre o povo de Deus; a promessa do Espirito que dá vida como o elemento essencial para a fidelidade a alianca

VISÁO GERAL DE EZEQUIEL O livro de Ezequiel contém urna variedade notável de visóes e oráculos profcticos, apresentados por Ezequicl aos exilados na Babilonia ao longo de um período de 22 anos (593-571 a.C), os mais turbulentos da historia de Jerusalém. Com excecüo do oráculo e lamento pelo Egito (29.17—30.26), os oráculos aparecem em ordem cronológica.

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O livro se divide claramente em tres partes. Os capítulos 1—24 contém oráculos do período de cinco anos que antecede o cerco de Jerusalém (588 a.C). Estes se dirigem principalmente aos presunco-sos habitantes de Judá, anunciando-lhes que Deus certamente julgará a cidade e o seu templo. A seguir vem urna serie de oráculos contra as nagoes circunvizinhas (caps. 25—32) — com excegáo notável, aqui, da Babilonia. Os oráculos fináis (caps. 33—48), que abrangem um período de 16 anos depois da queda de Jerusalém, se concentram na esperanga para o futuro.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE EZEQUIEL Para que sua leitura de Ezequiel seja proveitosa, é bom ter alguma compreensáo da historia da época, parte déla contada em 2Reis 22—25. Ezequiel nasceu numa familia sacerdotal em Jerusalém, pouco antes das reformas de Josias (622 a.C), e presumivelmente se preparava para a fungáo de sacerdote, que comegaria a exercer quando comple-tasse trinta anos (593 a.C). Mas em 598 a.C. sobreveio o desastre, na forma de Nabucodonosor da Babilonia. Ao longo da vida do profeta, a política dos reis de Judá em relagáo ao Egito e á Babilonia — que en-táo disputavam a supremacía na regiáo — fora imprudente. Nabucodonosor, portante, acabou sitiando Jerusalém; o reijoaquim se rendeu; ele e a maior parte das figuras proeminentes de Jerusalém, incluindo a familia de Ezequiel, fbram levados ao Exilio (v. Jr 29.2) e instalados num assentamento de refugiados no sul da Babilonia, próximo ao rio Quebar. Evidentemente, para muitos deles o Exilio seria apenas um episodio temporario e quase imperceptível na sua gloriosa historia como o povo de Deus (v. Jr 28). Mas Jeremías já havia informado os exilados, por escrito (Jr 29.1-23), de que o tempo deles ali seria longo. Cinco anos depois Javé chamou Ezequiel para ser o profeta que anunciaría o juízo de Deus contra Jerusalém, dirigindo suas palavras á "casa de Israel"— principalmente aos exilados na Babilonia (Ez 3.1,11). A teología com que Ezequiel e o povo estavam comprometidos estava na esséncia de tudo isso, embora eles tivessem visóes radicalmente diferentes quanto ao significado déla. Essa teología consistía na ideia do povo de Israel como o povo de Javé, criado e redimido por

EZEQUIEL

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ele e definido, em última análise, pelo lugar que ocupava (a térra, esp. Jerusalém) e pela presenca de Javé entre eles (simbolizada pelo templo em Jerusalém). A maior parte do povo entendía essa teología como implicando que Jerusalém era inviolável, perspectiva reforcada pela salvacáo milagrosa da cidade após a queda de Samaría uns 125 anos antes (v. 2Rs 17—19). Essa teología fora continuamente inculcada no povo pelos falsos profetas da corte (p. ex., Ananias, Jr 28), ainda que a ela se opusessem Jeremías e Sofonias. Ezequiel também entendía que Israel era definido pelo seu lugar e pela presenca de Javé (ele haveria de se tornar, afinal, sacerdote em Jerusalém). Mas o profeta também reconhecia que Judá falhara em manter sua alianca comjavé (observe as imagens assombrosas dos caps. 16; 23), e por isso eles viriam a perder a térra e a presenca de Deus. Por meio de varias visóes, acóes proféticas e oráculos, ele anunciou vez após vez que Jerusalém seria destruida em breve, e que Javé abandonaría o templo (cap. 10). Isso era tao inacreditável para os exilados na Babilonia quanto era excruciante para Ezequiel. Mas ele também via claramente que tudo o que havia de melhor no passado seria renovado no futuro: rei, térra, povo, alianca e presenqa — predicáo que veio a ser realizada em Cristo e em seu povo da nova alianca. Quanto aos oráculos em si. Vocé haverá de notar que, em contraste com os profetas que o antecederam, a maioria dos oráculos de Ezequiel está em forma de prosa, nao poesía. De fato, 1er Ezequiel é de certa forma como virar as páginas de um livro de figuras, as palavras proféticas vindo urna após a outra na forma de acóes simbólicas realizadas pelo profeta ou como visóes ou imagens alegóricas, algumas destas também sendo interpretadas. As visóes sao bastante variadas, indo das imagens apocalípticas dos capítulos 1 (cf. 10.1-22) e 37 as visóes simbólicas interpretadas dos capítulos 15 e 17, havendo também passagens, como a parábola do capítulo 16, tao claras que dispensam interpretacóes á parte. Observe também outros aspectos únicos ao livro de Ezequiel, incluindo seu interesse no templo e ñas coisas sacerdotais. Veja, por exemplo, com que frequéncia os oráculos comecam com perguntas da parte de Javé, e quáo frequentemente concluem com as palavras

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COMO LER A BÍBUA LIVR0 POR LIVRO

"e sabereis/saberáo que eu sou o SENHOR [Javé]" (58x) ou com "Eu, o SENHOR, o disse"(18x). A tendencia de Ezequiel a ser repetitivo pode ser enfadonha para um ou outro leitor contemporáneo, mas para o profeta essa era urna maneira de reforjar aquilo que ele via e relatava. O termo "filho do homem", pelo qual é repetidamente tratado, é um hebraísmo que enfatiza a humanidade de Ezequiel na presenca do Deus eterno. Finalmente, vocé deparará com muitas das palavras e ideias de Ezequiel quando chegar ao Novo Testamento, especialmente ñas epístolas de Paulo e no Apocalipse de Joáo. Muitas das imagens do Apocalipse sao retomadas de Ezequiel, que Joáo une as imagens de Daniel e de Isaías para formar urna nova serie de imagens que visam exprimir, novamente, a grandeza indizível de Deus e seus caminhos.

UMA CAMINHADA POR EZEQUIEL Oráculos de juízo contra Israel (caps. 1—24) □ 1.1—3.27

Chamado e comissionamento de Ezequiel

Os versículos 1 e 2 situam Ezequiel entre os exilados e datam o tem-po de seu chamado no seu trigésimo ano e no quinto ano do Exilio (julho de 593 a.O). Seu chamado corneja de forma altamente dramática (cap. 1), Javé aparecendo diante dele assentado no trono de urna magnífica carruagem, puxada por quatro querubins (cf. 10.20), ao que Ezequiel responde apropriadamente prostrando-se no chao (cf. Dn 10.9; Ap. 1.17). Ele entáo recebe sua comissáo e é equipado (pelo Espirito) para sua tarefa extremamente difícil (Ez 2.1—3.27). Observe especialmente que sua comissáo como "atalaia" (3.16-21) também vem no cornejo da serie final de visóes/oráculos (33.1-20).

□ 4.1—7.27

O cerco e a ruina iminentes de Jerusalém

Ao 1er essa sejáo, observe que cía ainda é parte da mesma sequéncia datada em 1.2. Assim, com cinco anos de antecedencia, Ezequiel deve realizar tres ajóes simbólicas (4.1-3,4-17; 5.1-4) por meio das quais Javé anuncia o cerco e a destruijáo iminentes de Jerusalém (5.5-17). A essas ajóes seguem-se dois oráculos mais diretos anunciando a devastajáo tanto de Jerusalém quanto da térra (caps. 6—7); observe

EZEQUIEL

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que o primeiro se dirige aos "montes de Israel", que designa a térra (cf. 36.115), e que ambos concluem com "e saberáo que eu sou o SENHOR [Javé]". A razáo exclusiva para essa devastacáo é a idolatría; os corpos dos israelitas, dessa maneira, serád sacrificios para os seus próprios ídolos (6.5).

[71 8.1—12.20 A idolatría de Israel e a saída de Javé de Jerusalém Mais de um ano depois (setembro de 592 a.C), Ezequiel é tomado pelo Espirito para "ver" a idolatría de Jerusalém no próprio templo (cap. 8). Esse é um dos momentos mais tocantes da Biblia. Vocé con-segue sentir o absoluto pesar de Deus, vendo as mulheres chorando diante do deus Tamuz e os homens — com as costas voltadas para Javé! — adorando o sol no próprio lugar da presenca do Deus eterno? Aqui, portanto, assinala-se simbólicamente a destruicao do povo (cap. 9), determinando-se que Jerusalém há de queimar (10.2-8); a gloria de Javé deixa o templo (10.9-22), e depois, a cidade (11.23). O juízo se dirige particularmente aos presentes líderes de Jerusalém, devido a má política deles (11.1-15). Contudo, e prenunciando os capítulos 33—48, a esperanca está no futuro (11.16-25), em harmonía com o apelo de Ezequiel para que um remanescente seja poupado (11.13). O evento final profetizado nessa sequéncia é a segunda deportacáo dos exilados, anunciada por meio de mais urna acáo simbólica (12.1-20).

LJ 12.21—14.23

Falsos profetas e andaos equivocados

Assim como tinha sucedido a Jeremias, os falsos profetas atormentam Ezequiel, desta vez afirmando que suas profecías nao se cumpriráo (12.21-25), ou que o seu cumprimento demorará muito (v. 26-28); Javé, portanto, ordena que Ezequiel profetize contra aqueles que rebo-cam a parede frágil com "argamassa fraca" e aquelas que manufaturam e usam amuletos divinatórios no nome de Javé (cap. 13). Quando os anciáos vém ver o profeta, o coracáo idólatra e os falsos profetas deles sao expostos (14.1-11); Ezequiel concluí com urna profecía verdadei-ra — a inevitabilidade da ruina vindoura de Jerusalém (v. 12-23). A despeito de seus "profetas", o fato é que Siáo nao é inviolável.

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COMOLERABÍBLIALIVRO POR LIVRO

D 15.1—19.14 A ruina de Jerusalém e de seus reís Esses oráculos vagamente relacionados entre si — quatro alegorias e urna resposta a um proverbio — refletem de formas variadas tanto a situacáo dos exilados na Babilonia quanto os aconteci-mentos presentes em Jerusalém. Os primeiros dois (caps. 15—16) se concentram novamente na destruicáo iminente de Jerusalém, o primeiro ecoando a cancáo da vinha de Isaías (Is 5.1-7); observe que esse é o primeiro de varios oráculos no livro que come-cam com Javé fazendo perguntas. Ezequiel 16 retrata de maneira vivida a historia da infidelidade de Israel a Javé (urna prostituta que paga aos homens para terem relacóes com ela!) — tanto em suas intrigas políticas quanto em seu apetite insaciável pela idolatría. As alegorias das águias (cap. 17) e dos leóes (cap. 19), esta última assumindo irónicamente a forma de um lamento, dirigem--se especialmente a Zedequias, entáo rei de Jerusalém (17.15-21; 19.5-9; v. 2Rs 25.6,7). Essas alegorias enquadram urna queixa contra a injustica de Deus (as criancas pagam pelos pecados dos pais) tra-zida a Ezequiel pelos exilados (Ez 18). O proverbio deles é rejeitado totalmente, e substituido por urna oferta de perdáo se eles se arre-penderem. Observe especialmente que os pecados deles mencionados aqui agora váo consideravelmente além da idolatría (cf. cap. 22). D 20.1—24.27

Contagem regressiva para a tragedia

Essa serie, que comeca em agosto de 591 a.C. (20.1), concluí (24.1) com o inicio do cerco a Jerusalém (Janeiro de 588 a.C). O primeiro oráculo (20.1-44), retomando o capítulo 16, trata da historia da infidelidade de Israel em termos francos, mas conclui num tom de esperanza (prenunciando os caps. 36—37). No breve oráculo que vem a seguir (v. 45-49), observe que "sul"se refere á direcáo de Judá a partir da Babilonia. A "espada" de Deus que levará a cabo o seu juízo será a Babilonia (cap. 21),mais urna vez por causa dos pecados de Judá, que exigem punicáo (cap. 22). A alegoría das duas irmás (cap. 23), que também retoma o capítulo 16, trata agora dos pecados de Jerusalém á luz dos pecados de Samaría derrotada, enquanto o comeco do cerco é retratado (de duas diferentes maneiras) como urna panela no

EZEQUIEL

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fogo (24.3-8,9-14). O cerco coincide com a morte súbita da mulher de Ezequiel (24.15-27), o pesar do profeta sendo táo grande que ele emudece — símbolo de como os exilados responderáo á queda de Jerusalém.

Oráculos de juízo contra as nacóes (caps. 25—32) Antes da queda em si, ponto em que Ezequiel se volta ao futuro de Javé para o seu povo, ele recebe urna serie de oráculos contra as nacbes a quem Judá se aliara politicamente, indicando que o mesmo futuro também está reservado para elas.

U 25.1—17

Contra as naqóes vizinhas

Essa primeira serie de oráculos se dirige aos inimigos históricos de Judá, que só se tornaram seus aliados políticos devido á pressáo das circunstancias, mas se voltaram contra ela quando veio o cerco.

J 26.1—28.26

Contra Tiro e Sidom

Embora nao seja inimiga política, Tiro representa os poderes económicamente exploradores; ela vive em arrogancia, devido a sua posicáo nos sistemas económicos do mundo. O primeiro oráculo (cap. 26) é contra a própria cidade, enquanto o segundo (cap. 27) lamenta, em tom de escarnio, sua ruina iminente. Aqui, em especial, tem-se um retrato do papel dos fenicios como mercadores ao mundo, passagem em que Joáo se inspirou considcravclmente no ai contra a Babilonia (Roma) em Apocalipse 18. O terceiro oráculo (Ez 28) se concentra na arrogancia consumada do rei. Mas Javé, e apenas ele, é o Rei das nacoes, de modo que Tiro também deve cair.

D 29.1—32.32

Contra o Egito

Aqui vemos Ezequiel finalmente tratando daquele que era a causa de grande parte da aflicáo de Judá: o Egito, a quem os reis de Judá recorriam constantemente para ajudá-los contra a Babilonia. Assim como no caso de Tiro, há um oráculo de juízo (cap. 29) seguido de um lamento (cap. 30) e de um oráculo contra o seu rei (cap. 31), mas neste caso concluindo com um lamento por esse rei, também (cap. 32).

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Oráculos de esperanqa e consolo (caps. 33—48) Observe o claro desenvolvimento que aparece nessa serie final de oráculos. Após delegar a Ezequiel o papel de atalaia, Javé promete restaurar, respectivamente, o reinado davídico, a térra, a honra dele mesmo (por meio da nova afianca), seu povo, sua soberania sobre as nacóes e, finalmente, sua presenca entre o povo na térra.

D 33.1-33 O papel de Ezequiel A palavra de esperanca comeca com Ezequiel voltando ao seu papel como atalaia (33.1-20; cf. 3.16-21 para entender a nova énfase aqui). A noticia da queda de Jerusalém leva a boca do profeta a se abrir (33.22; cf. 24.25-27), e sua primeira palavra é consoante com a de Jeremias — de que a térra ficará desolada por um longo tempo (33.23-33).

n 34.1-31

Restaurando o papel de Javé como pastor de Israel

Observe como a primeira palavra de esperanca se concentra no papel do rei,]i. que este, agora, falhou em Israel. Valendo-se da imagem de um pastor (ecoando o reinado de Davi), Javé anuncia o malogro dos pastores anteriores de Judá (v. 1-10), e entáo que ele reunirá as ovelhas espalhadas que "Davi" haverá de novamente pastorear numa futura era messiánica (v. 11-31; cf. 11.16,17). Observe especialmente o papel dessa passagem em Joáo 10, em que Jesús se anuncia a si próprio corno o cumprimento dessa profecia.

L 35.1—36.15 Restaurando a térra de Javé Nao surpreende que o foco seguinte em relacáo ao futuro seja a térra. Essa secáo comeca com um oráculo contra Edom (cap. 35), que tomou as térras de Judá após a queda de Jerusalém (cf. Ob 11—13). A isso se segué um oráculo aos "montes de Israel" (Ez 36.1-15; cf. 6.1-14) — afirmando que eles produziráo em abundancia no futuro que Deus tem para o seu povo.

D 36.76-38 Restaurando a honra de Javé em Israel A seguir, o livro se concentra na honra de Javé. A desonra que Israel trouxe ao nome dele no passado será revertida quando o povo for

EZEQUIEL

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purificado, e ele receberá urna nova alianca, bem como o Espirito de Javé para poder viver segundo ela (essa nova alianca será escrita no coracáo deles; cf. Jr 31.31-33). Observe o desenvolvimento que Paulo dá a esse tema em 2Coríntios 3.1-6. Finalmente, a honra de Javé será evidenciada pelo fato de que a térra a que ele os levará, outrora desolada, será frutífera.

H 37.1-28 Restaurando o povo de Javé e sua alianqa Para que tudo isso aconteca, precisa haver urna "ressurreÍ9áo" do povo, que será reavivado pela palavra e pelo Espirito de Javé (v. 1-14), para que Israel seja novamente urna nacáo na térra, sob o seu rei davídico e na renova9áo da presenca do próprio Javé entre eles (v. 15-28).

U 38.1—39.29

Restaurando a supremacía de Javé

A restaura9áo de Israel será completa quando Javé exercer sua soberanía contra todos os inimigos de seu povo, aqui simbólicamente representados pela derrota por ele infligida a Gogue e Magogue, procedentes de urna térra distante do norte (38.15). A moral é que Javé garantirá a restaura9áo futura de Israel a despeito de todos os seus inimigos futuros. Observe como essa se9áo encerra com o banquete da vitória de Javé (39.17-20) e duas promessas de restaura9áo em forma de resumo (v. 21-29), que preparam o caminho para o fim do livro nos capítulos 40—48.

□ 40.1—48.35 Restaurando a presenqa de Javé entre o seu povo e na térra Em abril de 573 a.C, 14 anos depois da queda de Jerusalém, Ezequiel recebe sua serie final de visóes, que se concentram primeiro no templo e no sacerdocio restaurados. O que o profeta vé é táo grandioso que ele incluí no oráculo as medidas extraordinarias do templo, simbolizando sua imponencia e gloria. Todos esses detalhes sao urna maneira de enfatizar a importancia da adora9áo prestada a Javé pela comunidade restaurada no futuro. E mesmo que vocé nao compartilhe o interesse pessoal de Ezequiel por esses detalhes, nao deixe de atentar para o sentido central aqui, que Ezequiel deixa claro ao situálo no centro da visáo — o retorno da presera de Javé entre o seu povo (43.1-9)!

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COMO LER A BIBLIA UVR0 POR LIVRO

Importante também para esse grande futuro do povo de Deus é a redistribuicáo da térra transformada (45.1-12), tema principal dos dois últimos capítulos (47—48). Observe especialmente que o profeta vé o rio da agua da vida saindo do templo (47.1-12), o lugar da presenca de Deus e da adoracáo do povo, imagens que Joáo retoma em sua visáo da cidade final de Deus em Apocalipse 22.1-5. O livro, assim, concluí com um novo nome para a cidade: "O SENHOR Está Aqui"(Ez 48.35)!

O livro de Ezequiel é parte significativa da historia de Deus, tratando do fracasso final de seu povo, que fora constituido pelas primeiras aliancas, mas foi infiel. Ezequiel vislumbra, contudo, um futuro em que o povo de Deus será reconstituido por urna nova alianca, que incluirá o verdadeiro Pastor e a dádiva do Espirito Santo.

Daniel

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE DANIEL ■ Conteúdo: uma serie de historias sobre como Deus traz honra a si próprio por meio de Daniel e seus tres amigos na Babilonia, seguida de quatro visoes apocalípticas que tratam de reinos futuros e do reino final de Deus ■ Profeta: Daniel, um dos primeiros exilados a Babilonia, escolhido para servir como administrador de provincia primeiro na corte babilónica, depois na persa ■ Data da composicáo: desconhecida; presumivelmente perto do fim do sáculo sexto a.C. (c. 520 a.C), embora muitos tenham sugerido que o livro date da primeira metade do sáculo segundo a.C. (c. 165 a.C.) ■ Enfases: a soberania de Deus sobre todas as nacoes e seus governantes; o cuidado de Deus pelos judeus no Exilio, com promessas de uma restauracíio final; o presente triunfo e a vitória final de Deus sobre a maldade humana

VISÁO GERAL DE DANIEL O livro de Daniel se divide nitidamente em duas partes (caps. 1—6 e 7—12). A primeira contém historias da corte, principalmente sobre Daniel e tres amigos seus, que se mantém absolutamente leáis a

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

Javé mesmo quando ascendem a posicoes de importancia no Imperio Babilónico. Há quatro énfases aqui: (1) na lealdade dos quatro hebreus a Deus, (2) no livramento milagroso deles por parte de Deus, (3) no reconhecimento da grandeza do Deus de Israel por parte dos reis gentíos, e (4) em Daniel como o intérprete de sonhos por intermedio de dom divino — todas elas realcando a soberania de Deus sobre todas as coisas, incluindo o rei que conquistou e destruiu Jerusalém. A segunda parte consiste numa serie de visóes apocalípticas sobre a ascensáo e queda de sucessivos imperios, todos os casos envolvendo um governante tiránico vindouro (7.8,24,25; 8.23-25; 11.36-45) — mais frequentemente interpretado como sendo Antíoco iv (Epifánio), dos governantes seléucidas da Palestina (175-164 a.C), que, devido a desolacáo que infligiu a Jerusalém e ao fato de ter profanado o templo, viria a ser o primeiro de urna serie de figuras do anticristo ñas literaturas judaica e crista. Mas, em todos os casos, o foco final é no juízo de Deus sobre o inimigo e no glorioso reino futuro que aguarda o seu povo.

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE DANIEL Em primeiro lugar, é importante observar que na Biblia hebraica o livro de Daniel integra os Escritos, e nao os Profetas. Em parte isso se deve ao género do livro — historias sobre um "profeta" e visóes apocalípticas, em vez de oráculos proféticos. De fato, nao há nada na literatura judaica ou crista que se assemelhe a Daniel, um livro que combina historias da corte e visoes apocalípticas. Além disso, o propósito do livro é inspirar e encorajar o povo de Deus que está vivendo sob dominio estrangeiro, nao chamá-los ao arrependimento a luz de juízos vindouros. Daniel, portanto, nao é em momento algum chamado de profeta, mas visto, antes, como um homem a quem Deus revela misterios. Será proveitoso, portanto, dar urna lida na breve descricáo do género apocalíptico em Entendes o que les? (p. 301-303), já que os sonhos e visoes nos capítulos 2 e 7—11 apresentam a maior parte das características que definem esse género — o livro foi gerado numa época de opressáo; trata-se, do comeco ao fim, de urna obra literaria; ele vem por intermedio de visóes e sonhos concedidos por anjos; contém

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imagens de fantasia que simbolizan! a realidade; e Daniel recebe a ordem de selar as visóes para os últimos dias (8.26; 9.24; 12.4). Um fato interessante é que os capítulos 1 e 8—12 sao escritos em hebraico, enquanto os capítulos 2—7 estáo em aramaico, a língua franca no Oriente Próximo do sáculo sexto a.C. até o tempo de Cristo. Quanto a isso, há duas coisas a observar. Em primeiro lugar, a parte em aramaico consiste ñas historias e na primeira visáo, sugerindo que estas podem ser lidas por todos; já a introducao e as visoes interpretadas estáo em hebraico, talvez implicando que se destinem apenas ao povo de Deus. Em segundo lugar, a parte do livro escrita em aramaico ordena-se segundo um padráo quiástico: •

Os capítulos 2 e7 contém visóes semelhantes de reinos futuros, concluindo o reino final e eterno de Deus.



Os capítulos 3 e 6 sao historias de livramento milagroso, em que se fez oposicáo a Deus.



Os capítulos 4 e 5 sao historias sobre o fim de dois reis babilonios, que ambos reconhecem a grandeza do Deus de Israel.

Assim, essas historias nos contam que Deus está no controle final de toda a historia humana (caps. 2 e 7), o que se ilustra com historias tanto de libertacáo milagrosa (caps. 3 e 6) quanto da "derrubada" dos dois reis babilonios (caps. 4 e 5). Todas essas historias sao primorosamente narradas. Para aproveitá-las totalmente, nao é má ideia tentar lé-las em voz alta; é assim que se pretendia, originalmente, que o texto fosse lido. Também é importante, na leitura de Daniel, ter consciéncia de duas situacües históricas: (1) a do próprio profeta e (2) a prevista por ele em suas visoes. Assim, os capítulos 1—6 descrevem questóes na corte babilónica, do tempo de Nabucodonosor até o primeiro dos go-vernantes persas da Babilonia (c. 605-530 a.C.) — do tempo antes da queda de Jerusalém, quando os primeiros cativos de Judá foram levados á Babilonia, até o tempo logo depois da queda do Imperio Babilónico em 539. As visóes (caps. 7—12) retomam esse período. A Babilonia foi seguida do longevo Imperio Persa (539 a c. 330 a.C). Entáo veio o

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COMO LER A BÍBLIA UVRO POR UVRO

breve Imperio Grego de Alexandre (333-323 a.C.) que, quando este morreu, foi dividido entre quatro generáis (v. 8.19-22). Especialmente interessante para se entender a historia judaica intertestamentária é a longa disputa pela Palestina entre os seléucidas (da Antioquia [o norte]) e os ptolomeus (do Egito [o sul]), a que se alude na visáo de Daniel 11 (y., p. ex., as notas de estudo na Biblia de Estudo NVI). A ascensáo de Antíoco iv, crucial para Daniel, é descrita em 11.21-32; Antíoco iv buscou eliminar tudo que fosse judaico em Jerusalém, forcando os israelitas a adotar a política de helenizacáo que ele impós as suas térras. Assim, ele proibiu que se guardasse a Lei, e mostrava favor especial pelos helenizantes (v. 11.28). Seu plano de tomar o Egito acabou sendo frustrado por Roma; ao voltar para casa ele passou por Jerusalém, derramando sua furia sobre os judeus — que lhe resistiram —, profanando finalmente o Lugar Santo ao erigir nele urna estatua de Zeus, em 167 a.C. (11.30,31). Esse evento, que acabou levanto a revolta dos macabeus registrada nos livros apócrifos de 1 e 2Macabeus, é vislumbrado em Daniel 7—11. Dá para imaginar como teria sido ler o livro de Daniel durante esse período — tanto as historias nos capítulos 1—6 (Deus honra a lealdade e humilhará os reis arrogantes!) quanto as próprias visóes (Deus predisse todas essas coisas). Finalmente, é importante observar que a vinda do reino messiánico é retratada como ocorrendo depois da derrota de Antíoco, o que de fato ocorreu um século e meio depois — o único reino digno de mencáo após o de Antíoco nao sendo o de Roma, mas o de Cristo. Em consonancia com toda a tradicao profética hebraica, esses eventos históricos vindouros eram vistos contra o paño de fundo do grande futuro escatológico final de Deus (v. Introducao aos Profetas, p. 205). UMA CAMINHADA POR DANIEL D 1.1-21

Narrativa introdutória: Daniel e seus amigos na corte de Nabucodonosor

Observe como essa narrativa inicial nao só apresenta as historias que se seguem, mas fornece informacóes valiosas para urna boa leitura do livro de Daniel. Os versículos 1 e 2 dao o contexto histórico, mas também prenunciam 5.1,2. Daniel e seus companheiros sobressaem

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a todos os outros oficiáis de provincia toreados ao servico do rei — e isso precisamente porque mantém a lealdade a alianca quanto as leis alimentares (1.6-20); mas observe também a pequeña insercáo no versículo 17, que prenuncia a historia seguinte. E finalmente, observe que Deus é visto como dirigindo cssas questóes (v. 9,17).

□ 2.1-49 O sonho de Nabucodonosor é interpretado por Daniel Essa narrativa serve a tres propósitos: exaltar a Deus ácima de Nabucodonosor (v. 27,28,36-38,44,45,47), incluindo a exaltacao de Daniel aos olhos do rei por parte de Deus (v. 46,48,49); apresentar Daniel como o agente de Deus para interpretar sonhos (v. 14-45); e prenunciar as visóes posteriores (v. 31-45). Observe como os dois últimos itens sao ressaltados na oragáo de Daniel (v. 2023); observe, além disso, que embora o sonho seja interpretado, nao há interesse adicional nele a essa altura, meramente intrigando o leitor quanto as visoes que háo de vir. Observe finalmente como o versículo 49 prenuncia a historia seguinte, em que Daniel nao figura.

□ 3.1-30 Salvos da fornalha ardente de Nabucodonosor Eis que o rei, que o profeta designa como "a cabefa de ouro" (2.38), erige ele próprio urna monstruosa estatua de ouro, e ordena que todos os oficiáis da provincia a adorem. Mas assim como Deus zelou por eles no capítulo 1, os tres hebreus sao livrados (dessa vez milagrosamente) em virmde de sua absoluta rejeicáo da idolatria (3.16-18). O vigor dessa narrativa deve-se em parte a suas frequentes repeticóes. Mas sua maior forca está na moral que ela contém: o maior rei da térra nao é pareo para o Deus eterno; Deus nao só liberta em grande estilo os tres hebreus da arrogancia e ira de Nabucodonosor, mas o rei ainda os promove (v. 30), e ele próprio reconhece a grandeza do Deus deles (v. 28,29), o que por sua vez prenuncia a historia a seguir.

D 4.1-37 A demencia de Nabucodonosor Essa expressao absoluta da soberania de Deus sobre os reis da térra é narrada de forma magnífica, realfada em parte pelo fato de que toda

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

a narrativa é um relato do rei para as nacóes (v. 1). Ela comeca com o reconhecimento da parte do rei de que apenas o reino de Deus é para sempre (v. 2,3; cf. 2.44), prenunciando mais urna vez as visóes posteriores (7.14,18,27), e conclui na mesma nota (4.34,35) — depois de o rei arrogante ser rebaixado por Deus á condicáo de um animal. Observe que Daniel também volta á cena como o intérprete de sonhos (v. 8-27). [7 5.1-31

O banquete de Belsazar e a ruina da Babilonia

Enquanto le a historia, visualize o drama; atente também, no entanto, para as formas como a historia funciona — para lembrá-lo de que o Imperio Babilónico veio ao fim porque o seu rei nao honrou o verdadeiro Deus (v. 23) e para relatar isso num contexto em que o rei está desafiando a Deus ao usar os utensilios sagrados do templo de Jerusalém (v. 2; cf. 1.2) com propósitos idólatras. Mais urna vez, Daniel é a figura central, interpretando agora os escritos na parede. D 6.1-28 Daniel na cova dos leóes Esse terceiro ataque á fé judaica (v. caps. 1 e 3) tem novamente Daniel como protagonista, mas agora com a Babilonia sob dominio persa. Observe o quanto ele corresponde ao capítulo 3: Daniel conhece o decreto, bem como seu propósito e consequéncias — ser hincado á morte imediata —, mas se recusa a deixar de orar ao seu Deus, é divinamente livrado, e o rei presta homenagem ao "Deus vivo" (v. 26). Observe também como Dario ecoa o reconhecimento de Nabucodonosor, afirmando a eternidade de Deus (v. 26,27; cf. 4.34,35). D 7.1-28 A visáo dos animáis do mar As quatro visóes desses capítulos sao precedidas da data em que ocorreram, Daniel já sendo um homem relativamente idoso. A primeira ecoa itens de 2.36-45, e ao mesmo tempo prepara o leitor para as seguintes. Observe que, neste caso, o interesse se concentra no pequeño chifre c no reino messiánico vindouro. Esses elementos sao sublinhados: (1) pela forma como a narrativa é construida (o pequeño chifre é apresentado [v. 8], a que se seguem, respectivamente, a cena na corte divina [v. 9,10] e entáo a sua ruina final [v. 11], e o reino eterno do

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Altíssimo e seus "santos" [v. 18]); (2) pela falta de interesse presente nos outros reinos (v. cap. 8); e (3) pelo interesse singular de Daniel no quarto animal e no pequeño chifre (v. 19,20). Observe também que a parte final da própria visáo, a opressáo dos santos por parte do peque-no chifre, só é mencionada nos versículos 21,22, para que a interpre-tacáo possa se concentrar nesse aspecto, na derrota final do pequeño chifre e no reino eterno de Deus (v. 25-27).

H 8.1-27 A visáo do carneiro e do bode O segundo e terceiro reinos do capítulo 7 sao agora concebidos como um carneiro e um bode, e interpretados como os medos e os persas, seguidos da Grecia. A vitória de Alexandre, o Grande, sobre a Pérsia é retratada (v. 68,21), bem como a subsequente divisáo do imperio entre seus quatro generáis (v. 8b,22), de onde acabarla vindo o peque-no chifre (v. 9-13,23-25). Observe mais urna vez o foco da visáo — os fatos de que ele ataca os santos e sua adoracáo, e de que ele próprio será destruido, mas nao por meio de poder humano.

D 9.1-27 interpretagáo da profecía de Jeremías A oracáo de Daniel (v. 4-19) constitui a parte central do livro, refle-tindo o merecido Exilio de Israel por sua infidelidade á alianca, mas exprimindo esperanca no perdáo e na misericordia de Javé (o único lugar em Daniel em que aparece o nome "Javé"). A orafáo é enquadrada pela necessidade de urna nova aplicacáo dos setenta anos de Jeremías (v. l-3,áluz da devastacáo a ser causada pelo pequeño chifre). Aresposta (v. 20-27) consiste num uso de números típico do género apocalíptico, o número original sendo multiplicado por sete (= ao cabo da devastacáo causada pelo pequeño chifre), o que, mais urna vez de maneira típica, é retratado contra o paño de fundo do fim de todas as coisas.

D 10.1—12.4

O anjo entrega a revelagáo do futuro

Todas as visoes até aqui apontam para essa visáo final. Observe os intricados preparativos para ela no encontró de Daniel com o anjo em 10.1-21. O que se segué, após urna introducáo (11.2-4) que retoma parte da visáo em 8.19-22, é urna previsáo do confuto entre os

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

seléucidas e os ptolomeus pela "Terra Gloriosa" (11.5-20; cf. Jr 3.19). Mas, como antes, tudo isso leva a ascensáo e queda de Antíoco iv (Dn 11.21-45), o foco estando especialmente na sua devastacáo de Jerusalém, mas também predizendo, mais urna vez, o fím dele. E, assim como antes, seu fim é retratado contra o paño de fundo do fim de todas as coisas (12.1-4), cujos aspectos centráis seráo a ressurreicáo dos morios e a recompensa eterna dos justos.

D 72.5-73

Condusáo

Observe que as perguntas fináis de Daniel, "Quanto tempo haverá até o fim destas maravilhas?", e "Qual será o fim destas coisas?", sao novamente enunciadas por meio de esquemas numéricos crípticos, enquanto o próprio Daniel descansará até o dia da ressurreicáo.

O livro de Daniel, embora se concentre num período em particular da historia de Israel, antevé o grande reinado eterno de Deus inaugurado por Jesús Cristo; ele tcve, dessa forma, grande influencia sobre as imagens usadas por Joáo no Apocalipse.

Oseias

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE OSEIAS ■ Conteúdo: a compaixáo de Javé pelo Reino do Norte (Israel), e sua condenacáo dos israelitas, mesmo assim, em virtude da infidelidade deles ■ Profeta: Oseias, profeta do norte, provavelmente de Samaria ■ Data de atividade profética: cerca de 758-722 a.C. ■ Enfases: o amor infalível de Javé pelo seu povo, mesmo quando precisa puni-lo por sua infidelidade

VISÁO GERAL DE OSEIAS A estrutura do primeiro — e mais extenso — dos livros que formam O Livro dos Doze, se comparada a dos demais, nao é táo fácil de perceber, em parte pela ausencia geral de fórmulas seja de introducáo ou de conclusáo (como a fórmula "assim diz o SENHOR [Javé]"). Duas grandes divisoes sao claras (caps. 1—3 e 4—14). A parte 1 parece ser intencionalmente introdutória, e seu padráo, que alterna entre juízo (1.2-9; 2.2-13; 3.4) e restaurarlo futura (1.10—2.1; 2.14-23; 3.5), taivez também sirva de base para a parte 2. Os juízos sao atribuidos ao "adulterio" de Israel (= idolatría, 2.8,13,17), e a restauracáo, ao amor infalível de Javé pelo seu povo (2.1,14,23; 3.1). A tensáo nesse livro, como no de Miqueias depois, é entre o amor de Javé por seu povo e a

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sua justÍ9a, que exige que ele inflija sobre os israelitas as maldÍ9Óes pela infidelidade a aliaba. Assim, as imagens fornecidas pelo casamento de Oseias refletem o longo relacionamento de Javé com Israel (casamento, infidelidade, "divorcio", restaura9áo) e também servem de padráo para o livro na forma em que o temos. Um primeiro ciclo de oráculos (4.1—10.15) narra a sórdida historia da infidelidade de Israel, tanto religiosa quan-to política, juntamente com os juízos vindouros (e necessários) de Javé; enquanto em 11.1-11 se promete a restaura9áo futura de Israel com base no amor e na compaixáo de Javé. A historia de infidelidade e juízo é repetida com intensidade ainda maior em um segundo ciclo (11.12—13.16), enquanto 14.1-8 encerra o livro com o cántico de amor final de Javé ao seu povo.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE OSEIAS Além do paralelo próximo entre o casamento simbólico de Oseias e o relacionamento de Javé com Israel/Efraim, tres outras questoes sao cruciais para a leitura acertada desse livro. Em primeiro lugar, o contexto histórico (v. 2Rs 14.23—18.16) é influenciado em grande parte pelos altos e babeos da Assíria. De acordó com 1.1, o chamado profético de Oseias come90u perto do fim dos dias relativamente tranquilos e prósperos de Jeroboáo n (v. "Orienta9Óes para a leitura de Amos", p. 263), mas a lista de reis de Judá, bem como os oráculos do próprio Oseias, sugerem que a maioria deles foi pronunciada durante os anos de rápido declínio que se seguiram á morte de Jeroboáo u (753 a.O). Seis reis governaram Samaría numa rápida sucessao — em reinados caracterizados por intrigas, inconstancia e assassinatos (cf. 8.4) — até o Reino do Norte ser derrabado pela Assíria em 722/1. Parte da intriga nesse caso dizia respeito á disposÍ9áo (ou falta de) da parte do rei de pagar tributo a Assíria, o que por sua vez estava ligado á busca por aliabas estrangeiras (7.8-11) para prote9áo contra a Assíria. No fim, Javé usará a Assíria como o cajado de sua punÍ9áo (10.6,7). Em segundo lugar, e ainda mais importante, vocé piecisa considerar o contexto religioso/teológico. Embora Oseias regularmente dé alguma aten9áo a Judá (v. adiante), sua paixño e páthos se concentram em

OSEIAS

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Israel. Retomando o tema dos profetas reformadores Elias e Eliseu, que haviam profetizado um século antes, ele fica ao mesmo tempo perplexo e encolerizado diante da propensáo de Israel a abandonar Javé em favor de Baal — ou a misturar os dois de forma sincretis-ta (2.11,13; v. "Orientarles para a leitura de Deuteronómio", p. 68). Assim como o casamento é algo ao mesmo tempo absolutamente exclusivo e profundamente pessoal, assim é a alianca de Javé com Israel. Oseias, portanto, repetidamente lembra os seus ouvintes/leitores das suas origens (2.15; 9.10; 11.1-4; 13.4), enquanto também rememora a historia de infidelidade dos israelitas (9.10,15; 10.9). A infidelidade presente do povo, refletida principalmente em sua idolatría, também é vista na violacáo da maior parte dos Dez Mandamentos, como o preámbulo em 4.1-3 deixa claro de forma eloquente. O que está em jogo nisso tudo é o caráter de Javé. Ao se voltar para os deuses de fertilidade cananeus (os baalins e Aserá), Israel atribuiu a fertilidade tanto das colheitas quanto do povo a esses deuses (2.5,12), abandonando dessa forma a Javé, o Criador de tudo, o único que prové as colheitas e abre o ventre (2.8,18,21,22; 9.11,14). Ao mesmo tempo, os israelitas se tornaram como os deuses que adoram — cheios de mentira, engaño e inconstancias. Assim, a mensagem de Oseias — e a razáo do juízo vindouro — é essencialmente que, embora devesse ser o contrario, o povo simplesmente nao conbecejavé (4.1,6,14; 8.2,3); os israelitas passaram a pensar em Javé nao em associacáo com a própria historia da redenváo deles, mas em associacáo com a religiáo cananeia — e o resultado é fatal. Em terceiro lugar, se as vezes vocé achar Oseias urna leitura difícil, isso talvez se deva, em parte, ao fato de o profeta se expressar de manera táo sincera e apaixonada. Aqui vemos paixáo epáthos sendo despejados sobre Israel oráculo após oráculo, ironia após ironía — e essa paixáo nao é sempre fácil de interpretar em termos de o que ele quer dizer (de fato, é difícil encontrar dois comentarios bíblicos que concorden! quanto aos detalhes). Ao mesmo tempo, os próprios oráculos nem sempre se encaixam nos padróes formáis habituáis, os anuncios de juízo e as razóes para ele nao sendo expressos de forma perfeita-mente clara e distinta, em muitos casos simplesmente fundindo-se na mesma frase. Além disso, o texto hebraico do livro sofreu bastante na

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COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVR0

transmissáo, havendo trechos muito difíceis de destrinchar (observe as muitas notas de rodapé na NVI). Mas ao mesmo tempo, é justamente essa paixáo que faz de Oseias urna leitura táo extraordinaria. As metáforas marcantes sao sua especialidade. Observe como, nesse livro, Javé é leáo, leopardo, ursa, águia (abutre), ave de rapiña (5.14; 11.10; 13.7,8; 8.1; 7.12),bem como marido, amante, pai, pinheiro verde (2.14-23; 14.3-7; 11.8,9; 14.8). E Israel em seus pecados é descrito de forma ainda mais vivida: mulher adúltera, novilha desgarrada, lago e rede, forno aceso, "bolo que nao foi virado", pomba insensata, arco engañador, talo que nao dá cereal, filho que se recusa a nascer (2.2; 4.16; 5.1; 7.4,8,11,16; 8.7; 13.13); ele desaparecerá como névoa, orvalho, palha e fumaga (13.3); flutuará para longe como um graveto na agua (10.7); ele semeou o vento e colherá a tempestade (8.7). Nao há como nao entender o retrato que o profeta faz. Saboreie, portanto, a leitura desse livro, ainda que vocé chore e lamente junto com Javé e seu profeta. Urna palavra final sobre Oseias considerado como livro destinado a leitura. Embora as profecias se dirijam principalmente ao Reino do Norte (Israel), é bastante provável que o livro tenha sido preservado em Judá. A evidencia disso está na introdugáo, que sitúa o ministerio de Oseias no reinado de Ezequias em Judá (715 a.C, seis anos após a queda de Samaria). Isso sugere que, embora Oseias só parega dar atengao ocasional a Judá nos seus oráculos (cf. 1.7,11; 4.15; 5.5,10,12-14; 6.4,11; 8.14; 10.11; 11.12; 12.2), ele nao espera que seus leitores de Judá posteriores fagam o mesmo em relagáo a Judá — nem devemos fazé-lo nos, que lemos o livro conscientes da queda posterior de ambos os reinos!

UMA CAMINHADA POR OSEIAS D 1.1

Título

Observe que o livro de Oseias é "A palavra do SENHOR" que veio ao profeta durante um período que abarca varios reis de Judá.

D 1.2—2.1

Oseias, Gómer e filhos

Aqui Oseias age simbólicamente, casando-se com urna "mulher adúltera" (literalmente urna "mulher de prostituigáo", talvez urna metáfora

OSEIAS

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da deslealdade de Gómer a Javé). Seus filhos recebem nomes que se referem aos juízos de Deus contra sua própria "mulher infiel" (Israel); eles os recebem para simbolizar o estigma do juízo de Deus e a rejeicáo que Israel acabaría sofrendo por parte dele. Mas observe também como a palavra de esperanca (1.10—2.1) muda o sentido de seus nomes! Observe também que, apesar de Israel e Judá terem destinos diferentes em 1.6,7, eles sao reunidos no futuro prometido por Deus (v. 11). D 2.2-23 Israel punido e restaurado Num oráculo poético, os filhos da adúltera agora sao conclamados a repreender sua mae (Israel), instando com ela para que abandone a idolatría; se nao o fizer, Javé nao demonstrará nenhum amor para com os filhos déla (v. 2-6). Israel finge voltar a Javé (v. 7,8), mas pagará por sua libertinagem (v. 9-13). Observe o quáo consumada é sua idolatria. Já na palavra de restauracáo (v. 14-23), atente para as mudancas auspiciosas no tom da profecia, incluindo a restauracáo prometida a térra. D 3.1-5 Juízo e restauragáo Observe como essa narrativa, simbolizando o exilio vindouro, corresponde a 2.14-23 — assim como 2.2-13 corresponde a 1.2-8; dessa forma, as duas narrativas (caps. 1 e 3) encerram o oráculo no capítulo 2. Na leitura do livro de Oseias, observe as maneiras como os temas desses capítulos sao retomados. D 4.1—5.7 Acusacáo de Javé contra Israel por sua infidelidade Grande parte dessa secáo assume a forma de um litigio contra Israel. Ela cornea com urna acusacáo inicial (4.1-3), em que se apresentam todos os temas de maior vulto do livro: nenhuma fidelidade á alianfa, nenhum conhecimento de Javé, a térra clama. Entáo, retomando temas dos capítulos 1—3, há acusacoes contra sacerdotes, profetas e o povo (esp. de falta de conhecimento [4.6,7,14], que assume a forma de idolatria [v. 10-14,15,17-19]). Como agora eles foram longe demais (5.1-4), eles seráo julgados (v. 5-7). Observe que Judá está sempre em vista também (4.15; 5.5).

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

D 5.8—7.16 A infidelidade de Israel por meio das alianzas promiscuas Javé agora conclama o atalaia (possivelmente o próprio Oseias, v. 8.1) a tocar a trombeta de advertencia (5.8). O juízo é certo (v. 9-12,14,15); flertar com a Assíria nao adiantará (v. 13), e o falso arrependimento também é inútil (6.1-3), porque ele é como a "névoa da manhá" (v. 4-10); mesmo quando Javé deseja restaurá-los (v. 11), seus pecados continuam sendo expostos (7.1-7), especialmente porque eles continuam a confiar em outras nacóes para ajudálos, em vez de em Javé (v. 8-16). E, mais urna vez, veja as referencias a Judá (5.10,12,13,14; 6.4,11).

□ 8.1—9.9

Mais urna vez: juízo devido á infidelidade

Outro chamado a soar a trombeta (8.1) anuncia outra vez os juízos inevitáveis de Javé, dessa vez na forma da derrota de Israel pelas pró-prias nacoes as quais ele se vendeu (8.3b, 8-10,14). Observe mais urna vez a acusacáo de que eles violaram a alianca (8.1-3), mas agora acres-cida da decadencia interna da monarquia (8.4); a idolatria continua sendo o principal problema (8.4-7). O ciclo entáo conclui com mais um anuncio do juízo iminente e de suas razoes (9.1-9).

D 9.10—10.15 Condenagáo de Israel por nao viver á altura de seu chamado Em 9.9, Javé os lembrou de Gibeá (Jz 19—20); agora ele retoma urna serie de incidentes da deslealdade de Israel a alianca no passado, que servem de exemplo para os juízos atuais (Os 9.10-14, Baal-Peor [Nm 25.1-9]; Os 9.1517, Gilgal [ISm 13; 15]; Os 10.9,10, Gibeá de novo). Observe o papel de varios reis nos oráculos em Oseias 10 (v. 3,6,7,15): porque Israel rejeitou Javé como Rei, seu próprio rei será destruido, e seus ídolos seráo levados ao rei da Assíria. Observe também o convite em 10.12, prenunciando a palavra de angustia e compaixáo que vem a seguir.

D 11.1-11

O amor imperecível de Deus por Israel

Temos aqui, de muitas manearas, a esséncia da mensagem de Oseias. O amor de Javé por seu "filho", Israel (v. 1,3,4; cf. Ex 4.22); a infidelidade

0SEIAS

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de Israel (Os 11.2,7); o juízo de Javé (v. 5,6); e sua promessa de restauracáo (v. 8-11) — rudo isso porque só ele é Santo, totalmente outro em relacáo as suas criaturas humanas (v. 9). Isso prepara o caminho para a vinda de Jesús Cristo. H 11.12—13.16 Mais urna vez: os pecados e o juízo vindouro de Israel Observe como o primeiro desses oráculos retoma muitos temas anteriores — tanto os pecados de Israel (e de Judá; mentiras, engaño, idolatría [bois em Gilgal, v. 11]) quanto os juízos (12.2,14) e o apelo (v. 6) de Deus; é apenas aqui (v. 7,8) que o livro de Oseias reflete de maneira explícita a injustica social que encontramos em Amos, Isaías e Miqueias. Observe também, contudo, que a maior parte dos oráculos retoma (de 11.1-4) momentos da historia deles, especialmente os papéis de Jaco (tanto o bom quanto o ruim!) e de Moisés (12.13). O segundo oráculo (13.1-16) repete mais urna vez o tema da infidelidade do povo a Javé, especialmente a ingratidáo refletida no fato de os israelitas caírem em idolatría (v. 1,2,6,9-12,16) depois de Javé ter feito tanto por eles (v. 4-6); eles serao, portanto, julgados (v. 3,7,8,15,16). Nao obstante, persiste a palavra de esperanza (v. 14). D 14.1-9 Convite e restauraqáo Veja como o livro conclui com mais um convite ao arrependimento (v. 1-3) e a promessa de restauracáo e de um futuro glorioso (v. 4-8); poderia Oseias té-lo concluido de qualquer outra forma? O livro encerra com urna palavra no estilo dos livros da Sabedoria, conclamando a que se tenha discernimento (v. 9) — urna palavra que apresenta semelhanfas com o salmo 1.

O livro de Oseias, que arde com o fogo do amor de Deus pelo seu povo, nos lembra de que o Deus da historia bíblica julga a infidelidade, ainda que ofereca urna esperance para além do juízo.

Joel

INFORMALES BÁSICAS SOBRE JOEL ■ Conteúdo: urna praga de gafanhotos devastadora é o cenário de um chamado duplo ao arrependimento; a este, Deus responde com urna promessa de misericordia e um derramamento de seu Espirito, com um dia de juízo sobre as nacoes ■ Profeta: Joel, de quem, no mais, nada se sabe; sua preocupacáo com Judá e Jerusalém (2.23,32; 3.1) sugere que ele tenha pertencido ao Reino do Sul ■ Data de atividade profética: incerta; talvez cerca de 590 a.C, mas possivelmente após 500 a.C. ■ Enfases: eis que se avizinha o dia de Javé — um dia de juízo e salvacáo; Javé castiga aqueles que ama, e o castigo conclama o seu povo ao arrependimento; o Deus de Israel mantém a alianca ao mostrar misericordia pelo seu povo; Javé é soberano sobre todas as nacoes, e julgará aquelas que nao tiverem mostrado misericordia pelo seu povo

VISÁO GERAL DE JOEL Joel centra grande parte de sua mensagem no conceito do "dia do SENHOR". Quatro cenas ao todo retratam esse dia decisivo, cada urna consistindo em duas partes. O capítulo 1 descreve o desastre imediato

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— urna assoladora praga de gafanhotos (1.2-12) —, que, pela sua se-veridade, leva a um chamado ao arrependimento nacional e a oracáo (v. 13-20). Na segunda cena (2.1-17), tudo isso se repete, mas agora a praga é comparada a — ou talvez implícitamente identificada como — um exército comandado por Javé, acompanhado de sinais cósmicos (v. 10,11), e o chamado ao arrependimento é baseado no caráter de Javé (v. 12-17). Essa metáfora ampliada leva a imagem da primeira cena a um novo patamar, e provavelmente se refere aos juízos iminen-tes de Deus sobre Israel e as nacóes. Pode ser, alias, que os "gafanhotos" sirvam como urna especie de palavra código para designar os exércitos babilonios que invadiram Judá em 598 a.C. A terceira cena (2.18-32) apresenta a resposta de Deus — primei-ro á questao imediata da praga de gafanhotos, restaurando "os anos consumidos pelo gafanhoto" (v. 25) por meio da volta da abundancia de colheitas (v. 1827); e entáo com urna promessa especial da nova era do Espirito, apontando assim para um glorioso futuro do povo de Deus (v. 28-32). A cena final (cap. 3) retrata a segunda resposta de Deus, trazendo o juízo contra as nacoes (v. 1-16) na forma de urna grande batalha (no vale de Josafá, cujo nome significa "Javé julga/julgou"). Essa cena termina com um retrato da béncáo extraordinaria de Deus sobre o seu povo perdoado e purificado (v. 1721).

ORIENTACjÓES PARA A LEITURA DE JOEL Joel nao nos oferece data nem referencias históricas específicas e identificáveis. Isso torna a leitura de Joel um pouco mais difícil em rela-cáo aos outros livros proféticos, já que entender os tempos do profeta ajuda bastante na compreensáo de sua mensagem (v. Introdu9áo aos Profetas, p. 205). O "exército do norte" (2.20, lit., "o que é do norte") provavelmente se refere aos gafanhotos na primeira ocorréncia, mas depois disso passa a se referir, metafóricamente, ao conhecido temor dos exércitos invasores do norte (Jr 4.6 [referindo-se á Babilonia]; cf. Ez 38.15; 39.2); nada mais, porém, é dito a seu respeito. Mais curioso ainda é o fato de que, num livro em que os chamados ao

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

arrependimento tém um lugar táo central (Jl 1.13,14; 2.13-17), mal se mencionem os pecados responsáveis pelos desastres imediatos ou iminentes. Sem dúvida as nacóes seráo julgadas por dividirem a térra de Javé e lidarem de forma traicoeira com o seu povo (3.2,3,6), mas o pecado de Judá e Jerusalém parece ser principalmente o da complacencia, e o chamado assume a forma de um alerta aos "bébados" (1.2,5). O profeta parece tomar por certo que o povo sabe muito bem onde ele violou a alianca com o seu Deus, mas nos, leitores tardios, só podemos especular. O "dia do SENHOR" está na esséncia do livro de Joel. Esse conceito vinha sendo usado pelos profetas já algum tempo antes de Joel entrar em cena (v. Am 5.18-20; Is 2.12-18; 3.7,18; 11.10,11; Jr 30.7,8; Sf 1.7—2.2). Sua primeira mencáo em Amos indica que, para Israel, esse dia se afigurava esperanzoso — um dia no seu futuro em que Deus viria em seu auxilio, porque Israel era o seu povo. Mas Amos virou essa perspectiva de ponta-cabeca, porque a deslealdade de Israel a alianza pos inimizade entre os israelitas e Javé, e nisso todos os ou-tros profetas seguiram Joel, especialmente Sofonias. Isaías e Jeremias o explicam como urna espada de dois gumes — um dia de juízo sobre aqueles cujos pecados o merecem, mas seguido de um dia de salvazáo para o remanescente reunido de Deus. Ao 1er Joel, vocé verá que as descrizoes do profeta adotam esse padráo. Para ele, a praga de gafanhotos foi o comezo do dia do juízo de Deus sobre Judá e Jerusalém, mas a consumazáo desse dia está claramente em um grande evento escatológico no futuro, de juízo sobre as nazóes e, no fim, de restauraZáo do povo de Deus. Vocé também há de observar que, embora Joel nao o mencione como tal, ao longo de todo o livro ele pressupóe o relacionamento de alianza entre Javé e o povo. Os gafanhotos e a seca sao parte das maldizoes decorrentes da desobediencia á alianza (Dt 28.22,38-42), assim como o fato de Israel ser espalhado entre as naqSes (Joel 3.2; v. Dt 28.64); o chamado ao arrependimento como caminho para a restaurazáo futura é profundamente característico do relacionamento de alianza, bem como a ideia de que Deus castiga o povo que ele ama (Dt 30.1-10; cf. o chamado de Joel a eles: "Rasgai o corazáo e nao

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as vestes" [2.13] com Dt 30.2,6). Observe também que o apelo ao caráter de Deus em Joel 2.13 retoma a linguagem de Éxodo 34.6, um momento de renovacao da alianca; o engajamento de Deus na guerra santa (Joel 2.10,11; 3.9-11) também é parte desse tema. UMA CAMINHADA POR JOEL D 1.1 Introduqáo Em contraste com Oseias, a introducáo de Joel é sucinta, nao dando nenhuma informando sobre quem ele é ou quando viveu. D 1.2-12

Cena 1A: A praga de gafanhotos

Observe como as palavras de Joel, "ouvi isto" (v. 2), sao o comeno do seu chamado ao despertamento (v. 5), um chamado á nando a que ela pranteie e se arrependa de sua grande negligencia, na qual ela se assemelha aos bébados (v. 5). A descrinao da praga nos versículos 6-12, como frequentemente se observa, é de urna precisao dolorosa. Veja como as bénndos prometidas em 2.18-27 respondem dirctamente a essa cena. D 1.13-20

Cena 1B: Um chamado ao arrependimento

Urna praga desse alcance nao só arrasa por anos a economia de um povo, mas o sistema sacrificial é bruscamente interrompido quando nao sobra nada para sacrificar; daí o fato de o primeiro chamado ao arrependimento se concentrar nos sacerdotes (v. 13,14). O restante do chamado repete os motivos da lamentando (v. 15-18), a que se segué a orando de Joel no mesmo sentido (v. 19,20). •□ 2.1-11 Cena 2A: O exército invasor de Deus Observe como essa segunda descrinao da praga retrata os gafanhotos como algo que agora está no futuro; eles virao contra o povo de Deus como um vasto exército liderado pelo próprio Deus (a guerra santa se volta contra Israel!).Talvez haja alguma ironia aqui,já que a esperaba de Israel é que Deus, acompanhado de querubins alados, venha em seu auxilio (SI 18.10; Ez 10.1-20); em vez disso, acompanham-no insetos alados destruidores.

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D 2.12-17

COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

Cena 2B: O chamado ao arrependimento

Esse segundo chamado ao arrependimento é um dos momentos mais memoráveis do Antigo Testamento. Observe especialmente os ecos de Deuteronómio 30.1-6 —jejum, trapos e cinzas nao valem nada se o coráceo nao for rasgado. Aqui (Jl 2.13) vocé também en-contra a base para esse arrependimento na alianca: Deus é gracioso e compassivo. U 2.18-27

Cena 3A: Resposta de Deus — promessa de abundancia

Observe como grande parte dessa cena corresponde á praga conforme descrita em 1.2-12, e também responde ao arrependimento tomado por certo em 2.12-17. O exército de "gafanhotos" é lancado aos dois mares (v. 20), e a abundancia é restaurada. Mas o objetivo final é a adoracao a Javé e a remofáo da vergonha do povo (v. 26,27). D 2.28-32

Cena 3B: Resposta de Deus — a promessa do Espirito

Parte da restaurafáo futura será o cumprimento do anseio de Moisés de que todo o povo de Deus profetize (Nm 11.29). Veja como a lista dos que hao de profetizar abrange todos os níveis da ordem social, incluindo as filhas e mesmo as servas, que ocupavam a posicáo mais baixa na hierarquia social de Israel. Observe também que isso ocorrerá no futuro escatológico, acompanhado de sinais cósmicos, precedendo a expressáo final do "dia" de Deus, quando a salvagáo será para todos os que clamam pelo nome de Javé. D 3.1-16a

Cena 4A: Resposta de Deus — ojuízo final das nacóes

Assim como a cena 3A corresponde á 1A, essa cena (4A) corresponde a 2A. Aqui vocé encontra um "oráculo de ais" (v. Entendes o que les?, p. 233-4) mais típico, em que tanto a natureza do juízo de Deus quanto os motivos para ele sao enunciados. Observe especialmente como isso cumpre a promessa da guerra santa de que Deus expulsará todos os inimigos deles.

JOEL

□ 3.16b-21

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Cena 4B: Resposta de Deus — a béncáo futura do povo de Deus

Assim como em 2.28-32, sobrepóem-se a esse quadro final imagens de abundancia escatológica: a pródiga renovafáo da térra (v. 18a); urna fonte fluindo a partir de Jerusalém (v. 18b; cf. Ez 47.1-12; Ap 22.1-5); os inimigos tradicionais de Israel exterminados para sempre (v. 19); urna habitafáo eterna de Judá e Jerusalém (v. 20); e a remofáo total do pecado (v. 21). A base final para isso é o retorno da presenf a de Deus a Siáo (v. 17,21).

Além de profetizar o grande derramamento do Espirito de Deus, o livro de Joel ocupa-se especialmente com os grandes temas da historia bíblica: o juízo de Deus sobre o pecado humano, a necessidade do arrependimento e a graca misericordiosa de Deus, devido a qual todos os que clamam pelo seu nome seráo salvos.

Amos

INFORMALES BÁSICAS SOBRE AMOS ■ Conteúdo: em um período de rara prosperidade económica e forca política em Israel, Javé anuncia a sua ruina, porque os israelitas deixaram de guardar sua alianca com ele ■ Profeta: Amos, pastor/agricultor de Tecoa, ao sul de Belém em Judá ■ Data de atividade profética: cerca de 760 a.C, por um período aparentemente breve (no apogeu dos reinados de Jeroboáo n em Samaría [793-753 a.C] e de Uzias em Jerusalém [792-740 a.C] ■ Enfases: Javé é Deus sobre todas as nacóes e todo o universo; ele trará a ruina total a Israel por sua deslealdade á alianca; a religiao sincretista é anatema para ele; Javé exige justica para o inocente e misericordia para com o pobre; as observancias religiosas nao substituem de forma alguma as boas obras e a prática da compaixáo

VISÁO GERAL DE AMOS O livro de Amos, o terceiro entre os que integram o Livro dos Doze, é o mais antigo dos livros proféticos. Sua mensagem básica é que Javé rejeitou totalmente as atuais práticas religiosas e socioeconómicas de Israel, e a tal ponto que dará cabo ao Reino do Norte e mandará o povo ao exilio (5.5,27; 6.7; 7.11,17). O que está em questáo é a infidelidade

AMOS

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á alianca, na forma de sincretismo religioso (v. "Orientacóes para a leitura de Deuteronómio", p. 68) e de injustica social, praticados especialmente pelos líderes e suas mulheres indolentes (4.1; 6.1-6). De fato, eles estavam saciados de religiáo, mas nao sabiam nada sobre Javé e o seu caráter (4.5; 5.21-23). O leáo, portanto, brada de Siáo (1.2), e Amos dá voz a ele (3.8). Os oráculos em si provavelmente foram pronunciados no santuario — o santuario do rei — em Betel (3.14; 7.10-17; cf. IRs 12.32) e dentro de um período breve (Am 1.1). Esses oráculos vém a nos ordenados de maneira bem elaborada. A primeira serie (1.3—2.16) comeca com o juízo sobre as nacoes circundantes por varias formas de traicáo (1.3—2.3), passa ao juízo de Judá por sua infidelidade (2.4,5) e concluí com um julgamento sumario inicial de Israel (2.6-16). En-táo vem urna serie de tres oráculos de anuncio (3.1—5.17; cf. "ouvi esta palavra", 3.1; 4.1; 5.1) que proclamam o juízo vindouro de Javé e enunciam as suas razóes. Depois vém dois oráculos de ais, que refletem a complacencia de Israel, baseada numa falsa sensacáo de seguranca — provida pela religiáo (5.18-27) e pela prosperidade material (6.1-14). Finalmente, Amos relata cinco visóes, as primeiras duas (7.16) indicando que o juízo iminente nao será como os anteriores, mas consistirá em destruicüo total, da qual nem o rei nem seu santuario seráo poupados (7.7-9). Isso leva a um encontró com o sacerdote do rei em Betel (7.10-17), seguido de duas visoes fináis de devastacáo total (8.1—9.10). Em todos esses oráculos mal se encontra urna palavra de conforto, e há só urnas poucas palavras sugerindo que Javé possa abrandar sua disposicáo (5.5,6,14,15). Mas o livro concluí com um oráculo de salvacáo (9.11-15) que olha além da queda de Jerusalém, vendo também a queda de Judá, e prometendo que "o tabernáculo de Davi que está caído" (Jerusalém) será restaurado em urna futura era de abundancia.

ORIENTALES PARA A LEITURA DE AMOS Amos é o primeiro de nossos quatro profetas canónicos do século oitavo a.C. (contemporáneo de Oseias, e um pouco mais velho que Isaías e Miqueias). Os antecedentes históricos e políticos de Amos podem

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

ser vistos em 2Reis 14.23—15.7 (cf. 2Cr 26). Jeroboáo n (em Israel) e Uzias (em Judá) comecaram a reinar praticamente ao mesmo tempo, e ambos tiveram reinados longos e prósperos, incluindo expansóes territoriais de tal magnitude que, juntas, elas quase se equiparam as expansóes de Davi e Salomáo. Isso foi possível principalmente porque seus reinados coincidiram com um período particularmente desafortunado para os assírios (782-745 a.C), até a ascensáo de Tiglate-Pile ser ni. E, é claro, a casa real e os ricos viam esse período de crescimento e expansáo como evidencia da béncáo de Javé, crendo que um dia de Javé ainda mais resplandecente os esperava (Am 5.18). Mas esse período de prosperidade acabou se revelando breve, mal durando urna geraváo. Assim, ainda que nao seja mencionada nominalmente em Amos, a Assíria continua sendo o poder político de maior vulto no cenário político do período, podendo se identificar sua sombra em varias passagens (2.13-16; 3.11; 5.3,27; 6.7,8-14; 7.9,17; 9.4). Além disso, em menos de urna geracáo após a morte de Jeroboáo, o reino de Israel cessou de existir por completo (722/1 a.C), e nao se ouviu mais a voz de Javé ali (8.11,12) — Deus tendo usado a Assíria como seu cajado de punicao contra seu povo desobediente (v. 2Rs 17.7-41). O que Amos viu e falou com maior clareza durante o apogeu desse período (Am 1.1) foi o fato de que tudo, na verdade, era o oposto do que parecía ser. A "béncáo" deles nao tinha nada que ver com Javé, mas rudo com suas próprias práticas corruptas; sua religiáo nao tinha, tampouco, nenhuma grande relacáo com Javé, embora ainda fosse praticada em seu nome. Assim, apenas duas categorías mais ampias de pecado precisavam ser denunciadas: a religiáo sincretista (2.7,8; 4.4,5; 5.21-23, 25,26; 8.10,14) e a injustica social (2.6-8; 3.9,10; 4.1; 5.7,10-13, 15,24; 6.12; 8.4-6), pecados claramente enunciados no primeiro oráculo, em que se misturam (2.6-8), o que também ocorre em 5.21-24 e 8.4-6. E essa combinacáo de opressáo aos pobres e um contexto de entusiasmo religioso distorcido que leva ao juízo de Javé, que vem na forma do exilio. A lealdade pessoal de Amos a Javé e a sua alianca é crucial nesse juízo. Na esséncia da alianca, como apontou o próprio Jesús, estáo o amor a Deus e o amor ao próximo (Me 12.30,31). A alianca do Antigo

AMOS

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Testamento, portanto, junto com os regulamentos para a adoracáo adequada como urna forma de manter o amor a Deus, era repleta de leis que proviam urna especie de equidade para todos, baseada principalmente na distribuicáo da térra (criando, assim, urna sociedade predominantemente rural, nao urbana). E aqueles que nao tivessem térras (viúvas, órfáos, levitas, estrangeiros) deveriam receber o devido cuidado dos demais. O motivo disso, como a lei constantemente lembrava aos israelitas (v., p. ex., Ex 22.21-27; Dt 16.18-20; 24.17-22), era que o próprio Javé tinha compaixáo dos pobres (incluindo um povo escravo chamado Israel, que ele tinha resgatado e tornado o seu povo). Contudo, durante esse período de prosperidade, mudancas enormes haviam ocorrido em Judá e especialmente em Israel. Desenvol-veu-se urna mentalidade urbana, havendo agora habitaqóes e mobília luxuosas (3.12,15; 5.11; 6.4-6), mentalidade fomentada por um con-luio entre realeza, sacerdotes, profetas e juízes, que se tornaram urna aristocracia abastada á custa dos pobres. Javé se fartou disso, e escolheu um homcm da térra, do sul, umj avista de poderosa habilidade retórica, para pronunciar sua palavra de juízo contra toda essa situacao. Amos, dessa maneira, renovou o género de "profetismo" de Moisés entre o povo de Deus — dirigido tanto aos líderes quanto ao povo, nao apenas aos individuos —, anunciando que a maldigáo final por nao manterem a lealdada á alianga, a saber, a desolagáo da térra e o exilio (Lv 26.27-45; Dt 28.25-68), estava prestes a ser cumprida. Amos tornou-se o precursor de muitos profetas vindouros, a maioria dos quais pronunciou a mesma mensagem ao Reino do Sul.

UMA CAMINHADA POR AMOS J 1.1,2

Título

Observe varios aspectos importantes desse título: (1) Amos é um homem da térra de Judá (Tecoa), que data minuciosamente as suas "palavras"; (2) observe também que o versículo 2 consiste ñas palavras do próprio Amos a respeito da fala de Javé por intermedio do profeta, urna imagem que será retomada em 3.8; e (3) nao deixe de atentar para a geografía: Javé brada em Siáo; o Carmelo murcha (a noroeste de Jerusalém no mediterráneo, urna linha reta que cruzaría Betel e Samaría!).

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COMO LER A BÍBUA UVRO POR LIVRO

D 1.3—2.16 Juízo sobre as naqóes— e sobre Israel Preste atenqáo em tres coisas que dáo a essa serie o seu poder retórico: (1) os padroes se repetem ("Pelas tres transgressóes [...], e pela quarta"); (2) os oráculos se dirigem aos vizinhos mais próximos de Israel (comecando com um padráo quiástico nordeste/sudoeste— noroeste/sudeste antes de se dirigir ao leste e ao sul); (3) todos os pecados sao formas de traicáo antes de se chegar a Judá (2.4,5), que também rompeu sua alianca com Javé. Dá para imaginar os ouvintes israelitas do profeta bradando em favor de Javé — até perceberem que seu juízo também vira sobre o próprio Israel (2.6-16). Embo-ra siga o padráo dos demais, esse oráculo final é consideravelmen-te mais elaborado, visto que os pontos principáis da mensagem de Amos estáo aqui: primeiro as razoes para o juízo (v. 6-8), entáo uma breve recapitulacáo da historia do desprezo pela alianca por parte dos israelitas (v. 9-12), concluindo com o pronunciamento da deso-lacáo iminente (v. 13-16). 0 3.1-15 Primeiro oráculo de anuncio: fracasso por nao manter a alianqa Veja as varias maneiras pelas quais esse primeiro oráculo do tipo "Ouvi a palavra de Javé" dá o tom para o restante do livro. Ele comeca mencionando o privilegio que a alianqa representa para Israel (v. 1,2); entáo Amos dá a sua justificativa para profetizar (v. 3-8) — a um povo que ordenou que ele nao o fizesse (2.12; 7.12,13). Entáo os filisteus e os egipcios sao conclamados a testemunhar a destruicáo iminente de Israel (3.9,10), a que se seguem tres anuncios de desoíacao (v. 11,12,13-15). D 4.1-13

Segundo oráculo de anuncio: rejeiqáo das advertencias divinas

Esse segundo oráculo do tipo "Ouvi" anuncia o juízo contra as mulheres indolentes dos ricos (v. 1-3), concluindo com um convite irónico a que elas se dediquem mais ainda a suas amadas práticas religiosas (v. 4,5). Segue-se a isso a lembranca de uma serie de juízos passados que Israel deixou de levar em conta (v. 6-11), com um chamado a Israel:

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AMOS

"prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus"em juízo (v. 12); ele conclui com um fragmento de hiño (v. 13; cf. 5.8,9; 9.5,6) que descreve o Deus deles como Criador e Revelador (cf.,p. ex., SI 104.2-5). □ 5.1-17

Terceiro oráculo de anuncio: falsa religiáo e injustica

Esse terceiro oráculo do género "Ouvi, Israel" constitui, de muitas maneiras, a esséncia do livro. Observe a sua marcante estrutura quiástica. Ele comeqa e termina com um lamento quanto á queda de Israel (v. 2,3, 16,17), seguido de um convite: "Buscai-me e vivei" (v. 4-6,14,15); enquanto o círculo interior do oráculo declara quem receberá essa mistura de desolacáo e do convite, a saber, aqueles que pervertem a justica (v. 7,10-12). No centro do oráculo há outro fragmento de hiño, lembrando ao povo que o Criador é também o Juiz (v. 8,9). n 5.18-27 Falsa seguranqa baseada na religiáo O primeiro oráculo repleto de ais dirige-se diretamente á falsa seguranqa que Israel derivava da multiplicacao de suas práticas religiosas (como se "mais religiáo" equivalesse a um favor maior da parte de Deus), mas o dia do Senhor, pelo qual eles esperam, acabará se revelando um pesadelo para eles (v. 18-20). De fato, Javé odeia as práticas religiosas de Israel (v. 21-23), porque o povo na verdade está cheio de injustica (v. 24). Observe especialmente como a conclusáo (v. 25,26) deixa clara a natureza sincretista da adoracáo deles, encerrando com um anuncio final de desolacáo (v. 27). □ 6.1-14 Falsa seguranqa baseada em bens materiais e sucesso militar Esse segundo ai se dirige aos líderes de Israel (v. 1), que estaráo entre os primeiros a ser exilados (v. 7). Eles baseiam sua seguranqa em sua grande fortuna e luxo (v. 3-6 [o v. 2 é bastante debatido]) e em algumas conquistas militares menores (v. 12,13; observe especialmente o trocadilho no nome "Lo-Debar" [que significa "nada"]); observe como as referencias a ambos os tipos de falsa seguranqa concluem com anuncios de juízo (v. 8-11,14).

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D 7.7-9

COMO LER A BÍBLIA UVRO POR LIVRO

Tres relatos de visóes: gafanhotos, fogo, prumo

Com essas tres visóes, a serie final de juízos comeca a rumar para o fim determinado por Javé. Observe que os primeiros dois indicam que o que está por vir nao será como as pragas anteriores (gafanhotos/seca; cf. 4.6-9); o futuro de Israel será repleto de (lit.) "gemidos", porque sua destruicáo agora é inevitável. Observe que o rei é finalmente mencionado pelo nome em 7.9, que é o que suscita a ira do sacerdote do rei, Amazias. □ 7.70-77 O encontró com Amazias Esse breve relato é muito interessante. Vocé fica sabendo, respectivamente, que: (1) Amos está em Betel, e Amazias, o sacerdote do rei, o entrega ao rei (v. 10,11); (2) quando Amos é proibido de profetizar (v. 12,13), ele indica que nao é um profeta por escolha, nem pertence a "associacáo" dos profetas (v. 14,15); e (3) ele entáo usa esse encontró para pronunciar o juízo de Javé contra Amazias e sua casa (v. 16,17). Assim, tanto o rei como o sacerdote sao escolhidos para figurar em pronunciamentos individuáis de ruina. D 8.1—9.10 Dois relatos de visáo: a certeza da destruicáo ¡mínente de Israel Essas duas visóes enunciam a ruina final de Israel. A primeira (frutos passados, 8.1-14) recapitula em especial a questáo da falsa religiáo dos israelitas, entremeada de injustica (v. 4-6); os cánticos que os israelitas entoavam no templo se transformam em gritos de dor (v. 3), e o tratamento que dispensavam aos pobres, na maior "fome" possível — a perda total da palavra de Javé em Israel. A segunda visáo (9.1-10) é culminante: Javé está de pé junto ao altar em Betel, que desmorona sobre a cabeca do povo (v. 1-4; observe a inversáo no v. 4 por nao terem buscado o bem nem odiado o mal [5.14,15]); depois da insercáo de mais um fragmento de hiño (9.5,6), a visáo conclui com o anuncio da aniquilacáo total de Israel (v. 8-10). Israel nao é melhor do que seus vizinhos pagaos (v. 7).

AMOS

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□ 9.11-15 Esperanza para o futuro Depois de tudo o que a precedeu, essa palavra de esperanca é um alivio bem-vindo. Ela se divide em duas partes: (1) a restauracáo prometida de Israel (v. 11,12) e (2) a vinda da grande era messiánica (v. 13-15); ambas tiveram o inicio de seu cumprimento em Jesús Cristo.

O livro de Amos exprime urna dimensáo importante da historia bíblica, e de maneira enfática: a verdadeira religiáo e a justica social andam de máos dadas; de outro modo, a alianca com Deus está sendo violada.

Obadias

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE OBADIAS ■ Conteúdo: um oráculo de desolagáo contra Edom por se aproveitar da conquista babilónica (provavelmente) de Jerusalém em 588-586 a.C. ■ Profeta: Obadias, profeta de Judá ■ Data de atividade profética: provavelmente logo depois da queda de Jerusalém (586 a.C?) ■ Enfases: o juízo de Deus contra Edom por seus pecados contra o povo de Deus; a derrota daqueles que se consideram inconquistáveis; o livramento e a restauracáo de Israel no dia do Senhor

VI SAO GE RAL DE OBADIAS Obadias é o quarto livro dos que integram o Livro dos Doze, e o mais breve no Antigo Testamento. Ele consiste em urna profecía unificada contra Edom, que provavelmente foi proferida a varios grupos de Judá, Reino do Sul, para encorajá-los após a tragedia nacional pela qual passaram. Temos aqui todos os elementos de urna profecía de desolagáo: o anuncio da ruina — urna predigáo da derrota vindoura de Edom (v. 1-9); as razóes do juízo — os crimes de Edom contra seu "irmáo", enquanto Judá estava desamparado, sao passados em revista

OBADIAS

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(v. 10-14); e o futuro prometido (para Jaco, nao Esaú!) — no dia do Senhor, a soberania de Israel será restaurada (v. 15-21).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE OBADIAS Edom foi o inimigo mais tenaz de Israel ao longo da historia das duas nacóes "irmás" (v. 10; cf. Gn 25.24-34); nao é de admirar, portanto, que Edom seja o objeto de mais oráculos contra nacóes estrangeiras do que qualquer outro povo (Is 21.11,12; 34.5-15; Jr 49.7-22; Ez 25.12-14; 35.1-15; Am 1.11,12; cf.Jl 3.19; MI 1.2-5). Os principios para a leitura de qualquer oráculo sobre urna nacáo estrangeira se aplicam aqui. Javé é Deus nao só de Israel, mas também de todas as nacóes do mundo; o oráculo reflete o lado da "maldicáo" da alianca abraámica ("amaldicoarei quem te amaldicoar"); ele representa o engajamento do profeta na guerra santa como mensageiro do Guerreiro Divino. Se os pecados de Israel sao vultosos e merecem ser punidos, a traicáo de Edom também será punida, já que se op5e táo completamente ao caráter do próprio Deus, que é generoso e bom. Além disso, se Deus deseja que a libertacáo de seu povo seja completa e permanente, nao pode dcixar seus inimigos livres para atacar de novo. Aqui, mais urna vez, vocé encontra o típico paño de fundo esca-tológico final contra o qual os juízos temporais devem ser entendidos (v. Entendes o que les?, p. 239ss.). Vocé pode 1er o salmo 137 junto com esse oráculo para entender melhor como foi profunda a dor que Israel sentiu por ter sido traído por Edom. Vocé também pode 1er Obadias 1-6 junto com Jeremias 49.14-16 (para os v. 1-4) e 49.9,10 (para os v. 5,6); é bastante pro-vável que Obadias esteja reafirmando e reencenando o oráculo de Jeremias como ponto de partida, um oráculo que seus leitores prova-velmente conheciam.

UMA CAMINHADA POR OBADIAS A1 Versículo 1

Título e introduqáo

Antes de Javé falar (v. 2-21), Obadias se apresenta como um mensageiro da corte celestial que anuncia o juízo de Deus sobre Edom em termos da guerra santa.

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D Versículos 2-9 A ruina de Edom é anunciada Sob ordem de Deus, Edom será conquistado por urna coalizáo de outras nacóes (v. 1), e isso apesar do terreno pedregoso e íngreme em que a cidade se mantivera segura por séculos (v. 2-4); a pilhagem excederá em muito a depredacáo habitual (v. 5,6). Observe que, traicáo por traicáo, mesmo os antigos aliados de Edom se voltaráo contra ele e o levaráo a ruina (v. 7). Finalmente (v. 8,9), Javé declara a ineficacia de dois grupos dos quais a nacáo tinha grande orgulho — seus famosos sabios (Jó e seus conselheiros eram de urna regiáo de Edom) e seus guerreiros. D Versículos 10-14 Os motivos da ruina de Edom O crime é de traicáo. Quando os babilonios invadiram Judá (2Rs 25), Edom rápidamente fez um armisticio separado e entáo se aproveitou de Judá, em vez de ajudar sua nacáo irmá (Ob 11,12), apropriando--se das cidades e térras de Judá (v. 13) e capturando seus habitantes que fugiam dos babilonios (v. 14; entregando-os provavelmente para serem vendidos como escravos). D Versículos 15-21

O dia vindouro do Senhor

Vocé perceberá que o juízo de Edom é parte do dia vindouro de Javé, em que todas as nacóes experimentaráo a sua ira (v. 15). O juízo assume a forma da lex talionis ("olho por olho"), os destinos de Esaú e de Jaco sendo invertidos (v. 15b-18) quando os exilados que voltam tomam posse novamente da térra prometida (v. 19-21; cf. Dt 30.1-10).

Obadias nos lembra da justica de Deus em punir a pecaminosidade humana e da sua vitória final sobre os poderes terrenos.

Joñas

INFORMALES BÁSICAS SOBRE JOÑAS ■ Conteúdo: embora o próprio Joñas seja um profeta muito refutante, Deus demonstra compaixáo por um dos inimigos odiados de Israel ■ Profeta e data de atividade profética: Joñas, filho de Amitai; profetizou durante o reinado de Jeroboáo n (v. 2Rs 14.25) ■ Énfases: Javé como Criador, Sustentador e Redentor de tudo e de todos; o interesse compassivo de Javé pelos gentíos (representados por Nínive); a relutáncia de Israel (representada por Joñas) em reconhecer a compaixáo de Javé pelas nacoes

VISÁO GERAL DE JOÑAS O livro de Joñas é singular entre os Profetas Posteriores. Em vez de urna colecáo de oráculos proféticos, trata-se de urna narrativa sobre a compaixáo de Deus por urna cidade gentílica odiada por Israel, por intermedio de um profeta hebreu que de inicio nao quería nenhum envolvimento na historia. O livro se divide claramente em quatro partes (que correspondem aos capítulos como os temos no livro): (1) Joñas é chamado a pregar o juízo contra Nínive — e a fazé-lo na própria Nínive! —, ao que reage fugindo o mais longe possível na direcáo oposta. Javé envia urna

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tempestade; Joñas é atirado ao mar pelos companheiros de bordo e resgatado pela milagrosa provisáo divina de um grande peixe. (2) Joñas reage com oracáo: um salmo de acáo de gracas pelo seu livramento. (3) Joñas aceita sua missáo de ir a Nínive; como resultado, Nínive se arre-pende, e Deus se compadece da cidade (em harmonía com Jr 18.7,8). (4) Joñas tem um acesso de ira, ao que Deus responde com urna licáo prática e com urna última pergunta a Joñas (Jn 4.9,10) — elucidando o sentido de tudo.

ORIENTALES PARA A LEITURA DE JOÑAS Para 1er esse livro com proveito, é importante atentar para duas coisas — a habilidade do narrador em contar essa historia e os temas teológicos que ela reñete. Primeiro, para apreciar o poder dessa narrativa, tente se imaginar na situacáo dos ouvintes israelitas origináis. A historia funciona de maneira bastante similar as parábolas de Jesús (v. Entendes o que les?, p. 182-92): o narrador primeiro captura a atencáo dos ouvintes/leito-res com a historia para entáo surpreendé-los com urna pergunta final. A habilidade literaria do narrador evidencia-se de varias maneiras. Por exemplo, no comeco e no fim da historia — enquadrando-a, portante —, temos, respectivamente, a cena em que Joñas foge de Deus (1.3) e as razóes da sua fuga (4.2). Observe também como a resposta dos marinheiros ao seu resgate por intervencáo de Deus prefigura a compaixáo divina por Nínive. O autor recorre a ironía ao longo do livro para estabelecer certos pontos teológicos: os marinheiros pagaos acabam oferecendo um sacrificio a Javé depois que seu profeta teimo-so é jogado ao mar. No fim do seu salmo, Joñas exclama (referindo-se ao próprio livramento): "A salvacáo pertence ao SENHOR" — o que entáo se cumpre no arrependimento de Nínive e na retencáo do juízo por parte de Deus. Joñas, em sua ira para com Javé, nao obstante diz a verdade sobre o caráter de Deus (4.2), que acaba sendo justamente a razáo da ira do profeta. E Joñas, resgatado da mortc por Javé, acaba dizendo que preferiría a morte a vida — e isso porque os ninivitas acabam nao morrendo, mas vivendo.

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Em segundo lugar, a historia é primariamente sobre Javé, e só secundariamente sobre Joñas. Javé é o protagonista do comeco ao fim: ele chama Joñas; ele manda urna tempestade quando Joñas desobedece — e a torna mais intensa para impedir que os marinheiros o resgatem; ele prové um grande peixe para resgatar Joñas; é ele o objeto da adoracao e acáo de gracas no salmo de Joñas; ele envia Joñas urna segunda vez e entáo retém seu juízo quando a pregacáo do profeta tem éxito; e no fim, ele prové tanto a planta quanto a lagarta e o vento oriental quente para instruir Joñas nos seus caminhos. Joñas, por ou-tro lado, serve de contraste a Javé, para que a historia deste possa ser narrada de maneira pungente. O que está em questáo em toda essa historia é a alianca abraá-mica (Gn 12.3) — segundo a qual Javé é cheio de compaixáo e misericordia por tudo o que ele criou (SI 145.8,9,13,17), e foi sempre o plano dele, desde o inicio, abencoar as nacoes por meio de sua eleicáo de Israel. Mas a eleicáo de Deus, que é sempre um ato de misericordia, as vezes se torna a base para urna atitude de orgulho e preconceito. E no caso de que trata o livro de Joñas, lembre-se de que a Assíria foi o imperio mais cruel da Antiguidade (quanto a isso, dé urna olhada no livro de Naum); contudo, Deus estava dando a tal povo urna oportunidade de arrependimento -— nao a conversao a Javé, mas mesmo assim urna resposta suficiente para que ele retivesse suas punicóes. É essa "injustica" da misericordia de Deus que Joñas considera táo ofensiva.

UMA CAMINHADA POR JOÑAS □ 1.1-17 Joñas foge do Senhor Essa narrativa inicial prepara o leitor para o que vem a seguir. Além da historia básica sobre Joñas, atente para os dois elementos principáis: (1) Javé está no controle de tudo (observe esp. seu papel como Senhor da térra e do mar, que os marinheiros vém a reconhecer, e que Joñas nao entende), e (2) o contraste deliberado entre a mente fechada do profeta e a atitude progressivamente mais receptiva a Deus dos marinheiros pagaos.

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D 2.1 -10 A oraqáo de aqáo de graqas de Joñas Observe que essa "oracáo" assume a forma de um salmo individual de acáo de gracas (v. Entendes o que les?, p. 256), e portante é exprimida em termos do livramento efetuado por Javé, embora Joñas ainda esteja engolfado pelo mar. O salmo se divide em tres partes (v. 2-4; 5-7; 8,9), as duas primeiras sendo paralelas, entremeando aflicáo, resgate e testemunho, e concluindo em urna nota semelhante — vislumbrando o templo futuro. A estrofe final, de testemunho (v. 8,9), prenuncia entáo o restante da narrativa, exprimindo a confianca de Joñas em Javé — de quem vem a salvacáo —, mas fazendo-o em contraste com aqueles que "se apegam aos ídolos inúteis" (p. ex., os ninivitas). D 3.1 -10 A pregaqáo de Joñas e o arrependimento de Nínive Joñas recebe urna segunda chance, á qual responde com obediencia (v. 1-3). Observe que o arrependimento da cidade se concentra no rei, que dá o exemplo pessoalmente (v. 6) e publica urna proclamacáo que conclama os ninivitas ao jejum e ao paño de saco — e até os animáis participam! —, mas também a que se afastem de seus maus caminhos e da violencia (v. 7,8). O rei espera que com essa demonstracao de arrependimento Deus mude de ideia quanto ao juízo sobre Nínive (v. 9), o que de fato acontece (v. 10). D 4.1 -11

A ira de Joñas diante da compaixáo de Javé

Aqui vocé chega ao ponto crucial da historia. Joñas nao quer que Deus mude de ideia, e está furioso com Javé por este ser fiel á sua própria natureza (v. Ex 34.4-6)! O resto da passagem é dominado pela pergunta de Javé, que ele faz duas vezes — "É razoável essa tua ira?"— e pela conviccáo de Joñas de que sim, ela é razoável (v. 4,9). Usando a mesma linguagem de 1.17, o narrador observa tres vezes que Javé "envia" algo — primeiro a planta para dar sombra, entáo a lagarta e finalmente o vento quente. E entáo o profeta entende. A "compaixáo" egoísta de Joñas pela planta mais do que justifica a compaixáo de Deus pelo povo — e pelos animáis — de Nínive. E nos, leitores, somos

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implicitamente convidados a responder pessoalmente á pergunta de Javé — qual é a nossa atitude para com os nossos inimigos?

O livro de Joñas continua a historia bíblica do Deus Criador e Redentor, que tem compaixáo nao só daqueles que sao seus, mas de todos aqueles que ele criou; o Deus da Biblia ama os seus próprios inimigos — e também ama os nossos.

Miqueias

INFORMALES BÁSICAS SOBRE MIQUEIAS ■ Conteúdo: oráculos que alternam entre profecias da ruina de Israel e Judá, em virtude da sua idolatría e injusticas sociais, e profecias de esperanca futura, baseadas na misericordia de J ave ■ Profeta: Miqueias, profeta de Judá, da cidade de Moresete-Gate, cidade que ficava a uns quarenta quilómetros ao sudoeste de Jerusalém ■ Data de atividade profética: um período entre a ascensáo ao trono de Jotáo (740 a.C.) e a morte de Ezequias (686 a.C.) ■ Énfases: a ameaca de juízo divino pelo rompimento da alianca com Javé; Javé como um Deus de justica e misericordia, que defen-de a causa dos pobres e exige o mesmo de seu povo; após o juízo, Javé restaurará Jerusalém por meio do rei davídico prometido; Javé como Deus de todas as nacóes

VISÁO GERAL DE MIQUEIAS O livro de Miqueias, o sexto no Livro dos Doze, é urna colecáo cuidadosamente ordenada — e singular — de oráculos proferidos por Miqueias durante, ao que tudo indica, um longo período (1.6,7 foi pronunciado bem antes da queda de Samaría em 722 a.C, enquan-to 1.10-16 narra a marcha de Senaqueribe, que ocorreu em 701; v.

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2Rs 18.13—19.37; Is 36—37). O caráter único do livro está em sua organizagáo (nao necessariamente cronológica), que alterna entre oráculos de juízo e profecias de esperanca para o futuro (básicamente, Mq 1—2; 3—5; 6— 7, distinguidos pela ordem "ouvi [vos]" [imperativo] em 1.2; 3.1; 6.1). Os oráculos em 1.2—2.11 consistem, primariamente, em pronun-ciamentos de juízo divino contra Samaría e (especialmente) contra Jerusalém (as capitais representando os dois respectivos reinos); eles concluem com urna breve promessa de restauragáo futura (2.12,13). A segunda serie de oráculos comega com urna breve colecáo de oráculos de ruina (3.1-4,5-8,9-12); ela concluí com urna colecáo mais longa de oráculos de esperanca (4.1—5.15), que se concentram no rei davídico (messiánico) prometido. A terceira serie divide-se de forma mais equilibrada entre ameacas (6.1-16) e esperanga (7.8-20), com o lamento de Miqueias diante da decadencia de Israel (7.1-7) unindo esses oráculos.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE MIQUEIAS Quatro questoes sao essenciais para urna boa leitura de Miqueias. Em primeiro lugar, a organizacáo do livro nao só guia o leitor através do texto, mas também revela alguma coisa sobre a teología do próprio Miqueias, que reflete Deuteronómio 28—30. Na esséncia do livro, como em Oseias, está a tensáo dinámica entre a necessidade do juízo divino (maldigóes), devido ao rompimento da alianga com Javé por parte de Israel, e o anseio do próprio Javé de abengoar Israel, porque eles sao o seu povo e por causa do próprio caráter divino (de compai-xáo, misericordia, perdáo; v. Mq 7.18-20). O próprio Miqueias é ao mesmo tempo dilacerado e mantido em pé (por assim dizer) por cssa realidade dupla; a composicáo final do livro realca essa tensáo, mas concluí com urna nota alegre de esperanga para o futuro. Em segundo lugar, como com a maioria dos profetas de Israel, a historia política do período tem um papel especialmente importante na compreensáo desses oráculos. Miqueias é o quarto profeta dentre os profetas do século oitavo a.C, urna geragáo após Oseias e Amos, e contemporáneo mais jovem de Isaías. Foram-se os dias pacíficos que caracterizaram os reinados de Jeroboáo n e Uzias, e todas as sementes

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da decadencia e da destruicáo vindoura estáo se arraigando, enquanto a idolatría e a injustica social condenadas por Oseias, Amos e Isaías continúan! a vigorar. Ao mesmo tempo, a Assíria é urna amea9a constante na cena internacional, contando a reafirmar seu poder no mundo do Oriente Próximo (v. "Orienta9Óes para a leitura de Isaías", p. 203). O papel da Assíria, portanto, é importante em Miqueias, mas também ambivalente: embora seja o agente do juízo de Deus contra Samaría (1.6,7,10-16), ela falhará diante de Judá (5.5,6), e vira, afinal, a experimentar o juízo divino (5.15; 7.10). Ao mesmo tempo, e assim como com Isaías, o poderío babilónico é profeticamente prenunciado (4.10). Em terceiro lugar, observe em especial as razóes para o juízo de Judá. Assim como com Isaías e Amos, os problemas sao dois: a idolatría (1.7; 5.1214) e a injustÍ9a social (2.1,2,8-11; 3.1-3,8-11; 6.10-12; 7.2,3). Para Miqueias, o papel da térra prometida como urna hera^a é especialmente importante, e aqui esse papel tem duas dire95es — (1) o exilio da térra como parte da maldÍ9áo pela infidelidade a Javé (1.16; 2.10; 4.9,10; cf. Dt 28.25-42), e (2) essa própria infidelidade; os líderes e os baróes da térra estáo privando os pobres rurais de sua hera^a tradicional (Mq 2.2,9; 3.2,3,9-11; 6.10-12,16; 7.2). Em quarto lugar, Miqueias leva inteiramente a serio o papel prometido de Israel de aben9oar as na9Óes (Gn 12.3) (Mq 4.1-4; 7.11-13). Esse é o juramento que foi feito a Abraáo (7.20; a palavra final do livro), e esse é o principal papel do rei messiánico, que será o agente de Deus para a paz das napóes (5.5). Observe, portanto, que os capítulos 4—5, que exprimem urna esperaba para o futuro em termos messiá-nicos, estáo exatamente no centro do livro de Miqueias na forma em que o temos. Assim, tanto o primeiro quanto o segundo oráculos de esperaba concentram-se específicamente no rei messiánico que está por vir (2.13; 5.1-6), e Miqueias 5.2 é citado em Mateus 2.6; ou seja, num evangelho que trata de maneira especial do papel do Messias de aben9oar as na9Óes (Mt 28.19,20). Finalmente, observe também que, cem anos depois, o oráculo em Miqueias 3.12 é citado por alguns anciáos contra o rei Jeoaquim, que quería matar Jeremias (Jr 26.17-19), passagem que também implica que a prega9áo de Miqueias foi parcialmente responsável pelas reformas de Ezequias (2Rs 18.1-8).

MIQUEIAS

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UMA CAMINHADA POR MIQUEIAS 3 1.1 Título Observe aqui (1) a énfase no fato de que essa é a palavra de Javé que está sendo entregue por Miqueias (da cidade rural de Moresete-Gate, nao de Jerusalém), (2) o período e (3) o tema. D 1.2-16 Prímeira serie de ameaqas (contra Samaría e Jerusalém) Observe como a primeira palavra (v. 2) dá o tom para essa serie de oráculos, conclamando a térra toda a ouvir Javé. A isso se segué um oráculo que comeca com Javé como o Guerreiro Divino (v. 3,4) — mas agora contra seu próprio povo, cujos pecados se concentram ñas capitais Samaría e Jerusalém (v. 5). A ameaca de ruina, nesse caso, dirige-se especialmente contra Samaría por suas práticas idólatras (v. 6,7). A segunda ameaca (v. 10-16), que comeca com a resposta do próprio Miqueias a ela (v. 8,9), dirige-se a Jerusalém, e contém habéis trocadilhos (v. notas de rodapé da NVI) com os nomes das cidades que Senaqueribe destruirá quando veio "até a porta de Jerusalém" (v. 12). Embora nao resulte da invasáo de Senaqueribe, a palavra final da ameaca, nao obstante, é de exilio (v. 16). ü 2.1-11

As razóes do juízo

Atente para a alternancia de vozes nessa passagem: Miqueias (v. 1,2), Javé (v. 3,4), Miqueias (v. 5), os falsos profetas (v. 6), Miqueias (v. 7a), Javé (v. 7b-13). Observe como a palavra de ruina e as razóes para ela (injustica social por parte dos senhores da térra) vém primeiro (v. 1,2), seguidas da ameaca de Javé, expressa em linguagem de a térra sendo tomada deles (v. 3-5). O oráculo seguinte é o juízo de Deus contra a falsa teología dos profetas que se aliaram aos senhores da térra (v. 6-11). D 2.12,13 A primeira palavra de esperanqa Em resposta direta aos versículos 3-5, essa primeira palavra de esperanqa para o futuro é exprimida em linguajar associado a nova reuniáo do povo, encabecado pelo rei messiánico.

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D 3.1-12 Segunda serie de ameacas e razóes Com essa colecáo de tres oráculos (v. 1-4,5-7,9-12), Miqueias agora se concentra no papel dos líderes e dos profetas, que promovem a injusti9a social com suas respectivas políticas e profecias. Observe que o papel profético de Miqueias é inspirado pelo Espirito (v. 8; cf. 2.7), e que a palavra final (3.12) é de juízo contra Siáo (Jerusalém e seu templo). 171 4.1—5.15 A segunda palavra de esperanca: o reino e o reí messiánicos de Deus Como parte central do livro, e agora em resposta direta a 3.12, essa serie de oráculos comega com a restaura9áo messiánica prometida de Siáo, em que a palavra de Deus sairá de Jerusalém e as na9óes se reuniráo para ouvi-la (4.1-5; cf. Is 2.1-4). A isso se segué, respectivamente: (1) um longo oráculo prometendo o retorno após o Exilio, com a aniquila9ao das na95es que se opuserem a eles (Mq 4.6-13); (2) o papel central do rei messiánico na restauragáo (5.1-6); (3) o restante dos exilados triunfando sobre seus inimigos ao trazerem vida e morte (v. 7-9); e (4) um oráculo final, em que Javé purifica Judá (v. 10-14) e pune os inimigos dele (v. 15). □ 6.7-76 O litigio de Deus contra Jerusalém (terceira palavra de ameaqa) Aqui Javé leva Israel ao tribunal. Ele é o demandante —, mas também o juiz! As montanhas fazem o papel de júri (v. 1-3). A causa do demandante consiste em repetir os momentos essenciais da historia da reden9§o de Israel — todos da autoria de Javé (v. 4,5). Usando a linguagem da liturgia do templo (SI 15.1; 24.3), a defesa responde com promessas de cada vez mais religiáo (Mq 6.6,7, observe a intensifica9áo gradual da oferta deles), ao que Javé responde lembrando-os do que eles já conhecem sobre o caráter dele, que devem seguir (v. 8). O juízo em si (v. 16) baseia-se no fracasso de Israel precisamente nesse ponto (v. 9-15). □ 7.7-7 O lamento de Miqueias Mais urna vez (cf. 1.8), Miqueias lamenta a queda inevitável de Jerusalém, mas sua palavra final é de esperaba (v. 7), e serve de transÍ9áo para a conclusáo do livro.

MIQUEIAS

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□ 7.8-20 A terceira palavra de esperanca A esperanca para o futuro é a palavra final de Miqueias; ela comeca com urna expressáo do retorno de Israel do Exilio, cumprindo agora seu papel para as nacoes (v. 8-13), e concluí com a oracáo de Miqueias (v. 14) e a resposta de Javé (v. 15-20). Observe especialmente como a conclusáo (v. 18-20) é expressa em linguagem associada ao caráter de Javé e das promessas anteriores a Abraáo e a Jaco: nao há outro Deus como Javé, que perdoa o pecado e desculpa a transgressáo.

O livro de Miqueias é urna maravilhosa representacáo profética dos elementos essenciais da historia bíblica, tanto em sua expressáo do Antigo Testamento quanto na maneira como ele prenuncia o Novo, com o Messias prometido e a restauracáo do seu povo.

Naum

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE NAUM ■ Conteúdo: urna profecía do juízo de Deus contra Nínive (Assíria) por sua opressáo, crueldade e idolatría, concluindo com o anuncio da destruicao da cidade ■ Profeta: Naum, de Judá; nada mais se sabe sobre ele (até mesmo sua térra natal é incerta) ■ Data de atividade profética: algum tempo antes da queda de Nínive, em 612 a.C, durante o período em que Judá, o Reino do Sul, era vassalo da Assíria ■ Enfases: a soberanía de Javé sobre todas as nacóes; a justica levada a cabo, por Javé, contra a crueldade; Javé triunfa sobre os arrogantes, que pensam ser eternos

VISÁO GERAL DE NAUM Naum é o sétimo dos livros que constituem o Livro dos Doze. Trata-se de urna denuncia implacável da Assíria, bem como um pronunciamento do juízo de Deus sobre ela, por sua crueldade inexorável como dominadora das nacóes. Nesse ponto, Naum contrasta com o livro de Joñas; este retrata um período anterior, em que a preocupacáo de Javé alcanca mesmo os seus mais amargos inimigos (a Assíria, no caso). Mas agora a "medida da maldade" da Assíria está "completa"

NAUM

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(Gn 15.16), e a famosa paciencia de Javé chegou, necessariamente, ao fim. Os versículos essenciais para compreender a mensagem de Naum estáo em 1.7,8, que pronunciam, ao mesmo tempo, alivio para Judá e a destruÍ5áo de Nínive. Nao é difícil acompanhar a progressáo geral da profecia. Ela come9a com um hiño de vitória do Guerreiro Divino (1.2-8), seus últimos versos (v. 7,8) também servindo de introdu9áo ao primeiro grande oráculo do livro (1.9—2.2). A isso se segué urna visáo da ruina de Nínive (2.3-10), e urna provoca9&o (v. 11-13). A seguir vem urna serie de oráculos e provoca9Óes que declaram a certeza absoluta da queda de Nínive (3.1-17), concluindo com um breve canto satírico sobre o imperio caído (v. 18,19).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE NAUM O livro de Naum é urna breve obra poética, de execu9áo meticulosa e brilhante, que entremeia urna serie de formas proféticas — hiño, salva9áo, ruina, provoca9áo, canto — para compor básicamente um "oráculo de ais" dirigido a Nínive (Assíria), acompanhado de um oráculo de salva9áo para Judá. Pode se ver parte da maestria de Naum em sua apresenta9áo imediata de Javé (1.2-6), seguida de oráculos entremeados dirigidos a Nínive e a Judá. Judá nao é mencionado até 1.15, e Nínive só é mencionada em 2.8 (a NVI menciona os nomes antes para ajudar o leitor ao longo do padrao alternante do primeiro oráculo; v. "Urna caminhada por Naum" logo adiante). Tudo isso é exprimido num estilo poético soberbo, com urna grande variedade de paralelismos (v. Entendes o que les?, p. 236-238) e imagens evocativas. Atentar para essas varias questoes estruturais e metafóricas enriquecerá sua leitura desse livro. Quanto aos antecedentes bíblicos/históricos do livro, vocé fará bem em 1er 2Reis 17—23 e 2Crónicas 33—34. Tres coisas quanto a esses antecedentes sao essenciais para vocé compreender o livro de Naum: em primeiro lugar, ele está profetizando enquanto a Assíria ainda está no auge do seu poder (Na 1.12), já tendo estabelecido sua presera no Egito com a conquista de Tebas (3.8; c. 663 a.C.). Em segundo lugar, a Assíria era famosa entre os antigos — alias, os

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR tlVRO

registros dos próprios reis assírios o atestara — como o mais cruel dos conquistadores; suas traicoes eram lendárias e de caráter bárbaro, incluindo a destruicáo total dos povos conquistados (como no caso de Israel, p. ex., que quase perdeu sua identidade quando o povo foi restabelecido na Assíria e a térra foi repovoada por pagaos; v. 2Rs 17.3-6,24-41). Em terceiro lugar, durante todo o período em que Naum pode profetizar, os reis de Judá (Manassés e Josias) eram vassalos da Assíria. Isso tudo significa que a atividade profética de Naum era politicamente incorreta de todas as formas possíveis — mas nao do ponto de vista de Javé. Outra questáo importante: Naum (como Obadias) dirige-se principalmente a urna nacáo estrangeira. Como sempre nos profetas hebreus, a teologia por tras do livro é de que Javé é soberano sobre todo o universo, incluindo, além de Judá, todas as nacoes; também se inclui nessa teologia a alianca com Abraáo, que contém a promessa de Deus: "amaldicoarei quem te amaldicoar" (Gn 12.3). A servidáo de Judá á Assíria — além de sua presente insignificancia política (exceto como acesso da Assíria ao Egito) — deve ser entendida á luz da onipoténcia e justica de Deus. Atente também para os motivos do juízo de Javé contra a Assíria: além de suas idolatrías (Na 1.14), seus pecados mais evidentes sao sua crueldade e injustica; ela escravizou as nacóes (3.4), sua crueldade é infindável (3.19) e seus mercadores espoliaram totalmente as térras (3.16). Contra esses males, a bondade e a compaixáo de Deus (1.7) figuram como opostos polares.

UMA CAMINHADA POR NAUM D 1.1-8

Triunfo do Guerreiro Divino

Observe como o salmo que abre essa secáo nao se refere a um acontecimento específico, mas apresenta Javé como triunfante na guerra santa em geral, aquele que, como Regente todo-poderoso do cosmo (v. 4,5), executa a vinganca contra seus inimigos (v. 2,6,8) — enquanto, ao mesmo tempo, ele é o Deus que é tardío em se irar, que é bom e compassivo (v. 3,7; ecoando Ex 34.4-6).

NAUM

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D 1.9—2.2 Ruina de Nínive e salvaqáo de Judá A

NVI

ajuda o leitor a perceber a alternancia entre as palavras de conforto a

Judá (1.12,13,15; 2.2) e as de juízo contra Nínive (1.9-11,14; 2.1), acrescentando o nome das respectivas nacóes onde apropriado. Após 1er essa passagem em sua ordem canónica, vocé também pode 1er a serie que corresponde a cada nacáo em separado, para perceber me-lhor o crescendo que há em cada urna. Observe que o fim dessa passagem (2.1,2) também serve para dar inicio á visáo que vem em seguida.

□ 2.3-13

Visáo e provocaqáo quanto á queda de Nínive

Observe como Naum agora retoma "o destruidor" de 2.1, descreyendo em imagens marcantes a natureza da queda da Assíria diante da Babilonia (v. 3,4,9,10), enquanto as tropas reunidas por Nínive de nada adiantaráo (v. 5-8). A luz dessa visáo, Naum entáo provoca a Assíria, chamando-a de leáo (o símbolo nacional assírio) sem toca (v. 11,12), concluindo com urna palavra de Javé que resume tanto a visáo quanto a provocacáo (v. 13).

Li 3.1-7 Ai e provocaqáo dirigidos a Nínive Ou9a, por assim dizer, as vigorosas imagens desses versos breves que pronunciam a ruina de Nínive (v. 1-3), as tropas babilónicas estando novamente em vista, enquanto a razáo da ruina (v. 4) usa a ima-gem de urna prostituta sedutora como o meio pelo qual as nacoes sao escravizadas. Observe também que essa provocacáo (v. 5-7) comeca da mesma maneira que 2.11-13 conclui: "Coloco-me contra ti, diz o SENHOR dos Exércitos".

D 3.8-19 Provocaqóes e canqáo fináis sobre a queda da Assíria Após urna provocacáo satírica a Nínive (v. 8-11; á luz da destruicáo de Tebas no Egito), Naum apresenta urna serie de insultos (v. 12-17) e conclui com urna breve cañedo satírica (v. 18,19), que encerra com urna pergunta. O único outro livro profético que termina dessa maneira é o de Joñas, que também trata de Nínive; entre a pergunta de Joñas e a de Naum, contudo, há um contraste instrutivo.

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Naum nos lembra do caráter essencial do Deus cuja historia é contada na Biblia, um Deus de bondade e salvacáo, bem como de justica e juízo, qualidades que existem lado a lado nele, da mesma maneira em que sao finalmente exibidas, juntas, na morte de Jesús Cristo em urna cruz.

Habacuque

INFORMALES BÁSICAS SOBRE HABACUQUE ■ Conteúdo: Habacuque dialoga com Deus quanto á questao da injustica (como podem as pessoas fazer o mal impunemente sem que Deus faca nada?), e recebe razóes para confiar nele ■ Profeta: Habacuque, profeta de Judá, desconhecido a nao ser pelo seu livro ■ Data de atividade profética: algum período entre 612 e 599 a.C., quando a Babilonia tinha comecado a dominar o cenário internacional, mas antes de ela atacar Jerusalém ■ Enfases: a indignacáo do profeta diante da aparente tolerancia de Deus com a injustica; a confianca do profeta na justica e no poder de Deus; a atitude do justo é de fidelidade e confianca em Deus; a garantía de Deus de que os maus seráo punidos

VISÁO GERAL DE HABACUQUE Talvez vocé ache esse livro, o oitavo do Livro dos Doze, um dos mais facéis de 1er entre os livros proféticos, dada a clareza de sua estrutura e fluxo de ideias. Os primciros dois capítulos consistem num diálogo entre o profeta e Javé quanto á injustica. O capítulo 3 é a resposta final do profeta a Deus, na forma de urna oracáo em que ele anseia pelo

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COMO LER A BÍBLIA LIVR0 POR LIVRO

novo éxodo, ao mesmo tempo que afirma sua confianca em Deus nao importa o que aconteca. Em sua queixa, Habacuque se debate com aquilo que ele sabe ser verdade a respeito do caráter de Deus junto com a aparente tolerancia divina com a violencia e a injusticia que sao abundantes em Judá (1.2.4). A resposta de Deus — de que ele está levantando os babilonios para tratarem dessa questáo (1.5-11) — nao consola muito o profeta (1.12-17), já que os babilonios sao mais violentos ainda! Ele assume seu posto, portanto, como o vigia da noite para ver a resposta que vira pela manhá (2.1). A segunda resposta de Deus é dupla: (1) o profeta deve esperar e continuar confiando em Deus (2.2-4), e (2) os arrogantes certamente sofreráo aquilo que infiigiram aos outros (pilhagem por pilhagem, 2.4-20). A oracáo de Habacuque é urna lembranca metafórica dramática do Éxodo do Egito, que inspira esperanca, confianca e regozijo em Deus em face de todas as dificuldades.

ORIENTAfTÓES PARA A LEITURA DE HABACUQUE De muitas maneiras, 1er Habacuque é como 1er os lamentos extensos que encontramos, por exemplo, nos salmos 10 ou 13. Tudo é visto como dependendo do caráter de Deus — e na confianca do profeta/ salmista de que Deus, de fato, acabará julgando os atos dos perversos. Em cada caso, é precisamente por causa de quem Deus é que o profeta ou salmista exclama "Até quando?" diante do que parece ser a tolerancia divina com o mal. É esse relacionamento com os lamentos do Salterio que melhor explica o aspecto mais incomum de Habacuque: o fato de que nao há, no livro, nenhum oráculo dirigido ao povo de Deus como tal. Antes, o próprio profeta assume o papel do povo em seu diálogo com Deus sobre a injustica presente. Além disso, a nota9áo litúrgica no comeco e no fim do capítulo 3 deixa clara a intencáo de I Iabacuque de que sua prece (ou salmo) fosse entoada na comunidade dos justos. Quanto aos antecedentes bíblicos do livro, é urna boa ideia 1er 2Reis 22—23 e 2Crónicas 34.1—36.4. A forma como o profeta menciona o fato de Deus levantar a Babilonia (1.6) sugere que a nacáo ainda nao havia atingido sua plena supremacía internacional (após 605

HABACUQUE

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a.C), o que também quer dizer que Habacuque foi contemporáneo de Sofonias, Naum e Jeremías. A descrigáo dos pecados de Judá nesses quatro livros confirma o testemunho de Reis-Crónicas de que a reforma de Josias foi breve e superficial, e de que Judá era urna sociedade em que injustiga, violencia e a rejeigáo da lei eram realidades continuas. Contudo, assim como seus contemporáneos, Habacuque via o futuro com clareza — ele sabia que a justiga de Deus prevalecería. Vocé perceberá que os oráculos contra a Babilonia se coadunam devidamente com o restante da tradigáo profética, que claramente via Javé como o Deus soberano de todas as nagóes. Foi Deus quem levantou a Babilonia para executar o seu juízo contra Judá. UMA CAMINHADA POR HABACUQUE D 1.1-4 Prime ira queixa de Habacuque Observe o quanto a queixa (v. 2-4) se assemelha aos salmos de lamento — um clamor para que Deus faga alguma coisa á luz da presente situagáo, e um catálogo dos motivos do lamento. D 1.5-11

Resposta de Javé

A resposta de Javé está longe de ser o que o profeta esperava! Deus está levantando a Babilonia para executar o seu juízo contra Judá. Vocé pode comparar a natureza inexorável e invencível do ataque babilónico vindouro com a visáo de Naum (Na 2.3,4,9,10; 3.1-3) ou com a de Joel(Jl 2.1-11). D 1.12—2.1

Segunda queixa de Habacuque

Tente se colocar no lugar do profeta para ter urna nogáo de como é completamente insatisfatória a resposta de Deus. Como pode isso ser justiga, quando o Deus cujos olhos sao puros demais para contemplar o mal invoca urna nagao traigoeira para "[devorar] quem é mais justo do que [ela]" (1.13)? Habacuque, portanto, assume o posto do vigia, para ver como Deus responderá dessa vez (2.1). D 2.2-5

Resposta de Javé

A resposta é tripla: (1) Habacuque deve esperar, porque a resposta ("a visao") vira na hora designada; (2) a presente atitude de arrogancia dos

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

babilonios tem os dias contados; e (3) os justos viveráo pela sua confianza fiel em Javé (v. 4, a passagem que se tornou crucial na teologia de Paulo). □ 2.6-20 Oráculos de ais contra o opressor Atente aqui para o aspecto lex talionis ("olho por olho") da justica de Deus quando seu juízo é executado contra a Babilonia. O profeta se vale de urna imagem diferente a cada oráculo, e Deus bate o seu martelo cinco vezes: aquele que saqueia é saqueado (v. 6-8), o conquistador arrogante é humilhado (v. 9-11), o predio do construtor torna-se combustível para o fogo (v. 12-14), aquele que leva o outro a se embebedar bebe vergonha do cálice da ira de Deus (v. 15-17), e o ídolo mudo é silenciado diante de Javé, que está presente em seu santo templo (v. 18-20). D 3.1-19

Oraqáo e confissáo de Habacuque

Esse salmo espléndido se divide em tres partes básicas: o versículo 2, urna prece para que Deus renové seus feitos de outrora; os versículos 3-15, que celebram as Vitorias passadas de Deus como o Guerreiro Divino; e os versículos 16-19, o compromisso duplo de Habacuque, de "[aguardar] em silencio o dia da angustia" e de por sua confianza e esperanza em Deus, quaisquer que sejam as circunstancias (cf. 2.2-4). A exemplo de muitos leitores, talvez vocé ache a sezáo central pouco acessível. O crucial aqui é observar que,em tres estrofes (3.3-7; 8-10; 11-15), Habacuque entremeia (1) o dominio de Deus sobre as aguas caóticas na criazáo, (2) a suspensáo do movimento do sol que Deus realizou para Josué, (3) a teofania no Sinai e (4) descrizoes poéticas do Éxodo (cf. Ex 15.6-8; SI 114) — fazendo disso tudo um lembrete brilhante, impressionante, do triunfo de Deus sobre o faraó no livramento de seu povo; essa é urna imagem que, por assim dizer, deixa Habacuque arrepiado (He 3.16). Tudo isso tem o propósito de garantir ao povo de Deus que ele agirá mais urna vez em favor deles.

HABACUQUE

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Habacuque dá prosseguimento a historia bíblica em grande estilo — dando a entender que o Deus Criador e Redentor nao deixará de fazer algo em relacáo á iniquidade humana, enquanto seu povo vive em esperanca, confiando fielmente nele.

Sofonias

INFORMALES BÁSICAS SOBRE SOFONIAS ■ Conteúdo: oráculos de juízos catastróficos que háo de vir sobre Jerusalém (e portante Judá) e nacoes circunvizinhas, além de um oráculo de restaurac.áo para um remanescente de Judá ■ Profeta: Sofonias de Jerusalém, possivelmente da linhagem real de Ezequias ■ Data de atividade profética: algum período durante o reino de Josias em Judá (640-609 a.C.) ■ Enfases: o dia vindouro de Javé; juízo contra Judá por seus pecados; Javé como Deus de todas as nacoes; juízos contra as nacoes; a salvacáo acabará vindo para um remanescente de Judá

VISÁO GERAL DE SOFONIAS Durante o reinado de Josias (o último rei de Judá temente a Deus), Sofonias, que possivelmente era membro da corte real, recebeu urna palavra de Javé anunciando que "o dia do SENHOR [Javé] está perto" (1.7,14,18; 2.3). A esscncia da profccia é o juízo de Deus contra Judá, por sua idolatría e iniquidade complacente (1.3b-18a; 3.1-5). Mas o livro de Sofonias também incluí um chamado ao arrependimento (2.13), juízos contra as outras nacoes (2.4-15) e a promessa da res-tauracáo para um remanescente fiel (3.9-20). Assim, como vocé logo

S0F0NIAS

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perceberá, Sofonias — o nono dos livros que compóem o Livro dos Doze — dá continuidade a todas as questoes importantes que vimos até aqui na tradicáo profética de Israel.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE SOFONIAS O contexto histórico de Sofonias é, de algumas maneiras, semelhante ao de Habacuque (2Rs 22—23; 2Cr 34—35). No caso de Sofonias, contudo, como suas profecias se dirigem principalmente a Jerusalém, é urna boa ideia 1er também os trechos que tratam do sincretismo na secáo "Orientacóes para a leitura" dos capítulos sobre Deuteronómio e Reis. Embora nao seja possível determinar com exatidáo quando esses oráculos formidáveis foram proclamados — mesmo que parecam vir antes e nao depois das reformas de Josias —■, nao há como deixar de perceber que o juízo de Deus está sendo pronunciado principalmente porque Jerusalém, nao obstante continué sendo urna cidade religiosa, nao está seguindo exclusivamente a Javé; ao mesmo tempo — também em con-tradicáo ao javismo puro —, há pouca preocupacáo com a justica social. Como Sofonias nao é em geral considerado urna leitura fácil, será proveitoso atentar para a estrutura literaria meticulosa desse livro, que assume a forma de urna serie de padróes concéntricos (quiasmos). Pri-meiro há o quadro maior: A Julgamento divino de Judá, seguido de pranto (1.2-18) B Juízo divino das nacóes (2.1—3.8) A* Reden9áo divina do remanescente, seguido de júbilo (3.9-21) Em cada um desses quadros, e as vezes entregados entre eles, há varios padróes concéntricos adicionáis. Observe, por exemplo, como 1.2-18 é enquadrado, no come90 e no fim, por anuncios de juízo contra toda a térra (1.2,3/18b,c ecoando o diluvio [b,c = versos poéticos no versículo]); da mesma maneira, 1.2,3 e 3.8d enquadram a serie inteira de oráculos de juízo. Dessa forma: 1.2-18 1.2,3 1.2,3

3.9-21 3.8d 1.18b,c

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR UVRO

Semelhantemente, os oráculos contra as nacoes sao enquadrados por um chamado ao arrependimento por parte de Judá (2.1,3) e pelo juízo devido a sua recusa em se arrepender (3.6-8; v. "Urna caminhada por Sofonias" logo adiante). Em segundo lugar, rudo isso é exprimido por meio de imagens formidáveis e vigorosas. Observe, por exemplo, como o profeta, quando fala do juízo de Deus contra Judá ejerusalém, recorre deliberadamente a imagens e linguagem ligadas ao diluvio de Génesis 6. Isso está ligado ao uso frequente que Sofonias faz da hipérbole (exagero deliberado que visa um efeito literario). Assim, por exemplo, ele prediz varias vezes que Deus destruirá a térra inteira e todos os seus habitantes (1.2,3,18bc; 3.8), ao mesmo tempo que também prediz um grande futuro tanto para os povos em geral (3.9) quanto para Israel (3.10-19). Essas afirmares exageradas nao devem ser entendidas literalmente (assim como um fá de esportes nao leria literalmente urna manche-te afirmando que determinado time "massacrou" o time adversario; o termo, é claro, exprime urna vitória avassaladora, nao um massacre literal); a eficacia do recurso está em fazer o povo levar a serio as proporcóes da tragedia que o aguarda. Quanto ao dia de Javé, veja os "Orientacóes para a leitura de Joel", p. 257. Em Sofonias, "o dia" (termo usado 17 vezes entre 1.7 e 2.3!) se refere a um tempo de mudanca decisiva em favor dos justos e contra os ímpios — e Judá está entre os ímpios. UMA CAMINHADA POR SOFONIAS □ 1.1

A ¡dentidade do profeta

É importante nao pular essa parte; observe como o profeta é situado tanto em sua linhagem (possivelmente um descendente do rei reformador anterior, Ezequias) como em seu período (trabalhando pela causa do rei que se tornou o maior reformador,Josias). □ 1.2-18 O dia de Javé está vindo (contra Judá) Nao esqueca, enquanto le, que esse é um oráculo profético, nao urna narrativa, e portanto escrito como poesia que visava a urna apresentacáo verbal. Observe o quadro exterior (1.2,3b,18b,c), em que o juízo

SOFONIAS

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contra Judá é situado contra o paño de fundo de urna catástrofe imánente semelhante a um diluvio. Vocé perceberá que o juízo contra Judá é em tres partes: (1) os versículos 3c-9 añrmam o juízo vindouro de Deus expressamente contra Judá e Jerusalém, por causa de suas idolatrias (observe que o juízo é retratado como Deus preparando um sacrificio; (2) os versículos 10-13 descrevem a resposta ao dia de Javé quando ele vier: a cidade pranteando diante de sua ruina económica e da devastarlo de casas e propriedades; e (3) os versículos 14-18a descrevem a natureza inevitável e inescapável do dia quando ele vier.

D 2.1—3.8 O juízo das naqóes narrado em detalhes Observe como a estrutura dessa secáo é minuciosa. Ela comeca convocando Judá a se arrepender e a que seus habitantes sejam justos e humildes (2.1-3), e conclui com a nota melancólica da recusa de Jerusalém em fazé-lo (3.6-8). Entre esse comeco e fim há cinco oráculos, quatro deles contra cinco outras nacóes e um contra a própria Jerusalém, todos expressos em urna construcáo perfeitamente equilibrada: 2.1-3 2.4-7

Intimacáo ao arrependimento Filístia (nove versos) — as térras de um vizinho seráo herdadas pelo remanescente de Judá 2.8-11 Moabe/Amom

(nove versos) — o mesmo que no caso da Filístia 2.12 Etíopes [Cuxe, em algumas versóes] (um verso) 2.13-15 Assíria (nove versos) — um inimigo detestado será destruido 3.1-5

Jerusalém (nove versos) —Judá será como o

inimigo que ele detesta 3.6-8

A recusa em se

arrepender Há varias outras questóes importantes a observar na leitura de Sofonias — que as razóes para o juízo mal sao fornecidas na serie contra as outras nacóes (Moabe/Amom por insultarem o povo de Deus; a Assíria pela arrogancia), mas sao fornecidas ampias razóes para a queda de Jerusalém (traicáo por parte dos líderes políticos e religiosos); que

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

2.7 e 9 prenunciam o remanescente no oráculo final do livro (3.9-20); que a razao expressa desses oráculos é chamar Jerusalém ao arrependimento (v. esp. 3.6,7), embora esse tipo de oráculo sempre exista nos profetas como urna forma de lembrar que Javé também é Deus sobre todas as demais nacoes. □ 3.9-20

Restauraqáo do remanescente

Como no caso do oráculo inicial de juízo, vocé observará que esse oráculo final, de esperanca, também se divide em tres partes: (1) os versículos 9-13 exprimem, em termos deuteronómicos, a purificacáo do remanescente reunido, que descansará seguro em Jerusalém e vivera em humildade e justica; (2) os versículos 14-17, em contraste com o pranto no oráculo inicial, descrevem o júbilo (tanto do povo como de Javé) que agora ecoa por toda a cidade restaurada; e (3) os versículos 18-20, mais urna vez em termos deuteronómicos, descrevem a reuniáo do povo e o fato de este receber honra e gloria em vez de vergonha.

O breve livro de Sofonias fala de maneira contundente tanto do juízo de Deus sobre o pecado quanto do seu ato gracioso de salvacáo para os humildes e os que nao o merecem, prenunciando assim o evangelho conforme exprimido no Novo Testamento.

Ageu

INFORMALES BÁSICAS SOBRE AGEU ■ Conteúdo: quatro oráculos incentivando o povo de Deus a reconstruir o templo em Jerusalém ■ Profeta: Ageu, profeta pós-exílico em Jerusalém e contemporáneo de Zacarias (v. Ed 5.1; 6.14) ■ Data de atividade profética: um período de quatro meses durante o segundo ano do reinado de Dario da Pérsia (520 a.C.) ■ Enfases: a necessidade de os israelitas reconstruírem o templo como o lugar da presenca de Deus e da adoracáo dos israelitas; as dificuldades atuais advém da falha deles nessa questáo; há um futuro glorioso para o povo de Deus e Zorobabel (portante, para a linhagem real de Davi)

VISÁO GERAL DE AGEU Ageu, o décimo livro do Livro dos Doze, consiste em relatos de quatro "palavras" dirigidas a Zorobabel (o governador), a Josué (o sumo sacerdote) e ao povo em Jerusalém. A preocupa9áo principal do profeta é encorajar o povo a prosseguir na reconstru9áo do templo em Jerusalém. A primeira "palavra" de Ageu (1.1-11) anuncia que as recentes secas e as colheitas escassas (parte das maldÍ9oes pela desobediencia á aliaba; v. Dt 28.20-48) estáo ligadas ao fato de que os ex-exilados

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COMO LER A BÍBUA LIVRO POR LIVRO

negligenciaram a edificacáo da casa de Deus (embora já tivessem construido suas próprias casas); a resposta do povo a essa palavra é favorável (Ag 1.1215). Um mes e meio depois, a segunda "palavra" os encoraja a continuar o trabalho, prometendo que a gloria do novo templo será maior que a do primeiro (2.1-9). As regras sacerdotais sobre a impureza cerimonial servem de base para a terceira "palavra" (v. 10-19), na qual Deus promete abencoá-los "de hoje em diante". A "palavra" final (v. 20-23) é dirigida a Zorobabel, dando-lhe a garantía de que Deus estará com ele.

ORIENTAgÓES PARA A LEITURA DE AGEU E urna boa ideia 1er Ageu junto com Esdras 1—6, que serve de paño de fundo as palavras do profeta registradas aqui. Após um grande grupo de exilados ter retornado em 539 a.C, sob o edito de Ciro, eles imediatamente reconstruíram o altar e lancaram os alicerces do templo (Ed 3). Entáo o trabalho foi interrompido, o povo passando a construcáo das próprias casas e ao trabalho nos seus campos. E agora, uns dezenove anos depois, o templo continua como havia sido deixado; entrementes, as secas e as colheitas escassas sao frequentes na térra. Por meio de Ageu, Javé chama a atencáo para a ligacáo entre essas duas realidades, e encoraja o povo a retomar a obra de recons-trucáo do templo. Na sua leitura, observe os varios aspectos que caractcrizam o livro de Ageu: (1) seus oráculos nao sao pronunciados em forma poética, mas numa especie de prosa rítmica; (2) eles geralmente consistem numa serie de perguntas (cf. Malaquias) as quais se segué a palavra de Deus para o povo (Ag 1.4,9; 2.3,12,13,19); (3) o profeta também usa as repeticóes de forma eficaz — "Considerai" ocorre duas vezes tanto no primeiro quanto no terceiro oráculo (1.5,7; 2.15,18); "eu estou convosco" ocorre no primeiro e no segundo (1.13; 2.4); a afirmacáo de Deus, "farei tremer os céus e a térra", ocorre no segundo e no quar-to (2.6,21); e, numa linguagem que ecoa Josué 1.6,7,9,19, os líderes e o povo sao tres vezes exortados com a expressáo "esforca-te" (2.4). Observe também que, enquanto há urna progressáo obvia nessas qua-tro "palavras", há também urna clara correspondencia tanto entre a

AGEU

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primeira e a terceira (a maldÍ9áo da aliaba dará lugar, agora, á bén9áo da aliaba), quanto entre a segunda e a quarta (encorajando Zorobabel como líder). Como a questáo central em Ageu é a reconstru9áo do templo, vocé fará bem em lembrar do papel significativo que o templo teve na vida de Israel, servindo tanto como o lugar da presera especial de Deus (distinguindo Israel de todos os outros povos) quanto como o lugar da devida adora9áo. Veja "Orienta95es para a leitura de Éxodo" (p. 43) e as notas sobre Éxodo 25—40 (p. 48-50), e lembre-se de que o Espirito de Deus é a maneira pela qual Deus está presente entre eles (daí, Ag 2.5). Os dias e datas específicos que sao dados nesses oráculos sao dignos de nota. O primeiro oráculo (29 de agosto de 520 a.C.) é pronunciado no primeiro dia do mes (lunar), situando-se portanto no contexto de urna festa da lúa nova (Nm 10.10; 28.11), e no período da plena matura9áo do trigo; o segundo oráculo (17 de outubro de 520 a.C.) vem no final da festa dos tabernáculos (o festival de colheita de Israel); e o terceiro e quarto oráculos (18 de dezembro de 520 a.C.) durante a temporada de cultivo para a colheita da primavera. Todos esses eram períodos em que o povo nao tinha nenhuma desculpa de estar ocupado demais para dar aten9áo ao templo. Aqui vocé também percebe a tensáo frequente vista na tradÍ9áo profética entre as realidades presentes e o glorioso futuro de Deus. Como de costume, fala-se de urna coisa (a esperaba presente) á luz da outra (a gloria futura). Observe como isso ocorre em rela9áo tanto ao templo (2.1-5,6-9) quanto a Zorobabel (2.20-22,23), ambos sendo assinalados pelo tremor escatológico de céus e térra por parte de Deus.

UMA CAMINHADA POR AGEU □ 1.1-15

O chamado a reconstruir o templo

Veja como essa "palavra" vai se desenvolvendo. Ela cornea com o contexto (v. 1), a queixa de Deus quanto ao seu povo (v. 2) e a questáo principal (v. 3) — a falha em construir a casa de Deus, embora os ex-exilados tenham edificado suas próprias moradias. No auge da esta-9§o de cultivo, Deus os chama para come9arem a construir a casa dele! A isso se seguem dois oráculos que come9am com "Considerai o vosso

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COMO LER A BIBLIA LIVRO POR LIVRO

passado", tratando da seca atual e das razóes déla (v. 5,6,7-11; a seca é urna das maldicóes pelo rompimento da alianca, Dt 28.38-40). Observe o quanto a terceira parte destoa dos profetas anteriores em geral (Ag 1.12-15); a resposta do povo dessa vez é registrada — e é positiva! 11 2.1-9 A gloria do segundo templo Vocé pode tentar imaginar como um septuagenario, ou mesmo alguém ainda mais idoso, teria se sentido ao ver que o templo parcialmente construido obviamente nao se assemelhava ao de Salomáo — e ficaria bastante aquém da visao grandiosa de Ezequiel (Ez 40—43). O povo, portante, recebe encorajamento ("esforca-te"), porque no devido tempo o segundo templo excederá o primeiro em gloria (o que finalmente acontece quando Jesús, enquanto está no patio do templo, assume ele próprio o papel do templo; Jo 2.13-22). D 2.10-19

Um povo impuro é purificado e abenqoado

Observe que duas questoes quanto a pureza/impureza cerimoniais (v. 10-13) sao usadas como analogia (v. 14-1%) para repetir a esséncia de 1.8-11 (a térra deles está "contaminada" porque o povo está "contaminado"), enquanto 2.19c revoga a maldicáo — desse dia em diante Deus os abencoará. D 2.20-23

Urna mensagem para Zorobabel

Zorobabel, herdeiro do trono davídico, mas governador vassalo da Judeia sob dominio persa, recebe a promessa de que ele triunfará, no futuro, sobre os poderes do mundo, tornando-se o "anel de selar" de Deus ("selo oficial"; cf. Jr 22.24,25, em que o último rei de Judá era um "anel de selar" a ser descartado!) — urna palavra que também vislumbra o tempo do supremo Filho de Davi.

Ageu nos lembra de que o povo de Deus deve ser caracterizado como o povo da presenca de Deus (que é o papel do templo), algo que finalmente se cumpriu na vinda de Jesús Cristo e do Espirito.

Zacarías

INFORMALES BÁSICAS SOBRE ZACARÍAS ■ Conteúdo: visóes que pretendiam encorajar a comunidade pós-exílica, especialmente os líderes, a reconstruir o templo, além de oráculos que falam do futuro Rei vindouro, que seria morto e haveria de triunfar ■ Profeta: Zacarias de Jerusalém, contemporáneo de Ageu, mas cujo ministerio conhecido é mais extenso (cp. Zc 1.1 e 7.1 com Ag 1.1; v. também Ed 5.1; 6.14) ■ Data de atividade profética: 520 a.C. até algum período por volta do inicio do século sexto a.C. ■ Enfases: Deus está com a comunidade rcmancsccnte dos que voltaram do Exilio; Deus fará prosperar os líderes da comunidade; o futuro de Jerusalém e Judá é radiante, cheio de paz e gloria; o Rei de Israel voltará a Jerusalém em triunfo, mas será morto em favor dos pecados do povo; Deus punirá os inimigos de seu povo, mas muitas nacóes viráo a conhecer o Senhor

VISÁO GERAL DE ZACARÍAS Esse livro, o undécimo dos que compóem o Livro dos Doze, divide-se em duas partes táo distintas (caps. 1—8; 9—14) que, para muitos estudiosos, a segunda (caps. 9—14) pertence a outro autor que nao

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COMO LER A BÍBLIA LIVRO POR LIVRO

Zacarías. Mas a Biblia traz ambas as partes sob o mesmo título, a segunda devendo ser lida a luz da primeira. No caso de Zacarías, o futuro iminente e o grande futuro apocalíptico de Deus coexistem numa tensáo que é realcada pela própria estrutura do livro. Ambas as secóes sao divididas em partes fácilmente identificáveis. Após um chamado introdutório ao arrependimento (1.2-6), vocé depara com urna serie de oito visóes noturnas (1.7—6.15), que sao interpretadas por um "anjo que falava [com Zacarías]" (1.9). As visóes 4 e 5 sao as centráis aqui, concentrando-se na lideranca de Josué e Zorobabel e na construcáo do templo. O restante dessa secáo (caps. 7—8) usa urna pergunta a respeito de certos jejuns como base para urna pregacáo sobre a verdadeira natureza do jejum, e para anunciar a futura béncáo de Jerusalém por parte de Deus. Os capítulos 9—14 contém dois "oráculos" (caps. 9—11 e 12—14) que dizem respeito ao glorioso futuro de Deus para o seu povo e ao seu juízo contra os inimigos dele e dos israelitas. O primeiro contém um juízo contra as nacoes (9.1-8) situado no ambiente da vinda e subsequente rejeicáo do Messias regio de Deus (9.9-17; 11.4-17) e na grande reuniáo do seu povo espalhado (10.1—11.3). O segundo oráculo retoma todos esses temas, mas os sitúa em um ambiente ainda mais claramente escatológico, concentrando-se "naquele dia" e culminando, no capítulo 14, com a derrota final dos inimigos de Deus e o estabelecimento do seu reino universal, quando todas as nacoes viráo adorá-lo.

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE ZACARÍAS A maior parte dos leitorcs tende a considerar Zacarías urna leitura especialmente ardua, mesmo para os padroes de um livro profético. Isso se deve, sem dúvida, ao caráter altamente simbólico das visóes noturnas, sem falar na complexidade habitual dos oráculos escatológicos — e estes compóem a maior parte do livro. Mas com alguma orientacáo nao será impossível desbravar esse livro e vislumbrar sua grandeza. Quanto á historia do período e as questóes básicas que o profeta aborda, veja "Orientacóes para a leitura de Ageu", p. 300. É importante observar aqui que todas as preocupacóes primarias da tradicáo profética de Israel aparecem em Zacarías —juízos contra o povo de Deus

ZACARÍAS

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por seus pecados; juízos contra as nacóes circundantes pelos pecados destas contra o povo de Deus, e também porque Javé é soberano sobre todas as nacóes; um futuro glorioso para o povo redimido e purificado de Deus —, e todas elas situadas numa tensáo entre as realidades temporais iminentes e o glorioso futuro final de Deus. Outro aspecto saliente em Zacarías é a sua expectativa em relacáo ao futuro rei mes-siánico de Deus; nao é á toa que o livro é táo citado pelos autores do Novo Testamento (que o citam esp. com respeito a Cristo e a expres-sao final do reino de Deus). Duas observacoes podem ajudá-lo na sua leitura das visóes notur-nas. Em primeiro lugar, elas sao ordenadas num padráo concéntrico (quiástico). Observe que ambas as visóes 1 e 8 (1.7-17; 6.1-8) apre-sentam grupos de cávalos coloridos, cujo propósito c percorrer toda a térra, como paño de fundo para a construcáo do templo. As visóes 2 e 3 (1.18-21; 2.1-13) e as visóes 6 e 7 (5.1-4; 5.5-11) estáo relacionadas aos obstáculos enfrentados pela comunidade da restauraqáo em sua re-construcáo do templo (ñas visóes 2 e 3, os obstáculos vém de fora, e ñas visóes 6 e 7, de dentro). As visóes 4 e 5 (3.1-10; 4.1-14) sao o elemento central, lidando especialmente com a lideranca de Josué e de Zorobabel, tanto para a construcáo do templo quanto para liderar a comunidade. Em segundo lugar, vocé verá um padráo semelhante na maioria dessas visóes: Zacarias descreve o que vé, pergunta qual é o seu significado, e um anjo intérprete dá a explicacáo. Quatro das visóes ([1] 1.14-17; [3] 2.6-13; [5] 4.6-10a; [8] 6.9-15) também contém um ou mais oráculos, que tornam específica a mensagem das visóes. A essén-cia disso tudo é urna palavra de encorajamento, declarando ao povo que é chegado o tempo — as condicóes estáo presentes para que eles realizem a reconstrucáo —, enquanto ao mesmo tempo as visóes também sao, como no caso de Ageu, urna palavra de encorajamento para os líderes. Os dois oráculos nos capítulos 9—14 sao de leitura particularmente difícil, mas essencialmente também seguem um padráo. Ambos dizem respeito á intervencáo triunfante do Senhor nos negocios de Judá e das nacóes. O primeiro vislumbra o futuro mais imediato, o segundo, a vinda final do governo universal de Deus. Ambos falam da

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posicao central ocupada pelo Messias regio de Deus, e do fato de ele ser rejeitado pelo povo. Urna nota final: os profetas as vezes recorrem á linguagem e as imagens daqueles que os precederam. Isso se aplica de maneira especial a Zacarías, que nao só menciona os "antigos profetas" (1.4,6; 7.7,12), mas ecoa a linguagem deles de forma deliberada em varios pontos do livro (p. ex., cp. 1.4 com Jr 35.15). Essa talvez seja a melhor forma de explicar o momento intrigante em que o Messias regio de Deus é trespassado e sofre em Zacarías 11—13, passagem que parece refletir sobre o trecho do servo sofredor de Isaías e desenvolvé-lo (Is 52.13—53.12). Isso também ajuda a explicar por que os autores do Novo Testamento recorrem tao frequentemente a essas duas passagens para explicar a crucificacao do Messias.

UMA CAMINHADA POR ZACARÍAS D 1.1-6 Introduqáo Tanto o título, que data de dois meses após a palavra inicial de Ageu, quanto as palavras que se seguem servem para validar o profeta: isso é o que Deus incumbiu Zacarías de dizer ao povo, o que afirma que a alianca ainda é vigente e conclama os israelitas a obediencia (em contraste com a maneira como viveram seus ancestrais).

D 1.7-17

Visáo 1: Os cavaleiros: o retorno de Deus a Jerusalém

Observe a divisáo da passagem a medida que vocé le: (1) a visáo em si (v. 8); (2) a pergunta de Zacarías quanto ao seu significado (v. 9,10); (2) a resposta do anjo intérprete: eles sao a patrulha que percorreu a térra toda e a encontrou "toda tranquila e em descanso"; (4) o(s) oráculo(s) — Javé está voltando a Jerusalém; o povo, portante, nao deve descansar, mas reconstruir o templo.

D 1.18-21

Visáo dois: Os quatro chifres sao destruidos

Observe como essa visáo se divide em duas partes acompanhadas de explicacáo. Os dias das nacóes responsáveis pelo Exilio (tanto de Judá quanto de Israel) estáo contados.

ZACARÍAS

D 2.1-13

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Visáo 3: Jerusalém nao pode ser medida — a volta da prosperidade

Observe como essa explicacáo (v. 4-13) assume a forma de urna serie de oráculos — a grandeza vindoura de Jerusalém com Javé como seu protetor (v. 4,5); um chamado aos exilados na Babilonia para que retornem (v. 6-9; retomando assim a visáo 2); a morada de Javé em Siáo como soberano universal (v. 10-13; preenchendo assim a presente visáo). Observe também como o versículo 13 ecoa Habacuque 2.20. D 3.1-10

Visáo 4: O sumo sacerdote é empossado novamente

Lembre-se de que essa é a primeira das duas visóes centráis. Como o que está em jogo é a reconstrucáo do templo, o lugar da presenca de Deus, essa visáo está ligada á purificacáo do sumo sacerdote, que deverá trabalhar no templo urna vez ele estando reconstruido. Observe que a progressáo, comecando com as vestes e o turbante limpos (v. 3-5), passa ao re-comissionamcnto (v. 6,7), menciona o "Renovó" prometido (v. 8, referindo-se, no fim, ao rei davídico vindouro; cf. Is 11.1; 53.2; Jr 23.5) e concluí prenunciando o oráculo em Zacarías 8.1-8. D 4.1-14

Visáo 5: O candelabro e as oliveiras — a renovaqáo da presencal Espirito de Deus

Observe a estrutura levemente diferente: a visáo (v. 1-3), agora com duas series de perguntas (v. 4,5,11-13) e explicacóes (v. 6-10,14) — para encorajar Zorobabel no sentido de que o Espirito de Deus realizará aquilo que é impossível ao poder humano —, além de urna afirrnacáo da lideranca dele e de Josué. D 5.1-4

Visáo 6: O rolo que voava — banimento do mal de Judá

Agora tcm-se de novo urna breve visáo e explicacáo: o mal que persiste em Judá será banido da térra. □ 5.5-11

Visáo 7: A mulher numa cesta — a iniquidade é exilada na Babilonia

Atente para a ironia nessa visáo, bem como para sua rclacáo com as visoes anteriores: o povo voltará do Exñio (visáo 3), a Babilonia foi

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derrubada (visáo 2), o templo será reconstruido (visSes 4 e 5); o que, entáo, acontece com a iniquidade? Ela será exilada na Babilonia! D 6.1 -15

Visáo 8: As quatro carruagens — o descanso de Deus e urna coroa para Josué

Observe como essa visáo encerra a serie toda. Essa nova patrulha de quatro cavaleiros percorre novamente a térra para descobrir que ela está em descanso (esp. a Babilonia, a "térra do norte", v. 6) — tudo isso para dizer que agora é o tempo de reconstruir. A "palavra" que veio a Zacarías e que conclui as visóes (v. 9-15) suplementa e reforca as questoes que a precederam (Josué, o Renovó, a reconstrucáo do templo). H 7.1—8.23 Em resposta a urna pergunta sobre o jejum Urna pergunta ligada aos jejuns especiáis, relacionados á queda de Jerusalém, catalisa urna serie de oráculos de padráo concéntrico (ou quiástico), similar á estrutura das visoes. 7.1-3

A pergunta: Continuaremos a prantear e jejuar por causa da queda de Jerusalém? 7.4-14 Um juízo contra o jejum sem a obediencia á alianca 8.1-8 Um retrato da Jerusalém restaurada, para servir de inspirando 8.9-13 Encorajamento á reconstrucáo do templo 8.14-17 O verdadeiro jejum é exprimido por meio de misericordia e justica (cf. Is 58) 8.18,19 A pergunta é respondida: Que os jejuns se transformem em celebracoes cheias de júbilo

Observe como os dois oráculos em apéndice (8.20-23) prenunciam o cumprimento da alianca abraámica que inclui os gentíos (Gn 12.3). E, finalmente, observe como as duas sec;5es do livro concluem com essa mesma nota (Zc 8.20-23; 14.16-19).

ZACARÍAS

D 9.1 —11.17

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O reí de Siáo e o futuro glorioso do povo de Deus

O primeiro oráculo recorre ao padráo profético dos profetas anteriores. Atente para a seguinte progressáo: o que comerla como um juí-zo sobre as nacóes circundantes (9.1-8) transforma-se na restauracáo prometida do rei davídico (v. 9-17) e de um Israel unido (10.1,3b-12). Observe que este último é enquadrado por urna denuncia contra os falsos pastores (10.2,3a; 11.1-6,14-17), e que o último destes enquadra um retrato do verdadeiro pastor de Deus, que será rejeitado pelo povo (11.7-13), o que por sua vez prenuncia a secáo central do oráculo seguinte (12.10—13.9). 7J 12.1—14.21

O ferimento e triunfo final do rei de Deus

Observe como esse segundo oráculo retoma temas do primeiro, especialmente a rejeicáo do verdadeiro pastor, enquanto sitúa o todo num contexto mais plenamente escatológico quanto ao dia de Javé ("naquele dia"). Isso, por sua vez, é situado no contexto da expressáo escatológica final da guerra santa, em que o inimigo cerca e saqueia Jerusalém (12.1-3a; 14.1,2) e o Rei é morto (12.10—13.7) — mas, no fim, eis que aparece o glorioso reino final de Deus (12.3b-9; 14.3-21).

O livro de Zacarias dá continuidade á historia bíblica ao nos lembrar de que a presenca de Deus, por meio de seu Espirito, está na esséncia de um Israel restaurado, enquanto ao mesmo tempo prenuncia a morte sacrificial do Messias que vira.

Malaquias

INFORMACÓES BÁSICAS SOBRE MALAQUIAS ■ Conteúdo: em seis disputas com o seu povo, Javé o adverte de juízos futuros e promete a redencáo daqueles que se mantiverem fiéis ■ Profeta: Malaquias ("meu mensageiro"), de outro modo desconhecido ■ Data de atividade profética: desconhecida; talvez cerca de 460 a.C, logo antes das reformas de Esdras e Neemias ■ Enfases: Javé é um Deus que mantém a alianca, e exige que o povo faca o mesmo; o povo de Deus exibe desprezo por Deus com sua apatia e declínio tanto moral quanto religioso; Deus julgará o povo com justica por sua má vontade em obedecer

VISÁO GERAL DE MALAQUIAS O oráculo de Malaquias vem por meio de seis duras disputas entre Javé e o povo, todas tendo a mesma causa fundamental: num tempo de desilusáo espiritual, Israel cansou de Javé e de guardar a sua alianca. As disputas sao registradas em duas series de tres. A primeira serie enfrenta a questáo básica — a queixa de que Javé nao os ama (1.2-5), e a "queixa" de Javé de que eles demonstraram desprezo por ele (1.6— 2.9; 2.10-16). Na segunda serie, Javé enfrenta duas vezes a queixa deles de que ele nao fez nada em relacáo ao mal e á injustica (2.17—3.5; 3.13—4.3); essas duas passagens enquadram a exposifáo por parte de

MALAQUIAS

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Javé da injustica dos próprios israelitas (3.6-12). Ao mesmo tempo, essas series de palavras afirmara que o grande dia de Javé de fato vira (3.1-4; 3.17—4.3). O livro conclui (4.4-6) com palavras sobre a lei (Moisés) e os profetas (Elias).

ORIENTACÓES PARA A LEITURA DE MALAQUIAS Embora nao possamos ter certeza de quando Malaquias profetizou — se foi imediatamente antes do tempo de Esdras e Neemias, como parece provável —, nao é má ideia reler brevemente o que dissemos sobre esse período ñas "Orientacóes para a leitura" de 1 e 2Crónicas e de Esdras-Neemias. O livro de Malaquias é um indicador explícito da apatia moral e espiritual do período, que se revelava em varias formas de desprezo por Javé e pela alianca. Alias, a maioria dos pecados mencionados em Malaquias também é mencionada em Esdras e Neemias — casamentes mistos (M12.11-15/Ed 9— 10/Ne 12.23-27); nao daro dízimo (M13.8-10/Ne 13.10-14); sacerdotes corruptos (MI 1.6—2.9/ Ne 13.1-9); e injustifa social (MI 3.5/Ne 5.1-13). Esse mal-estar social e esse desprezo pela alianca, ambos generalizados, provavelmente explicam em parte a forma e a estrutura únicas de Malaquias. Vocé observará que cada urna dessas disputas tende a seguir o mesmo padráo: • Declaracáo: a questáo é anunciada por Javé • A pergunta do povo: básicamente assumindo a forma de um Lomo assim? • A resposta de Javé: lembrando-os das acóes divinas passadas ou vindouras, ou revelando os atos deles que demonstram desprezo Essas palavras servem como um chamado para despertá-los num tempo de desilusáo (cf. 3.14), no qual os que haviam voltado da Babilonia se sentiam em geral abandonados por Javé. Assim, em vez de um contexto de corte judicial (como em Oseias e Miqueias, p. ex.), Javé os desafia por meio de declaracóes, perguntas e explicacóes.

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Certa progressao pode ser observada nessas palavras. Elas comecam com Israel questionando o amor de Javé (ou seja, a compaixáo de Javé por eles e sua lealdade a eles). A isso, Javé responde que ele nao só de fato os ama ("Vejam o que fiz a Edom"), mas também que há murtas evidencias de que eles próprios nao amara a Javé, porque tanto os sacerdotes quanto o povo demonstram desprezo pela alianca (oferecendo animáis defeituosos em sacrificio, e realizando divorcios e casamentos mistos com pagaos). As tres últimas disputas recomecam esse ciclo. Sentindo-se abandonado por Javé, o povo fala cínicamente da prosperidade daqueles que praticam a injustica. Mas, Javé responde, eles próprios praticam a injustica quando retém o dízimo, que era o meio de vida dos levitas e a provisáo dos pobres (Nm 18.21-32; Dt 14.28,29). Nessa segunda serie de disputas também há garandas dajustica vindoura de Deus — o julgamento dos maus e a salvacáo do (novo) remanescente justo. Assim, bem no final do Antigo Testamento cristáo (seguindo-se a Septuaginta), encontram-se palavras proféticas que Jesús e os autores do Novo Testamento interpretam como prenunciando a vinda dele, Jesús. Deus nao só enviará "[seu] mcnsageiro, que preparará o caminho diante [dele]", de modo que "o Senhor, a quem buscáis [...], vira ao seu templo" (MI 3.1), mas as duas disputas fináis também aludem a Moisés e Elias, que tém sua aparicáo com Jesús no monte da Transfiguracáo.

UMA CAMINHADA POR MALAQUIAS □ 7.7

Título

Assim como no caso de Joel, o título de Malaquias nao nos ajuda a identificar nem o profeta nem o seu período. D 7.2-5 Primeira disputa: Sobre o amor de Javé Observe como essa primeira disputa estabelece o tom e a estrutura das demais. Javé de fato os ama. Como assim? Pelo fato de odiar (= rejeitar; alinhar-se contra) o "irmáo", ainda que antigo inimigo, de Israel, Edom, cumprindo assim a profecia de Obadias.

MALAQUIAS

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D 1.6—2.9 Segunda disputa: Sobre a oferta de sacrificios inaceitáveis Agora é a vez de Javé. O problema básico é apresentado em 1.6 — os sacerdotes nao amam a (= mostram desprezo por) Javé. Como assim? Eles nao o amam porque ofertam animáis defeituosos a ele (v. Lv 22.17-25), que nao ousariam oferecer sequer a um governador. Melhor encerrar de urna vez as atividades do templo do que demonstrar tamanha deslealdade (1.10-14), que também desonra o nome de Javé entre as nacóes. Assim, a disputa termina com serias admoesta-coes aos sacerdotes para que corrijam as suas práticas (2.1-9). □ 2.10-16 Terceira disputa: Sobre o casamento misto e o divorcio Observe que a forma muda um pouco aqui: Malaquias agora fala por Deus (v. 10), a disputa tratando do próprio povo — quanto a questáo do casamento com os pagaos (v. 11,12), que constitui um rompimento da alianca com Javé (= capitulacáo á idolatría). A questao do divorcio (v. 13-16) também é relatada (= romper a alianca com urna esposa do povo judeu para se casar com urna mulher local). I 2.77—3.5 Quarta disputa: Sobre cansar a Javé com palavras De volta á querxa do povo. Em seu presente mal-estar, eles (cínicamente) chamam bons aos maus e indagam sobre a justica. A resposta de Javé é dupla: (1) o Senhor que eles buscam vira súbitamente ao seu templo — como um fogo purificador (3.1-3a), e (2) sua vinda resultará tanto em sacrificios aceitáveis no templo (voltando-se assim a 1.6—2.9) quanto em juízo contra todas as formas de injustica (3.3b-5). II 3.6-12

Quinta disputa: Sobre voltar a Javé

Observe como essa disputa segué de perto o que é dito no fim da anterior, devolvendo a responsabilidade a eles: eles próprios devem voltar para Javé (v. 6,7). Ao "Como assim?" deles, a resposta é que devem cessar a forma de injustica que praticam — a retencáo do dízimo (que consiste em alimento destinado aos levitas e aos pobres). Só entáo a maldicáo pela deslealdade á alianca pode ser removida, para que as

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nacóes possam ver novamente a béncáo de Deus sobre o seu povo (cf. Gn 12.3). D 3.13—4.3 Sexta disputa: Sobre o talar duramente de iave Essa disputa final encerra a segunda serie de tres disputas e traz o livro todo ao ponto inicial. Ela indica por que a primeira disputa foi necessária: o povo anda dizendo coisas duras sobre Javé — afirmando que é inútil servi-lo, e que, seja como for, os arrogantes prosperam, ao contrario daqueles que se julgam justos (3.13-15; cf. a quarta disputa). Assim, a resposta final indica que Deus de fato dividirá a casa — os arrogantes seráo julgados (4.1) — e "nascerá o sol da justica" para os justos (4.2,3). □ 4.4-6 Duas palavras de apéndice: a Lei e os Profetas (Moisés e Elias) Malaquias encerra incluindo Moisés (a Lei) e Elias (os Profetas) ao quadro. O povo é instado a guardar a alianca da Lei; eles podem antecipar a vinda de um segundo Elias, que precederá o grande dia vindouro de Javé.

Malaquias lembra ao povo de Deus que eles devem levar a serio o relacionamento de alianca com Javé, e que um grande novo dia amanhecerá sobre eles com a vinda de Elias (Joáo Batista), que precederá o Senhor (Jesús Cristo).

Os Evangelhos e Atos na narrativa bíblica

Jesús de Nazaré é, na narrativa bíblica, a pega central e inconfundível. Os Evangelhos deixam claro que a sua importancia e significado nao residem somente na sua morte, mas também, de modo especial, na sua pessoa, vida e ensino. Entretanto, todos os evangelistas (os autores dos Evangelhos), cada um a seu próprio modo, demonstram na narrativa que a morte e a ressurreicáo de Jesús sao os pontos culminantes da sua historia (dedica-se entre um terco e um quarto de cada Evangelho aos eventos da última semana). Nosso interesse em cada um dos Evangelhos está na sua narrativa sobre Jesús. Ainda que os tres primeiros sejam "sinóticos" (veem Jesús com um olhar comum), e embora Mateus e Lucas se valham do Evangelho de Marcos na sua narrativa da historia, cada Evangelho toma o seu próprio rumo — todos contando a mesma historia, mas cada um com énfases e interesses próprios, por causa dos leitores que cada autor visava. O Evangelho de Lucas tem ainda outra singularidade, porque narra a historia de Jesús sob dois aspectos: em primeiro lugar, seu Evangelho, a exemplo dos outros, fala sobre o que Jesús "comecou a fazer e a ensinar" (Atos 1.1); mas em segundo lugar, no livro de Atos, Lucas relata como a historia de Jesús continua, agora por meio do poder do Espirito, no ministerio da igreja primitiva. Os evangelistas deixam especialmente claro que nao se pode entender Jesús sem ver como ele se encaixa na historia do Antigo

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Testamento, que o precede — sem ver como ele é o climax e o cumprimento das esperances exprimidas quase desde o inicio da historia. Por um lado, todos eles veem Jesús como claramente se encaixando na tradicáo profética — por meio das suas palavras e atos poderosos e suas acoes simbólicas (p. ex., purificar o templo; amaldicoar a figueira) —, e é dessa maneira que as próprias multidóes o percebem (Mt 21.46; Le 7.16; 13.13). Ao mesmo tempo, todos os Evangelistas escrevem, por assim dizer, deste lado da ressurreicao, e sabem que Jesús nao é ninguém menos do que o "Filho de Davi" que era esperado (Me 10.47,48), o "Filho" de Deus (SI 2.7; Mt 3.17; 17.5; e paralelos), que vem até o seu povo como o seu Rei. Urna chave desse aspecto dessas narrativas reside na compreensáo que o Antigo Testamento tem do papel do rei em Israel, que frequentemente é visto tanto como representando Deus ao povo como corporificando o povo de Israel em sua própria pessoa. Pode se ver isso especialmente no livro de Salmos e nos cánticos do Servo Sofredor em Isaías 42—53. Será útil para vocé, ao 1er os Evangelhos, observar como os Evangelistas contam a historia de Jesús dessa perspectiva. Observe, por exemplo, seu batismo e a tentacáo no deserto, em que Jesús tem éxito nos mesmos lugares onde Israel fracassou, como as chacóes que ele faz de Deuteronómio 6—8 deixam claro. Ou observe o discurso em Joao 15.1-8, em que Jesús, escolhendo urna imagem de Israel do Antigo Testamento (SI 80.8-19; Is 5.1-7; Jr 2.21), fala de si mesmo como a videira verdadeira e de seus discípulos como os ramos. E a sua morte é claramente vista á luz do Servo Sofredor de Isaías (Is 52.13—53.12), como aquele que carrega os pecados do povo, dessa forma tanto representando o povo quanto inserindo-o na historia. Para cada Evangelho (e o livro de Atos também), portante, também tentaremos ajudar vocé a ver como o Evangelista liga a historia de Jesús a historia de Israel como o "cumprimento" das esperancas e expectativas messiánicas. Relacionado a isso, também precisamos mostrar que todos os Evangelhos foram escritos numa época em que a inclusáo dos gentíos na grande historia (v. comentarios sobre Gn 11.27—25.11, p. 36) estava em plena atividade; portante, vamos

OS EVANGELHOS E ATOS NA NARRATIVA BÍBLICA

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mostrar como cada Evangelho lida com essa questao, especialmente a luz da rejeicáo de Jesús por muitos dos judeus. Sobre questóes relacionadas a composicao dos Evangelhos e a relacao deles entre si, assim como sua mensagem essencial sobre a vinda do reino (como "já" e "ainda nao"), o leitor pode consultar o capítulo 7 em Entendes o que les?

O Evangelho segundo Mateus

INFORMACOES BÁSICAS SOBRE MATEUS ■ Conteúdo: a historia de Jesús, incluindo secóes extensas de ensino, indo do anuncio do seu nascimento até o comissionamento dos discípulos para fazer discípulos entre os gentíos ■ Autor: anónimo; Papias (125 d.C.) atribui o "primeiro Evangelho" ao apostólo Mateus; os estudiosos se dividem quanto a isso ■ Data: desconhecida (visto que ele usou Marcos, muito provavelmente foi escrito na década de 70 ou 80 d.C.) ■ Receptores: desconhecidos; mas quase certamente cristáos judeus comprometidos com a missáo aos gentíos, sendo a opiniáo mais comum que tenham vivido em Antioquia da Siria e arredores ■ Enfases: Jesús é o Filho de Deus, o Rei (messiánico) dos judeus; Jesús é Deus presente conosco em poder milagroso; Jesús é o Senhor da igreja; o ensino de Jesús tem importancia continua para o povo de Deus; o evangelho do reino é para todos os povos — judeus e gentíos igualmente

VISÁO GERAL DE MATEUS Faz sentido que Mateus venha primeiro no Novo Testamento, por duas razóes: primeiro, desde a primeira frase ele demonstra lacos deliberados e diretos com o Antigo Testamento; em segundo lugar, devido

O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

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á sua forma organizada de apresentar o ensino de Jesús, ele foi o Evan-gelho mais usado na igreja primitiva (citado pelos pais da igreja com duas vezes mais frequéncia do que os outros Evangelhos). A natureza do Evangelho de Mateus reside na sua estrutura, que apresenta urna notável tapecaria narrativa entrelazada com secóes de ensino cuidadosamente elaboradas. É urna composicáo de tal modo eximia que as vezes nem se percebe a característica mais proeminente da historia de Mateus — as cinco secóes de ensino —, porque se está mais consciente do fluxo da narrativa (que segué de perto a narrativa de Marcos). As cinco secóes de ensino (5.1—7.29; 10.11-42; 13.1-52; 18.1-35; [23.1] 24.1—25.46) sao aprescntadas com base em tópicos específicos. Todas concluem com urna fórmula semelhante ("Tendo Jesús falado essas palavras'V'Ao concluir Jesús esse discurso" etc.), que Mateus usa para voltar á narrativa. A historia em si comeca com urna introducáo dupla sobre as ori-gens de Jesús (cp. 1—2) e sobre os seus preparativos para o ministerio público (3.1— 4.11). Depois disso, cada secáo combinada de "narrativa e discurso"forma um aspecto progressivo para a historia, todos dizen-do respeito a Jesús, o Rei messiánico, inaugurando a era do verdadeiro reino de Deus — 4.12—7.29, proclamacáo do reino e a vida nele; 8.1—10.42, o poder e a missáo do reino; 11.1—13.5, questionamen-to do reino e oposicáo a ele, alguns o recebcndo de bom grado, outros, nao; 13.53—18.35, oposicáo crescente, confissáo dos discípulos e instrucoes especiáis para a comunidade do Rei; 19.1—25.46, reacoes mistas ao profeta que agora se apresenta como Rei, e o julgamento dos que o rejeitam. A historia conclui (cp. 26—28) com o julgamento, crucificacáo e ressurreicáo de Jesús, e o comissionamento dos discípulos para que levem a historia as nacoes.

ORIENTAGÓES PARA A LEITURA DE MATEUS É difícil nao perceber como Mateus liga a historia de Jesús a de Israel, já que ele o faz de maneira táo direta e ostensiva. Jesús pertence á genealogía da linhagem real de Israel, e ele cumpre todo tipo de expectativas messiánicas dos profetas. Observe o quáo frequentemente (onze vezes ao todo) Mateus anuncia: "para que se cumprisse o que havia

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sido falado pelo[s] profeta[s]", ou de maneira semelhante. Além disso, o ministerio e o ensino de Jesús pressupoem a narureza normativa da lei do Antigo Testamento (5.17-48), e durante o seu ministerio terreno, Jesús se concentra ñas "ovelhas perdidas da casa de Israel" (10.6). Mas na morte de Jesús, o véu do templo se rasga em dois (27.51), indicando que sua era acabou e que a era de Jesús e dos seus seguidores comecou. Vocé verá, na sua leitura, como Mateus apresenta Jesús em oposiqáo incessante com os fariseus e com os mestres da Lei (p. ex., 5.20; 12.38; 21.15; 22.15; 23.2-36), tanto é que ele se refere as "sinagogas" deles em contraste com os seus discípulos (p. ex., 10.17; 13.54; 23.34). Além disso, urna historia alternativa que rejeitava a ressur-reicáo de Jesús ainda circulava entre alguns judeus na época em que Mateus escrevia o Evangelho. Ao mesmo tempo, preste atencáo ñas formas como Mateus tam-bém exibe claro interesse pela missáo aos gentíos. Por exemplo, quatro mulheres — principalmente, se nao todas, gentias — estáo incluidas na genealogía (Tamar, Raabe, Rute e a mulher de Urias [Bate-Seba]). A historia propriamente dita comeqa na Galileia (Mt 4.12-16), que Mateus vé como cumprindo Isaías 9.1,2 — o fato de que as pessoas vivendo na escuridao, na Galileia dos gentíos, viram urna grande luz — e termina (Mt 28.16-20) com o comissionamento dos apostólos para fazer discípulos de todas as nacóes (= gentíos). Essa combina5áo de temas sugere que o Evangelho foi escrito numa época em que a igreja e a sinagoga estavam separadas e em confuto quanto a quem era o verdadeiro sucessor das promessas do Antigo Testamento. O modo de Mateus responder a essa questáo é contando a historia de Jesús, que "cumpre" todo tipo de esperanca e expectativa messiánicas: depois do seu nascimento como o "rei dos judeus" (2.2), personalidades reais do Oriente o honram (adoram); no seu nascimento, batismo e transfiguracao ele é assinalado como o Filho de Deus; o seu nascimento virginal cumpre Isaías 7.14, em que ele é "Deus conosco" (cf. 12.6,41,42; 28.20); ele morre como "o

REÍ DOS JUDEUS",

27.37; e o centuriáo romano o reconhece como o "Filho de Deus" (27.54). Ao mesmo tempo, Mateus também reconhece Jesús como o Servo Sofredor de Isaías (20.28), e estende esse

O EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

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reconhecimento para incluir todo o seu ministerio, incluindo suas curas (8.17) e a oposicáo que ele sofre (12.17-21). Igualmente importante para Mateus é o fato de que Jesús é apresentado como o verdadeiro intérprete da Lei (5.17-48; 7.24-27), especialmente em contraste com os fariseus e os mestres da Lei. Estes transformaram a Lei cm um jugo penoso (11.28), e impuseram fardos pesados as pessoas (23.4); Jesús, que como Filho conhece e revela o Pai (11.25-27), oferece um jugo suave e um fardo leve (11.28-30). A sua "lei" consiste em misericordia e graca (9.13; 12.7; 20.30,34; 23.23). Espera-se dos que experimentam essa misericordia que eles sejam, por sua vez, misericordiosos (18.21-35; cf. 5.7). Jesús nao veio para abolir a Lei e os Profetas, mas para cumpri-los (5.17; 7.12), para trazer a nova justÍ9a do reino de Deus, que vai infinitamente além dos ensinamentos dos fariseus (5.20). Ao mesmo tempo, Mateus mostra preocupacáo com alguns da comunidade crista que profetizam, mas nao vivem obedientemente (7.15-23). No seu Evangclho, portanto, os doze discípulos desempenham o papel de aprendizes que devem ser modelo da vida no reino. Vocé fará bem em atentar para esses aspectos na sua leitura. Assim, para Mateus, Jesús é o centro de tudo, e aqueles que o seguem nao apenas proclamam a vinda do reino — a vinda da misericordia de Deus aos pecadores — mas deles também se espera que vivam como ele (7.15-23). E quando eles tém éxito na sua própria proclamacáo do reino, especialmente entre os gentios, devem fazer deles discípulos, ensinando-os a observar o caminho de Jesús (28.19,20), tanto na sua vida individual (caps. 5—7) como em suas comunidades eclesiais (cp. 18). Ao que tudo indica, Mateus pretendia que esse Evangelho servisse como o manual para essa instrucáo! UMA CAMINHADA POR MATEUS D 1.1—2.23 Prólogo: As origens humanas e divinas de Jesús Aqui vocé encontrará as partes conhecidas da narrativa de Mateus sobre as origens de Jesús (o anuncio a José; a visita dos reis magos; a

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matanca dos inocentes; a fuga para o Egito). A medida que lé, observe quantos dos interesses e temas de Mateus vém á tona aqui. Sua genealogía sitúa Jesús explícitamente na linhagem regia (filho de Davi) e prenuncia a sua missáo aos gentíos (filho de Abraao). Seu nascimento de urna virgem tanto cumpre a profecía como enfatiza as suas origens divinas (através do Espirito Santo, como "Deus conosco"). Observe especialmente como a narrativa do capítulo 2 sitúa a adoracáo a Jesús por personalidades regias gentílicas no contexto de urna tentativa de execucáo planejada pela realeza judaica. D 3.1—4.11

Introduqáo a Jesús: seu batismo e tentaqáo

Jesús é apresentado a Israel por um novo profeta, Joáo Batista; Joáo consente em batizá-lo (como o Messias poderia aceitar um batismo para arrependimento?). Jesús c imcdiatamente conduzido pelo Espirito ao deserto para ser provado quanto a quem ele é (Filho de Deus) e por que ele está aqui (a sua missáo real / de Servo Sofredor). Observe como em seu batismo e provacáo de quarenta dias Jesús desempenha o papel de Israel (= através do mar Vermelho seguido por quarenta dias no deserto) e derrota Satanás com passagens de Deuteronómio 6 e 8, precisamente em pontos em que Israel fracassou no teste; assim o (agora humilde) Guerreiro Divino vence o primeiro assalto contra o inimigo. □ 4.12—7.29 A proclamaqáo do reino A secáo de narrativa da parte 1 é bastante breve: comecando na Galileia dos gentíos, Jesús reúne discípulos, proclama as boas-novas do reino e cura os doentes (observe como 4.23-25 consiste num sumario; as primeiras "historias de milagres" aparecerá na secáo seguinte). O discurso nesse caso é, certamente, o mais conhecido. Situada no contexto de urna montanha (como Moisés no Sinai), a nova Tora (ensino a partir da lei) é o cuidadosamente estruturado Sermáo do Monte, muito do qual vocé reconhecerá mesmo que nunca tenha lido Mateus antes. A colecáo enfatiza primeiro o cenário relacionado ao "evangelho"do discurso (5.3-16, nove bem-aventurancas, e afirmacóes sobre o povo de Deus ser sal e luz).

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O restante instruí os discípulos na nova justica (o modo de viver no reino), situando-a no contexto de "cumprir" a Lei e os profetas (5.17) e de ir além da Lei dos fariseus e dos mestres da Lei (tradicionalmen-te "escribas") em todos os aspectos — especialmente a vida ética em contraste com os escribas (5.2148) e os tres deveres religiosos dos fariseus, a saber, dar esmola, oracáo e jejum (6.1-18). A essas coisas seguem-se tres exortacóes para a confianza total em Deus, que produz urna vida no reino sem ansiedade (6.19-34), leva ao tratamento justo dos outros (7.1-12) e a obediencia (7.13-17). Observe a conclusáo em 7.28,29: "Ao concluir Jesús esse discurso".

□ 8.1—10.42

O poder e a missao do reino

A se