Trabalho Cronicando Mia Couto

Ano letivo 2011/2012 Faculdade de Letras da Universidade do Porto Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira – aluna nº 1107080

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Ano letivo 2011/2012

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira – aluna nº 110708001

Técnicas de Comunicação Oral e Escrita | Faculdade de Letras da Universidade do Porto

TÉCNICAS DE COMUNICAÇ ÃO ORAL E ESCRITA

COMENTÁRIO A “CRONICANDO”, DE MIA COUTO

Índice Introdução………………………………………………………………………………3 2 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

Técnicas de Comunicação Oral e Escrita | Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Mia Couto – a pessoa, a mente o autor………………………………………………..4 “Cronicando” – o reinventar da língua no contexto moçambicano…………………6 Conclusão……………………………………………………………………………...14 Bibliografia/Websites visitados………………………………………………………15

3 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

Técnicas de Comunicação Oral e Escrita | Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Introdução Com este trabalho, proponho-me realizar um comentário à obra “Cronicando”, de Mia Couto, um dos mais aclamados autores de língua portuguesa. Inicio este comentário com uma breve biografia do autor, por forma a enquadrar a obra e todas as suas características, para que seja mais simples compreendê-la. De seguida, abordo a obra em concreto, com enfoque à questão do uso da língua e das especificidades da escrita de Mia Couto. Concluo o trabalho com uma análise das conclusões obtidas durante a sua elaboração e produção.

Mia Couto – a pessoa, a mente, o autor 4 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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Antes de iniciar o comentário concreto a “Cronicando”, importa localizar esta obra dentro do círculo da vida do seu autor. António Emílio Leite Couto, mais tarde conhecido apenas por Mia Couto, seu apelido de infância, nasceu a 5 de julho de 1955 na Beira, Moçambique, e desde cedo encontrou, no seio familiar, terreno fértil para desenvolver o seu interesse pela escrita. Essa sua veia terá, até, antecedentes familiares, já que o pai, emigrante português, fora jornalista e poeta; estava lançada, logo à partida, a “semente” para o seu futuro enquanto escritor, tendo iniciado a produção literária pela via poética, embora viesse a acabar por enveredar pela prosa. Importa referir que os seus primeiros poemas são publicados aos catorze anos, no “Jornal da Beira”. Em 1972, parte para Lourenço Marques (atual cidade de Maputo) para ingressar no curso de Medicina, na Universidade Lourenço Marques. Dentro deste contexto académico torna-se membro da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), da qual fez parte até à independência de Moçambique. Em 1974, deixa os estudos de Medicina e segue as pegadas do pai, iniciando-se na área do jornalismo; em 1985, inicia o curso Biologia na Universidade Eduardo Mondlane, especializando-se em Ecologia. 1983 é um ano importante para Mia Couto, já que é o ano em que lança o seu primeiro livro, “Raiz de Orvalho”, a que se seguiu “Vozes Anoitecidas”, publicada pela editora Caminho, em 1986. A obra “Raiz de Orvalho” é escrita com o intuito de ir contra o domínio absoluto da poesia de cariz militante e panfletária; já “Vozes Anoitecidas” vale a Mia Couto o reconhecimento da Associação de Escritores Moçambicanos. Em 2001, Mia Couto vê o seu trabalho apreciado em Portugal, tendo sido agraciado pela Fundação Calouste Gulbenkian com o Prémio Literário Mário António, pela sua obra “O Último Voo do Flamingo”. Este galardão é de grande importância, já que é um prémio atribuído a escritores africanos lusófonos, ou a escritores timorenses, de 3 em 3 anos. Além deste prémio, são de destacar outras distinções, nomeadamente o Prémio Vergílio Ferreira (Universidade de Évora), pelo conjunto da obra, em 1999; o Prémio ALOA (Dinamarca), para o melhor romance do Terceiro Mundo, em 2000; e, pela obra sobre a qual se debruça este trabalho, recebeu o Prémio Nacional de Jornalismo Areosa Pena, em 1989. 5 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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Além das obras referidas, Mia Couto conta com mais 14 obras publicadas (em Portugal, pela Editora Caminho), perfazendo um total de 18 obras publicadas desde os anos 80 até hoje. Atualmente, dedica-se à gestão de zonas costeiras, é professor em várias Faculdades da Universidade Eduardo Mondlane, e dirige uma empresa de estudos de impacto ambiental (IMPACTO, Lda.).

“Cronicando” – o reinventar da língua no contexto moçambicano Quando nos deixamos absorver pela obra literária de Mia Couto, somos como que catapultados para um novo mundo, quase surreal, repleto de imagens e fantasias de 6 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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cariz africano bem vincado, que o autor. Aliado a esse universo por si idealizado, Mia Couto usa essas mesmas imagens, figuras e personagens para, também, transformar a língua de que faz uso – a Língua Portuguesa - por forma a aproximar o leitor ainda mais dessa realidade que tenta construir. Na escrita de Mia Couto há um verdadeiro reinventar da Língua Portuguesa. Com esta obra (e, como esta, poderíamos nomear muitas outras), Mia Couto mostra-nos/prova-nos que uma língua não é algo fixo, não-movível, imutável, mas sim reconstruível e reinventável. Ao longo das várias crónicas publicadas na imprensa moçambicana durante a década de 80, na forma de pequenos textos, condensados propositadamente para poderem entrar no pequeno espaço que lhes era concedido, Mia Couto vai conduzir-nos numa viagem pelos rostos da realidade moçambicana da altura, por aquela realidade que não nos surge nos postais e nas fotografias, nos jornais ou na televisão, ou ainda nos documentos oficiais do país. Seguem-se apreciações a algumas das crónicas presentes em “Cronicando”.

“Sangue da avó, manchando a alcatifa” Nesta crónica, Mia Couto apresenta-nos a avó Carolina, que se muda do interior de Moçambique, onde vivia em algumas dificuldade, para Maputo, para fugir da guerra. A avó Carolina, de idade avançada, vai viver com os filhos e com os netos, mas quando se dá conta das diferenças de estratos sociais e da miséria que atinge a maioria da população, decide voltar para o interior do país. Estes dados iniciais são-nos fornecidos logo nos primeiros parágrafos: “Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que por chuva. Além disso a avó estava bastante cheia de idade.” (COUTO, 2003:25)

Nesta crónica, assistimos à mudança de mentalidade, de maneira de ser e de estar de Moçambique, antes e depois da independência, tudo através da personagem da avó Carolina, a única que nos é nomeada e apresentada com detalhe; todas as outras personagens são quase pano de fundo, ou antes exemplos dessas mesmas mudanças que Mia Couto se retrata. De um país ligado às tradições, passamos a um povo desprendido das suas heranças, do seu passado, e transformado num mundo cosmopolita, consumidor, agarrado aos bens materiais e descurando os valores cívicos e sociais por que se deveriam pautar. 7 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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Observamos tudo isto pelos olhos e pela perspetiva da avó Carolina, que, ao mesmo tempo que sente um enorme orgulho dos seus descendentes a morar em Maputo, e a quem não pode apontar qualquer falta, se deixa levar por todos os luxos que encontra em casa, chegando à incompreensão que sente relativamente às disparidades sociais que encontra na rua. Esse conflito de sentimentos está presente em duas passagens da crónica: “A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da família. Alcatifas, mármores, carros, uísques: tudo abundava. Nos princípios, ela muito se orgulho daquelas riquezas. A Independência, afinal, não tinha sido para o povo viver bem? Mas, depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de onde vinham tantas vaidades? E por que razão os tesouros desta vida não se distribuem pelos todos?” (COUTO, 2003:25) “(...) Logo no passeio, ela viu os meninos esfarrapudos, a miséria mendigando. Quantas mãos se lhe estenderam, acreditando que ela fosse proprietária de fundos bolsos? A avó sentou na esquina, tirou os óculos, esfregou os olhos. Cahorava? Ou seriam apenas lágrimas faciais, por causa das indevidas lentes?” (COUTO, 2003:27)

Mia Couto vai-se servir da ironia, a dado momento, para contrapor duas realidades moçambicanas dispares: “(...) Na cidade, a família se recompôs sem demora. Compraram um novo apareho de televisão, até que o anterior já nem era compatível. De vez em quando, recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação. Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó.” (COUTO, 2003:28)

Aqui, enquanto a avó, confusa, defraudada, assombrada, até, se resigna, arruma as suas coisas e volta para o interior, a família de Maputo quase finge que nada se passou, como se a avó Carolina não passasse de uma velha demente, de uma estranha. Sem dúvida, o autor vem apelar ao sentido de dignidade, de justiça, de cidadania do leitor, fazendo-o pensar seriamente nestes “conflitos” sociais. Nesta crónica, Mia Couto serve-se de um estilo quase coloquial, por forma a quase nos fazer sentir presentes naquela história, como se nos tratássemos de espectadores para as cenas que nos vai relatar. Além disso, o autor vai recorrer a algumas figuras de estilo, sendo que a sua “preferida”, a nível geral, é a figura do neologismo 1, fazendo uso desta última, por exemplo, ao utilizar o termo “bonitou-se”, que deriva da palavra “bonito/a”, mas com o 1

Neologismo – palavra cujo significante ou cuja relação significante-significado era inexistente num estádio de língua anterior ao da sua atestação. (Dicionário Terminológico in http://dt.dgidc.min-edu.pt)

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significado de melhorar a aparência, já que o termo original (“bonito/a”), de onde advém esta ação, se relaciona com a beleza.

“O viajante clandestino” Neste conto, encontramos um menino, a personagem principal desta história, que está num aeroporto, com sua mãe, à espera para embarcar no avião. O enredo começa dentro do espaço do aeroporto e termina já dentro do avião, onde o menino se “reencontra” com um batráquio com que se cruzou no caminho para o interior da cabine, que a mãe não o deixou recolher, mas que foi apanhado por alguém que testemunhou a reprimenda da mãe e a tristeza da criança; e no final, damo-nos conta que esse “alguém” é, na verdade, o narrador da história, que assiste a tudo desde o princípio. Ao contrário do que acontece em quase todas as restantes crónicas que compõem esta obra de Mia Couto, esta inicia-se com uma fala da mãe da criança: “- Não é arvião. Diz-se: avião.” (COUTO, 2003:21)

Com esta intervenção, o autor começa a caracterizar-nos esta criança, referindose, ainda, às crianças em geral logo de seguida: “(…) A criança tem a vantagem de estrear o mundo, iniciando outro matrimónio entre as coisas e os nomes.” (COUTO, 2003:21)

Com estas duas passagens, Mia Couto vai-nos apresentar as crianças como seres quase “primários”, que experienciam o mundo tal e qual ele é, desprendidos de qualquer entrave ou regra social, por ainda não as terem assimilado. Neste conto, o autor vai contrapor dois universos diferentes daqueles que confronta em “Sangue da avó, manchando a alcatifa”: aqui, em vez de vermos as diferenças entre estratos sociais, vemos, antes, diferenças etárias. Através da personagem da mãe do menino, Mia Couto vai catalogar o mundo adulto em contraposição com a simplicidade, sinceridade e originalidade do mundo das crianças. Aqui, o mundo adulto é-nos apresentado como rígido, convencional e demasiado preocupado com a imagem que transparece para os outros num meio social, tudo isto personificado nas reprimendas e correções da mãe em relação à criança. Podemos usar a seguinte passagem para exemplificar exatamente isto: “A senhora estremeceu de horror. Olhou vergonhada, pedindo desculpas aos passantes. Então, começou a disputa. A senhora obrigava o braço do filho, os dois se teimavam. Venceu a secular maternidade.” (COUTO, 2003:23)

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O autor já não faz tanto uso de uma linguagem coloquial, tanto que só nos apercebemos da real participação do narrador na história quando esta está a pontos de terminar. No entanto, faz nova alteração de palavras: “Olhou vergonhada, pedindo desculpas aos passantes.” (COUTO, 2003:23)

Neste exemplo em concreto, verificamos a queda do prefixo “en-” na palavra “envergonhada”; trata-se de um uso propositado de uma palavra errada.

“O dia em que fuzilaram o guarda-redes da minha equipa” Este pequeno texto consiste num verdadeiro retrato daquilo que era o cenário de guerra vivido em Moçambique, quando reinava a insegurança, a discriminação racial e a opressão militar. Aqui, Mia Couto conta-nos a história de um grupo de crianças, pela perspetiva de um menino, que moravam na chamada Zona do Quartel, por se localizar nas proximidades de um quartel, e que costumavam divertir-se jogando matraquilhos na mesa pertencente ao Bar da zona. Os “jogadores” da mesa eram todos “caucasianos”, mas eis que, um dia, um dos bonecos surge pintado de preto, e, depois, num outro dia, acontece o mesmo com mais 3 bonecos; até aí, os soldados portugueses não se incomodaram com isso, brincando entre si e dando nomes de jogadores de futebol de clubes portugueses aos bonecos. No entanto, quando a mesa surge com todos os bonecos pintados de preto, os soldados já não encontram motivo de troça da situação, tendo despoletado um ataque de raiva num dos soldados, que atirou contra um dos bonecos, estilhaçando-o. Esse tiro é descrito de forma muito figurativa: “(…) O tiro soou e o pequeno boneco esvoou, salpicando estilhaços, mais súbitos que o sangue. Ainda hoje aquele tiro continua ressoando em minha vida, junto com esse outro grito que, por engano de um relâmpago, me pareceu sair do bonequinho alvejado.” (COUTO, 2003:47)

Este texto em concreto não é dos mais expressivos no que à linguagem diz respeito, mas podemos destacar alguns pormenores. Podemos referir que o autor faz uso de plurais que não existem na Língua Portuguesa, como é o caso de “os futebóis” (COUTO, 2003:45); no entanto, este termo é utilizado como referência às diversas partidas que as crianças disputavam. 10 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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Poderemos falar, também, de uma justaposição que se aproxima das características do neologismo, quando nos surge “as sombras femeameninas” (COUTO, 2003:45); aqui, temos uma justaposição das palavras fêmea e menina, que não é uma justaposição admitida na Língua Portuguesa, mas que o autor emprega como nova palavra (ou seja, neologismo) para fazer alusão às sombras das meninas que passavam pelos rapazes que estavam no muro exatamente para as ver passar. Mia Couto também faz uso da figura da personificação, atribuindo características tipicamente humanas a um objeto inanimado: “(…) A mesa do jogo dormia fora do bar, ao dispor do luar que tombava no pátio .” (COUTO, 2003:45)

Há também um neologismo claro, quando nos surge a expressão “os roubadores” (COUTO, 2003:45), em que o autor faz uma derivação do verbo “roubar”, em vez de utilizar o termo correto, que, neste caso, seria “ladrões”. Existe, igualmente, uma linguagem de cariz coloquial, que podemos exemplificar com o seguinte excerto: “Mas a brincadeira dos matraquilhos custava cada vez mais preço.” (COUTO, 2003:46)

Neste caso, deveria ser usada a expressão “era cada vez mais cara”, ao invés de “custava cada vez mais preço”; mas aqui, e tal como em inúmeros outros textos, julgo ser uma utilização propositadamente errada. No caso de “O dia em que fuzilaram o guarda-redes da minha equipa”, é impossível que, na qualidade de leitores, não deixemos discorrer a nossa mente acerca das temáticas sociopolíticas que Mia Couto nos apresenta neste texto; não podemos abstermo-nos de censurar as atitudes dos soldados, nem podemos deixar de nos compadecermos com a criança que nos relata a história, que, imaginando que seja de tenra idade, ficará para sempre marcada com estes cenários a que assiste, tanto que essa “marca” fica bem patente nas últimas linhas do texto, já anteriormente citadas: “Ainda hoje aquele tiro continua ressoando em minha vida, …” (COUTO, 2003:47)

Atrevo-me a ponderar que este texto quase constitua uma autobiografia de Mia Couto; basta olharmos para aquilo que foi e tem sido a sua vida para não nos ser difícil imaginá-lo a presenciar cenas como estas que nos são relatadas.

“A ascensão de João Bate-Certo”

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Neste conto, dos mais longos da obra, é-nos contada a história de João BateCerto, um homem que queria alcançar o céu através de uma escada que ele próprio construiria. Esse desejo de alcançar o céu está bem patente numa passagem no início do conto: “(…) Bate-Certo apostava: se havia rés-do-chão teria que haver o rés-do-céu.” (COUTO, 2003:29)

Este texto prima por uma grande noção do fantástico, através dos seus exageros nas situações que nos apresenta: com o número interminável de degraus da escada, há um exagero por parte de Mia Couto, que nos leva a uma situação de absurdo, do qual se vale para criticar a sociedade e a vida, e os seus desejos insaciáveis de alcançar o inalcançável. A construção da escada surge como forma de João Bate-Certo suprir a lacuna de não conseguir alterar o seu estatuto social, e mesmo durante a construção da escada, vai sendo caluniado e vão fazendo troça dele: “(…) Os outros se troçavam: gastasse o moço o tempo em mais proveitoso suor. E punham admirações: naquela altitude, ele não arriscava a vertigem dos despenhascos? O certo era ele tombar, estrumando-se em terras alheias.” (COUTO, 2003:30,31)

No que diz respeito à linguagem, há um aspeto a destacar: o uso da ironia logo à cabeça, com o título do conto. Muitas vezes, o nome dado a uma personagem serve para a caracterizar e até descrevê-la, mas, neste caso, essa caracterização e descrição parece um exagero; mas um exagero que serve para por o leitor a pensar e refletir acerca da história que é apresentada, pois, à medida que vamos lendo, chega-se à conclusão que todos pensavam que João Bate-Certo não era alguém que estivesse na posse de todas as suas faculdades. No final do conto, somos absorvidos pela imensa tristeza que se apodera de João Bate-Certo, quando este perde a sua única companhia – a sua mãe, que falece. Essa tristeza é descrita do seguinte modo: “(…) A mãe, pouco em pouco, foi sentindo a leveza de uma infância. Uma noite, ela prendeu o braço do filho e malbuciou: - Diga, meu filho: lá em cima, é bonito mais que aqui? Ele sorriu sem jeito, perdidas que lhe estavam as palavras. E, com os dedos feitos mais para ternurar madeiras, fechou os cansados olhos de sua mãe. Dizem essa noite: único sítio que choveu foi dentro da casa de João Bate-Certo.” (COUTO, 2003:32)

“Carta entreaberta do corrupto nacional” 12 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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Esta não é uma crónica que respeite os meios ditos normais de elaboração de uma crónica. Pelo contrário, esta começa com o autor a referir que não vai “cronicar”, mas sim transcrever uma carta anónima que terá recebido de um “corrupto nacional” – pelo menos, é o que o autor nos diz. No entanto, julgo tratar-se, no fundo, de uma crónica, mas no formato de carta. Trata-se, efetivamente, de uma carta, mas sem remetente ou destinatário definidos: a carta inicia-se com “Caros,”, mas não sabemos quem são esses “Caros”; e o autor da carta define-se como “um corrupto nacional”, mas não se identifica realmente. Esse mesmo autor vem lamentar a não valorização da corrupção nacional, questionando-se sobre o porquê de só a corrupção estrangeira fazer correr tinta nos jornais. Vai, também, reforçar estas questões levantando ainda outras, quase apelando ao patriotismo daqueles a quem se dirige: “Que complexo é este, meus irmãos? Que imagem estamos a dar nós ao mundo? Então só em Moçambique é que ninguém é apanhado com a mão na massa ou surpreendido com a boca na botija? O que pensarão, no estrangeiro? Certamente, que não dispomos nem de massa nem de botija. Ou pior: acreditarão que não passamos de manetas desbocados” (COUTO, 2003:176)

É impossível não notar traços de ironia ao longo da carta, ainda que ela tenha sido escrita por um corrupto; parecem evidentes os traços de ironia a descrever a atividade de um corrupto como uma “vocação”: “Porque, em Moçambique, um corrupto mesmo pode desmoralizar. Uma pessoa entrega-se à sua vocação, aplica golpes por baixo do ventre nacional, rouba aos pobres para dar aos ricos. Tudo isso para ser ignorado. (…) Mesmo eu já pensei em entregarme às autoridades. Porque se estou à espera de ser apanhado, corro o risco de nunca mais comparecer nas bocas da gente.” (COUTO, 2003:177)

Mia Couto, em concreto, intervém apenas antes e depois da carta, ao longo da crónica: no início, para dizer que não irá “cronicar”, por ter recebido uma carta que julgou estar “cheia de teor”; e vai rematar apelidando o autor da carta de candongueiro 2, e concluindo que “o mundo está às avessas”, mas nem por isso vai desistir de “encontrar a ostra dentro da pérola. Não podemos passar por este texto sem pensar na escolha do título. Ao utilizar “carta entreaberta”, Mia Couto quer revelar, mas aos poucos, lentamente, o que acontecia a nível político em Moçambique, sem “apontar o dedo” direta ou

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Candongueiro – impostor; lisonjeiro. (in: http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/candongueiro)

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concretamente. Para isso, Mia Couto faz-se valer da referida ironia, para “provocar” os leitores e fazê-los refletir sobre o assunto. Finda a leitura, julgo que poderemos assumir que a carta transcrita nesta crónica é dirigida a toda a nação moçambicana, e, enquanto especificamos o destinatário, podemos generalizar o remetente, que poderá ser um qualquer corrupto moçambicano. É impossível “simplesmente” ler esta crónica, tendo em conta que esta está construída e escrita de uma forma que nos obriga, automaticamente, a cada ironia, a cada sarcasmo, efetuar um juízo de valor tendo em conta os nossos valores próprios de justiça; e julgo que esse foi exatamente o objetivo a que Mia Couto se propôs quando a escreveu.

Conclusão Neste trabalho, foi possível ter uma primeira impressão daquilo que é a escrita de Mia Couto, que está coberta de particularidades. Se, por um lado, faz uso de um sem fim de figuras de estilo e processos de formação de palavras diferentes, enriquecendo a sua própria escrita, por outro faz muito uso de um registo coloquial de língua, por forma a aproximar mais o leitor e de facilitar ao mesmo a “visualização” das imagens que nos vai apresentando. Isto obriga a um certo exercício de contraposição daquilo que se encaixará melhor numa comunicação escrita e do que se enquadrará melhor numa comunicação oral. Para além disto, o seu modo de escrita “agita” a nossa consciência e os nossos valores, e quase nos obriga a pensar seriamente sobre todas as temáticas que nos vai apresentando, um pouco por todos os textos. 14 Mariana Ribeiro Gonçalves Sequeira | Ano Letivo 2011/2012

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A leitura desta obra permite, igualmente, que reflitamos acerca das variações que se sentem na Língua Portuguesa quando esta é falada/escrita em Portugal, em determinadas condições sociopolíticas, socioeconómicas e socioculturais, ou quando esta é utilizada em Moçambique, num ambiente anterior e posterior à independência do país, e com todos os condicionalismos que daí advêm.

Bibliografia/Websites visitados COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa:Editorial Caminho, 2003 www.teatro-dmaria.pt/Temporada/detalhe.aspx?idc=1024 www.wook.pt/authors/detail/id/2621 www.wook.pt/ficha/cronicando/a/id/58680 http://vertentes.realbb.net/t1143-cronicando-mia-couto http://projectole.blogspot.com/2008/11/livro-da-semana-cronicando-de-mia-couto.html http://lugardaspalavras.no.sapo.pt/prosa/mia_couto.htm http://dt.dgidc.min-edu.pt www.infopedia.pt

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