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Sumário

Sagas de Nova York, Antibes e Hollywood — Ruy Castro Bernice corta o cabelo O diamante do tamanho do Ritz Rags Martin-Jones e o pr-ncipe de G-les “A coisa sensata” O amor à noite O menino rico A escada de Jacob Majestade Na sua idade Os nadadores Dois equívocos Puro sangue A festa de casamento Uma viagem ao estrangeiro A menina do hotel Babilônia revisitada Uma página virada Um belo casal Domingo louco Mais que uma casa Financiando Finnegan A década perdida Último beijo Mocinho Bonito Sobre o autor

Sagas de Nova York, Antibes e Hollywood Ruy Castro

F. Scott Fitzgerald é universalmente famoso por dois romances: O grande Gatsby, de 1925, e Suave é a noite, de 1934. Nas últimas décadas passou a ser aclamado, com justiça, como o narrador por excelência da “era do jazz” — o longo feriado dos anos 20 do século passado, uma época de incrível prosperidade nos Estados Unidos, em que, mesmo assim, muitos jovens americanos preferiram atravessar o Atlântico e buscar a felicidade em Paris e no Sul da França. Sua obra é uma saga de boêmios e românticos, cínicos e ingênuos, vivendo porres que duravam meses, afogando ressacas em mais uísque e estrelando festas que não se sabia quando haviam começado, nem tinham dia marcado para terminar. E que, um dia, terminaram — em outubro de 1929, com o estouro da Bolsa de Nova York, que provocou quebradeiras sem conta, arrastou as finanças mundiais e obrigou aqueles jovens, já não tão jovens, a voltar e recomeçar do zero. Como Fitzgerald protagonizou muito do que escreveu, tende-se a confundi-lo com seus personagens. Mas este Fitzgerald não está propriamente nos romances. Se quiser conhecê-lo, você o encontrará nos cerca de 160 contos que ele publicou entre um romance e outro, em revistas de grande e pequena circulação, e quase todos depois reunidos em livros — como este, que contém 24 dos seus melhores. Eles compreendem todo o período ativo de Fitzgerald como escritor. Vão de “Bernice corta o cabelo”, de 1920, ainda sob o impacto de seu romance de estréia, Este lado do paraíso, que acabara de sair, a “Mocinho bonito”, escrito provavelmente em 1940, quando ele lutava para sobreviver como roteirista em Hollywood e se dedicava a um romance que não chegaria a terminar, O último magnata. Dispostos em ordem cronológica nesta edição, os cenários dos contos seguem a tortuosa migração de Scott (com Zelda, sua mulher) por Nova York, Paris, a Riviera, a Suíça, de volta a Nova York e, finalmente, a Califórnia (onde, segundo seu amigo Nathanael West, os gafanhotos “saíam ao sol para morrer”). Durante essas duas décadas, foram os contos que permitiram a Scott não apenas viver — alternadamente em alto estilo ou na mais dura pindaíba —, como também dedicar-se aos romances, os quais, exceto o primeiro, não foram sucessos de livraria. Quando ele morreu, aos 44 anos, de um enfarte, em 1940, Gatsby e Suave é a noite estavam encalhados nos depósitos da Scribner’s, sua editora em Nova York. O pouco que restava de sua reputação estava nos contos que publicara em revistas como a popular Saturday Evening Post e a requintada Esquire. Mas, para todos os efeitos literários, era como se F. Scott Fitzgerald tivesse morrido muito antes. Estava mais esquecido que a Lei Seca, a melindrosa e o charleston. Quando o mundo voltou a se lembrar de Fitzgerald, já nos anos 50, especulou-se que ele teria dissipado sua energia escrevendo contos, em vez de concentrar-se nos grandes romances que — finalmente se sabia — haviam definido toda uma época. Com isso, mais uma vez, uma parcela importante de sua obra foi relegada ao quartinho dos fundos, enquanto os leitores apinhavam os salões, os jardins e os grandes espaços reservados a seus romances. Bem, graças aos esforços de

muita gente, como sua filha Scottie, seu amigo, o crítico Edmund Wilson, seus editores, Charles Scribner II e III, e, principalmente, seu biógrafo e curador Matthew J. Bruccoli, esse preconceito também acabou. Agora que já se pode ter uma visão panorâmica da obra de Fitzgerald, ficou claro que ela merece ser apreciada em todas as metragens. Sim, ele era o mestre do romance: Gatsby é um dos maiores do século XX, e há muito que descobrir inclusive no quase obscuro Os belos e os malditos, de 1928. Mas suas narrativas curtas também são fascinantes porque nos trazem um Fitzgerald mais imediato, mais próximo de suas fontes diretas de inspiração. Algumas são até premonitórias das desgraças que iriam atingi-lo e à sua geração. Fitzgerald declarou várias vezes que investia nos contos o mesmo capricho ao escrever e a mesma carga emocional que despejava nos romances. É fácil verificar isso. A escrita é a mesma — rendilhada, repleta de imagens, abundante nos adjetivos, cortante nos diálogos. E é emocionante a construção de seus heróis. Basta acompanhar a trajetória de certos personagens masculinos e constatar como, no limitado espaço de um conto, Fitzgerald nos faz passar da hostilidade à admiração ou à compaixão — estou pensando, respectivamente, no Hamilton Rutherford de “A festa de casamento” e no Stuart Oldhorne de “Um belo casal”. Há sempre algo triste à espera desses personagens, mesmo que, no começo da história, eles pareçam deter todo o poder, o dinheiro ou a beleza do mundo, como o Anson Hunter de “O menino rico”, o Brevoort Blair de “Majestade” ou o Anthony Harker de “Puro sangue”. A beleza é um atributo importante para Fitzgerald: seus homens e mulheres sempre entram gloriosos em cena, até que a vida cave sulcos em seus rostos, por onde as lágrimas escorreram. É como se Fitzgerald, que também era um homem bonito (de uma beleza loura, de olhos muito claros, quase feminina), sentisse que havia um preço a pagar — ninguém podia ser bonito, rico e poderoso impunemente. E mesmo um diamante do tamanho do Ritz podia ser reduzido a pó. Outros personagens pungentes, entre os homens, são os bebuns: Bill McChesney em “Dois equívocos”, Nelson Kelly em “Viagem ao estrangeiro”, Dick Ragland em “Uma página virada”, Louis Trimble em “A década perdida” e, especialmente, Charlie Wales em “Babilônia revisitada”, este um dos seus quatro ou cinco maiores contos. Há muito de confessional nessas histórias, mas Fitzgerald é um dos raros ficcionistas vítimas do alcoolismo na vida real que nunca usaram a literatura para se negar. Ao contrário, ele não reserva nenhuma piedade para seus bebuns, embora (e felizmente) também não haja condenação. Em “Babilônia revisitada”, que é de 1931, podem-se seguir as pegadas do fictício Charlie pelas do próprio Scott — de volta a uma Paris que ele, sóbrio, não reconhece; vítima, ele mesmo, da morte da mulher (Zelda já estava internada no sanatório suíço); e sentindo-se responsável pela filha que lhe foi tomada (mesmo no auge de seu delírio alcoólico, Scott sempre tentou resguardar Scottie). Outras façanhas desses personagens foram tiradas diretamente de seu passado. Quando Charlie e Lorraine roubam um triciclo e zoam com ele pela madrugada parisiense, leia-se Scott e Zelda fazendo o mesmo e na mesma cidade; em “Domingo louco”, quando Joel Coles, ligeiramente ébrio, recita um monólogo sem graça na festa do magnata de Hollywood e se desmoraliza perante as pessoas que queria impressionar, é Scott fazendo o mesmo numa de suas primeiras tentativas de se firmar como roteirista de cinema. Mais fascinante ainda que os personagens masculinos é o universo de garotas corajosas, petulantes e independentes criado por Fitzgerald. De onde ele as tirou? De sua imaginação ou, como se suspeita, da jovem Zelda, que Scott teria usado como modelo? É difícil não se apaixonar pela Marjorie de “Bernice corta o cabelo”, a Emily de “Majestade”, a Annie de “Na sua idade”, a Fifi de “A menina do hotel” e a Bess de “Mais que uma casa”. São deusas adolescentes, com um coração de Julieta e um cérebro de Lady MacBeth, e ai dos homens que se apaixonam por elas — eles não têm a

menor chance. Não significa que elas vençam sempre — mas, quando perdem, é porque foram derrotadas por outra mulher. Em Fitzgerald, a própria noção de ganhar ou perder é relativa. Para ele, a equação se dá assim: por mais poderoso, ninguém é invencível; e, por mais derrotado, ninguém perde completamente o orgulho — pode até morrer, como em “Uma página virada” ou “O último beijo”, mas sem curvar a espinha. Pensando bem, todos esses contos são a história de uma perda: da beleza, do dinheiro, da dignidade e, talvez a pior, da esperança. Para Fitzgerald, no entanto, a única que parece imperdoável — e inevitável — é a da juventude. Seus jovens vivem a plenitude da pouca idade sem se dar conta e sem desconfiar que suas emoções nunca mais se repetirão. Ou nunca se repetirão da mesma maneira. “Não há o mesmo amor duas vezes”, ele escreveu em “A coisa sensível”. E, quando descobrem, é tarde demais. Talvez por isso muitas histórias mostrem alguém tentando recapturar uma emoção perdida ou indo procurá-la em alguma terra distante, que, não por acaso, é sempre a França — onde o próprio Fitzgerald tentou várias vezes recolher os cacos de sua existência americana. Nesses contos, ele é implacável no julgamento de seus compatriotas: um bando de rústicos, que só botavam banca no Velho Mundo com sua grossura por causa do poder econômico que tão recentemente podiam ostentar. Fitzgerald descreve as diversas colônias de americanos que foram fazer a Europa nos anos 20 beneficiando-se da inacreditável taxa do dólar: os arrivistas em busca de verniz social, os aventureiros, os inocentes que não tinham a menor razão para estar ali, as deslumbradas (como a fabulosa Rags Martin-Jones) e também os meros aspirantes a artistas e escritores — categoria em que ele não poderia ser incluído porque, ao viajar pela primeira vez, em 1923, já chegou a Paris com todas as pompas do escritor consagrado. E nem isso impediu gafes históricas, como a de ele e Zelda dando banho em sua filhinha Scottie no bidê do apartamento do hotel George v, pensando que era uma “banheira infantil”. Ou de Scott fazendo loucuras de novorico, como no dia em que, em Antibes, de porre, tentou chocar sua grã-finíssima anfitriã Sara Murphy enfiando na boca um monte de notas imundas de 1 franco (talvez a cédula de valor mais baixo na Europa) e mastigando-as. Não podia haver escritor mais moderno que Fitzgerald. Mas, lembre-se, é um “moderno” de 1920, em que aviões, elevadores, letreiros a neon e até ventiladores elétricos ainda eram tidos como novidade. As moças cortavam o cabelo à la garçonne, beijavam os namorados no banco traseiro das baratas e dançavam ao som de bárbaros “ritmos africanos” — algo associado à palavra “jazz”, que, na época, não tinha o significado que ganhou depois (era muito mais, não se limitava à música, e implicava todo um estilo de vida). Mesmo assim, até essas moças mais intrépidas tinham medo de atender ao telefone em caso de chuva forte. E os rapazes, por mais contemporâneos delas que fossem, usavam chapéu e bengala, empoavam de talco o rosto e jamais se deixariam flagrar em mangas de camisa. Pior: tinham de regular-se por certos códigos de comportamento que só tornavam mais abrasadoras as suas paixões. O próprio mundo ainda pedia para ser descoberto. A Riviera ainda não fora de todo desbravada, e só uns poucos iam a Cannes e Cap d’Antibes no verão; os resorts na Suíça destinavam-se aos tuberculosos, aos loucos e aos com “esgotamento nervoso”; uma viagem de Nova York a Los Angeles levava quatro ou cinco dias de trem. E, a provar o otimismo dos anos 20, há várias referências à Guerra — assim mesmo, em caixa-alta, naturalmente significando a Primeira Guerra, porque não se esperava que houvesse uma Segunda. Scott Fitzgerald foi, de certa forma, um produto dessa guerra (a primeira). O alcoolismo, a loucura de Zelda e seu coração o destruíram às vésperas da guerra seguinte. E, quando a poeira baixou de novo, ele ressurgiu. Só que para sempre.

P.S.: Quer saber o meu conto favorito? É “O amor à noite”.

Bernice corta o cabelo

Aos sábados, logo depois de escurecer, quem subisse ao primeiro montículo do campo de golfe veria as janelas do clube como a extensão amarela de um oceano negro e ondulado. As ondas desse oceano, por assim dizer, eram as cabeças de muitos caddies curiosos, de alguns motoristas mais espertos, da irmã surda do golfista profissional — e, de vez em quando, havia outras ondas tímidas e dispersas que poderiam ter dado à praia se quisessem. Era a turma da galeria. O balcão ficava no lado de dentro. Consistia em um círculo de cadeiras de vime alinhadas às paredes do salão de festas do clube. Nos bailes de sábado à noite ele era predominantemente feminino: uma grande babel de senhoras de meia-idade com seus olhos agudos e corações gelados escondidos atrás de lorgnettes e bustos opulentos. A principal função do balcão era a crítica. Às vezes, demonstrava alguma relutante admiração, nunca aprovação — porque é notório entre as mulheres acima de trinta e cinco anos que, quando os jovens se entregam à dança no verão, é sempre com as piores intenções e que, se não forem bombardeados com olhares pétreos, pares extraviados dançarão seus estranhos interlúdios bárbaros em cantos reclusos, e as moças mais soltas e perigosas às vezes serão beijadas no interior das limusines das confiadas matronas do balcão. Mas, no fim das contas, essa agremiação crítica não fica suficientemente perto do palco para poder examinar o rosto dos atores e capturar as sutilezas da gesticulação. Pode apenas franzir o cenho e espichar o pescoço, fazer perguntas e tirar conclusões a partir de seu conjunto de postulados, um dos quais determina que a vida de todo rapaz de boa situação financeira se parece com a de uma perdiz numa caçada. As mulheres do balcão não têm como penetrar no universo dramático, incerto e quase cruel da adolescência. Não. Ali, os camarotes, frisas, orquestra e coro estão representados pela mistura de rostos e vozes que oscilam ao dolente ritmo africano da orquestra dançante de Dyer. De Otis Ormonde, dezesseis anos de idade e outros dois a fazer no colégio Hill, a G. Reece Stoddard, sobre cuja escrivaninha em casa pende um diploma de direito por Harvard; e da pequena Madeleine Hogue, que ainda acha estranho e desconfortável andar com o cabelo empilhado no alto da cabeça, a Bessie MacRae, que por um período um pouco exagerado — mais de dez anos — tem sido a moça mais animada dos bailes, essa mistura é não apenas o centro da ação, como envolve as únicas pessoas capazes de ter uma visão clara de tudo o que acontece. Com um floreio e um impacto, a música pára. Os casais trocam sorrisos fáceis e artificiais, cantarolam “la-ri-da-da dum-dum”, e em seguida a balbúrdia de vozes jovens e femininas se sobrepõe ao espocar das palmas. Alguns rapazes desacompanhados, surpreendidos no meio do salão justamente quando iam tirar alguma garota para dançar, recuam desapontados para junto das paredes, porque aquele não era como os furiosos bailes de fim de ano, era apenas um morno e agradável arrasta-pé de verão, em que até os jovens casais se dedicavam a velhas valsas e foxtrotes, para diversão complacente de seus irmãos e irmãs mais moços.

Warren McIntyre, que esporadicamente freqüentava Yale e que era um dos pobres rapazes desacompanhados, procurou um cigarro no bolso do paletó e saiu para a varanda larga e iluminada por lanternas onde casais se espalhavam pelas mesas, enchendo a noite com palavras vagas e risos indistintos. Cumprimentou de longe um ou outro dos menos absortos e, à medida que passava por um ou outro casal, um fragmento semi-esquecido de alguma história brincava em sua cabeça, pois aquela não era uma cidade grande e todo mundo sabia tudo do passado de cada um. Ali estavam, por exemplo, Jim Strain e Ethel Demorest, noivos havia três anos. Todos sabiam que assim que Jim conseguisse ficar num emprego por mais de dois meses ela se casaria com ele. E, no entanto, os dois pareciam mortos de tédio e Ethel às vezes olhava para Jim como se perguntando por que investia seu afeto em alguém tão instável. Warren tinha dezenove anos e uma certa pena de seus amigos que não tinham ido estudar no Leste. Mas, a exemplo da maioria dos rapazes, gabava-se tremendamente das moças de sua cidade quando estava longe dela. Havia Genevieve Ormonde, que não perdia baile, festa ou jogo de futebol em Princeton, Yale, Williams e Cornell; havia Roberta Dillon, com seus olhos pretos, e que era tão famosa em sua geração quanto Hiram Johnson ou Ty Cobb; e, naturalmente, havia Marjorie Harvey, que, além de ter um rostinho de fada e uma língua atordoante, ficara justamente famosa por ter feito cinco estrelas seguidas num baile em New Haven. Warren, que crescera na casa em frente à de Marjorie, havia muito era “louco por ela”. Às vezes Marjorie parecia corresponder a seu sentimento com uma ligeira gratidão, mas já o submetera a seu teste infalível e lhe declarara solenemente que não o amava. Seu teste consistia no fato de que, quando estava longe dele, esquecia-o e tinha casos com outros rapazes. Warren achava isso uma pena, especialmente porque Marjorie passara o verão fazendo pequenas viagens e, nos dois ou três primeiros dias depois que ela voltava, ele via grandes pilhas de cartas sobre a mesa da sala da família Harvey, todas endereçadas a ela em várias caligrafias masculinas. Para piorar as coisas, durante todo o mês de agosto Marjorie recebia a visita de sua prima Bernice, de Eau Claire, e parecia impossível ficar a sós com ela. Para que isso acontecesse, era preciso laçar alguém que fizesse companhia a Bernice. E, à medida que agosto definhava, isso ficava cada vez mais difícil. Por mais que Warren adorasse Marjorie, tinha de admitir que a prima Bernice era meio chata. Bonita, com cabelos pretos e faces rosadas, mas totalmente sem graça nas festas. Todos os sábados à noite ele cumpria o doloroso dever de dançar com ela para fazer um agrado a Marjorie e não conseguia sentir nada além de tédio em sua companhia. “Warren”, uma voz suave intrometeu-se em seus pensamentos e ao virar-se ele viu Marjorie, eufórica e radiante como sempre. Ela pôs a mão no ombro dele e um halo se instalou imperceptivelmente ao redor dele. “Warren”, ela sussurrou, “me faça uma gentileza, dance com Bernice. Ela está pendurada naquele garoto Otis Ormonde há quase uma hora.” O halo ao redor de Warren se desfez. “Hein? Ah, claro”, respondeu, sem entusiasmo. “Você não se importa, não é? Fique tranqüilo, não vou deixá-la se pendurar em você.” “Tá bom.” Marjorie sorriu — aquele sorriso que valia por um lindo obrigada. “Você é um anjo. Fico devendo essa para você.” Com um suspiro, o anjo examinou a varanda, mas Bernice e Otis não estavam à vista. Ele voltou para o salão e, lá dentro, em frente ao toalete feminino, encontrou Otis no centro de um grupo de rapazes que morriam de rir. Otis brandia uma tora de madeira que apanhara do chão e discursava

com veemência. “Bernice foi arrumar o cabelo”, anunciou, exasperado. “Estou esperando para dançar mais uma hora com ela.” Mais risos. “Por que um de vocês não tira a Bernice para dançar? Ela gosta de variar.” “Ora, Otis”, sugeriu um amigo, “logo agora que você está começando a se acostumar com ela...” “Para que esse pedaço de pau, Otis?”, perguntou Warren, sorrindo. “Ah, isto? É um porrete. Quando ela sair, vou dar com ele na cabeça dela para ela ter de voltar lá para dentro.” Warren riu tanto que desmoronou no sofá. “Fique tranqüilo, Otis”, conseguiu finalmente articular. “Vou render você desta vez.” Otis simulou um súbito desmaio e passou o porrete para Warren. “Para o caso de você precisar, meu chapa”, disse, com ar cafajeste. Por mais que uma moça seja bonita ou brilhante, a fama de não ser tirada para dançar dificulta sua posição num baile. Pode até ser que os rapazes prefiram sua companhia à das libélulas com quem dançam dez vezes numa noite, mas a juventude, nessa geração movida a jazz, é inquieta por temperamento, e a idéia de dançar mais de um foxtrote com a mesma moça é desagradável, para não dizer odiosa. Quando isso acontece, ainda mais contando os intervalos, a moça pode ter certeza de que o rapaz, uma vez dispensado, jamais pisará em seus dedinhos outra vez. Warren dançou uma música inteira com Bernice e, finalmente, grato pelo intervalo, dirigiu-se com ela para uma mesa na varanda. Houve um momento de silêncio, durante o qual ela fez coisas não muito impressionantes com seu leque. “É mais quente aqui que em Eau Claire”, disse Bernice. Warren sufocou um suspiro e concordou. É, devia ser. Ele se perguntou se ela era assim sem assunto porque ninguém lhe dava atenção, ou se ninguém lhe dava atenção porque ela era assim sem assunto. “Você ainda vai ficar muito tempo por aqui?”, ele indagou, e logo enrubesceu. Ela podia desconfiar das razões que o levavam a fazer a pergunta. “Mais uma semana”, Bernice respondeu, e olhou para ele como se fosse investir contra sua próxima observação assim que ela saísse dos lábios dele. Warren remexeu-se na cadeira. Depois, com um súbito impulso caridoso, decidiu tentar com ela sua velha jogada. Virou-se e olhou-a bem nos olhos. “Sabia que você tem uma boca tremendamente beijável?” Era o que ele às vezes dizia para garotas nas festas de formatura quando os dois conversavam em semipenumbras como aquela. Bernice deu um pulo. Ficou vermelha e se atrapalhou toda com o leque. “Atrevido!”, a palavra escapou antes que ela se desse conta, o que a fez morder o lábio. Era tarde para levar a coisa na brincadeira e, para remediar, ofereceu a ele um sorriso confuso. Warren ficou aborrecido. Embora não estivesse acostumado a ter sua observação levada a sério, sabia que ela costumava provocar uma risada ou uma série de brincadeiras sentimentais. E detestava ser chamado de atrevido, a não ser que fosse em tom de brincadeira. Seu impulso caridoso morreu e ele mudou de assunto. “Jim Strain e Ethel Demorest não estão dançando, como sempre”, comentou. Isso fazia mais o estilo de Bernice, mas um fugaz arrependimento misturou-se com seu alívio quando o assunto mudou. Os homens não falavam com ela a respeito de bocas beijáveis, embora ela soubesse que eles conversavam sobre isso com as outras moças.

“Ah, sim”, ela disse, rindo. “Ouvi dizer que dali não sai nada há anos, porque Jim não tem um tostão furado. Que coisa mais sem graça, não?” O desprazer de Warren aumentou. Jim Strain era amigo íntimo de seu irmão, e Warren considerava falta de educação desprezar alguém por não ter dinheiro. Mas Bernice não tinha a intenção de desprezar ninguém. Estava apenas nervosa.

II. Quando Marjorie e Bernice voltaram para casa, pouco depois da meia-noite, despediram-se no alto da escada. Embora primas, não eram íntimas. Na verdade, Marjorie não tinha amigas íntimas — para ela, todas as moças eram burras. Bernice, ao contrário, em toda aquela visita planejada por seus pais, sonhara com as trocas de confidências cheias de lágrimas e risadas que considerava indispensáveis nas relações entre mulheres. Mas, em todos os aspectos, achara Marjorie fria, e achava tão difícil conversar com ela quanto conversar com os homens. Marjorie nunca dava risada, nunca ficava com medo, raramente se envergonhava de alguma coisa e na verdade tinha muito pouco das qualidades que Bernice considerava apropriada e abençoadamente femininas. Ao escovar os dentes, Bernice perguntou-se pela centésima vez por que nunca chamava nenhuma atenção quando estava longe de casa. Nunca lhe ocorria que entre os fatores de seu sucesso na sociedade de Eau Claire estivesse o fato de que sua família era uma das mais ricas da cidade, que sua mãe dava festas com enorme freqüência, que promovia pequenos jantares para a filha antes dos bailes e que comprara um carro para ela circular pela região. Como a maioria das moças, Bernice fora criada tomando o leite morno da literatura de Annie Fellows Johnston e lendo romances em que a mulher é amada por certas misteriosas qualidades femininas, sempre mencionadas mas jamais exibidas. Bernice sentia uma dor vaga ao constatar que, naquele momento, não era das mais disputadas da cidade. Não sabia que, não fosse por Marjorie, teria dançado a noite inteira com um único rapaz. Mas sabia que, mesmo em Eau Claire, outras garotas com menos posição social e beleza estavam muito mais na mira dos rapazes. Atribuía isso a alguma coisa sutilmente sem-vergonha de parte daquelas moças. Essa constatação nunca a preocupara e, se tivesse, sua mãe teria lhe assegurado que as tais moças eram vulgares e que os homens só respeitavam moças como Bernice. Apagou a luz do banheiro e, de repente, resolveu entrar para conversar um pouco com sua tia Josephine, que ainda estava com a luz do quarto acesa. Seus suaves chinelinhos deslizaram em silêncio pelo saguão acarpetado, mas, ao ouvir vozes dentro do quarto, estacou diante da porta entreaberta. Ouviu seu nome ser pronunciado e, sem nenhuma intenção definida de ouvir a conversa, apenas deixou-se ficar ali — e o fio da conversa lá dentro penetrou agudamente em sua consciência, como se sua consciência estivesse sendo perfurada por uma agulha. “Ela é o fim!” Era a voz de Marjorie. “Ah, eu sei o que você vai dizer! Tanta gente já lhe disse como ela é bonita, boazinha, que sabe até cozinhar! E daí? Ela é chata. Os rapazes não gostam dela.” “E o que ela está perdendo com isso?”, a sra. Harvey parecia impaciente. “Tudo. É a coisa mais importante, quando se tem dezoito anos”, respondeu Marjorie com ênfase. “Fiz o possível. Fui legal e obriguei os rapazes a dançar com ela, mas eles não agüentam tanta chatice. Quando penso naquela cor de pele deslumbrante desperdiçada numa bobalhona e no que a Martha Carey poderia fazer com ela, ah!” “Já não existem rapazes gentis.” A voz da sra. Harvey deixava implícito que os tempos modernos lhe eram incompreensíveis. Quando ela era moça, todas as jovens de boa família se divertiam muito.

“Bem”, disse Marjorie, “não dá para promover por muito tempo um caso perdido daqueles, hoje em dia é cada menina por si mesma. Já tentei até dar umas pistas a ela sobre como se vestir e outras coisas, e ela ficou furiosa — me lançou cada olhar! Ela tem sensibilidade suficiente para entender que não está se dando bem, mas aposto que se consola com a idéia de que é um poço de virtudes e eu uma moça fácil e perdida que vai acabar mal. Todas as moças encalhadas pensam assim. É aquela história das uvas verdes! Sarah Hopkins fala de Genevieve, de Roberta e de mim como se a gente fosse umas vadias! Aposto que ela daria dez anos da vida dela e toda aquela educação européia para ser uma vadia e ter três ou quatro homens apaixonados por ela, e para que sempre que um rapaz viesse convidá-la para dançar, logo aparecesse outro querendo que ela trocasse de parceiro.” “Tenho a impressão”, disse a sra. Harvey, com pouca convicção, “de que você deveria ser capaz de fazer alguma coisa para ajudar Bernice. Sei que ela não é muito brilhante.” Marjorie grunhiu. “Brilhante? Meu Deus! Nunca a ouvi dizer nada para um rapaz que não fosse que está calor, ou que o salão está muito cheio, ou que vai estudar em Nova York no ano que vem. Às vezes ela pergunta que carro ele tem e diz o carro que ela tem. É emocionante!” Houve um curto silêncio, e a sra. Harvey retomou seu refrão. “Só sei que outras meninas muito menos bonitas e meigas atraem os rapazes. Martha Carey, por exemplo, é grosseira e fala alto e a mãe é de classe baixa. Roberta Dillon está tão magra este ano que parece que veio do Arizona. Mesmo assim, está se acabando de tanto dançar.” “Mas, mamãe”, argumentou Marjorie, impaciente, “Martha é alegre, tremendamente engraçada e esperta, e Roberta dança maravilhosamente. Todos a disputam há séculos!” A sra. Harvey bocejou. “Acho que é o sangue indígena de Bernice”, continuou Marjorie. “Talvez ela esteja regredindo às origens. As mulheres indígenas passam o tempo todo sentadas e nunca dizem nada.” “Vá para a cama, bobinha”, riu a sra. Harvey. “Eu nunca teria contado isso a você se soubesse que você se lembraria. E acho que quase todas as suas idéias são totalmente bobas”, terminou, já sonolenta. Houve outro silêncio, em que Marjorie cogitou sobre se valia a pena acabar de convencer a mãe. Pessoas com mais de quarenta anos dificilmente se convencem de alguma coisa por muito tempo. Aos dezoito anos, nossas convicções são colinas de onde contemplamos o horizonte; aos quarenta e cinco, são cavernas em que nos escondemos. Dando os trâmites por encerrados, Marjorie disse boa-noite. Ao sair do quarto, o saguão estava vazio.

III. Enquanto Marjorie tomava seu café-da-manhã, tarde no dia seguinte, Bernice entrou na sala, deulhe um bom-dia bem formal, sentou-se na frente dela olhando-a fixamente e umedeceu de leve os lábios. “O que foi?”, perguntou Marjorie, intrigada. Bernice fez uma pausa antes de atirar a granada. “Ouvi o que você disse para sua mãe ontem à noite.” Marjorie levou um susto, mas praticamente não se alterou. Somente sua pele ficou um pouquinho mais corada. Quando falou, foi com voz serena. “Onde você estava?” “No saguão. Não tive intenção de ouvir — no começo.”

Depois de um involuntário olhar de desdém, Marjorie baixou os olhos e concentrou-se em equilibrar um floco de aveia no dedo. “Acho melhor eu voltar para Eau Claire, estou dando muito trabalho”, disse Bernice. Seu lábio inferior tremia violentamente, e ela continuou, em tom amuado: “Tentei ser legal, mas fui ignorada e depois insultada. Nenhuma das minhas visitas em Eau Claire recebeu esse tratamento”. Marjorie continuou em silêncio. “Sei que sou um estorvo. Um fardo para você. Seus amigos não gostam de mim.” Fez uma pausa e se lembrou de outra de suas queixas. “Claro que fiquei furiosa com você na semana passada, quando você tentou insinuar que aquele vestido não ficava bem em mim. Você acha que eu não sei me vestir?” “Acho”, murmurou Marjorie, numa voz quase inaudível. “O quê?” “Não tentei insinuar nada”, disse Marjorie sem rodeios. “Se bem me lembro, eu disse que era melhor usar o vestido certo três vezes seguidas do que alterná-lo com dois vestidos horrorosos.” “E você acha isso uma coisa amável para se dizer?” “Eu não estava tentando ser amável.” E depois de uma pausa: “Quando você está pensando ir embora?”. Bernice aspirou o ar com força: “Ah!” Era quase um choramingo. Marjorie olhou para ela surpresa. “Mas você não disse que ia embora?” “Disse, mas...” “Ah, era blefe!” As duas se olharam por um momento. Brumas passavam diante dos olhos de Bernice, ao passo que o rosto de Marjorie ostentava aquela expressão dura que ela usava quando universitários ligeiramente bebuns a beijavam. “Então era blefe”, repetiu, como se esperasse por aquilo. Bernice admitiu que sim, numa explosão de lágrimas. Os olhos de Marjorie expressavam tédio. “Você é minha prima”, soluçou Bernice. “Estou visitando vo-você. Vim para ficar um mês e, se eu v-v-voltar, minha mãe v-v-vai querer saber...” Marjorie esperou até que a chuva de palavras gaguejadas se reduzisse a pequenas fungadelas. “Eu lhe dou minha mesada”, disse friamente, “e você pode passar esta última semana em qualquer lugar que quiser. Há um hotelzinho muito bom...” Os soluços de Bernice subiram na escala como uma flauta e, levantando-se de supetão, ela saiu da sala. Uma hora depois, enquanto Marjorie estava na biblioteca absorta na redação de uma daquelas cartas lindamente neutras que só uma garota consegue escrever, Bernice reapareceu, de olhos muito vermelhos mas determinada e calma. Não dirigiu o olhar a Marjorie, mas pegou um livro ao acaso numa prateleira e sentou-se como se tivesse a intenção de ler. Marjorie parecia concentrada em sua carta e continuou a escrever. Quando o relógio bateu doze horas, Bernice fechou o livro com estrépito. “Acho melhor eu ir pegar meu bilhete na estação.” Não era aquele o começo do discurso que ensaiara no quarto, mas, como Marjorie não estava reagindo como planejado — não estava implorando que ela fosse razoável nem dizendo que tudo fora um engano —, aquele fora o melhor início que conseguira improvisar.

“Espere eu acabar esta carta”, disse Marjorie sem levantar os olhos. “Quero despachá-la em seguida.” Passado mais um minuto, durante o qual sua caneta raspou incansavelmente o papel, Marjorie se virou e relaxou com um ar de “às suas ordens”. E, de novo, Bernice teve de falar. “Você quer que eu vá embora?” “Bem”, disse Marjorie, pensativa, “acho que, se você não está se divertindo, deveria ir. É besteira ficar sofrendo.” “Você não acha que um pouco de compaixão...” “Ah, por favor, não me venha com citações de Mulherzinhas!”, gritou Marjorie, irritada. “Está fora de moda.” “Você acha?” “Pelo amor de Deus! Que garota moderna poderia viver como aquelas patetas?” “Elas foram o modelo de nossas mães.” Marjorie riu. “É, foram — uma ova! Além disso, nossas mães podiam se sentir bem daquele jeito, mas pouco sabem sobre os problemas das filhas.” Bernice se empertigou. “Por favor, não fale de minha mãe.” Marjorie riu de novo. “Não me lembro de tê-la mencionado.” Bernice sentiu que estava sendo desviada de seu assunto. “Você acha que me tratou bem?” “Fiz o possível. Você é um osso duro de roer.” As pálpebras de Bernice se avermelharam. “Considero você dura e egoísta, e sem certas características femininas.” “Ai, meu Deus!”, disse Marjorie, em desespero. “Sua burrinha! Mulheres como você é que são responsáveis por esses casamentos enjoados e sem-graça; todas aquelas insuficiências horrorosas que passam por características femininas. Que choque deve ser, para um homem de imaginação, descobrir que a linda trouxa de roupa com quem se casou e que cobriu de ideais não passa de uma montanha de afetações, uma mulher fraca, covarde e choramingona!” A boca de Bernice estava semiaberta. “A mulher feminina!”, prosseguiu Marjorie. “Todos os seus primeiros aninhos são dedicados a choramingar e a criticar moças como eu, que realmente se divertem.” À medida que o tom de voz de Marjorie subia, o queixo de Bernice caía. “Uma garota feia ainda tem algum motivo para choramingar. Se eu fosse irrecuperavelmente feia, nunca teria perdoado meus pais por me trazerem ao mundo. Mas você está começando a vida sem nenhuma desvantagem...” Marjorie brandia o delicado punho. “Se está esperando que eu chore com você, vai ficar desapontada. Se quiser ficar, fique; se quiser ir, vá, por mim, tanto faz.” E, recolhendo suas cartas, retirou-se do aposento. Bernice alegou dor de cabeça e não almoçou com a família. Tinha um encontro com um rapaz naquela tarde, mas, como a dor de cabeça não passava, Marjorie desculpou-se por ela, e não se pode dizer que o rapaz tenha ficado deprimido por isso. Quando voltou para casa à noitinha, porém, Marjorie encontrou Bernice esperando por ela em seu quarto com uma expressão estranhamente decidida. A moça não perdeu tempo com preliminares.

“Cheguei à conclusão de que talvez você tenha razão sobre as coisas, talvez não. Mas, se me disser por que os seus amigos não... não estão interessados em mim, posso tentar fazer o que você quer que eu faça.” Marjorie estava na frente do espelho, soltando o cabelo. “Você está falando sério?” “Estou.” “Para valer? Vai fazer exatamente o que eu disser?” “Bem, eu...” “Bem nada! Vai fazer exatamente o que eu mandar?” “Se forem coisas sensatas.” “Aí é que está — não são! Você não é um caso para coisas sensatas.” “Você vai me obrigar... vai recomendar...” “É, tudo. Se eu mandar você aprender a lutar boxe, você vai ter que aprender. Escreva para sua mãe e avise que vai ficar mais duas semanas.” “Se você me disser...” “Está bem. Posso lhe dar alguns exemplos agora mesmo. Primeiro, você é toda esquisita. Por quê? Porque você nunca está segura sobre sua aparência. Quando uma menina sabe que está bem vestida e penteada, já pode esquecer esses tópicos. É o chamado charme. Quanto mais partes de si mesma você esquece, mais charmosa fica.” “Não estou bem como sou?” “Não. Por exemplo: você não cuida de suas sobrancelhas. Elas são pretas e brilhantes, mas desgrenhadas, um horror. Seriam bonitas se você cuidasse delas por um décimo do tempo que gasta fazendo nada. Você vai escová-las, para que elas cresçam alinhadas.” Bernice ergueu as sobrancelhas em questão. “Você está querendo dizer que homem repara em sobrancelha?” “Claro, subconscientemente. E, quando você voltar para a sua cidade, precisa mandar alinhar um pouco esses dentes. Quase não se nota, mas...” “E eu que achava”, interrompeu Bernice, espantada, “que você sentia desprezo por esse tipo de detalhe feminino e delicado!” “Detesto mentes delicadas”, respondeu Marjorie. “Mas uma moça precisa ser pessoalmente delicada. Se for deslumbrante, pode falar da Rússia, de pingue-pongue, da Liga das Nações e do que quiser, e todo mundo vai achar ótimo.” “O que mais?” “Ora, estou só começando! E tem o seu jeito de dançar.” “Não danço bem?” “Não. Você se escora no homem; sim, é isso mesmo — ainda que muito de leve. Reparei quando dançamos juntas, ontem. E fica com o corpo reto, não se inclina um pouquinho. Provavelmente alguma velhota um dia lhe disse que era mais digno dançar nessa posição. Mas, a não ser que a mulher seja pequenininha, isso dificulta para o homem — e, no fim, ele é que importa.” “Continue!” O cérebro de Bernice estava girando a mil. “Bom, você precisa aprender a ser agradável com os homens mais tímidos. Você dá a impressão de se sentir insultada se não estiver dançando com os mais procurados. Ora, Bernice, sou tirada para dançar a todo instante — e por quem? Por aqueles tristinhos. Nenhuma moça pode se dar ao luxo de desprezá-los. Eles fazem parte da turma. Os rapazes tímidos são a melhor prática que uma mulher pode ter para conversar. Os mais desajeitados são também os melhores para se aprender a dançar. Se

você consegue segui-los e mesmo assim parecer leve, vai conseguir acompanhar até um tanque sobre um arranha-céu de arame farpado.” Bernice suspirou profundamente, mas Marjorie ainda não tinha acabado. “Se você vai a uma festa e consegue agradar a uns três desses rapazes tristinhos que dançaram com você, se consegue conversar tão bem com eles que eles até esquecem que já estão com você há uma hora, já é uma grande coisa. Na primeira oportunidade eles vão voltar, e pouco a pouco vão ser tantos rapazes tristinhos dançando com você que os mais bonitos vão perceber que não correm o risco de você grudar neles, e vão querer tirar você para dançar.” “Acho que estou começando a entender”, concordou Bernice, falando baixinho. “E, para terminar”, disse Marjorie, “a confiança e o encanto virão naturalmente. Um dia você vai acordar e saber que chegou lá, e os homens vão saber também.” Bernice se levantou. “Foi muito gentil de sua parte. Ninguém me falou até hoje desse jeito, e estou meio atarantada.” Marjorie não respondeu, mas contemplou demoradamente sua própria imagem no espelho. “Você é um amor por me ajudar”, continuou Bernice. Marjorie continuou sem responder, e Bernice pensou que estava sendo grata demais. “Sei que você não gosta de sentimentalismos”, disse timidamente. Marjorie virou-se depressa para ela. “Não, eu não estava pensando nisso. Estava só me perguntando se não deveríamos cortar bem curto o seu cabelo.” Bernice caiu de costas, na cama.

IV. Na noite da quarta-feira seguinte houve um jantar dançante no clube. Quando os convidados entraram, Bernice localizou seu lugar à mesa com um ligeiro sentimento de irritação. Embora à sua direita se sentasse G. Reece Stoddard, um dos jovens mais distintos e desejáveis da cidade, o importantíssimo lado esquerdo continha apenas Charley Paulson. A Charley faltavam altura, beleza e argúcia social, e, em sua nova percepção, Bernice chegou à conclusão de que a única qualificação do rapaz como seu parceiro era a de nunca ter ficado encalhado com ela. Mas esse sentimento de irritação se desfez com o último prato de sopa, e as instruções específicas de Marjorie voltaram a sua mente. Engolindo o orgulho, virou-se para Charley Paulson e mergulhou de cabeça. “Acha que eu deveria cortar o cabelo curtinho, senhor Paulson?” Charley olhou para ela surpreso. “Por quê?” “Porque estou considerando essa idéia. É um jeito fácil e infalível de chamar a atenção.” Charley sorriu com simpatia. Não tinha como saber que aquilo fora ensaiado. Respondeu que não entendia muito de cortes de cabelo. Mas Bernice estava lá para ensiná-lo. “Quero me tornar uma vampira da sociedade, entende?”, anunciou friamente, acrescentando que cabelo cortado bem curto era o prelúdio necessário. Disse também que estava pedindo a opinião dele porque tinha ouvido dizer que ele era muito crítico a respeito das mulheres. Charley, que sabia tanto sobre psicologia feminina quanto sobre estados mentais de budistas contemplativos, sentiu-se vagamente lisonjeado. “Portanto decidi”, continuou ela, subindo de leve o tom de voz, “que no começo da semana que vem vou dar um pulinho à barbearia do hotel Sevier, vou me sentar na primeira cadeira e mandar cortar meu cabelo.” Fez uma pausa, percebendo que as pessoas em volta tinham parado de conversar

para escutar o que ela dizia. Mas, depois de um segundo de confusão, as instruções de Marjorie prevaleceram e ela concluiu sua fala para o público em geral. “Claro que vou cobrar ingresso, mas, se todos vocês comparecerem para me encorajar, prometo distribuir convites para as cadeiras da primeira fila.” Houve um rumor de risos de aprovação e, aproveitando-se dele, G. Reece Stoddard inclinou-se e cochichou no ouvido dela: “Fico com um camarote agora mesmo”. Ela o encarou e sorriu, como se ele tivesse dito a coisa mais inteligente do mundo. “Você é a favor do cabelo curto?”, perguntou G. Reece com a mesma voz abafada. “Acho que é amoral”, respondeu Bernice com voz séria. “Mas, naturalmente, a única coisa que se pode fazer com as pessoas é diverti-las, alimentá-las ou chocá-las.” Marjorie tirara essa frase de Oscar Wilde. Foi recebida com outra onda de risos pelos homens e por uma série de olhares rápidos e intensos entre as mulheres. E, então, como se não tivesse dito nada de inteligente ou provocador, Bernice virou-se de novo para Charley e falou confidencialmente em seu ouvido: “Quero saber sua opinião sobre algumas pessoas. Você me parece um ótimo avaliador de caráter.” Charley sentiu um leve arrepio — e retribuiu o elogio entornando sem querer um copo d’água. Duas horas depois, parado imóvel em meio aos rapazes desacompanhados, Warren McIntyre contemplava passivamente os casais que dançavam perguntando-se para onde e com quem Marjorie havia sumido, e uma idéia disparatada começou a brotar em seu íntimo: a percepção de que Bernice, prima de Marjorie, tinha sido tirada para dançar várias vezes nos últimos cinco minutos. Fechou os olhos, abriu-os e olhou de novo. Pouco antes ela estava dançando com um rapaz de fora, o que era fácil de explicar — um rapaz de fora não tinha como saber o que estava fazendo. Mas agora ela estava dançando com outro sujeito, e ele podia ver Charley Paulson rumando para ela com entusiástica determinação. Era engraçado, porque Charley raramente dançava com mais de três moças por noite. Warren ficou absolutamente surpreso ao ver que, feita a troca de par, o rapaz com quem ela acabara de dançar era G. Reece Stoddard. E G. Reece não parecia nem um pouco jubilante por ter tido de ceder a moça. Quando Bernice passou dançando perto dele, Warren observou-a atentamente. Sim, era bonita, muito bonita, e naquela noite parecia especialmente fulgurante. Tinha uma expressão que nenhuma mulher, por melhor atriz que seja, consegue fingir: a de quem está se divertindo. Gostou da maneira como ela armara o cabelo e se perguntou se era a brilhantina que o tornava tão luzidio. E aquele vestido lhe caía muito bem — um vermelho-escuro que realçava seus olhos ensombrados e suas faces rosadas. Lembrou-se de tê-la achado bonita quando ela chegara à cidade, antes de descobrir que era chata. Pena que fosse tão chata — a chatice é insuportável numa garota, por mais bonita que ela seja. Seus pensamentos ziguezaguearam de volta para Marjorie. Aquele sumiço era como seus outros sumiços. Quando ela reaparecesse, ele perguntaria onde ela se metera e ouviria a resposta enfática de que não era da conta dele. Lamentável que ela o tratasse assim! Marjorie se prevalecia do fato de que ele não se interessava por nenhuma outra garota da cidade; chegara a desafiá-lo a se apaixonar por Genevieve ou Roberta. Warren suspirou. A porta para o afeto de Marjorie passava antes por um labirinto. Voltou a examinar o salão. Bernice dançava novamente com o rapaz de fora. Meio sem dar-se conta, deu um passo em sua direção e hesitou. Depois convenceu-se de que devia fazer uma caridade. E já avançava rumo a ela quando colidiu com G. Reece Stoddard. “Desculpe”, disse Warren. Mas G. Reece nem parou para ouvir a desculpa. Já tinha tomado Bernice do tal rapaz.

Naquela noite, à uma da manhã, Marjorie, com o dedo no interruptor da sala, contemplou os olhos brilhantes de Bernice. “Quer dizer que funcionou?” “Ah, Marjorie, e como!”, exclamou Bernice. “Deu para ver que você estava se esbaldando.” “Foi demais. O único problema foi lá pela meia-noite, quando comecei a ficar sem assunto. Tive de me repetir — para rapazes diferentes, claro. Espero que eles não tenham comentado uns com os outros.” “Os homens não fazem isso”, disse Marjorie, bocejando. “E, se fizerem, não tem a menor importância. Vão pensar que você estava caçoando deles.” Marjorie apagou a luz e, ao subirem as escadas, Bernice agarrou-se ao corrimão. Pela primeira vez na vida tinha dançado até se acabar. “É simples”, disse Marjorie, já no alto da escada. “Um rapaz vê outro tirar uma moça para dançar quando ela está dançando com algum outro rapaz e imagina que aquela moça deve ser interessante. Bem, amanhã vamos inventar mais algum tipo de assunto. Boa noite.” “Boa noite.” Enquanto soltava o cabelo, Bernice passou mentalmente a noite em revista. Tinha seguido à risca as instruções. Mesmo quando Charley Paulson fora tirá-la pela oitava vez, fizera de conta que estava encantada, até lisonjeada. Não falara nem uma vez sobre o calor, sobre Eau Claire ou sobre carros — seus assuntos agora eram eu, você, nós. Mas, alguns minutos antes de adormecer, um pensamento rebelde rodopiava preguiçosamente em seu cérebro — o de que, no fim das contas, o mérito era todo seu. Claro, Marjorie lhe dera umas pistas para conversar, mas Marjorie tirava sua conversa dos livros que lia. E fora Bernice quem comprara o vestido vermelho, embora nunca lhe tivesse dado muito valor antes de Marjorie tirá-lo de sua mala. Fora sua voz que dissera aquelas coisas interessantes, seus lábios é que tinham sorrido, seus pés é que tinham dançado. Marjorie é boazinha... meio vazia... noite ótima... rapazes legais... como Warren... Warren... Warren... como ele se chamava mesmo?... Warren... Dormiu.

V. Para Bernice, a semana seguinte foi uma revelação. Com o sentimento de que as pessoas realmente gostavam de olhar para ela e escutá-la, veio a autoconfiança. Inevitavelmente, no início aconteceram vários equívocos. Ela não sabia, por exemplo, que Draycott Deyo estava entrando para o seminário; não percebeu que ele a tirara para dançar porque pensava que era uma moça pia e reservada. Se soubesse, nunca o teria recebido com a frase “Oi, gostosão”, e contado aquela história da banheira: “Meu cabelo me dá um trabalho louco no verão, fico toda suada só de penteá-lo... porque tenho muito cabelo... por isso primeiro me penteio, depois me maquio e ponho o chapéu. Só então entro na banheira, tomo um banho e me visto. Você não acha que é a melhor estratégia?”. Embora Draycott Deyo estivesse sofrendo diante da iminência de seu próprio batismo por imersão e talvez pudesse perceber algum vínculo com aquela história, é preciso admitir que ele não percebeu vínculo nenhum. Achava o banho feminino um assunto imoral e aproveitou para emitir algumas de suas opiniões sobre a depravação da sociedade moderna. Mas, para contrabalançar a infeliz ocorrência, Bernice tinha vários triunfos a seu favor. O pequeno Otis Ormonde cancelou uma viagem a Nova York e se auto-escalou para segui-la por toda parte com a devoção de um cachorrinho — para diversão da turma e irritação de G. Reece Stoddard, cujas

visitas a Bernice foram atrapalhadas pela abominável ternura dos olhares de Otis na direção dela. Otis chegou a contar a Bernice a história do porrete na porta do toalete feminino, para mostrar-lhe como ele e os demais rapazes tinham se enganado em seu primeiro julgamento sobre ela. Bernice fingiu rir da coisa, com um leve sentimento de depreciação. De todos os assuntos de Bernice, talvez o mais conhecido e universalmente aprovado fosse a história de cortar bem curtinho o cabelo. “Ah, Bernice, quando você vai cortar o cabelo?” “Depois de amanhã, talvez”, respondia ela, rindo. “Vocês vão comigo? Pois fiquem sabendo que estou contando com vocês.” “Claro que vamos. Mas é melhor cortar de uma vez.” Bernice, cujos motivos para cortar o cabelo eram os piores possíveis, ria de novo. “Não vai demorar. Vocês vão ficar surpresos.” Mas talvez o símbolo mais significativo de seu sucesso fosse o carro cinza do hipercrítico Warren McIntyre estacionado diariamente em frente à casa dos Harvey. A princípio a criada levou um choque quando ele mandou chamar Bernice em vez de Marjorie; uma semana depois, disse à cozinheira que dona Bernice tinha tomado o namoradinho de dona Marjorie. E tinha mesmo. Talvez o começo de tudo tivesse sido a vontade de Warren de provocar ciúme em Marjorie; talvez fosse a marca de Marjorie que, quase imperceptivelmente, ecoava nas conversas de Bernice; talvez fossem as duas coisas juntas, somadas a uma sincera atração. Mas, de alguma forma, a mente coletiva daquela turma jovem sabia, em menos de uma semana, que o maior admirador de Marjorie virara espantosamente a casaca e estava dando em cima da hóspede de Marjorie. A grande dúvida do momento era sobre qual seria a reação de Marjorie. Warren telefonava para Bernice duas vezes por dia, mandava-lhe bilhetinhos, e os dois podiam ser vistos com freqüência no conversível dele, obviamente imersos em tensas e profundas discussões a respeito de se ele era ou não sincero. Marjorie, ao ser provocada a respeito, apenas ria. Dizia que estava contentíssima de saber que Warren finalmente achara quem o apreciasse. E aí a turma ria também e deduzia que Marjorie estava pouco ligando e que portanto não havia problema. Uma tarde, dois ou três dias antes de ir embora, Bernice esperava na sala por Warren, com quem iria a um torneio de bridge. Sentia-se feliz e, quando Marjorie — que também iria à reunião — apareceu e começou a ajeitar o chapéu diante do espelho, Bernice estava totalmente despreparada para um confronto. Marjorie fez o serviço friamente e em apenas três frases. “É bom você tirar Warren da cabeça”, disse com voz gelada. “O quê?” Bernice quase caiu para trás. “É melhor você parar de ficar fazendo papel de trouxa com Warren McIntyre. Ele não liga a mínima para você.” Por um intenso momento as duas se olharam — Marjorie, desdenhosa e distante; Bernice surpresa, entre furiosa e assustada. Logo em seguida, dois carros estacionaram na porta da casa e começaram a buzinar. As moças arfaram, se viraram e saíram juntas pela porta. Durante todo o torneio de bridge, Bernice lutou em vão para controlar uma crescente sensação de desconforto. Ela ofendera Marjorie, a esfinge das esfinges. Com a melhor e mais inocente das intenções, tomara o que pertencia a Marjorie. De repente, sentia-se horrivelmente culpada. Terminado o jogo de bridge, quando todos se sentaram num círculo informal, a conversa se espalhou e aos poucos se armou a tempestade. O pequeno Otis Ormonde, sem querer, precipitou-a. “Quando você vai voltar para o jardim-de-infância, Otis?”, perguntou alguém. “Eu? Só depois de Bernice cortar o cabelo.”

“Então pode dar adeus a seus estudos”, disse Marjorie depressa. “Ela estava blefando. Achei que você já tivesse percebido.” “É verdade?”, perguntou Otis, olhando severamente para Bernice. As orelhas de Bernice ficaram em chamas enquanto ela tentava pensar numa resposta eficaz. Mas, diante daquele ataque frontal, sua mente se paralisara. “Há muitos blefes no mundo”, continuou Marjorie com voz macia. “Achei que você era jovem que chegue para saber disso, Otis.” “Bem, talvez, mas puxa!”, disse Otis. “É que Bernice é tão engraçada...” “É mesmo?”, bocejou Marjorie. “Qual foi a última tirada dela?” Ninguém parecia saber. Na verdade, Bernice, às voltas com o namorado de sua musa, não dissera nada memorável nos últimos dias. “Será que havia essa graça toda?”, perguntou Roberta com curiosidade. Bernice hesitou. Sabia que esperavam dela alguma resposta de grande humor, mas, sob o olhar subitamente gélido da prima, sentia-se completamente despreparada. “Não sei”, gaguejou. “Puro blefe!”, disse Marjorie. “Reconheça!” Bernice viu que os olhos de Warren haviam se afastado do ukelele que estava dedilhando para se fixarem nela com ar de interrogação. “Ah, não sei!”, repetiu com firmeza. Seu rosto estava incandescente. “Blefe!”, afirmou Marjorie outra vez. “Vamos lá, Bernice”, exigiu Otis. “Dê um cala-boca nela.” Bernice olhou em volta de novo — parecia incapaz de fugir dos olhos de Warren. “Gosto de cabelo curto”, disse às pressas, como se ele estivesse lhe perguntando, “e pretendo cortar o meu.” “Quando?”, perguntou Marjorie. “A qualquer hora.” “Por que não agora?”, sugeriu Roberta. Otis se levantou de um salto. “Boa idéia!”, gritou. “Vamos fazer uma festa no cabeleireiro. Barbearia do hotel Sevier, não foi o que você disse?” Num instante, todos se puseram de pé. O coração de Bernice disparou. “O quê?”, falou, meio engasgada. Destacando-se do grupo, ouviu-se a voz de Marjorie, nítida e insolente. “Não se preocupem, ela vai recuar!” “Vamos lá, Bernice!”, gritou Otis, já correndo para a porta. Dois pares de olhos — os de Warren e os de Marjorie — fixaram-se nela, desafiando-a, chamando-a às falas. Por um segundo ainda, ela se debateu violentamente. “Está bem”, disse em seguida, num impulso. “Tanto faz.” Uma eternidade de minutos depois, varando o fim de tarde no carro de Warren rumo ao centro da cidade e com os outros seguindo no carro de Roberta, Bernice se sentia como Maria Antonieta na carreta a caminho da guilhotina. Vagamente se perguntava por que não dizia a todo mundo que tudo aquilo era um equívoco. Era a única coisa que poderia fazer para se impedir de agarrar o cabelo com as duas mãos para protegê-lo daquele mundo subitamente hostil. Mas não fez nem uma coisa nem outra. Nem a lembrança de sua mãe conseguiria detê-la agora. Aquele era o teste supremo de seu espírito esportivo; seu direito de ingressar definitivamente no paraíso estrelado das moças

disputadas. Warren estava sombrio e silencioso. Ao chegarem ao hotel, estacionou junto à calçada e fez sinal para que Bernice descesse na frente. O carro de Roberta desovou uma multidão de gente rindo muito diante do salão, que dispunha de duas grandes janelas envidraçadas que se abriam para a rua. Em pé na calçada, Bernice olhou para a placa: Barbearia Sevier. Parecia mesmo uma guilhotina, e o carrasco era o primeiro barbeiro, que, de jaleco branco e fumando um cigarro, apoiava-se indiferente na primeira cadeira. Ele já devia ter ouvido falar dela; talvez tivesse passado a semana esperando por ela, fumando intermináveis cigarros, recostado à portentosa, famosíssima cadeira. Será que a vendariam? Não, mas amarrariam um pano branco em seu pescoço para evitar que o sangue — que besteira, o cabelo — caísse em sua roupa. “Vamos, Bernice”, disse Warren, ansioso. De queixo erguido, ela atravessou a calçada, abriu a porta de tela e, sem um único olhar para o agitado grupo que, às risadas, ocupava o banco de espera, dirigiu-se ao primeiro barbeiro. “Quero cortar curtinho.” A boca do barbeiro se abriu. O cigarro caiu no chão. “Hein?” “Meu cabelo. Pode cortar.” Dispensando outras preliminares, Bernice aboletou-se na cadeira. Um homem ao lado dela virouse e lhe dirigiu um olhar de espanto misturado à espuma. Outro barbeiro tomou um susto e arruinou o corte de cabelo mensal do pequeno Willy Schuneman. Na última cadeira, o sr. O’Reilly grunhiu e xingou musicalmente em gaélico arcaico quando a navalha tirou um bife de sua bochecha. Dois engraxates arregalaram os olhos e correram para os sapatos de Bernice. Não, ela não queria engraxar. Lá fora, um passante parou para observar; um casal se juntou a ele; meia dúzia de moleques surgiram do nada e achataram os narizes contra o vidro; e retalhos de comentários trazidos pela brisa do verão penetraram pela porta de tela. “Olha a cabeleira do garoto!” “Sabe de onde saiu tanto cabelo? De uma mulher barbada que ele acabou de barbear.” Mas Bernice não via nem ouvia nada. Seu único sentido que ainda funcionava lhe dizia que o homem de jaleco branco removera um de seus prendedores de osso de tartaruga, depois o outro; que os dedos dele escarafunchavam desajeitados entre grampos a que não estava habituado; que seu cabelo, seu magnífico cabelo, iria desaparecer — ela nunca mais sentiria a volúpia do peso das mechas castanhas e gloriosas sobre suas costas. Por um segundo, quase entregou os pontos, depois o quadro diante dela entrou em foco em sua visão — a boca de Marjorie, retorcida num leve sorriso irônico, como quem dissesse: “Desista, ainda está em tempo! Você tentou me passar uma rasteira, mas eu denunciei o seu blefe. Comigo você não tem chance.” Uma última dose de energia deve ter se apoderado de Bernice, porque ela apertou as mãos com força sob a bata branca e seus olhos se apertaram numa expressão estranha, que Marjorie comentaria com alguém muito tempo depois. Vinte minutos mais tarde o barbeiro girou a cadeira para que ela contemplasse o espelho e ela estremeceu diante da total dimensão do estrago feito. Seu cabelo estava liso e agora pendia em mechas escorridas e sem vida nos dois lados do rosto subitamente pálido. Ficara muito feio — e ela sabia que ia ficar muito feio. O principal encanto de seu rosto sempre fora uma simplicidade do tipo virginal. Agora, aquilo se dissipara e ela ficara, digamos, horrivelmente medíocre; não teatral,

apenas ridícula — como uma moça do Greenwich Village que tivesse deixado os óculos em casa. Ao descer da cadeira, tentou sorrir mas fracassou miseravelmente. Viu duas das moças trocando olhares; percebeu a boca de Marjorie encurvada num deboche atenuado e os olhos de Warren subitamente muito frios. “Estão vendo?” As palavras saíram depois de um incômodo silêncio. “Falei e cumpri.” “É, você... cumpriu”, reconheceu Warren. “Gostaram?” Houve um “Claro!” sem convicção dito por duas ou três vozes, outro silêncio incômodo, e em seguida Marjorie virou-se num impulso e perguntou a Warren em tom viperino: “Você pode me dar uma carona até a lavanderia? Tenho de pegar um vestido antes do jantar. Roberta está indo direto para casa e pode levar os outros.” Warren contemplava distraído alguma mancha infinita fora da janela. Depois, por um instante, seus olhos pousaram com frieza sobre Bernice antes de se virarem para Marjorie. “Com prazer”, disse, devagar.

VI. Bernice ainda não percebera a descarada armadilha em que caíra até defrontar-se com o olhar atônito de sua tia pouco antes do jantar. “Bernice!” “Cortei o cabelo, tia Josephine.” “Mas por quê, minha filha?” “Gostou?” “Ah, Ber-nice!” “A senhora me parece chocada.” “Não, mas o que a senhora Deyo vai pensar amanhã à noite? Bernice, você devia ter esperado até depois da festa de amanhã. Se queria cortar o cabelo, devia ter esperado.” “Foi de repente, tia Josephine. Além disso, o que a senhora Deyo tem a ver com isso?” “Ora!”, gritou a sra. Harvey. “Ela fez uma palestra sobre ‘As loucuras da nova geração’ na última reunião do Clube das Quintas-Feiras e dedicou quinze minutos ao cabelo curto. É o que ela mais abomina. E a festa é para você e Marjorie!” “Sinto muito.” “Ah, Bernice, e o que sua mãe vai dizer? Vai pensar que eu consenti.” “Sinto muito.” O jantar foi uma agonia. Bernice fez uma tentativa apressada com um modelador de cachos, mas só conseguiu queimar os dedos e um monte de cabelo. Podia ver que sua tia estava aborrecida e aflita, e que seu tio não parava de dizer “Caramba!”, num tom magoado e quase hostil. E Marjorie ficava quieta em seu canto, entrincheirada num sorriso disfarçado, ligeiramente gozador. Mas Bernice conseguiu sobreviver à noite. Três rapazes apareceram; Marjorie desapareceu com um deles, e Bernice fez um esforço apático e mal-sucedido para distrair os outros dois — e suspirou aliviada ao subir as escadas para seu quarto às dez e meia. Que dia! Quando já tinha se vestido para dormir, a porta se abriu e Marjorie entrou. “Bernice”, disse, “estou muito chateada com essa história da festa. Dou minha palavra de honra de que tinha me esquecido completamente dela.” “Tudo bem”, respondeu Bernice secamente. De pé diante do espelho, escovava bem devagar o cabelo curto.

“Vamos à cidade amanhã”, continuou Marjorie, “e o cabeleireiro vai dar um jeito. Eu não imaginava que você fosse até o fim. Estou muito chateada mesmo.” “Ah, tudo bem!” “De qualquer maneira, será sua última noite aqui, e talvez não faça muita diferença.” Bernice estremeceu ao ver que Marjorie, com um meneio, jogava o cabelo sobre os ombros e começava a arrumá-lo lentamente em duas longas tranças louras, de forma que, mesmo vestida com uma camisola creme, lembrava um delicado retrato de alguma princesa saxônica. Fascinada, Bernice acompanhava o crescimento das tranças. Eram pesadas e voluptuosas, movendo-se entre os dedos ágeis como duas cobras indóceis — a Bernice cabiam apenas os resíduos de seu cabelo e o modelador de cachos, e um amanhã cheio de olhares. Podia ver G. Reece Stoddard, que gostava dela, fazendo sua pose de Harvard e dizendo a sua parceira de mesa que não deviam ter permitido que Bernice fosse tanto ao cinema; podia ver Draycott Deyo trocando olhares com a mãe e sendo conscienciosamente caridoso com ela. Mas também era possível que amanhã a sra. Deyo já estivesse sabendo; talvez mandasse um bilhetinho gélido dispensando-a de comparecer — e, pelas suas costas, todos estariam rindo e sabendo que Marjorie a fizera de boba; que sua oportunidade de ser bonita fora sacrificada pelo capricho invejoso de uma menina egoísta. Sentou-se diante do espelho, mordendo a parte de dentro da bochecha. “Estou gostando”, disse, com um esforço. “Acho que ficou bom.” Marjorie sorriu: “Claro que ficou bom. Pelo amor de Deus, não deixe isso aborrecer você.” “Não vou deixar.” “Boa noite, Bernice.” Mas, assim que a porta se fechou, algo estalou na cabeça de Bernice. Pulou expedita da penteadeira, as mãos crispadas, correu silenciosamente para a cama e tirou de debaixo dela a sua mala. Jogou seus artigos de toalete e uma muda de roupa dentro dela. Passou para seu baú e esvaziou nele duas gavetas de roupas de baixo e de verão. Fez tudo em silêncio, mas com mortal eficiência, e, em quarenta e cinco minutos, seu baú estava fechado e preso com correias, e ela própria vestida com uma bela roupa de viagem que, outro dia mesmo, Marjorie a ajudara a escolher. Sentando-se em sua escrivaninha, escreveu uma cartinha para a sra. Harvey, na qual explicava sucintamente suas razões para ir embora. Fechou-a, sobrescritou-a e deixou-a sobre o travesseiro da tia. Olhou para o relógio. O trem saía à uma hora e ela sabia que se andasse dois quarteirões até o hotel Marborough pegaria facilmente um táxi. De repente, prendeu o fôlego e uma expressão brilhou em seus olhos. Uma expressão que um analista mais experimentado identificaria com a que exibira na cadeira do barbeiro — ou um desdobramento dela. Era um jeito inteiramente novo de Bernice — e traria conseqüências. Caminhou decididamente para a escrivaninha e retirou um objeto que havia lá. Apagou as luzes e esperou que seus olhos se habituassem à escuridão. Devagarinho, abriu a porta do quarto de Marjorie. Podia ouvir a respiração suave e compassada do sono de uma consciência tranqüila. Agora, calma e deliberada, estava à beira da cama da prima. Agiu depressa. Inclinou-se, achou uma das tranças de Marjorie, seguiu-a com a mão até o ponto mais próximo da cabeça e, deixando-a frouxa para que a dona não sentisse o repuxão, aplicou-lhe a tesoura e cortou-a. Ao segurar aquele rabicho, prendeu a respiração. Marjorie, ainda dormindo, murmurou alguma coisa. Bernice amputou a outra trança, parou por um instante e escapuliu, rápida e silenciosamente, para seu quarto. No andar de baixo, abriu a porta da rua, fechou-a cuidadosamente atrás de si e, com uma sensação de felicidade e exuberância, saiu para a varanda e para o luar, balançando as pesadas malas como se

fossem uma bolsa. Só depois de um minuto de caminhada decidida descobriu que sua mão esquerda ainda segurava as tranças louras. Riu inesperadamente — teve de fechar a boca com força para não soltar uma gargalhada que repicaria como sinos. Passava agora pela casa de Warren e, num impulso, largou a bagagem no chão e, balançando as tranças como dois pedaços de corda, atirou-as na varanda de madeira, onde elas aterrissaram com um baque surdo. Só então, incapaz de refrear-se, riu alto. “Pronto!”, disse, rindo incontidamente. “Fique com esse escalpo de lembrança!” Pegou as malas e desceu correndo a rua enluarada. (1920)

O diamante do tamanho do Ritz

John T. Unger era de uma tradicional família de Hades, cidadezinha à beira do rio Mississípi. O pai de John conservara o título de campeão amador de golfe ao longo de várias disputas memoráveis; a sra. Unger era famosa “do palanque ao beliche”, como se dizia na cidade, por seus discursos políticos; e o jovem John T. Unger, que acabara de fazer dezesseis anos, já dançara todas as últimas novidades de Nova York antes de vestir calças compridas. E agora, por algum tempo, iria para longe de casa. A reverência pela educação típica da Nova Inglaterra, que é a perdição das cidades provincianas da América e que anualmente as priva de seus jovens mais promissores, acometera seus pais. Para eles, a única alternativa viável seria John estudar no colégio St. Midas, perto de Boston — Hades era muito pequena para aquele filho tão querido e inteligente. Em Hades, porém — como você deve saber se já andou por lá —, os nomes das escolas e faculdades mais em voga não querem dizer grande coisa. Seus moradores vivem fora do mundo há tanto tempo que, embora finjam estar atualizados a respeito de moda, costumes e literatura, dependem em grande parte do que ouvem falar, e um evento que em Hades se consideraria chique seria classificado por uma princesa dos açougues de Chicago como “talvez um pouco tosco”. John T. Unger estava na véspera da partida. A sra. Unger, com obtusidade maternal, recheou suas malas com ternos de linho e ventiladores elétricos, e o sr. Unger muniu o filho de uma carteira cheia de dinheiro. “Lembre-se, garoto, você sempre será bem-vindo aqui”, disse. “E pode ter certeza de que aqui será sempre a sua casa.” “Eu sei”, respondeu John com emoção na voz. “Não se esqueça de quem é e de onde veio”, continuou seu pai, cheio de orgulho. “Se fizer isso, nada de mau lhe acontecerá. Você é um Unger — de Hades.” Assim, o velho e o jovem apertaram-se as mãos e John partiu com lágrimas nos olhos. Dez minutos depois, já ultrapassara o perímetro urbano e parou para olhar para trás pela última vez. O lema vitoriano antiquado de boas-vindas, inscrito nos portões da cidade, pareceu-lhe estranhamente bonito. Várias vezes seu pai tentara mudá-lo para algo mais vibrante e inventivo, como “Hades — Eis a sua oportunidade”, ou mesmo uma tabuleta simples com as palavras “Bem-vindo!”, só que pendurada logo acima de um forte aperto de mãos desenhado com lâmpadas elétricas. O velho lema era um pouco deprimente, pensava o sr. Unger, mas agora... De modo que John deu sua última olhada e virou o rosto resolutamente na direção de seu destino. E, enquanto ele se afastava, as luzes de Hades contra o céu lhe pareceram de uma cálida e apaixonada beleza. O colégio St. Midas fica a meia hora de Boston num automóvel Rolls-Pierce. A verdadeira distância nunca será conhecida, visto que ninguém, exceto John T. Unger, já viajara até lá

exclusivamente de Rolls-Pierce, e provavelmente ninguém voltará a fazê-lo. St. Midas é o internato masculino mais caro e exclusivo do mundo. Os primeiros dois anos de John em St. Midas transcorreram de forma agradável. Os pais de todos os seus colegas eram podres de ricos e John passava o verão em suas elegantes propriedades. Embora gostasse muito dos rapazes que visitava, achava os pais deles de uma impressionante mesmice. Com seu jeito juvenil, muitas vezes meditara sobre a semelhança marcante que os caracterizava. Sempre que lhes dizia de onde vinha, eles perguntavam jovialmente: “Faz muito calor lá?”, e John armava um sorriso amarelo para responder: “Faz, muito”. Sua resposta seria mais cordial se todos eles não fizessem a mesma piada — no máximo, variavam a pergunta para “É quente que chegue para você, lá?”, o que ele também detestava. Na metade de seu segundo ano na escola, um rapaz discreto e bonito chamado Percy Washington entrara para sua classe. O novato era muito bem-educado e extremamente bem vestido, mesmo para os padrões de St. Midas, mas por alguma razão guardava distância dos outros colegas. A única pessoa com quem tinha intimidade era John T. Unger, mas mesmo com John ele era inteiramente reservado a respeito de sua procedência e sua família. Que era rico, isso ninguém precisava dizer, mas, além de algumas poucas deduções, John quase nada sabia do amigo. Por isso, foi um prato cheio para sua curiosidade quando Percy o convidou a passar o verão em sua casa “no Oeste”. John aceitou sem hesitar. Foi somente quando já estavam no trem que Percy ficou, pela primeira vez, bastante comunicativo. Um dia, enquanto os dois almoçavam no vagão-restaurante e discutiam as imperfeições de caráter de seus colegas, Percy de repente mudou de tom e fez a seguinte observação: “Meu pai é, de longe, o homem mais rico do mundo.” “Nossa”, disse John educadamente. Não lhe ocorria nenhuma resposta àquela confidência. Pensou em dizer “Que bom”, mas lhe pareceu vazio, e estava a ponto de perguntar “É mesmo?”, quando se conteve para não parecer que duvidava da afirmação de Percy. E uma afirmação impressionante daquelas não podia ser posta em dúvida. “Disparado o mais rico”, repetiu Percy. “Andei lendo no World Almanac”, balbuciou John, “que havia um homem nos Estados Unidos com uma renda de mais de cinco milhões de dólares por ano e quatro homens com renda superior a três milhões por ano, e...” “Ah, isso não é nada.” A boca de Percy fazia uma meia-lua de desprezo. “São uns capitalistas de meia-tigela, financistas arraia-miúda, vendedores de ninharias e agiotas baratos. Meu pai pode botar todos eles no bolso sem nem se dar conta.” “Mas como ele...” “Por que não publicam o que ele paga de impostos? Porque ele não paga nada. Um pouco ele paga, mas não o imposto sobre sua renda verdadeira.” “Deve ser mesmo muito rico”, disse John com simplicidade. “Fico feliz por isso. Gosto de gente muito rica. “Quanto mais rico o sujeito, mais gosto dele”, continuou John. Havia uma expressão de ardente franqueza em seu rosto moreno. “Passei a última Páscoa na casa da família Schnlitzer-Murphy. Vivian Schnlitzer-Murphy tinha rubis do tamanho de ovos, e safiras que pareciam globos com luzes por dentro, e...” “Adoro jóias”, concordou Percy com entusiasmo. “Claro, não quero que ninguém no colégio fique sabendo, mas eu próprio tenho uma coleção e tanto. Em vez de colecionar selos, eu colecionava jóias.”

“E diamantes”, prosseguiu John, empolgado. “Os Schnlitzer-Murphy tinham diamantes do tamanho de nozes...” “Isso não é nada.” Percy se inclinara e falava num tom de voz muito baixo, num sussurro: “Isso não é absolutamente nada. Meu pai tem um diamante do tamanho do Ritz-Carlton Hotel”.

II. O sol de Montana se punha entre duas montanhas como uma ferida gigantesca da qual artérias escuras se espalhavam sobre um céu envenenado. A uma imensa distância do céu encolhia-se a cidade de Fish, pequena, triste e esquecida. Eram doze homens na cidade de Fish, assim se dizia, doze almas sombrias e inexplicáveis que extraíam um leite ralo da rocha quase literalmente nua sobre a qual uma misteriosa força populacional os engendrara. Tinham se tornado uma raça à parte, os doze homens de Fish, como uma espécie desenvolvida por um capricho primevo da natureza, que, depois de novas considerações, abandonara-os à luta e ao extermínio. Da ferida negro-azulada da imensidão rastejava uma longa fila de luzes em movimento sobre a desolação da terra, e os doze homens de Fish se aglomeravam como fantasmas na estação em ruínas para assistir à passagem do trem das sete, o Transcontinental Express de Chicago. Seis vezes por ano, ou nem isso, o Transcontinental, por alguma inconcebível jurisdição, parava na cidade de Fish e, quando isso acontecia, alguém desembarcava, subia em uma carruagem a cavalo que sempre surgia da penumbra e desaparecia na direção do castigado pôr-do-sol. A observação desse fenômeno sem sentido e quase absurdo tornara-se uma espécie de culto entre os homens de Fish. Observar, e nada mais — não lhes restava nem sombra da qualidade vital da ilusão, que os faria refletir ou especular; não fosse isso, alguma espécie de religião poderia ter surgido em torno daquelas visitas misteriosas. Mas os homens de Fish estavam fora do alcance de qualquer religião — nem os dogmas mais rasos e selvagens, inclusive os do cristianismo, teriam como vingar naquela rocha árida —, por isso não havia altar, nem padre, nem sacrifício; simplesmente todas as noites às sete horas lá estava a silente congregação junto à estação em ruínas, uma congregação que erguia uma prece de espanto apagado e anêmico. Naquela noite de junho, o Grande Guarda-Freios, que, tivessem eles divinizado alguém, poderiam muito bem ter escolhido como protagonista celestial, ordenara que o trem das sete horas deveria deixar sua carga humana (ou inumana) em Fish. Às sete horas e dois minutos Percy Washington e John T. Unger desceram do trem, passaram correndo diante dos olhos enfeitiçados, embasbacados e atemorizados dos doze homens de Fish, subiram à carruagem que obviamente saíra do nada e foram embora. Meia hora depois, quando a meia-luz já se coagulara em escuridão, o negro silencioso que dirigia a carruagem saudou um corpo opaco que se postava em algum lugar diante deles, na treva. Em resposta ao grito, esse corpo opaco apontou para eles um disco luminoso que parecia observá-los como um olho maligno saindo da noite intangível. À medida que se aproximaram, John viu que era o farol traseiro de um imenso automóvel, o maior e mais majestoso que já vira. Seu corpo era de um metal cintilante mais rico que o níquel e mais leve que a prata, e os cubos centrais de suas rodas eram cravejados de figuras geométricas iridescentes verdes e amarelas — John não se atreveu a apostar se eram vidro ou jóias. Dois negros, vestidos de librés reluzentes como as que se vêem nas imagens dos cortejos reais em Londres, estavam em posição de sentido ao lado do carro, e, quando os dois jovens desceram da carruagem, foram cumprimentados numa língua que o hóspede não conseguiu entender, mas que parecia ser uma forma extrema do dialeto negro sulista.

“Entre”, disse Percy ao amigo, enquanto suas malas eram atiradas para o topo de ébano da limusine. “Desculpe tê-lo feito viajar até aqui naquela carruagem, mas claro que seria um erro deixar as pessoas do trem ou os homens de Fish verem esse carro.” “Puxa! Que carro!” Essa exclamação foi provocada pelo interior do veículo. John viu que a forração dos bancos consistia em mil tapeçarias de seda, minúsculas e refinadas, entremeadas com jóias e bordaduras, montadas sobre um fundo que era um tecido de ouro. O estofamento das duas poltronas sobre as quais os rapazes se refestelaram era de um material que lembrava veludo, mas que parecia uma trama das incontáveis cores das extremidades das penas dos avestruzes. “Que carro!”, exclamou John de novo, assombrado. “Isto aqui?”, Percy riu. “Ora, é um ferro-velho que usamos para o transporte de passageiros.” Àquela altura eles deslizavam pela escuridão rumo à fenda entre as montanhas. “Estaremos lá em uma hora e meia”, disse Percy, olhando para o relógio. “É bom você saber que nunca viu nada igual na sua vida.” Se o carro era uma indicação do que John ainda estava por ver, ele imaginou que teria razões de sobra para se espantar. Na religiosidade simples que prevalecia em Hades, o respeito e a adoração pela riqueza eram o principal artigo do credo — se John não se sentisse radiantemente humilde diante dela, seus pais teriam considerado aquilo uma blasfêmia digna de horror. Agora chegavam à fenda entre as montanhas, na qual entraram, e quase imediatamente a estrada ficou muito mais acidentada. “Se a luz da lua chegasse até aqui, você veria que estamos numa grande ravina”, disse Percy, tentando espiar pela janela. Falou alguma coisa pelo bocal e em seguida o empregado de libré ligou um refletor que banhou as colinas num intenso jato de luz. “É rochoso, está vendo? Um carro comum se despedaçaria em meia hora. Na verdade, o ideal seria um tanque para explorar a área, a não ser que se conheça o caminho. Repare que agora estamos subindo.” Inquestionavelmente, estavam subindo e, em poucos minutos, o carro cruzou um promontório alto, de onde foi possível vislumbrar uma lua pálida nascendo na distância. O carro parou de súbito e várias figuras tomaram forma na escuridão a seu redor — também eram negros. Mais uma vez, os dois jovens foram saudados no mesmo dialeto quase incompreensível; em seguida os negros se puseram a trabalhar e quatro cabos imensos pendentes do alto foram presos com ganchos aos cubos centrais das grandes rodas adornadas com jóias. Ouvindo um retumbante “Hey-yah!”, John sentiu o carro ser lentamente erguido do chão — cada vez mais alto —, desvencilhando-se das mais altas rochas de ambos os lados — e chegar até acima delas, e então pôde enxergar um vale ondulado, banhado pelo luar, que se estendia à sua frente em agudo contraste com o tremedal de rocha que tinham deixado para trás. Somente em um dos lados ainda se viam rochas — e, dali a pouco, já não havia rochas por perto ou em lugar algum. Era evidente que eles tinham superado uma imensa lâmina de pedra que se projetava perpendicularmente no ar. No instante seguinte desciam de novo e, por fim, com um delicado solavanco, foram depositados sobre a terra macia. “O pior já passou”, disse Percy, olhando atentamente para fora da janela. “São apenas oito quilômetros daqui até lá, e em nossa própria estrada — um tapete atijolado. Isto é nosso. É aqui que os Estados Unidos terminam, diz papai.” “Estamos no Canadá?” “Não. Estamos no meio das Rochosas de Montana. Mas agora você está nos únicos catorze quilômetros quadrados de terra do país que nunca foram topografados.”

“Por quê? Se esqueceram?” “Não”, disse Percy com satisfação. “Já tentaram topografar por três vezes. Na primeira vez, meu avô corrompeu todo um departamento estadual de topografia. Na segunda, conseguiu com que os mapas oficiais dos Estados Unidos fossem alterados — isso os manteve à distância durante quinze anos. A última vez foi mais difícil. Meu pai deu um jeito e as bússolas dos topógrafos ficaram no campo magnético artificial mais forte já criado até hoje. Depois, mandou fazer um jogo completo de instrumentos de medição com um ligeiro defeito, de modo que este território não aparecesse, e colocou-os no lugar dos que deveriam ser usados. Em seguida, desviou o curso de um rio e construiu o que parecia ser uma cidade às suas margens — para que eles a vissem e pensassem que era uma cidade quinze quilômetros mais adiante no vale. Meu pai só tem medo de uma coisa”, ele concluiu, “da única coisa no mundo que poderia ser usada para nos localizar.” “E o que é?” Percy baixou o tom de voz e falou num murmúrio. “Aviões”, sussurrou. “Temos meia dúzia de baterias antiaéreas e até agora nos demos bem, mas houve algumas mortes e um grande número de prisioneiros. Não que a gente se importe com isso, sabe, meu pai e eu, mas mamãe e as meninas ficam aborrecidas, e sempre existe a possibilidade de, numa dessas, a coisa dar errado.” Nuvens lembrando farrapos e tiras de chinchila passavam pela lua verde no céu como preciosos tecidos orientais submetidos à inspeção de algum cã tártaro. John tinha a sensação de que era dia e de que o que estava vendo eram pessoas velejando no espaço e despejando panfletos e instruções sanitárias com mensagens de esperança para os povoados prisioneiros entre as rochas. Quase podia vê-las perscrutando entre as nuvens e olhando aqui para baixo — para o que quer que existisse naquele lugar para onde ele estava indo. E depois? Seriam talvez induzidas a aterrissar por algum truque insidioso e, ali, emparedadas até o Juízo Final — ou, se escapassem à armadilha, um jato de fumaça e a rajada de um artefato explosivo não seriam suficientes para derrubá-las —, “aborrecendo” a mãe e as irmãs de Percy? John balançou a cabeça e o espectro de um riso vazio escapou silenciosamente de seus lábios. Que desesperadas negociações se escondiam ali? Que recurso moral de um bizarro Creso? Que mistério tão terrível e dourado?... As nuvens de chinchila tinham se dissipado e a noite de Montana brilhava como o dia. A estrada atapetada de tijolos respondia com suavidade aos pneus quando eles circundaram um lago tranqüilo e iluminado pela lua; por um momento a escuridão voltou, ao passarem por um pequeno bosque de pinheiros, pungente e frio. Mas, em seguida, foram dar a uma larga avenida gramada, e a exclamação de prazer de John foi simultânea à taciturna informação de Percy: “Chegamos.” À plena luz das estrelas, um belo castelo ergueu-se das margens do lago, subindo em sua radiação marmórea até a metade da altura de uma montanha adjacente, e dissipou-se com graça, em perfeita simetria e com translúcido langor feminino, na massa escura da floresta. As muitas torres, o delicado lavor da pedra dos parapeitos oblíquos, a maravilha cinzelada de mil janelas amarelas com seus retângulos, hectágonos e triângulos de luz dourada, a maciez despedaçada de brilhos estelares e azulsombra se entrecortando, tudo tremia no espírito de John como um acorde musical. No topo de uma das torres, a mais alta e mais escura na base, um arranjo de luzes externas produzia uma espécie de terra dos sonhos flutuante — e, quando John olhou para cima, em um mágico encantamento, um som de violinos pareceu se erguer pelos ares numa harmonia rococó diferente de tudo o que ele já tivesse escutado. O carro parou diante de largos e altos degraus de mármore, em torno dos quais o ar da noite despejou a fragrância de uma braçada de flores. No alto da escadaria, duas grandes portas se

abriram silenciosamente e uma luz âmbar escapou rumo à escuridão, revelando a silhueta de uma bonita senhora, de cabelo preto e penteado num coque, que estendeu os braços para eles. “Mamãe”, disse Percy, “este é meu amigo John Unger, de Hades.” Depois, John recordaria aquela primeira noite como um atordoamento de muitas cores, de rápidas impressões sensoriais, de música suave como uma voz apaixonada e da beleza das luzes e sombras, dos movimentos e rostos. Havia um homem de cabelos brancos tomando uma bebida colorida num copinho de cristal equilibrado sobre uma haste dourada. Havia uma moça de rosto animado, vestida como Titânia e com safiras trançadas no cabelo. Havia uma sala onde o sólido mas suave ouro das paredes cedia à pressão de sua mão, e uma sala que era como uma concepção platônica do prisma definitivo — o teto, o chão, tudo delineado por uma massa ininterrupta de diamantes, diamantes de todos os tamanhos e formas, até que, iluminada por altas lâmpadas violetas, ofuscava os olhos com uma brancura que só podia ser comparada a si mesma, fora do alcance de todo sonho ou vontade humana. Os dois rapazes percorreram o dédalo de salas. Às vezes, o chão iluminado a seus pés parecia incendiar-se em padrões bárbaros de cores que se chocavam, em delicadeza pastel, em pura brancura ou em sutis e intrincados mosaicos, sem dúvida vindos de alguma mesquita no mar Adriático. Outras vezes, sob camadas de pesado cristal, ele podia ver torvelinhos de água azul ou verde, habitada por peixes inquietos e tufos de folhagem multicolorida. Em seguida caminhavam sobre peles de todas as texturas e cores ou por corredores de um marfim sem emendas, como se trinchado inteiro das presas de gigantescos animais extintos muito antes da chegada do homem... Então, dá-se uma transição recordada entre névoas e eles já estão à mesa do jantar, onde cada prato consistia em duas camadas quase imperceptíveis de diamante sólido, entre as quais havia uma finíssima filigrana de esmeraldas, como que talhada de ar verde. Plangente e em surdina, ouvia-se música a percorrer compridos corredores. Sua cadeira, de encosto emplumado e com uma curva insidiosa às suas costas, parecia engolfá-lo e absorvê-lo, enquanto ele bebia sua primeira taça de porto. Quase cochilando, tentou responder a uma pergunta que lhe fora feita, mas a doce luxúria que se apossava de seu corpo contribuía para a ilusão do sono — jóias, tecidos, vinhos e metais confundiam-se diante de seus olhos como uma névoa suave... “É”, ele respondeu com um educado esforço, “sem dúvida lá é quente.” Conseguiu dar uma risada quase muda e em seguida, sem movimento, sem resistência, pareceu flutuar, deixando no prato uma sobremesa gelada, cor-de-rosa como um sonho... Adormeceu. Quando acordou, soube que várias horas já tinham se passado. Estava num quarto grande e silencioso com paredes de ébano e uma iluminação muito tênue e sutil para ser chamada de luz. Seu jovem anfitrião estava de pé a seu lado. “Você dormiu durante o jantar”, disse Percy. “Quase dormi também — que maravilha ter tanto conforto depois de todo este ano na escola. Os criados tiraram a sua roupa e lhe deram um banho enquanto você dormia.” “Isso é uma cama ou uma nuvem?”, suspirou John. “Percy, Percy, antes de você sair, quero pedir desculpas.” “Por quê?” “Por duvidar de você quando disse que tinha um diamante do tamanho do Ritz-Carlton Hotel.” Percy sorriu. “Eu percebi que você não tinha acreditado. É esta montanha, você sabe.” “Que montanha?” “A montanha que fica embaixo do castelo. Não é muito grande para uma montanha. Mas, exceto

por uns cento e cinqüenta metros de vegetação e cascalho no topo, o resto é diamante sólido. Um único diamante, mais de um quilômetro cúbico sem jaça. Está me ouvindo? Você...” Mas John T. Unger tinha dormido de novo.

III. De manhã. Ao acordar, ainda letárgico, percebeu que o quarto ficara denso com a luz do sol. Os painéis de ébano de uma parede tinham deslizado numa espécie de trilho, deixando o quarto semiaberto para o dia. Um negro forte de uniforme branco estava de pé ao lado de sua cama. “Boa noite”, tartamudeou John, tentando convocar seu cérebro, que andava perdido por regiões selvagens. “Bom dia, senhor. Está pronto para o banho? Não se levante, eu o levo até lá, deixe-me apenas desabotoar seu pijama — pronto. Obrigado, senhor.” John deixou-se ficar quieto enquanto seu pijama era retirado. Estava deliciado com aquilo, esperava ser levantado como uma criança por aquele negro gigantesco que cuidava dele, mas nada disso aconteceu; ao contrário, sentiu que a cama se virava e se inclinava lentamente para um lado; ele começou a rolar, assustado a princípio, na direção da parede, mas quando se aproximou dela as cortinas se afastaram e, inclinando-se ainda mais, a cama deslizou-o cuidadosamente para dentro da água, a qual estava à mesma temperatura de seu corpo. Olhou em volta. A rampa ou escorrega voltara à posição normal. Tinha sido projetado para outra câmara e estava sentado numa banheira com a cabeça pouco acima do nível do chão. Ao redor, contornando as paredes do quarto e as laterais e o fundo da própria banheira, havia um aquário azul. Ao observar a superfície de cristal sobre a qual estava sentado, pôde ver muitos peixes nadando entre luzes de âmbar ou deslizando indiferentes perto de seus pés, separados deles apenas pela espessura do cristal. Do alto, a luz do sol penetrava por uma clarabóia verde-marinho. “Imagino, senhor, que esta manhã o senhor gostará de um banho quente de espuma com água de rosas e, talvez, água salgada fria ao terminar.” O negro estava de pé a seu lado. “Sim”, concordou John, sorrindo amarelo, “tudo bem.” A simples idéia de exigir aquele banho, segundo seus modestos padrões de vida, seria pedante e mais que um pecado. O negro apertou um botão e uma chuva morna caiu, aparentemente do teto, mas na verdade, como John percebeu logo depois, de uma fonte nas proximidades. A água mudou para uma cor rosa-pálido e jatos de sabão líquido misturaram-se a ela saindo de quatro cabeças de morsa em miniatura nos cantos da banheira. Num instante, cerca de dez pequenas pás-de-roda, presas às laterais, tinham transformado a mistura num radiante arco-íris de espuma rosa que o envolveu com deliciosa leveza e explodiu em bolhas róseas e brilhantes pelo ambiente. “Devo ligar o projetor de filmes, senhor?”, sugeriu o negro com deferência. “Há uma boa comédia na máquina, mas posso também trocá-la por um drama, se preferir.” “Não, obrigado”, respondeu John, com voz delicada mas firme. Estava gostando muito do banho para se permitir qualquer distração. Mas ela aconteceu mesmo assim. Ao ouvir com atenção, percebeu um som de flautas vindo de fora, flautas tocando uma melodia que lembrava uma cascata, fria e verde como o próprio quarto, acompanhando um piccolo mais frágil do que a teia de bolhas que o envolvia e encantava. Depois de uma ducha fria de água salgada arrematada por água doce também fria para terminar, saiu da banheira e enfiou-se num roupão felpudo. Sobre um divã coberto do mesmo tecido, foi esfregado com óleo, álcool e ervas. Mais tarde, sentou-se numa voluptuosa cadeira enquanto o

barbeavam e lhe aparavam o cabelo. “O senhor Percy o espera em sua sala de estar”, disse o negro ao fim dessas operações. “Meu nome é Gygsum, senhor Unger. Estarei à sua disposição todas as manhãs.” John caminhou em direção à brusca claridade da suíte, onde encontrou uma mesa com o café-damanhã à sua espera. Percy, gloriosamente vestido de knickerbockers brancos, fumava numa poltrona.

IV. Esta é a história da família Washington, como Percy a contou para John durante o café-da-manhã. O pai do atual sr. Washington era da Virgínia, descendente direto de George Washington e de lorde Baltimore. No fim da Guerra Civil, ele estava com vinte e cinco anos, era coronel, proprietário de uma fazenda esgotada e possuía cerca de mil dólares em ouro. Fitz-Norman Culpepper Washington, pois este era o nome do jovem coronel, decidiu doar a fazenda na Virgínia para seu irmão mais novo e se mudar para o Oeste. Escolheu vinte e quatro de seus escravos mais fiéis — homens e mulheres que, naturalmente, o adoravam — e comprou vinte e cinco passagens para o Oeste, onde planejava comprar terras em nome deles e fundar um rancho para criar bois e carneiros. Quando estava em Montana havia menos de um mês e as coisas não iam nada bem, tropeçou na sua grande descoberta. Tinha se perdido ao passear a cavalo nas colinas e, depois de um dia sem comer, começou a ficar faminto. Como não levara seu rifle, foi obrigado a perseguir um esquilo e, no meio dessa perseguição, notou que ele carregava algo brilhante na boca. Pouco antes de se meter num buraco — a Providência não quis que o esquilo aliviasse sua fome —, o bichinho soltou o que vinha carregando. Sentando-se para considerar a situação, o olho de Fitz-Norman foi surpreendido por um reflexo na grama perto dele. Em dez segundos, perdeu completamente o apetite e ganhou cem mil dólares. O esquilo, que se recusara irritantemente a servir-lhe de alimento, dera-lhe de presente um enorme e perfeito diamante. Mais tarde, já de noite, encontrou o caminho para seu acampamento e, doze horas depois, todos os seus escravos homens estavam de volta à toca do esquilo, cavando furiosamente um dos lados da montanha. Disse-lhes que descobrira uma mina de cristal de rocha e, como só um ou dois deles já tinham visto um pequeno diamante, não vacilaram em acreditar. Quando percebeu a magnitude de sua descoberta, Fitz-Norman viu-se num dilema. A montanha era um diamante — literalmente, um único diamante sólido. Encheu quatro sacolas com reluzentes amostras e foi a cavalo para St. Paul, em Minnesota. Lá conseguiu negociar meia dúzia de pequenas pedras; quando tentou se desfazer de uma bem maior, o dono da loja desmaiou e Fitz-Norman foi preso por perturbação da ordem. Escapou da cadeia e pegou o trem para Nova York, onde vendeu alguns diamantes de tamanho médio por cerca de duzentos mil dólares em ouro. Mas não se atreveu a mostrar nenhuma gema excepcional — na verdade, escapou de Nova York em cima da hora. Já se criara uma tremenda excitação no círculo de joalheiros, não tanto pelo tamanho de seus diamantes, mas pela aparição deles na cidade, vindos não se sabia de onde. Surgiram rumores de que uma mina de diamantes fora descoberta nos Catskills, na costa de Nova Jersey, em Long Island e até debaixo da Washington Square. Trens de excursionistas, apinhados de homens carregando pás e picaretas, começaram a deixar Nova York de hora em hora, rumo a vários eldorados vizinhos. Mas, já então, o jovem Fitz-Norman estava a caminho de Montana. Ao fim de uma quinzena, calculou que o diamante na montanha era aproximadamente igual em quantidade a todo o montante de diamantes que se sabia existir no mundo. Mas não havia como avaliá-lo pelos padrões tradicionais, porque se tratava de um sólido diamante. Se fosse posto à venda, não apenas o mercado despencaria, mas também, se o valor por seu tamanho seguisse a

costumeira progressão aritmética, não haveria ouro suficiente no mundo para comprar nem uma décima parte dele. E o que alguém poderia fazer com um diamante daquele tamanho? Era uma situação extraordinária. De certa forma, Fitz-Norman era o homem mais rico que já existira, mas, ainda assim, ele não era nada nem ninguém. Se seu segredo transpirasse, seria impossível prever que medidas o governo tomaria para evitar o pânico no mercado de ouro e jóias. Talvez até se apoderassem da montanha para instituir um monopólio. Não havia alternativa — teria de comerciar sua montanha em segredo. Mandou chamar seu irmão mais novo no Sul e o pôs à testa dos escravos — negros que nunca souberam que a escravidão fora abolida. Para se certificar disso, leu uma proclamação que ele mesmo escrevera, anunciando que o general Forrest reorganizara os combalidos exércitos sulistas e derrotara o Norte numa esmagadora batalha. Os escravos acreditaram irrestritamente e até comemoraram com um culto religioso. Fitz-Norman, por sua vez, rumou para o exterior com cem mil dólares em dinheiro e duas arcas cheias de diamantes brutos de todos os tamanhos. Partiu para a Rússia num junco chinês e, seis meses depois, estava em São Petersburgo. Hospedou-se numa pensão barata e procurou imediatamente o joalheiro da corte, anunciando que tinha um diamante para o czar. Ficou duas semanas em São Petersburgo, correndo um constante risco de ser assassinado, mudando-se de pensão em pensão e temendo visitar suas arcas mais que três ou quatro vezes por quinzena. Sob a promessa de voltar em um ano, com pedras maiores e melhores, foi-lhe permitido viajar para a Índia. Antes de partir, no entanto, o Tesouro da Corte russa depositou a seu crédito, em bancos americanos, a soma de quinze milhões de dólares — sob quatro diferentes pseudônimos. Voltou à América em 1868, tendo ficado fora pouco mais de dois anos. Visitara a capital de vinte e dois países e falara com cinco imperadores, onze reis, três príncipes, um xá, um cã e um sultão. Naquela época, Fitz-Norman estimava sua riqueza em um bilhão de dólares. Um fato contribuiu firmemente para a preservação de seu segredo. Nenhum de seus maiores diamantes levou mais de uma semana até lhe atribuírem histórias de mortes, tragédias amorosas, revoluções e guerras que teria provocado desde os dias do primeiro império babilônico. De 1870 até sua morte, em 1900, a história de Fitz-Norman Washington foi um longo épico tecido em ouro. Houve façanhas paralelas, naturalmente — ele escapou às inspeções, casou-se com uma moça rica da Virgínia, com a qual teve um único filho, e, devido a uma série de complicações, foi obrigado a matar seu irmão, cujo infeliz hábito de beber o levava a cometer indiscrições que punham em risco a segurança deles. Mas poucos assassinatos mancharam aqueles lindos anos de progresso e expansão. Pouco antes de morrer, ele mudou de estratégia e, dispondo de alguns milhões de dólares de sua fortuna visível, comprou minerais raros a granel, que depositava na caixa-forte de bancos em todo o mundo, classificados como antiguidades. Seu filho, Braddock Tarleton Washington, seguiu essa política em escala ainda mais intensa. Os minerais eram convertidos no mais raro de todos os elementos — o rádio —, de forma a que o equivalente a um bilhão de dólares em ouro pudesse caber num receptáculo do tamanho de uma caixa de charutos. Quando Fitz-Norman estava morto havia três anos, seu filho, Braddock, decidiu que o negócio já fora longe demais. A quantidade de dinheiro que ele e seu pai haviam extraído da montanha estava além de qualquer cálculo exato. Abriu uma caderneta em código, na qual anotou a quantidade aproximada de rádio em cada um dos milhares de bancos em que tinha conta, com os respectivos pseudônimos que passavam por titulares. E, então, fez uma coisa muito simples: lacrou a mina. Lacrou a mina. O que saíra dela sustentaria em luxo indescritível todos os Washington ainda por nascer por muitas gerações a seguir. Sua única preocupação era proteger o segredo, já que o possível

pânico provocado por sua descoberta o reduziria, assim como a todos os proprietários do mundo, à total pobreza. Essa era a família que hospedava John T. Unger. Foi essa a história que ele ouviu num quarto forrado de ouro, na manhã seguinte à sua chegada.

V. Depois do café-da-manhã, John achou o caminho para a grande entrada de mármore e olhou com curiosidade para o cenário à sua frente. Todo o vale, da montanha de diamante até o penhasco de granito a oito quilômetros de distância, desprendia um hálito de bruma dourada que pairava sobre os gramados, lagos e jardins. Aqui e ali, feixes de olmos criavam delicados sulcos de sombra, contrastando estranhamente com a massa de pinheiros que sustentava as colinas com um abraço de um verde azul-escuro. Enquanto John espiava, três corças enfileiradas surgiram de uma moita a quinhentos metros e desapareceram com sua graça desajeitada atrás de outra moita escura. John não ficaria surpreso se visse um fauno tocando flauta entre as árvores ou se captasse de relance uma pele rósea de ninfa e cabelos dourados esvoaçando entre o verde das folhas. Como se esperasse por isso, desceu os degraus de mármore, perturbando ligeiramente o sono de dois sedosos cães russos ao pé da escadaria, e dirigiu-se a uma alameda de tijolos brancos e azuis que parecia não levar a nenhum lugar definido. Estava adorando tudo. A felicidade da juventude, assim como sua insuficiência, é a de que ela nunca pode viver no presente. Precisa estar sempre comparando aquele dia com seu próprio futuro, radiantemente imaginado — flores e ouro, garotas e estrelas, são apenas prefigurações ou profecias daquele sonho jovem, incomparável e inatingível. John dobrou uma esquina onde um grande número de roseiras enchia o ar com um aroma intenso e cruzou um parque na direção de uma área coberta de musgo sob algumas árvores. Nunca se deitara sobre musgo e queria verificar se ele era mesmo macio a ponto de justificar o uso da palavra como parâmetro de maciez. Nesse momento viu uma garota vindo em sua direção pelo gramado. Era a pessoa mais bonita que já vira na vida. Estava vestida com uma camisola branca que lhe chegava até logo abaixo dos joelhos e usava no cabelo uma grinalda de minhonetes presa com fatias azuis de safira. Seus róseos pés descalços espalhavam o orvalho à medida que se aproximava. Era mais nova do que John — não mais que dezesseis anos. “Olá”, ela disse suavemente. “Eu sou Kismine.” Para John, ela já era muito mais do que isso. Ele avançou em sua direção, mas parou ao chegar perto, para não pisar seus pés nus. “Ainda não nos conhecemos”, disse a voz suave. Os olhos azuis acrescentaram: “E você não sabe o que está perdendo!”... A voz suave continuou: “Ontem à noite você conheceu minha irmã Jasmine. Eu estava doente, com uma intoxicação de alface” — e a frase seguinte estava escrita em seus olhos: “Quando estou doente, sou uma gracinha e quando não estou...”. “Você provocou uma enorme impressão em mim”, disseram os olhos de John, “e eu também não sou de se jogar fora.” — “Prazer em conhecê-la”, disse sua voz, “espero que esteja se sentindo melhor” — “querida”, seus olhos, trêmulos, completaram. John se deu conta de que estavam passeando por uma alameda. Por sugestão dela, sentaram-se no musgo, cuja suavidade ele se esqueceu de conferir. Ele era muito crítico em relação às mulheres. Um simples defeito — um tornozelo mais grosso, uma voz rouca, um par de óculos — era suficiente para torná-lo terrivelmente indiferente à pessoa. E

agora, pela primeira vez em sua vida, via-se diante de uma garota que lhe parecia a encarnação da perfeição física. “Você é de Boston?”, perguntou Kismine com um interesse encantador. “Não, sou de Hades”, respondeu John com simplicidade. Ou ela nunca ouvira falar de Hades, ou não lhe ocorreu nada agradável para comentar a respeito, porque não voltou a tocar no assunto. “No outono, vou para uma escola no Leste”, ela disse. “Será que vai ser bom? Vou para Nova York, para a escola da senhorita Bulge. Ela é muito severa, mas posso passar os fins de semana com minha família em nossa casa de Nova York, porque papai ouviu dizer que as moças têm de andar sempre em duplas.” “Seu pai quer que você seja uma moça altiva”, observou John. “Nós somos”, ela respondeu, os olhos brilhando de dignidade. “Sabe que nunca recebemos um castigo? Papai disse que não podemos ser castigadas. Certa vez, quando minha irmã Jasmine era pequena, ela empurrou papai pelas escadas e ele só se levantou e saiu mancando. “Mamãe ficou, como direi, meio espantada”, continuou Kismine, “quando você disse a ela que era de... enfim, desse lugar de onde você veio. Ela contou que quando era jovem... mas, enfim, ela é espanhola e meio antiquada.” “Você passa muito tempo aqui?”, perguntou John, tentando esconder o fato de que estava magoado por aquela observação. Parecia uma alusão nada agradável a seu provincianismo. “Percy, Jasmine e eu passamos sempre o verão aqui, mas no próximo verão Jasmine irá para Newport. Ela irá a Londres daqui a um ano. Vai ser apresentada à corte.” “Você sabia”, hesitou John, “que é muito mais sofisticada do que pensei assim que vi você?” “Ah, não, não sou mesmo”, exclamou Kismine rapidamente. “Nem quero ser. Esses jovens sofisticados são tremendamente vulgares, você não acha? Não sou mesmo. E, se você disser que sou, vou acabar chorando.” Estava tão passada que seu lábio tremia. John sentiu-se obrigado a se corrigir: “Não, eu não quis dizer isso. Só falei para provocar você.” “Porque, se eu fosse, não me importaria”, ela insistiu, “mas acontece que não sou. Sou muito inocente e infantil, não fumo, não bebo e não leio nada, só poesia. Sou fraca em matemática e química, me visto de maneira simples — na verdade, nem ligo para roupas. Sofisticada é a última coisa que você pode dizer de mim. Acho que os jovens devem aproveitar a juventude o máximo que puderem.” “Eu também acho”, concordou John, de coração. Kismine estava alegre de novo. Sorriu para ele, e uma lágrima nascente brotou do canto de um olho azul. “Gostei de você”, ela sussurrou com intimidade. “Vai ficar o tempo todo com Percy enquanto estiver aqui, ou será bonzinho comigo? Pense só — sou um território absolutamente virgem. Nunca tive um rapaz apaixonado por mim em toda a minha vida. Nunca me deixaram a sós com rapazes — só com Percy. Aliás, vim até o jardim porque pensei que poderia encontrar você, sem a família por perto.” Profundamente envaidecido, John se curvou, como tinham lhe ensinado na escola de dança em Hades. “É melhor voltarmos”, disse Kismine com doçura. “Tenho que encontrar mamãe às onze horas. Você ainda não me pediu nem um beijo. Pensei que todos os rapazes fizessem isso hoje em dia.” John se aprumou orgulhosamente.

“Alguns, sim”, respondeu, “mas eu não. As moças não fazem esse tipo de coisa — em Hades.” Lado a lado, voltaram para a casa.

VI. John pôde finalmente ver o sr. Braddock Washington à luz do dia. Tinha cerca de quarenta anos, um rosto orgulhoso e neutro, olhos inteligentes e compleição robusta. De manhã, ele recendia a cavalos — cavalos de raça. Carregava um bastão comum com uma opala grande como castão. Ele e Percy mostravam a propriedade a John. “O alojamento dos escravos é ali.” Seu bastão apontou para a esquerda, indicando um claustro de mármore em estilo gótico, que se estendia paralelo à montanha. “Na juventude, andei confundindo temporariamente o lado comercial da vida com um absurdo idealismo. Nesse período, eles gozaram de todos os luxos. Cheguei até a equipar seus quartos com banheira.” “Imagino”, arriscou John, com um sorriso cativante, “que eles tenham usado as banheiras para guardar carvão. O senhor Schnlitzer-Murphy me contou que...” “As opiniões do senhor Schnlitzer-Murphy têm pouca importância, a meu ver”, cortou secamente Braddock Washington. “Meus escravos não estocavam carvão nas banheiras. Tinham ordem para tomar banho todos os dias, e obedeciam. Se não obedecessem, eu seria capaz de submetê-los a jatos de ácido sulfúrico. Removi as banheiras por um motivo bem diferente. Muitos ficavam resfriados e morriam. A água não faz bem a certas raças — exceto para beber.” John riu e decidiu fazer que sim com a cabeça, em sóbria concordância. Sentia-se mal na presença de Braddock Washington. “Todos esses negros são descendentes dos primeiros que meu pai trouxe para o Norte. São cerca de duzentos e cinqüenta atualmente. Pode notar que eles têm vivido tão fora do mundo que seu dialeto original tornou-se um patoá quase incompreensível. Criamos alguns para falar inglês — meu secretário e dois ou três criados da casa. “Esse é o campo de golfe”, continuou, ao caminharem por um aveludado gramado de inverno. “É um green inteiriço, como vê — sem partes lisas, sem acidentes, sem obstruções.” Sorriu simpaticamente para John. “Muita gente na jaula, papai?”, perguntou Percy de repente. Braddock Washington deu um passo em falso e soltou um palavrão involuntário. “Um a menos do que deveria haver”, respondeu sombriamente — e, após breve hesitação, acrescentou: “Temos tido dificuldades”. “Mamãe estava me contando”, disse Percy, “sobre aquele professor italiano...” “Erro terrível”, disse Braddock Washington com raiva. “Mas há uma boa chance de o pegarmos. Talvez tenha caído em algum buraco da floresta ou despencado de um penhasco. E há também a probabilidade de que, se conseguiu escapar, ninguém acreditará em sua história. Mesmo assim, estou com uns vinte homens procurando por ele nas cidades vizinhas.” “Já conseguiu alguma coisa?” “Sim. Quatorze deles informaram a meu agente que cada um matou um homem que correspondia à descrição. Mas é claro que podem estar apenas atrás da recompensa...” Interrompeu o relato. Tinham chegado a uma grande cavidade na terra, com a circunferência de um carrossel e coberta por uma pesada grade de ferro. Braddock Washington acenou para John e apontou seu bastão para a grade. John caminhou até a borda e espiou. Imediatamente seus ouvidos foram assaltados por um violento clamor vindo lá de baixo: “Quer conhecer o Inferno?”

“Ei, garoto, como está o tempo aí?” “Ei, você! Jogue uma corda!” “Tem uns biscoitos ou sanduíches sobrando?” “Escute, moleque, se empurrar esse cara aqui embaixo, nós ensinamos para você um truque de fazer desaparecer!” “Dê na cara dele por mim!” Estava muito escuro no poço para se ver com nitidez, mas John podia perceber, pelo áspero humor e vitalidade daquelas vozes e piadas, que se tratava de americanos de classe média e do tipo gozador. Então, o sr. Braddock Washington estendeu seu bastão e tocou um botão na grama, iluminando o cenário lá dentro. “São alguns infelizes fuzileiros que tiveram a má sorte de descobrir El Dorado”, informou. O fundo da cavidade tinha a forma de uma tigela. As laterais eram altas e aparentemente de vidro polido, e, em sua superfície ligeiramente côncava, havia cerca de vinte homens vestidos com uma mistura de roupas comuns e uniformes de aviadores. Seus rostos virados para o alto estampavam o ódio, a malícia, o desespero, o humor cínico. Estavam cobertos por longas barbas, mas, com exceção de alguns nitidamente estiolados, pareciam bem alimentados e saudáveis. Braddock Washington puxou uma cadeira de jardim para a borda do poço e sentou-se. “Como vão, rapazes?”, perguntou jovialmente. Um coro de insultos a que todos se juntaram, menos os que estavam muito fracos para gritar, subiu rumo ao ar ensolarado, mas Braddock Washington escutou aquilo com imperturbável compostura. Quando o eco do último xingamento se dissipou, voltou a falar: “Já imaginaram alguma forma de sair dessa situação difícil?” De várias partes do poço, subiram respostas. “Não, resolvemos ficar. Adoramos este buraco.” “Se nos tirar daqui, prometemos encontrar um jeito de sair.” Braddock Washington esperou até que se acalmassem de novo. Então disse: “Já expliquei a situação. Não queria vocês aí. Por mim, nunca teria visto nenhum de vocês. Foi a curiosidade que os trouxe até aqui e, se acharem um jeito de ir embora que me proteja e aos meus interesses, terei prazer em pensar no assunto. Mas, enquanto limitarem seus esforços a cavar túneis — isso mesmo, estou sabendo que acabaram de começar um novo —, isso não os levará muito longe. Sei que não está sendo tão difícil para vocês como querem que eu acredite — toda essa lamúria por suas mulheres ou família. Se fossem do tipo que se interessassem muito por mulheres ou família, não teriam escolhido a aviação.” Um homem bem alto separou-se dos outros e levantou a mão, para chamar a atenção de seu captor. “Posso lhe fazer algumas perguntas?”, gritou. “O senhor se diz um homem justo.” “Que absurdo! Como um homem na minha posição pode ser justo com vocês? É o mesmo que pedir a um espanhol para ser justo com um bife.” Diante dessa dura observação, a cara dos vinte e poucos bifes lá embaixo caiu. Mas o homem continuou: “Está bem!”, gritou. “Já discutimos isso antes. Você não é um filantropo e também não quer ser justo. Mas é humano — pelo menos, diz que é — e deve ser capaz de se pôr no nosso lugar, nem que seja um pouco, para se convencer de que é...” “É o quê?” “É desnecessário...” “Não para mim.”

“E cruel...” “Isso também já está resolvido. A crueldade deixa de existir quando se trata de autodefesa. Vocês são soldados e sabem disso. Tentem outra.” “Mas é estúpido!” “Ah, sim”, admitiu Washington. “Com isso, eu concordo. Mas tente pensar numa alternativa. Já lhes ofereci uma execução indolor, individual ou coletiva, como preferirem. Já ofereci seqüestrar suas mulheres, namoradas, filhos, mães, e trazer todo mundo para cá. Posso também aumentar as instalações aí embaixo e vestir e alimentar todo mundo pelo resto da vida. Se houvesse alguma maneira de produzir amnésia permanente, já teria operado todos vocês e os libertado imediatamente, em algum lugar fora das minhas propriedades. Mas, com isso, esgotei minhas idéias.” “Que tal confiar em que não vamos entregá-lo?”, gritou um deles. “Esta não é uma sugestão séria”, disse Washington, com uma expressão de desprezo. “Mandei vir um professor para ensinar italiano à minha filha. Na semana passada, ele fugiu.” Ouviu-se um urro coletivo de júbilo, saído de vinte e quatro gargantas, seguindo-se um pandemônio de alegria. Os prisioneiros dançavam e davam vivas e cantavam e lutavam uns contra os outros numa súbita explosão de delírio animal. Alguns até se atiraram nas laterais de vidro da tigela o mais alto que podiam, e deslizavam de volta para o fundo, caindo sobre as almofadas naturais que eram seus corpos. O homem alto começou a cantar, sendo logo seguido por outros: Vamos enforcar o cáiser No alto da macieira... Braddock Washington continuou sentado em inescrutável silêncio, esperando a canção terminar. “Estão vendo?”, continuou, quando sentiu que teria um mínimo de atenção. “Não tenho rancor por vocês. Gosto de vê-los se divertindo. Foi por isso que não lhes contei a história inteira. O homem — como se chamava mesmo? — foi fuzilado por alguns de meus agentes em quatorze lugares diferentes.” Sem adivinhar que os lugares a que ele se referira eram cidades, os prisioneiros diminuíram imediatamente o tumulto. “De qualquer maneira”, gritou Washington com fúria na voz, “ele tentou escapar. Acham que vou correr o risco com vocês depois dessa experiência?” De novo, ouviu-se um coro de gozações. “Claro!” “Sua filha não quer aprender chinês?” “Olhe, eu sei falar italiano. Minha mãe era carcamana!” “Quem sabe ela não quer falar novaiorquês?” “Se for aquela pequeninha de olhos azuis, posso ensinar-lhe coisa melhor que italiano!” “Conheço algumas canções irlandesas...” O sr. Washington inclinou-se para a frente com seu bastão, apertou o botão na grama e o quadro lá embaixo apagou-se num instante, só restando a grande boca escura tristemente coberta pelos dentes negros da grade. “Escute”, gritou uma voz solitária, “já vai embora sem nos dar sua bênção?” Mas o sr. Washington, seguido pelos dois rapazes, já se encaminhava para o nono buraco do campo de golfe, como se o poço e seu conteúdo não passassem de uma pequena elevação na grama, facilmente dominável por seu taco.

VII. Julho, sob o manto da montanha de diamante, era um mês de noites abafadas e dias quentes e gloriosos. John e Kismine estavam apaixonados. Ele não sabia que a bolinha de ouro que lhe dera (com a inscrição gravada Pro deo et patria et St. Mida) descansava em seu peito, presa a uma corrente de platina. E Kismine, por sua vez, não percebeu que uma grande safira que um dia se desprendera de seu cabelo estava carinhosamente guardada na caixinha de jóias de John. Num certo fim de tarde, quando a sala de música, nas cores rubi e arminho, ficou silenciosa, eles passaram uma hora juntos ali. Ele lhe segurou a mão e ela respondeu com um olhar que o fez sussurrar seu nome em voz alta. Ela se inclinou para ele — e hesitou. “Você disse ‘Kismine’?”, ela perguntou suavemente, “ou...” Queria ter certeza. Pensou que tivesse entendido mal. Os dois ainda não tinham se beijado, mas, no decorrer de uma hora, isso pareceu não fazer diferença. A tarde se dissipou. Naquela noite, quando o último suspiro de música volatizou-se da torre mais alta, nenhum dos dois conseguia dormir, sonhando com cada minuto do dia. Tinham decidido casar-se o mais rápido possível.

VIII. Todos os dias, o sr. Washington e os dois rapazes iam caçar ou pescar no fundo da floresta, jogar golfe — John, diplomaticamente, deixava seu anfitrião ganhar — ou nadar no lago frio da montanha. John achava o sr. Washington um homem difícil — totalmente desinteressado de quaisquer idéias ou opiniões que não fossem as suas. A sra. Washington era distante e reservada. Parecia indiferente às duas filhas e inteiramente concentrada em seu filho Percy, com quem tinha intermináveis conversas em espanhol no jantar. Jasmine, a filha mais velha, era parecida com Kismine — exceto pelas pernas ligeiramente arqueadas e pelos pés e mãos grandes —, mas era completamente diferente em temperamento. Seus livros favoritos contavam histórias de garotas pobres que sustentavam pais enviuvados. John soube por Kismine que Jasmine nunca se recuperara do choque e desapontamento provocados pelo fim da Guerra Mundial, porque estava prestes a ir para a Europa como especialista em cantinas de acampamento. Ficara até deprimida por algum tempo, e Braddock Washington tomara medidas para promover uma nova guerra nos Bálcãs, mas Jasmine viu uma foto de soldados sérvios feridos e perdeu o interesse pelo negócio. Percy e Kismine pareciam ter herdado a postura arrogante do pai, em toda a sua cruel magnificência. Um egoísmo casto e consistente permeava cada uma de suas idéias. John estava encantado pelas maravilhas do castelo e do vale. Braddock Washington — foi o que Percy lhe contou — providenciara o seqüestro de um paisagista, um arquiteto, um decorador de interiores e um decadente poeta francês, sobrevivente do último século. Pôs os negros às suas ordens, garantiu-lhes que teriam toda espécie de material disponível no mundo e deixou-os livres para desenvolver suas próprias idéias. Mas, um por um, eles começaram a se mostrar inúteis. O poeta decadente quase imediatamente foi tomado de saudade dos bulevares na primavera — fez algumas vagas observações sobre ervas, macacos e marfins, mas não disse nada de valor prático. O decorador, por sua vez, queria fazer de todo o vale uma série de truques e efeitos sensacionais — algo de que os Washington não demorariam a se cansar. E, quanto ao arquiteto e ao paisagista, só pensavam em termos convencionais. Isto tinha de ser feito de um jeito e aquilo de outro.

Mas, pelo menos, tinham resolvido o problema do que fazer com eles — certa manhã, todos enlouqueceram depois de passar a noite num único quarto tentando decidir sobre a localização de um chafariz, e estavam agora confortavelmente internados num hospício em Westport, Connecticut. “Mas”, perguntou John com curiosidade, “quem planejou esses magníficos quartos e salões, corredores e banheiros...?” “Olhe”, respondeu Percy, “tenho até vergonha de contar, mas foi um sujeito do cinema. Foi o único que encontramos habituado a lidar com uma quantidade ilimitada de dinheiro, embora não soubesse ler nem escrever.” À medida que agosto chegava ao fim, John começou a lamentar que logo tivesse de voltar para a escola. Ele e Kismine haviam decidido fugir em junho do ano seguinte. “Seria tão melhor se a gente se casasse aqui”, confessou Kismine. “Mas é claro que papai nunca me deixaria casar com você. É terrível para pessoas ricas se casarem nos Estados Unidos hoje em dia — precisam plantar notas na imprensa dizendo que vão se casar usando material de segunda mão, quando estão se referindo a pérolas ou a um colar que pertenceu um dia à imperatriz Eugênia.” “Eu sei”, concordou John entusiasticamente. “Quando eu estava visitando a família SchnlitzerMurphy, a filha mais velha, Gwendolyn, se casou com um sujeito que era dono de metade da Virgínia. Ela escreveu para os pais dizendo como era duro viver com o salário dele, de funcionário de banco, e terminava dizendo ‘Graças a Deus, tenho quatro empregadas, e isso ajuda um pouco’.” “É um absurdo”, comentou Kismine. “Pense nos milhões e milhões de pessoas no mundo, trabalhadores e gente assim, que sobrevivem com apenas duas empregadas.” Certa tarde, no fim de agosto, uma observação casual de Kismine mudou a situação e pôs John num estado de terror. Estavam em sua alameda favorita e, entre um beijo e outro, John se entregava a certas digressões românticas que, para ele, davam um tom mais pungente a seu relacionamento. “Às vezes acho que nunca vamos nos casar”, ele disse com tristeza. “Você é rica demais, maravilhosa demais. Uma pessoa tão rica não pode ser como as outras moças. Eu devia me casar era com a filha de algum próspero atacadista de ferragens de Omaha ou Sioux City, e me contentar com o meio milhão de dólares que ela vai herdar.” “Conheci a filha de um atacadista de ferragens”, disse Kismine. “Não acho que você fosse gostar dela. Era amiga de minha irmã. Veio nos visitar.” “Ah, então vocês tiveram outros hóspedes?”, perguntou John, surpreso. Kismine pareceu arrependida de ter aberto a boca. “Ah, sim”, respondeu apressada, “alguns.” “Mas vocês... seu pai não tem medo de que as pessoas falem sobre isto aqui?” “Até certo ponto, até certo ponto. Vamos falar de coisas mais agradáveis.” Mas a curiosidade de John tinha sido aguçada. “Coisas mais agradáveis?”, ele perguntou. “O que há de desagradável nisso? Não eram pessoas interessantes?” Para sua grande surpresa, Kismine começou a chorar. “Eram... elas... esse é o prob... problema. Fiquei mu... muito ligada a algumas delas. Jasmine também, mas ela continuou convidando-as do mesmo jeito. Eu não conseguia entender.” Uma negra suspeita surgiu no coração de John. “Você quer dizer que elas falaram e que seu pai teve de removê-las?” “Pior que isso”, ela murmurou, aos soluços. “Papai não quis se arriscar... e Jasmine continuou escrevendo para elas voltarem. E elas tinham se divertido tanto!”

Kismine foi tomada por um paroxismo de dor. Chocado com o horror dessa revelação, John sentou-se, de boca aberta, sentindo tremer cada nervo de seu corpo, como se milhares de pardais bicassem sua espinha. “Pronto, já contei, e não devia ter contado”, ela disse, acalmando-se subitamente e enxugando os olhos azuis. “Isso significa que seu pai as matou enquanto elas estavam aqui?” Ela concordou. “É quase sempre em agosto — ou no começo de setembro. Mas, antes, tiramos todo o prazer que podemos ter com essas visitas.” “Mas isso é abominável! Como... ora, devo estar ficando louco! Você acabou de admitir que...?” “Foi”, interrompeu Kismine, dando de ombros. “Elas não podem ficar presas aqui, como aqueles aviadores, porque seria uma vergonha para nós, todos os dias. E papai sempre procurou tornar as coisas mais fáceis para Jasmine e para mim, fazendo a coisa antes que a gente esperasse. Assim, nós éramos poupadas de alguma cena de despedida...” “Então vocês as matavam!”, gritou John. “Mas sempre foi feito de maneira muito boa. Eram drogadas enquanto dormiam, e suas famílias eram comunicadas de que tinham morrido de escarlatina em Butte.” “O que eu não entendo é... por que continuaram convidando?” “Eu nunca convidei ninguém”, explodiu Kismine. “Jasmine, sim. E elas sempre se divertiram muito. Ela lhes dava os presentes mais lindos, quando já estava perto do fim. Eu também terei minhas visitas, eu acho... vou acabar me acostumando. Não podemos deixar que uma coisa inevitável como a morte nos impeça de gozar a vida. Pense em como isto aqui seria tão solitário se nunca tivéssemos ninguém. Ora, papai e mamãe sacrificaram alguns de seus melhores amigos, assim como nós sacrificamos os nossos.” “E com isso”, gritou John, acusadoramente, “você me deixou namorá-la, e fingia corresponder, falando de casamento, sabendo muito bem que eu nunca vou sair vivo daqui...” “Não”, ela protestou apaixonadamente. “Não mais. No começo, sim. Você estava aqui. Eu não podia evitar, e pensei que os seus últimos dias podiam ser o mais agradável possível para nós dois. Mas aí eu me apaixonei por você e... e estou sofrendo porque você terá de... ser removido... embora eu prefira isso a saber que você está beijando outra moça.” “Ah, é? Ah, é?”, a voz de John tremia de ódio. “Pra mim, chega. Se você não tem orgulho e decência, e se dispõe a namorar um sujeito que já é quase um cadáver, não quero mais saber de você.” “Você não é um cadáver!”, ela disse com horror. “Você não é um cadáver! Não vou deixar você dizer que beijei um cadáver!” “Eu não disse isso!” “Disse, sim. Disse que eu beijei um cadáver!” “Não disse!” Suas vozes tinham se levantado, mas, depois de uma súbita interrupção, ambas reduziram-se a um imediato silêncio. Ouviram passos vindos da alameda em sua direção e, daí a um momento, as roseiras se separaram, dando passagem a Braddock Washington, cujos olhos inteligentes no rosto vazio e bonito fixaram-se neles. “Quem beijou um cadáver?”, ele perguntou, obviamente irritado. “Ninguém”, respondeu Kismine. “Estávamos só brincando.” “O que estão fazendo aqui?”, continuou, com voz brusca. “Kismine, você deveria estar... estar

lendo ou jogando golfe com sua irmã. Vá ler! Vá jogar golfe! Não quero encontrá-la por aqui quando voltar!” Curvou-se para John e saiu pela estrada. “Está vendo?”, disse Kismine, contrariada. “Você estragou tudo! Nunca mais poderemos nos encontrar. Ele não vai me deixar ver você de novo. Ele envenenará você se descobrir que estamos apaixonados.” “Mas não estamos! Não estamos mais”, gritou John. “Ele pode ficar descansado quanto a isso. Além do mais, não se iluda se acha que vou continuar aqui. Em menos de seis horas estarei longe dessas montanhas, nem que tenha de roer a pedra para abrir uma passagem de volta para casa.” Os dois tinham se posto de pé e, ao ouvir aquilo, Kismine aproximou-se e enlaçou-o. “Eu vou com você!” “Você deve estar louca...” “Claro que vou.” “Claro que não vai. Você...” “Está bem”, ela disse com tranqüilidade. “Vamos correr atrás de papai agora e falar a respeito com ele.” Derrotado, John deixou escapar um sorriso amarelo. “Está bem, querida”, concordou, com um afeto pálido e pouco convincente. “Vamos juntos.” O amor por ela voltou e instalou-se placidamente em seu coração. Ela lhe pertencia — ela o acompanharia para partilhar seus perigos. Enlaçou-a e se beijaram com fervor. Afinal, ela o amava; e, na verdade, o salvara. Discutindo o assunto, caminharam lentamente de volta para o castelo. Decidiram que, como Braddock Washington os vira juntos, seria melhor partirem na noite seguinte. Mesmo assim, os lábios de John estavam extraordinariamente secos durante o jantar e ele, nervoso, despejou uma colherada de sopa de pavão em seu pulmão esquerdo. Teve de ser carregado para o salão de jogos e levar tapas nas costas, aplicados pelos mordomos, o que Percy achou muito divertido.

IX. Alta madrugada, John teve um espasmo nervoso e, com um rompante, aprumou-se na cama, olhando para os véus de sonolência que ornavam o quarto. Pelos quadrados de azul-escuro das janelas abertas, ouviu um som fraco e à distância, que foi levado pelo vento antes que sua memória, turvada por sonhos inquietos, pudesse identificá-lo. Mas o ruído agudo que o sucedera viera de mais perto e estava bem do lado de fora do quarto — o clique de uma maçaneta, alguns passos, um sussurro, ele não sabia dizer. Um bolo duro formou-se na boca de seu estômago e todo seu corpo pareceu doer enquanto ele se esforçava, agoniado, para escutar. Depois, um dos véus pareceu dissolver-se e viu uma vaga figura de pé junto à porta, uma figura só a custo discernível e envolta pela escuridão, tão misturada às dobras do cortinado a ponto de parecer distorcida, como um reflexo visto por um vidro sujo. Com um brusco movimento de medo ou resolução, John apertou o botão de sua cabeceira e, um instante depois, estava sentado na banheira do quarto adjacente, acordado e alerta pelo choque da água fria que a enchia pela metade. Pulou dali e, com seu pijama ensopado deixando um pesado rastro de água pelo chão, correu para a porta que ele sabia dar para o deque de marfim no segundo andar. A porta se abriu sem barulho. Uma única lâmpada vermelha acesa na cúpula iluminava com uma beleza pungente o magnífico lance de escadas. Por um momento John hesitou, esmagado pelo esplendor maciço e silente ao redor, cujas

dobras e contornos pareciam envolver sua figura frágil, ensopada e trêmula no chão de marfim. Então, simultaneamente, duas coisas aconteceram. A porta da sala de estar se escancarou e por ela se precipitaram três negros nus — e, enquanto John se desviava aterrorizado rumo à escadaria, outra porta deslizou, abrindo-se numa parede no lado contrário do corredor — e John viu Braddock Washington de pé, no elevador iluminado, usando um casaco de pele e botas de montaria que chegavam aos joelhos e deixavam entrever o brilho de seu pijama rosa. Naquele momento, os três negros — John nunca os vira antes e ocorreu-lhe que deviam ser os carrascos profissionais — estacaram diante de John e olharam, expectantes, para o homem no elevador, o qual emitiu uma ordem explosiva: “Venham cá! Os três! Já!” No mesmo instante, os três negros correram para o elevador, cuja porta se fechou apagando o oblongo de luz, e John viu-se de novo sozinho na sala. Deixou-se cair, vencido, sobre um degrau de marfim. Era visível que algo importante acontecera, algo que, pelo menos por enquanto, adiara seu destino. Mas o quê? Os negros teriam se revoltado? Os aviadores teriam conseguido forçar as barras de ferro da jaula? Ou seriam os homens de Fish que teriam se aventurado cegamente pelas colinas e espiado, com seus olhos baços e sem alegria, as maravilhas do vale? John não sabia. Ouviu um silvo fugidio de vento quando o elevador zuniu ao subir de novo e, de novo, um momento depois, ao descer. Era provável que Percy estivesse ajudando o pai, e ocorreu a John que esta era sua oportunidade para procurar Kismine e planejarem uma fuga imediata. Esperou até que o elevador ficasse silencioso por vários minutos. Tremendo com o frio da noite que o chicoteava através do pijama molhado, voltou para seu quarto e se vestiu correndo. Depois, subiu um longo lance de escadas e virou no corredor acarpetado de marta que levava à suíte de Kismine. A porta da ante-sala estava aberta e as lâmpadas acesas. Kismine, num quimono angorá, postavase junto à janela numa atitude de escuta e, quando John entrou sem fazer barulho, ela se virou. “Ah, é você!”, sussurrou, correndo em sua direção. “Você ouviu?” “Ouvi os escravos de seu pai em meu...” “Não”, ela interrompeu, excitada. “Os aviões!” “Aviões? Vai ver que foi esse o som que me acordou.” “Devem ser pelo menos uma dúzia. Vi um deles agorinha mesmo, delineado contra a lua. O vigia no alto do penhasco disparou o rifle e foi isso que acordou papai. Vamos ter de atirar contra eles.” “Estão aqui de propósito?” “Sim... foi aquele italiano que escapou...” Simultaneamente com sua última palavra, uma sucessão de estampidos agudos penetrou pela janela aberta. Kismine deu um gritinho, tirou com dedos nervosos uma moeda de uma caixa em sua penteadeira e correu para uma das lâmpadas elétricas. Num instante, todo o castelo estava em trevas — ela havia queimado um fusível. “Venha!”, gritou para ele. “Vamos para o jardim da cobertura, de onde se pode ver melhor.” Jogando uma capa nos ombros, ela o tomou pela mão e eles encontraram o caminho no escuro até a porta. Era só um passo até o elevador da torre e, ao apertar o botão que os levaria para cima, ele a abraçou e a beijou na boca. O romance finalmente acontecera na vida de John Unger. Um minuto depois, já tinham chegado à plataforma estrelada. Lá em cima, entrando e saindo das nesgas de nuvens sob a lua baça, flutuavam dez ou mais corpos de asas escuras num constante movimento circular. De alguns pontos do vale, jatos de fogo subiam na direção deles, seguidos por detonações. Kismine batia palmas de prazer, prazer este que, logo depois, converteu-se em terror quando os

aviões, seguindo alguma senha pré-combinada, começaram a despejar bombas e todo o vale tornouse um espetáculo de som e luz que reverberava como uma tempestade. Em pouco tempo, o alvo dos atacantes concentrou-se nos pontos onde se situavam as baterias antiaéreas, e uma delas foi reduzida a um monte de cinzas ardendo entre os arbustos cor-de-rosa. “Kismine”, implorou John, “esse ataque aconteceu na véspera de meu assassinato. Se eu não tivesse ouvido o tiro do vigia no penhasco, estaria morto agora...” “Não estou ouvindo”, gritou Kismine, concentrada na cena à sua frente. “Fale mais alto!” “Eu disse”, berrou John, “que é melhor darmos o fora daqui antes que eles comecem a bombardear o castelo!” De repente, o pórtico do alojamento dos negros explodiu. Um gêiser de fogo elevou-se das colunatas e grandes fragmentos de mármore foram atirados tão longe que quase chegaram às margens do lago. “Lá se vão cinqüenta mil dólares de escravos”, disse Kismine, “preço de antes da guerra. As pessoas neste país já não têm respeito pela propriedade.” John esforçou-se de novo para convencê-la a saírem dali. A mira dos aviões estava ficando mais precisa a cada minuto, e apenas dois dos ninhos antiaéreos continuava disparando. Era evidente que a guarnição, cercada pelo tiroteio, não resistiria por muito tempo. “Vamos!”, gritou John, puxando o braço de Kismine, “temos de cair fora. Os aviadores nos matarão assim que nos encontrarem.” Ela consentiu com relutância. “Temos de avisar Jasmine!”, disse, correndo para o elevador. E acrescentou, com deleite quase infantil: “Vamos ser pobres, não vamos? Como as pessoas nos livros. Eu serei uma órfã, completamente livre. Livre e pobre! Que maravilha!”. Parou e levou seus lábios aos dele num beijo encantado. “É impossível ser as duas coisas ao mesmo tempo”, disse John com voz amarga. “As pessoas já descobriram isso. E, se for preciso escolher, prefiro ser livre. Por via das dúvidas, é melhor você despejar o conteúdo da sua caixa de jóias nos seus bolsos.” Dez minutos depois, as duas garotas encontraram John no corredor escuro e eles desceram até o piso principal do castelo. Atravessando pela última vez a magnificência dos salões, pararam por um momento no terraço para observar o alojamento dos escravos se incendiando e as brasas flamejantes de dois aviões que haviam caído no outro lado do lago. Uma arma solitária ainda mantinha uma firme resistência, e os atacantes pareciam temerosos de voar mais baixo, mas continuavam despejando foguetes trovejantes em volta do alojamento, até que um tiro mais feliz aniquilasse o resto dos etíopes. John e as duas irmãs desceram a escadaria de mármore, viraram à esquerda e começaram a subir por uma passagem estreita que serpenteava pela montanha de diamante. Kismine conhecia um lugar com uma espessa vegetação na metade da encosta; lá, poderiam se esconder e ainda espiar a noite selvagem no vale — e finalmente escapar, quando fosse necessário, por um caminho secreto num barranco rochoso.

X. Eram três da manhã quando chegaram a seu destino. Jasmine, apagada e apática, dormiu imediatamente, recostada ao tronco de uma árvore grossa, enquanto John e Kismine sentaram-se abraçados e contemplaram o fluxo e o refluxo da batalha entre as ruínas de um cenário que, naquela mesma manhã, fora um jardim. Pouco depois das quatro, a última arma remanescente produziu seu

derradeiro clangor e desapareceu numa língua de fumaça vermelha. Embora a lua estivesse baixa, eles podiam ver as aeronaves voando em círculos cada vez mais perto da terra. Quando os aviões se certificassem de que os sitiados já não tinham recursos de defesa, iriam aterrissar, e o reinado sombrio e brilhante dos Washington estaria terminado. Com o cessar-fogo, o vale se aquietou. As brasas dos dois aviões abatidos incandesciam sobre a grama como os olhos de um monstro agonizante. O castelo estava escuro e silencioso, lindo mesmo sem luz, como era lindo ao sol, enquanto o rufar de Nêmesis enchia o ar de lamúria. Então John percebeu que, a exemplo da irmã, Kismine também adormecera. Passava muito das quatro quando ele ouviu passos no caminho por onde tinham vindo, e esperou em silêncio, sem respirar, até que as pessoas que os produziam passassem por eles. Houve um pequeno rebuliço na atmosfera, que não parecia de origem humana, e o orvalho estava frio; ele sabia que o dia não demoraria a nascer. John esperou até que os passos estivessem a uma distância segura na montanha e ficassem inaudíveis. A meio caminho do penhasco, as árvores definhavam e uma lombada de rocha se espalhava sobre o diamante. Pouco antes de chegar a esse ponto, retardou o passo, advertido por algum sentido animal de que havia vida nas proximidades. Chegando a uma pedra alta e arredondada, levantou a cabeça aos poucos sobre a borda. Sua curiosidade foi recompensada, pois foi isto o que ele viu: Braddock Washington de pé, imóvel, silhuetado contra o céu cinzento, sem um som ou sinal de vida. A alvorada, ao surgir do leste e ao emprestar à terra uma luz fria e verde, revelava a figura solitária em insignificante contraste com o novo dia. Sob as vistas de John, seu anfitrião ficou por alguns momentos absorto em alguma contemplação inescrutável. Em seguida, fez sinal para dois negros, que se agacharam para levantar do chão uma carga. Quando, com esforço, eles se aprumaram, o primeiro raio amarelo do sol atingiu os inúmeros prismas de um enorme diamante, lindamente cinzelado, e gerou uma radiação branca que atravessou o ar como fragmentos de uma estrela da manhã. Os carregadores cambalearam ao seu peso, mas depois seus músculos se encresparam e endureceram sob o brilho úmido da pele, e as três figuras estavam de novo imóveis em sua desafiadora impotência diante dos céus. Mais um pouco e o homem branco levantou a cabeça e lentamente esticou os braços como quem pede atenção — como quem pede silêncio a uma multidão. Mas não havia multidão, apenas o vasto silêncio da montanha e do céu, quebrado por fugidios pios de pássaros nas árvores. A figura de pé na pedra começou a falar lentamente e com um orgulho inextinguível. “Você...”, gritou com voz trêmula. “Você!” Fez uma pausa, os braços ainda erguidos, a cabeça levantada como quem esperasse uma resposta. John forçou os olhos para ver se via alguém descendo a montanha, mas ela parecia nua de vida humana. Só havia o céu e a flauta brincalhona de vento no arvoredo. Washington estaria rezando? Por um momento, foi o que John pensou. Então a ilusão se dissipou — havia algo na atitude do homem que era o contrário de uma prece. “Ei! Você aí em cima!” A voz se tornara forte e confiante. Não havia súplica ou desalento. No máximo, parecia tingida de uma monstruosa condescendência. “Você aí...” Palavras ditas muito depressa para ser entendidas brotavam umas atrás das outras. John ouvia sem respirar, captando uma frase aqui e ali, enquanto a voz falhava, era retomada, falhava de novo — ora forte e argumentativa, ora turvada por uma lenta e confusa impaciência. Então, uma certeza começou a nascer na mente do ouvinte solitário e, assim que foi tomado por ela, um jato de sangue percorreulhe as artérias. Braddock Washington estava tentando subornar Deus!

Era isso, não havia dúvida. O diamante nos braços dos escravos era uma espécie de adiantamento, uma amostra do que ele poderia oferecer. Essa, como John estava percebendo, era a mensagem que se entendia nas frases. Um Prometeu Enriquecido invocava sacrifícios, rituais esquecidos, preces obsoletas antes do nascimento de Cristo. Por um momento, seu discurso tentou lembrar Deus desta ou daquela oferenda que a Divindade já se dignara a aceitar dos homens — grandes igrejas para salvar cidades de alguma peste, presentes de ouro e mirra, vidas humanas, belas mulheres e exércitos cativos, crianças e rainhas, animais do campo e da floresta, carneiros e bodes, safras e cidades, vastas terras ofertadas em luxúria e sangue para apaziguá-Lo, tudo para comprar um quinhão de alívio na ira divina — e agora, ele, Braddock Washington, Imperador dos Diamantes, rei e pároco da idade do ouro, árbitro do esplendor e da luxúria, oferecia-Lhe um tesouro com que nenhum príncipe antes dele sequer sonhara, oferecia-Lhe não em súplica, mas com orgulho. Ele daria a Deus, continuou (e descendo a especificações), o maior diamante do mundo. Esse diamante seria cortado com milhares de facetas a mais do que havia de folhas numa árvore e, mesmo assim, o diamante inteiro teria a perfeição de uma pedra não maior que uma mosca. Muitos homens trabalhariam nele por muitos anos. Seria colocado num domo de ouro lavrado, maravilhosamente esculpido e equipado com portões de opala e incrustações de safira. No centro seria escavada uma capela encimada por um altar de rádio iridescente e mutante, que queimaria os olhos de qualquer fiel que levantasse os olhos durante a prece — e, nesse altar, dar-se-iam sacrifícios para o Benfeitor Divino de qualquer vítima que Ele escolhesse, mesmo que fosse o maior e mais poderoso homem do mundo. Em troca, Braddock pedia apenas uma coisa, uma coisa que, para Deus, seria absurdamente fácil — que a situação revertesse à de ontem àquela mesma hora e assim continuasse. Tão simples! Bastava fazer com que os céus se abrissem, engolindo aqueles homens e seus aviões — e depois se fechasse de novo, trazendo seus escravos mais uma vez à vida. Nunca existira alguém com quem Braddock precisasse apostar ou barganhar. Ele se perguntava apenas se sua oferta de suborno era grande o bastante. Deus teria Seu preço, é claro. Deus era feito à imagem do homem, assim se dizia. Ele devia ter Seu preço. Mas sua oferta era esplêndida — nenhuma catedral cuja construção tivesse consumido muitos anos, nenhuma pirâmide levantada por dez mil operários poderiam comparar-se à sua catedral, à sua pirâmide. Fez uma pausa. Aquela era a sua proposta. Tudo seguiria suas especificações e não havia nada de vulgar em sua afirmação de que pedia pouco para o que estava dando. Queria dizer que, para a Providência, era pegar ou largar. Ao se aproximar da conclusão, suas frases saíram trêmulas, curtas e incertas, e seu corpo parecia tenso e cansado para captar o mais leve sussurro de vida nos espaços em volta. Seu cabelo ficara gradualmente branco enquanto falava e, agora, ele levantava a cabeça na direção do céu como um profeta antigo, deslumbrantemente louco. Enquanto John a tudo observava com atônita fascinação, parecia-lhe que um curioso fenômeno acontecia em algum lugar ao redor. Foi como se o céu escurecesse por um instante, como se houvesse um súbito murmúrio numa rajada do vento, um som de trombetas distantes, um suspiro como o farfalhar de um grande roupão de seda — por algum tempo, toda a natureza partilhou essa escuridão; os pássaros pararam de cantar; as árvores ficaram imóveis; e, no alto da montanha, ouviu-se o ronco de um trovão surdo e ameaçador. Só isso. O vento morreu na vegetação alta do vale. A aurora e o dia retomaram seu lugar no tempo e o sol despejou ondas quentes de bruma amarela que iluminaram a estrada a seus pés. As folhas

gargalharam ao sol, e esse riso sacudiu as árvores até que cada galho lembrasse uma escola de meninas na terra das fadas. Deus recusara o suborno. Por outro momento, John contemplou o triunfo do dia. Em seguida, ao virar-se, viu um alvoroço marrom perto do lago, depois outro alvoroço, depois outro mais, como a dança de anjos dourados aterrissando das nuvens. Eram os aviões descendo à terra. John deslizou pela pedra e desceu correndo a montanha até o bosque, onde as duas moças estavam acordadas e esperando por ele. Kismine pôs-se de pé, com as jóias tilintando em seus bolsos e uma pergunta nos lábios abertos. Mas o instinto disse a John que não havia tempo para muitas palavras. Tinham de abandonar a montanha sem perder um momento. Tomou cada uma pela mão e, em silêncio, caminharam entre os troncos, todos agora banhados de luz e da bruma nascente. Às suas costas, no vale, não se ouvia um som, exceto o produzido pelos pavões e o agradável meio-tom das manhãs. Quando já tinham caminhado cerca de um quilômetro, desviaram-se do parque e ingressaram por outro caminho que levava à próxima elevação do terreno. No ponto mais alto dele, pararam e olharam para trás. Seus olhos pousaram sobre a montanha que tinham acabado de deixar — sufocada por alguma negra sensação de iminência. Recortado contra o céu, um homem alquebrado e de cabelos brancos descia lentamente a encosta, seguido por dois negros gigantescos e apáticos, carregando algo que ainda faiscava e refulgia ao sol. A meio caminho, duas outras figuras juntaram-se a eles — John podia ver que eram a sra. Washington e seu filho, em cujo braço ela se apoiava. Os aviadores tinham descido de suas máquinas no gramado defronte ao castelo e, com os rifles em punho, começavam a subir a montanha de diamante em formação dispersa. Mas o grupo de cinco pessoas que se formara lá no alto e atraía a atenção de todos os observadores parara numa saliência da rocha. Os negros se abaixaram e puxaram o que parecia ser um alçapão no lado da montanha, pelo qual todos desapareceram — primeiro o homem de cabelo branco, depois a mulher e o filho e, finalmente, os dois negros, com o brilho das jóias em seus turbantes refletindo o sol por um instante antes que o alçapão se fechasse e engolfasse a todos. Kismine segurou o braço de John. “Ah”, gritou, desesperada, “para onde estão indo? O que vão fazer agora?” “Deve ser algum caminho subterrâneo de fuga...” Os gritos das duas meninas interromperam sua frase. “Mas você não sabe!”, soluçou Kismine histericamente. “A montanha é eletrificada.” John fez de suas mãos um escudo para proteger a vista. Diante de seus olhos, a superfície inteira da montanha mudou subitamente para um amarelo flamejante, que brotou da camada de turfa como a luz que atravessa a mão humana. O brilho insuportável continuou por alguns segundos e depois desapareceu, como um filamento que se extinguisse, revelando um deserto negro do qual saiu lentamente uma fumaça azul, levando com ela o que restara de vegetação e de carne humana. Dos aviadores, não sobrou sangue nem osso — tinham sido consumidos tão completamente quanto as cinco almas que haviam entrado pelo alçapão. Simultaneamente, e com uma tremenda concussão, o castelo literalmente despedaçou-se no ar, explodindo em fragmentos incendiários que, ao descer, assentaram-se numa pilha enfumaçada, metade da qual foi parar no lago. Não havia fogo — apenas a fumaça, levada pelo vento e misturada à luz do sol, e, por mais alguns minutos, a grossa poeira do mármore, espanada da grande pilha disforme que, um dia, tinha sido a casa das jóias. Já não se ouvia nenhum som e os três jovens estavam sozinhos no vale.

XI. Ao pôr-do-sol, John e suas duas companheiras chegaram ao penhasco que definia os limites do domínio dos Washington e, olhando para trás, contemplaram o vale tranqüilo e adorável sob o luscofusco. Sentaram-se para comer o que sobrara na cesta trazida por Jasmine. “Olhe”, ela disse, estendendo a toalha no chão e empilhando alguns sanduíches sobre ela. “Não são uma tentação? Sempre achei que a comida fica mais gostosa ao ar livre.” “Com essa observação”, disse Kismine, “Jasmine ingressa na classe média.” “Bem”, disse John, com ansiedade, “virem os bolsos pelo avesso e vamos ver que jóias vocês trouxeram. Se souberam escolher, nós três podemos viver com conforto pelo resto da vida.” Obedientemente, Kismine enfiou a mão em seu bolso e tirou dois punhados de pedras brilhantes. “Nada mal”, gritou John, entusiasmado. “Não são muito grandes, mas...” Sua expressão mudou ao examinar uma das pedras contra a luz já fugidia. “Isso não são diamantes! Há alguma coisa errada!” “Meu Deus!”, exclamou Kismine com um olhar espantado. “Como sou burra!” “Ora, isto é bijuteria!”, gritou John. “Eu sei”, ela riu. “Abri a gaveta errada. Eram do vestido de uma menina que visitou Jasmine. Troquei com ela por diamantes de verdade. Nunca tinha visto nada a não ser pedras preciosas.” “E foi isto que você trouxe?” “Acho que sim.” Manuseou os brilhantes sofregamente. “No fundo, gosto mais deles. Estou um pouco cansada de diamantes.” “Muito bem”, disse John, amuado. “Vamos ter de morar em Hades. E você vai envelhecer contando a amigas incrédulas que um dia abriu a gaveta errada. Infelizmente, os talões de cheques de seu pai queimaram junto com ele.” “E daí, qual o problema com Hades?” “Se eu voltar para casa com uma menina da minha idade, meu pai é bem capaz de não me deixar um tostão.” Jasmine intercedeu. “Gosto de lavar roupa”, disse com tranqüilidade. “Sempre gostei de lavar meus lenços. Vou lavar roupa para viver e sustentar vocês dois. Eles precisam de lavadeiras em Hades?”, perguntou inocentemente. “Claro”, respondeu John. “É como em qualquer lugar.” “Pensei... pensei que, como é muito quente, talvez não usassem roupas.” John riu. “Experimente!”, sugeriu. “Você será expulsa da cidade só por pensar nisso!” “Papai estará lá?”, ela perguntou. John virou-se para Kismine, espantado. “Seu pai está morto”, respondeu com gravidade. “E por que ele iria para Hades? Você confundiu o nome com o de outro lugar que também se extinguiu há muito tempo.”* Terminando de comer, dobraram a toalha e espalharam seus cobertores para passar a noite. “Que sonho foi aquilo tudo”, suspirou Kismine, olhando para as estrelas. “Como é estranho estar aqui com um único vestido e um noivo sem dinheiro! “Essas estrelas”, ela continuou. “Nunca tinha reparado nelas. Sempre pensei que fossem diamantes enormes que pertencessem a alguém. Agora elas me assustam. Me fazem achar que foi tudo um sonho, toda a minha juventude.” “Foi um sonho”, disse John. “Toda juventude é um sonho, uma espécie de loucura química.”

“Então, como é bom ser louco!” “É o que dizem”, disse John com melancolia. “Já não sei mais. De qualquer maneira, vamos nos amar por um ano ou dois, você e eu. É uma forma de embriaguez divina que todos deveriam experimentar. O mundo está cheio de diamantes — de diamantes e, talvez, da triste dádiva da desilusão. Bem, eu tive esta última e, como sempre, não vou fazer nada com ela.” Sentiu um calafrio. “Vire a gola do seu casaco, garota. A noite está fria e você pode pegar uma pneumonia. Que grande pecado, o de quem inventou a consciência. Vamos perder a nossa por algumas horas.” Embrulhando-se em seu cobertor, John virou-se para o canto e dormiu. (1922)

* Fitzgerald refere-se a Hades, que é um outro nome para Hell — inferno. (N. T.)

Rags Martin-Jones e o pr-ncipe de G-les

O Majestic deslizou pelo porto de Nova York numa manhã de abril. Esnobou os lentos rebocadores e balsas, piscou para um jovem iate e, com um rosnado cheio de fumaça, ordenou a um barco transportando gado que saísse do caminho. Depois estacionou em seu atracadouro particular com a pompa de uma matrona ao se sentar e anunciou, complacentemente, que estava chegando de Cherbourg e Southampton, trazendo a bordo as melhores pessoas do mundo. As melhores pessoas do mundo postaram-se no convés e acenaram idiotamente para seus parentes pobres, os quais esperavam no cais pelas luvas trazidas de Paris. Em pouco tempo, um longo passadiço conectou o Majestic ao continente norte-americano e o navio começou a desovar as melhores pessoas do mundo — que por acaso eram a atriz Gloria Swanson, dois compradores de Lord & Taylor, o ministro das finanças de Graustark com uma proposta para rolar a dívida e um rei africano que tentara desembarcar em qualquer lugar durante o inverno e que estava sofrendo violentos enjôos. Os fotógrafos trabalhavam apaixonadamente enquanto a corrente de passageiros fluía em direção à doca. Houve uma explosão de vivas à aparição de um par de padiolas trazendo dois cidadãos do Meio Oeste que haviam bebido até desmaiar na última noite da viagem. O convés esvaziou-se aos poucos, mas, quando a última garrafa de Benedictine atingiu terra firme, os fotógrafos continuaram em seus postos. O funcionário encarregado do desembarque também ficou firme ao pé da prancha, olhando para seu relógio e para o convés, como se uma importante parte da carga ainda estivesse a bordo. Finalmente, dos observadores no píer, cresceu um “Ah-h-h!” havia muito esperado, quando um último grupo começou a surgir do convés B. Primeiro surgiram duas criadas francesas, trazendo pequenos cães púrpura e seguidas por um esquadrão de carregadores, cegos e invisíveis sob inúmeras braçadas e buquês de flores recémcolhidas. Outra criada apareceu, conduzindo um pequeno órfão de olhos tristes e ar francês, e seguindo-a de perto entrou o segundo funcionário puxando três neurastênicos wolfhounds, para grande relutância deles próprios e do funcionário. Uma pausa. Então o comandante, sir Howard George Witchcraft, chegou à balaustrada, com algo que parecia ser uma pilha de gloriosas peles prateadas de raposa, de pé a seu lado. Rags Martin-Jones, depois de cinco anos pelas capitais da Europa, voltava à sua cidade! Rags Martin-Jones não era um cachorro. Era metade mulher, metade flor, e, ao apertar a mão do comandante, sir Howard George Witchcraft, sorriu como se alguém lhe tivesse contado a piada mais recente do mundo. As pessoas que ainda não tinham deixado o píer sentiram a alteração provocada por aquele sorriso no ar de abril e se viraram para espiar. Ela desceu devagarinho pela prancha. Seu chapéu — um experimento caro, inescrutável — ia debaixo de seu braço, de modo que o cabelo bem curto, à joãozinho, cabelo de presidiário, tentava inutilmente despentear-se ao vento do porto. Seu rosto era como as sete horas de uma manhã de

casamento, exceto por um absurdo monóculo num olho quase infantil de tão claro e azul. A cada poucos passos, suas longas pestanas tiravam o monóculo de lugar, mas ela ria, um riso feliz e entediado, e o depositava no outro olho. Tec! Seus cinqüenta e seis quilos chegaram ao píer, que pareceu balançar e curvar-se ao impacto de sua beleza. Alguns carregadores desmaiaram. Um tubarão enorme e sentimental, que vinha seguindo o navio, saltou desesperado por sobre as ondas na tentativa de vê-la de novo, e mergulhou, amargurado, nas profundas do oceano. Rags Martin-Jones estava de volta. Nenhum parente a esperava, pelo simples motivo de que ela era o último membro vivo da família. Em 1913, seus pais tinham preferido morrer juntos no Titanic a viver separados neste mundo, por isso a fortuna de 75 milhões de dólares coubera a uma garotinha em seu décimo aniversário. Era o que os consumidores comuns costumam definir como “Que desperdício!”. Rags Martin-Jones (Rags era apelido e ninguém mais se lembrava de seu verdadeiro nome) estava sendo fotografada de todos os ângulos. O monóculo não parava de cair e ela continuava rindo, bocejando e o trocando de olho, daí que não se conseguiu bater uma única chapa nítida — exceto pelos cinegrafistas. Todas as fotos, no entanto, mostravam um jovem bonito, afogueado e com um feroz lampejo amoroso nos olhos, que fora encontrá-la nas docas. Seu nome era John M. Chestnut, a história de seu sucesso já saíra na American Magazine e ele se apaixonara por Rags desde que, como as marés, ela ficara sob a influência da lua de verão. Quando Rags finalmente se deu conta de sua presença, eles já estavam caminhando pelo píer e ela lhe dirigiu um olhar vazio, como se nunca o tivesse visto antes. “Rags”, ele começou. “Rags...” “John M. Chestnut?”, ela perguntou, inspecionando-o com grande interesse. “Claro!”, ele exclamou, indignado. “Está fingindo que não me conhece? Que não me escreveu para vir encontrá-la aqui?” Ela riu. Um motorista uniformizado apareceu às suas costas e ela se desvencilhou de seu casaco, revelando um vestido de um vistoso xadrez em azul-marinho e cinza. Sacudiu-se como um pássaro molhado. “Tenho um monte de lixo para declarar”, comentou com voz ausente. “Eu também”, disse Chestnut, ansioso, “e a primeira coisa que quero declarar é que amei você, Rags, em todos os minutos que esteve fora.” Ela o cortou com um resmungo. “Por favor! Havia outros jovens americanos a bordo. Esse assunto ficou um tédio.” “Pelo amor de Deus, Rags!”, gritou Chestnut. “Você compara o meu amor com o que lhe disseram num navio?” O volume de sua voz tinha subido e várias pessoas nas proximidades se viraram para escutar. “Psiu!”, ela avisou. “Isto aqui não é um circo. Se quiser que eu simplesmente me encontre com você enquanto estiver aqui, precisa ser menos estabanado.” Mas John M. Chestnut parecia incapaz de controlar a voz. “Você... você”, sua voz tremeu ao atingir os agudos, “já se esqueceu de tudo que me disse, aqui mesmo, neste píer, há exatamente cinco anos, completados na quinta-feira passada?” Metade dos passageiros do navio observava a cena e outro grupinho saiu do salão da aduana para espiar. “John”, o desprazer de Rags estava crescendo. “Escute. Há cinco anos...” Foi então que os observadores da cena tiveram direito a um curioso espetáculo. Uma bela mulher, num vestido xadrez azul-marinho e cinza, deu um abrupto passo para a frente, de forma que suas mãos

entraram em contato com o excitado rapaz a seu lado. O jovem, reagindo instintivamente, deu um passo para trás, mas, como lhe faltasse o chão, despencou delicadamente da doca e foi cair, não sem uma graciosa pirueta, dez metros abaixo, nas águas do rio Hudson. Houve um grito de alarme e uma corrida à borda do píer, coincidindo com a aparição de sua cabeça à tona. Ele estava nadando com facilidade e, ao perceber isso, a jovem senhora, que parecia ter sido a causa do acidente, debruçou-se sobre o píer e fez de suas mãos um megafone. “Estarei em casa às quatro e meia”, gritou. E, com um animado aceno de mão, que o rapaz não teve condições de retribuir, aplicou o monóculo ao olho, dardejou um altaneiro olhar à multidão e saiu tranqüilamente de cena.

II. Os cinco cachorros, as três criadas e o órfão francês instalaram-se na maior suíte do Ritz, e Rags encaminhou-se preguiçosamente para uma banheira escaldante, fragrante de ervas, onde cochilou por quase uma hora. Ao fim daquele tempo, recebeu uma massagista, uma manicure e um cabeleireiro parisiense, que restaurou seu penteado estilo presidiário. Quando John M. Chestnut chegou às quatro horas, encontrou meia dúzia de advogados e banqueiros, administradores do capital de Martin-Jones, esperando no hall. Já estavam ali desde uma e meia, e pareciam agora num estado de considerável agitação. Depois que uma das criadas o submeteu a um rigoroso escrutíneo, talvez para se certificar de que estava completamente enxuto, John foi conduzido à presença de m’selle. M’selle estava em seu quarto, reclinada numa chaise longue com cerca de vinte almofadas de seda que a acompanhavam desde a Europa. John entrou meio empertigado no quarto e cumprimentou-a com uma curvatura formal. “Você está com melhor aspecto”, ela disse, levantando a cabeça das almofadas e olhando-o como se o avaliasse. “Pegou alguma cor no rosto.” Ele agradeceu friamente o cumprimento. “Devia mergulhar ali todas as manhãs.” Em seguida acrescentou com descaso: “Estou voltando para Paris amanhã”. John Chestnut ofegou. “Eu já lhe havia escrito que não pretendia ficar mais que uma semana”, ela acrescentou. “Mas Rags...” “E para quê? Não há um único homem interessante em Nova York.” “Escute, Rags! Você não me dá uma chance? Por que não fica, digamos, dez dias, para me conhecer um pouco?” “Conhecer você!” Seu tom de voz implicava que ele já era um livro aberto até demais. “Quero um homem que seja capaz de um gesto galante.” “Isso significa que devo me expressar inteiramente em pantomima?” Rags emitiu um suspiro de enfado. “Significa que você não tem a menor imaginação”, ela explicou com paciência. “Nenhum americano tem imaginação. Paris é a única cidade grande em que uma mulher civilizada consegue respirar.” “Você não gosta mais de mim nem um pouco?” “Eu não teria cruzado o Atlântico para ver você se não gostasse. Mas, assim que deitei os olhos sobre os americanos no navio, concluí que nunca poderia me casar com um. Acabaria odiando você, John, e minha única diversão no casamento seria partir seu coração.”

Começou a se remexer entre as almofadas até quase desaparecer de vista. “Perdi meu monóculo”, explicou. Após uma infrutífera busca por aquelas profundezas de seda, descobriu o óculo pendurado em sua nuca. “Adoraria estar apaixonada”, continuou, recolocando o monóculo em seu olho quase infantil. “Na primavera passada, em Sorrento, quase fugi com um rajá indiano, mas ele era um pouquinho escuro demais, e antipatizei profundamente com uma de suas outras esposas.” “Não fale essa besteira!”, gritou John, escondendo o rosto nas mãos. “Bem, não me casei com ele”, ela protestou. “Mas, de certa maneira, ele tinha muito a oferecer. Era o terceiro súdito mais rico do Império britânico. E isso é outra coisa — você é rico?” “Não tanto quanto você.” “Está vendo? O que tem a me oferecer?” “Amor.” “Amor!” Ela desapareceu de novo entre as almofadas. “Escute, John. A vida, para mim, é uma sucessão de bazares cintilantes, com um mercador à porta de cada um, esfregando as mãos e dizendo ‘Dêem preferência ao meu bazar. É o melhor do mundo’. E nele adentro com minha bolsa cheia de beleza, dinheiro e juventude, preparada para comprar. ‘O que o senhor tem para vender?’, eu pergunto. Ele esfrega as mãos de novo e diz ‘Bem, mademoiselle, hoje temos um amor absolutamente li-iiin-do’. Às vezes ele não tem esse artigo em estoque, mas manda buscar em algum fornecedor quando descobre que tenho dinheiro para gastar. Sempre me dá amor quando estou indo embora — e de graça. Essa é a minha vingança.” John Chestnut levantou-se desanimado e deu um passo em direção à janela. “Não se atire lá embaixo!”, exclamou Rags. “Está bem.” Jogou a ponta do cigarro na Madison Avenue. “O problema não é você”, ela disse com voz suave. “Por mais opaco e pouco inspirado que seja, gosto mais de você do que posso dizer. Mas a vida é tão chata aqui. Nada acontece.” “Montes de coisas acontecem”, ele insistiu. “Ora, hoje mesmo houve um assassinato intelectual em Hoboken e um suicídio por procuração no Maine. O Congresso vai votar um projeto de esterilização de agnósticos...” “Não tenho interesse em humor”, ela resmungou. “Mas tenho um gosto quase arcaico pelo romantismo. Ora, John, outro dia mesmo, no mês passado, fui a um jantar em que dois homens disputaram no cara-ou-coroa o reino de Schwartzberg-Rhineminster. Em Paris, conheci um homem chamado Blutchdak, que foi quem realmente começou a guerra* e já planejou outra para daqui a dois anos.” “Bem, então, por que não sai comigo esta noite, para descansar?”, disse, obstinadamente. “Para onde?”, perguntou Rags com desprezo. “Você pensa que ainda me interesso por boates, com aqueles mousseaux açucarados? Prefiro meus próprios sonhos extravagantes.” “Vou levá-la ao lugar mais tenso da cidade.” “E o que acontecerá ali? Você precisa me dizer o que vai acontecer.” John Chestnut respirou fundo e olhou cuidadosamente em volta, como se tivesse medo de estar sendo observado. “Bem, para ser sincero”, disse, com voz baixa e preocupada, “se descobrirem tudo, alguma coisa terrível pode acontecer comigo.” Ela se aprumou e as almofadas caíram à sua volta como folhas. “Você está insinuando que existe alguma coisa sombria em sua vida?”, ela perguntou, com um riso

na voz. “Acha que vou acreditar nisso? Não, John, seu negócio é arrombar portas abertas.” Sua boca, uma pequena rosa insolente, despejava as palavras como espinhos. John pegou na cadeira seu chapéu e casaco e tomou a bengala. “Pela última vez... quer vir comigo esta noite e ver o que estou dizendo?” “Ver o quê? Ver quem? Há alguma coisa neste país digna de se ver?” “Bem”, ele respondeu, com voz de quem sabe o que está dizendo, “em primeiro lugar, você verá o príncipe de Gales.” “O quê?” Ela saltou da chaise longue. “Ele está de volta a Nova York?” “Estará esta noite. Gostaria de vê-lo?” “Se gostaria? Nunca estive com ele. Já o perdi em toda parte. Daria um ano de vida para vê-lo por uma hora.” Sua voz tremia de excitação. “Ele estava no Canadá. Chegou aqui incógnito para a luta de boxe desta tarde. E por acaso sei onde estará à noite.” Rags deu um grito agudo de êxtase: “Dominic! Louise! Germaine!” As três criadas entraram correndo. O quarto encheu-se subitamente de uma luz violenta e sobressaltada. “Dominic, o carro!”, ordenou Rags, em francês. “Saint-Raphael, meu vestido dourado e os chinelos com saltos de ouro de verdade! As pérolas também... todas as pérolas, e o solitário de diamante, e as meias com aplicações de safiras! Germaine... mande vir o salão de beleza! Vou tomar outro banho, gelado e com a banheira até a metade com creme de amêndoas! Dominic... ligue para a Tiffany’s já, agora mesmo, antes que eles fechem! Preciso de um broche, um pendant, uma tiara, qualquer coisa — não importa, desde que com as armas da casa de Windsor!” Ela lutava com os botões do vestido, e, quando John se virou para ir embora, a peça já deslizava de seus ombros. “Orquídeas!”, gritou enquanto ele se afastava. “Orquídeas, pelo amor de Deus! Mande quatro dúzias, para eu poder escolher quatro!” As criadas se espaventavam pelo quarto como pássaros assustados. “Perfume, Saint-Raphael, abra a frasqueira de perfumes, e minha marta cor-de-rosa, minhas ligas de diamantes, e o óleo para minhas mãos! Venha cá, leve essas coisas! E isto... e isto... ai! Espetei!... e mais isto!” Com modos que lhe ficavam muito bem, John Chestnut saiu e fechou a porta que dava para a sala. Os seis curadores, em poses que indicavam cansaço, tédio, resignação ou desespero, continuavam aboletados por ali. “Senhores”, anunciou John Chestnut. “Temo que a senhorita Martin-Jones esteja muito cansada da viagem para lhes dar atenção esta tarde.”

III. “Este lugar, por nenhuma razão específica, é chamado de Buraco no Céu.” Rags olhou em volta. Estavam numa cobertura com um jardim suspenso sobre a noite de abril. Acima deles, piscavam frias estrelas de verdade e havia uma fatia lunar de gelo nas trevas a oeste. Mas, no lugar onde se postavam, a temperatura era amena como a de junho, e os casais jantando ou dançando no opaco chão envidraçado não estavam interessados no céu. “Como está tão quentinho aqui dentro?”, ela perguntou, quando se dirigiam para uma mesa. “É uma nova invenção, que impede o ar quente de subir. Não sei o princípio da coisa, mas sei que podem manter isso aqui aberto até em pleno inverno...”

“Onde está o príncipe de Gales?”, perguntou Rags, tensa. John olhou para todos os lados. “Ainda não chegou. Não deve estar aqui antes de uma meia hora.” Ela suspirou profundamente. “É a primeira vez que fico excitada nos últimos quatro anos.” Quatro anos — um ano a menos do que ele a amava. Ele se perguntou se, quando Rags tinha dezesseis anos e era uma criança feroz e adorável passando as noites em claro nos restaurantes com os oficiais que partiriam para Brest no dia seguinte, exaurindo o glamour da vida muito cedo nos dias tristes e pungentes da guerra, ela já fora tão bonita quanto agora, sob aquelas luzes âmbar e o céu escuro. De seus olhos excitados até os saltos de seus chinelinhos, que eram listrados com camadas de ouro e prata de verdade, Rags parecia um daqueles espantosos navios esculpidos dentro de uma garrafa. Seu acabamento tinha o mesmo cuidado e delicadeza — como se o trabalho da vida inteira de um especialista em fragilidade se tivesse concentrado em produzi-la. John Chestnut queria tomar Rags nas mãos, virá-la de todos os lados, examinar a pontinha de seu sapato ou o lóbulo de sua orelha ou o material de que suas pestanas de fada tinham sido feitas. “Quem é aquele?” Rags apontou para um bonito latino numa mesa das proximidades. “É Roderigo Minerlino. Um astro do cinema e dos anúncios de creme para o rosto. Talvez ele nos brinde com um número de dança.” Rags ficou subitamente alerta para o som dos violinos e tambores, mas a música parecia vir de longe na noite crespa e levitar sobre o assoalho com o distanciamento de um sonho. “A orquestra está em outro andar”, explicou John. “É uma idéia nova... Olhe, o show está começando.” Uma jovem negra, magra feito um caniço, emergiu de repente de uma entrada disfarçada e adentrou um círculo feroz de luz, ao som de uma música em um selvagem tom menor, e entoou uma canção rítmica e trágica. Sua voz interrompeu-se abruptamente e ela começou um passo lento e incessante, sem progresso e sem esperança, como o fracasso de um sonho insuficientemente brutal. Tinha perdido Papa Jack, repetia aos gritos, numa histérica monotonia, ao mesmo tempo desesperada e incongruente. Um por um, os metais estridentes tentavam arrancá-la daquela cadência louca, mas ela só tinha ouvidos para o ressoar dos tambores, que pareciam isolá-la em algum lugar perdido no tempo, entre muitos milhares de anos esquecidos. Após o fracasso do piccolo, ela se transformou de novo numa finíssima silhueta marrom, agitou-se com intensidade aguda e terrível, e depois desapareceu numa súbita treva. “Se você morasse em Nova York, não precisaria que eu lhe dissesse quem ela é”, disse John, quando a luz âmbar piscou. “O próximo é Sheik B. Smith, um cômico do tipo burro e falastrão.” Cortou a frase no meio. Assim que as luzes diminuíram para o segundo número, Rags deu um longo suspiro e inclinou-se tensa em sua cadeira. Seus olhos se fixaram como os de um pointer, e John viu que eles se concentravam num grupo que entrara por uma porta lateral e se acomodava numa mesa em meio à semi-escuridão. A mesa estava cercada de palmeiras, e Rags, a princípio, distinguiu apenas três vagas formas. Depois identificou uma quarta, que parecia se colocar bem atrás das outras três — um rosto pálido e oval encimado por um relance de cabelos amarelo-escuros. “Ora, ora!”, exclamou John. “Lá está Sua Alteza.” A respiração de Rags morreu com um murmúrio em sua garganta. Estava confusamente consciente de que havia um comediante de pé sob um jato de luz branca na pista de dança. Percebia que ele estava dizendo coisas e que havia um constante rumor de gargalhadas no ar. Viu um membro do grupo

inclinar-se e sussurrar para outro, e, depois do brilho de um fósforo aceso, o lampejo de um cigarro destacou-se ao fundo. Ficou imóvel, extática, por um tempo que não saberia calcular. Então algo pareceu acontecer diante de seus olhos, algo branco, terrivelmente inesperado, e ela se viu sob a luz cheia de um refletor pendurado no teto. Deu-se conta de que, de algum lugar, as pessoas lhe dirigiam a palavra e que mais gargalhadas circulavam pelo ambiente, e, instintivamente, esboçou um movimento em sua cadeira. “Fique quieta!”, sussurrou John, do outro lado da mesa. “Toda noite ele escolhe alguém para fazer isto!” Só então ficou sabendo — era um cômico, Sheik B. Smith. Era ele quem estava falando com ela, discutindo com ela, sobre alguma coisa que parecia incrivelmente engraçada para todo mundo, mas que lhe chegava aos ouvidos apenas como um borrão sonoro. Recompôs o rosto ao primeiro impacto da luz e sorriu. Foi um gesto de raro autodomínio. Nesse sorriso ela insinuou uma vasta impessoalidade, como se estivesse inconsciente da luz, inconsciente da tentativa dele de brincar com sua beleza, mas achando graça daquele homem infinitamente remoto, como se tanto fizesse que ele estivesse desfechando seus dardos à lua. Ela não era uma “senhora”; uma senhora teria sido áspera, digna de pena ou ridícula. Rags reduziu sua atitude à simples consciência de sua impermeável beleza e deixou-se ficar na cadeira, refulgindo, até que o comediante começou a se sentir só como nunca se sentira antes. A um sinal dele, o refletor foi subitamente desligado. O momento passara. O momento passara, o cômico abandonou a pista, a música ao longe recomeçou. John inclinou-se para Rags. “Desculpe. Não havia nada a fazer. Você foi maravilhosa.” Ela minimizou o incidente com um risinho casual, e então levou um susto: agora só havia dois homens na mesa no fundo do salão. “Ele foi embora!”, exclamou, aflita. “Não se preocupe, ele vai voltar. Precisa tomar cuidado, você sabe. Deve estar esperando lá fora com um de seus ajudantes até ficar escuro de novo.” “Por que ele precisa tomar cuidado?” “Porque não era para ele estar em Nova York. Está até usando um de seus títulos menores.” As luzes diminuíram de novo e, quase imediatamente, um homem alto saiu da escuridão e dirigiuse à sua mesa. “Posso me apresentar?”, disse rapidamente a John, numa voz soberbamente britânica. “Lorde Charles Este, do grupo do barão de Marchbanks.” E olhou com atenção para John, para certificar-se de que ele captara o significado do nome. John assentiu. “Isto é entre nós, o senhor compreende.” “Claro.” Rags tateou sobre a mesa, em busca do champanhe que nem sequer provara, e despejou-o de uma vez goela abaixo. “O barão de Marchbanks convida sua acompanhante a juntar-se a ele durante esta música.” Os dois homens olharam para Rags. Houve uma pausa. “Muito bem”, ela disse, e olhou de novo interrogativamente para John. Mais uma vez, ele assentiu. Ela se levantou e, com o coração batendo de forma selvagem, contornou as mesas, cobrindo o meio circuito do salão. Depois, sua frágil figurinha vestida de dourado confundiu-se com as mesas na penumbra do salão.

IV. A música estava chegando ao fim, e John Chestnut, sentado sozinho à sua mesa, provocava bolhas adicionais em sua taça de champanhe. Pouco antes de as luzes se acenderem, ouviu um suave farfalhar de tecidos dourados, e Rags, afogueada e respirando com dificuldade, despejou-se na cadeira. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. John olhou para ela, preocupado. “E então, o que aconteceu?” “Ele estava muito quieto.” “Disse alguma coisa?” A mão de Rags tremia ao empunhar a taça de champanhe. “Só olhou para mim enquanto estava escuro. Aí disse algumas banalidades. Ele se parece com as fotos, só que mais cansado e entediado. Nem perguntou meu nome!” “Vai embora de Nova York esta noite?” “Daqui a meia hora. Ele e seu grupo estão com um carro lá fora, e esperam cruzar a fronteira antes de o dia nascer.” “Você não o achou... fascinante?” Rags hesitou e, lentamente, fez que sim com a cabeça. “É o que todo mundo diz”, admitiu John, amuado. “Estão esperando por você na mesa?” “Não sei.” Olhou com incerteza para o outro lado do salão, mas o célebre personagem já saíra de novo de sua mesa para algum esconderijo lá fora. Quando se virou, um rapaz estranho, que estivera de pé por um momento na entrada principal, veio apressado na direção deles. Estava mortalmente pálido, usava um terno de confecção, nada próprio para a ocasião, e depositou uma mão trêmula sobre o ombro de John Chestnut. “Monte!”, exclamou John, mexendo-se de forma tão desajeitada que quase derrubou seu champanhe. “O que foi? O que aconteceu?” “Eles estão na nossa pista”, disse o jovem, num sussurro alquebrado. Olhou para os lados. “Preciso falar com você a sós.” John Chestnut pôs-se de pé num salto, e Rags percebeu que seu rosto também ficara tão branco quanto o guardanapo que ele trazia na mão. Pediu licença e foram se sentar numa mesa vazia nas proximidades. Rags observou-os com curiosidade por alguns instantes, depois voltou a espiar a mesa no outro lado do salão. Será que a convidariam a voltar? O príncipe apenas se levantara, fizera uma mesura e saíra. Talvez ela devesse ter esperado até ele retornar, mas, embora tensa de excitação, voltara a ser a verdadeira Rags Martin-Jones. Sua curiosidade estava satisfeita — qualquer outra solicitação deveria partir dele. Perguntou-se se tinha realmente percebido algum charme intrínseco — perguntou-se especialmente se, de alguma forma evidente, ele reagira à sua beleza. O jovem pálido chamado Monte desapareceu e John voltou para a mesa. Rags estava impressionada ao ver a tremenda mudança que se operara nele. John se contorcia na cadeira como se estivesse bêbado. “John! O que aconteceu?” Em vez de responder, ele pegou a garrafa de champanhe, mas seus dedos tremiam tanto que o vinho derramado formou um círculo amarelo ao redor do copo. “Está passando mal?” “Rags”, disse sem firmeza. “Estou liquidado.” “O que isso significa?”

“É o que estou lhe dizendo, estou liquidado.” Conseguiu fingir um sorriso. “Haverá um mandado de prisão contra mim em uma hora.” “Mas o que você fez?”, ela perguntou, com voz assustada. “E por que esse mandado?” As luzes se apagaram para a próxima música e ele emborcou sobre a mesa. “O que é isto?”, ela insistiu, com crescente apreensão. Inclinou-se sobre ele — sua resposta mal se conseguia ouvir. “Assassinato?” Rags podia sentir seu próprio corpo chegar à temperatura do gelo. Ele concordou. Ela tomou as mãos dele e tentou sacudi-lo para que se aprumasse, como quem sacode um casaco para pô-lo no cabide. Os olhos de John estavam agitados. “É verdade? Eles têm alguma prova?” De novo ele concordou, quase bêbado. “Então você precisa fugir do país agora! Entendeu, John? Precisa fugir já, antes que venham pegálo aqui!” Ele despejou um olhar selvagem de terror na direção da porta. “Oh, meu Deus”, gritou Rags, “por que você não faz alguma coisa?” Seus olhos perscrutaram o ambiente em desespero e, de repente, se concentraram num ponto. Respirou fundo, hesitou e sussurrou forte em seu ouvido. “Se eu conseguir, você irá para o Canadá esta noite?” “Como?” “Deixe comigo, apenas tente se recompor um pouco. É Rags quem está falando com você, John, ainda não entendeu? Quero que fique sentadinho aqui e não se mova até eu voltar.” Um minuto depois, cruzou o salão sob o manto da treva. “Barão de Marchbanks”, sussurrou, de pé, bem atrás da cadeira dele. Ele a convidou a sentar-se. “O senhor teria lugar em seu carro para mais dois passageiros esta noite?” Um dos ajudantes se intrometeu abruptamente. “O carro de Sua Excelência está cheio”, disse. “É muito urgente.” A voz de Rags tremia. Lorde Charles Este olhou para o príncipe e sacudiu a cabeça. “Não considero aconselhável. Este é um assunto delicado e temos ordens contrárias. Concordamos em que não haveria complicações.” O príncipe franziu o cenho. “Mas isto não é uma complicação”, argumentou. Lorde Este virou-se francamente para Rags. “Por que é tão urgente?” Rags hesitou. “É porque”, ruborizou-se no ato, “é uma fuga para um casamento.” O príncipe riu. “Ótimo!”, exclamou. “Isso resolve a coisa. Lorde Este está apenas cumprindo seu papel. Traga o rapaz imediatamente. Estamos partindo já, não?” Lorde Este olhou para seu relógio. “Neste momento.” Rags saiu correndo. Queria que todo o grupo saísse dali enquanto as luzes estivessem mortiças. “Depressa!”, gritou no ouvido de John. “Vamos atravessar a fronteira com o príncipe de Gales. De manhã você estará a salvo.”

Ele olhou para ela vitrificado. Ela pagou a conta às pressas e, tomando-o pelo braço, pilotou-o tão disfarçadamente quanto pôde até a outra mesa, onde o apresentou com uma única palavra. O príncipe tomou conhecimento de sua presença apertando-lhe a mão — os acompanhantes fizeram um gesto com a cabeça, mal conseguindo disfarçar o desprazer. “Está na hora”, disse lorde Este, olhando com impaciência para o relógio. Já estavam de pé quando uma exclamação partiu de todos os presentes — dois policiais e um homem ruivo à paisana tinham entrado pela porta principal. “Vamos dar o fora”, sussurrou o lorde, impelindo a turma para uma saída lateral. “Vai haver uma espécie de batida aqui.” Soltou um palavrão — dois outros policiais fardados barravam aquela saída. Pararam sem saber o que fazer. O paisano estava começando uma cuidadosa inspeção das pessoas nas mesas. Lorde Este olhou rispidamente para Rags e depois para John, que se encolhia por trás das palmeiras. “Quem é o cara? É um fiscal do imposto de renda?” “Não”, sussurrou Rags. “Vai haver confusão. Não podemos sair por aquela porta?” O príncipe, com crescente impaciência, voltou a sentar-se. “Bem, quando estiverem prontos para ir, me avisem.” Sorriu para Rags. “E se nos metermos num problema apenas por este seu rostinho bonito?” De repente, todas as luzes se acenderam. O ruivo à paisana girou pelo cabaré e parou bem no meio do salão. “Ninguém tente deixar esta sala!”, gritou. “Sentem-se, todo mundo, inclusive aquele grupo atrás das palmeiras! John M. Chestnut está no recinto?” Rags deu um gritinho involuntário. “Ali!”, gritou o detetive para o policial atrás dele. “Dê uma olhada naquela turma estranha. Mãos ao alto, vocês todos!” “Meu Deus!”, exclamou lorde Este, “temos que cair fora!” Virou-se para o príncipe. “Isto vai ser um horror, Ted. Você não pode ser visto aqui. Vou retardá-los enquanto você chega até o carro.” Deu um passo em direção à saída lateral. “Mãos para cima, você aí!”, gritou o paisano. “E não estou brincando. Qual de vocês é Chestnut?” “O senhor está louco!”, disse lorde Este. “Somos súditos britânicos. Não temos nada a ver com este assunto, seja qual for.” Uma mulher soltou um grito em algum lugar e houve uma corrida geral em direção ao elevador, corrida logo interrompida à visão da boca de duas pistolas automáticas. Uma garota perto de Rags caiu dura no chão, desmaiada, e, ao mesmo tempo, a música começou a tocar no outro andar. “Parem com essa música!”, berrou o ruivo. “E vá dar uma prensa naquela turma — rápido!” Dois policiais avançaram em direção ao grupo. No mesmo instante, Este e os outros acompanhantes sacaram seus revólveres e, fazendo um escudo em torno do príncipe, começaram a se esgueirar em direção à saída. Ouviu-se um tiro e depois outro, seguidos por um estardalhaço de porcelana e prata caindo ao chão, quando vários dos presentes viraram as mesas e se esconderam atrás delas. O pânico se generalizou. Ouviram-se mais três tiros em rápida sucessão, seguidos por uma fuzilaria. Rags viu Este atirando friamente contra as oito lâmpadas de âmbar no teto, e uma espessa nuvem de fumaça cinza encheu o ar. Como um estranho fundo musical aos gritos e à balbúrdia, podiase ouvir o incessante clamor da jazz band à distância. Um momento depois, tudo terminou. Ouviu-se o estrilo de um apito no terraço e, através da

fumaça, Rags viu John Chestnut avançar na direção do paisano, braços para cima num gesto de rendição. Houve um último grito nervoso e um estrondo quando alguém pisou sem querer numa pilha de pratos. Então um pesado silêncio se apossou do ambiente — até o som da banda parecia ter morrido ao longe. “Acabou!” A voz de John Chestnut cortou a noite. “A festa acabou. Quem quiser pode ir para casa!” Mas o silêncio continuava — Rags sabia que era um silêncio de espanto; o peso da culpa enlouquecera John Chestnut. “Foi uma grande cena”, ele gritava. “Quero agradecer a todos vocês. Se ainda houver uma mesa que fique de pé, será servido champanhe para os que preferirem ficar.” A Rags, parecia que o terraço e as estrelas tinham começado a girar. Viu John tomar a mão do detetive e apertá-la com força. Viu também o detetive rir e enfiar a arma no bolso. A música recomeçou, e a garota que desmaiara estava dançando com lorde Charles Este num canto. John corria de um lado para o outro dando tapinhas no ombro das pessoas, rindo e cumprimentando todo mundo. Só depois correu para ela, fresco e inocente como uma criança. “Não foi maravilhoso?”, perguntou. Rags sentiu que ela própria estava a ponto de desmaiar. Deu um passo para trás e agarrou-se a uma cadeira. “O que é isto?”, perguntou, abestalhada. “Estou sonhando?” “Claro que não! Está acordadíssima. Inventei tudo isso, Rags, não está vendo? Inventei tudo para você. Tudo aqui era faz-de-conta. A única coisa verdadeira era meu nome!” Ela desabou sobre o paletó dele, agarrou-se às lapelas e teria deslizado para o chão se ele não a tivesse tomado rapidamente nos braços. “Champanhe, depressa!”, ordenou, e gritou para o príncipe de Gales, que estava de pé a seu lado: “Ei, você! Meu carro, já! Rags Martin-Jones desmaiou de excitação!”.

V. O arranha-céu subia maciçamente trinta renques de janelas antes de esmaecer e tornar-se um gracioso pão-de-açúcar branco cintilante. Em seguida disparava de novo por outros trinta metros, reduzido a uma torre oblonga, em sua última e frágil aspiração de chegar ao céu. Na mais alta das janelas, Rags Martin-Jones enfrentava de pé a brisa, olhando para a cidade lá embaixo. “O senhor Chestnut pergunta se a senhora quer ir ao seu escritório.” Obedientemente, os delicados pés de Rags atravessaram o carpete até chegar a uma sala fria, sobranceira ao porto e ao mar aberto. John Chestnut estava sentado à sua mesa, esperando. Rags caminhou para ele e tocou seus ombros com os braços. “Tem certeza de que você existe?”, perguntou, ansiosa. “Existe mesmo?” “Você só me escreveu uma semana antes de chegar”, ele respondeu com modéstia. “Se tivesse me dado mais tempo, eu teria providenciado uma revolução.” “Aquilo tudo foi só para mim? Aquela cena perfeitamente inútil e maravilhosa, só para mim?” “Inútil?” Ele fez um ar pensativo. “Bem, no começo talvez fosse. No último minuto, convidei um figurão dos restaurantes para comparecer e, enquanto você estava na outra mesa, vendi-lhe a idéia de um night-club.” Ele olhou para o relógio. “Tenho só mais uma coisa a fazer, e logo teremos tempo de nos casar ainda antes do almoço.”

Pegou o telefone. “Jackson? Mande um telegrama em triplicata para Paris, Berlim e Budapeste, e faça aqueles dois duques de araque que disputaram Schwartzberg-Rhineminster no cara-ou-coroa serem enxotados até a fronteira polonesa. Se os tedescos não se mexerem, abaixe a taxa de câmbio para ponto triplo zero, zero dois. Outra coisa, aquele idiota do Blutchdak está nos Bálcãs de novo, tentando provocar mais uma guerra. Ponha-o no primeiro navio para Nova York ou atire-o numa prisão grega.” Desligou e, com um sorriso, virou-se para a embasbacada cosmopolita. “A próxima parada é o casamento no City Hall. Depois, se você quiser, podemos embarcar para Paris.” “John”, perguntou Rags com voz séria, “quem era o príncipe de Gales?” Esperou até entrarem no elevador, que desceu vinte andares a jato. Então tocou de leve o ombro do ascensorista. “Mais devagar, Cedric. Esta senhora não está habituada a despencar de lugares altos.” O ascensorista se virou e sorriu. Seu rosto era pálido, oval e emoldurado por um cabelo louro. O rosto de Rags incendiou-se. “Cedric é de Wessex”, explicou John. “A semelhança é, para dizer o mínimo, impressionante. Os príncipes não são particularmente comportados, e suspeito que Cedric tenha algum parentesco torto com a família.” Rags tirou o monóculo que estava pendurado em seu pescoço e passou a cordinha pela cabeça de Cedric. “Obrigada”, ela disse, “pela segunda maior emoção de minha vida.” John Chestnut começou a esfregar as mãos, como se fingisse vender alguma coisa. “Dê preferência a esta casa, madame”, suplicou. “É o melhor bazar da cidade!” “O que vocês têm para vender?” “Ora, m’selle, hoje, por exemplo, temos um amor absolutamente li-iiin-do.” “Pode embrulhar, senhor Mercador”, exclamou Rags Martin-Jones. “Para mim, é uma pechincha!” (1924)

* Fitzgerald se refere à Primeira Guerra, então recente. (N.T.)

“A coisa sensata”

Ao chegar a Grande Hora do Almoço, o jovem George O’Kelly organizou detalhadamente os papéis em sua escrivaninha, com um ostensivo ar de interesse. Ninguém no escritório devia saber que ele estava com pressa, porque o sucesso é uma questão de aparência, e não fica bem ostentar o fato de que sua cabeça está separada do trabalho por uma distância de mil e duzentos quilômetros. Mas, finalmente fora do edifício, ele trincou os dentes e começou a correr, só às vezes olhando para a tarde alegre que se abria naquele começo de primavera que inundava a Times Square e pairava a menos de cinco metros das cabeças na multidão. Todos enviesavam os olhos para cima e respiravam fundo o ar de março, mas o sol ofuscava seus olhos, de modo que quase ninguém enxergava ninguém, exceto seus próprios reflexos no céu. George O’Kelly, cuja cabeça estava justamente a mais de mil e duzentos quilômetros dali, achava aquilo tudo horrível. Correu para o metrô e, por noventa e cinco quarteirões, concentrou o olhar num anúncio que mostrava vivamente como ele tinha apenas vinte por cento de chance de conservar seus dentes pelos próximos dez anos. Na rua 137, interrompeu seu estudo da arte publicitária, saiu do metrô e começou a correr de novo, uma corrida incansável e ansiosa que, desta vez, o levou a sua casa — um quarto num prédio de apartamentos, alto e horroroso, no meio do nada. Lá estava, em sua mesa, a carta — escrita com tinta sagrada, em papel abençoado. Em toda a cidade, as pessoas, se prestassem atenção, poderiam ouvir bater o coração de George O’Kelly. Ele leu as vírgulas, os borrões, a marca do polegar na margem, e se atirou desesperado na cama. Sua vida estava uma bagunça, uma bagunça que era corriqueira na vida dos pobres e que persegue a pobreza como aves de rapina. Os pobres se dão mal ou se dão bem, ou vão para o buraco ou apenas vão em frente, à sua maneira — mas a pobreza era tal novidade para George O’Kelly que, se alguém lhe dissesse que seu caso não tinha nada de diferente, ele ficaria espantado. Menos de dois anos antes, ele se formara com distinção no Instituto de Tecnologia de Massachusetts e arranjara um bom emprego numa firma de engenharia civil no Sul do Tennessee. A vida toda, só pensara em túneis, arranha-céus, grandes represas e pontes de três andares como se fossem dançarinos de mãos dadas, com cabeças da altura de cidades e saias formadas por tramas de cabos. George O’Kelly achava romântico mudar o curso dos rios e a forma das montanhas, de modo que a vida florescesse nas velhas terras incultas do mundo onde até então nunca plantara raízes. Amava o aço, e sempre havia aço por perto em seus sonhos, aço líquido, aço em lingotes e blocos, em vigas, e massas informes de plástico, que esperavam por ele como tintas e telas ao alcance da mão. Aço inexaurível, a ser tornado belo e austero pelo fogo de sua imaginação. Neste momento, ele trabalhava como agente de seguros, a quarenta dólares por semana, e o sonho se desmilingüia rapidamente às suas costas. A mocinha morena responsável por sua desgraça, essa terrível e intolerável desgraça, esperava que ele a mandasse buscar numa cidade do Tennessee. Dali a quinze minutos, a mulher de quem ele alugava o quarto bateu à porta para perguntar, com

uma gentileza de dar nos nervos, se, já que tinha chegado, não gostaria de almoçar. Disse que não, mas a interrupção o despertara e, levantando-se da cama, escreveu um telegrama. CARTA ME DEPRIMIU VOCÊ PERDEU A CORAGEM VOCÊ É BOBA ESTÁ CHATEADA NEM PENSE EM TERMINAR POR QUE NÃO NOS CASAMOS LOGO VAI DAR TUDO CERTO Hesitou por um agitado minuto e acrescentou, numa letra que mal podia reconhecer como sua: “Chego amanhã às seis”. Quando acabou, saiu correndo do apartamento rumo ao correio perto da estação do metrô. Suas posses no mundo não chegavam a cem dólares, mas a carta significava que ela estava “nervosa” e isso não lhe deixava escolha. Sabia o que “nervosa” significava — que ela estava emocionalmente abalada e que a idéia de se casarem e levarem uma vida de luta e pobreza estava sendo demais para o seu amor por ele. George O’Kelly chegou à companhia de seguros à sua habitual velocidade, uma velocidade que se tornara quase sua segunda natureza e parecia expressar a tensão em que vivia. Foi direto ao escritório do gerente. “Senhor Chambers, preciso falar com o senhor”, anunciou, quase sem conseguir respirar. “Sim?” Dois olhos, lembrando um par de janelas hibernais, dardejaram sobre ele de forma implacável e impessoal. “Queria tirar quatro dias de férias.” “Mas... você tirou férias há apenas duas semanas!”, disse o sr. Chambers, surpreso. “É verdade”, admitiu o jovem, meio perturbado, “mas agora preciso tirar de novo.” “Aonde foi da última vez? Para a casa de sua família?” “Não, fui para... um lugar no Tennessee.” “Bem, e agora quer ir para onde?” “Desta vez vou para... um lugar no Tennessee.” “Pelo menos, você é coerente”, disse seco o gerente. “Mas eu não sabia que você tinha sido contratado aqui como caixeiro-viajante.” “Não fui”, disse George, já desesperado. “Mas preciso ir!” “Pois então vá”, concordou o sr. Chambers. “Mas não precisa voltar. Portanto, não volte!” “Não vou voltar.” E, para sua surpresa, assim como a do sr. Chambers, o rosto de George ficou róseo de prazer. Sentiu-se feliz, exultante — pela primeira vez em seis meses, estava absolutamente livre. Seus olhos estavam marejados de lágrimas de gratidão e ele apertou calorosamente a mão do sr. Chambers. “Quero lhe agradecer”, disse, num ímpeto de emoção. “Não quero voltar. Acho que teria enlouquecido se o senhor dissesse que eu podia voltar. Eu não teria coragem de pedir demissão, sabe, e quero lhe agradecer por... ter me demitido.” Deu adeusinho com a mão, magnanimamente, e gritou ao sair: “O senhor me deve três dias de salário, mas não precisa pagar!”, e correu para fora do escritório. O sr. Chambers ligou para sua estenógrafa e perguntou se O’Kelly tinha lhe parecido esquisito nos últimos tempos. Já demitira muita gente em sua carreira e eles tinham reagido de muitas maneiras, mas ninguém até então lhe agradecera por isso — nunca, jamais.

II. Jonquil Cary era o nome dela, e, para George O’Kelly, nada podia ser tão fresco e pálido quanto

seu rosto quando ela o viu e correu para ele ansiosamente na plataforma da estação. Seus braços se abriram para ele e sua boca estava a meio caminho de um beijo quando ela estacou de repente e, com uma ponta de embaraço, olhou em volta. Dois rapazes pouco mais novos que George estavam nas proximidades. “Lembra-se do senhor Craddock e do senhor Holt?”, anunciou, alegremente. “Você os conheceu quando esteve aqui da outra vez.” Perturbado por essa transmutação de um beijo numa apresentação e suspeitando de algum significado oculto, George ficou ainda mais confuso ao descobrir que o carro que os levaria à casa de Jonquil pertencia a um dos rapazes. Parecia colocá-lo em situação desvantajosa. No caminho, Jonquil tagarelava entre os bancos da frente e de trás e, quando ele tentou enlaçá-la pela cintura, beneficiando-se da luz do crepúsculo, ela rapidamente ofereceu a mão, em troca. “Este é o caminho para sua casa?”, ele sussurrou. “Não estou reconhecendo a rua.” “Não, é uma nova avenida. Jerry pegou este carro hoje e queria que eu passasse por ela antes de nos levar para casa.” Vinte minutos depois, ao serem depositados na casa de Jonquil, George sentiu que sua primeira sensação de felicidade, a alegria que reconhecera nos olhos da namorada ao encontrá-la na estação, fora dissipada pela intrusão daquele passeio de carro. Alguma coisa que ele tanto esperava se perdera com a maior naturalidade, e era isso o que o preocupava quando desejou boa-noite aos jovens com voz contida. Mas seu mau humor logo desapareceu quando Jonquil o puxou para seus braços e, à meia-luz do vestíbulo, contou-lhe de todas as maneiras, das quais a melhor foi a sem palavras, quanto sentira a sua falta. A emoção de Jonquil reconfortou-o e prometeu a seu sofrido coração que, no fim, tudo acabaria dando certo. Sentaram-se juntinhos no sofá, dominados pela presença um do outro e alheios a tudo mais, exceto fragmentárias meiguices. À hora do jantar, os pais de Jonquil apareceram e mostraram-se felizes de ver George. Gostavam dele e tinham se interessado por sua carreira na engenharia quando ele viera pela primeira vez ao Tennessee, um ano antes. Lamentaram que tivesse desistido e ido para Nova York em busca de algo mais imediatamente lucrativo, mas, ao mesmo tempo que deploravam essa interrupção na carreira, solidarizaram-se com ele e aceitavam seu compromisso com Jonquil. Durante o jantar, perguntaram-lhe como estava se saindo em Nova York. “Tudo muito bem”, ele contou com entusiasmo. “Fui promovido — salário melhor.” Sentiu-se miserável ao dizer isso, mas eles ficaram tão felizes. “Devem gostar de você”, disse a sra. Cary. “Isso é certo, ou não o deixariam sair duas vezes em três semanas para vir até aqui.” “Não tiveram escolha”, explicou George apressadamente. “Disse que, se não deixassem, não trabalharia mais para eles.” “Mas você precisa guardar algum dinheiro”, admoestou-o gentilmente a sra. Cary. “Não devia gastá-lo todo nessa viagem cara.” O jantar chegou ao fim. George e Jonquil viram-se sozinhos e ela voltou para seus braços. “Que bom que você está aqui”, ela suspirou. “Gostaria que nunca mais tivesse de ir embora, querido.” “Sente falta de mim?” “Ah, muita, muita.” “Você... digo, outros homens vêm visitá-la com freqüência? Como aqueles dois meninos?” A pergunta a espantou. Os olhos pretos de veludo o encararam. “Ora, claro. O tempo todo. Ora... eu já lhe contei sobre isso nas cartas.”

Era verdade. Quando ele viera à cidade pela primeira vez, havia uns dez rapazes em volta dela, reagindo à sua pitoresca fragilidade com uma adoração adolescente, alguns deles percebendo que seus belos olhos eram também sensatos e gentis. “Você acha que vou ficar trancada em casa”, Jonquil perguntou, reclinando-se contra as almofadas do sofá até parecer que olhava para ele a quilômetros de distância, “e cruzar os braços e ficar parada aqui para sempre?” “O que isso significa?”, ele deixou escapar, em pânico. “Você pensa que eu nunca terei dinheiro para me casar com você?” “Não tire conclusões apressadas, George.” “Não estou tirando conclusões. Foi o que você disse.” George de repente percebeu que estava pisando em terreno perigoso. Ele não tivera a intenção de permitir que coisa alguma estragasse aquela noite. Tentou envolvê-la de novo nos braços, mas ela resistiu inesperadamente, dizendo: “Está quente. Vou ligar o ventilador.” Quando o ventilador foi ajustado, sentaram-se, mas agora ele estava muito sensível e, sem querer, mergulhou outra vez no mundo específico que tentara evitar. “Quando vai se casar comigo?” “Você está preparado para que eu me case com você?” De repente ele perdeu o controle dos nervos e se levantou de um salto. “Vamos desligar esse maldito ventilador”, gritou, “ele está me deixando louco. Parece um cronômetro fazendo passar o tempo que estou com você. Vim aqui para ser feliz e esquecer Nova York e...” Afundou-se de novo no sofá, com a mesma rapidez com que se levantara. Jonquil desligou o ventilador e, acomodando a cabeça dele em seu colo, começou a acariciar-lhe o cabelo. “Vamos ficar sentados aqui, quietinhos”, disse suavemente, “bem quietinhos, e vou fazer você dormir. Você está cansado e nervoso, e sua namorada vai cuidar de você.” “Mas eu não quero ficar quietinho”, ele reclamou, erguendo a cabeça bruscamente. “Não quero mesmo. Quero que você me beije. Isso é a única coisa que me fará descansar. E quem disse que estou nervoso? Você é que está nervosa. Não estou nervoso!” Para provar que não estava nervoso, pulou do sofá e aboletou-se numa cadeira de balanço no outro lado da sala. “Justamente quando estou pronto para me casar com você, você me escreve essas cartas nervosas, como quem vai dar para trás, e eu tenho de vir correndo...” “Você não precisa vir, se não quiser.” “Mas eu quero!”, insistiu George. Ele estava se achando muito racional e senhor de si, e estava convencido de que era ela quem tentava deliberadamente desnorteá-lo. Mas, a cada palavra, os dois se afastavam mais — e ele não conseguia parar de falar ou de disfarçar o aborrecimento e a dor em sua voz. Jonquil começou a chorar, magoada, e ele voltou ao sofá e abraçou-a de novo. Agora, era ele quem a reconfortava, trazendo-lhe a cabeça para junto do ombro, murmurando coisinhas familiares até ela ficar mais calma, só tremendo um pouco, espasmodicamente, nos braços dele. Ficaram ali por mais de uma hora, enquanto os pianos da noite martelavam seus últimos acordes lá fora na rua. George não se movia, nem pensava ou sonhava, entorpecido pela premonição do desastre. O relógio bateu onze horas, doze, e então a sra. Cary chamou-os gentilmente do alto da escada — a partir dali, só o esperavam o amanhã e o desespero.

III. No calor do dia seguinte, veio o ponto de ruptura. Eles já haviam percebido a verdade um sobre o outro, mas, dos dois, somente Jonquil estava disposta a avaliar a situação. “Não faz sentido continuar”, ela disse, com ar infeliz. “Você sabe que detesta esse negócio de seguros e nunca se dará bem nele.” “Não é isso”, ele teimou. “Detesto é continuar sozinho. Se você casar comigo e me acompanhar, e me der uma oportunidade, posso me sair bem em qualquer coisa, mas não enquanto estiver me preocupando com você aqui.” Ela ficou em silêncio por um longo tempo antes de responder. Não estava pensando — pois já tinha enxergado o fim —, mas apenas esperando, porque sabia que cada palavra pareceria mais cruel do que a anterior. Finalmente, falou: “George, eu amo você de todo o coração, e não vejo como possa amar qualquer outro. Se você estivesse pronto para mim há dois meses, eu teria me casado — agora não posso porque não me parece uma coisa sensata.” Ele lhe fez violentas acusações, havia alguém, ela estava escondendo alguma coisa dele! “Não, não há ninguém.” Era verdade. Mas, lutando contra a tensão dessa relação, encontrara alívio na companhia de jovens como Jerry Holt, que tinha o mérito de não significar absolutamente nada em sua vida. George não aceitou bem a situação — ao contrário. Agarrou-a pelos braços e tentou literalmente convencê-la, aos beijos, a se casar com ele de imediato. Quando isso fracassou, atirou-se a um longo monólogo de autopiedade e só parou ao perceber que estava se fazendo de desprezível aos olhos dela. Ameaçou ir embora sem ter a menor intenção de fazer isso e recusou-se a ir quando ela disse que, pensando bem, seria melhor que ele fosse. Por alguns momentos, Jonquil teve pena; depois, só quis ser delicada. Mas terminou por gritar: “Por que não vai embora?”, e tão alto que a sra. Cary desceu, alarmada, as escadas. “Algum problema?” “Vou-me embora, senhora Cary”, disse George, aos pedaços. Jonquil já tinha saído da sala. “Não fique assim, George.” A sra. Cary piscou para ele num gesto inútil de solidariedade — triste, mas ao mesmo tempo feliz de que a pequena tragédia estivesse quase no fim. “Se eu fosse você, iria para a casa de sua mãe por uma semana ou mais. Talvez, no fim das contas, esta seja a coisa mais sensata...” “Por favor, não fale”, ele gritou. “Por favor, não diga mais nada agora.” Jonquil voltou à sala. Sua dor e seu nervosismo vinham encobertos sob pó-de-arroz, rouge e chapéu. “Chamei um táxi”, ela disse impessoalmente. “Podemos dar uma volta até seu trem chegar.” Saiu em direção à varanda. George pôs o casaco e o chapéu e, por um minuto, parou exausto no hall — mal tinha beliscado alguma coisa desde que saíra de Nova York. A sra. Cary aproximou-se, puxou a cabeça dele e beijou-o no rosto, e ele se sentiu ridículo e fraco em sua consciência de que, no fim, aquela cena tinha sido ridícula e fraca. Se tivesse ido embora na noite anterior, se a tivesse deixado pela última vez, com seu orgulho intacto. O táxi chegou e, por uma hora, o casal de ex-namorados rodou pelas ruas menos movimentadas. Ele segurava sua mão e foi se acalmando à luz do sol, constatando muito tarde que não havia nada a fazer ou dizer. “Um dia vou voltar”, ele disse.

“Eu sei”, ela respondeu, tentando colorir a voz com um pouco de fé e animação. “E vamos nos escrever — de vez em quando.” “Não”, ele disse. “Não vamos nos escrever. Eu não conseguiria suportar. Um dia vou voltar.” “Nunca esquecerei você, George.” Chegaram à estação e ela o acompanhou enquanto ele comprava a passagem. “Ora, George O’Kelly e Jonquil Cary!” Eram um homem e uma moça que George conhecera quando trabalhara na cidade, e Jonquil pareceu aliviada com a presença deles. Por intermináveis cinco minutos, ficaram ali conversando; então, o trem entrou rugindo na estação e, com mal disfarçada agonia no rosto, George estendeu os braços para Jonquil. Ela deu um passo incerto em sua direção, hesitou e, rapidamente, apertou sua mão, como se estivesse se despedindo de um simples conhecido. “Adeus, George”, disse. “Espero que faça boa viagem.” “Adeus, George. Venha nos visitar de novo.” Apatetado, quase cego de dor, ele pegou sua maleta e, como um sonâmbulo, entrou no trem. A máquina atravessou os cruzamentos com seu clangor, ganhando velocidade ao vencer os vastos espaços suburbanos em direção ao pôr-do-sol. Talvez ela também estivesse vendo aquele crepúsculo e parasse por um momento para recordar, antes que o amor se evaporasse no passado com o sono dele. A noite cobriria para sempre o sol, as árvores, as flores e os risos de sua juventude.

IV. Numa tarde úmida de setembro do ano seguinte, um rapaz de rosto moreno como cobre desceu de um trem numa cidade do Tennessee. Olhou em volta ansioso e pareceu aliviado ao constatar que ninguém na estação o esperava. Tomou um táxi para o melhor hotel da cidade, onde se registrou, com certa satisfação, como George O’Kelly, de Cuzco, Peru. Já em seu quarto, sentou-se por alguns minutos perto da janela, olhando para a rua tão familiar lá embaixo. Depois, com mão trêmula, tirou o telefone do gancho e discou um número. “A senhorita Jonquil está?” “Sou eu.” “Ah...” Sua voz, vencendo uma tendência a vacilar, continuou com formal cordialidade: “É George O’Kelly. Recebeu minha carta?” “Sim. Achei que você chegaria hoje.” A voz de Jonquil, fria e impassível, perturbou-o, mas não tanto quanto ele temia. Era a voz de uma estranha, moderadamente feliz em ouvi-lo, mas sem excitações, ele pensou. Queria pôr de lado o telefone e recuperar o fôlego. “Não nos vemos há... bastante tempo.” Ele conseguiu dar um tom cordial à frase. “Mais de um ano.” Sabia muito bem há quanto tempo não se viam, quantos dias. “Vai ser ótimo revê-lo”, ela disse. “Estarei aí em uma hora.” Desligou. Por quatro longas estações do ano, cada minuto de seu lazer fora ocupado pela expectativa dessa hora, e agora a hora chegara. Pensava encontrá-la casada, noiva, apaixonada — qualquer coisa, menos tão alheia à sua chegada. Nunca mais haveria em sua vida, pensou, outros dez meses como os que acabara de passar. Ele próprio tinha de admitir que realizara uma notável proeza para um engenheiro da sua idade — tropeçara em duas incríveis oportunidades, uma no Peru, de onde acabava de voltar, e outra, por

conseqüência, em Nova York, para onde estava indo. Nesse curto período, passara da pobreza a uma posição de prosperidade sem limites. Olhou-se no espelho da penteadeira. Estava quase negro de tão queimado, mas era uma cor romântica e, na última semana, desde que tivera tempo para pensar no assunto, essa cor lhe dera considerável prazer. A dureza de seus traços também lhe provocava uma espécie de fascínio. Perdera um pedaço da sobrancelha em algum lugar e ainda estava usando um esparadrapo num joelho, mas era muito jovem para deixar de notar que, no vapor, muitas mulheres o tinham olhado com grande interesse. Suas roupas, naturalmente, eram horrendas. Tinham sido feitas por um alfaiate grego em Lima — em dois dias. Mas, como era jovem, sentiu-se obrigado a explicar essa deficiente indumentária a Jonquil no lacônico bilhete que lhe enviara. O único outro detalhe contido no bilhete era o pedido de que ninguém o esperasse na estação. George O’Kelly, de Cuzco, Peru, esperou por uma hora e meia no hotel — para ser exato, até que o sol estivesse bem alto no céu. Depois, recém-barbeado e tendo aplicado talco para tornar sua tez um pouco mais caucasiana — a vaidade sobrepujando-se no último instante ao romantismo —, chamou um táxi e mandou tocar para aquela casa que conhecia tão bem. Sua respiração parecia forte — percebeu isso, mas disse a si mesmo que se tratava de excitação, não de emoção. Ele continuava aqui; e ela não se casara — era o que bastava. Não sabia direito o que iria dizer-lhe. Mas este era um momento de sua vida que ele nunca teria dispensado. Não haveria triunfo sem uma mulher com quem dividi-lo, e, mesmo que não depusesse seu espólio aos pés de Jonquil, poderia pelo menos exibi-lo por um momento aos olhos dela. A casa avultou subitamente a seu lado, e o primeiro pensamento de George foi o de que ela assumira uma estranha irrealidade. Nada mudara — apenas tudo mudara. Era menor e parecia mais surrada do que antes — nenhuma nuvem de magia pendia sobre o telhado ou saía das janelas no andar de cima. Tocou a campainha e uma empregada negra, que ele não conhecia, abriu a porta. A srta. Jonquil desceria em um minuto. Umedeceu os lábios nervosamente e caminhou até a sala — e o sentimento de irrealismo aumentou. Afinal de contas, como ele podia ver, aquela era apenas uma sala, e não a câmara encantada onde passara horas tão pungentes. Sentou-se numa cadeira, espantado de que fosse apenas uma cadeira, e se deu conta de que sua imaginação distorcera e colorira as coisas mais simples e familiares. Então a porta se abriu e Jonquil entrou na sala — e foi como se tudo mais formasse um borrão diante de seus olhos. Ele não se lembrava do quanto ela era bonita e sentiu que seu rosto empalidecera e sua voz se reduzira a um pobre suspiro na garganta. Ela estava vestida de verde-claro, e uma fita dourada prendia seu cabelo preto por trás, como uma coroa. Os olhos de veludo capturaram os seus assim que ela entrou, e um espasmo de medo atravessou-o diante do poder de sua beleza dolorosa. Ele disse “Olá”, e ambos deram alguns passos à frente e apertaram-se as mãos. Depois, sentaramse em cadeiras bem distantes e ficaram se olhando através da sala. “Você voltou”, ela disse, e ele respondeu com a mesma falta de jeito: “Pensei em dar uma parada aqui e ver como você estava indo.” Tentou neutralizar o tremor da voz olhando para qualquer lugar, menos para o rosto dela. A obrigação de falar era dele, mas, a menos que começasse imediatamente a se gabar, parecia que não havia nada a dizer. Nunca houvera nada de casual em suas relações até então — não parecia possível que pessoas na situação deles começassem a falar do tempo. “Isso é ridículo”, ele explodiu, num súbito constrangimento. “Não sei muito bem o que fazer.

Minha presença aqui a incomoda?” “Não.” A resposta era, ao mesmo tempo, reticente e impessoalmente triste. Aquilo o deprimiu. “Você está noiva?”, ele perguntou. “Não.” “Está apaixonada por alguém.” Ela fez que não com a cabeça. “Ah!” Ele se acomodou na cadeira. Outro assunto já se exaurira — a conversa não estava seguindo o caminho que ele planejara. “Jonquil”, ele recomeçou, desta vez num tom mais baixo, “depois de tudo o que aconteceu entre nós, eu queria voltar e dizer ‘Não importa o que eu faça no futuro, nunca vou amar outra garota como amei você’.” Esse era um dos discursos que ele havia preparado. No vapor, ele lhe parecera o mais adequado — uma referência à ternura que sempre sentiria por ela, combinada a uma atitude sem compromisso relativa a seu atual estado de espírito. Aqui, com o passado à sua volta, a seu lado, e pesando mais a cada minuto, o discurso lhe parecia artificial e vazio. Ela não disse nada. Continuou sentada, imóvel, de olhos fixos nele, numa expressão que podia significar qualquer coisa ou nada. “Você não me ama mais, não é?”, ele perguntou com voz neutra. “Não.” Quando a sra. Cary entrou, um minuto depois, e falou de seu sucesso — o jornal local dera uma notícia a respeito —, ele sentia uma barafunda de emoções. Sabia agora que ainda queria essa garota, e sabia também que às vezes o passado pode voltar — só isso. No mais, devia ser forte e cuidadoso, para ver no que dava. “E agora”, a sra. Cary estava dizendo, “queria que vocês fossem visitar uma senhora que cultiva crisântemos. Ela me disse que gostaria de conhecê-lo, porque leu a seu respeito no jornal.” Foram visitar a mulher dos crisântemos. Caminharam pela rua e ele se lembrou, com uma espécie de excitação, de como os passinhos mais curtos de Jonquil adequavam-se aos seus. A mulher se revelou muito agradável e os crisântemos eram enormes e extraordinariamente bonitos. Os jardins da mulher estavam repletos deles, brancos, rosa e amarelos — estar entre eles era uma viagem ao coração do verão. Havia dois jardins cheios, divididos por um portão; quando eles se encaminharam ao segundo jardim, a senhora passou primeiro pelo portão. Então uma coisa curiosa aconteceu. George afastou-se para dar passagem a Jonquil, mas, em vez de entrar, ela parou e olhou para ele por um minuto. O importante não foi o olhar, que não chegava a ser um sorriso, mas o momento de silêncio. Viram-se nos olhos um do outro, ambos sentiram a respiração acelerar e só então entraram no segundo jardim. Só isso. A tarde desfalecia. Agradeceram à senhora e voltaram devagar para casa, pensativos, lado a lado. Durante o jantar, continuaram em silêncio. George contou ao sr. Cary um pouco do que lhe acontecera na América do Sul e conseguiu passar a impressão de que estava com a vida feita. O jantar terminou, e ele e Jonquil estavam de novo na sala que fora palco do começo e do fim de seu caso de amor. Tudo lhe parecia muito antigo e indizivelmente triste. Naquele sofá, ele sofrera agonia e dor como nunca mais sentiria. Nunca mais seria tão fraco, exausto, miserável e pobre. E, no entanto, sabia que aquele rapaz de quinze meses atrás tinha alguma coisa, uma confiança, um calor que se perdera para sempre. A coisa sensata — eles tinham feito a coisa sensata. Trocara sua juventude pela força e, do desespero, arrancara o sucesso. Mas, junto com sua juventude, a vida levara o frescor de seu amor.

“Você não quer se casar comigo, não é?”, ele perguntou, tranqüilamente. Jonquil balançou seu cabelo escuro. “Nunca irei me casar”, respondeu. Ele concordou. “Vou a Washington amanhã de manhã”, ele disse. “Ah...” “Tenho de ir. Preciso estar em Nova York no dia 1º-, mas, antes, quero dar uma passada em Washington.” “Negócios!” “N... não”, ele respondeu, como que relutando. “Há uma pessoa lá que foi muito boa comigo quando eu estava tão... por baixo.” Era invenção sua. Não havia ninguém que ele precisasse ver em Washington, mas, ao observar Jonquil bem de perto, teve certeza de que ela se agitou um pouco, que seus olhos se fecharam e depois se arregalaram de novo. “Mas, antes de ir, gostaria de lhe contar as coisas que me aconteceram desde que nos despedimos e, como talvez nunca mais nos vejamos, fico pensando se... se pelo menos mais uma vez você se sentaria no meu colo como gostava de fazer. Eu não pediria isso, mas já que não há ninguém... então talvez não faça diferença.” Ela concordou e, num momento, estava sentada em seu colo, como fizera tantas vezes naquela primavera perdida. A sensação da cabeça dela contra seu peito, de seu corpo familiar, penetrou-o como um choque. Seus braços, estreitando-a, tendiam a apertá-la contra ele, por isso ele começou a falar de forma bem cuidadosa. Contou-lhe de suas duas semanas desesperadoras em Nova York, que resultaram num trabalho atraente, mas não muito lucrativo, numa empresa de construção em Jersey City. Quando a proposta do Peru lhe foi apresentada, não parecia uma oportunidade tão extraordinária. Ele seria o terceiro engenheiro assistente numa expedição, mas apenas dez entre os americanos, incluindo oito operários e agrimensores, conseguiram chegar a Cuzco. Dez dias depois, o chefe da expedição morreu de febre amarela. Foi sua chance, a chance para qualquer um que não fosse um trouxa, uma chance maravilhosa... “Para qualquer um que não fosse um trouxa?”, ela interrompeu, inocentemente. “Até para um trouxa”, ele continuou. “Era maravilhosa. Bem, telegrafei para Nova York...” “E então”, ela interrompeu de novo, “eles responderam dizendo que você deveria aproveitar?” “Deveria?”, ele exclamou. “Que eu tinha de aproveitar. Não havia tempo a perder...” “Nem um minuto?” “Nem um minuto.” “Nem mesmo para...”. Ela fez uma pausa. “Para quê?” “Olhe.” Ele inclinou a cabeça para a frente e ela se aproximou dele no mesmo instante, seus lábios entreabertos como uma flor. “Sim!”, ele sussurrou em sua boca. “Há todo o tempo do mundo...” Todo o tempo do mundo — sua vida e a dela. Mas, por um instante, ao beijá-la, ele sabia que, mesmo que procurasse por toda a eternidade, nunca conseguiria recapturar aquelas horas perdidas de abril. Podia apertá-la contra si até que os músculos fizessem nós em seus braços — ela era algo tão raro e desejável, que ele lutara para ganhar e conseguira conquistar —, mas nunca mais conheceria o

murmúrio intangível da penumbra ou da brisa da noite... Ah, que importância tem, pensou. Aquele abril passou, aquele abril passou. Há todas as espécies de amor neste mundo, exceto o mesmo amor duas vezes. (1924)

O amor à noite

Val delirou com estas palavras. Elas lhe tinham ocorrido naquela tarde dou rada de abril e ele não parou de repeti-las: “O amor à noite; o amor à noite”. Sabia dizê-las em russo e francês, mas descobriu que ficavam melhor em inglês. Nas outras línguas, pareciam significar outra espécie de noite e outra espécie de amor. Em inglês, para ele, a noite era mais amena e suave, como uma poeira cristalina de estrelas. E o amor lhe soava como o mais frágil e romântico dos sentimentos — um vestido branco, um rosto pálido e olhos que brilhassem como luzes. Mas, ao me lembrar de que ele estava pensando numa noite francesa, talvez devesse contar a história do começo. Val era metade russo, metade americano. Sua mãe era filha do célebre Morris Hasylton, que ajudou a patrocinar a Feira Mundial de Chicago, em 1892, e seu pai — vide o Almanach de Gotha de 1910 — era o príncipe Paul Serge Boris Rostoff, filho do príncipe Vladimir Rostoff, neto de um grão-duque e primo em terceiro grau do czar. Impressionante, como se vê. Casa em São Petersburgo, cabana de caça em Riga e uma villa, quase um palácio, com vista para o Mediterrâneo. Era nesta villa em Cannes que os Rostoff passavam o inverno, mas não ficava bem recordar ao príncipe que sua villa na Riviera, da fonte de mármore (inspirada em Bernini) aos copos dourados, era paga com o ouro americano. Os russos, naturalmente, esbaldavam-se no continente, nos dias de gala antes da guerra. Entre os povos que faziam do Sul da França um jardim de delícias, eles estavam facilmente em primeiro lugar. Os ingleses eram muito sovinas, e os americanos, embora gastassem a rodo, não tinham um comportamento tradicionalmente romântico. Mas os russos eram tão galantes quanto os latinos, com a vantagem de que tinham dinheiro! Quando os Rostoff chegavam a Cannes no fim de janeiro, os proprietários de restaurantes telegrafavam para o norte, a fim de perguntar pelas marcas favoritas do príncipe e colá-las em seus champanhes, ao passo que os joalheiros expunham seus mais incríveis artigos na vitrine, enquanto a Igreja russa paramentava-se de alto a baixo no caso de o príncipe resolver ir lá para pedir o perdão ortodoxo por seus pecados. O próprio Mediterrâneo parecia vermelho como vinho nas noites de primavera, enquanto os barcos de pescadores ostentavam velas roxas ao zarpar. De alguma maneira, o jovem Val sabia que tudo isso acontecia por sua causa e de sua família. Era um paraíso privilegiado, esta branca cidadezinha à beira-mar em que ele fazia o que queria, porque era rico e jovem e porque o sangue de Pedro, o Grande, corria como corante em suas veias. Tinha apenas dezessete anos em 1914, quando esta história começa, mas já havia duelado contra um homem quatro anos mais velho, do qual só restara como lembrança uma pequena cicatriz no alto de sua bonita cabeça. Mas a questão do amor à noite era a que lhe falava mais de perto ao coração. Era ainda um vago sonho, uma coisa que iria acontecer-lhe um dia, única e incomparável. E não sabia mais nada a respeito, a não ser que haveria uma linda garota e que aconteceria sob o luar da Riviera.

O interessante não é que ele acalentasse essa esperança quase espiritual de um romance (afinal, todos os jovens com imaginação passam por isso), mas o fato de que a coisa realmente aconteceu. E, quando aconteceu, foi absolutamente inesperado. Uma mistura de emoções e impressões, de frases que saltavam de seus lábios, de imagens e sons que lhe acorriam, perdiam-se e tornavam-se passado, e que ele mal podia entender. Talvez fosse o caráter vago de tudo aquilo que tivesse se eternizado em seu coração, de modo a fazê-lo incapaz de esquecer. Havia uma atmosfera de amor a seu redor naquela primavera — como os namoricos de seu pai, por exemplo, que eram muitos e indiscretos, e dos quais Val tomou conhecimento aos poucos, pelos comentários da criadagem, e definitivamente, ao deparar sem aviso com sua mãe, que era americana, e encontrá-la jogando histericamente o retrato do pai contra a parede do salão. No retrato, seu pai usava um uniforme branco com dólmã de pele e olhava impassivamente para a esposa como se dissesse: “Por acaso, querida, julgou ter se casado com um padre?”. Val recuou, surpreso, confuso — e excitado. Aquilo não o chocou, como teria acontecido com qualquer garoto americano da sua idade. Sabia havia anos o que era a vida para os ricos do continente, e só condenava em seu pai o fato de ter feito sua mãe chorar. O amor existia a seu redor — tanto o legítimo quanto o ilícito. Caminhando pela calçada da praia, por volta de nove horas, com as estrelas competindo em brilho com as lâmpadas nos postes, parecia sentir o amor por todos os lados. Dos cafés com mesas na calçada, fervilhantes de saias vindas de Paris, saía um aroma doce e pungente de flores, licores, café fresco e cigarros — e, misturado a isso tudo, ele identificava outro cheiro, o misterioso aroma do amor. Mãos tocavam outras mãos, que refulgiam de jóias sobre as mesas brancas. Alegres vestidos e peitilhos brancos de camisa deslizavam juntos pela pista de dança, enquanto mãos levemente trêmulas acendiam cigarros com lentidão. Do outro lado da calçada, amantes menos sofisticados, como os jovens franceses que trabalhavam nas lojas de Cannes, passeavam sob as árvores com suas noivas, mas os olhos de Val raramente dignavam-se a contemplá-los. A música luxuriante, as cores brilhantes, as conversas em voz grave faziam parte de seu sonho. Eram as armadilhas essenciais do Amor naquela noite. Mas, com toda a expressão feroz que se espera de um jovem e elegante russo passeando sozinho pelas ruas, Val começava a sentir-se infeliz. A penumbra de abril sucedera-se à penumbra de março, a temporada estava quase no fim e ele já não sabia o que fazer daquelas mornas noites de primavera. As garotas de dezesseis, dezessete anos, que ele conhecia passeavam com suas chaperones, do entardecer à hora de dormir — não se esqueçam de que estamos antes da guerra — e as outras que de bom grado passeariam com ele eram uma afronta a seu romântico desejo. E assim passou-se abril — uma, duas, três semanas. Val havia jogado tênis até as sete e zanzado pelas quadras por mais uma hora. Portanto eram mais ou menos oito e meia quando a carruagem que o conduzia chegou ao topo da colina sobre a qual se debruçava a fachada da villa Rostoff. Os faróis da limusine de sua mãe esperavam acesos por ela na entrada, e a princesa, abotoando as luvas, saía pela porta da mansão. Val jogou dois francos para o cocheiro e foi beijá-la na face. “Não me toque”, ela disse rispidamente. “Você acabou de pegar em dinheiro.” “Mas não com a boca, mamãe”, ele protestou, rindo. A princesa olhou-o com impaciência. “Estou furiosa. Por que chegou tão tarde? Vamos jantar num iate e você também estava convidado.” “Qual iate?” “De uns americanos.” Havia sempre uma breve ironia na voz da mãe quando mencionava a terra

em que nascera. Sua América era a Chicago do fim de século, o que, para ela, significava uma espécie de fundos de um açougue. Nem os deslizes do marido, o príncipe Paul, lhe pareciam um preço tão alto por sua fuga dali. “Dois iates”, ela continuou. “Na realidade, não sabemos em qual. O convite era vago. Gente extremamente descuidada.” Americanos. A mãe de Val o ensinara a desprezá-los, mas não conseguira fazê-lo desgostar deles. Os americanos o notavam, apesar de ele ter apenas dezessete anos. Gostava dos americanos. Embora fosse russo dos pés à cabeça, não o era de forma tão imaculada — apenas 99,9 por cento. “Quero ir”, ele disse. “Vou correr e...” “Já estamos atrasados.” A princesa virou-se quando o marido chegou à porta. “Val agora está querendo ir.” “Impossível”, disse o príncipe Paul. “Chegou muito atrasado.” Val concordou. Os aristocratas russos, apesar de tolerantes consigo mesmos, eram admiravelmente espartanos quando se tratava dos filhos. Não havia o que discutir. “Desculpem”, disse. O príncipe Paul resmungou. O criado, de farda vermelha e prata, abriu a porta da limusine. Mas aquele resmungo decidiu a coisa a favor de Val, porque a princesa Rostoff, naquele dia e hora, tinha certas queixas contra o marido que a deixavam senhora da situação. “Pensando bem, é melhor vir, Val”, disse ela friamente. “Como já está atrasado, vá depois do jantar. O iate é o Minnehaha ou o Privateer.” Entrou na limusine. “Vá no que estiver mais animado — provavelmente, o dos Jackson...” “Use a cabeça”, grunhiu o príncipe, deixando claro que Val não poderia errar se não fosse de todo burro. “Mande meu empregado dar uma olhada em você antes de sair. Use uma gravata minha, no lugar daquele barbante que você pôs no pescoço em Viena. Vire homem. Já é tempo.” Quando a limusine se afastou esmagando as pedrinhas da estrada, o rosto de Val estava queimando.

II. Estava escuro no porto de Cannes, ou talvez apenas parecesse escuro em comparação com o brilho da avenida que Val deixara para trás. Três faróis iluminavam palidamente inúmeros barcos de pesca que se amontoavam como conchas na praia. Mais adiante, outras luzes iluminavam uma frota de iates que se deixavam sacudir pelas ondas com lenta dignidade e, ainda mais adiante, uma dourada lua cheia fazia do mar uma pista de dança lustrosa. De vez em quando, ouvia-se o ruído rascante de um barco a remo entre os cascos das elegantes lanchas de pesca. Val caminhou pela areia, tropeçando num sonolento barqueiro com o típico hálito de alho e vinho barato. Sacudindo-o pelos ombros, acordou-o e perguntou: “Sabe onde está ancorado o Minnehaha ou o Privateer?” Deslizando pela baía, Val estirou-se no barquinho e contemplou com vaga desesperança o luar da Riviera. Belo luar, sem dúvida, e pelo menos cinco vezes por semana. Havia um encanto no ar, assim como o som de muitas orquestras. A leste ficava a sombria Cap d’Antibes, depois Nice e, mais além, Monte Carlo, onde a noite soava como ouro. Algum dia ele desfrutaria daquilo, conheceria todos os seus prazeres — quando já fosse velho demais. Mas aquela noite — em que a lua parecia refletir uma corrente de prata sobre as ondas, com as românticas luzes de Cannes tão próximas e com o irresistível aroma do amor no ar —, aquela noite parecia perdida para sempre. “Qual deles?”, perguntou o barqueiro.

“Qual o quê?”, replicou Val, subitamente desperto. “Qual barco?” Ele indicou. Val olhou; sobre sua cabeça, a proa de um iate apontava como uma espada. Enquanto ele sonhava, tinham navegado meia milha. O nome dizia: Privateer. Mas as luzes eram mortiças, e não se ouvia música nem vozes, apenas o marulho das ondas contra o casco. “É o outro”, disse Val. “O Minnehaha.” “Não vá embora”, disse alguém. Val parou. A voz, grave e suave, saíra da penumbra do barco. “Por que essa pressa?”, continuou a voz. “Pensei que alguém tivesse vindo me visitar e ficado desapontado.” O barqueiro levantou os remos e olhou hesitante para Val. Como Val não disse nada, deitou as pás na água e remou com decisão em direção ao luar. “Espere!”, gritou Val. “Adeus”, disse a voz. “Volte outro dia, quando puder ficar.” “Mas vou ficar agora!”, respondeu Val, quase sem fôlego. Deu a ordem ao barqueiro e este remou de volta até junto da escadinha. Alguém muito jovem, num misterioso vestido branco, alguém com uma bela voz grave, o chamara na noite aveludada. “Se ela tiver olhos como...”, Val murmurou para si mesmo, sem saber por quê. Gostou do som da frase e repetiu baixinho: “Se ela tiver olhos como...”. “Quem é você?” Agora, ela estava exatamente acima dele. Val subiu a escadinha e, quando seus olhos se encontraram, ambos começaram a rir. “Quem é você?”, ela repetiu, recuando e rindo, quando a cabeça dele apontou na amurada. “Agora estou com medo e quero saber.” “Sou um cavalheiro”, disse Val, curvando-se. “Que espécie de cavalheiro? Porque há todas as espécies de cavalheiros. Havia um — um senhor de cor — na mesa ao lado da nossa em Paris, e aí...” Ela parou. “Você não é americano, é?” “Sou russo”, ele respondeu, como se estivesse anunciando um arcanjo. Pensou depressa e acrescentou: “E sou o russo mais feliz do mundo. O dia inteiro, a primavera inteira, sonhei em me apaixonar numa noite como esta. E agora você caiu do céu!”. “Espere um pouco”, ela disse, ofegante. “Há um engano. Eu não sou o que você está pensando. Por favor!” “Como?” Olhou-a fascinado, inconsciente de que a tinha dado por fácil muito rapidamente. Mas logo se recompôs: “Peço-lhe desculpas. Se me der licença, vou retirar-me”. E virou-se. Sua mão já estava na amurada. “Não vá”, ela disse, afastando dos olhos uma invisível madeixa. “Pensando bem, pode dizer o que quiser, desde que não vá. Estou muito deprimida e não quero ficar só.” Val hesitou — havia alguma coisa ali que não entendia. Sempre achara que uma garota que se dirige de noite a um estranho, mesmo que de um iate, está em busca de romance. E ele queria ardentemente ficar. Então lembrou-se que este era um dos iates que procurava. “O jantar não é no outro iate?”, perguntou. “Jantar? Ah, sim, é no Minnehaha. Estava indo para lá?” “Estava... mas isso há muito tempo.” “Como se chama?” Estava a ponto de dizer seu nome quando uma pergunta lhe ocorreu:

“E você? Por que não está na festa?” “Porque preferi ficar aqui. A senhora Jackson disse que iriam alguns russos — como você.” Olhou-o com algum interesse. “Você é muito jovem, não é?” “Sou mais velho do que pareço”, respondeu Val com voz firme. “As pessoas vivem comentando isso. Acham incrível.” “Qual é a sua idade?” “Vinte e um”, mentiu Val. Ela riu: “Que mentira! Aposto que não tem mais que dezenove.” Val ficou tão evidentemente aborrecido que ela se apressou em consertar as coisas: “Não fique assim. Também só tenho dezessete. Eu teria ido à festa se soubesse que haveria alguém com menos de cinqüenta anos”. Gostou de que ela mudasse de assunto. “Então preferiu ficar sentada aqui, contemplando a lua?” “Estava pensando sobre como as pessoas se enganam.” Sentaram-se em duas cadeiras de lona no convés. “É um assunto interessante, este de como as pessoas se enganam. As mulheres quase não pensam nisso. São muito mais propensas a esquecer do que os homens. Mas quando se lembram...” “Você cometeu algum engano?”, perguntou Val. “Acho que sim”, ela respondeu. “Não tenho certeza. Era nisso que eu estava pensando quando você chegou.” “Talvez eu possa ajudá-la. Talvez não seja uma coisa assim tão irreparável.” “Acho que é. Portanto, vamos esquecer o assunto. Estou meio farta dele e preferia que você me contasse sobre as coisas alegres que estão acontecendo em Cannes esta noite.” Eles olharam para a praia e viram o colar de luzes e as casinhas de brinquedo, como se tivessem velas dentro — na realidade, os grandes hotéis de luxo, o relógio luminoso, o brilho embaçado do Café de Paris e as janelas iluminadas das villas, superpondo-se em direção ao céu escuro. “O que estará acontecendo lá?”, ela murmurou. “É como se estivesse havendo alguma coisa fantástica, só que não sei o que é.” “Estão fazendo amor”, disse Val tranqüilamente. “Será?” Olhou por mais algum tempo, com uma estranha impressão nos olhos. “Então quero voltar para a América. Há amor demais aqui. Gostaria de ir embora amanhã.” “Tem medo de se apaixonar?” Ela fez que não. “Não é isso. É só porque — porque não há amor aqui para mim.” “Nem para mim”, acrescentou Val. “É triste que duas pessoas como nós estejam num lugar tão bonito, numa noite como esta, e... nada.” Val debruçou-se sobre ela, com uma espécie de inspiração romântica e casta, mas ela recuou. “Fale mais sobre você”, ela sugeriu, depressa. “Se é russo, como fala inglês tão bem?” “Minha mãe era americana”, ele revelou. “Meu avô também. Ela não tinha escolha.” “Então você também é americano!” “Sou russo”, disse Val com dignidade. Ela o olhou, atenta, sorriu e decidiu não discutir. “Bem, então”, disse diplomaticamente, “suponho que tenha um nome russo.” Mas ele não tinha nenhuma intenção de dizer seu nome por enquanto. Qualquer nome — mesmo Rostoff — seria uma profanação daquela noite. Suas vozes, seus rostos bastavam. Tinha certeza, sem

nenhuma razão para isto — apenas o instinto que cantava triunfalmente em seu coração — de que, em pouco tempo, um minuto ou uma hora, ele estaria se iniciando na vida romântica. Seu nome não importava em comparação com o que ardia dentro dele. “Você é linda”, ele disse de repente. “Como sabe?” “Porque, para as mulheres, a luz da lua é a mais severa de todas.” “E como sou eu à luz da lua?” “A coisa mais linda que já vi.” “Ah.” Ela pensou antes de dizer. “Eu sabia que não devia tê-lo deixado subir aqui. Devia ter imaginado sobre o que acabaríamos conversando... com esta lua. Mas não podia ficar sozinha, olhando para a praia. Sou muito nova para isto. Não acha?” “Muito nova.” E, subitamente, os dois se deram conta da música que parecia ao alcance da mão, que parecia brotar do mar ao redor, não da praia distante. “Escute!”, ela gritou. “É o Minnehaha. Eles terminaram o jantar.” Por um momento, ouviram em silêncio. “Obrigado”, disse Val. “Por quê?” Ele mal se lembrava de ter falado. Estava agradecendo à orquestra por ter feito a brisa cantar, ao mar por murmurar contra a proa, ao leite que as estrelas derramavam, até que ele se sentisse inundado por uma substância mais espessa que o ar. “É lindo”, ela suspirou. “O que vamos fazer?” “Temos que fazer alguma coisa? Pensei que podíamos apenas olhar...” “Não, não pensou”, ele interrompeu calmamente. “Você sabe que temos de fazer alguma coisa. Vou beijá-la, e você vai gostar.” “Não posso”, ela disse baixinho. Teve vontade de rir, dizer alguma coisa engraçada, para que a situação voltasse a navegar nas águas tranqüilas de um flerte casual. Mas era tarde. Val sabia que a música havia completado o que a lua começara. “Vou dizer-lhe a verdade”, ele falou. “Você é o meu primeiro amor. Tenho dezessete anos, o mesmo que você.” Havia qualquer coisa terrivelmente desarmante na revelação de que tinham a mesma idade. Tornou-a indefesa diante do destino que os unira. As cadeiras de lona rangeram e ele percebeu o leve aroma de um perfume enquanto se deixavam ondular juntos, como duas crianças.

III. Se a beijou uma ou diversas vezes, Val não se lembraria depois, embora tivessem passado uma hora sentados juntos, com ele segurando sua mão. O que mais o surpreendeu foi a absoluta ausência de paixão selvagem — lamento, desejo, desespero —, compensada pela delirante promessa da felicidade de viver, como ele nunca havia sentido antes. E este era apenas o seu primeiro amor — o primeiro! O que devia ser o amor em sua plenitude e perfeição! Val ainda não sabia que o que já estava experimentando, aquela sensação irreal de êxtase e paz, nunca mais seria recapturada. A música já havia parado quando o silêncio foi quebrado por um barco a remo perturbando as ondas. Ela se pôs rapidamente de pé e seus olhos perscrutaram a baía. “Escute!”, disse de repente. “Como você se chama?”

“Não.” “Por favor!”, ela implorou. “Vou embora amanhã.” Ele não respondeu. “Não quero que me esqueça”, ela continuou. “Meu nome é...” “Não vou esquecê-la. Prometo lembrar-me para sempre de você. Não importa quem eu ame, terei de compará-la com você, meu primeiro amor.” “Quero que se lembre de mim”, ela disse entre soluços. “Ah, isto significou muito mais para mim do que para você, muito mais.” Estava de pé, tão próxima de seu rosto que ele podia sentir seu hálito doce. E mais uma vez ondularam juntos. Apertou-lhe as mãos e os pulsos entre as suas, como parecia correto fazer, e beijou-a. O beijo exato, ele pensou, o beijo romântico — nem muito, nem pouco. No entanto, havia neste beijo a promessa de outros que poderiam ter acontecido, e foi com um peso no coração que ele ouviu o barco aproximar-se do iate e se deu conta de que a família dela havia chegado. A noite terminara. “E isto é apenas o começo”, disse a si mesmo. “Toda a minha vida será como esta noite.” Ela tentava dizer qualquer coisa que ele ouvia com grande tensão. “Preciso lhe dizer uma coisa — sou casada. Há três meses. Era esse o engano a que me referia quando a lua o trouxe aqui. Dentro de um minuto você entenderá.” O barco encostou no iate e a voz de um homem ouviu-se na escuridão. “É você, querida?” “Sim.” “De quem é este outro barco esperando?” “Um dos convidados da senhora Jackson veio dar aqui por engano e convidei-o a subir para me distrair um pouco.” Um momento depois, os cabelos brancos e o rosto cansado de um homem de sessenta anos surgiram na amurada. E só então Val compreendeu — tarde demais — que estava apaixonado.

IV. Quando terminou a temporada na Riviera, em maio, os Rostoff e todos os outros russos fecharam suas villas e foram passar o verão em seu país. A Igreja ortodoxa russa fechou as portas, assim como as casas de vinhos raros, e até o luar de primavera pareceu sumir por uns tempos, à espera da volta deles. “Voltaremos na próxima temporada”, disseram, como sempre. Mas nunca mais voltariam. Os poucos que conseguiram escapar de novo para a França, depois de cinco trágicos anos, podiam dar-se por satisfeitos se conseguissem empregos como camareiras ou valets de chambre nos grandes hotéis em que, havia tão pouco, tinham se hospedado. Muitos, naturalmente, morreram durante a guerra ou a revolução; outros se tornaram parasitas e malandros baratos nas grandes cidades da Europa; e não poucos terminaram a vida num misto de estupor e desespero. Quando o governo Kerensky caiu em 1917, Val servia como tenente na frente oriental, tentando desesperadamente impor sua autoridade à companhia, mesmo que já não houvesse o menor vestígio dela. E ainda estava tentando quando o príncipe Paul Rostoff e sua mulher largaram tudo numa manhã chuvosa para fugir às cegas, na trilha dos Romanoff — e, com isso, a invejável carreira da filha de Morris Hasylton acabou numa cidade que se parecia ainda mais com os fundos de um açougue do que a Chicago de 1892.

Depois daquilo, Val lutou com o exército de Denikin por uns tempos, até se dar conta de que estava participando de uma farsa e que a glória da Rússia imperial terminara. Dali foi para a França, onde se viu subitamente confrontado com o impressionante problema de sustentar seu corpo e alma ao mesmo tempo. Seria natural que pensasse em ir para a América. Duas remotas tias, com quem sua mãe havia brigado muitos anos antes, ainda viviam lá, de certa forma ricas. Mas a idéia era repugnante em razão dos preconceitos que sua mãe lhe incutira e, além disso, não tinha dinheiro para a passagem. Até que uma possível contra-revolução restaurasse as propriedades dos Rostoff na Rússia, teria que se contentar em viver na França. Por isso, foi para a cidadezinha que conhecia melhor. Foi para Cannes. Com seus últimos duzentos francos comprou um bilhete de terceira classe e, quando chegou, vendeu seu melhor terno para um simpático sujeito que comerciava essas coisas, recebendo em troca dinheiro para comer e dormir. Mais tarde lamentou ter feito o negócio, porque o terno poderia tê-lo ajudado a conseguir um emprego de garçom. Em vez disso, porém, arranjou trabalho como motorista de táxi, e sentiu-se igualmente satisfeito — ou melhor, igualmente infeliz — com aquilo. Algumas vezes transportava americanos em busca de villas para alugar e costumava ouvir cochichos como: “... ouvi dizer que este rapaz era um príncipe russo” [...] “Psiu” [...] “Não, o motorista” [...] “Cale a boca, Esther”, seguidos de risos e chacotas. Quando parava o carro, os passageiros costumavam olhá-lo. A princípio, sentia-se péssimo quando eram moças que faziam aquilo; depois, deixou de se importar. Certa vez, um americano bêbado perguntou-lhe se era verdade e convidou-o a jantar; de outra feita, uma senhora de idade apertou-lhe a mão ao sair do táxi, deixando-lhe entre os dedos uma nota de cem francos. “Agora, Florence, já posso dizer para o pessoal lá da rua que apertei a mão de um príncipe russo.” O americano bêbado que o convidara a jantar pensou a princípio que Val era filho do czar, e Val teve de explicar-lhe que, na Rússia, um príncipe significa o mesmo que um título honorífico na Inglaterra. Mesmo assim, o americano não compreendia como um homem da personalidade de Val não saísse a campo para ganhar dinheiro de verdade. “Estamos na Europa”, disse Val com gravidade. “Aqui não se ganha dinheiro. O dinheiro é herdado ou, então, economizado durante muitos anos, de forma que, talvez depois de três gerações, uma família possa ascender a uma classe mais alta.” “Por que não tenta descobrir alguma coisa que as pessoas queiram comprar — como nós na América?” “Porque não somos ambiciosos como os americanos. Aqui, tudo o que as pessoas desejam já existe há muito tempo.” Mas, um ano depois, e com a ajuda de um jovem inglês com quem tinha jogado tênis antes da guerra, Val conseguiu um emprego na filial de Cannes de um banco britânico. Cuidava da correspondência e providenciava bilhetes e excursões para turistas impacientes. Às vezes, um rosto familiar vinha a seu guichê; se reconhecia Val, apertavam as mãos; se não, Val não se manifestava. Depois de dois anos, já não era apontado nas ruas como um antigo príncipe porque, àquela altura, a Rússia tinha saído de moda, e o esplendor dos Rostoff e seus amigos fora completamente esquecido. Misturava-se muito pouco com outras pessoas. À noite, dava um passeio pela calçada, tomava lentamente um copo de cerveja num café e ia cedo para a cama. Raramente era convidado para qualquer coisa, porque todos o achavam triste e deprimido — mesmo assim, nunca aceitava. Agora usava roupas francesas baratas, no lugar das ricas flanelas e tweeds que seu pai encomendava da Inglaterra. Quanto a mulheres, não conhecia nenhuma. Aos dezessete anos, só tivera certeza de uma

coisa — de que sua vida seria um eterno romance. Oito anos depois, descobrira que não seria assim. Não sabia por quê, mas nunca tivera tempo para amar. A guerra, a revolução e, agora, a pobreza conspiraram contra o seu coração. As nascentes de sua emoção, que haviam jorrado com tal abundância naquela noite de abril, tinham secado em seguida e delas só restara um pequeno filete. Sua juventude terminara quase ao mesmo tempo que começara. Viu-se envelhecendo progressivamente e vivendo cada vez mais das lembranças de sua gloriosa infância. Às vezes, não se continha, puxava do bolso um velho relógio herdado e exibia-o aos colegas de banco, os quais ouviam com piscadelas incrédulas suas histórias sobre os Rostoff. Estava pensando justamente nisso, numa noite de abril de 1922, enquanto caminhava pela calçada da praia e observava o eterno espetáculo das luzes. Ele já não acontecia por sua causa, como pensara um dia, mas, de qualquer maneira, continuava a existir, e isso o fazia feliz. No dia seguinte, sairia de férias, para um hotel barato na praia, onde poderia nadar, ler e descansar; quando elas terminassem, voltaria para o mesmo emprego. Todo ano, nos últimos três anos, tirara suas férias nas duas últimas semanas de abril, talvez porque naquela época a necessidade de recordar se aguçasse mais. Fora em abril que aquilo que estava destinado a ser a melhor parte de sua vida havia chegado ao fim, à luz do luar. E aquela recordação lhe era sagrada, pois o que ele imaginara que fosse a iniciação e o começo tinha sido, simplesmente, o final. Parou defronte do Café des Étrangers e, movido por um impulso, atravessou a rua e caminhou pela praia. Alguns iates, prateados pela lua, estavam ancorados na baía. Já os tinha visto naquela tarde e lera seus nomes pintados na proa — por pura questão de hábito. Fazia aquilo há três anos, como se já fosse uma função natural do olho. “Un beau soir”, disse uma voz em francês atrás dele. Era um barqueiro que vivia por ali. “Monsieur não acha o mar lindo?” “Muito bonito.” “Eu também. Só que fora da temporada não dá para viver. Mas acho que, na semana que vem, vou ganhar um pouquinho de dinheiro. Vão me pagar bem só para ficar aqui, sem fazer nada, de oito horas até meia-noite.” “Que ótimo”, disse Val educadamente. “Uma viúva americana, muito bonita, cujo iate sempre ancora na baía na última quinzena de abril. Se o Privateer chegar amanhã, já serão três anos.”

V. Val não dormiu aquela noite — não porque tivesse qualquer dúvida sobre o que deveria fazer, mas porque suas emoções, há muito adormecidas, tinham revivido violentamente. Claro que ele não a veria — um pobre-diabo, cujo sobrenome era agora apenas uma sombra, mas ficava feliz em saber que ela se lembrava. Aquilo deu uma nova dimensão a suas lembranças, revelou-as como se revela uma foto numa folha de papel branco. Deu-lhe a certeza de que ele não havia enganado a si próprio — certa vez seduzira uma jovem, e ela não o esquecera. Uma hora antes da chegada do trem no dia seguinte, ele já estava na estação, com sua valise, de modo a evitar qualquer encontro inesperado. Sentou-se na terceira classe de um vagão de espera. Mas, enquanto esperava ali, começou a pensar diferente — uma espécie de esperança, tênue e ilusória — do que pensava apenas vinte e quatro horas antes. Talvez houvesse um jeito de revê-la dentro de alguns anos, se trabalhasse a valer, se se atirasse ao que lhe caísse em mãos. Sabia de pelo menos dois russos em Cannes que tinham começado tudo de novo, usando apenas suas boas maneiras e alguma esperteza, e que agora iam surpreendentemente bem. O sangue de Morris Hasylton começou

a pulsar nas veias de Val e o fez recordar-se de algo a que nunca dera importância — que Morris Hasylton, que construíra para sua filha um palácio em São Petersburgo, também começara do nada. Ao mesmo tempo foi possuído por outra emoção, menos estranha, menos dinâmica, mas igualmente americana — a da curiosidade. No caso de... bem, no caso de a vida possibilitar-lhe procurá-la de novo, precisava pelo menos saber seu nome. Levantou-se num salto, pulou do trem e saiu correndo. Deixou a valise no bagageiro e apressou-se em direção ao consulado americano. “Um iate chegou esta manhã”, disse esbaforido a um funcionário, “um iate americano, o Privateer. Gostaria de saber o nome do proprietário.” “Um momento”, respondeu o funcionário, olhando-o com suspeita. “Vou tentar descobrir.” Após o que pareceu a Val uma interminável demora, o homem voltou. “Espere um minuto”, repetiu hesitante. “Estamos procurando.” “O iate chegou?” “Ah, sim, já está ancorado. Pelo menos, eu acho. Espere ali naquela cadeira.” Outros dez minutos se passaram e Val olhou com impaciência para o relógio. Se não se apressassem, ele perderia o trem. Fez um gesto nervoso e levantou-se. “Por favor, sente-se”, disse o funcionário, olhando-o de sua mesa. “Estou lhe pedindo.” Val ficou desconfiado. Por que lhe importaria que ele esperasse ou não? “Não posso perder o trem”, disse impaciente. “Desculpem pelo incômodo...” “Fique aí! Finalmente você apareceu. Estávamos à sua espera há..., sabe, três anos.” Val levantou-se e pôs o boné. “Por que não me disse antes?”, perguntou furioso. “Porque antes tínhamos de avisar nossa... nossa cliente. Por favor, não vá embora! Ah... tarde demais!” Val se virou. Alguém linda e radiante, com olhos escuros e assustados, estava de pé atrás dele, emoldurada pelo portal ensolarado. “Ora...” Os lábios de Val se abriram, mas não produziram nenhum som. Ela deu um passo em sua direção. “Eu...” Olhou-o com absoluta entrega, os olhos cheios de lágrimas. “Só queria dizer alô”, ela murmurou. “Há três anos que venho aqui para lhe dizer isso.” Val continuava silente. “Diga alguma coisa”, ela implorou, impaciente. “Pensei... pensei que tivesse morrido na guerra.” Virou-se para o funcionário. “Por favor, apresente-nos!”, gritou. “Não posso dizer-lhe alô, quando nem sabemos o nome um do outro.” Os americanos sempre desconfiam desses casamentos internacionais. Acham que eles nunca dão certo. Algumas manchetes típicas são: “Duquesa troca o marido por namorado texano” ou “Nobre arruinado tortura sua mulher americana”. Mas a verdade é que as manchetes com final feliz nunca saem nos jornais, porque quem estaria interessado em ler: “Californiana vive feliz em seu castelo escocês” ou “Duque e filha do xerife celebram bodas”? Até agora, os jovens Rostoff não saíram em jornal nenhum. O príncipe Val está muito ocupado com sua frota de táxis azuis para dar entrevistas. Ele e sua esposa só saem de Nova York uma vez por ano, mas há um barqueiro que se sente muito feliz quando o Privateer ancora na baía de Cannes em meados de abril. (1925)

O menino rico

Comece com um indivíduo e, antes que se dê conta, você concluirá que criou um tipo; comece com um tipo e concluirá que o que criou foi — nada. Isso é porque todos somos aves raras, e mais raras ainda no que se passa por trás dos rostos e vozes, naquilo que escondemos dos outros e que nem nós mesmos conhecemos. Quando ouço um homem dizer que é “um sujeito comum, honesto e franco”, já sei que ele tem alguma perversão terrível a esconder — e que sua afirmação de ser comum, honesto e franco é apenas uma forma de lembrar a si mesmo o próprio crime. Não existem tipos, nem generalizações. Existe um menino rico e esta é sua história, não a de seus irmãos. Passei a vida junto de seus irmãos, mas só dele fui amigo. Além disso, se fosse escrever sobre os irmãos, teria de começar criticando todas as mentiras que os pobres já contaram sobre os ricos e que os ricos já contaram sobre si mesmos. É uma estrutura tão bem urdida que, quando pegamos um livro sobre os ricos, já nos preparamos instintivamente para a irrealidade. Mesmo os narradores mais neutros e inteligentes pintaram o mundo dos ricos de forma tão irreal quanto uma terra de contos de fadas. Vou lhe contar sobre os muito ricos. Eles são diferentes de mim ou de você. Habituaram-se desde cedo a possuir e a usufruir, e isso modifica alguma coisa dentro deles, faz com que sejam suaves naquilo em que somos duros, cínicos quando somos esperançosos. É difícil de entender, a não ser que você tenha nascido rico. No fundo acham-se melhores do que nós, porque temos de descobrir por conta própria os refúgios e compensações da vida. E, mesmo quando mergulham profundamente em nosso mundo ou descem abaixo do nosso nível, ainda assim continuam achando que são melhores do que nós. Eles são diferentes. A única maneira que tenho para descrever Anson Hunter é abordá-lo como se fosse um estrangeiro e teimar até alcançar meu ponto de vista. Se aceitar o ponto de vista dele, mesmo que por um segundo, estarei perdido — e nada terei a mostrar a não ser um filme grotesco.

II. Anson era o mais velho de seis irmãos que um dia viriam a dividir uma fortuna de quinze milhões de dólares, e chegou à idade da razão — aos sete anos, talvez? — no início do século, época em que as jovens mais atiradas já estavam passeando pela Quinta Avenida em “máquinas” elétricas. Naquela época, ele e seu irmão tinham uma governanta inglesa que falava com muita clareza, estalando de perfeição, de forma que os dois garotos aprenderam a falar daquele jeito: palavras e frases destacadas e claras, não embrulhadas umas sobre as outras, como todos nós. Não falavam exatamente como os meninos ingleses, mas pegaram um sotaque característico das pessoas mais chiques de Nova York. No verão as seis crianças se mudaram da casa na rua 71 para uma grande propriedade no Norte de Connecticut. Não era um lugar da moda — o pai de Anson queria retardar o mais possível o momento

de expor os filhos a esse aspecto da vida. Era um homem de certa forma acima de sua própria classe, que consistia na sociedade de Nova York, e acima de seu tempo, que foi o período mais esnobe e mais vulgar dos Anos Dourados, e queria ensinar os filhos a ter hábitos saudáveis, boa constituição e a crescer com a perspectiva de se tornarem homens corretos e de sucesso. Ele e a mulher cuidaram dos filhos da melhor maneira possível antes que os dois mais velhos fossem estudar fora, mas, nas casas muito grandes, isso é mais difícil. Era mais fácil nas inúmeras casas de pequeno ou médio porte, como aquela em que eu próprio fui criado — nunca estava fora do alcance da voz de minha mãe e sempre sentia sua presença, sua aprovação ou não. Anson teve pela primeira vez uma sensação de superioridade ao perceber a deferência americana, meio disfarçada, que lhe era concedida na cidade de Connecticut. Os pais dos garotos com quem brincava sempre lhe perguntavam por seu pai e sua mãe e ficavam excitados quando seus filhos eram convidados para ir à casa dos Hunter. Anson encarava aquilo com naturalidade e manifestava certa impaciência ao se ver num grupo onde não era o centro das atenções — no que diz respeito a dinheiro, posição, autoridade —, característica que manteve por toda a vida. Desdenhava a idéia de ter de disputar a preferência com outro garoto. Esperava que esta lhe fosse concedida de graça e, quando isso não ocorria, refugiava-se no seio da família. A família era suficiente, porque, no Leste, o dinheiro ainda é algo feudal, um formador de clãs. No esnobe Oeste, o dinheiro separa as famílias e cria “grupos”. Aos dezoito anos, quando foi para New Haven, Anson era um rapaz alto e compacto, de rosto claro e cor saudável, resultado da vida regrada que levara na escola. O cabelo era louro, embora com um jeito esquisito, e seu nariz era adunco — duas coisas que o impediam de ser um rapaz bonito —, mas ele tinha charme e autoconfiança, além de uma desenvoltura que fazia com que, na rua, os outros homens abastados que passavam por ele percebessem imediatamente que era um rapaz rico e educado nos melhores colégios. Apesar disso, foi exatamente essa superioridade que o impediu de ser bem-sucedido na universidade — sua independência foi confundida com vaidade e a recusa em aceitar as regras de Yale com a devida deferência parecia diminuir aqueles que o faziam. E assim, muito antes da formatura, começou a transferir o foco de sua vida para Nova York. Em Nova York, sentia-se em casa: lá havia sua própria casa, com “os empregados que hoje em dia não se conseguem mais”, e sua família, da qual rapidamente se tornava o centro, por causa de seu bom humor e de uma certa habilidade em fazer as coisas acontecerem. E havia também as festas de debutantes e o mundo perfeito dos clubes masculinos, além de ocasionais farras com moças galantes que, em New Haven, só se podia apreciar da quinta fila. As aspirações de Anson eram as mais convencionais: incluíam até mesmo a sombra irrepreensível com quem um dia ele iria se casar, mas diferiam das aspirações da maioria dos jovens, no sentido de que, nelas, nada havia de nebuloso, nem daquelas características geralmente conhecidas como “idealismo” ou “ilusão”. Anson aceitava sem reservas o mundo das altas finanças e das grandes extravagâncias, do divórcio e do esbanjamento, do esnobismo e do privilégio. Para a maioria de nós, a vida acaba num compromisso — mas foi num compromisso que a dele começou. Nós nos conhecemos no fim do verão de 1917, quando ele acabara de sair de Yale e, assim como todo mundo, fora arrebatado pela sistemática histeria da guerra. Em seu uniforme verde-azulado da aviação naval, ele surgiu em Pensacola, onde nos hotéis as orquestras tocavam “I’m sorry, dear” e nós, os jovens oficiais, dançávamos com as garotas. Todo mundo gostava dele e, embora Anson gostasse de beber e não fosse lá um grande piloto, até mesmo os instrutores o tratavam com respeito. Estava sempre tendo longas conversas com eles, em seu tom confiante e lógico — conversas que terminavam por livrá-lo, a ele ou a algum outro oficial, de alguma encrenca. Anson era jovial,

dissoluto, vivamente sedento de prazer e todos nos surpreendemos quando se apaixonou por uma garota conservadora e certinha. Ela se chamava Paula Legendre e era morena, uma beleza e tanto, vinda de algum lugar da Califórnia. Sua família tinha uma residência de inverno nas cercanias da cidade e, embora ela fosse um tanto afetada, era muito popular. Há uma vasta classe de homens cuja vaidade não pode suportar o humor numa mulher. Mas Anson não era desse tipo e nunca entendi a atração que sentia pela “sinceridade” dela — é como se pode descrevê-la —, quando ele próprio tinha uma mente tão afiada e sardônica. Apesar de tudo, eles se apaixonaram — e nos termos dela. Anson já não participava das reuniões de fim de tarde no bar De Soto e, sempre que os dois eram vistos juntos, estavam envolvidos numa conversa séria e interminável, que parecia se arrastar havia semanas. Muito tempo depois ele me contaria que eles não falavam sobre nada em particular, mas que a conversa era composta, de ambas as partes, de afirmações imaturas e sem sentido — e que o conteúdo emocional que aos poucos a preencheria não era feito de palavras, mas de uma enorme seriedade. Era uma espécie de hipnose. De vez em quando era interrompida, dando lugar àquele humor emasculado a que chamamos pândega. Mas, quando estavam a sós, recomeçavam o diálogo, solene, em tom baixo, armado de forma a dar a cada um deles uma sensação de unidade no que diz respeito a razão e sentimento. Aos poucos começaram a se ressentir das interrupções, tornaram-se indiferentes diante das jocosidades da vida e até do leve cinismo de seus contemporâneos. Só se sentiam felizes enquanto o diálogo se travava e sua seriedade os envolvia como o brilho âmbar de uma fogueira. Até que surgiu uma interrupção da qual não se ressentiram — foi quando começaram a ser interrompidos pela paixão. Por mais estranho que pareça, Anson estava tão envolvido quanto ela naquele diálogo, e igualmente afetado por ele, embora ao mesmo tempo tivesse consciência de que, de sua parte, era um tanto forçado, enquanto que, da parte de Paula, era sincero. No início, ele desprezara a simplicidade emocional dela, mas, com o amor de Anson, a natureza de Paula se aprofundou e floresceu, até que ele já não pôde desprezá-la. Anson sentia que, se conseguisse penetrar na vida aconchegante e segura de Paula, seria feliz. A longa preparação do diálogo afastou qualquer embaraço — ele lhe ensinou o que aprendera com outras mulheres, mais aventurosas, e ela respondeu com uma intensidade inocente e arrebatada. Certa noite, depois de um baile, decidiram casar-se e ele escreveu para a mãe uma longa carta sobre Paula. No dia seguinte Paula contou a ele que era rica, que tinha uma fortuna pessoal de quase um milhão de dólares.

III. Foi exatamente como se tivessem dito, “Nenhum de nós dois tem nada: vamos ser pobres juntos” — o que tornou delicioso o fato de, em vez disso, os dois serem ricos. Deu-lhes a sensação de compartilhar uma aventura. Mesmo assim, quando Anson tirou uma licença em abril e Paula, acompanhada da mãe, foi com ele até o Norte, ela ficou impressionada com a situação da família em Nova York e com seu padrão de vida. Ao se ver sozinha pela primeira vez com Anson nos mesmos quartos onde ele brincara quando menino, Paula se inundou de uma sensação de aconchego, como se soubesse que se sentiria segura e bem cuidada. As fotografias de Anson de barrete na escola primária, de Anson a cavalo junto com uma namoradinha em algum verão esquecido, de Anson no meio de um alegre grupo de pajens e damas-de-honra num casamento, tudo isso a fez ficar com ciúmes ao ver como ele independera dela no passado — e brotou nela a idéia de se casarem logo e de voltar para Pensacola como sua esposa. Mas o casamento imediato não foi sequer discutido — o próprio noivado deveria permanecer em

segredo até o fim da guerra. Quando Paula se deu conta de que só restavam dois dias da licença de Anson, sua insatisfação se cristalizou na intenção de fazê-lo desejar, tanto quanto ela, casar o mais depressa possível. Iriam de carro para um jantar no campo e ela estava decidida a forçar o assunto naquela noite. Havia uma prima de Paula se hospedando com ela no Ritz, uma jovem severa e amarga, que gostava de Paula, mas era invejosa daquele noivado espetacular. Paula estava atrasada, arrumandose, e foi a prima — que não ia à festa — quem recebeu Anson na sala da suíte. Anson tinha ido encontrar uns amigos às cinco e durante uma hora bebera com eles sem qualquer moderação. Saiu do Yale Club na hora apropriada e foi levado pelo motorista de sua mãe até o Ritz, mas, como não estava em sua melhor forma, a calefação da sala teve um impacto sobre ele, que se sentiu tonto. Anson percebeu isso e, se por um lado, lamentou o fato, por outro achou graça. A prima de Paula tinha vinte e cinco anos, mas era muito ingênua e no começo não percebeu o que se passava. Nunca tinha visto Anson antes e se surpreendeu ao ouvi-lo tartamudear coisas incompreensíveis e quase cair da cadeira. Foi só quando Paula apareceu que ela se deu conta de que o cheiro que pensara vir do uniforme lavado a seco era, na verdade, o de uísque. Paula entendeu tudo assim que entrou e seu primeiro pensamento foi o de que precisava tirar Anson dali antes que sua mãe o visse. Diante de seu olhar, a prima também entendeu. Quando Paula e Anson desceram para pegar a limusine, encontraram dois homens dentro dela, ambos adormecidos. Eram os dois com quem Anson estivera bebendo no Yale Club, rapazes que também iriam à festa. Anson tinha se esquecido completamente de que eles estavam no carro. A caminho de Hampstead, os dois acordaram e começaram a cantar. Algumas canções eram grosseiras e, embora Paula tentasse se consolar dizendo a si própria que Anson tinha poucas inibições verbais, o fato é que trancou os lábios de vergonha e desgosto. No hotel, a prima, confusa e agitada, refletiu sobre o incidente e se encaminhou para o quarto da sra. Legendre, dizendo: “Ele não é engraçado?” “Quem é engraçado?” “Ora... o senhor Hunter. Ele me pareceu tão engraçado.” A sra. Legendre lançou-lhe um olhar agudo. “Em que ele é engraçado?” “Ora... ele disse que era francês. Eu não sabia que ele era francês.” “Isso é absurdo. Talvez você tenha entendido mal.” E sorrindo: “Foi uma piada”. Mas a prima balançou a cabeça, teimando. “Não. Ele disse que foi criado na França. Disse que não sabia falar inglês e que por isso não podia conversar comigo. E não pôde mesmo!” A sra. Legendre desviou os olhos com impaciência, enquanto a prima acrescentava, pensativa: “Talvez porque estivesse muito bêbado.” E saiu do quarto. Aquele relato estranho era verdadeiro. Ao perceber que sua voz estava enrolada e incontrolável, Anson buscara uma desculpa fora do comum, a de anunciar que não sabia falar inglês. Anos depois ele continuaria contando aquela parte da história, invariavelmente caindo na gargalhada ao se recordar do episódio. Por cinco vezes nas horas seguintes, a sra. Legendre tentou fazer uma ligação para Hampstead. Quando afinal conseguiu, houve uma demora de dez minutos antes que ouvisse a voz de Paula do outro lado do fone. “A prima Jo me contou que Anson estava embriagado.”

“Não....” “Sim! A prima Jo garantiu que ele estava embriagado. Disse a ela que era francês e caiu da cadeira e se comportou como se estivesse embriagado. Não quero que você volte para casa com ele.” “Mamãe, ele está bem! Por favor, não se preocupe com...” “Mas é claro que me preocupo. Fico apavorada. Quero que você me prometa que não vai voltar com ele.” “Deixe que eu cuido disso, mamãe...” “Não quero que você volte para casa com ele.” “Está bem, mamãe. Até logo.” “Por favor, Paula. Peça a alguém para te trazer.” Com um gesto estudado, Paula afastou o fone do ouvido e o repôs no gancho. Seu rosto corado denunciava que estava muito aborrecida. Anson, esticado numa cama, dormia em um dos quartos no andar de cima, enquanto, embaixo, o jantar se encaminhava lentamente para o fim. A viagem de uma hora já o deixara quase sóbrio — sua chegada fora hilariante — e Paula esperara que a noite ainda pudesse ser salva, mas dois drinques imprudentes antes do jantar completaram o desastre. Durante quinze minutos, muito agitado e quase ofensivo, ele falara sem parar diante dos comensais e de repente deslizara silenciosamente para baixo da mesa. Como o homem naquele quadro antigo — só que, ao contrário do quadro, era mais feio do que engraçado. Nenhuma das jovens presentes ousou comentar o assunto, que parecia só merecer o silêncio. Seu tio e dois outros rapazes o carregaram escada acima e foi logo depois disso que Paula foi chamada ao telefone. Uma hora mais tarde, Anson acordou em meio a uma bruma de nervosismo e agonia, através da qual enxergou, depois de um tempo, a figura de seu tio Robert de pé junto à porta. “... perguntei se você está se sentindo melhor.” “O quê?” “Você está se sentindo melhor, meu caro?” “Terrível”, respondeu Anson. “Vou tentar lhe dar outro antiácido. Se conseguir segurar no estômago, basta dormir para melhorar.” Com grande esforço, Anson deslizou as pernas para fora da cama e se levantou. “Estou bem”, disse, tolamente. “Calma.” “Acho que, se você me desse um copo de uísque, eu conseguiria descer.” “Ah, não.” “Sim! É a única coisa. Agora estou bem... Acho que estou sujíssimo com o pessoal lá embaixo.” “Eles sabem que você está mais para lá do que para cá”, disse o tio, com ar reprovador. “Mas não se preocupe. Schuyler nem chegou aqui. Ficou retido em Links.” Embora indiferente a outras opiniões que não a de Paula, Anson estava decidido a salvar os destroços daquela noite. Mas, quando um banho frio melhorou um pouco sua aparência, a maior parte das pessoas já tinha ido embora. Imediatamente, Paula se levantou para ir para casa. Na limusine, o velho diálogo, em toda sua seriedade, recomeçou. Ela admitiu já saber que ele bebia, mas nunca esperava uma coisa dessas — parecia-lhe talvez que, no fim das contas, eles não eram feitos um para o outro. A idéia que faziam da vida era muito diferente e por aí afora. Quando terminou de falar, foi a vez de Anson, muito sóbrio. Então Paula disse que teria de pensar um pouco melhor. Que não decidiria nada naquela noite. Não estava zangada, mas lamentava muito. Tampouco

deixaria que ele entrasse no hotel com ela, mas, pouco antes de saltar do carro, inclinou-se para ele e o beijou no rosto, com um ar infeliz. Na tarde seguinte, Anson teve uma longa conversa com a sra. Legendre, enquanto Paula ouvia tudo em silêncio. Foi combinado que Paula iria refletir sobre o incidente durante algum tempo e então, se mãe e filha estivessem de acordo, iriam ter com Anson em Pensacola. De sua parte, Anson pediu desculpas com sinceridade e dignidade — só isso. Mesmo com todas as cartas na mão, a sra. Legendre não conseguiu obter uma vantagem sobre ele. Anson não prometeu nada, não se mostrou humilde, apenas proferiu alguns comentários sérios sobre a vida, o que o fez sair de cena com uma certa superioridade moral. Quando elas chegaram ao Sul, três semanas mais tarde, nem Anson, em sua satisfação, nem Paula, em seu alívio, se deram conta, ao se encontrarem, de que o momento psicológico estava perdido para sempre.

IV. Ele a dominava e atraía, mas ao mesmo tempo provocava-lhe ansiedade. Confusa com essa mistura de solidez e auto-indulgência, de sentimento e cinismo — incongruências que sua mente delicada era incapaz de resolver —, Paula começou a encará-lo como duas personalidades alternadas. Quando o via sozinha, ou numa festa formal, ou com pessoas que lhe eram inferiores, ela sentia um tremendo orgulho em observar-lhe a presença atraente e forte, o caráter compreensivo e paternal de sua mente. Mas, em outras companhias, ficava inquieta, quando aquilo que parecia uma certa impermeabilidade à nobreza mostrava nele a sua outra face. Essa face era grosseira, jocosa, indiferente a tudo que não fosse o prazer. Aquilo a assustou e a afastou dele temporariamente, chegando mesmo a fazer com que retomasse uma relação secreta com um antigo namorado, mas de nada adiantou — depois de quatro meses convivendo com a vitalidade envolvente de Anson, todos os outros homens pareciam-lhe de uma palidez anêmica. Em julho ele foi mandado para o exterior e, com isso, o desejo e a ternura entre eles chegaram a um clímax. Paula considerou até a possibilidade de um casamento de última hora, tendo se decidido em contrário apenas porque ultimamente ele vivia com cheiro de bebida. Mas a partida em si a deixou fisicamente doente, de tão arrasada. Depois que ele se foi, ela lhe escreveu longas cartas, arrependida pelos dias de amor que tinham perdido. Em agosto, o avião de Anson caiu no mar do Norte. Ele foi resgatado por um destróier depois de passar uma noite dentro d’água e levado para um hospital com pneumonia. O armistício foi assinado antes que ele pudesse finalmente voltar para casa. E então, com todas as oportunidades novamente em seu poder, sem qualquer objeção material para atrapalhá-los, a trama secreta de seus temperamentos tornou-se de novo um obstáculo entre eles, secando-lhes os beijos e as lágrimas, baixando-lhes as vozes quando falavam um com o outro e abafando o sussurro mais íntimo de seus corações, até que a antiga comunicação só se tornou possível através de cartas, à distância. Certa tarde, um colunista social ficou duas horas esperando na casa dos Hunter para obter uma confirmação sobre o noivado. Anson negou tudo. Apesar disso, uma primeira edição do jornal publicou a notícia com destaque — eles estavam “sendo vistos juntos constantemente em Southampton, Hot Springs e Tuxedo Park”. Mas o diálogo sério tinha se transformado numa discussão interminável e o caso estava quase esgotado. Anson vivia se embriagando e faltando aos encontros com ela, com o que Paula reagia à altura. O desespero dele nada pôde com seu próprio orgulho e autoconhecimento: o noivado foi definitivamente rompido. “Meu bem”, diziam agora as cartas deles, “Meu bem, meu bem, quando acordo no meio da noite e me dou conta de que, afinal, não tinha mesmo de ser, sinto vontade de morrer. Não posso continuar vivendo assim. Talvez quando nos encontrarmos no verão possamos voltar a discutir o assunto e

tomar uma decisão diferente — estávamos tão excitados e tão tristes naquele dia e não tenho certeza se seria capaz de viver a vida inteira sem você. Você fala de outras pessoas. Será que não vê que não existe ninguém para mim a não ser você, só você....?” Enquanto se divertia no Leste, Paula às vezes mencionava alguns namoricos, tentando deixar Anson preocupado. Mas ele era esperto demais para isso. Quando via o nome de um homem nas cartas de Paula, sentia-se ainda mais seguro dela e até mesmo um pouco desdenhoso — sempre estivera acima desse tipo de coisa. Mas continuava na esperança de que um dia se casassem. Nesse meio-tempo, mergulhava fundo no burburinho e no glamour da Nova York pós-guerra, entrando para uma empresa de corretagem, tornando-se sócio de meia dúzia de clubes, dançando até tarde da noite e se movimentando em três mundos — seu próprio mundo, o mundo dos jovens formados em Yale e o submundo que freqüenta a Broadway. Mas sempre dedicava, com afinco, oito horas de trabalho a Wall Street, onde a combinação de suas influentes relações familiares, inteligência aguda e grande energia física o fez subir quase que instantaneamente. Anson tinha uma dessas cabeças privilegiadas, que são divididas em compartimentos. Às vezes aparecia no escritório depois de ter tido menos de uma hora de sono, mas isso era raro. Nos idos de 1920, sua renda, em salários e comissões, passava de doze mil dólares. À medida que as tradições de Yale foram ficando para trás, Anson se tornou uma figura popular entre seus colegas em Nova York, mais até do que em seus tempos da universidade. Morava numa casa imponente e possuía os meios de introduzir os rapazes em outras casas imponentes. Mais do que isso, sua vida parecia garantida, enquanto a dos outros, na maioria, voltava sempre a um precário começo. Eles então se viravam para Anson em busca de diversão e escape, enquanto Anson respondia com presteza, sentindo prazer em ajudar as pessoas a dar um jeito em seus negócios. Agora já não surgia qualquer menção a homens nas cartas de Paula, havendo nelas uma ternura que antes não existia. De diversas fontes, Anson ouviu que Paula tinha “um caso sério”, Lowell Thayer, um homem de Boston, abastado e de posição, e embora ele tivesse certeza de que ela ainda o amava, ficou com medo de acabar perdendo-a. Exceto por um único dia, que fora insatisfatório, ela não vinha a Nova York fazia cinco meses e, à medida que os rumores aumentavam, ele foi ficando mais e mais ansioso para vê-la. Em fevereiro tirou férias e foi para a Flórida. Palm Beach se espichava por inteira em sua opulência, entre a safira faiscante do lago Worth, achatada aqui e ali pelos barcos-residências ancorados, e a grande barra cor de turquesa do oceano Atlântico. As formas gigantescas do Breakers e do Royal Poinciana se erguiam da areia brilhante como barrigas gêmeas, e em torno deles se aglomeravam o Dancing Glade, a Bradley’s House of Chance e uma dúzia de modistas e chapeleiras cujos produtos custavam o triplo do preço de Nova York. Sobre a varanda de treliça do Breakers, duzentas mulheres davam um passo à direita, outro à esquerda e giravam, deslizando na famosa dança de então, conhecida como shuffle, enquanto, no intervalo de cada compasso da música, dois mil braceletes tilintavam para cima e para baixo em duzentos braços. No Everglades Club, à noite, Paula, Lowell Thayer, Anson e uma quarta pessoa jogavam bridge a dinheiro. Anson tinha a impressão de que o rosto atraente de Paula estava doentio e cansado — ela já estava na praça havia quatro ou cinco anos. Ele a conhecia há três. “Duas espadas.” “Cigarro? ... Ah, perdão. Passo.” “Passo.” “Dobro três espadas.” Havia uma dúzia de mesas de bridge na sala, que estava enfumaçada. Os olhos de Anson

encontraram os de Paula e ele sustentou o olhar, mesmo quando Thayer olhou para eles... “Qual foi mesmo o contrato?” Rose of Washington Square… ... cantavam os jovens pelos cantos: I’m withering there In basement air — A fumaça assentava como se fosse um nevoeiro e o abrir de uma porta encheu o ar de arabescos, como se fossem ectoplasmas. Olhinhos Brilhantes passeava por entre as mesas procurando pelo sr. Conan Doyle entre os ingleses que estavam por ali posando de ingleses. “Você seria capaz de cortá-lo com uma faca.” “... cortá-lo com uma faca.” “... uma faca.” Fechado o rubber, Paula se levantou de repente, dirigindo-se a Anson em voz baixa e tensa. Sem nem olhar para Lowell Thayer, os dois saíram pela porta e desceram a escadaria de pedra. Num instante estavam andando de mãos dadas pela praia banhada de luar. “Querido, querido...” Abraçaram-se sem medo, apaixonadamente, num trecho mais escuro... E então Paula inclinou o rosto para que os lábios dele dissessem o que ela queria ouvir — podia sentir as palavras se formando enquanto eles tornavam a se beijar... Mais uma vez ela se desvencilhou e ficou à escuta, mas, quando Anson a puxou novamente para si, ela se deu conta de que ele nada dissera — apenas “Querida, querida”, naquele sussurro triste e profundo que sempre a fazia chorar. Com humildade e obediência, ela se deixou arrastar pela emoção e as lágrimas lhe escorreram pelo rosto, enquanto seu coração continuava gritando: “Por favor, me peça em casamento. Anson, querido, me peça!”. “Paula... Paula.” As palavras apertaram-lhe o coração como se fossem garras e Anson, sentindo-a estremecer, soube que era de emoção. Não precisava dizer mais nada, não precisava vincular seus destinos a um enigma da vida prática. Para que, afinal, se podia abraçá-la daquele jeito, empurrando com a barriga por mais um ano — ou para sempre? Ele observava a ambos, a ela mais do que a si próprio. Quando Paula disse de repente que precisava voltar para o hotel, ele hesitou por um instante, pensando. “Esta é a hora, afinal.” E, em seguida: “Não, é melhor esperar. Ela é minha...”. Ele se esquecera de que Paula também estava desgastada por três anos de tensão. O momento se desfez para sempre naquela noite. Anson voltou para Nova York na manhã seguinte, sentindo-se inquieto e insatisfeito. [Uma bela debutante que ele conhecia estava em seu vagão e, durante dois dias, eles fizeram as refeições juntos. No princípio, falou a ela sobre Paula e inventou uma estranha incompatibilidade que os mantinha separados. A moça tinha uma natureza impulsiva, selvagem, e ficou lisonjeada com as confidências de Anson. Como o soldado de Kipling, ele poderia ter se apoderado de boa parte dela antes de chegarem a Nova York, mas felizmente estava sóbrio e se controlou.]* No fim de abril, sem qualquer aviso, ele recebeu um telegrama de Bar Harbor, no qual Paula lhe anunciava que ficara noiva de Lowell Thayer e que se casariam imediatamente, em Boston. Aquilo de que ele sempre duvidara acabava de acontecer. Anson se encheu de uísque naquela manhã e depois, no escritório, trabalhou furiosamente — muito

por medo do que poderia acontecer se parasse. À noite, saiu, como de hábito, sem nada comentar sobre o acontecido. Estava cordial, divertido, alerta. Mas uma coisa não pôde evitar: durante três dias, onde quer que estivesse e ao lado de quem fosse, de repente apoiava a cabeça nas mãos e chorava como uma criança.

V. Em 1922, quando Anson partiu com um dos sócios menores para investigar alguns empréstimos em Londres, a viagem obrigou a que fosse contratado pela firma. Tinha então vinte e sete anos, era um homem forte, embora não fosse gordo, e aparentava mais idade do que tinha. Velhos e moços confiavam nele e as mães se sentiam seguras quando as filhas estavam em sua companhia — porque, ao chegar a algum lugar, Anson tinha um jeito especial de se relacionar com as pessoas mais velhas e conservadoras. “Você e eu somos sérios”, ele parecia dizer. “Sabemos o que fazer.” Tinha um conhecimento instintivo e, de certa maneira, benevolente das fraquezas de homens e mulheres, e isso o fazia mais preocupado com as aparências, como ocorre com os sacerdotes. Era comum, nos domingos de manhã, ele ir pregar numa conceituada escola episcopal — embora somente um banho frio e a troca de fraque o separassem das loucuras da noite anterior. [Certa vez, por alguma reação instintiva, várias crianças se levantaram da fila da frente e se mudaram para a última. Ele gostava de contar essa história, sempre ouvida com uma explosão de gargalhadas.] Depois da morte do pai, Anson tornou-se, na prática, o chefe da família, decidindo de fato os destinos dos irmãos mais moços. Por uma complicação qualquer, sua autoridade não se estendia às propriedades do pai, sendo estas administradas por seu tio Robert, o membro da família mais chegado a cavalos, homem de boa natureza, grande bebedor e membro daquele grupo que gravitava em torno de Wheatley Hills. Tio Robert e sua mulher, Edna, tinham sido grandes amigos de Anson desde a juventude, e o primeiro ficou desapontado quando seu sobrinho, por soberba, deixou de se interessar por cavalos. Ele o indicou para um clube da cidade que era o mais difícil de se entrar em toda a América — só era admitido como sócio quem pertencesse a uma família que tivesse “ajudado a construir Nova York” (ou seja, que já fosse rica antes de 1880) — e quando Anson, depois de eleito, trocou esse clube pelo de Yale, tio Robert teve com ele uma conversa sobre o assunto. Mas quando, além de tudo, Anson ainda se recusou a entrar para a empresa de corretagem do próprio Robert Hunter, uma empresa conservadora e um pouco desprestigiada, o tio passou a tratá-lo com frieza. Como um professor primário que já tivesse ensinado tudo o que sabia, ele se retirou da vida de Anson. Eram muitos os amigos na vida de Anson — raros os que nunca tinham recebido uma de suas habituais gentilezas e raros também os que nunca tinham ficado constrangidos com sua maneira brusca de falar ou sua mania de se embriagar a qualquer hora que lhe desse vontade. Anson se incomodava se outra pessoa fizesse isso, mas encarava com bom humor os próprios lapsos. Coisas estranhas viviam lhe acontecendo e ele falava delas às gargalhadas, fazendo todo mundo rir também. Eu estava trabalhando em Nova York naquela primavera e costumava almoçar com ele no Yale Club, que estava sendo usado por minha universidade enquanto seu próprio clube não ficava pronto. Tinha lido sobre o casamento de Paula e, certa tarde, quando perguntei a Anson sobre ela, por algum motivo ele resolveu me contar a história. Depois disso, passou a me convidar sempre para os jantares de sua família, comportando-se como se houvesse entre nós um relacionamento especial — como se, ao fazer sua confidência, parte daquela memória que o consumia tivesse sido transmitida para mim. Descobri que, apesar da confiança das mães, sua atitude com relação às garotas nem sempre era de

proteção. Dependia da garota — se esta exibisse uma tendência para ser mais permissiva, ela que se cuidasse, mesmo com ele. “A vida”, explicava Anson às vezes, “fez de mim um cínico.” O que ele queria dizer com vida era na verdade Paula. Às vezes, principalmente quando bebia, as coisas se confundiam em sua mente e ele achava que ela é que o tinha abandonado sem piedade. Foi esse “cinismo”, ou a constatação de que não se podia perder uma chance com garotas fáceis, que o fez ter um caso com Dolly Karger. Não foi seu único caso naquela época, mas foi aquele que quase o perturbou de verdade, tendo tido um efeito profundo na maneira como encararia a vida. Dolly era filha de um conhecido editor que se casara com uma mulher de sociedade. Ela própria passara por todos os estágios para ingressar na “sociedade”. E somente as famílias mais tradicionais como os Hunter podiam questionar se Dolly “pertencia” de fato ou não, porque seu retrato estava sempre nos jornais e ela recebia uma atenção de causar inveja mesmo nas garotas que sem dúvida eram “de sociedade”. Dolly tinha o cabelo castanho, lábios vermelhos e uma tez corada e bonita que, no começo, escondeu sob um pó-de-arroz rosa-acinzentado, porque nessa época ser corada não estava na moda — a pedida era uma palidez vitoriana. Usava roupas pretas, muito formais, e ficava de pé com as mãos nos bolsos, levemente inclinada para a frente, com uma expressão de riso reprimida no rosto. Dançava muito bem — gostava mais de dançar do que de qualquer coisa, qualquer coisa exceto namorar. Desde que tinha dez anos de idade, estava sempre apaixonada, geralmente por um rapaz que não queria nada com ela. Os que queriam — e eram muitos —, Dolly achava aborrecidos logo que acabava de conhecê-los. E guardava a melhor parte do coração para aqueles com quem falhava. Quando os conhecia, sempre tentava mais uma vez — às vezes tinha sucesso, mas quase sempre fracassava. Jamais ocorreu a essa caçadora do inatingível que havia algo em comum entre os que a rejeitavam — todos tinham uma poderosa intuição que os tornava capazes de enxergar sua fraqueza, não a emocional, mas uma fraqueza de orientação. Anson percebeu isso assim que a conheceu, menos de um mês depois do casamento de Paula. Estava bebendo bastante e, por uma semana, fingiu que iria se apaixonar por ela. Em seguida largou-a e esqueceu-a — o suficiente para ganhar, de estalo, o papel principal no coração de Dolly. Como muitas garotas daquela época, Dolly levava uma vida desregrada e escandalosa. O anticonvencionalismo da geração imediatamente anterior tinha apenas uma faceta do movimento do pós-guerra, destinado a desacreditar o comportamento antigo — já a geração de Dolly era mais experiente e mesquinha. Ela via em Anson os dois extremos que a mulher emocionalmente instável costuma buscar, uma entrega à farra e uma busca da proteção. Em Anson, Dolly enxergava tanto o sibarita quanto a solidez de uma rocha, e essas duas coisas satisfaziam as necessidades de sua natureza. Ela sentia que seria difícil, mas estava enganada quanto ao motivo — pensava que Anson e sua família esperavam um casamento mais espetacular. Mas logo percebeu que a maior vantagem que levava era o fato de Anson gostar de beber. Eles se encontravam nos grandes bailes de debutantes e, à medida que crescia seu fascínio por ele, passaram a se ver mais e mais. Assim como as outras mães, a sra. Karger julgava Anson excepcionalmente confiável e por isso permitia a Dolly ir com ele a clubes distantes no campo e a casas nos subúrbios chiques, sem esmiuçar o que faziam e sem pedir explicações sobre por que chegavam tarde. No início, essas explicações poderiam até ter sido fiéis à verdade, mas as idéias de Dolly sobre como capturar Anson logo foram engolfadas por sua emoção, que crescia como uma onda e arrastava tudo. Os beijos no banco de trás dos táxis e automóveis já não bastavam. E eles

fizeram algo curioso: Abandonaram seu mundo por um tempo e criaram outro, sobreposto a este, onde as bebedeiras de Anson e a irregularidade dos horários de Dolly seriam menos notadas e comentadas. Esse outro mundo era composto de uma variedade de elementos — os amigos de Anson em Yale, com suas mulheres, dois ou três corretores e vendedores de ações e um bando de homens solteiros, recémsaídos da universidade, com muito dinheiro e uma tendência à dissipação. O que faltava a esse mundo em espaço e escala, sobrava em liberdade, a um ponto que raramente era permitida. Além disso, o mundo girava em torno deles, permitindo a Dolly uma leve condescendência — um prazer que Anson, cuja vida inteira era uma condescendência em relação à sua infância certinha, não podia compartilhar. Anson não estava apaixonado por ela e, durante o longo e febril inverno em que estiveram juntos, disse-lhe isso muitas vezes. Quando chegou a primavera, estava muito cansado — queria renovar a própria vida em alguma outra fonte — e, além disso, percebia que ou terminava tudo de uma vez ou aceitava a responsabilidade de uma sedução definitiva. A atitude encorajadora da família de Dolly apressou sua decisão — certa noite em que o sr. Karger bateu discretamente à porta da biblioteca para avisar que deixara uma garrafa de conhaque na sala de jantar, Anson sentiu que estava encurralado. Naquela mesma noite escreveu uma breve carta para Dolly, dizendo-lhe que estava saindo de férias e que, diante das circunstâncias, era melhor que não se vissem mais. Era junho. A família de Anson tinha fechado a casa e ido para o campo, donde ele estava vivendo temporariamente no Yale Club. Eu tinha ouvido falar de seu caso com Dolly enquanto este evoluía, e eram relatos apimentados e cheios de humor, porque Anson desprezava mulheres instáveis. Quando me falou naquela noite que iria romper definitivamente com ela, fiquei contente. Eu via Dolly de vez em quando e sempre tinha pena de sua luta inglória, mas também vergonha por saber tanta coisa a seu respeito sem ter esse direito. Era o que se costuma chamar de “uma coisinha linda”, mas tinha também uma certa inquietação que me fascinava. Sua dedicação aos deuses da esbórnia teria parecido menos óbvia se fosse menos ardorosa — Dolly, sem dúvida, iria se dar em sacrifício, mas pelo menos fiquei feliz em saber que isso não aconteceria diante dos meus olhos. Anson ia deixar a carta de despedida na casa dela na manhã seguinte. Era uma das poucas casas que ainda estavam abertas na região da Quinta Avenida, e Anson sabia que os Karger, graças a uma informação errada dada por Dolly, tinham decidido adiar uma viagem ao exterior para que a filha não perdesse sua chance. Assim que saiu pela porta do Yale Club na Vanderbilt Avenue, o carteiro passou por ele e Anson tornou a entrar. A primeira carta que vislumbrou na mão do carteiro tinha a caligrafia de Dolly. Sabia bem o que ela dizia — um trágico e solitário monólogo, cheio de reprovações que Anson conhecia de sobra, invocando antigas lembranças e repleto de “fico me perguntando como seria” —, todas as intimidades imemoriais que ele trocara com Paula Legendre no que já lhe parecia ser uma outra era. Depois de manusear algumas contas, pôs a carta no alto da pilha e abriu-a. Ficou surpreso ao ver que era uma carta curta, num tom algo formal, dizendo que ela não poderia ir para o campo com ele no fim de semana porque Perry Hull, de Chicago, chegara de surpresa à cidade. Acrescentava que fora o próprio Anson quem pedira aquilo: “... se eu sentisse que você me ama como eu o amo, iria com você a qualquer lugar e a qualquer hora, mas Perry é tão simpático e ele quer tanto se casar comigo...” Anson sorriu com desprezo — já tivera experiências com esse tipo de carta-armadilha. Além disso, sabia que Dolly devia ter planejado tudo, talvez tivesse mandado chamar o fiel Perry e calculado bem o dia de sua chegada. Podia até mesmo ter pensado cada palavra da carta de forma a

deixá-lo com ciúmes sem o risco de perdê-lo. Como a maioria dos compromissos, aquele já não demonstrava força ou vitalidade, apenas um tímido desespero. Ficou furioso de repente. Sentou-se no lobby e tornou a ler a carta. Foi então até o telefone, ligou para Dolly e falou-lhe, com voz clara e imperiosa, que recebera o bilhete e que ligaria para ela às cinco, como estava combinado. Mal esperando que ela completasse sua fingida incerteza — “Talvez eu possa ficar com você durante uma hora”, disse Dolly —, Anson desligou e seguiu para o escritório. No caminho, rasgou sua própria carta em pedacinhos e a jogou fora. Não estava com ciúmes — ela nada significava para ele —, mas, diante daquele estratagema patético, sentiu aflorar tudo o que havia em si de obstinado e auto-indulgente. Era uma presunção por parte de uma pessoa inferior e isso não poderia passar em branco. Se Dolly queria saber a quem pertencia, ela iria ver. Às quinze para as cinco, já estava na porta dela. Dolly se vestira para sair e ele ouviu em silêncio a frase “Só posso ficar com você durante uma hora”, que ela começara ao telefone. “Ponha o chapéu, Dolly”, disse. “Vamos dar uma volta.” Passearam pela Madison, seguindo até a Quinta Avenida, com Anson, corpulento, suando muito por causa do calor. Falou pouco — apenas tomou-a pelo braço, sem dizer nada de romântico, mas seis quarteirões depois Dolly já tinha entregue completamente os pontos, pedindo desculpas pelo bilhete, oferecendo-se para dispensar Perry, parecendo disposta a tudo. Pensava que Anson estava começando a se apaixonar por ela. “Que calor”, disse Anson assim que chegaram à rua 71. “Estou com roupa de inverno. Se eu entrar um instante em casa para trocar de roupa, você se importa de ficar me esperando embaixo? Não vou demorar.” Ela ficou feliz. A intimidade do comentário sobre estar com calor, qualquer fato físico referente a ele, deixava-a louca. Quando chegaram ao portão de ferro e Anson tirou a chave do bolso, Dolly deliciou-se. No andar de baixo estava escuro e, quando Anson subiu pelo elevador, Dolly ergueu uma das cortinas e espiou, através da renda opaca, as casas do outro lado da rua. Ouviu quando o motor do elevador parou e, por pura provocação, apertou o botão para que este tornasse a descer. E então, num gesto que foi mais do que um impulso, entrou no elevador e subiu para o andar que acreditava ser o do quarto dele. “Anson”, chamou, dando um risinho. “Um momento”, respondeu ele, do quarto. E depois de um breve intervalo. “Agora pode entrar.” Ele trocara de roupa e estava abotoando o colete. “Este é o meu quarto”, ele disse, bem casual. “Você gosta?” Dolly viu a fotografia de Paula na parede e ficou olhando-a, fascinada, da mesma forma como Paula olhara as fotos das namoradinhas de Anson cinco anos antes. Ela sabia alguma coisa sobre Paula e às vezes se torturava pensando nos fragmentos da história. De repente, aproximou-se de Anson e ergueu os braços. Abraçaram-se. Através da janela, já se infiltrava uma espécie de luz artificial, embora o sol ainda brilhasse com força no telhado dos fundos de uma casa do outro lado da rua. A oportunidade inesperada os envolveu a ambos, deixando-os sem fôlego e eles se abraçaram ainda com mais força. Era iminente, inevitável. Ainda nos braços um do outro, ergueram o rosto — e seus olhos se desviaram para a fotografia de Paula, olhando-os da parede. Anson de repente baixou os braços e, sentando-se na escrivaninha, pôs-se a tentar abrir a gaveta, com um molho de chaves.

“Quer beber alguma coisa?”, perguntou, com a voz áspera. “Não, Anson.” Ele se serviu de uísque num copo, engoliu a dose e em seguida abriu a porta que dava para o hall. “Vamos?”, disse. Dolly hesitou. “Anson... eu vou para o campo com você esta noite, no fim das contas. Você entendeu isso, não entendeu?” “Claro”, respondeu ele, de forma brusca. Foram para Long Island no carro de Dolly, mais unidos do que nunca em suas emoções. Ambos sabiam o que iria acontecer — sem o rosto de Paula para lembrá-los de que faltava alguma coisa. Quando se viram sozinhos na noite quente e parada de Long Island, já não se importavam. A propriedade em Port Washington, onde passariam o fim de semana, pertencia a uma prima de Anson que se casara com um negociante de cobre em Montana. Passada a casa do porteiro, seguiram por uma estradinha interminável e sinuosa, cercada de mudas de choupos importadas, até ir dar na imensa casa cor-de-rosa, em estilo espanhol. Anson já estivera lá muitas vezes. Depois do jantar, dançaram no Linx Club. Por volta da meia-noite, Anson se assegurou de que os primos não iriam embora antes das duas, e então explicou que Dolly estava cansada. Que a levaria para casa e voltaria para o clube mais tarde. Ligeiramente trêmulos de excitação, entraram juntos num carro emprestado e seguiram para Port Washington. Assim que chegaram à casa do porteiro, ele parou para falar com o vigia. “A que horas você vai fazer a ronda, Carl?” “Agora mesmo.” “Então você vai estar aqui até que todos estejam de volta?” “Sim, senhor.” “Certo. Escute: se qualquer carro, não importa de quem seja, aparecer no portão, quero que você interfone imediatamente para a casa.” Pôs uma nota de cinco dólares na mão de Carl. “Entendeu bem?” “Sim, senhor Anson.” Sendo originário do Velho Mundo, o vigia nem sorriu nem piscou. Mesmo assim, Dolly continuou sentada no carro, com o rosto levemente voltado para o outro lado. Anson tinha a chave. Assim que entraram, ele serviu um drinque para ambos — Dolly não tocou no seu — e se certificou do local exato onde ficava o interfone, assegurando-se de que, se tocasse, seria ouvido nos quartos deles, que eram ambos no primeiro andar. Cinco minutos depois, bateu na porta do quarto de Dolly. “Anson?” Ele entrou, fechando a porta atrás de si. Dolly estava na cama, semi-erguida, com os cotovelos fincados nos travesseiros, como se ansiosa. Sentando-se ao lado dela, Anson abraçou-a. “Anson, querido.” Ele não disse nada. “Anson... Anson! Eu te amo... diga que me ama. Diga agora... não pode dizer agora? Mesmo que não seja verdade?” Ele nem escutava. Por cima da cabeça dela, viu que também aqui havia uma fotografia de Paula na parede. Levantou-se e foi até junto da foto. A moldura exibia um leve brilho, um triplo reflexo do luar — e dentro dela havia a sombra vaga de um rosto que ele sabia não ser seu conhecido. Quase aos soluços, virou-se e olhou com aversão para a pequena figura deitada na cama. “Tudo isso é uma loucura”, disse, a voz áspera. “Não sei onde estava com a cabeça. Eu não amo

você e é melhor que espere por alguém que a ame. Eu não a amo nem um pouco, será que não consegue entender isso?” Sua voz falhou e ele saiu às pressas do quarto. De volta ao salão, começou a se servir de outro drinque, com os dedos trêmulos, quando a porta da frente se abriu de repente e sua prima entrou. “Hei, Anson, ouvi dizer que Dolly está se sentindo mal”, disse ela, preocupada. “Ouvi falar que está doente...” “Não foi nada”, Anson interrompeu, erguendo a voz para que o som chegasse ao quarto de Dolly. “Ela só estava um pouco cansada. Já foi para a cama.” Por muito tempo depois disso, Anson acreditou que um Deus protetor interfere nos assuntos humanos. Mas Dolly Karger, acordada na cama, com os olhos pregados no teto, nunca mais acreditou em nada.

VI. Quando Dolly se casou, no outono seguinte, Anson estava em Londres a negócios. Assim como o casamento de Paula, tudo aconteceu muito rápido, mas o afetou de uma maneira diferente. No início, achou engraçado e tinha vontade de rir quando pensava no assunto. Mas depois começou a ficar deprimido — a sentir-se velho. Havia qualquer coisa de repetitivo ali — ora, Paula e Dolly tinham pertencido a duas gerações diferentes. Estava experimentando a sensação de um homem de quarenta anos que ouve falar que a filha de uma antiga namorada se casou. Mandou-lhe um telegrama de felicidades e, ao contrário do que ocorrera no caso de Paula, os votos eram sinceros. Na verdade, nunca esperara que Paula fosse feliz. Quando voltou para Nova York, Anson tornou-se sócio da firma e, à medida que suas responsabilidades aumentaram, passou a ter menos tempo livre. A recusa de uma companhia de seguros em dar-lhe uma apólice deixou-o de tal forma impressionado que parou de beber durante um ano. Dizia que estava melhor fisicamente, mas acho que sentia saudades das festas em que recontavam aquelas aventuras celiniescas, tão importantes em sua vida por volta dos vinte anos. Mas nunca deixou de ir ao Yale Club. Lá, ele era uma figura, uma personalidade, e a tendência de sua classe — formada por aqueles que agora estavam formados havia já sete anos —, de se encaminhar para buscas mais sóbrias, era contrabalançada por sua presença. Seu dia nunca estava cheio demais, nem sua mente excessivamente cansada a ponto de impedi-lo de ajudar quem lhe pedisse. O que no início fora feito por orgulho e superioridade agora se tornara um hábito e uma paixão. E havia sempre alguma coisa — um irmão mais novo metido em algum problema em New Haven, uma briga para ser resolvida entre um amigo e a mulher deste, um emprego para fulano, um investimento para beltrano. Mas sua especialidade era resolver problemas de jovens recém-casados. Esses casais o fascinavam e seus apartamentos eram para ele quase um local sagrado — Anson sabia como suas histórias tinham começado, dava-lhes conselhos sobre como e onde viver e sabia de cor os nomes dos seus filhos. Diante daquelas jovens esposas, sua atitude era circunspecta: jamais abusava da confiança que os maridos depositavam nele — o que era estranho, se considerarmos seus altos e baixos, que não escondia. Passou a sentir, indiretamente, um prazer com os casamentos felizes, assim como uma correspondente melancolia diante daqueles que davam errado. Não se passava uma temporada sem que Anson testemunhasse o colapso de um caso amoroso que ele próprio apadrinhara. Quando Paula se divorciou e logo em seguida se casou com outro homem de Boston, Anson falou sobre ela comigo durante uma tarde inteira. Jamais amaria alguém como havia amado Paula, mas insistia em dizer que

já não estava se importando. “Nunca vou me casar”, passara a dizer. “Já presenciei não sei quantos casamentos e sei que um casamento feliz é uma coisa muito rara. Além disso, estou velho demais.” Mas o fato é que acreditava no casamento. Como todo homem nascido de uma união feliz e bemsucedida, tinha uma fé apaixonada na instituição — nada do que vira seria capaz de modificar sua crença e, diante desta, seu cinismo desaparecia como uma bolha. Mas era verdade que se achava velho demais. Aos vinte e oito anos, começou a aceitar com serenidade a idéia de se casar sem amor; com a maior convicção, escolheu uma garota de Nova York, de sua própria classe, bonita, inteligente, adequada, acima de qualquer reprovação — e se dedicou a se apaixonar por ela. As coisas que dissera para Paula com sinceridade, e para outra garotas por educação, já não podia dizer agora sem sorrir, ou com a força necessária para parecer convincente. “Quando fizer quarenta anos”, dizia aos amigos, “vou estar um velho. Vou me apaixonar por alguma corista, como todos fazem.” Mas, apesar de tudo, persistiu em seu intento. A mãe queria vê-lo casado e ele podia muito bem se dar a esse luxo — tinha uma cadeira no mercado de ações e sua renda era de 25 mil dólares por ano. A idéia era agradável: quando os amigos (passava boa parte do tempo com a turma que conhecera com Dolly) se fechavam em suas próprias casas à noite, Anson já não sentia prazer em ter liberdade. Chegou até a se perguntar se não deveria ter se casado com Dolly. Nem mesmo Paula o amara tanto, e Anson começava a aprender sobre a raridade de, ao longo da vida, encontrar a emoção verdadeira. Na época em que esse sentimento começava a assomá-lo, Anson ficou sabendo de uma história inquietante. Sua tia Edna, que acabara de passar dos quarenta, estava tendo abertamente um caso com um jovem farrista e beberrão, chamado Cary Sloane. Todo mundo sabia da história, menos tio Robert, que durante quinze anos perdera muito tempo em clubes, dando sua mulher de barato. Anson ouviu falar da história repetidas vezes, e cada vez mais incomodado. Voltou-lhe um pouco do sentimento que nutrira pelo tio, um sentimento mais que pessoal, porque era uma volta à solidariedade familiar, na qual baseara o próprio orgulho. Em sua intuição, percebeu o ponto essencial do caso, que era o de que seu tio não podia sair magoado. Era a primeira vez que se metia numa história sem ser chamado, mas, conhecendo a personalidade de Edna, sentiu que poderia lidar com a questão melhor do que um juiz ou mesmo seu tio. O tio estava em Hot Springs. Anson investigou as fontes do escândalo, de forma a não haver possibilidade de engano, e ligou para Edna, convidando-a para almoçar no dia seguinte, no Plaza. Alguma coisa em seu tom de voz deve tê-la assustado porque ela pareceu relutante, mas Anson insistiu, aceitando os adiamentos do encontro até que ela não teve mais desculpa para recusar. Edna foi encontrá-lo na hora marcada no saguão do Plaza, uma loura bonita e gasta, de olhos cinzentos, vestida com um casaco de zibelina russa. Cinco grandes anéis, com a frieza dos diamantes e esmeraldas, cintilavam em suas mãos finas. De repente, ocorreu a Anson que fora a inteligência de seu próprio pai, e não a do tio, que comprara aquele casaco e aquelas jóias, riqueza radiante que adornava sua beleza decadente. Embora Edna percebesse sua hostilidade, não estava preparada para a maneira direta com que ele abordou o assunto. “Edna, estou perplexo com a maneira como você vem agindo”, disse Anson, a voz forte e franca. “No início, não pude acreditar.” “Acreditar em quê?”, perguntou ela, cortante. “Você não precisa fingir para mim, Edna. Estou falando de Cary Sloane. Outras considerações à parte, não pensei que você pudesse tratar tio Robert...”

“Escute aqui, Anson...”, interrompeu Edna, furiosa, mas a voz peremptória de Anson sobrepôs-se à dela: “... e seus filhos dessa forma. Vocês estão casados há dezoito anos e você já tem idade suficiente para saber bem das coisas.” “Você não pode falar assim comigo! Você...” “Posso, sim! Tio Robert sempre foi meu melhor amigo.” Estava muito mobilizado. Tinha mesmo pena do tio, assim como de seus três primos mais jovens. Edna se levantou, deixando intocado o coquetel de siri. “Este é o maior absurdo que...” “Muito bem. Se você não quer ouvir meu conselho, eu irei até o tio Robert e lhe contarei tudo — ele vai acabar mesmo sabendo, mais cedo ou mais tarde. E depois vou falar com o velho Moses Sloane.” Edna tornou a sentar-se na cadeira. “Não fale alto assim”, implorou. Seus olhos se encheram de lágrimas. “Você não percebe como se ouve sua voz de longe. Você devia ter escolhido um lugar menos público para fazer essas acusações malucas.” Anson não respondeu. “Eu sei que você jamais gostou de mim”, continuou ela. “Só está tirando vantagem de umas fofocas tolas para tentar acabar com a única amizade verdadeira que tive até hoje. O que foi que eu fiz para você me odiar tanto?” Anson continuava calado. Primeiro viria um apelo a seu cavalheirismo, em seguida à piedade e finalmente à sua sofisticação — e, quando ela tivesse aberto o caminho através de tudo isso, viria afinal a admissão e ele poderia acertar as contas com ela. Ao continuar calado, impenetrável, retornando sempre à arma principal, que era sua própria emoção, Anson a deixava cada vez mais desesperada à medida que a hora do almoço se esgotava. Às duas horas, Edna tirou da bolsa um espelho e um lenço, poliu as marcas das lágrimas e empoou os leves sulcos deixados por elas. Combinou encontrar-se com Anson em sua própria casa, às cinco. Quando ele chegou, Edna estava deitada numa espreguiçadeira, forrada de cretone para o verão, e as lágrimas que ele fizera aflorar no almoço pareciam estar ainda em seus olhos. Foi então que Anson percebeu a presença sombria e ansiosa de Cary Sloane na sala fria. “O que é que se passa na sua cabeça?”, explodiu Sloane. “Fiquei sabendo que você convidou Edna para almoçar e tratou-a mal, com base num mexerico barato.” Anson se sentou. “Não tenho motivos para acreditar que seja apenas um mexerico.” “Soube também que você ameaça contar tudo a Robert Hunter, assim como a meu pai.” Anson aquiesceu. “Ou você conta... ou então conto eu”, disse Anson. “E que diabos você tem com isso, Hunter?” “Não se exalte, Cary”, disse Edna, nervosa. “Só precisamos mostrar-lhe o absurdo que é...” “A razão é muito simples: é meu nome que está em jogo”, interrompeu Anson. “É só isso que lhe diz respeito, Cary.” “Edna não é membro da sua família.” “Mas é claro que é!” A raiva de Anson crescia. “Ora — ela deve esta casa e os anéis que leva no dedo ao cérebro do meu pai. Quando tio Robert se casou com ela, Edna não tinha um tostão.” Todos os olhares convergiram para os anéis, como se eles tivessem um peso significante na

história. Edna fez um gesto como se quisesse tirá-los. “Acho que eles não são os únicos anéis que existem no mundo”, disse Sloane. “Ah, tudo isso é absurdo”, interrompeu Edna. “Anson, por favor, ouça o que tenho a dizer. Eu já descobri como toda essa fofoca começou. Foi uma empregada que mandei embora e que foi direto trabalhar com os Chilicheffs — esses russos arrancam informações dos empregados e depois distorcem as histórias.” E ela deu um soco raivoso na mesa. “E depois que Tom emprestou para eles a limusine por um mês inteiro quando estivemos no Sul no inverno passado...” “Está vendo?”, perguntou Sloane, ansioso. “Foi essa empregada que interpretou tudo errado. Ela sabia que Edna e eu éramos amigos e contou isso aos Chilicheffs. Na Rússia, eles acham que se um homem e uma mulher...” Continuou a discorrer sobre o tema, construindo toda uma teoria sobre as relações sociais no Cáucaso. “Nesse caso, é melhor explicar tudo ao tio Robert”, disse Anson, secamente, “para que, quando os rumores chegarem a ele, ele saiba que é tudo mentira.” Adotando o mesmo método usado com Edna durante o almoço, Anson deixou que eles dessem todas as explicações. Sabia muito bem que eram culpados e que, em algum momento, cruzariam a linha que separa explicação de justificativa e se denunciariam a si próprios, mais do que ele, Anson, seria capaz de fazer. Lá pelas sete, já tinham dado o passo desesperado de lhe contar toda a verdade — o desapreço de Robert Hunter, a vida vazia que Edna levava, o flerte casual que acabara se transformando em paixão —, mas, como tantas histórias verdadeiras, aquela tinha o azar de já ser antiga e seu corpo debilitado se batia em vão contra a armadura da vontade de Anson. A ameaça de ir contar tudo ao pai de Sloane selou a luta vã, porque este último, comerciante aposentado do ramo do algodão no Alabama, era um notório fundamentalista que controlava o filho com uma mesada rígida e a promessa de que, na próxima falseta, essa mesada seria definitivamente cortada. Foram jantar num pequeno restaurante francês e a discussão continuou — a certa altura, Sloane passou a fazer ameaças físicas, mas logo estavam implorando a Anson que lhes desse tempo. Mas Anson estava irredutível. Percebia que Edna entregava os pontos e que seu espírito não podia ser realimentado por uma renovação da paixão. Às duas da manhã, numa pequena boate da rua 53, os nervos de Edna entraram em colapso e ela pediu chorando para ir para casa. Sloane tinha bebido muito a noite toda e estava meio sentimental, debruçando-se sobre a mesa e chorando com o rosto entre as mãos. Imediatamente Anson expôs suas condições. Sloane deveria deixar a cidade por seis meses e isso tinha de acontecer em quarenta e oito horas. Quando voltasse, não poderia haver um reatamento do caso, mas, ao fim de um ano, Edna poderia, se quisesse, pedir o divórcio a Robert Hunter e fazer o que fosse de praxe. Anson fez uma pausa, assegurando-se, ao ver o rosto deles, para dizer a palavra final: “Ou, então, há outra coisa que vocês podem fazer”, disse, devagar. “Se Edna não se importar de abrir mão dos filhos, não há nada que eu possa fazer para impedi-los de fugir juntos.” “Quero ir para casa!”, Edna tornou a gritar. “Deus do céu, será que o que fez conosco hoje não é o bastante?” Do lado de fora estava escuro, exceto pelo brilho baço da Sexta Avenida, no extremo da rua. Sob aquela luminosidade, os ex-amantes se olharam nos olhos pela última vez, com seus rostos trágicos compreendendo que não tinham nem juventude nem força para evitar uma separação definitiva. Sloane afastou-se de repente, caminhando rua abaixo, enquanto Anson batia no braço de um sonolento motorista de táxi. Eram quase quatro horas. Um curso d’água, usada na limpeza, descia preguiçosamente pelo asfalto

da Quinta Avenida, e as sombras de duas mulheres da noite adejavam diante da fachada da igreja de St. Thomas. Surgiram então os arbustos tristes do Central Park, onde Anson tantas vezes brincara quando criança, assim como os números crescentes, tão significativos quanto nomes, das ruas que passavam. Aquela era a sua cidade, pensou Anson, a cidade onde seu nome florescera através de cinco gerações. Nenhuma mudança seria capaz de alterar a permanência desse nome, porque a própria mudança era o substrato essencial com que ele e os outros da família se identificavam com o espírito de Nova York. Eficiência e uma vontade de ferro — porque as ameaças que fizera, em mãos mais frágeis, não resultariam em nada — tinham espanado a poeira do nome de seu tio, do nome de sua família e até mesmo dessa figura trêmula que estava sentada a seu lado no carro. O corpo de Cary Sloane foi encontrado na manhã seguinte na base de um dos pilares da ponte de Queensboro. Na escuridão, e em seu estado de excitação, ele pensara que era a água escura que fluía em sua direção, mas, em menos de um segundo, já não fazia diferença — a não ser que ele tivesse planejado dedicar um último pensamento a Edna e gritado seu nome em voz alta, enquanto lutava, já sem forças, contra a água.

VII. Anson jamais se culpou por sua participação na história — a situação que levou a seu desfecho não fora provocada por ele. Mas os justos pagam pelos pecadores e ele descobriu que, de uma forma ou de outra, sua amizade mais querida chegara ao fim. Nunca soube se fora Edna quem distorcera a história, mas o fato é que jamais voltou a ser bem-vindo na casa do tio. Pouco antes do Natal, a sra. Hunter se retirou para um seleto paraíso episcopal e Anson se tornou o responsável pela família. Uma tia solteira, vivendo com eles havia muitos anos, passou a cuidar da casa, lutando sem sucesso para servir de dama de companhia às filhas mais moças. Os filhos não eram como Anson — eram mais convencionais, tanto nas virtudes quanto nos defeitos. A morte da sra. Hunter adiara o début de uma das filhas e o casamento de outra. Significara ainda uma perda grande e palpável para todos eles, pois, com sua morte, a superioridade tranqüila e luxuosa dos Hunter chegara ao fim. Por uma razão muito simples: as propriedades, consideravelmente diminuídas por duas taxas de herança e que em breve seriam divididas entre seis filhos, já não significavam uma notável fortuna. Anson via em suas irmãs mais novas uma tendência a se referir com excessivo respeito a famílias que sequer “existiam” vinte anos antes. Seu próprio sentimento de hierarquia não parecia ter eco nelas — às vezes elas eram convencionalmente esnobes, só isso. A outra razão é que aquele seria o último verão que eles passariam na propriedade de Connecticut. O clamor contra ela era grande demais: “Quem quer passar os melhores meses do ano trancafiado naquela cidade velha e acabada?”. Embora com relutância, Anson acabou cedendo — no outono, a casa seria oferecida no mercado e, no verão seguinte, eles alugariam um lugar menor no condado de Westchester. Era um degrau abaixo em relação à idéia de seu pai sobre uma simplicidade cara e, embora Anson entendesse a revolta, ao mesmo tempo ficara aborrecido. Enquanto sua mãe estivera viva, ele fora até lá um fim de semana sim, outro não — mesmo nos verões mais animados. Contudo, ele próprio era parte daquela mudança e seu forte instinto vital o afastara, ainda na casa dos vinte, dos funerais vazios daquela classe ociosa. Não enxergava isso com clareza — ainda tinha a sensação de que havia normas e padrões em sociedade. Mas não havia norma nenhuma e não se podia sequer ter certeza se jamais houvera uma em Nova York. Os poucos que ainda pagavam e lutavam para fazer parte de um grupo seleto, quando o conseguiam acabavam por concluir que, como sociedade, esta mal funcionava — ou, o que era ainda mais alarmante, que a boemia da qual tinham

fugido pairava sobre eles nas mesas. Aos vinte e nove anos, a principal preocupação de Anson era sua crescente solidão. Agora tinha certeza de que jamais se casaria. O número de casamentos dos quais participara como padrinho ou pajem era incontável — tinha em casa uma gaveta cheia de gravatas oficiais dessa ou daquela festa de casamento, gravatas muitas vezes representando romances que não tinham durado nem um ano, de casais que haviam desaparecido completamente de sua vida. Prendedores de écharpes, bastões de ouro, abotoaduras, presentes de uma geração de noivos que havia passado por sua caixa de jóias e se desvanecido — e, a cada cerimônia, ele achava mais e mais difícil se imaginar no lugar do noivo. Sob um voto sincero de felicidades em relação àqueles casamentos, havia um sentimento de desesperança em relação ao seu próprio. À medida que se aproximava dos trinta, Anson foi ficando deprimido ao perceber os danos que o casamento causava em seus amigos, especialmente nos últimos tempos. Grupos de pessoas tinham uma desconcertante tendência para se dissolver e desaparecer. Seus próprios colegas de universidade — e era neles que Anson investia a maior parte de seu tempo e afeto — eram os mais voláteis de todos. A maioria mergulhara profundamente na vida doméstica, dois estavam mortos, um vivia no exterior e outro estava em Hollywood, trabalhando como continuísta de filmes a que Anson, por fidelidade, assistia. Mas a maior parte deles se convertera definitivamente a uma intrincada vida familiar cujo foco era em algum clube campestre de subúrbio, e era com relação a esses que Anson sentia de forma mais aguda sua sensação de isolamento. Nos primeiros tempos de casados, todos precisavam de Anson. Ele lhes dava conselhos sobre como lidar com suas magras finanças, exorcizava-lhes as dúvidas sobre a conveniência de criar um filho num dois quartos-e-banheiro e, principalmente, representava para eles o grande mundo lá fora. Mas, agora, os problemas financeiros tinham ficado para trás e o ameaçador bebê fazia parte da família. E, embora sempre ficassem felizes em ver Anson, eles agora se vestiam para recebê-lo e tentavam impressioná-lo, mostrando que eram importantes e guardando para si seus próprios problemas. Já não precisavam dele. Poucas semanas antes de Anson completar trinta anos, o último de seus amigos mais antigos e íntimos se casou. Anson representou seu papel habitual de padrinho, deu de presente o tradicional serviço de chá em prata e foi, como de praxe, ao Homeric para as despedidas. Era uma sexta-feira quente de maio e Anson, enquanto se afastava do píer a pé, deu-se conta de repente de que já estava tudo fechado para o sábado e que ele ficaria sem nada para fazer até segunda-feira de manhã. “Ir para onde?”, perguntou-se. Para o Yale Club, claro. Jogar bridge até a hora do jantar, depois tomar quatro ou cinco doses puras na sala de alguém e passar uma noite agradável e um pouco confusa. Lamentou que o noivo daquela tarde não pudesse estar junto com ele — tinham tido sempre uma grande capacidade de pintar o sete em noites assim: sabiam como abordar as mulheres, como se ver livres delas e quanta consideração cada garota merecia por parte de seu hedonismo inteligente. Uma festa era uma coisa certinha — levavam-se determinadas garotas a determinados lugares e passava-se exatamente um certo tempo divertindo-se com elas. Bebia-se um pouco, não muito, não mais do que se deveria beber, e, a uma certa hora da madrugada, o negócio era levantar-se e anunciar que se estava indo para casa. Era aconselhável evitar universitários, bêbados, futuros compromissos, brigas, sentimento e indiscrições. Era assim que devia ser. Tudo o mais era esbórnia. De manhã, nunca haveria muito o que lamentar — não se tomara qualquer resolução, mas, se tivesse exagerado um pouco e o coração ficado meio fora de compasso, era só passar alguns dias

sem beber e sem dizer nada, para em seguida esperar que o acúmulo de tédio nervoso o conduzisse a uma nova festa. O saguão do Yale estava quase vazio. No bar, três estudantes olharam para ele casualmente, sem curiosidade. “Olá, Oscar”, disse Anson para o barman. “O senhor Cahill apareceu esta tarde?” “O senhor Cahill foi para New Haven.” “Ah... é mesmo?” “Foi para o jogo de beisebol. Muita gente foi.” Anson deu mais uma olhada pelo saguão, observando-o por um instante, e em seguida saiu para a Quinta Avenida. Da janela larga de um dos clubes — no qual pouco estivera nos últimos cinco anos —, um homem de cabelos grisalhos e olhos aquosos olhou para ele. Anson virou o rosto rapidamente — aquela figura sentada ali, em seu tédio resignado, em sua solidão arrogante, o deprimiu. Depois de parar e voltar pelo mesmo caminho, Anson recomeçou a descer a rua 47 rumo ao apartamento de Teak Warden. Teak e sua mulher tinham sido seus amigos mais chegados — a casa deles era um lugar onde Anson e Dolly Karger iam muito quando estavam namorando. Mas Teak dera para beber e sua mulher dissera publicamente que Anson era uma má influência em sua vida. O comentário chegara aos ouvidos de Anson numa versão exagerada — e quando tudo finalmente se esclareceu o delicado feitiço da amizade já se quebrara, para jamais tornar a se recompor. “O senhor Warden está?”, perguntou. “Eles foram para o campo.” Aquilo o pegou de jeito. Tinham ido para o campo e ele não ficara sabendo. Dois anos antes, ele teria sido informado da data, do horário e teria vindo para um último drinque antes da partida, além de planejar uma primeira visita a eles. E agora partiam sem lhe dizer palavra. Anson deu uma olhada no relógio e chegou a pensar em ir passar o fim de semana com a família, mas o único trem era um regional que o faria sacudir-se sob calor agressivo durante três horas. E amanhã no campo e o domingo — não, ele não estava em condições de enfrentar partidas de bridge na varanda com estudantes bem-educados e a bailes depois do jantar em hospedarias rurais, um divertimento menor que seu pai tanto estimara. “Ah, não...”, disse para si mesmo. “Não.” Anson era agora um jovem imponente, nobre, já um pouco gordo, mas sem nenhuma outra marca de dissipação. Poderia ter sido escolhido para ser o esteio de alguma coisa — às vezes tinha-se a impressão de que não poderia ser na sociedade, em outras parecia que não poderia ser outra coisa —, na Justiça ou na religião. Por alguns minutos ficou parado na calçada diante de um prédio na rua 47. Talvez pela primeira vez em sua vida, não lhe ocorria nada para fazer. Começou então a andar depressa rumo à Quinta Avenida, como se tivesse acabado de se lembrar de um encontro importante. A necessidade de dissimulação é uma das poucas características que partilhamos com os cães, e penso em Anson naquele dia como um cachorro de raça que acabara de sofrer uma decepção na porta da cozinha. Estava indo ao encontro de Nick, que já fora o barman da moda em todos os bailes particulares e agora trabalhava pondo para gelar champanhe sem álcool entre os porões labirínticos do Plaza Hotel. “Nick”, disse, “o que aconteceu com tudo?” “Morreu”, respondeu Nick. “Me faça um uísque sour.” Anson pegou uma garrafa de cima do balcão. “Nick, as garotas estão diferentes. Arranjei uma pequena no Brooklyn e ela se casou na semana passada sem nem ao menos me avisar.”

“É mesmo? Há-há!”, retrucou Nick, diplomaticamente. “Deu o troco a você, hein?” “Totalmente”, disse Anson. “E eu tinha saído com ela na noite anterior.” “Há-há-há!”, exclamou Nick. “Há-há-há!” “Você se lembra, Nick, do casamento em Hot Springs, em que fiz os garçons e os músicos cantarem ‘God save the King’?” “Onde mesmo que foi isso, senhor Hunter?”, Nick tentava se lembrar, com ar de dúvida. “Acho que foi...” “Na vez seguinte me cobraram uma fábula e fiquei me perguntando quanto tinha pago para eles”, continuou Anson. “... acho que foi no casamento do senhor Trenholm.” “Esse eu não conheço”, disse Anson, decisivo. Ficara ofendido ao ouvir o nome de um estranho se introduzir em suas reminiscências. Nick percebeu. “Não — não”, admitiu. “Eu me enganei. Foi o de alguém da sua turma... Brakins... Baker...” “Bicker Baker”, esclareceu Anson. “Depois que tudo terminou eles me botaram num carro fúnebre, me cobriram de flores e me levaram embora.” “Há-há-há!”, exclamou Nick. “Há-há-há!” A simulação feita por Nick de um velho criado de família acabou perdendo a força e Anson subiu para o saguão. Observou em torno — seus olhos encontraram o olhar desconhecido de um atendente no balcão, caindo em seguida sobre o arranjo floral de um casamento matutino que parecia equilibrar-se na boca de uma cuspideira de metal. Anson saiu e começou a caminhar lentamente em direção ao sol cor de sangue sobre Columbus Circle. De repente virou e, refazendo o caminho para o Plaza, enfiou-se numa cabine telefônica. Mais tarde ele me contaria que tentara por três vezes falar comigo naquela tarde e que procurara qualquer um que pudesse estar em Nova York — homens e mulheres que não via fazia anos, como uma modelo das aulas de pintura em seus tempos de universidade e cujo número esmaecido ainda estava em sua agenda de telefones — a telefonista disse que aquele prefixo nem existia mais. Finalmente, sua busca passou para o campo e ele teve breves e desapontadoras conversas com mordomos e criadas, todos muito enfáticos. Fulano de tal estava fora, andando a cavalo, nadando, jogando golfe, tinha ido para a Europa na semana anterior. Quem devo dizer que telefonou? Era intolerável a idéia de que passaria uma noite sozinho — os planos particulares que alguém traça para um momento de lazer perdem todo o charme quando são provocados pela solidão. Sempre havia as mulheres de certo tipo, mas aquelas que Anson conhecia tinham desaparecido temporariamente e passar uma noite em Nova York na companhia de uma estranha, pela qual pagasse, nunca lhe entraria na cabeça — seria uma coisa secreta e vergonhosa, a diversão típica de um caixeiro-viajante numa cidade estranha. Anson pagou a conta de telefone — a garota tentou, sem sucesso, brincar com ele por causa do valor da conta — e, pela segunda vez naquela tarde, saiu do Plaza sem saber para onde ia. Perto da porta giratória viu a figura de uma mulher, obviamente grávida, de pé junto à luz — sobre seus ombros, uma capa diáfana, de cor bege, flutuava sempre que a porta girava e a cada vez ela olhava com impaciência em sua direção, como se estivesse cansada de esperar. À primeira vista, uma forte sensação de familiaridade o trespassou, mas foi só quando estava a menos de dois metros que Anson se deu conta de que era Paula. “Ora, mas é Anson Hunter!” O coração dele deu um salto. “Paula...”

“Ah, mas isso é maravilhoso. Mal posso acreditar, Anson!” Ela segurou-lhe as duas mãos e Anson viu, pela liberalidade dos gestos, que a memória dele já não a agulhava mais. Mas para ele era diferente — podia sentir a antiga sensação que ela lhe provocara tomando forma em seu cérebro, a delicadeza com que sempre encarara o otimismo dela, como se tivesse medo de desfigurar-lhe a superfície. “Estamos passando o verão em Rye. Pete teve de vir ao Leste a trabalho — você sabe, claro, que me casei com Peter Hagerty — e assim trouxemos as crianças e alugamos uma casa. Você tem de vir nos visitar!” “Posso?”, perguntou Anson, direto. “Quando?” “Quando quiser. Aí está Pete.” A porta giratória funcionou, produzindo um homem alto e elegante, dos seus trinta anos, com um rosto bronzeado e um bigode bem aparado. Sua imaculada esbeltez fazia um forte contraste com a figura cada vez mais robusta de Anson, escondida por um casaco sob medida levemente apertado. “Vocês não deviam estar aí em pé”, disse Hagerty para a mulher. “Vamos sentar um pouco”, e ele apontou para as cadeiras no saguão. Mas Paula hesitou. “Preciso ir direto para casa”, disse. “Anson, por que você não... por que você não vem também e janta conosco? Estamos acabando de nos ajeitar, mas se você não se importar...” Hagerty, cordial, confirmou o convite. “Passe a noite conosco.” O carro deles estava esperando na frente do hotel e Paula, com um gesto cansado, afundou-se nas almofadas de seda, no canto. “Tenho tantas coisas para lhe contar”, disse ela, “que nem sei por onde começar.” “Quero saber de você.” “Bem...”, e ela sorriu para Hagerty, “isso também demandaria muito tempo. Tenho três filhos — do primeiro casamento. O mais velho tem cinco anos, em seguida vem o de quatro e depois o de três.” Ela sorriu de novo. “Não perdi tempo, não acha?” “Meninos?” “Um menino e duas meninas. E então... bem, muitas coisas aconteceram, eu me divorciei em Paris um ano atrás e me casei com Pete. E isso é tudo — além do fato de que estou muitíssimo feliz.” Em Rye, eles se dirigiram para uma casa grande perto do Beach Club, de onde, a certa altura, três crianças magricelas e morenas se desvencilharam da governanta inglesa e correram em sua direção, soltando um grito incompreensível. Com ar ausente e alguma dificuldade, Paula abraçou cada um deles, afago que eles aceitaram conformados, pois obviamente tinham recebido instruções para não pular em cima da mãe. Mesmo diante de seus rostinhos jovens, a pele de Paula não apresentava qualquer sinal de fadiga — com seu langor físico, ela parecia ainda mais jovem do que quando Anson a vira pela última vez, sete anos antes, em Palm Beach. No jantar ela pareceu preocupada e depois, enquanto ouviam rádio, recostou-se de olhos fechados no sofá, fazendo Anson se perguntar se sua presença ali, àquela hora, não seria uma intrusão. Mas, às nove horas, quando Hagerty se levantou e, afável, disse que os deixaria sozinhos por um tempo, Paula começou a falar devagar sobre si mesma e sobre o passado. “Meu primeiro bebê”, disse,“aquele que chamo de Darling, a garotinha mais velha — eu queria morrer quando soube que ia tê-la, porque Lowell era como um estranho para mim. Era como se fosse impossível aquele ser um bebê meu. Escrevi uma carta para você e depois a rasguei. Ah, você foi tão mau para mim, Anson...” Era o diálogo outra vez, subindo e descendo. Anson sentiu uma repentina aceleração na memória.

“Você não esteve noivo uma vez?”, perguntou ela, “de uma garota chamada Dolly alguma coisa?” “Nunca estive noivo. Tentei ficar, mas nunca amei ninguém a não ser você, Paula.” “Oh”, disse ela. E depois de uma pausa: “Este bebê é o primeiro que eu realmente desejei. Sabe? Estou apaixonada agora... finalmente.” Anson não respondeu, chocado pela traição na lembrança dela. Paula devia ter percebido que o “finalmente” o ferira, porque continuou: “Por você, eu fiquei enlouquecida, Anson — eu faria qualquer coisa que quisesse. Mas jamais teríamos sido felizes. Não sou esperta o suficiente para você. Não gosto de coisas complicadas, como você gosta.” Ela se calou por um instante. “Você nunca vai sossegar”, disse. A frase o pegou pelas costas — era uma acusação que, entre todas, ele jamais merecera. “Eu poderia sossegar se as mulheres fossem diferentes”, disse. “Se não entendesse tanto delas, se as mulheres não nos estragassem para as outras mulheres, se ao menos tivessem um pouco de orgulho. Se eu pudesse ir dormir e acordar numa casa que fosse realmente minha — ora, foi para isso que nasci, Paula, e isso é o que as mulheres sempre viram e gostaram em mim. Acontece que já não tenho mais como enfrentar as preliminares.” Hagerty voltou para a sala pouco depois das onze. Depois de um uísque, Paula se levantou e anunciou que ia se deitar. Deu alguns passos e parou junto do marido. “Onde você foi, meu bem?”, perguntou. “Fui tomar um drinque com Ed Saunders.” “Fiquei preocupada. Pensei que talvez tivesse fugido...” E encostou o rosto no casaco dele. “Ele é um doce, não é, Anson?”, perguntou. “Sem dúvida”, disse Anson, rindo. Ela ergueu o rosto para o marido. “Bem, estou pronta”, disse. E virando-se para Anson. “Quer conhecer a ginástica acrobática da família?” “Quero”, respondeu Anson, com interesse. “Ótimo. Então, vamos lá!” Hagerty agarrou-a e ergueu-a nos braços, com facilidade. “É a isso que chamamos a ginástica acrobática da família”, disse Paula. “Ele me carrega escada acima. Não é uma doçura da parte dele?” “É”, respondeu Anson. Hagerty baixou um pouco a cabeça até seu rosto tocar no de Paula. “E eu o amo”, disse Paula. “É o que eu estava lhe falando, não é, Anson?” “É.” “Ele é a coisa mais querida que já viveu neste mundo. Não é, meu amor?... Bem, boa noite. Vamos lá. Ele não é forte?” “É”, disse Anson. “Você vai encontrar um pijama de Pete para você. Tenha bons sonhos... e nos vemos no café-damanhã.” “É”, disse Anson.

VIII. Os sócios mais antigos da firma insistiram para que Anson fosse ao exterior no verão. Ele mal tirara férias em sete anos, diziam. Estava cansado e precisava mudar de ares. Anson resistia.

“Se for”, disse, “não vou voltar mais.” “Isso é um absurdo, meu velho. Você vai voltar dentro de três meses, livre de toda essa depressão. Mais em forma do que nunca.” “Não”, e balançava a cabeça com teimosia. “Se eu parar, não vou conseguir voltar ao trabalho. Se parar é porque desisti — é porque estarei acabado.” “Pois nós vamos arriscar. Fique seis meses, se quiser... não temos medo de perdê-lo. Ora, você se sentiria péssimo se ficasse sem trabalho.” Compraram-lhe as passagens. Gostavam de Anson — todo mundo gostava de Anson — e a mudança que se operara nele caíra como uma espécie de mortalha sobre o escritório. Seu entusiasmo, que sempre impulsionara os negócios, a consideração para com seus pares e também seus inferiores, a força de sua presença vital — nos quatro últimos meses seu nervosismo intenso tinha dissolvido tais qualidades em um pessimismo exagerado, mais apropriado a um homem de quarenta anos. Em cada transação em que Anson estivesse envolvido, sua nova atitude o tornava um estorvo, um ponto de tensão. “Se for, não volto nunca mais”, disse. Três dias antes de Anson zarpar, Paula Legendre Hagerty morreu de parto. Estive com ele bastante tempo na ocasião, porque estávamos viajando juntos, mas, pela primeira vez em nossa amizade, não falou uma palavra sobre o que sentia, nem vi nele qualquer sinal de emoção. Sua preocupação maior era com o fato de que estava fazendo trinta anos — levava a conversa para esse assunto e em seguida ficava calado, como se presumisse que aquele comentário fosse suficiente para desencadear uma cadeia própria de pensamentos. Como seus sócios, fiquei impressionado com sua mudança e vi satisfeito quando o Paris se moveu no grande espaço de água entre dois mundos, deixando seu território para trás. “Que tal um drinque?”, sugeriu. Entramos no bar com aquele sentimento de desafio que caracteriza o dia da partida e pedimos quatro martínis. Depois do primeiro coquetel, uma mudança se operou em Anson — de repente esticou a mão e me deu um tapinha no joelho, o primeiro gesto de jovialidade que eu o via exibir em meses. “Você viu aquela garota de gorro vermelho?”, perguntou. “Aquela bem corada com dois cachorros policiais no porto para se despedir dela?” “É bonita”, concordei. “Investiguei sobre ela na sala do comissário e descobri que está sozinha. Vou lá embaixo um minuto conversar com o camaroteiro. Vamos jantar com ela hoje à noite.” Depois de um tempo, afastou-se e, uma hora depois, estava andando para cima e para baixo no deque com a garota, conversando com ela, com sua voz forte e clara. Seu gorro vermelho era um ponto brilhante em contraste com o verde-acinzentado do mar e, de vez em quando, ela erguia o rosto de repente e sorria divertida, com interesse, com ansiedade. Durante o jantar bebemos champanhe e rimos muito — depois Anson jogou bilhar com um prazer contagiante, e várias pessoas que me viram a seu lado vieram me perguntar seu nome. Ele e a garota conversavam e riam juntos numa saleta do bar quando fui para a cama. Eu o vi menos do que esperava durante a viagem. Ele queria arranjar mais um parceiro para fazer duas duplas de jogo, mas não havia ninguém disponível. Por isso, só nos encontrávamos nas refeições. Mas, às vezes, ele ia tomar um drinque no bar e me contava sobre a garota do gorro vermelho e sobre suas aventuras com ela, tornando a história engraçada, como era de seu feitio. Fiquei satisfeito em ver que Anson era ele próprio outra vez, ou, pelo menos, aquele Anson que eu

conhecia e com o qual me sentia à vontade. Acho que ele não era feliz a não ser que tivesse alguém apaixonado por ele, respondendo a seus sentimentos como se fosse um ímã, ajudando-o a explicar-se a si mesmo, prometendo-lhe alguma coisa. O que seria isto, não sei. Talvez lhe prometessem que sempre haveria mulheres no mundo dispostas a passar suas horas mais brilhantes, mais vibrantes e mais raras, dedicando-se a mimar e proteger aquela superioridade que ele cultivava no coração. (1926)

* Os trechos entre colchetes foram cortados por FSF na edição original, a pedido do amigo em quem ele baseou o personagem de Anson Hunter, e reintegrados ao texto nesta edição.

A escada de Jacob

Era o julgamento de um crime sórdido e vil, e Jacob Booth, espreguiçando-se tranqüilamente na platéia do tribunal, começou a sentir-se como quem havia devorado infantilmente qualquer coisa sem ao menos estar com fome — apenas porque estava ao alcance da mão. Os jornais tinham explorado o caso, fazendo com que houvesse uma enorme procura dos passes que permitem o ingresso de populares na sala do tribunal. Um desses passes lhe fora oferecido na noite anterior. Jacob olhou na direção da porta, onde umas cem pessoas, respirando com dificuldade, demonstravam uma ansiosa excitação, como se aquilo fosse um escoadouro para suas próprias vidas particulares. O dia estava quente e podia-se sentir o suor da multidão — um suor que escorria em bagos, como grandes gotas de orvalho que poderiam respingá-lo se ele se atrevesse a sair por aquela porta. Alguém atrás dele arriscou que o júri não deveria levar mais de meia hora para dar o veredicto. Com a inevitabilidade da agulha de uma bússola, sua cabeça voltou-se para a mesa da prisioneira e ele olhou mais uma vez para o rosto pálido e gordo da assassina, cravejado de dois olhos redondos e vermelhos. Chamava-se sra. Choynski, née Delehanty, e o destino lhe reservara a sorte de, um dia, esquartejar seu namorado marinheiro com uma machadinha. As mãos rechonchudas que haviam empunhado a arma do crime brincavam incessantemente com um tinteiro, e por várias vezes ela olhava para a platéia com sorrisos nervosos. Jacob franziu a testa e olhou novamente ao redor; tinha visto um rosto bonito na multidão e o perdido de novo. Um rosto que conseguira imprimir-se em sua mente justamente quando ele estava absorvido por uma imagem mental da sra. Choynski em ação. Era o rosto de uma santa, com olhos ternos e luminosos e pele clara e delicada. Por duas vezes, Jacob varejou a sala com os olhos, depois esqueceu e sentou-se rígido, com desconforto, à espera. O júri trouxe o veredicto: assassinato em primeiro grau; a sra. Choynski gemeu, “Ah, meu Deus!”. A sentença ficou para o dia seguinte. Terminada a função, a platéia saiu lentamente, em direção à tarde de agosto lá fora. Jacob viu o rosto novamente, só então descobrindo por que não o vira antes. Pertencia a uma jovem sentada ao lado da mesa da prisioneira e estivera escondido atrás da cabeça em forma de lua cheia da sra. Choynski. Naquele momento, os olhos luminosos brilhavam através das lágrimas, e um impaciente rapaz de nariz achatado tentava atrair sua atenção dando-lhe tapinhas no ombro. “Quer me deixar em paz?”, disse a moça, irritada. “Por que não some da minha vista? Que coisa!” O rapaz suspirou profundamente e recuou. A moça abraçou a estatelada sra. Choynski, e outro circunstante observou para Jacob que as duas eram irmãs. Então a sra. Choynski foi tirada de cena — seu rosto dava a impressão de que ela tinha um compromisso urgente — e a moça sentou-se à mesa para retocar a maquiagem. Jacob esperou, assim como o rapaz de nariz achatado. Um policial apareceu bruscamente e Jacob deu-lhe cinco dólares.

“Que coisa!”, gritava a moça para o rapaz. “Não pode me deixar em paz?” Ela se levantou. Sua presença, as obscuras vibrações de sua impaciência enchiam a sala do tribunal. “Todo dia a mesma coisa!” Jacob aproximou-se. O outro homem falava rápido: “Senhorita Delehanty, meu jornal foi muito generoso com sua irmã. Só estou lhe pedindo que cumpra a sua parte do trato. Vamos rodar às...” A srta. Delehanty virou-se em desespero para Jacob: “E essa agora? Ele quer um retrato da minha irmã quando ela era bebê e com a minha mãe junto!”. “Tiraremos sua mãe da foto.” “Mas eu quero a minha mãe! É a única foto que tenho dela!” “Prometo devolver-lhe a foto amanhã.” “Estou cheia disso tudo!” Mais uma vez estava se dirigindo a Jacob, mas sem enxergá-lo, exceto como uma figura num público vago e onipresente. “Acabo ficando doida!” E fez um ruído com os dentes que parecia compreender toda a essência do desprezo humano. “Tenho um carro lá fora, senhorita Delehanty”, disse Jacob de repente. “Posso levá-la para casa?” “Tudo bem”, ela respondeu, indiferente. O repórter presumiu que os dois já se conheciam e começou a discutir em voz mais baixa, à medida que os três se encaminhavam para a porta. “Todo dia a mesma coisa!”, continuou a srta. Delehanty, amarga. “Esses repórteres!” Lá fora, Jacob fez sinal para seu carro. Este se aproximou, enorme e relutante, e, quando o motorista saiu e abriu a porta, o repórter, à beira das lágrimas por ver sua foto bater asas, passou a implorar. Mas a srta. Delehanty foi implacável: “Ora, vá tomar banho! Quer saber de uma coisa? Vá tomar banho no rio!” A extraordinária ênfase de sua ordem foi de tal dimensão que Jacob lamentou as limitações do vocabulário dela. Não apenas evocou-lhe a imagem do infeliz jornalista afogando-se ao banhar-se nas águas do rio Hudson, como convenceu-o de que era o único jeito de se livrarem do homem. Deixando-o para trás, a fim de enfrentar seu horroroso destino, o carro finalmente arrancou. “Você deu uma boa dura nele”, disse Jacob. “Claro”, ela admitiu. “Depois de uns tempos fiquei escolada e aprendi a me livrar desses chatos. Quantos anos você pensa que eu tenho?” “Qual é a sua idade?” “Dezesseis.” Olhou-o gravemente, como que convidando-o a divagar. Seu rosto, o rosto de uma jovem virginal, pairava fragilmente sobre a poeira etérea da tarde. Da pequena abertura de seus lábios não emanava nenhum hálito; nem ele jamais tinha visto uma textura tão pálida e imaculada como a de sua pele, tão fulgente e vistosa como a de seus olhos. Jacob — ele próprio de belos traços bem cuidados — sentiu-se, pela primeira vez na vida, cansado e acabado diante do frescor ao qual se ajoelhava naquele momento. “Onde você mora?”, ele perguntou. No Bronx, talvez em Yonkers, Albany ou na baía de Baffin. Mas nem que tivessem que dar a volta ao mundo naquele carro, ele deixaria de levá-la. Então ela falou, e bastou que os cacos de palavras vibrassem em sua voz para que a sensação passasse: “Rua 123. Tou morando com uma amiga”. O carro parou num sinal vermelho e ela trocou um olhar altivo com um homem que olhava pela janela do táxi ao lado. O homem tirou o chapéu, divertido, e gritou: “Olá, gostosa, onde foi que vi você antes?”.

Uma mão e um braço puxaram o homem de volta para as trevas do táxi. Virou-se para Jacob, com o cenho franzido e com a sombra de um fio de cabelo entre os olhos: “As pessoas me reconhecem na rua. Saíram montes de fotos no jornal”. “Lamento que a coisa tenha acabado tão mal.” Ela recordou os acontecimentos daquela tarde pela primeira vez na última meia hora. “Aquilo ia acontecer de qualquer jeito. Estava escrito. Mas ninguém terá a coragem de condenar uma mulher à cadeira elétrica em Nova York.” “É verdade.” “Vai pegar prisão perpétua.” Era óbvio que não se tratava dela falando. A tranqüilidade de seu rosto fazia com que as palavras se separassem dela assim que eram pronunciadas, como se adquirissem uma existência independente. “Você morava com ela?” “Eu? Você não lê jornal? Nem sabia que era minha irmã até que vieram me dizer! Não via ela desde criança.” Apontou repentinamente para uma das maiores lojas de departamentos do mundo. “É ali que eu trabalho. Depois de amanhã, volto à estiva.” “Vai fazer calor esta noite”, disse Jacob. “Por que não damos uma volta e depois jantamos?” Ela olhou para Jacob e achou-o amável e educado. “Está bem”, respondeu. Jacob tinha trinta e três anos. Em jovem, chegara a possuir uma voz de tenor que parecia ter algum futuro, mas uma laringite privara-o dela durante uma semana febril dez anos antes. Numa espécie de desespero que mal escondia um certo alívio, comprou uma fazenda na Flórida e passou cinco anos transformando-a num campo de golfe. Quando veio o boom imobiliário de 1924, vendeu-o por oitocentos mil dólares. Como tantos americanos, costumava avaliar as coisas em vez de apreciá-las. Sua apatia não significava exatamente medo da vida nem qualquer afetação, mas apenas a violência subitamente fatigada. Era uma apatia bem-humorada. Sem precisar de dinheiro, tentara desesperadamente — durante um ano e meio — casar-se com uma das mulheres mais ricas da América. Se a amasse, ou mesmo fingisse isso, teria conseguido; mas nunca conseguira desempenhar mais do que a mentira formal. Não era alto, mas era magro e bonito. Exceto nos momentos em que se deixava acometer pela incrível apatia, era extremamente charmoso; andava com um grupo que se considerava o melhor de Nova York e que se divertia mais que todo mundo. Durante um dos tais ataques de apatia, parecia um passarinho emburrado e aborrecido que detestava a humanidade. Mas ele estava gostando da humanidade naquela noite, sob o luar de verão dos Borghese Gardens. A lua parecia um ovo radiante, macio e suave como o rosto de Jenny Delehanty do outro lado da mesa, enquanto uma brisa salgada soprava de leve sobre as mansões da região, como que coletando o aroma das flores e depositando-o no gramado do restaurante. Os garçons lembravam duendes alvoroçados, com seus fraques pretos esvaindo-se na penumbra e o peito branco das camisas luzindo numa colcha de escuridão. Tomaram uma garrafa de champanhe e ele disse a Jenny Delehanty: “Você é a coisa mais linda que já vi. Pena que não seja meu tipo, e não tenho a menor intenção a seu respeito. Entretanto, você não vai voltar para aquela loja. Amanhã, vou arranjar-lhe um encontro com Billy Farrelly, que está dirigindo um filme em Long Island. Não sei se ele vai achá-la bonita, porque nunca lhe mandei ninguém antes”. Não houve nem sombra de mudança de expressão nos olhos dela, apenas uma ponta de ironia. Coisas como aquela já lhe tinham sido prometidas antes, mas o diretor do filme nunca estava

disponível no dia seguinte. Ou então ela fora esperta o suficiente para nunca recordar os homens do que eles haviam lhe prometido na véspera. “E não apenas você é bonita”, continuou Jacob, “como tem muita classe. Tudo que faz — por exemplo, pegar esse copo ou fingir estar segura de si ou que me despreza — fica evidente. Se alguém for esperto para perceber isso, acho que poderá fazer de você uma atriz.” “Eu adoro a Norma Shearer. E você?” De volta para casa naquela noite cálida, ela ofereceu-se tranqüilamente para ser beijada. Enlaçando-a de leve, Jacob deixou que seu rosto tocasse a suavidade do rosto dela por um momento e depois encarou-a por um longo momento. “Que bela criança”, disse gravemente. Ela sorriu para ele, enquanto suas mãos brincavam burocraticamente com as lapelas de seu paletó. “Diverti-me muito”, ela murmurou. “Puxa! Espero nunca mais ter de voltar àquele tribunal.” “Também espero.” “Não vai me beijar?” “Este lugar por onde estamos passando é Great Neck”, disse Jacob. “O pessoal do cinema mora por aqui.” “Você é uma figura, bonitão.” “Por quê?” Ela balançou a cabeça e achou graça. “Porque é.” Jenny viu, então, que ele era de um tipo com o qual ela não estava acostumada. Jacob estava surpreso, não envaidecido, de que ela o achasse engraçado. Jenny percebeu também que, qualquer que fosse o seu objetivo, ele não queria nada dela naquele momento. Jenny Delehanty aprendia depressa. Assim, tornou-se também grave, doce e tranqüila como a noite e, quando eles cruzaram a ponte de Queensboro em direção à cidade, já estava quase adormecida em seus braços.

II. No dia seguinte, Jacob ligou para Billy Farrelly. “Preciso falar com você. Descobri uma garota que você devia conhecer!” “Ai, meu Deus!”, disse Farrelly. “Você é o terceiro hoje! Tenha dó.” “Mas as outras duas não eram ela.” “Está bem, Jake. Se ela for branca, já ganhou o papel principal do filme que começo a rodar nesta sexta.” “Fora de brincadeira, você fará um teste com ela?” “Não é brincadeira. Dou-lhe o papel principal, estou lhe dizendo. Não agüento mais essas atrizes cretinas. Parto para Hollywood no mês que vem. Preferia ser o jardineiro de Constance Talmadge a trabalhar com essas...” Sua voz tinha uma intensa amargura. “Claro, traga a moça, Jake. Vamos ver o que ela tem.” Quatro dias depois, quando a sra. Choynski, acompanhada por dois auxiliares do xerife, foi passar o resto de seus dias em Auburn, Jacob e Jenny atravessaram a ponte de Astoria, Long Island. “Você precisa mudar de nome”, disse ele. “E lembre-se: nunca teve irmã.” “Pensei nisso. Até imaginei um nome novo. Que tal Tootsie Defoe?” “Horrível. Simplesmente horrível!” “Então sugira outra coisa, já que é tão esperto.” “Vamos ver... Jenny... Jenny qualquer coisa — Jenny Prince?” “Está bem, bonitão.”

Jenny Prince subiu as escadarias do estúdio de cinema, e Billy Farrelly, num daqueles dias de mau humor em que desprezava a si mesmo e à profissão, contratou-a para um dos três papéis principais da fita. “São todas iguais”, disse a Jacob. “Bolas! Você hoje tira uma fulana dessas do esgoto e amanhã já querem bandejas de ouro. Preferia ser o jardineiro de Constance Talmadge a ter um harém cheio delas.” “Gostou da garota?” “Ótima, ótima. Tem um bom perfil. Mas são todas iguais.” Jacob comprou para Jenny Prince um vestido de noite por cento e oitenta dólares e levou-a ao Lido naquela noite. Estava contente, até um pouco excitado. Riram muito e se sentiram felizes. “Como é, já está acreditando que é uma estrela do cinema?”, perguntou. “Aposto que vão me demitir amanhã. Foi fácil demais.” “Não, não foi. Foi fácil psicologicamente. Por sorte, Billy Farrelly estava...” “Gostei dele.” “Ele é ótimo”, concordou Jacob. E isso o fez lembrar que outro homem já estava abrindo portas para o sucesso de Jenny. “Mas é um irlandês maluco. Cuidado com ele.” “Eu sei. A gente sempre sabe quando o sujeito está a fim.” “Como?” “Não quero dizer que ele esteja a fim de mim, bonitão. Mas ele tem aquele jeito de olhar, entende?” Distorceu o rosto lindo com um sorriso maldoso. “Ele gosta. Está mais do que evidente.” Beberam uma espécie de suco de uva altamente alcoolizado. O maître veio à mesa. “Esta é a senhorita Jenny Prince”, disse Jacob. “Você ainda vai ouvir falar muito dela, Lorenzo, porque ela acaba de assinar um grande contrato no cinema. Trate-a sempre com o maior respeito.” Quando Lorenzo retirou-se, Jenny disse: “Você tem os olhos mais bonitos que já vi”. Ela se esforçava, fazia o melhor que podia, mas ele tinha um jeito sério e triste. “É verdade”, ela repetiu, “os olhos mais bonitos que já vi. Qualquer garota gostaria de ter os seus olhos.” Ele riu, mas estava comovido. Sua mão cobriu o braço de Jenny. “Seja boazinha”, disse. “Trabalhe bem e ficarei orgulhoso de você — e nos divertiremos bastante juntos.” “Mas sempre me divirto tanto com você!” Seus olhos estavam postos nos dele, como se fossem suas mãos. A voz dela era clara e seca. “Juro, não estava brincando quando falei dos seus olhos. Você sempre pensa que estou brincando. Quero lhe agradecer por tudo o que fez por mim.” “Não fiz nada por você, sua bobinha. Apenas a vi e fiquei... bem, fiquei encantado — qualquer pessoa deveria ficar encantada com você.” Os artistas surgiram no palco e os olhos dela fugiram vorazmente. Ela era tão jovem, e Jacob nunca tinha sido tão consciente da juventude até então. Até aquela noite, sempre se achara jovem. Depois, no táxi, cheia do perfume que ele lhe comprara naquele dia, Jenny achegou-se e agarrou-se a Jacob. Ele a beijou, mas sem entusiasmo. Da mesma forma, não havia paixão nos olhos dela ou em sua boca; apenas um ligeiro aroma de champanhe no hálito. Ela se juntou a ele quase com desespero. Jacob tomou suas mãos e afastou-a de si. Jenny afastou-se ainda mais, ressentida. “O que há? Não gosta de mim?” “Não devia tê-la deixado tomar tanto champanhe.” “Por que não? Já bebi antes. Até já fiquei de pileque uma vez.”

“Bem, acho que você devia se envergonhar disso. E se eu souber que você está bebendo de novo, vai ver uma coisa!” “Você é assim, sempre durão, é?” “O que há? Qualquer bêbado de botequim vai logo se aproveitando de você?” “Ora, não é nada disso.” Por um momento, viajaram em silêncio. Então a mão de Jenny agarrou-se à dele. “Gosto mais de você do que de qualquer outro que já conheci. Não posso evitar, posso?” “Minha querida.” Enlaçou-a outra vez. Tímida e hesitantemente, beijou-a e, mais uma vez, ficou congelado pela inocência de seu beijo e dos olhos que, no exato momento, contemplaram-no das profundezas da noite, das profundezas do mundo. Jenny ainda não sabia que o esplendor era algo que aconteceria no coração; quando ela descobrisse isso e se deixasse envolver na paixão do universo, ele a assumiria sem problema ou remorso. “Gosto muito de você”, disse Jacob, “mais do que de qualquer outra pessoa que conheço. Quanto àquele negócio de beber, estava falando sério. Você não deve beber.” “Vou fazer tudo o que você quiser”, ela disse. E repetiu, olhando-o bem nos olhos: “Tudo”. O carro parou em frente ao apartamento de Jenny e ele lhe deu um beijo de boa-noite. Continuou no táxi, exultante, parecendo viver mais profundamente sua juventude do que nunca. Inclinou-se, apoiando-se em sua bengala, e, ao se dar conta de que era rico, jovem e feliz, deixou que o táxi trafegasse pelas ruas escuras em direção a seu futuro, que nem mesmo ele podia predizer.

III. Certa noite, um mês depois, num táxi com Farrelly, Jacob deu ao motorista o endereço deste. “Quer dizer que você está apaixonado pela garota”, disse Farrelly, divertido. “Pois bem, vou sair do seu caminho.” Jacob experimentou um vago desconforto. “Não estou apaixonado por ela, Billy”, disse calmamente. “Só quero que a deixe em paz.” “Claro! Vou deixá-la em paz”, concordou Farrelly prontamente. “Não sabia que você estava interessado — ela me disse que não conseguia conquistá-lo.” “O fato é que você também não está interessado”, disse Jacob. “Se eu pensasse que vocês dois estavam gostando um do outro, acha que seria tolo de ficar entre vocês? Mas você não sente nada por ela, e ela está um pouco impressionada e fascinada.” “Está bem”, concordou Farrelly, enfarado, “não vou nem chegar perto.” “Claro que vai”, riu Jacob, “na falta de coisa melhor a fazer. E é a isso que me oponho — uma coisa assim acontecer a ela.” “Compreendo. Vou deixá-la em paz.” Jacob foi obrigado a se contentar com aquilo. Não tinha a menor confiança em Billy Farrelly, mas achava que Farrelly era seu amigo e não procuraria ofendê-lo, a não ser que houvesse sentimentos mais fortes. Mas as mãos dadas por baixo da mesa naquela mesma noite o tinham aborrecido. Jenny mentira quando ele a repreendera; disse até que, se ele quisesse, poderia levá-la para casa imediatamente; dispôs-se também a não falar de novo com Farrelly aquela noite toda. Isso fizera Jacob parecer um bobo, até para si mesmo. Teria sido mais simples, quando Farrelly observou “Quer dizer que você está apaixonado pela garota”, ter conseguido responder: “Sim”. Mas o fato é que não estava. Valorizava-a agora mais do que julgara possível. Via nela o despertar de um temperamento aguçadamente individual. Ela gostava de coisas simples e tranqüilas. Estava

desenvolvendo a capacidade de discriminar, de abolir o trivial e o desnecessário de sua vida. Tentou presenteá-la com livros; depois, sabiamente, mudou de tática e passou a pô-la em contato com vários homens. Criava situações e depois as explicava para ela, e adorava quando via os resultados começarem a florir diante de seus olhos. Envaidecia-se também de que ela confiasse cegamente nele e o usasse como padrão no julgamento de outros homens. Antes mesmo da estréia do filme, ofereceram-lhe um contrato de dois anos, pela simples impressão de que ela podia ser mais que uma promessa — quatrocentos dólares por semana nos primeiros seis meses e aumentos regulares depois disso. Mas ela teria de ir para Hollywood. “Não preferia que eu esperasse um pouco?”, perguntou Jenny, quando eles voltavam do campo uma tarde. “Não preferia que eu continuasse em Nova York — perto de você?” “Você deve ir para onde seu trabalho a levar. Precisa aprender a cuidar de si mesma. Já tem dezessete anos.” Dezessete anos — tornara-se tão velha quanto ele, que já não tinha idade. Seus olhos escuros sob o chapéu de palha amarelo pareciam cheios de destino, o mesmo destino que ela se dispunha a dispensar. “Fico pensando, se você não tivesse aparecido, teria surgido alguém? Digo, para me obrigar a fazer as coisas”, disse ela. “Você teria feito tudo sozinha”, ele respondeu. “Ponha na cabeça que não é dependente de mim.” “Mas eu sou. Tudo foi graças a você.” “Não é”, ele disse enfaticamente, mas sem acrescentar quaisquer razões. Gostava que ela pensasse daquele jeito. “Não sei o que faria sem você. É meu único amigo”, e acrescentou, “de quem eu gosto. Está vendo? Entende o que quero dizer?” Ele riu, divertindo-se com o nascimento do egoísmo dela, implícito a seu direito de ser entendida. Naquela tarde, estava mais linda do que nunca, delicada, resoluta, mas, para ele, indesejável. Às vezes Jacob se perguntava se aquela assexualidade de Jenny não se dirigia a ele, se não seria uma máscara que ela só usasse em sua presença. Sentia-se felicíssima com rapazes, embora fingisse desprezá-los. Billy Farrelly, talvez para desgosto dela, parecia tê-la deixado em paz. “Quando irá me visitar em Hollywood?” “Breve”, ele prometeu. “Mas você também virá a Nova York de vez em quando.” Ela começou a chorar. “Ah, vou sentir tanto sua falta!” Grandes lágrimas correram pelo morno marfim de suas faces. “Puxa! Você foi tão bom para mim! Me dê a mão. Você foi o melhor amigo que alguém já teve. Onde vou encontrar um amigo como você?” Ela estava representando agora, mas ele sentiu um aperto na garganta e, por um instante, uma idéia maluca subiu-lhe à cabeça, tateante, como um cego tateando o vento — casar-se com ela. Teria apenas que fazer a sugestão, e ela seria só dele e nunca mais precisaria conhecer ninguém, porque ele a compreenderia para sempre. No dia seguinte, na estação, Jenny deliciava-se com as flores que recebera, com sua cabine e com a perspectiva de fazer uma viagem mais longa que todas as que já tinha feito. Quando se despediu de Jacob com um beijo, seus olhos profundos fitaram os dele e ela estreitou-se contra ele, como a protestar contra a separação. Chorou novamente, mas ele sabia que, por trás das lágrimas, havia a felicidade da expectativa de novas aventuras. Quando Jacob deixou a estação, Nova York parecia curiosamente vazia. Através dos olhos dela, Jacob tinha visto novas cores na cidade, mas, agora, elas haviam se desvanecido na cinzenta tapeçaria do passado. No dia seguinte, foi a um consultório em Park Avenue e consultou um famoso especialista que não visitava havia dez anos.

“Gostaria que examinasse minha laringe de novo”, ele disse. “Não há muita esperança, mas talvez algo tenha mudado a situação.” Engoliu um complicado sistema de espelhos, aspirou e expirou, emitiu graves e agudos e tossiu ao comando do médico. O especialista fez um exame completo. Finalmente sentou-se e tirou os óculos: “Não há alteração. As cordas não estão perdidas, apenas se gastaram. Não há nada a fazer”. “Foi o que pensei”, disse Jacob humildemente, como se estivesse sendo culpado de uma impertinência. “Foi praticamente o que o senhor já havia me dito antes. Só queria saber se era irreversível.” Quando saiu do edifício, era como se tivesse perdido alguma coisa — uma pequena esperança, o desejo de que um dia... “Nova York melancólica”, dizia o seu primeiro telegrama para ela. “Clubes fechados. Nuvens negras sobre a Estátua da Liberdade. Trabalhe muito e seja fantasticamente feliz.” “Querido Jacob”, ela telegrafou de volta, “sinto muito a sua falta. Você é o homem mais fabuloso do mundo. Não me esqueça, querido. Amo você. Jenny.” Chegou o inverno. O filme que Jenny fizera em Long Island foi lançado, juntamente com artigos e entrevistas a seu respeito nas revistas de cinema. Jacob ficava o dia todo em casa, tocando a sonata de Kreutzer na vitrola e lendo suas cartas, mal escritas, porém afetuosas, e os artigos dizendo que ela fora descoberta por Billy Farrelly. Em fevereiro, Jacob ficou noivo de uma velha amiga, então viúva. Foram juntos à Flórida e, em pouco tempo, estavam rosnando um para o outro nos corredores do hotel e durante as partidas de bridge. Assim, decidiram terminar com aquilo. Na primavera, Jacob resolveu fazer uma longa viagem e reservou um camarote no Paris, mas, três dias antes da partida do navio, mudou de idéia e tomou o trem para a Califórnia.

IV. Jenny foi recebê-lo na estação, beijou-o e pendurou-se em seu braço durante todo o percurso até o hotel Ambassador. “Bem, finalmente você chegou”, disse Jenny, quase chorando. “Nunca pensei que o veria por aqui. Nunca pensei!” Sua voz traía um esforço para se controlar. O enfático “Que coisa!”, que tanto podia ser uma exclamação de fascínio, horror, desprezo ou admiração — uma de suas expressões favoritas —, desaparecera e não admitira substitutos. Se seu estado de espírito exigisse expletivos além dos limites de seu repertório, ela se manteria em silêncio. Mas, ao dezessete anos, os meses são anos e Jacob percebeu uma mudança em Jenny; de forma alguma ela continuava a ser uma criança. As coisas pareciam decididas em sua cabeça, nada mais a distraía dos objetivos. O estúdio já não era o acidente maravilhoso, divino; nunca mais ela diria: “Daria tudo para não trabalhar amanhã”. Tornara-se parte de sua vida. As circunstâncias convergiam para uma carreira que agora prosseguiria independentemente de sua vontade. “Se este filme for tão bom quanto o outro — ou seja, se eu estiver bem nele de novo, Hecksher terá de refazer meu contrato. Todo mundo que já viu as tomadas está dizendo que, pela primeira vez, pareço sensual.” “O que são tomadas?” “São as cenas já filmadas, que eles projetam no fim do dia. Estão dizendo que, pela primeira vez, estou sensual.” “Não tinha reparado”, brincou Jacob. “Você não repara nessas coisas. Mas estou mesmo.” “Sei que está”, ele disse e, movido por um impulso impensado, tomou-lhe a mão.

Ela o encarou imediatamente. Ele sorriu, meio segundo atrasado. Mas em seguida ela também sorriu e isso atenuou seu engano. “Jake”, ela gritou, “que maravilha! Você está aqui! Reservei-lhe um quarto no Ambassador. O hotel estava lotado, mas desalojaram alguém porque eu disse que precisava de um quarto. Mandarei meu carro para você dentro de meia hora. Foi bom ter vindo num domingo, porque tenho o dia livre.” Almoçaram no apartamento mobiliado que ela alugara para o inverno. Era em estilo mourisco 1920, herdado de um galã do passado recente. Alguém lhe dissera que a decoração era horrível, por isso ela brincara a respeito; mas, quando ele tentou explorar o assunto, descobriu que ela não sabia por quê. “Seria ótimo se houvesse homens melhores por aqui”, disse Jenny enquanto almoçavam. “Claro que há homens ótimos, mas, quero dizer... ah, você sabe, como em Nova York — homens que saibam mais do que uma mulher. Como você.” Depois do almoço, ela o informou de que iriam a um chá. “Hoje não”, ele objetou. “Gostaria de ficar sozinho com você.” “Está bem”, ela concordou contrariada. “Acho que posso telefonar desmarcando. Pensei que... é uma colunista que escreve para um monte de jornais e eu nunca tinha sido convidada antes. Mas se você não quiser...” Diante daquele quadro, Jacob assegurou-lhe que adoraria acompanhá-la. Aos poucos, descobriu que iriam, não a uma festa, mas a três. “Em minha posição, é o tipo de coisa que se deve fazer”, ela explicou. “Se não, não se conhece ninguém, a não ser os colegas de filmagem, e isso não é bom.” Ele sorriu. “Bem, de qualquer maneira”, ela completou, “é o que todo mundo faz aqui nos domingos à tarde.” No primeiro chá, Jacob percebeu que havia uma enorme preponderância de mulheres sobre homens, e de gente inexpressiva (repórteres, filhas de empregados do estúdio, esposas de montadores), em vez de pessoas realmente importantes. Um jovem ator latino chamado Raffino apareceu por um breve momento, falou com Jenny e saiu; vários astros e estrelas deram o ar de sua graça, mas só falaram dos próprios filhos, com uma domesticidade surpreendente. Outro grupo de celebridades isolava-se num canto, imóveis como estátuas. Havia também um roteirista ligeiramente embriagado e muito excitado, tentando marcar encontros com uma garota atrás de outra. No fim da tarde, a maioria das pessoas parecia levemente alegre e o tom de voz dos presentes estava mais alto em timbre e volume. Jacob e Jenny se retiraram. Na segunda festa, o jovem Raffino — mais um dos inumeráveis candidatos a Valentino — apareceu de novo por um minuto, falou com Jenny um pouco mais atentamente e saiu. Jacob concluiu que esta festa não tinha o brilho da outra. Havia mais gente sentada ao redor da mesa de coquetéis. Jenny — ele percebeu — bebia apenas limonada. Ficou surpreso e bem impressionado com sua distinção e boas maneiras. Sempre falava para uma só pessoa, e não para todos os que estivessem por perto para ouvir; em seguida escutava, sem sentir necessidade de percorrer a sala com os olhos. Fosse aquilo deliberado ou não, notou que, em ambos os chás, cedo ou tarde ela estava conversando com o convidado mais importante. Sua seriedade e o ar de estar dizendo “Esta é a minha oportunidade de aprender alguma coisa” calavam fundo na vaidade de seus interlocutores. Quando saíram para a última festa — uma ceia —, já estava escuro. Anúncios luminosos apregoando lançamentos imobiliários brilhavam em Beverly Hills. Na entrada do Grauman’s Theater, já se formava uma fila enorme sob a chuva fina. “Olhe! Olhe!”, gritou Jenny. Era o filme que ela terminara um mês antes. Saíram do Hollywood Boulevard e entraram por uma rua lateral. Ele a enlaçou e a beijou.

“Jake querido.” Sorriu para ele. “Jenny, você está linda. Não sabia que era tão linda.” Ela olhou para a frente, com firmeza, o rosto meigo e tranqüilo. Uma onda de aborrecimento perpassou por ele, que a apertou com ansiedade quando o carro parou diante de uma mansão iluminada. Entraram num bangalô cheio de gente e fumaça. O ímpeto com que as pessoas haviam se atirado no começo da tarde já se exaurira; tudo se tornara mais vago. “Assim é Hollywood”, explicava uma tagarela que parecia ter estado nas proximidades durante todo o dia. “Nada de grandes agitações aos domingos.” Indicou a anfitriã. “Uma menina doce e simples.” Levantou a voz: “Não é, querida? Uma menina doce e simples?”. A anfitriã respondeu: “É. De quem se trata?”. E a informante de Jacob baixou de novo a voz: “Mas esta sua menina é a mais esperta do estúdio”. O total de drinques que Jacob havia bebido naquela noite já começara a afetá-lo de maneira agradável, mas, por mais que tentasse, o sentido daquela festa lhe escapava. Havia algo tenso no ar, algo que sugeria competição e insegurança. As conversas com os outros homens tornavam-se rapidamente vazias ou excessivamente cordiais, quando não se dissolviam num clima de suspeita e desconfiança. As mulheres eram mais agradáveis. Às onze horas, na copa, Jacob deu-se conta de que não via Jenny havia mais de uma hora. Voltando para a sala, viu quando ela entrou — ostensivamente vindo de fora, porque tirou uma capa dos ombros. Estava com Raffino. Quando se aproximou, Jacob percebeu que ela parecia sem fôlego e que seus olhos brilhavam. Raffino sorriu com amabilidade para Jacob. Poucos minutos depois, ao sair, inclinou-se e sussurrou no ouvido de Jenny, a qual deulhe boa-noite sem esboçar um sorriso. “Tenho de estar no estúdio às oito da manhã”, ela disse a Jacob pouco depois. “Se não for para casa agora, amanhã vou parecer um guarda-chuva molhado. Importa-se, querido?” “Hein? Claro que não!” O carro atravessou as intermináveis distâncias que separavam os lugares naquela cidade. “Jenny, nunca a vi como nesta noite. Encoste sua cabeça em meu ombro.” “Ótimo, estou mesmo cansada.” “É indescritível como você estava radiante.” “Estava como sempre, eu acho.” “Não, não estava.” Sua voz reduziu-se a um sussurro, trêmula de emoção. “Jenny, estou apaixonado por você.” “Jacob, não seja tolo.” “Estou apaixonado por você. Não é estranho, Jenny? Aconteceu assim de repente.” “Você não está apaixonado por mim.” “Você quer dizer que o fato não lhe interessa, não é?” Ele teve uma leve sensação de medo. Jenny libertou-se do círculo de seus braços. “Ora, claro que me interessa. Você sabe que não há ninguém de quem eu goste mais neste mundo.” “Nem o senhor Raffino?” “Ah, meu Deus!”, ela protestou com desprezo. “Raffino não passa de uma criança.” “Amo você, Jenny.” “Não, não ama.” Estreitou-a de novo. Seria sua imaginação ou ela impôs uma breve resistência? Mas deixou-se aconchegar e beijar. “Você sabe que Raffino não quer dizer nada”, ela garantiu.

“Talvez eu esteja com ciúme.” Sentindo-se insistente e pouco atraente, libertou-a. Mas a sensação de medo tinha se tornado uma dor. Embora soubesse que ela estava cansada e pouco à vontade com o que ele dizia, não conseguiu encerrar o assunto. “Acho que ainda não havia notado como você se tornara uma parte importante da minha vida. Não sabia o que estava me faltando, mas agora sei. Quero ficar perto de você.” “Bem, estou aqui.” Ele interpretou suas palavras como um convite, mas, desta vez, ela relaxou entediada em seus braços. Abraçou-a pelo resto do caminho. “O carro o levará até o hotel”, disse Jenny, quando chegaram ao apartamento. “Lembre-se, você irá almoçar comigo amanhã no estúdio.” De repente, os dois se viram numa discussão que esteve a ponto de se tornar uma briga, sobre se era ou não muito tarde para que ele entrasse. Nenhum dos dois parecia avaliar a mudança que a declaração dele provocara no outro. Subitamente, tinham se tornado pessoas muito diferentes — Jacob tentando desesperadamente fazer o relógio voltar àquela noite em Nova York, seis meses antes, Jenny considerando esse comportamento mais de ciúme que de amor. Era como se neve se acumulasse sobre as qualidades de consideração e compreensão que ela conhecia nele, e com as quais se sentia tão bem. “Mas eu não o amo assim”, ela gritou. “Como pode aparecer de uma hora para outra e querer que eu o ame desse jeito?” “É assim que você ama Raffino!” “Juro que não! Nunca nem o beijei — nem isso!” “Hum!” Jacob era agora um pássaro desabrido. Mal podia acreditar no que estava fazendo, mas, enfim, fora acometido por essa coisa ilógica que era o amor. “Um ator!” “Ah, Jake!”, ela gemeu. “Por favor, deixe-me entrar. Nunca me senti tão confusa na vida.” “Eu é que irei embora”, ele disse de repente. “Não sei o que está acontecendo, exceto que estou louco por você e não sei o que estou dizendo. Eu a amo e você não me ama. Acho que já me amou, ou pensou que amava, mas é evidente que já acabou.” “Mas eu o amo.” Ela pensou por um momento; o anúncio verde e vermelho de um posto de gasolina defronte refletiu a luta em seu rosto. “Se você me ama tanto assim, eu me casarei com você amanhã.” “Casar comigo!”, ele exclamou. Jenny estava tão absorta no que ela própria dissera que nem notou sua exclamação. “Eu me casarei com você amanhã”, ela repetiu. “Gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa, e acho que chegarei a amá-lo como você deseja.” Finalmente explodiu num soluço. “Mas... eu não sabia que isto iria acontecer. Por favor, deixe-me só esta noite.” Jacob não conseguiu dormir. Podia ouvir a música do baile do Ambassador e o alarido das garotas do clube à espera de seus namorados. Então um homem e uma mulher começaram a brigar no corredor, continuaram no quarto ao lado e os murmúrios irritados chegavam a seu quarto pela fresta da porta. Por volta das três da manhã foi até a janela e contemplou o claro esplendor das noites da Califórnia. A beleza de Jenny parecia estar em todos os lugares, no gramado defronte, nos tetos dos bangalôs, na música da noite. Estava no quarto, no travesseiro branco, cantava através das cortinas. Seu desejo recriou-a até ela perder todos os vestígios da antiga Jenny, mesmo os da garota que fora recebê-lo na estação aquela manhã. Em silêncio, enquanto se passavam as horas, ele a moldou numa imagem de amor — uma imagem que perduraria tanto quanto o amor em si, ou mesmo mais —, que só pereceria quando ele finalmente dissesse: “Eu nunca a amei”. Lentamente, essa imagem foi criada (a

partir de uma breve ilusão de juventude ou de um velho desejo), até que a única coisa em comum entre a mulher que ele conhecia e a que ele imaginava era o nome. Mais tarde, quando Jacob finalmente permitiu-se dormir por algumas horas, a imagem recriada estava a seu lado, pairando sobre o quarto, entrelaçada em seu coração.

V. “Não me casarei com você se não me amar”, ele disse, quando voltavam do estúdio. Ela esperou, com as mãos postas tranqüilamente no colo. “Acha que eu iria querê-la infeliz, Jenny, sabendo que não me ama?” “Eu o amo. Mas não desse jeito.” “O que significa desse jeito?” Jenny hesitou, os olhos distantes. “Você não me... perturba, Jake. Não sei, houve homens que me perturbaram de alguma maneira quando me tocaram, dançando ou coisa assim. Sei que é bobagem, mas...” “E Raffino, também a perturba?” “Um pouco, não muito.” “E eu, nem um pouco?” “Sinto-me bem e feliz com você.” Ele deveria ter lhe dito que assim era melhor, mas não conseguiu dizê-lo, talvez por não saber se aquilo era verdade ou mentira. “Seja como for eu me casarei com você. Talvez você me perturbe um dia.” Ele riu, mas parou em seguida. “Se eu não a perturbava, como você diz, por que parecia gostar tanto de mim no verão passado?” “Não sei. Talvez porque eu fosse mais jovem. A gente nunca sabe como se sente, não é?” Ela se tornara escorregadia para ele, de um jeito que empresta significados ocultos às mais insignificantes observações. Ao passo que ele, com as grosseiras ferramentas do ciúme e do desejo, tentava criar uma espécie de magia tão etérea e delicada como um grão de pó na asa de uma traça. “Escute, Jake”, ela disse de repente, “aquele advogado da minha irmã — Scharnhorst, não era? — ligou para o estúdio esta tarde.” “Sua irmã vai bem”, ele respondeu, com ar ausente. “Quer dizer que vários homens a perturbam?” “Bem, se eu sentisse isso a respeito de tantos homens, não teria nada a ver com amor, não acha?” “Mas, segundo você, não pode haver amor sem isso.” “Não é nada disso, e você sabe. Apenas lhe contei como me sentia. Você sabe melhor do que eu.” “Não sei de nada.” Havia um homem à espera na entrada do edifício. Jenny saiu e falou com ele; depois, virando-se para Jake, disse baixinho: “É Scharnhorst. Incomoda-se de esperar aqui embaixo enquanto falo com ele? Disse que não levaria mais de meia hora”. Jake esperou, fumando inúmeros cigarros. Dez minutos se passaram além da hora. Foi quando o porteiro lhe acenou: “Depressa!”, ele disse. “A senhorita Prince o chama ao telefone.” A voz de Jenny estava tensa e assustada. “Não deixe Scharnhorst sair! Está descendo as escadas, ou talvez pelo elevador. Traga-o de volta.” Jacob desligou o telefone no momento em que o elevador chegou. Postou-se em frente à porta, barrando a saída. “Senhor Scharnhorst?” “Sim?” O rosto era suspeito.

“Pode subir ao apartamento da senhorita Prince de novo? Ela esqueceu de lhe dizer algo.” “Falo com ela depois.” Tentou forçar a passagem diante de Jacob. Segurando-o pelos ombros, Jacob empurrou-o de volta ao elevador, fechou a porta e apertou o botão do oitavo andar. “Posso mandar prendê-lo por isso!”, gritou Scharnhorst. “É uma violência!” Jacob continuou segurando-o firme. Lá em cima, com pânico nos olhos, Jenny mantinha a porta aberta. Após uma ligeira luta, o advogado concordou em entrar. “O que houve?”, perguntou Jacob. “Conte você”, ela disse. “Ah, Jake, ele quer vinte mil dólares!” “Para quê?” “Para arranjar um novo julgamento para minha irmã.” “Mas ela não tem a menor chance!”, exclamou Jacob. Virou-se para Scharnhorst. “Você sabe muito bem disso.” “Há algumas alternativas técnicas”, disse o advogado, inseguro, “coisas que só um advogado consegue entender. Ela está muito mal na prisão, e sua irmã, tão rica e famosa... A senhora Choynski acha que devia ter outro julgamento.” “Você a convenceu disso, não?” “Ela mandou me chamar.” “Mas a idéia da chantagem foi sua. Suponho que, se a senhorita Prince não dispuser de vinte mil dólares para financiar o novo processo, todo mundo saberá que ela é irmã de uma assassina.” Jenny exclamou: “Foi exatamente o que ele disse!”. “Espere um minuto!” Jacob pegou o telefone. “Western Union, por favor. Western Union? Gostaria de passar o seguinte telegrama.” Deu o nome e endereço de uma conhecida personalidade do mundo político de Nova York. “O telegrama é o seguinte: Condenada sra. Choynski ameaçando irmã, conhecida atriz de cinema, ameaçando denunciar o parentesco PT Pode arranjar com diretor da prisão para suspender visitas até eu chegar aí e explicar situação? PT Avise-me se duas testemunhas de tentativa de chantagem são suficientes para excluir advogado do foro judiciário em Nova York se processo partir de firma tão poderosa quanto Read, Van Tyne, Biggs & Cia., ou de meu tio PT Resposta para hotel Ambassador, Los Angeles. JACOB C. K. BOOTH Esperou até que a portaria lhe repetisse o telegrama, palavra por palavra. “Agora, senhor Scharnhorst”, disse, “o amor à arte não deve ser perturbado por alarmes desse tipo. A senhorita Prince, como pode ver, está bastante aborrecida. Isso ficará claro no seu trabalho amanhã no estúdio, o que poderá desapontar milhões de espectadores. Portanto, não vamos obrigá-la a tomar nenhuma decisão. Aliás, eu e o senhor estaremos saindo de Los Angeles no mesmo trem esta noite.”

VI. O verão passou. Jacob continuou sua vida ociosa, animado apenas pelo fato de que Jenny viria a Nova York no outono. A esta altura já teria havido muitos Raffinos, ele achava, e ela saberia, afinal, que a perturbação provocada por suas mãos e olhos — e lábios — era sempre a mesma. Era o equivalente, em outra escala, aos romances colegiais, aos namoros de férias. E, se ela ainda pensasse que seus sentimentos por ele não fossem de paixão, ele a aceitaria assim mesmo, deixando que a paixão acontecesse depois do casamento, como já acontecera a tantas mulheres.

Suas cartas o fascinavam e confundiam. Em sua inaptidão de expressão, havia lampejos de emoção — falava de eterna gratidão, de sua vontade de vê-lo, mas pareciam reações rápidas e assustadas, provocadas, ele imaginava, pela presença de outros homens. Em agosto, ela foi filmar numa locação e, por algum tempo, houve apenas alguns postais de um deserto perdido no Arizona e, depois, nada. Ele gostou dessa interrupção. Tinha pensado em tudo que havia nele e que poderia repugná-la — sua ostentação, seu ciúme, sua manifesta dependência. Desta vez seria diferente. Ele manteria controle da situação. Ela, pelo menos, o admiraria de novo e veria nele a garantia de uma vida bem ajustada e digna. Duas noites antes de Jenny chegar, Jacob foi ver seu último filme num enorme cinema na Broadway. Era uma história passada numa universidade. Jenny usava um penteado em forma de coque, inspirava o galã a façanhas atléticas e, no final, desaparecia entre a multidão que o aplaudia. Mas havia alguma coisa em seu desempenho: pela primeira vez, a impressionante tonalidade que ele notara em sua voz parecia transferir-se para a sua imagem na tela silenciosa. Cada gesto, cada movimento era pungente e relevante. Outros na platéia começaram a perceber também. Jacob julgou achar isso pela maneira com que a platéia respirava quando ela entrava em cena e pelo reflexo de sua expressividade nos rostos indiferentes dos espectadores. Os críticos também notaram, embora a maioria deles tivesse sido incapaz de definir precisamente sua personalidade. Mas a primeira vez em que Jacob teve real consciência da existência pública de Jenny foi através do comportamento dos outros passageiros que desembarcavam do trem que a trazia. Embora ocupados com seus amigos e bagagens, não deixavam de olhá-la, de dizer seu nome ou de chamar a atenção dos outros para a sua presença. Jenny estava radiante. Havia uma aura de júbilo à sua volta, que parecia fluir dela, como um frasco de perfume que tivesse conseguido aprisionar o êxtase. Aquilo provocou uma transfusão mística, e o sangue voltou a correr pelas veias ressecadas de Nova York. Houve a satisfação do motorista de Jacob quando ela o reconheceu, o rebuliço respeitoso dos empregados do Plaza diante de sua presença, o colapso nervoso do maître do restaurante onde jantaram. Quanto a Jacob, sentia-se agora em total controle de si mesmo. Estava gentil, atencioso, educado, como era natural nele, mas, nesse caso, tudo tivera de ser planejado. Suas maneiras pareciam prometer e delinear sua capacidade de cuidar dela, sua vontade de que ela o quisesse. Após o jantar, o cantinho no restaurante esvaziou-se aos poucos do pessoal do teatro e a sensação de estarem a sós pairou sobre eles. Seus rostos tornaram-se graves, suas vozes mais tranqüilas. “Há cinco meses que não nos vemos”, disse Jacob, olhando para as próprias mãos pensativamente. “Nada mudou em mim, Jenny: Eu a amo com todo o meu coração. Amo o seu rosto, os seus defeitos, a sua mente e tudo em você. A única coisa que quero na vida é fazê-la feliz.” “Eu sei”, ela murmurou. “Puxa, como sei.” “Não sei se ainda há apenas afeto em seus sentimentos em relação a mim. Mas não importa. Se você se casar comigo, descobrirá que as outras coisas acontecerão antes que você se dê conta — e aquilo que você chamou de perturbação lhe parecerá uma brincadeira, porque a vida não é para garotos e garotas, Jenny, e sim para homens e mulheres.” “Jacob”, ela murmurou, “não é preciso que você me diga isso — eu sei.” Levantou os olhos pela primeira vez. “O que quer dizer com isso — que sabe?” “Eu sei o que você quer dizer. Ah, isso é terrível! Jacob, escute! Preciso lhe dizer. Escute, querido, mas não diga nada. Não me olhe. Apenas escute. Jacob, estou apaixonada.” “O quê?”, ele perguntou, atarantado. “Apaixonei-me. É por isso que compreendo como foram bobas aquelas perturbações.”

“Está querendo me dizer que se apaixonou por mim?” “Não.” O terrível monossílabo pareceu levar uma eternidade para cruzar a pequena distância que os separava na mesa: “Não — não — não — não — não!”. “Ah, isto é horrível!”, ela gritou. “Apaixonei-me por um homem que conheci durante a filmagem no deserto. Não queria — tentei resistir, mas a primeira coisa que descobri quando cheguei lá é que tinha me apaixonado e não podia fazer nada. Escrevi a você pedindo que fosse até lá, mas não mandei a carta. Eu estava louca por aquele homem, mas não tinha coragem de me declarar a ele. Não conseguia dormir.” “É um ator?”, ele ouviu a sua voz, vinda de alguma profundeza. “Raffino?” “Ah, não, não, não! Espere, deixe-me contar. Aquilo se arrastou por três semanas e cheguei a pensar sinceramente em me matar, Jake. A vida não valeria nada se eu não o tivesse. Mas, uma noite, por acaso, ficamos a sós num carro. Ele me agarrou e me obrigou a dizer que eu o amava. Ele sabia — não podia deixar de saber.” “Foi uma coisa... incontrolável, não?”, disse Jacob, tentando ficar firme. “Compreendo.” “Ah, eu sabia que você ia entender, Jake! Você entende tudo. Você é a melhor pessoa do mundo, Jake, eu não sei disso?” “Vai se casar com ele?” Ela fez que sim, lentamente. “Disse a ele que, antes, eu teria que vir a Nova York ver você.” À medida que seu temor diminuía, ela percebeu melhor a extensão da dor de Jacob e seus olhos se encheram de lágrimas. “Só acontece uma vez, Jake, desse jeito. Isso não me saía da cabeça naquelas semanas em que não tinha coragem de dizer a ele que estava apaixonada — porque, se ele não me quisesse, eu nunca mais me apaixonaria e, nesse caso, para que viver? Ele estava dirigindo o filme, e sentia o mesmo a meu respeito.” “Compreendo.” Como antes, seus olhos prenderam-se aos dele como mãos. “Ah, Ja-a-ke!” Com aquele repente de compaixão, passou a força do primeiro impacto. Os dentes de Jacob cerraram-se de novo e ele lutou desesperadamente para esconder sua miséria. Disfarçando suas expressões com uma máscara de ironia, mandou pedir a conta. Quando entraram num táxi a caminho do Plaza Hotel, era como se já se tivesse passado uma hora. Ela se agarrou a ele: “Jake, diga que está tudo bem! Diga que compreende! Jake, querido, meu melhor amigo, diga que compreende!”. “Claro que compreendo, Jenny.” Sua mão acariciou a dela automaticamente. “Ahhh, Jake, você está se sentindo péssimo, não está?” “Vou sobreviver.” “Ah-h-h-h, Jake!” Chegaram ao hotel. Antes de sair do carro, Jenny olhou-se no espelhinho de sua bolsa e virou a gola de seu casaco de pele. No saguão, Jacob esbarrou em diversas pessoas e pediu desculpas, com voz tensa e inconvincente. O elevador se abriu. Jenny, com o rosto ausente e cheio de lágrimas, entrou e estendeu a mão em sua direção. “Jake”, disse mais uma vez. “Boa noite, Jenny.” Ela se virou para o interior da cabine e a porta gradeada se fechou. O ascensorista arrancou. Jacob quis gritar: “Cuidado com esse elevador! Não suba tão depressa!”. Voltou-se e saiu pelo saguão como um cego. “Eu a perdi”, murmurou a si mesmo, assustado. “Eu a

perdi!” Caminhou pela rua 59 em direção a Columbus Circle e depois desceu a Broadway. Estava sem cigarros — esquecera-os no restaurante — e entrou numa tabacaria. Houve uma ligeira confusão a respeito do troco e alguém na loja riu. Quando saiu à rua, pareceu confuso por um momento. Em seguida, como se finalmente se desse conta de sua nova realidade, sentiu-se imensamente cansado. Como quem relê uma história trágica esperando que o final termine de outra maneira, obrigou a memória a voltar àquela manhã, àquela primeira manhã do ano anterior. Mas o fio da trama desenrolou-se com a certeza de que chegaria ao fim naquele apartamento do Plaza Hotel, onde ela se separara dele para sempre. Caminhou pela Broadway. Um grande luminoso na porte-cochère do Capitol Theater piscava na noite: “Carl Barbour e Jenny Prince”. O nome tomou-o de assalto, quando um transeunte pronunciou-o. Parou e observou. Outros olhos dirigiram-se para o luminoso, muitas pessoas se viraram e entraram no cinema. Jenny Prince. Agora que ela não mais lhe pertencia, seu nome assumia um significado próprio. Brilhava na fachada, frio e impenetrável, desafiando a noite. Jenny Prince. “Venha se deslumbrar com minha beleza”, parecia dizer. “Realize seu sonho e se case comigo por uma hora.” Jenny Prince. Não era verdade — ela estava no Plaza Hotel, apaixonada por outro homem. Mas seu nome brilhava com insistência. “Eu amo o meu público. Ele é maravilhoso comigo.” Ondas de dor invadiram-no por dentro, com cristas altas de desespero, afogando-o em intenso sofrimento. “Nunca mais. Nunca mais.” Orgulhoso e inatingível, o nome na fachada agora parecia olhar para ele. Jenny Prince. Ela estava lá! Toda ela, o melhor dela — o talento, o poder, o triunfo, a beleza. Jacob seguiu uma parte da multidão e comprou um ingresso na bilheteria. Confuso, olhou ao redor do enorme saguão. Então viu uma porta e entrou. Lá dentro, sentou-se numa poltrona e foi engolfado pela escuridão. (1935)

Majestade

Incrível não é que as pessoas, no fim das contas, se dêem melhor ou pior do que se esperava. Incrível é como se mantêm à tona, cumprem as expectativas e parecem levadas por seu inevitável destino. Um de meus orgulhos é ninguém jamais ter me desapontado desde que fiz dezoito anos e ter aprendido a distinguir entre uma pessoa de real valor e outra com um simples dom para a enganação. Muitos dos enganadores que conheci no passado são, até hoje, apenas enganadores bem-sucedidos. Emily Castleton nasceu em Harrisburg numa casa de tamanho médio, veio para Nova York aos dezesseis anos e foi morar numa casa bem maior. Estudou no colégio Briarly, mudou-se para uma casa enorme, depois para uma mansão em Tuxedo Park e finalmente para outro país, onde fez uma série de coisas que estavam na moda e saiu em todos os jornais. No passado, quando estava sendo apresentada para a sociedade, um daqueles pintores franceses dogmáticos a respeito das belas mulheres americanas incluiu-a, com outras onze celebridades públicas e semipúblicas, entre os perfeitos tipos da América. Na época, não faltavam homens para concordar com ele. Ela era relativamente alta, com traços grandes e bonitos, olhos com tal extensão de azul que não havia como não notá-los e uma boa quantidade de cabelo louro e espesso, imponente e brilhante. Seus pais não sabiam muito sobre o novo mundo que tinham conquistado, daí que Emily teve de aprender tudo sozinha e envolveu-se em várias situações que desgastaram um pouco seu viço original. Mesmo assim, ainda havia viço de sobra. Passou por noivados e seminoivados, alguns flertes curtos e apaixonados, e, aos vinte e dois anos, por um tremendo caso que a amargurou e a fez vagar por vários continentes em busca de felicidade. Tornou-se “artista”, como acontece nessa idade com muitas garotas ricas e solteiras, porque as pessoas com pendores “artísticos” parecem ter algum segredo, algum refúgio interior, alguma fuga. Mas a maioria de suas amigas já se casara e a vida de Emily parecia um grande desapontamento para seu pai. E assim, aos vinte e quatro anos, com o casamento mais na cabeça que no coração, Emily voltou. Era um ponto a menos em sua carreira, e ela sabia disso. Não se dera muito bem na vida. Era uma das garotas mais queridas e bonitas de sua geração, com charme, dinheiro e alguma fama, mas essa geração estava em busca de novos caminhos. Ao primeiro sinal de desprezo de uma antiga colega, agora uma jovem “matrona”, ela foi para Newport e se deixou conquistar por William Brevoort Blair. Imediatamente voltou a ser a incomparável Emily Castleton. A mulher perfeita, criada pelo pintor francês, voltou aos jornais. O evento mais comentado de outubro envolvendo a classe ociosa foi o dia de seu casamento. Um esplendor para ficar na história dos casamentos da sociedade [...]. Harold Castleton instalou uma série de pavilhões, no valor de cinco mil dólares cada um, interligados como tendas de circo, nos quais se darão a recepção, a ceia e o baile [...]. Cerca de mil convidados, muitos

deles líderes empresariais, misturados com os famosos do cenário social [...]. Estima-se que o valor dos presentes de casamento chegue a duzentos e cinqüenta mil dólares... Uma hora antes da cerimônia, que se daria na igreja de St. Bartholomew, Emily sentou-se diante da penteadeira e contemplou seu rosto no espelho. Naquele momento, constatou que estava um pouco cansada do próprio rosto e sentiu-se deprimida com a idéia de que ele exigiria cada vez mais cuidados nos próximos cinqüenta anos. “Eu queria ser feliz”, pensou em voz alta, “mas só me lembro de coisas tristes.” Sua prima, Olive Mercy, sentada a seu lado na cama, concordou: “Todas as noivas são tristes”. “É um desperdício”, disse Emily. Olive reagiu com impaciência. “Desperdício de quê? Nenhuma mulher é completa até se casar e ter filhos.” Por um momento, Emily não respondeu. Depois, disse lentamente: “Sim, mas filhos de quem?”. Pela primeira vez na vida, Olive, que adorava Emily, quase a odiou. Qualquer garota naquela festa daria tudo para se casar com Brevoort Blair — inclusive Olive. “Você é uma felizarda”, disse. “Deu tanta sorte que nem desconfia. Devia levar uma surra por falar assim.” “Vou aprender a amá-lo”, debochou Emily. “O amor virá com o tempo. Puxa, que beleza de futuro, hein?” “Por que você faz questão de ser tão pouco romântica?” “Ao contrário, sou a pessoa mais romântica que conheço. Sabe o que penso quando Brevoort me abraça? Que, se olhar para ele, vou ver os olhos de Garland Kane.” “Mas, então, por que...” “Ao entrar no avião de Brevoort, outro dia, só me lembrava do dois-lugares do comandante Marchbanks, no qual voamos sobre o canal da Mancha, apaixonadíssimos um pelo outro e sem nem tocar no assunto, por causa da mulher dele. Não me arrependo desses homens; só me arrependo da parte de mim que ficou com eles. Só tenho os restos para entregar a Brevoort numa cestinha cor-derosa. Deveria haver algo mais. Mesmo quando me deixava levar pela paixão, pensava que sempre sobraria alguma coisa para aquele que eu finalmente escolhesse. Pelo visto, isso não aconteceu.” Completou dizendo: “Não me conformo”. A situação não era menos irritante para Olive, mesmo ela se mostrando compreensiva. Se não fosse ela a prima pobre, já lhe teria dito umas verdades. Emily era uma moça mimada — oito anos de homens em sua vida tinham-na convencido de que ninguém era bom o suficiente para ela, e Emily tomara esse fato como verdade. “Você está nervosa.” Olive tentou disfarçar o aborrecimento na voz. “Por que não repousa por uma hora?” “Está bem”, respondeu Emily, ausente. Olive desceu. No salão inferior, esbarrou com ninguém menos que Brevoort Blair vestido de noivo, com cravo branco e tudo, e num estado de considerável agitação. “Ah, desculpe”, ele deixou escapar. “Queria ver Emily. É sobre o anel — você sabe que anel. Estou com quatro anéis para ela escolher, mas até hoje ela não me disse qual preferia, e não posso ficar segurando todos eles na igreja até que ela decida.” “Por acaso sei que ela prefere aquele simples, de platina. Mas se você quiser vê-la...” “Não, não, obrigado. Não quero incomodá-la.” Estavam muito próximos um do outro e, mesmo quando Brevoort foi embora, definitivamente

comprometido, Olive não podia deixar de pensar em como se parecia com ele. Cabelo, cor, traços — podiam ser irmãos — e partilhavam o mesmo temperamento tímido e sério, o mesmo jeito direto. Tudo isso faiscou em sua mente por um instante, mas prevaleceu a idéia de que, quem sabe, Emily, loura e agitada, com sua vitalidade e amplitude, fosse realmente melhor para Brevoort, em todos os sentidos; só que, ao fim, uma onda perfeita de ternura, de ânsia e dó puramente física tomou-a por completo e a fez ver que só precisava dar um passinho à frente para cair nos braços de Brevoort, se eles se abrissem para ela. Em vez disso, Olive deu um passo para trás, renunciando a ele como se ainda o tocasse com a ponta dos dedos e só então recolhesse as mãos. Uma vibração em suas emoções deve ter se imiscuído na consciência de Brevoort porque, de repente, ele disse: “Vamos continuar amigos, não? Por favor, não pense que estou levando Emily embora. Sei perfeitamente que nunca serei dono dela — ninguém jamais será dono dela —, nem quero.” Enquanto Brevoort falava, ela se despediu dele em silêncio, o único homem que sempre desejara para si. Amou o jeito absorto e hesitante com que ele pôs o casaco e o chapéu e forçou esperançosamente a maçaneta para o lado errado da porta. Quando Brevoort saiu, Olive foi para a sala; uma sala gloriosa e imponente, com afrescos de bacanais, maciços candelabros e retratos de figuras do século XVIII que poderiam ser os ancestrais de Emily, mas não eram, e justamente por isso, pareciam lhe assentar ainda mais. E ali ela ficou, como sempre à sombra de Emily. Pela porta que levava à pequena e inestimável nesga de grama da rua 60, agora cercada pelos pavilhões, entrou seu tio, o sr. Harold Castleton. Vinha bebericando champanhe. “Olive, minha linda querida”, ele gritou, emocionado. “Olive, meu benzinho, Emily finalmente tomou jeito. Está ótima, como eu esperava. Os melhores sempre tomam jeito, não é? Como os verdadeiros puros-sangues. Cá entre nós, eu já estava pensando que Deus dera demais a Emily e que ela nunca ficaria satisfeita, mas, agora, voltou à terra como um...”, procurou em vão por uma metáfora, “... como um puro-sangue, e vai descobrir que não é um lugar ruim.” Olhou-a mais de perto: “Você estava chorando, Olivinha”. “Só um pouco.” “Não importa”, ele disse, magnânimo. “Se não estivesse tão feliz, eu também choraria.” Mais tarde, ao partir com as duas outras damas de honra para a igreja, Olive sentiu que a solene pulsação do grande casamento parecia começar com a vibração do carro. Na porta, ela seria substituída pelo órgão e, mais tarde, palpitaria nos violoncelos e violas do baile, até desaparecer aos poucos no carro que levaria os noivos. A multidão era compacta ao redor da igreja e, a três metros dela, o ar estava carregado de perfume, otimismo e roupas novas. Passado o aglomerado de chapéus na nave da igreja, as duas famílias sentaram-se nos bancos da frente, uma de cada lado. Os Blair — havia uma semelhança de família em suas expressões de tênue condescendência, partilhada tanto pelos genros quanto pelos verdadeiros Blair — estavam representados pelos dois Gardiner Blair, pai e filho; Lady Mary Bowes Howard, née Blair; a sra. Potter Blair; a sra. princesa Potowki Parr Blair, née Inchbit; a srta. Gloria Blair; o jovem Gardiner Blair iii e os ramos aparentados, ricos e pobres, dos Smythe, Bickle, Diffendorfer e Hamn. No outro lado da nave, os Castleton causavam uma impressão menor — o sr. Harold Castleton, sr. e sra. Theodore Castleton e filhos, Harold Castleton Jr. e, vindo de Harrisburg, o sr. Carl Mercy e duas tias velhas de sobrenome O’Keefe, escondidas num canto. Meio que para surpresa delas próprias, as duas tias tinham sido enfiadas numa limusine e vestidas dos pés à cabeça

por uma costureira da moda naquela manhã. Na sacristia, enquanto as damas de honra adejavam como pássaros com seus chapéus desabados, havia as derradeiras aplicações de batom e ajustes de alfinetes antes da chegada de Emily. Elas representavam diversas épocas da vida de Emily — uma colega da escola em Briarly, uma última amiga solteira dos seus tempos de debutante, uma companheira de viagem à Europa e a garota que ela visitara em Newport, quando conheceu Brevoort Blair. “Eles contrataram Wakeman”, disse esta última, de pé na porta e ouvindo a música. “Ele tocou no casamento de minha irmã, mas no meu é que não vai tocar.” “Por que não?” “Ora, está tocando a mesma coisa o tempo todo ‘At dawning’. Já tocou isso umas dez vezes.” Naquele momento, outra porta se abriu e a cabeça solícita de um rapaz apareceu. “Quase prontas?”, perguntou para a dama de honra mais próxima. “Brevoost está tendo um pequeno chilique. Está experimentando colarinho atrás de colarinho.” “Fique calmo”, respondeu a moça. “A noiva sempre se atrasa alguns minutos.” “Alguns minutos!”, protestou o jovem. “Você chama isso de alguns minutos? A turba já começou a se agitar lá fora como uma platéia de circo e o organista está tocando a mesma música há mais de meia hora. Vou pedir que ele toque um jazz.” “Que horas são?”, perguntou Olive. “Cinco e quinze, cinco e dez.” “Talvez ela esteja presa num engarrafamento.” Olive silenciou quando o sr. Harold Castleton, seguido por um padre agitado, adentrou o recinto em busca de um telefone. E ali começou uma azáfama de gente que entrava, uma a uma, depois aos pares, até que a sacristia estivesse entupida de parentes e de confusão. “O que está acontecendo?” Um motorista entrou e disse alguma coisa, excitado. Harold Castleton soltou um palavrão e, com o rosto afogueado, saiu em direção à porta, atropelando as pessoas. Houve uma tentativa de evacuar a sacristia e, em seguida, como se para equilibrar a barafunda, uma onda de vozes saiu do fundo da igreja e começou a subir ao altar, cada vez mais alta, mais rápida e mais excitada, sempre crescente, apoderando-se de todo mundo, até transformar-se num suave bramido. O anúncio do altar, de que o casamento tinha sido adiado, mal foi ouvido — naquele momento, todos já se sentiam personagens de um escândalo que tomaria a primeira página dos jornais: o de que Brevoort Blair fora abandonado ao pé do altar e que Emily Castleton fugira.

II. Quando Olive chegou, havia mais de dez repórteres à porta da casa dos Castleton na rua 60, mas ela estava tão concentrada em seu objetivo que nem ouviu as perguntas. Queria desesperadamente consolar um certo homem de quem nem deveria se aproximar. Por isso, como que para substituí-lo, procurou seu tio Harold. Entrou pelos pavilhões de cinco mil dólares, onde os fornecedores do banquete e os empregados continuavam esperando numa respeitosa e funérea meia-luz, como se alguma coisa ainda fosse acontecer, entre bandejas de caviar e peito de peru e um piramidal bolo de casamento. No andar de cima, Olive encontrou o tio sentado num banquinho, diante da penteadeira de Emily. Os artigos de maquiagem e o repertório da vaidade feminina, dispersos à sua frente, faziam de sua imprópria presença em tal lugar um símbolo daquela catástrofe maluca. “Ah, é você.” A voz dele parecia indiferente. Tinha envelhecido nitidamente em duas horas. Olive enlaçou seus ombros curvados.

“Lamento tanto pelo senhor, tio Harold.” De repente, ele despejou uma torrente de palavrões, silenciou, e uma única e imensa lágrima brotou lentamente de um olho. “Preciso de meu massagista”, disse. “Mande McGregor chamá-lo.” Deu um longo suspiro entrecortado, como uma criança respirando depois de chorar, e Olive viu que suas mangas estavam cobertas com uma camada de pó-de-arroz da penteadeira, como se tivesse se debruçado sobre ela, chorando. “Chegou um telegrama”, ele gaguejou. “Está em algum lugar.” E acrescentou, bem devagar: “De agora em diante, minha filha é você”. “Ah, não, o senhor não deve dizer isso!” Abrindo o telegrama, ela leu: NÃO CONSEGUI PT TALVEZ EU SEJA UMA BOBA MAS ASSIM ACABA MAIS RÁPIDO PT LAMENTO POR VOCÊS EMILY Depois de chamar o massagista e destacar um criado para ficar à porta do tio, Olive foi para a biblioteca, onde um confuso secretário tentava não dizer nada para um repórter insistente e perguntador. “Estou tão aborrecido, senhorita Mercy”, ele dizia, num falsete desesperado. “Tão aborrecido que me deu até dor de cabeça. Há meia hora penso que estou ouvindo música vindo do baile.” Então ocorreu a Olive que ela também estava ficando histérica. De fato, nos intervalos do rumor do tráfego, vazava distinta e cristalina uma melodia: ... Is she fair Is she sweet I don’t care — cause I can’t compete — Who’s she… Desceu as escadas correndo e atravessou a sala, com a canção cada vez mais alta em seus ouvidos. Na entrada do primeiro pavilhão, parou estupefata. Cerca de dez jovens casais deslizavam pelo salão de lona, à música de uma orquestra pequena, mas sem dúvida profissional. No bar, num dos cantos, havia outros jovens, e meia dúzia dos encarregados do serviço preparava coquetéis e abria champanhes. “Harold!”, ela chamou, imperativa, um dos dançarinos. “Harold!” Um rapaz alto, de dezoito anos, entregou seu par a um colega e veio falar com ela. “Olá, Olive. Como papai está reagindo?” “Harold, que diabo...” “Emily é louca”, ele disse, como se a consolasse. “Sempre falei a você que Emily era louca. Doida varrida. Sempre foi.” “Mas que idéia é esta?” “Isto?” Olhou em volta com ar de inocência. “Ah, são alguns dos rapazes de Cambridge que vieram comigo.” “Mas... dançando!” “Ora, ninguém morreu, não é? Pensei que podíamos aproveitar um pouco essa...” “Mande essa gente embora”, disse Olive.

“Por quê? Que mal há nisto? E eles vieram de longe, de Cambridge...” “Simplesmente não fica bem!” “Mas eles não estão nem ligando, Olive. A irmã de um deles fez a mesma coisa — a diferença é que fugiu no dia seguinte, não na véspera. Um monte de gente faz isso todo dia.” “Mande os músicos embora, Harold”, disse Olive com firmeza, “senão vou chamar seu pai.” Obviamente, ele achava que nenhuma família devia sentir-se desonrada por um episódio de tal magnitude, mas, mesmo relutante, concordou. O mordomo assistiu, deprimido, à remoção do estoque de champanhe, e os jovens, ainda que registrando o insulto, saíram indiferentes para a noite mais tolerante. Sozinha, com a sombra — a sombra de Emily — que pairava na casa, Olive sentou-se na sala para pensar. O mordomo apareceu na porta. “É o senhor Blair, senhorita Olive.” Ela se pôs de pé, tensa. “Com quem ele quer falar?” “Ele não disse. Apenas chegou.” “Diga-lhe que estou aqui.” Brevoort entrou com um ar mais de abstração que de depressão. Cumprimentou Olive de longe e sentou-se ao banquinho do piano. Ela queria dizer-lhe “Venha aqui. Ponha a cabeça no meu ombro. Não dê importância”. Mas ela também queria chorar e, por isso, não disse nada. “Dentro de três horas”, ele observou com tranqüilidade, “já teremos os matutinos. Há uma banca de jornais na rua 59...” “Isso é uma tolice...”, ela começou. “Não sou um homem superficial”, ele a interrompeu, “mas minha maior preocupação agora é com os jornais. Mais tarde, haverá um respeitoso silêncio dos parentes, amigos e colegas de negócios. Quanto ao caso em si, estou surpreso de não estar me importando a mínima.” “Eu não daria importância a nada.” “Estou até grato a ela por ter feito isso a tempo.” “Por que não se afasta um pouco?” Olive inclinou-se para ele com sinceridade. “Vá para a Europa até a coisa esfriar.” “Esfriar!” Ele riu. “Essas coisas não esfriam. Um certo ar de gozação irá me acompanhar pelo resto da vida.” Ele resmungou. “Tio Hamilton já correu para Park Row a fim de fazer a ronda das redações dos jornais. Ele é da Virgínia e foi inábil o suficiente para usar a expressão ‘dar uma surra’ para um editor. Mal posso esperar para ver o tal jornal.” Interrompeu-se. “Como está o senhor Castleton?” “Ele gostará de saber que você veio perguntar.” “Não vim para isso.” Hesitou. “Vim para lhe fazer uma pergunta. Quero saber se você se casaria comigo em Greenwich amanhã de manhã.” Por um minuto, Olive sentiu-se precipitada no espaço; emitiu um som estranho; sua boca escancarou-se. “Sei que você gosta de mim”, ele continuou, calmamente. “Para dizer a verdade, já cheguei a pensar que me amava um pouco, se me perdoa a presunção. Aliás, você se parece muito com uma garota que já me amou, então talvez...” Seu rosto estava róseo de vergonha, mas ele seguiu amargamente em frente. “Enfim, gosto demais de você e, seja qual for o sentimento que eu tivesse por Emily, já se evaporou.” O estrondo e o alarme dentro dela pareciam tão altos que ele devia estar ouvindo. “Será um grande favor que você me estará fazendo”, continuou. “Meu Deus, sei que isso parece

meio louco, mas o que podia ser mais louco do que essa tarde inteira? Veja bem, se você se casar comigo, os jornais vão publicar uma matéria bem diferente; vão pensar que Emily preferiu sair do caminho para nos deixar livres, e a piada acabará se voltando contra ela no fim das contas.” Lágrimas de indignação vieram aos olhos de Olive. “Acho que devo tentar entender seu orgulho ferido, mas você não percebe que essa proposta é um insulto?” O rosto dele caiu. “Desculpe”, ele disse depois de uma pausa. “Acho que fui um cretino só de pensar nisso, mas todo homem odeia perder toda a dignidade por causa do capricho de uma garota. Agora vejo que é impossível. Desculpe.” Ele se levantou e apanhou a bengala. Estava se dirigindo à porta quando Olive sentiu o coração subir-lhe à garganta e uma onda irresistível de autopreservação tomou-a por inteiro, derramando-se sobre seus escrúpulos e seu orgulho. Os passos dele ressoavam no hall. “Brevoort!”, ela chamou. Correu para o hall. Ele se virou. “Brevoort, como era mesmo o nome do jornal — o jornal aonde foi seu tio?” “Por quê?” “Porque ainda não deve ser muito tarde para eles mudarem a matéria, se eu telefonar agora. Vou dizer a eles que nos casamos esta noite!”

III. Há uma turma em Paris que não passa de um prolongamento da sociedade americana. As pessoas que se mudam para lá estão conectadas por centenas de fios à terra natal, e suas diversões, excentricidades e altos e baixos são um livro aberto para amigos e parentes em Southampton, Lake Forest ou Back Bay. Assim, durante sua primeira temporada européia, as andanças de Emily, seguindo as estações no continente, eram publicamente conhecidas. Mas, a partir do dia em que deixou Nova York, um mês depois do casamento que não houve, ela desapareceu de vista. Às vezes sabia-se de uma carta para seu pai, um ocasional rumor de que estava no Cairo, em Constantinopla ou na menos freqüentada Riviera — só isso. Certa vez, um ano depois, o sr. Castleton esteve com ela em Paris, mas, como ele disse a Olive, o encontro só serviu para lhe fazer mal. “Havia alguma coisa”, ele disse, vagamente, “como se... como se Emily estivesse pensando em uma porção de coisas fora do meu alcance. Foi agradável, mas meio automático e formal. Ela perguntou por você.” Apesar de sua sólida posição, com uma filha de três meses e um belo apartamento na Park Avenue, Olive sentiu o coração descompassar-se. “O que ela disse?” “Adorou saber sobre você e Brevoort.” E acrescentou para si mesmo, com um desapontamento que não conseguia esconder: “Embora você só tenha capturado o melhor partido de Nova York depois que ela o jogou fora...”. Mais de um ano depois dessa conversa, a voz de seu secretário ao telefone perguntou a Olive se o sr. Castleton poderia vê-los naquela noite. Foram encontrar o velho andando em sua biblioteca num estado de agitação. “Bem, aconteceu”, ele declarou com veemência. “As pessoas não ficam paradas; ninguém fica parado. Pode-se subir ou descer neste mundo. Emily preferiu descer. Parece estar chegando ao fundo

do poço. Já ouviram falar de um homem que me foi descrito como” — referia-se a uma carta que trazia na mão — “um vagabundo chamado Petrocobesco? Ele se faz passar por príncipe — príncipe Gabriel Petrocobesco —, aparentemente de... de lugar nenhum. Esta carta me foi mandada por Hallam, meu funcionário na Europa, e traz um recorte do Matin, de Paris. Aparentemente, esse cavalheiro foi convidado pela polícia a deixar Paris e, na pequena entourage que partiu com ele, estava uma garota americana, srta. Castleton, ‘de quem se diz ser filha de um milionário’. O grupo foi levado até a estação pelos gendarmes.” Brandia o recorte e a carta para Brevoort Blair com dedos trêmulos. “O que você entende por isto? Emily chegar a esse ponto!” “É mal, muito mal”, disse Brevoort, franzindo a testa. “É o fim. Achei que, ultimamente, suas retiradas de dinheiro estavam muito grandes, mas nunca suspeitei de que estivesse sustentando...” “Pode ser um engano”, sugeriu Olive. “Talvez seja outra senhorita Castleton.” “Não, é Emily. Hallam investigou. É Emily, que teve medo de mergulhar na correnteza limpa da vida, e que agora sai nadando no esgoto.” Chocada, Olive sentiu o gosto agudo do destino em sua definitiva diversidade. Ela, com uma mansão em Westbury Hills, e Emily metida num vergonhoso escândalo com um aventureiro deportado. “Sei que não tenho o direito de lhes pedir isto”, continuou o sr. Castleton. “Menos ainda o direito de pedir a Brevoort qualquer coisa relacionada a Emily. Mas estou com setenta e dois anos, e Fraser já disse que, se eu continuar adiando um tratamento de saúde por mais uma quinzena, ele não se responsabiliza, e aí Emily ficará sozinha para sempre. Gostaria que vocês antecipassem sua ida à Europa por dois meses e a trouxessem de volta.” “Mas o senhor pensa que nós temos toda essa influência?”, perguntou Brevoort. “Não vejo por que ela me escutaria.” “Não há mais ninguém. Se vocês não forem, eu terei de ir.” “Ah, não”, disse Brevoort rapidamente. “Vamos fazer o que pudermos, não vamos, Olive?” “Claro.” “Tragam-na de volta, não importa como, mas tragam-na de volta. Podem até levá-la para um tribunal e jurar que é louca.” “Está bem. Vamos fazer o possível.” Apenas dez dias depois desse encontro, o casal Brevoort Blair procurou o funcionário do sr. Castleton em Paris para se inteirar dos detalhes. Eram muitos, mas insatisfatórios. Hallam vira Petrocobesco em vários restaurantes — um sujeito baixinho e gordo, com um olhar lúbrico e atraente e uma sede inestancável. Era de alguma nacionalidade obscura e vinha zanzando pela Europa havia vários anos, vivendo não se sabia de quê — provavelmente à custa de americanos, embora Hallam soubesse que, ultimamente, mesmo os círculos mais fronteiriços da sociedade internacional estavam fechados para ele. Sobre Emily, Hallam sabia muito pouco. Os dois tinham sido vistos na semana anterior em Berlim e, na véspera, em Budapeste. Era provável que uma figura tão indesejável como Petrocobesco tivesse de se registrar na polícia aonde quer que chegasse, e essa era a linha de investigação que ele recomendava aos Blair. Quarenta e oito horas mais tarde, acompanhados pelo vice-cônsul americano, foram ao chefe de polícia em Budapeste. O policial falou rapidamente em húngaro com o vice-cônsul, que, em seguida, passou-lhes o resumo de seu comentário — o casal Blair chegara tarde demais. “Para onde eles foram?”

“Ele não sabe. Recebeu ordens para deportá-los e eles foram embora ontem à noite.” De repente, o policial escreveu algo num pedaço de papel e, com uma sucinta observação, estendeu-o ao vice-cônsul. “Ele diz que devemos tentar isto aqui.” Brevoort olhou para o papel. “Sturmdorp — onde fica isso?” Outra rápida conversa em húngaro. “A cinco horas daqui num trem local que sai às terças e sextas. Hoje é sábado.” “Podemos contratar um carro no hotel”, disse Brevoort. Prepararam-se para partir depois do jantar. Era uma dura viagem, que varou a noite pela planície húngara. Em certo momento, Olive acordou de um sono agitado e viu Brevoort e o motorista trocando um pneu; e, depois, de novo, quando pararam num riacho enlameado, de onde se enxergavam as luzes dispersas de uma cidade. Dois soldados num uniforme estranho espiaram para dentro do carro. Cruzaram uma ponte e seguiram uma rua estreita e torta, até a única estalagem de Sturmdorp. Os galos já estavam cantando quando eles desabaram sobre uma cama dura. Olive acordou com a certeza de que tinham chegado a Emily; e, com isso, veio a velha sensação de impotência diante do temperamento da prima; por um momento, o passado e a presença dominante de Emily voltaram inteiros, e pareceu-lhe uma presunção estarem ali. Mas a firmeza de propósito de Brevoort reanimou-a, e a confiança já lhe voltara quando desceram. O proprietário falava um americano fluente, aprendido em Chicago antes da guerra. “Vocês já não estão na Hungria”, ele explicou. “Cruzaram a fronteira para Czjeck-Hansa. É um paizinho com duas cidades, esta e a capital. Não exigimos visto para os americanos.” Deve ser por isso que eles vieram para cá, pensou Olive. “Talvez o senhor pudesse nos dar alguma informação sobre pessoas de fora”, disse Brevoort. “Estamos procurando uma americana...” Descreveu Emily sem mencionar seu provável companheiro. Enquanto fazia isso, uma estranha transformação se operou no rosto do estalajadeiro. “Deixe-me ver seus passaportes”, disse. E então: “E por que querem encontrá-la?”. “Esta senhora é prima dela.” O estalajadeiro hesitou momentaneamente. “Acho que talvez eu consiga encontrá-la para vocês”, disse. Chamou o porteiro; houve rápidas instruções numa arenga incompreensível. Em seguida: “Sigam esse rapaz — ele os levará.” Foram conduzidos por ruas imundas até uma casa decadente nos limites da cidade. Um homem com um rifle de caça, descansando no lado de fora, aprumou-se e falou rispidamente com o porteiro, mas, depois de uma troca de frases, subiu as escadas e bateu à porta. Quando ela se abriu, uma cabeça espiou para fora; o porteiro falou de novo e entraram. Estavam num quarto grande e sujo que poderia ter sido parte de uma casa de cômodos para pobres em qualquer parte do Ocidente — paredes descoloridas, poltronas rasgadas, uma cama disforme e indícios de que, apesar da indigência, contivera a fantasmagórica mobília de décadas anteriores, como se podia ver pelos anéis de poeira e lugares mais gastos. No meio do quarto postava-se um homem baixinho e forte, com olhos preguiçosos e um nariz adunco sobre uma boca pequena e doce, mas deteriorada, que olhou atentamente para eles quando abriram a porta; depois, com uma única exclamação de desprazer — “Chut!”, — afastou-se impacientemente. Havia outras pessoas no quarto, mas Brevoort e Olive viram apenas Emily, reclinada numa chaise longue com os olhos semicerrados.

Ao vê-los, seus olhos se abriram em meigo espanto; fez um gesto de quem ia saltar para eles, mas, em vez disso, apenas estendeu a mão. Sorriu e disse seus nomes numa voz clara e educada, menos um cumprimento do que uma espécie de explicação para os outros da presença deles ali. À menção de seus nomes, uma relutante amenidade substituiu a rabugice no rosto do homenzinho. As moças se beijaram. “Tutu!”, disse Emily, como se o chamasse às falas. “Príncipe Petrocobesco, deixe-me apresentá-lo à minha prima, senhora Blair, e ao senhor Blair.” “Plaisir”, disse Petrocobesco. Ele e Emily trocaram um rápido olhar. “Não querem se sentar?”, e imediatamente sentou-se na única cadeira disponível, como se estivessem fazendo o jogo das cadeiras. “Plaisir”, repetiu. Olive sentou-se ao pé da chaise longue de Emily e Brevoort tomou um banquinho que estava encostado à parede, enquanto observava os outros ocupantes do quarto. De pé, perto da porta, havia um rapaz de capa, com ar feroz, de braços cruzados e dentes faiscantes, e dois homens barbudos e esmolambados, um deles segurando um revólver e o outro com a cabeça afundada no peito, sentados lado a lado num canto. “Chegaram há muito tempo?” “Não, hoje de manhã.” Por um momento, Olive não pôde resistir a comparar os dois, o americano alto e de traços finos e o sul-europeu nada atraente, pouco mais que um candidato a Ellis Island.* Depois, olhou para Emily — o mesmo cabelo espesso e brilhante, impregnado de raios de sol, os olhos com lampejos de mares revoltos. Seu rosto estava ligeiramente contraído e havia rugas novas e finas perto de sua boca, mas era a mesma Emily de sempre — dominadora, esfuziante, ampla. Era uma pena que tal beleza e personalidade tivessem acabado numa reles casa de cômodos no fim do mundo. O homem de capa respondeu a uma batida na porta e passou um bilhete a Petrocobesco. Este o leu, gritou “Chut!” e o passou a Emily. “Como você vê, não há carruagens”, disse a ela em francês, com voz de tragédia. “As carruagens foram destruídas. Todas, menos uma, que está num museu. Mas, enfim, prefiro um cavalo.” “Não”, disse Emily. “Sim, sim, sim!”, ele gritou. “A quem interessa como eu vou?” “Não vamos fazer uma cena, Tutu.” “Cena!”, ele fumegou. “Cena!” Emily virou-se para Olive: “Vocês vieram de carro?”. “Sim.” “Um carro grande, de luxo? Com uma capota que abre?” “Sim.” “Pronto”, disse Emily para o príncipe. “Podemos mandar pintar as armas na lateral.” “Espere aí”, disse Brevoort. “O carro pertence a um hotel de Budapeste.” Pelo visto Emily não o escutou. “Janierka poderia fazer isso”, ela continuou, pensativa. Naquele ponto, houve outra interrupção. O homem derrubado num canto pôs-se subitamente de pé e fez menção de correr até a porta, enquanto o outro levantou o revólver e lhe deu com a coronha na cabeça. O homem vacilou e teria desmaiado se o outro não o tivesse trazido de volta à cadeira, onde se sentou, com um fio de sangue escorrendo lentamente pela testa. “Sujeitinho imundo! Sujo, espião sujo!”, berrou Petrocobesco, trincando os dentes. “Esse é o tipo de observação que você não devia fazer!”, disse Emily com contundência.

“Então por que não nos atendem?”, ele gritou. “Vamos ficar aqui sentados neste chiqueiro para sempre?” Ignorando-o, Emily virou-se para Olive e começou a lhe fazer perguntas convencionais sobre Nova York. A Lei Seca estava dando certo? Quais eram os novos musicais em cartaz na Broadway? Olive tentava responder e, ao mesmo tempo, observava os olhos de Brevoort. Quanto mais depressa atingissem seu propósito, mais depressa tirariam Emily dali. “Podemos falar com você a sós, Emily?”, perguntou Brevoort subitamente. “Ora, no momento, estamos em falta de outro quarto.” Petrocobesco atirara-se a uma agitada conversa com o rapaz de capa e, aproveitando-se disso, Brevoort falou rapidamente com Emily, em voz mais baixa: “Emily, seu pai está ficando velho. Precisa de você em casa. Quer que você largue esta vida louca e volte para a América. Nos mandou aqui porque não podia vir ele mesmo, e ninguém conhecia você tão bem...” Ela riu. “Ou seja, ninguém conhecia as enormidades de que eu seria capaz...” “Não”, corrigiu Olive às pressas. “Que gostasse de você tanto quanto nós. Não sei nem dizer como é terrível ver você vagando por esses confins da Terra.” “Mas já não estamos vagando”, explicou Emily. “Este é o país natal de Tutu.” “Onde está seu orgulho, Emily?”, perguntou Olive sem paciência. “Sabia que aquele caso em Paris foi parar nos jornais? O que acha que as pessoas pensam disso em nosso país?” “Aquele caso em Paris foi uma afronta.” Os olhos azuis de Emily provocaram um clarão no ambiente. “Alguém vai ter de pagar por ele.” “Será do mesmo jeito em qualquer lugar. Descendo cada vez mais fundo, arrastada pela lama e, um dia, abandonada...” “Pare, por favor!” A voz de Emily estava fria como gelo. “Não creio que você esteja entendendo...” Emily parou de falar quando Petrocobesco voltou. O europeu atirou-se na cadeira e enterrou o rosto nas mãos. “Não suporto mais isto”, sussurrou. “Quer tomar meu pulso? Acho que estou mal. O termômetro está em sua bolsa?” Ela tomou o pulso dele em silêncio por um momento. “Está tudo bem, Tutu.” Sua voz estava macia agora, quase um afago. “Sente-se direito. Seja homem.” “Está bem.” Ele cruzou as pernas como se nada tivesse acontecido e virou-se abruptamente para Brevoort. “Como vai a situação financeira em Nova York?”, perguntou. Mas Brevoort não estava com humor para prolongar essa cena absurda. A lembrança de um certo momento terrível havia três anos ainda o avassalava. Não era homem para ser feito de bobo duas vezes, e sua mandíbula acompanhou-o quando ele se pôs de pé. “Emily, pegue suas coisas”, disse, com voz severa. “Vamos embora.” Emily não se moveu; uma expressão de espanto e divertimento espalhou-se por seu rosto. Olive abraçou-a pelo ombro. “Vamos, querida. Vamos sair deste pesadelo.” “Estamos esperando”, disse Brevoort. Petrocobesco falou algo para o homem de capa, que se aproximou e pegou Brevoort pelo braço. Brevoort livrou-se dele, irritado, fazendo-o recuar, a mão buscando o cinto.

“Não!”, gritou Emily imperativamente. De novo, houve uma interrupção. A porta foi aberta sem que alguém houvesse batido antes, e dois homens fortes, de sobrecasaca e chapéu de seda, invadiram o quarto e se dirigiram a Petrocobesco. Eles riram e deram-lhe tapinhas nas costas, conversando numa língua estranha. Ele também riu e lhes deu tapinhas nas costas, e todos se beijaram. Depois, virando-se para Emily, Petrocobesco disse, excitado, em francês: “Deu tudo certo. O caso nem chegou a entrar em discussão. Terei o título de rei.” Com um profundo suspiro, Emily afundou-se na chaise longue e seus lábios se abriram num sorriso relaxado e tranqüilo. “Muito bem, Tutu. Vamos nos casar.” “Ah, meu Deus, como estou feliz!” Ele batia palminhas e olhava em êxtase para o teto descascado. “Estou tão feliz!” Caiu de joelhos diante dela e beijou-lhe o antebraço. “Que história é essa de rei?”, perguntou Brevoort. “Isto aí... ele é... rei?” “Ele é um rei. Não é, Tutu?” A mão de Emily acariciava seu cabelo oleoso e Olive viu que os olhos dela pareciam brilhar de modo incomum. “Sou seu marido”, disse Tutu, chorando. “O homem mais feliz do mundo.” “O tio dele era o príncipe de Czjeck-Hansa antes da guerra”, explicou Emily, a voz cantando de contentamento. “Depois, veio a República, mas o partido operário queria restaurar a Monarquia e Tutu era o primeiro na linha sucessória. Só que eu não me casaria se ele não se tornasse rei em vez de príncipe.” Brevoort enxugou a testa molhada com a mão. “Quer dizer que isso é um fato?” Emily concordou. “A Assembléia votou hoje de manhã. E, se você nos emprestar sua limusine de luxo, faremos nossa entrada triunfal na capital esta tarde.”

IV. Mais de dois anos depois, o sr. e a sra. Brevoort Blair e seus dois filhos estavam numa sacada do Carlton Hotel, em Londres, lugar indicado pela gerência para se assistir à passagem dos cortejos reais. Este começou com uma fanfarra de trompetes no Strand, seguida de uma fileira escarlate de guardas a cavalo. “Mas, mamãe”, o garotinho perguntou, “tia Emily é rainha da Inglaterra?” “Não, querido. É rainha de um país pequenininho, mas, quando ela vem a Londres de visita, viaja na carruagem da rainha.” “Ah.” “Graças às reservas de magnésio”, disse Brevoort secamente. “Ela foi princesa antes de ser rainha?”, perguntou a garotinha. “Não, querida, era uma garota americana normal e só depois se tornou rainha.” “Por quê?” “Porque nada era bom demais para ela”, disse o pai. “Imagine só, certa época ela ia se casar comigo. O que você preferia? Casar comigo ou ser rainha?” A garotinha hesitou. “Casar com você”, disse educadamente, mas sem convicção. “Agora chega, Brevoort”, disse a mãe. “Lá vêm eles.” “Estou vendo!”, gritou o garotinho. O cortejo espalhou-se pela rua apinhada. Havia mais guardas a cavalo, uma companhia de

dragões, pagens também montados, e Olive se viu prendendo a respiração e apertando o parapeito do balcão no momento em que, entre uma fila dupla de alabardeiros, desfilou um par de grandes coches ouro-carmesim. No primeiro vinham os monarcas, com seus uniformes refulgindo de fitas, cruzes e estrelas, e, no segundo, duas consortes reais, uma velha, a outra jovem. Havia por toda a cena o glamour habitualmente espalhado pelo velho Império, por seus navios e cerimônias, suas pompas e seus símbolos. A multidão o sentia, e um lento murmúrio antecipava o rodar da carruagem, levando a uma forte e firme ovação. As duas damas faziam mesuras à direita e à esquerda e, embora poucos soubessem quem era a segunda rainha, ela foi ovacionada também. Em mais um momento, a gloriosa panóplia passou debaixo da sacada e sumiu de vista. Quando Olive se afastou da janela, havia lágrimas em seus olhos. “Será que ela gosta disso, Brevoort? Duvido que seja feliz com aquele homenzinho.” “Bem, ela conseguiu o que queria, não? Já é alguma coisa.” Olive respirou fundo. “Ah, ela é tão maravilhosa”, soluçou, “tão maravilhosa! Sempre conseguiu me comover, mesmo quando eu estava furiosa com ela.” “É tudo tão bobo, não?”, disse Brevoort. “Acho que é”, responderam os lábios de Olive. Mas seu coração, repleto de uma sublime adoração, seguia a prima pelos portões do palácio a mais de um quilômetro de distância. (1925)

* A Ellis Island, em Nova York, é a ilha por onde entrava o grosso dos imigrantes europeus no começo do século XX. (N. T.)

Na sua idade

Tom Squires entrou na drogaria para comprar uma escova de dentes, uma lata de talco, um gargarejo, sabonete Castile, sais Epsom e uma caixa de charutos. Tendo vivido sozinho por muitos anos, era um sujeito metódico e, enquanto esperava para ser servido, já tinha a lista na mão. Era a semana de Natal, e Minneapolis estava com sessenta centímetros de uma deliciosa neve, constantemente renovada. Com a bengala, Tom tirou dois flocos limpos da galocha. Em seguida, ao olhar para cima, viu a loura. Ela chamaria a atenção até na Terra Prometida dos escandinavos, onde louras bonitas não são raras. Havia uma cor morna em suas faces, em seus lábios e nas mãozinhas róseas que embrulhavam talcos; o cabelo, em longas tranças presas em volta da cabeça, era brilhante e vivo. Pareceu a Tom, de repente, a pessoa mais limpa que já vira, e ele prendeu a respiração ao dar um passo à frente e encarar os olhos cinza da moça. “Uma lata de talco.” “Qual deles?” “Qualquer um... está bom.” A moça o olhou de volta, aparentemente sem se dar conta. À medida que a lista diminuía, o coração dele começou a apostar uma louca corrida contra ela. “Não sou velho”, ele queria dizer. “Aos cinqüenta anos, sou mais jovem do que muitos de quarenta. Não lhe desperto interesse algum?” Mas a moça disse apenas: “Que marca de gargarejo?” E ele respondeu: “O que você recomendar... está bom.” Quase com pena, ele afastou dela o seu olhar, saiu e tomou seu cupê. Se aquela idiotinha soubesse o que um velho imbecil como eu poderia fazer por ela, pensou, divertido, os mundos que eu poderia lhe abrir. Ao sair com seu carro pelo crepúsculo invernal, foi seguindo essa linha de pensamento até chegar a uma conclusão totalmente sem precedentes. Talvez a hora do dia fosse responsável por isso — as vitrines das lojas incandescendo no frio, os sinos tilintantes de um trenó de entregas, o brilho branco das pás nas calçadas, as estrelas a uma enorme distância, tudo isso lhe trazia a sensação de outras noites trinta anos antes. Por um instante, as moças que ele conheceu na juventude saíram, como fantasmas, das matronas informes em que haviam se transformado e esvoaçaram a seu redor com um riso gelado e sedutor, até que um agradável arrepio percorreu-lhe a espinha. “Jovens! Jovens! Jovens!”, ele repetiu, irritado, cônscio de sua falta de originalidade, e, como um homem de certa forma cruel e dominador, sem nenhuma moral, pensou em voltar à drogaria e pegar o endereço da moça loura. Mas como não era seu estilo, a intenção passou; a idéia permaneceu.

“Jovens, pelo amor de Deus — jovens!”, repetia, entre dentes. “Quero mulheres bem jovens perto de mim, em volta de mim, antes que eu fique velho demais.” Era alto, magro e bonito, com o rosto bronzeado e vermelho de um esportista e um bigode que só agora começava a ficar grisalho. No passado, estivera entre os melhores partidos da cidade, organizava quermesses e bailes de caridade e era popular entre várias gerações de homens e mulheres. Depois da guerra, sentiu-se subitamente pobre, dedicou-se aos negócios e, em dez anos, acumulou quase um milhão de dólares. Tom Squires não era um homem introspectivo, mas percebia agora que a roda da vida dera mais uma volta, recuperando sonhos e aspirações esquecidos, mas familiares. Ao entrar em casa, examinou uma pilha de correspondência desprezada para ver se tinha sido convidado para alguma festa naquela noite. Mais tarde, jantando sozinho no Downtown Club, seus olhos estavam semicerrados e em seu rosto havia um vago sorriso. Treinava para aprender a rir de si mesmo sem sofrer, caso fosse necessário. “Não sei nem do que as moças falam hoje em dia”, admitiu. “Sei que são bem avançadas — importante financista vai a uma festa moderna com uma jovem. O que é uma festa moderna? Servem bebida alcoólica? Vou ter de aprender a tocar saxofone?” Essas perguntas, até havia pouco tão remotas quanto a China num cinejornal, ficaram vivas para ele. Eram perguntas importantes. Às dez horas, Tom subiu as escadas do College Club para uma festa, com a mesma sensação de penetrar num mundo novo que tivera ao chegar ao campo de treinamento em 1917. Falou com uma mulher de sua idade e com a filha dela, que pertencia esmagadoramente a outra geração, e sentou-se num canto para se aclimatar. Não ficou sozinho por muito tempo. Um jovem pateta chamado Leland Jaques, que morava no outro lado de sua rua, notou sua presença e foi gentilmente iluminar sua vida. Era tão boboca que, a princípio, Tom ficou aborrecido, mas depois percebeu que ele lhe podia ser útil. “Olá, senhor Squires. Como vai?” “Bem, obrigado, Leland. Que festa, hein?” Como de um homem do mundo para outro, o jovem Jaques sentou-se, ou espreguiçou-se, sobre o sofá e acendeu — ou pelo menos assim pareceu a Tom — três ou quatro cigarros ao mesmo tempo. “O senhor devia ter vindo ontem, senhor Squires. Aquilo é que foi festa! As Caulkin! Foram pras cabeças!” “Quem é aquela moça que troca de par toda hora?”, Tom perguntou. “Não, aquela de branco, passando pela porta.” “É Annie Lorry.” “Filha de Arthur Lorry?” “Sim.” “Parece muito disputada.” “Deve ser a moça mais disputada da cidade — pelo menos nos bailes.” “Não é disputada fora dos bailes?” “Ah, claro, mas não desgruda de Randy Cambell nem por um minuto.” “Qual Cambell?” “D. B.” Muitos nomes novos na cidade, nos últimos dez anos. “É um namoro firme.” Satisfeito com a definição, Jaques tentou repeti-la: “Namoro firme... sabe aquele tipo de namoro firme?...” Desistiu e acendeu vários outros cigarros, apagando a primeira série no colo de Tom. “Ela gosta de beber?”

“Não muito. Pelo menos, nunca a vi desmaiar... Olhe lá, Randy Cambell acaba de tirá-la para dançar.” Formavam um belo casal. A beleza dela refulgia contra a compleição alta e forte do rapaz, e os dois deslizavam pelo salão flutuando delicadamente, como duas pessoas num sonho lindo e divertido. Quando passaram mais perto, Tom pôde admirar a fina camada de pó sobre sua frescura, a doçura contida de seu sorriso, a fragilidade de seu corpo calculada pela natureza até o último milímetro para sugerir um botão de rosa e, apesar disso, garantir que se abrisse em flor. Seus olhos inocentes e apaixonados eram castanhos, talvez; mas quase violeta à luz prateada. “Ela ficará por aqui este ano?” “Quem?” “A senhorita Lorry.” “Sim.” Embora Tom estivesse caído pela moça, não se via entrando na fila para cortejá-la. Melhor esperar até que as férias terminassem e a maioria daqueles rapazes voltasse para a universidade, “onde era o lugar deles”. Tom Squires era velho, podia esperar. Esperou por quinze dias, até que a cidade mergulhasse no interminável apogeu do inverno, em que o cinza do céu se revelasse mais amistoso que o azul-metálico e em que a penumbra, cujas luzes eram um reconfortante lampejo da continuidade da alegria entre os homens, se revelasse mais calorosa do que as tardes de sol implacável. A neve perdeu sua urgência e ficou suja e surrada, as rodas dos carros congelavam nas ruas; algumas mansões da Crest Avenue se esvaziaram, já que seus moradores fugiram para o sul. Naqueles dias frios, Tom convidou Anne e seus pais a comparecer ao último Baile dos Solteiros. Os Lorry eram uma família antiga de Minneapolis, meio castigada e empobrecida desde a guerra. A sra. Lorry, contemporânea de Tom, não se surpreendeu que ele mandasse orquídeas para a mãe e a filha e lhes oferecesse um lauto jantar em seu apartamento, com caviar, codornas e champanhe. Annie só o viu vagamente — ele lhe pareceu um homem sem vivacidade, como os mais velhos parecem aos jovens —, mas percebeu seu interesse por ela e executou o tradicional ritual de beleza da juventude — distribuiu sorrisos, deu-lhe uma atenção curiosa e educada, exibiu-lhe o perfil sob esta ou aquela luz. Na festa, ele dançou com ela duas vezes e, embora aquilo a incomodasse, estava orgulhosa de que um homem do mundo — era o que ele se tornara, em vez de apenas um velho — a tivesse escolhido. Aceitou seu convite para ir a um concerto na semana seguinte, por achar que seria grosseiro recusar. Houve vários “convites agradáveis” como aquele. Sentada a seu lado, cochilou à sombra morna de Brahms e pensou em Randy Cambell e em outras nebulosidades românticas que poderiam acontecer no dia seguinte. Numa tarde em que se sentia casualmente doce, provocou de propósito Tom a beijála, mas teve vontade de rir quando ele tomou suas mãos e disse fervorosamente que estava se apaixonando por ela. “Mas como?”, ela protestou. “Olhe, você não deveria dizer uma coisa tão louca. Se continuar, paro de sair com você, e você vai se arrepender.” Alguns dias depois, sua mãe dirigiu-se a ela, enquanto Tom a esperava lá fora, no carro: “Quem é aquele, Annie?” “É o senhor Squires.” “Feche a porta. Você está saindo muito com ele.” “Por que não?” “Ora, querida, ele tem cinqüenta anos!”

“Mas, mamãe, não sobrou quase ninguém na cidade.” “Sim, mas tire da cabeça qualquer idéia sobre ele.” “Não se preocupe. Para dizer a verdade, me mata de tédio a maior parte do tempo.” Tomou uma súbita decisão. “Vou parar de sair com ele. É que não consegui me livrar dele esta tarde.” E naquela noite, de pé, diante da porta de sua casa, nos braços de Randy Cambell, Tom e o solitário beijo que haviam trocado já não significavam nada para ela. “Ah, eu amo tanto você”, sussurrou Randy. “Me beije de novo.” Suas faces frias e seus lábios quentes se encontraram na crespa escuridão e, ao contemplar a lua gelada sobre o ombro do rapaz, Annie sabia que era só dele. Puxou o rosto dele para baixo e beijouo de novo, trêmula de emoção. “Quando vamos nos casar?”, ele sussurrou. “Quando você... quando nós teremos condições para isso?” “Não podemos nem anunciar o noivado? É horrível saber que você está saindo com outro homem e que ele está se declarando a você.” “Ah, Randy, você está pedindo muito.” “É horrível ter de me despedir toda noite. Posso entrar, só por um minuto?” “Pode.” Sentados juntinhos, numa espécie de transe junto à lareira tremulante e quase extinta, eles nem se davam conta de que seu destino estava sendo friamente calculado por um homem de cinqüenta anos, deitado numa banheira quente, a poucos quarteirões dali.

II. Tom Squires percebera que, pelo jeito de Anne naquela tarde, distante e delicado, ele fracassara em provocar-lhe uma impressão. Prometera a si mesmo que, no caso de isso acontecer, entregaria os pontos, mas agora descobria que não estava a fim de fazer isso. Não queria se casar com ela; queria apenas vê-la e estar com ela de vez em quando; e, até o momento daquele beijo docemente casual, semitórrido, mas totalmente sem emoção, só o fato de pensar nela fazia seu coração deslocar-se alguns centímetros dentro do peito e bater mais rápido. “Este é o momento de cair fora”, pensou. “Por causa de minha idade... Não tenho como me meter na vida dela.” Saiu da banheira, enxugou-se, penteou-se diante do espelho e, ao depositar a escova na bancada, disse, decidido: “É isso mesmo”. E, depois de ler por uma hora, apagou a luz e repetiu: “É isso mesmo”. Em outras palavras, não era nada disso, e o clique do interruptor do abajur não apagou Annie Lorry de sua cabeça, ao contrário de uma decisão comercial, que pode ser fechada pelo tamborilar de um lápis numa mesa. “Vou insistir mais um pouco”, ele decidiu, por volta das quatro e meia. E, com isso, virou-se para o canto e conseguiu dormir. De manhã, a lembrança dela parecia ter diminuído, mas, por volta das quatro da tarde, já o tomara de novo por inteiro — o telefone esperava que ele ligasse para ela, os passos de mulher que ele ouvia perto de seu escritório eram os dela e a neve lá fora caía, quem sabe, sobre seu rosto. Sempre há o plano que armei ontem à noite, pensou. Em dez anos, já estarei com sessenta e, a partir daí, não haverá juventude nem beleza para mim. Numa espécie de pânico, pegou uma folha em branco e compôs uma carta cuidadosamente estudada para a mãe de Annie, pedindo permissão para cortejar sua filha. Levou-a pessoalmente até

o hall, mas, antes que a carta escorregasse pela caixinha, rasgou-a e atirou os pedaços numa escarradeira. Não posso aplicar golpe tão baixo, pensou. Não na minha idade. Mas esse gesto nobre foi prematuro, porque reescreveu a carta e a pôs no correio ao sair do escritório naquela noite. No dia seguinte, a resposta que esperava chegou — era capaz de adivinhar palavra por palavra. Era uma recusa curta e indignada. Terminava assim: O melhor é que o senhor e minha filha não se vejam mais. Sem mais, cordialmente, MABEL TOLLMAN LORRY “E agora”, calculou Tom friamente, “vamos ver o que a menina diz a isto.” Escreveu uma carta para Annie. A carta da mãe dela o surpreendera, escreveu, mas talvez fosse melhor mesmo que não se vissem mais, por causa da atitude de sua mãe. Pela volta do correio chegou a desafiadora resposta de Annie ao decreto de sua mãe: “Não estamos na Idade das Trevas. Vou continuar vendo você sempre que quiser”. Sugeriu um encontro para a tarde seguinte. A miopia de sua mãe provocou o que ele não conseguira despertar diretamente; porque Anne, que estava a ponto de mandá-lo passear, parecia agora determinada a fazer exatamente o contrário. E o segredo criado pela desaprovação materna contribuiu com a excitação que faltava. À medida que fevereiro se arrastava naquele profundo, solene e interminável inverno, encontrou-se muitas vezes com ele, só que agora em novas bases. Às vezes iam de carro para St. Paul, para assistir a um filme ou jantar; ou então estacionavam o cupê num distante bulevar, com o granizo cobrindo o pára-brisa e vestindo os faróis com arminho. Quase sempre ele trazia algo especial para beberem — o suficiente para deixá-la alegre, mas, cuidadosamente, não mais que isso. Misturada a suas outras emoções, havia também uma espécie de preocupação paternal. Pondo as cartas na mesa, ele lhe disse que fora a mãe dela quem, sem querer, a empurrara para ele, mas Annie apenas riu da sua ambigüidade. Estava se divertindo muito mais com ele do que com qualquer outro rapaz que já tinha conhecido. Em vez das exigências egoístas dos mais jovens, ele demonstrava uma infalível consideração por ela. E daí se seus olhos estavam cansados ou seu rosto áspero e estriado de veias? Sua vontade continuava forte e masculina. Mais ainda, sua experiência era uma janela que se abria para um mundo mais vasto e mais rico; e, ao se encontrar com Randy Cambell no dia seguinte, ela se sentia menos cuidada, menos valorizada, menos exclusiva. Mas, agora, era Tom quem se sentia vagamente descontente. Conseguira o que queria — a juventude dela —, mas achava que qualquer coisa além disso seria um equívoco. Sua liberdade lhe era preciosa e ele só podia lhe oferecer talvez mais uns dez anos antes de ficar velho. Mas ela se tornara algo precioso demais para ele e percebeu que cair fora não seria justo. Então, em fins de fevereiro, o problema se resolveu sozinho. Estavam voltando de St. Paul e pararam no College Club para tomar um chá, atravessaram juntos as lascas de gelo que cobriam a alameda e orlavam a porta. Era uma porta giratória; um jovem passou por ela e, ao entrarem por onde ele saíra, sentiram o cheiro de cebolas e uísque. A porta completou o giro e o rapaz voltou ao salão, encarando-os. Era Randy Cambell; seu rosto estava afogueado; os olhos, opacos e duros. “Olá, beleza”, ele disse, aproximando-se de Annie.

“Não chegue tão perto”, ela protestou com delicadeza. “Você está cheirando a cebola.” “Por que tão exigente de repente?” “Sempre fui exigente.” Annie fez um ligeiro movimento em direção a Tom. “Nem sempre”, respondeu Randy, num tom desagradável. E, com crescente ênfase e um olhar rápido para Tom: “Nem sempre”. Com essa observação, pareceu encaminhar-se ao mundo hostil lá fora. “E vou lhe dar uma pista”, continuou. “Sua mãe está lá dentro.” O gênio enciumado do rapaz atingiu Tom de forma quase imperceptível, como o protesto de uma criança. Mas, a esse aviso impertinente, ele se eriçou: “Vamos, Annie”, disse bruscamente. “Vamos entrar.” Desconfortável, evitando o olhar de Randy, Annie seguiu Tom pelo salão. Estava quase vazio, apenas três senhoras de meia-idade sentavam-se perto do fogo. Annie recuou por um segundo, mas depois caminhou resoluta em direção a elas. “Olá, mamãe... Como vai, senhora Trumble? Olá, tia Caroline.” As duas últimas responderam; a sra. Trumble até fez um gesto para Tom. Mas a mãe de Annie se pôs de pé sem uma palavra, os olhos gelados, a boca contraída. Por um momento, olhou firme para a filha; depois, virou-se rispidamente e saiu da sala. Tom e Annie foram para uma mesa no outro lado da sala. “Ela não foi horrível?”, disse Annie, ofegante. Ele não respondeu. “Há três dias que não fala comigo.” De repente, explodiu: “Ah, como as pessoas podem ser tão mesquinhas? Eu iria cantar na parte principal do show da escola e, ontem, minha prima Mary Betts, que é presidente do grêmio, veio me dizer que não vou mais”. “Por que não?” “Porque uma representante do grêmio não pode desafiar a mãe. Como se eu fosse uma pirralha!” Tom olhou para uma fileira de xícaras no aparador — duas ou três delas tinham seu nome. “Talvez ela tenha razão”, ele disse de supetão. “Se estou começando a prejudicar você, talvez seja hora de terminar.” “O que você quer dizer com isso?” À voz chocada da menina, seu coração despejou um líquido quente pelo interior de seu corpo, mas ele respondeu com tranqüilidade: “Lembra-se de eu ter lhe dito que iria viajar para o Sul? Pois bem, vou viajar amanhã”. Houve uma discussão, mas ele já tinha decidido. Na noite seguinte, na estação, ela chorou e se agarrou a ele. “Obrigado pelos melhores meses que tive em muitos anos”, ele disse. “Mas você vai voltar, Tom.” “Vou ficar dois meses no México; depois vou para o Leste, por algumas semanas.” Tentou passar uma impressão de felicidade, mas a cidade congelada que ele deixava para trás parecia estar florindo. O hálito gelado da moça era uma flor em pleno ar, mas seu coração despencou quando ele se deu conta de que algum rapaz deveria estar esperando lá fora, para levá-la para casa num carro cheio de flores. “Adeus, Annie. Adeus, meu doce.” Dois dias depois, ele passou a manhã em Houston com Hal Meigs, seu velho colega de Yale. “Você é um velho de sorte”, disse Meigs ao almoço, “porque vou apresentá-lo à companheira de viagem mais graciosa que você já viu, e que também está indo para a Cidade do México.” A dama em questão ficou francamente satisfeita ao saber na estação que não iria viajar sozinha. Ela e Tom jantaram juntos no trem e, depois, jogaram cartas por uma hora; mas quando, às dez horas,

parados na porta do salão nobre, ela lhe dirigiu um olhar franco e inconfundível, e sustentou esse olhar por um longo momento, Tom Squires viu-se presa de uma emoção que nada tinha a ver com aquilo. Teve uma desesperada vontade de rever Annie, de falar com ela por um segundo ao telefone, e só depois dormir, sabendo que ela continuava jovem e pura como uma estrela, e bem quietinha em sua cama. “Boa noite”, ele disse, tentando esconder qualquer repulsa na voz. “Ah! Boa noite!” Ao chegar a El Paso no dia seguinte, cruzou de táxi a fronteira mexicana, até Juarez. Estava um dia ensolarado e quente, e, depois de deixar as malas na estação, ele foi ao bar tomar algo gelado. Quando começou a bebericar, a voz de uma mulher dirigiu-se asperamente a ele, vinda de trás. “Você é americano?” Ao entrar, ele a vira debruçada sobre a mesa. Agora, ao virar-se, percebeu uma jovem de, no máximo, dezessete anos, obviamente bêbada e, mesmo assim, com alguma nobreza na voz instável e embargada. O empregado do balcão, também americano, inclinou-se confidencialmente para ele. “Não sei o que fazer com ela”, disse. “Chegou por volta das três com dois rapazes, um deles seu namorado. Brigaram, os rapazes foram embora e ela está aqui até agora.” Um espasmo de desgosto percorreu Tom — as regras de sua geração tinham sido ofendidas e desafiadas. Uma garota americana abandonada, bêbada, numa cidade como aquela... Tal coisa podia acontecer, quem sabe, com Annie. Olhou para o relógio e hesitou: “Ela está devendo alguma coisa?”, perguntou. “Tomou cinco gins. Mas e se os rapazes voltarem?” “Diga que está hospedada no Roosevelt Hotel, em El Paso.” Aproximou-se e pôs a mão em seu ombro. Ela olhou para cima. “Você parece o Papai Noel”, disse, confusa. “Você não é o Papai Noel, é?” “Vou levá-la para El Paso.” “Bem”, ela pareceu pensar. “Acho que posso confiar em você.” Era tão jovem — uma rosa encharcada. Ele quase chorou por sua lamentável inconsciência da vida, da dureza da vida. Sentiu-se lutando contra o nada, numa arena vazia e com uma lança trêmula. O táxi movia-se muito devagar pela noite subitamente envenenada. Depois de explicar as coisas ao relutante porteiro da noite, saiu e encontrou a agência do telégrafo. “Desisti da viagem mexicana”, escreveu para Annie. “Parto daqui esta noite. Por favor, espere meu trem na estação de St. Paul e vamos juntos para Minneapolis, já que não posso ficar nem mais um minuto sem você. Com todo o meu amor.” Assim, ele poderia pelo menos ficar de olho nela, acompanhar o que ela fazia com sua vida. Aquela mãe idiota! No trem, à medida que as sazonadas terras tropicais davam lugar ao Norte com seus retalhos de neve e, depois, a campos inteiros cobertos com ela, ventos ferozes nas plataformas e fazendas sombrias e hibernadas, Tom andava para cima e para baixo pelos corredores do trem, com intolerável inquietação. Quando chegou à estação de St. Paul, atirou-se do trem como um colegial e procurou ansiosamente pela plataforma, mas seus olhos não conseguiam encontrar Annie. Estava contando com aqueles minutos entre as duas cidades; eles tinham se tornado o símbolo de sua fidelidade ao amor de ambos e, quando o trem se pôs de novo em movimento, procurou desesperadamente do vagão-fumante ao observatório. Mas, ali também, não a encontrou, e agora sabia que estava louco por ela; à idéia de que tivesse seguido seu conselho e mergulhado em

namoros com outros homens, seu coração foi tomado pelo medo. Ao chegar a Minneapolis, suas mãos se atrapalharam tanto que teve de chamar o carregador para prender as fivelas das malas. Depois, houve a interminável espera no corredor enquanto a bagagem era retirada, e ele se viu espremido de encontro a uma moça com um casaco com gola e punhos de pele de esquilo. “Tom!” “Ora, eu...” Os braços dela envolveram seu pescoço. “Mas, Tom”, ela chorava, “estou aqui neste vagão desde St. Paul!” A bengala dele caiu no chão. Ali mesmo, no corredor, ela a puxou ternamente para si e seus lábios se fundiram como corações famintos.

III. A intimidade permitida pela definição do noivado encheu Tom de uma jovem felicidade. Acordava nas manhãs de inverno com uma sensação de alegria imerecida pairando em seu quarto; na rua, ao passar por rapazes, via-se comparando o vigor de seu corpo e mente com o deles. De repente, sua vida parecia ter um propósito e uma base; sentia-se pleno e completo. Nas tardes cinzentas de março, quando ela transitava com familiaridade por seu apartamento, as mornas certezas de sua juventude voltavam a inundá-lo — êxtase e pungência, o mortal e o eterno em sua trágica justaposição e, para seu relativo espanto, ele se via saboreando até a terminologia dos jovens apaixonados. Mas era mais sóbrio do que um jovem apaixonado e, para Annie, ele parecia “saber tudo” — como manter os portões abertos para sua passagem para um mundo verdadeiramente dourado. “Vamos primeiro à Europa”, ele disse. “Iremos à Europa à beça, não? Vamos passar nossos invernos na Itália e a primavera em Paris.” “Mas, Annie querida, e os negócios?” “Bem, vamos ficar fora o máximo que pudermos. Detesto Minneapolis.” “Ah, não.” Ele estava um pouco chocado. “Minneapolis é ótimo.” “Só quando você está aqui.” A sra. Lorry custou, mas curvou-se ao inevitável. A contragosto admitiu o noivado, pedindo apenas que o casamento não se realizasse antes do outono. “É muito tempo”, suspirou Annie. “Afinal de contas, sou sua mãe. É tão pouco o que peço.” Foi um longo inverno, mesmo numa terra de invernos longos. Março chegou cheio de correntes encapeladas e, quando enfim parecia que o frio seria derrotado, houve uma série de nevascas desesperadas, como se ele se recusasse a acabar. As pessoas esperavam; sua energia inicial para resistir se exauriu; e todo mundo, a exemplo do tempo, se conformou. Havia pouco que fazer agora e a inquietação geral se exprimia pela rispidez nos contatos diários. Finalmente, no começo de abril, com um longo suspiro, o gelo se rompeu, a neve infiltrou-se no terreno e a primavera, verde e ansiosa, despontou. Certo dia, ao passarem por uma estrada de lama, onde uma grama asfixiada e faminta lutava para brotar, Annie começou a chorar. Às vezes chorava sem motivo, mas, desta vez, Tom freou de súbito e a abraçou. “Por que está chorando assim? Está infeliz?” “Não, não!”, ela protestou. “Mas ontem você chorou do mesmo jeito. E não quis me dizer por quê. Você precisa me contar.”

“Não é nada, é a primavera. Tem um cheiro tão bom, e me traz lembranças e pensamentos tristes.” “É a nossa primavera, querida”, ele disse. “Annie, não vamos esperar. Vamos nos casar em junho.” “Prometi a mamãe, mas, se você quiser, vamos anunciar nosso casamento para junho.” A primavera agora passava depressa. As calçadas ficaram úmidas, depois secas, e as crianças patinavam nelas e os meninos jogavam beisebol nos terrenos baldios. Tom promovia elaborados piqueniques para os amigos de Annie e a estimulava a jogar golfe e tênis com eles. De repente, como se a natureza desse uma guinada final e triunfante, já parecia pleno verão. Numa linda noite de maio, Tom atravessou a alameda da casa dos Lorry e sentou-se na varanda com a mãe de Annie. “Está tão agradável”, ele disse. “Acho que Annie e eu vamos dar um passeio a pé, em vez de pegar o carro. Quero mostrar a ela a velha casa em que nasci.” “Na rua Chambers, não é? Annie deve chegar daqui a pouco. Foi dar uma volta com a turma depois do jantar.” “Sim, na rua Chambers.” Consultou o relógio, esperando que Annie voltasse enquanto ainda houvesse luz suficiente. Quinze para as nove. Fez cara feia. Ela já o fizera esperar na outra noite e por uma hora na tarde anterior. Se eu tivesse vinte e um anos, pensou, faria uma cena e ambos nos sentiríamos péssimos. Enquanto isso, conversava com a sra. Lorry. A temperatura, perto da casa dos trinta graus, precipitava uma lassitude que os amolecia e, pela primeira vez desde que começara a se dedicar a Annie, as arestas entre eles pareciam aparadas. Aos poucos, os silêncios ficaram mais longos, quebrados apenas pelo riscar de um fósforo ou pelo rangido de sua cadeira. Quando o sr. Lorry chegou, Tom atirou fora seu segundo charuto e olhou surpreso para o relógio; já passava das dez. “Annie está atrasada”, disse a sra. Lorry. “Espero que não tenha acontecido nada”, disse Tom, ansioso. “Com quem ela está?” “Só sei que, quando saíram, eram quatro. Randy Cambell e um casal — não percebi quem. Foram tomar um refrigerante.” “Espero que esteja tudo bem. Talvez... será que eu deveria ir procurá-los?” “Dez horas não é tarde hoje em dia. Você vai descobrir...” Lembrando-se de que Tom Squires ia se casar com Annie, não adotá-la, a sra. Lorry se conteve para não dizer: “Você vai se acostumar”. Seu marido pediu licença e entrou para dormir, enquanto a conversa tornou-se mais forçada e desconexa. Quando o relógio da igreja bateu onze horas, eles silenciaram e ouviram as pancadas. Vinte minutos depois, quando Tom, impaciente, esmagava seu último charuto, um automóvel desceu a rua e estacionou em frente à porta. Por um minuto, ninguém se moveu na varanda ou dentro do carro. Em seguida, Annie, com o chapéu na mão, saiu e veio correndo pela alameda. Desafiando a quietude da noite, o carro saiu guinchando. “Olá!”, ela disse. “Desculpe! Que horas são? Estou muito atrasada?” Tom não respondeu. A luz no poste jogava uma cor vinho sobre o rosto de Annie e expressava com uma sombra o rubor vivo de sua face. Seu vestido estava amarrotado e o cabelo tinha um leve e expressivo desarranjo. Mas foram as estranhas pausas em sua voz que o fizeram ter medo de falar, que o fizeram desviar os olhos. “O que aconteceu?”, perguntou casualmente a sra. Lorry. “Ah, um pneu estourou e depois houve alguma coisa errada com o motor — e nos perdemos no caminho. É tão tarde assim?” Com Annie de pé diante deles, o chapéu ainda na mão, peito subindo e descendo um pouco e olhos

abertos e brilhantes, Tom percebeu, chocado, que ele e a mãe dela eram pessoas da mesma idade olhando para uma pessoa de outra geração. Por mais que tentasse, não conseguia se distinguir da sra. Lorry. Quando ela pediu licença para entrar, ele reprimiu uma frenética vontade de dizer: “Mas por que entrar agora, depois que ficou sentada aqui a noite inteira?”. Agora estavam sozinhos. Annie chegou-se a ele e apertou sua mão. Ele nunca tivera tanta consciência de sua beleza; as mãos dela estavam úmidas de orvalho. “Você saiu com o jovem Cambell”, ele disse. “Foi. Não fique bravo. Estou me sentindo... sentindo tão chateada.” “Chateada?” Ela se sentou, quase choramingando. “Não pude evitar. Por favor, não fique bravo. Ele queria tanto dar uma volta comigo e estava uma noite tão maravilhosa, por isso aceitei passear por uma hora. Começamos a conversar e não vimos o tempo passar. Senti muita pena dele.” “Como pensa que eu me senti?” Temeu estar se menosprezando, mas agora já tinha falado. “Não fique assim, Tom. Já lhe disse que fiquei chateada. Quero ir dormir.” “Entendi. Boa noite, Annie.” “Ah, por favor, não fique assim, Tom! Você não entende?” Mas ele estava entendendo, e esse era o problema. Com um gesto de cortesia das velhas gerações, desceu os degraus e saiu sob o luar encobridor. Em instantes, reduzira-se a uma sombra que passava pelos lampiões e, depois, a fugidios passos na rua.

IV. Durante todo aquele verão, ele saía para passear à noite. Gostava de parar por um minuto em frente à casa onde nascera e, depois, em frente à outra casa onde morara em criança. Em seus trajetos mais costumeiros havia outros pontos de referência da década de 1890, cenários de belle-epoquices já convertidos em alguma outra coisa — a casca do estábulo de Jansen e o velho rinque de Nushka, onde todo inverno seu pai fazia piruetas no gelo bem conservado. “Que pena”, ele murmurava. “Que pena.” Tinha também a tendência a passar diante das luzes de uma certa drogaria, porque lhe parecia conter a semente de outra época mais recente. Certa vez entrou e, ao perguntar pela caixeira loura, descobriu que ela se casara e saíra de lá havia alguns meses. Ficou sabendo seu nome e, num impulso, mandou-lhe um presente de casamento, “de um admirador secreto”, porque achava que lhe devia um pouco por sua felicidade e sua dor. Perdera a batalha contra a juventude e a primavera, e, com seu sofrimento, pagara um preço pelo pecado imperdoável da velhice — o de se recusar a morrer. Não se conformara em rumar para a treva sem primeiro se pôr à prova; o que ele quisera, no fim das contas, era magoar seu velho coração. A luta, em si, tem um valor que supera a vitória ou a derrota, e aqueles três meses com Annie... agora lhe pertenciam para sempre. (1929)

Os nadadores

Sobre a Place Benoit, uma massa suspensa de descargas de gasolina cozinhava lentamente ao sol de junho. Era terrível porque, ao contrário do calor normal, aquela onda de fumaça não dava o menor indício de que iria deslocar-se para o campo. Nos escritórios da Promissory Trust Company, filial de Paris, contemplando a praça, um americano de trinta e cinco anos respirava o ar infecto e, de súbito, aquele tornou-se o cheiro do que ele tinha a fazer. Um horror negro assaltou-o, e ele foi à toalete, onde se deixou ficar por alguns momentos, tremendo um pouco. Pela janela da toalete, seus olhos pousaram sobre o anúncio de uma loja — 1000 Chemises. As camisas em questão lotavam a vitrine da loja, recheadas de manequins engravatados, ou estavam simplesmente expostas, dobradas, nos mostruários. 1000 Chemises — quem contou? À esquerda, ele podia ler Papeterie, Pâtisserie, Solde, Réclame e Constance Talmadge em Déjeuner de Soleil; à direita, seu olho pousou sobre anúncios ainda mais sombrios: Vêtements Ecclésiastiques, Déclaration de Décès e Pompes Funèbres. A Vida e a Morte! O leve tremor de Henry Marston tornou-se intenso; seria ótimo se aquilo fosse o fim e nada mais houvesse a fazer, pensou, e, com alguma esperança, sentou-se num banquinho. Mas essas coisas nunca chegam ao fim e, pouco depois, quando já estava muito cansado para se importar com aquilo, a tremedeira passou e ele se sentiu melhor. Descendo as escadas, tentando parecer tão alerta e seguro quanto qualquer funcionário do banco, dirigiu-se a dois clientes que conhecia. “Ora, Henry Clay Marston!” Um velho elegante apertou-Ihe a mão e sentou-se à sua mesa. “Henry, gostaria de lhe falar a respeito do que conversamos na outra noite. Que tal almoçarmos naquele restaurante simpático entre as árvores?” “Não posso, juiz Waterbury. Tenho um compromisso.” “Então precisamos falar agora, porque vou viajar esta tarde. Quanto esses plutocratas estão lhe pagando para você parecer importante?” Henry Marston sabia o que estava a caminho. “Dez mil dólares por ano e mais algum para as despesas”, respondeu. “Gostaria de voltar para Richmond pelo dobro disso? Já está aqui há oito anos e não sabe as oportunidades que perdeu. Por exemplo, meus dois rapazes...” Henry ouviu com educação, mas, naquela manhã, não conseguia concentrar-se em nada. Falou vagamente a respeito de viver com mais conforto em Paris e controlou-se para não ser muito franco sobre a idéia de voltar aos Estados Unidos. O juiz Waterbury fez sinal para um homem alto e pálido no balcão. “Este é o senhor Wiese”, disse. “Uma espécie de meu sócio.” “Prazer. Parece que o juiz está lhe fazendo uma proposta.” “Sim”, respondeu secamente Henry. Reconhecia e detestava o tipo — cavador, suarento, quase certamente um misto de novo-rico e aventureiro. Quando Wiese se afastou, o juiz disse, como se

desculpando: “É um dos homens mais ricos do Sul, Henry.” E depois de uma pausa: “Precisa voltar para lá, rapaz”. “Vou pensar no assunto, juiz.” Por um momento, a cabeça grisalha e avermelhada do velho pareceu-lhe simpática, mas não demorou a recuperar o antigo contorno unidimensional, mecânico, desolado, não europeu. Henry Marston respeitava aquela franqueza — lidava com ela diariamente no banco com agrado, como num museu um curador deve tocar um objeto precioso removido de seu tempo e espaço. Mas não havia jeito: as perguntas que a vida de Henry Marston propusera só poderiam ser respondidas na França. Suas sete gerações de ancestrais da Virgínia ficavam definitivamente para trás todos os dias quando ele voltava para casa ao meio-dia. A casa era um apartamento de pé-direito alto, copiado do palácio de um cardeal renascentista, na rue Monsieur — o tipo de coisa a que Henry não poderia se dar ao luxo na América. Sua mulher, Choupette, superando o rígido tradicionalismo do gosto francês, conseguira embelezá-lo ainda mais, e ali viviam com seus filhos. Era uma loura frágil, com lindos traços e olhos vivos e tristes, que tinham fascinado Henry pela primeira vez numa pension em Grenoble, em 1918. Os dois garotos saíram a Henry, considerado o homem mais bonito da universidade de Virgínia alguns anos antes da guerra. Subindo os dois largos lances de escadas, Henry permitiu-se ofegar por alguns instantes no hall de seu apartamento. Sentia-se novamente fresco e tranqüilo e, no entanto, pensava vagamente na coisa horrível que iria acontecer. Ouviu o relógio de casa bater uma hora e enfiou a chave na porta. A empregada, a serviço da família de Choupette havia mais de trinta anos, ficou estarrecida ao vêlo — de boca aberta, como a pronunciar um som que não saía. “Bonjour, Louise.” “Monsieur!” Ele jogou o chapéu numa cadeira. “Mas, monsieur... pensei que monsieur havia telefonado para dizer que iria a Tours buscar as crianças!” “Mudei de idéia, Louise.” Henry deu mais um passo — sua última dúvida estava desfeita diante do terror no rosto da empregada. “Madame está em casa?” Naquele momento, ele percebeu o chapéu e a bengala de um homem sobre a mesa do hall e, pela primeira vez, conseguiu ouvir o silêncio — um silêncio cantante, tonitroante, tão opressivo como o som de canhões ou trovões. Depois, quando aquele momento interminável foi quebrado pelo grito de terror da empregada, Henry atravessou as portières que davam para a sala. Uma hora depois, o dr. Derocco, de la Faculté de Médecine, tocou à porta do apartamento. Choupette Marston, com uma expressão ligeiramente tensa, foi abrir. Trocaram as formalidades de praxe na França: “Meu marido não vinha se sentindo bem há algumas semanas”, disse ela, “mas não se queixou para não me deixar preocupada. Hoje, teve um colapso súbito; não consegue falar nem mover os membros. Devo dizer que tudo isto pode ter se precipitado por uma certa indiscrição de minha parte — tivemos uma cena, uma violenta discussão e, algumas vezes, quando está muito agitado, meu marido não consegue compreender bem o francês.” “Deixe-me vê-lo”, disse o médico, pensando: “Algumas coisas são compreensíveis em qualquer língua”. Nas quatro semanas seguintes, várias pessoas ouviram estranhas divagações a respeito de mil

camisas e de como toda a população de Paris estava sendo intoxicada pela gasolina, mas, consultado um psiquiatra, ele não pareceu inclinado a acreditar em nenhum distúrbio mental. Henry foi cuidado por uma enfermeira do American Hospital e por uma assustada e desafiadora Choupette, que, à sua maneira, parecia profundamente arrependida. Um mês depois, quando Henry acordou em seu antigo quarto, à luz de uma lâmpada mortiça, encontrou-a à sua cabeceira e procurou sua mão. “Eu ainda amo você”, ele disse, “isso é que é estranho.” “Durma, meu repolhinho.” “Bem”, ele continuou, não sem certa ironia, “nunca é tarde para se adotar uma atitude de marido francês...” “Por favor! Você rasga o meu coração.” Quando se sentou na cama, sentiram-se unidos de novo — mais unidos do que haviam estado em anos. “E agora vocês terão novas férias”, disse Henry aos dois garotos que retornavam do campo. “Papai precisa ir para a praia, a fim de se recuperar.” “Vamos aprender a nadar?” “Para se afogarem, queridos?”, disse Choupette. “Na idade de vocês? De jeito nenhum!” E assim, em St. Jean de Luz, ficaram sentados na praia, observando os ingleses, americanos e alguns franceses que mergulhavam ou velejavam. Havia navios ao largo e lindas ilhas para se olharem, montanhas e villas vermelhas e amarelas chamadas Fleur des Bois, Mon Nid ou Sans-Souci; e, mais adiante, sonolentas aldeias francesas de pedra cinzenta. Choupette sentava-se ao lado de Henry na areia, segurando uma sombrinha para proteger do sol sua pele de pêssego. “Olhe!”, ela costumava dizer, ao ver um grupo de garotas americanas bronzeadas. “Acha bonito? A pele delas parecerá couro quando tiverem trinta anos. Uma maneira de esconder as rugas. E mulheres de cem quilos naqueles maiôs! As roupas não foram feitas para ocultar os equívocos da natureza?” Henry Clay Marston era o tipo de americano que se sente mais orgulhoso em ser da Virgínia do que americano. Seu avô havia libertado os escravos em 1858, lutado do Manassas até Appomattox, lido Huxley e Spencer para se distrair e só acreditava em castas quando elas expressavam o melhor da raça. Para Choupette, tudo isso era vago. Suas críticas mais diretas contra os patrícios dele dirigiam-se às mulheres. “Como você as definiria? Mulheres finas, burguesas, aventureiras — são todas iguais. Olhe! Onde eu estaria se tentasse agir como sua amiga Madame de Richepin? Meu pai era professor de uma universidade na província. Há certas coisas que eu não faria, porque minha classe e minha família poderiam não gostar. Madame de Richepin não faria outras coisas, porque poderia não agradar à sua classe ou família.” Apontou para uma garota americana que se encaminhava para a água: “Mas aquela jovem pode ser uma estenógrafa e, no entanto, anda, veste-se e comporta-se daquele jeito como se tivesse todo o dinheiro do mundo”. “Talvez ela venha a ter, algum dia.” “É o que dizem a elas, mas isso só acontece a uma, não a noventa e nove. É por isso que, aos trinta anos, estão todas descontentes e infelizes.” Embora Henry concordasse com ela em termos, não conseguia deixar de achar divertido o alvo que Choupette escolhera naquela tarde. A garota — de, talvez, uns dezoito anos — comportava-se realmente como se ninguém mais importasse; era o que seu pai teria classificado de uma puro-sangue. Tinha um rosto profundo e pensativo, tornado ainda mais bonito por causa da irreprimível

determinação de seus traços perfeitos — um rosto que poderia até ter passado sem eles. Em sua perfeição ao mesmo tempo graciosa e rígida, era o tipo de garota americana que nos faz imaginar se o macho não está sendo sacrificado por ela, assim como, no século passado, os estratos sociais mais baixos da Inglaterra eram sacrificados para produzir a classe dominante. Os dois rapazes que saíam da água enquanto ela entrava tinham ombros largos e rostos vazios. Ela dirigiu-lhes o sorriso que eles mereciam, como se dissesse que aquilo devia bastar, enquanto ela não escolhesse um deles como pai de seus filhos. Henry Marston admirou-a quando seus braços, como peixes voadores, afastaram as ondas e seu corpo mergulhou como um cisne ou saltou, dobrado como um canivete, do pequeno trampolim e veio novamente à tona, enquanto ela tirava do rosto as mechas úmidas. Os dois rapazes passaram por eles. “Eles nadam”, disse Choupette, “depois vão para outra praia e nadam de novo. Passam meses na França e não sabem nem o nome do presidente. Há mais de cem anos a Europa não conhecia tais parasitas.” Mas Henry tinha se posto de pé, como, subitamente, quase todas as pessoas na praia. Algo estava acontecendo a poucos metros da areia: a cabeça loura apareceu na superfície, mas, em vez de afastar os cabelos, agora gritava: “Au secours! Socorro!”, com voz fraca e assustada. “Henry!”, gritou Choupette. “Pare, Henry!” A praia estava quase deserta àquela hora, mas Henry e diversos outros correram em direção à água. Os dois jovens americanos também ouviram o grito e correram atrás. Naqueles frenéticos segundos, uma meia dúzia de homens atirou-se ao mar. Choupette, ainda agarrada a seu parasol, mas conseguindo agitar os braços ao mesmo tempo, corria pela praia gritando: “Henry! Henry!”. Agora havia mais gente ajudando e, de repente, formaram-se dois grupos ao redor de figuras prostradas na areia. O rapaz que salvara a moça conseguiu fazê-la voltar a si num minuto ou pouco mais, mas os outros tiveram mais trabalho para tirar a água de Henry, que nunca aprendera a nadar.

II. “Este é o homem que não sabia se sabia nadar porque nunca tinha tentado.” Henry levantou-se de sua cadeirinha na praia, rindo. Era a manhã seguinte, e a garota que havia sido salva acabara de chegar à praia com o irmão. Sorriu de volta para Henry, um sorriso aparentando mais casualidade que gratidão. “No mínimo devo-lhe isto: ensiná-lo a nadar”, disse ela. “Gostaria de aprender. Foi o que decidi ontem, antes de engolir água pela décima vez.” “Pode confiar em mim. Nunca mais tomarei sorvete de chocolate antes de mergulhar.” Quando ela caiu n’água, Choupette perguntou: “Quanto tempo mais vamos ficar aqui? Depois de algum tempo, isto cansa”. “Vamos ficar até eu aprender a nadar. E os garotos também.” “Está bem. Vi um calção bonito em dois tons de azul, por cinqüenta francos, que vou lhe comprar esta tarde.” Sentindo-se um pouco gordo e doentiamente branco, Henry tomou as crianças pela mão e caminhou até o mar. A arrebentação veio até ele, açoitando-o, enquanto os meninos gritavam em êxtase; a maré vazante enroscou-se ameaçadoramente em seus pés, deixando-o num equilíbrio instável. Avançou mais uns passos até ficar com água pela cintura, juntamente com outras almas temerosas, e observou os corajosos que subiam à torre para mergulhar. Esperava que a jovem aparecesse para cumprir sua promessa. Mas ficou embaraçado quando ela surgiu.

“Vou começar com o mais velho. Observe e tente fazer igual.” Henry espojou-se na água. Ela penetrou por seu nariz, cegou-o momentaneamente e invadiu-lhe os ouvidos, fazendo-os chacoalhar como seixos ainda horas depois. O sol também o descobriu e castigou suas costas, provocando-lhe várias noites de agonia e desfazendo-o depois em longas tiras de pele. Em uma semana já conseguia nadar, penosa e desajeitadamente, e não muito longe. A moça ensinou-lhe uma espécie de crawl, porque ele descobrira que o nado de peito era uma técnica obsoleta, própria para velhos e ineptos. Choupette surpreendeu-o admirando sua própria face bronzeada ao espelho, e o garoto mais novo contraiu uma micose na areia que o afastou da competição. Um dia, Henry nadou desesperadamente até a balsa e conseguiu chegar — sem fôlego, mas vitorioso. “Bem, isso resolvido”, ele disse à moça, “já posso deixar St. Jean amanhã.” “Lamento muito.” “O que fará agora?”, perguntou ele. “Meu irmão e eu vamos a Antibes; em outubro, lá é ótimo para nadar. Depois iremos à Flórida.” “Só para nadar?”, ele perguntou com divertido espanto. “Sim.” “Por que gosta tanto de nadar?” “Para ficar limpa”, ela respondeu, de maneira surpreendente. “Limpa de quê?” Franziu a testa. “Não sei por que disse isso. Não sei, o mar me parece tão limpo.” “Os americanos são muito exigentes quanto a isso”, ele comentou. “São?” “Quero dizer, às vezes somos difíceis de contentar até quanto a limpar nossas mazelas.” “Não sei.” “Mas, diga-me, por que você...” Calou-se. Ia lhe pedir que explicasse uma série de coisas — como o que era limpo ou não, o que valia a pena conhecer ou o que não passava de conversa fiada — para abrir-lhe novos horizontes de vida. Olhando pela última vez dentro de seus olhos, cheios de frios segredos, deu-se conta de quanto iria sentir falta daquelas manhãs, embora não soubesse se era a garota que tanto o interessava ou se era o que ela representava de seu país distante. “Está bem”, disse a Choupette naquela noite. “Vamos embora amanhã.” “Para Paris?” “Para a América.” “Eu também vou? E as crianças também?” “Sim.” “Mas isso é absurdo”, ela protestou. “Na última vez que fomos, custou-nos mais do que seis meses aqui. E éramos só três naquela época. Justamente agora que estávamos equilibrando as...” “É por isso mesmo. Estou cansado de equilibrar as finanças, obrigando-a a economizar e a não comprar vestidos. Preciso ganhar mais dinheiro. Os americanos não existem sem dinheiro.” “Então vamos morar lá?” “É bem possível.” Olharam-se bem nos olhos e, muito a contragosto, Choupette entendeu. Durante oito anos, por um processo de incessante adaptação, ele vivera a vida dela, trocando a confusão moral de seu próprio país pela tradição, sabedoria e sofisticação da França. Depois daquele incidente em Paris, Henry decidira que a melhor política seria compreender, perdoar e tentar preservar o casamento como algo alheio aos caprichos do amor. Só agora, vendendo uma saúde de que não gozava havia anos, é que

identificava sua verdadeira reação. Sentia-se livre. Apesar de toda a sensação de perda, sentia-se possuído novamente da firmeza masculina que lhe permitira conquistar aquela esperta garota provençal oito anos antes. Ela resistiu um pouco. “Mas você está numa boa posição e temos bastante dinheiro. Podemos viver mais barato aqui.” “Os meninos estão crescendo, e não sei se quero que eles sejam educados na França.” “Mas isso já estava decidido!”, ela gemeu. “Você mesmo admitiu que a educação na América é superficial e sujeita a modas tolas e passageiras. Quer que eles sejam como aqueles dois bobocas na praia?” “Talvez estivesse pensando mais em mim, Choupette. Garotos mal saídos da universidade, que me pediam empréstimo no banco há oito anos, hoje andam em carros de dez mil dólares. Nunca me importei. Dizia a mim mesmo que eu tinha outras vantagens, só porque sabíamos escolher as melhores lagostas nos restaurantes. Talvez isso já não seja tão importante para mim agora.” Ela se empertigou. “Se é assim...” “Cabe agora a você. Vamos começar tudo de novo.” Choupette pensou um pouco. “Claro, minha irmã pode ficar com nosso apartamento.” “Claro!” Ele se entusiasmou. “E você vai adorar. Teremos um carro enorme, uma geladeira e todas aquelas maquininhas engraçadas que dispensam os empregados. Será ótimo. Você aprenderá a jogar golfe e a falar de crianças o dia inteiro. E iremos todos os dias ao cinema.” Choupette grunhiu. “Será horrível a princípio”, ele admitiu, “mas ainda há umas boas cozinheiras negras, e talvez possamos ter dois banheiros.” “Sou incapaz de usar mais de um ao mesmo tempo.” “Você vai aprender.” Um mês depois, quando a bela ilha branca parecia flutuar em sua direção nos Estreitos, Henry sentiu um nó na garganta e teve ganas de gritar para Choupette e todos os estrangeiros: “Olhem lá! Estão vendo?”.

III. Quase três anos depois, Henry Marston saiu de sua sala na Calumet Tobacco Company e atravessou o saguão em direção ao gabinete do juiz Waterbury. Parecia mais velho, com um traço de amargura no rosto e o começo de uma obesidade que o terno de linho branco não se dispunha a esconder. “Está ocupado, juiz?” “Entre, Henry.” “Vou para a praia amanhã, nadar um pouco para tentar derreter a gordura. Gostaria de falar-lhe antes de viajar.” “As crianças também vão?” “Ahn? Ah, sim, claro.” “Choupette irá à França, pelo que suponho.” “Este ano, não. Acho que irá comigo, se não ficar aqui em Richmond.” O juiz pensou: Não há dúvida de que ele sabe de tudo. Esperou. “Gostaria de comunicar-lhe, juiz, que vou embora no fim de setembro.” “Vai se demitir, Henry?” “Não exatamente. Walter Ross quer voltar para cá; assim, vou ficar com o lugar dele na França.”

“Rapaz, sabe quanto pagamos a Walter Ross?” “Sete mil dólares por ano.” “E você está ganhando vinte e cinco mil!” “Talvez o senhor tenha ouvido dizer que ganhei alguma coisinha na Bolsa”, disse Henry, meio em tom de zombaria. “Ouvi dizer qualquer coisa entre cem mil e quinhentos mil dólares.” “Nem tanto, nem tão pouco.” “Então, por que aceitar um emprego de sete mil dólares por ano? Choupette está querendo voltar?” “Não, acho que Choupette gosta daqui. Aliás, adaptou-se espantosamente.” Ele sabe, pensou o juiz. Por isso resolveu ir embora. Quando Henry saiu, o juiz olhou para o retrato de seu avô na parede. Naquele tempo, o assunto seria resolvido de maneira mais simples. Um duelo à pistola ao cair da tarde. Ainda bem, para Henry, que as coisas eram diferentes hoje. O motorista de Henry deixou-o em frente a uma casa georgiana, num bairro novo, afastado da cidade. Henry pendurou seu chapéu no hall e foi direto à varanda lateral. Choupette sorria, sentada num balanço. Exceto por uma certa agudeza nos traços e uma indefinível vocação para ajeitar as coisas, poderia passar por americana. Falava as gírias locais com sotaque francês e, nos bailes, os rapazes da faculdade vinham tirá-la para dançar. Henry dirigiu-se ao sr. Charles Wiese, sentado numa cadeira de vime, com um gin fizz ao lado. “Quero falar com vocês”, disse Henry, sentando-se. Wiese e Choupette trocaram um rápido olhar antes de olharem para ele. “Você é um homem livre, Wiese”, disse Henry. “Por que não se casa com Choupette?” Choupette saltou do balanço, os olhos faiscando. “Calma”, disse Henry, voltando-se para Wiese. “Tenho deixado essa coisa correr há cerca de um ano, enquanto acertava minha situação financeira. Mas esta idéia brilhante que vocês tiveram há pouco me perturbou, fazendo com que me sentisse meio sórdido, e não quero me sentir assim.” “O que está querendo dizer?”, perguntou Wiese. “Na minha última viagem a Nova York, vocês mandaram alguém me seguir. Imagino que com a intenção de reunir provas contra mim, tendo em vista um possível divórcio. Pois fracassaram.” “Não sei de onde tirou essa idéia, Marston; você...” “Não minta!” “Mas...” “Não quero saber de mas, e não tente se fazer de valente. Você não está falando com um matuto assustado. Não quero fazer uma cena; minhas emoções não estão exigindo isso. Quero providenciar o divórcio.” “Por que tratar as coisas desse jeito?”, gritou Choupette em francês. “Não poderíamos falar a sós, se você acha que tem tanto contra mim?” “Espere um pouco: podemos acertar isto agora”, disse Wiese. “Choupette também quer se divorciar. A vida dela com você não a satisfaz, e a única razão pela qual manteve esse casamento é porque é uma idealista. Para você, isso talvez não queira dizer nada, mas a verdade é que ela não gostaria de destruir este lar.” “Muito tocante.” Henry olhou para Choupette com amargo divertimento. “Mas vamos aos fatos. Gostaria de decidir isso antes de voltar para a França.” Wiese e Choupette trocaram outro olhar.

“Parece simples”, disse Wiese. “Choupette não quer um centavo seu.” “Eu sei. O que ela quer são os filhos. O problema é o seguinte: ela não ficará com os filhos.” “Mas isso é o fim!”, gritou Choupette. “Chegou a pensar por um minuto que eu ficaria sem meus filhos?” “Quais são seus planos, Marston?”, perguntou Wiese. “Levá-los de volta para a França e transformá-los em expatriados como você?” “De modo algum. Irão estudar em St. Regis e depois em Yale. E não tenho a menor intenção de impedi-los de ver a mãe, quando ela quiser — o que, a julgar pelos últimos dois anos, não será coisa freqüente. Mas pretendo manter toda a custódia legal.” “Por quê?”, eles perguntaram juntos. “Por causa do lar.” “O que quer dizer?” “Prefiro que eles aprendam uma profissão a deixá-los crescer no tipo de lar que você e Choupette vão construir.” Houve um momento de silêncio. De repente, Choupette pegou seu copo, atirou a bebida em Henry e prorrompeu em soluços. Henry enxugou o rosto com o lenço e levantou-se. “Eu temia isto, mas acho que deixei clara minha posição.” Subiu para seu quarto e deitou-se na cama. Nas mil horas que passara acordado no último ano, ruminara em sua mente o problema de conservar os meninos sem tomar as medidas legais a que talvez fosse obrigado contra Choupette. Sabia que ela queria as crianças porque, sem elas, se tornaria suspeita, até mesmo déclassée, para sua família na França; mas, com aquelas características típicas das pessoas bem-nascidas, Henry reconhecia isso como um motivo perfeitamente legítimo. Além disso, nenhum escândalo público deveria ferir a mãe de seus filhos — e era isso que tornara seu desafio tão tímido naquela tarde. Quando as dificuldades ficaram insuperáveis, inevitáveis, Henry procurou consolo no mar. Durante três anos, nadar se tornara uma espécie de fuga, e ele dedicou-se àquilo como quem se dedica à música ou à bebida. Houve um ponto em que parou de pensar e decidiu ir para a costa da Virgínia, a fim de nadar e afogar as mágoas no oceano. Além da arrebentação, podia contemplar o horizonte verde e castanho do Old Dominium com a tranqüila impessoalidade de um cetáceo. A carga de seu casamento destruído dissolvia-se no choque de seu corpo contra as ondas e ele parecia mover-se no espaço de um sonho de criança. Namoradas de juventude até então esquecidas nadavam com ele em sua imaginação; às vezes, imaginando ter os filhos a seu lado, Henry sonhava que suas braçadas podiam atingir a lua. Por que os americanos não nasciam com nadadeiras?, pensava Henry; mas quem sabe nasciam (não seria o dinheiro uma espécie de nadadeira?). Na Inglaterra, a propriedade trazia uma forte sensação de segurança; os americanos, porém, inquietos e sem raízes, precisavam de asas e nadadeiras. Era comum na América a idéia de que a educação deveria deixar de lado a história e o passado, para estimular um tipo de aventureirismo que não seria tolhido pelos lastros da hereditariedade ou da tradição. Ao pensar nisso enquanto nadava, na tarde seguinte, Henry lembrou-se das crianças; virou-se e, com lentas braçadas, dirigiu-se para a praia. Quase sem fôlego, descansou numa balsa a meio caminho e, levantando os olhos, defrontou-se com olhos familiares. No momento seguinte, estava falando com a moça a quem ele tentara salvar havia apenas quatro anos. Ficou radiante. Nunca tinha se dado conta de como sempre se lembrava dela. Era também da Virgínia — e por que ele não percebera isso antes? A mesma preguiça, a mesma tranqüilidade

displicente tentando mascarar uma infalível gentileza e consideração, a forma desprovida de formas. Ao ouvir seu sobrenome pela primeira vez, ele o reconheceu como tão “bom” quanto o seu. Deitados ao sol, falaram como velhos amigos — nada sobre os problemas de suas cidades ou de como Henry estava sofrendo por causa de Choupette, mas apenas sobre aquilo com que concordavam — falaram de tudo que gostavam ou que achavam divertido. Ela lhe ensinou um certo salto do trampolim, meio sentado, meio de pé, e ele tentou aprender — foi engraçado. Falaram sobre as delícias dos caranguejos e ela lhe mostrou como, devido à curiosa acústica da água, podiam escutar dali a conversa dos hóspedes na varanda do hotel, a alguns metros. Quando tentaram fazer isso, duas senhoras estavam dizendo: “Porque no Lido...” “Porque em Asbury Park...” “Ora, ela passou a noite se coçando, se coçou a noite inteira...” “Mas, meu bem, em Deauville...” “... se coçou a noite inteira.” Em pouco tempo, o mar tingiu-se do típico azul das quatro da tarde e a moça lhe disse que, aos dezenove anos, divorciara-se de um espanhol que a trancava no quarto do hotel quando saía para a farra. “Mas isso já passou”, ela disse, rindo. “Falando de coisas mais animadas, como vai sua bela esposa? E os meninos, aprenderam a nadar? Por que todos vocês não jantam comigo esta noite?” “Acho que não será possível”, ele disse depois de pensar um pouco. Não poderia fazer nada, nem o mais corriqueiro, nada que pudesse alimentar os argumentos de Choupette, e, com uma sensação de desgosto, ocorreu-lhe que poderia estar sendo vigiado naquele próprio momento. No entanto, rejubilou-se por sua precaução quando, inesperadamente, Choupette apareceu no restaurante do hotel naquela noite. Depois que os garotos foram dormir, os dois se defrontaram durante o café na varanda do hotel. “Pode me explicar por que não posso ter direito a meus filhos?”, disse Choupete. “Você não é do tipo vingativo, Henry.” Foi difícil para Henry explicar. Disse-lhe novamente que ela poderia ver os filhos quando quisesse, mas que ele deveria exercer absoluto controle sobre eles, por causa de certas convicções antiquadas. Mas, ao ver que o rosto dela ficava mais duro, minuto a minuto, concluiu que não adiantava, e desistiu. Ela fez um som de desprezo. “Apenas tentei lhe dar uma oportunidade de ser razoável antes de Charles chegar.” Henry levantou-se: “Ele vai estar aqui esta noite?”. “Felizmente. E acho que isso pode balançar o seu egoísmo, Henry. Você agora não está lidando com uma mulher.” Quando Wiese entrou, uma hora depois, Henry viu que seus lábios estavam brancos como giz; o sangue parecia lhe ter subido todo à testa e havia uma dura expressão de confiança em seus olhos. Estava pronto para agir e não queria desperdiçar tempo. “Temos uma coisa para conversar, Marston. Estou com a lancha aqui, talvez seja o melhor lugar.” Henry assentiu friamente. Cinco minutos depois, os três navegavam por Hampton Roads, sob intenso luar. Era uma noite tranqüila e, a meia milha da costa, Wiese reduziu a marcha e deixou o motor roncando baixinho na água prateada. Sua voz quebrou abruptamente o silêncio. “Marston, vou lhe falar com toda a franqueza. Amo Choupette e não preciso pedir-lhe desculpas por isso. Já aconteceu antes e vai acontecer outras vezes. O único problema é a custódia dos filhos de Choupette. Você parece decidido a tomá-los da mãe”, as palavras de Wiese pareciam agora mais

articuladas, como se saíssem de uma boca maior, “mas esqueceu-se de me incluir nos seus cálculos. Está sabendo que eu sou, neste momento, um dos homens mais ricos da Virgínia?” “Ouvi dizer.” “Pois bem, dinheiro é poder, Marston. Repito, dinheiro é poder.” “Ouvi dizer isso também. Na verdade, você é um chato, Wiese.” Mesmo à luz da lua, Henry podia ver o rosto dele ficar escarlate de ódio. “E vai ouvir de novo, Marston. Ontem você nos pegou de surpresa e eu não estava preparado para sua brutalidade para com Choupette. Mas hoje de manhã recebi uma carta de Paris que esclarece algumas coisinhas. É um atestado de um especialista em doenças mentais, declarando-o desequilibrado e incapaz de deter a custódia dos filhos. Esse especialista é o que o atendeu no seu colapso nervoso há quatro anos.” Henry riu, incrédulo, e olhou para Choupette, como se esperasse que ela risse também, mas ela virou o rosto para o outro lado, ofegante. De repente, ele se deu conta de que Wiese falava sério — que, através de algum extraordinário suborno, tinha realmente conseguido aquele documento e pretendia usá-lo. Por um momento, Henry reagiu como se tivesse levado uma bofetada. Ouviu sua própria voz dizendo: “É a coisa mais ridícula que já ouvi!” — e a voz de Wiese, calmamente: “Nem sempre eles dizem às pessoas que elas estão com problemas mentais”. Henry queria rir, e, por um instante terrível, chegou a imaginar se não haveria uma sombra de verdade na alegação do documento. Virou-se para Choupette, mas, novamente, ela desviou os olhos. “Como foi capaz de uma coisa destas, Choupette?” “Quero meus filhos comigo”, ela começou a dizer, mas Wiese cortou-a: “Se você tivesse sido ao menos razoável, Marston, não precisaríamos ter apelado para isto.” “Está tentando me fazer acreditar que arranjou esse truque sujo ontem à tarde?” “Gosto de estar preparado, no caso de as pessoas não serem razoáveis; na realidade, se você for mais flexível, esse atestado não precisará ser usado.” Sua voz pareceu, de repente, quase paternal, quase amável: “Seja esperto, Marston. Seu único trunfo é uma fanática obstinação; os meus são quarenta milhões de dólares. Deixe-me repetir, Marston, que dinheiro é poder. Você ficou fora tanto tempo que talvez tenha se esquecido disso. O dinheiro fez este país, construiu suas grandes e gloriosas cidades, criou suas indústrias e cortou-o com uma rede de estradas de ferro. É o dinheiro que doma as forças da natureza, cria as máquinas. Elas funcionam quando o dinheiro quer e só param quando o dinheiro quer”. Quase interpretando aquilo como uma ordem, o motor emitiu um som roufenho e parou. “O que foi isto?”, perguntou Choupette. “Não foi nada.” Wiese pisou no acelerador. “Repito, Marston, que dinheiro... a bateria está arriada. Um minuto enquanto tento com a chave da ignição.” Girou a chave durante mais de quinze minutos, mas o barco limitou-se a descrever um pequeno círculo na água. “Choupette, abra essa gaveta atrás de você e veja se há um foguete dentro dela.” Com voz de pânico, Choupette respondeu que não havia. Wiese olhou para a costa. “Gritar seria inútil; estamos a meia milha. Vamos ter que esperar por aqui até que alguém apareça.” “Não vamos esperar aqui”, disse Henry. “Por que não?” “Estamos sendo levados em direção à baía. Não está vendo? A correnteza está nos levando.”

“Impossível!”, gritou Choupette. “Veja aquelas duas luzes na costa — acabamos de passar por uma delas. Viu?” “Faça alguma coisa!”, ela gemeu, e depois explodiu em francês: “Ah, c’est épouvantable! N’est-ce pas qu’il y a quelque chose qu’on peut faire?”. A correnteza agora parecia mais intensa, levando o barco em direção ao mar. Os vagos borrões de luzes de dois navios passaram por eles a enorme distância e, naturalmente, ignoraram seus gritos de socorro. Um farol também pareceu piscar, mas era impossível avaliar se passariam longe ou perto dele. “Parece que nossos problemas se resolverão por si”, disse Henry. “Que problemas?”, perguntou Choupette. “Quer dizer que não há nada a fazer? Como pode ficar sentado aí, esperando para morrer?” “Talvez seja melhor para as crianças, afinal de contas.” Choupette começou a chorar, mas Henry preferiu ignorar. Uma idéia sombria começava a tomar forma em sua mente. “Olhe aqui, Marston. Sabe nadar?”, perguntou Wiese. “Sei. Mas Choupette, não.” “Nem eu. Não quis dizer isso. Se você pudesse nadar até a costa e achar um telefone, a guardacosteira viria nos salvar.” Henry perscrutou a costa, escura e distante. “É muito longe”, disse. “Não pode tentar?”, perguntou Choupette. Henry fez que não. “É muito arriscado. Além disso, há a possibilidade de alguém vir nos apanhar.” O farol passou por eles, longe, à esquerda, fora do alcance de seus gritos. Outro farol, o último, brilhava meia milha adiante. “Quem sabe poderíamos ir à deriva até a França, como aquele sujeito, o tal de Gerbault”, brincou Henry. “Não, não, aí seríamos expatriados, e Wiese não gosta disso, não é, Wiese?” Wiese, tentando desesperadamente ligar o motor, gritou-lhe: “Veja o que consegue com isso!” “Não entendo nada desse assunto”, respondeu Henry. “Além disso, estou cada vez mais interessado nessa solução que o destino nos propôs. Supondo que você fosse canalha o suficiente para usar aquele atestado médico e tomar meus filhos de mim, eu não teria muita vontade de continuar vivendo. Somos todos uns fracassos — eu, como chefe do meu lar; Choupette, como esposa e mãe; e você, Wiese, como ser humano. Nada de mais sermos despachados os três juntos.” “Não é hora de discursos, Marston.” “Como não? Agora é a sua vez: fale de novo a respeito de dinheiro e poder.” Choupette sentou-se rígida; Wiese continuava lutando contra o motor, mordendo nervosamente os lábios. “Não vamos passar muito perto daquele farol.” Uma idéia subitamente lhe ocorreu. “Não consegue nadar até ele, Marston?” “Claro que ele conseguiria!”, gritou Choupette. Henry tentou calcular a distância. “Talvez. Mas não vou tentar.” “Você tem que tentar!” De novo ele fingiu ignorar o choro de Choupette. Ao mesmo tempo, viu que a hora tinha chegado. “Tudo depende de uma coisinha”, disse rapidamente. “Wiese, tem papel e caneta?”

“Sim. Para quê?” “Se escrever e assinar o que lhe vou ditar, nadarei até o farol e conseguirei socorro. Se não fizer isso, Deus me livre, mas seremos levados para o mar. É melhor decidir em menos de um minuto.” “Qualquer coisa!”, gritou Choupette freneticamente. “Faça o que ele está dizendo, Charles! Ele está falando sério! Por favor, não espere mais!” “Está bem, farei o que você quiser...”, a voz de Wiese tremia, “mas ande logo. O que quer? Uma declaração sobre as crianças? Eu lhe darei minha palavra de honra que...” “Isto não é uma comédia, Wiese.” Cortou Henry selvagemente. “Comece a escrever!” As duas páginas que Wiese escreveu, ditadas por Henry, declaravam que Wiese e Choupette abriam mão de todos os direitos sobre os filhos, para sempre. Quando ambos assinaram o documento, com mãos trêmulas, Wiese gritou: “Agora vá, pelo amor de Deus, antes que seja tarde!” “Só mais uma coisa: o atestado médico.” “Não está comigo aqui!” “É mentira!” Wiese tirou-o do bolso. “Escreva no verso quanto pagou por ele”, ordenou Henry, “e assine!” Um minuto depois, de cuecas, e com os papéis protegidos numa bolsa de fumo encerada, amarrada ao pescoço, Henry mergulhou e nadou em direção à luz. O primeiro choque com a água fria foi desagradável, mas, passado esse instante, o rio tornou-se morno e acolhedor. As próprias ondas pareciam encorajá-lo. Era a maior distância que já se propusera a nadar, mas a felicidade em seu coração dava-lhe forças. Bastava saber que estava salvo agora — e livre. Cada braçada era mais forte, ao ter certeza de que seus dois filhos, dormindo tranqüilos no hotel, estavam livres do que ele temia. Divorciada de seu próprio país, Choupette assimilara depressa certas características da vida americana que mais se identificavam com seu egoísmo. Teria sido insuportável para Henry que, protegida por uma decisão da Justiça, Choupette pudesse ficar com as crianças, valendo-se de uma farsa como a daquele atestado. Henry teria perdido seus filhos para sempre. Virando-se para olhar, viu que o barco estava longe e o farol mais perto. Sentia-se muito cansado. Se se soltasse — e, no relaxar da tensão, sentiu um alarmante impulso de se soltar —, morreria depressa e sem dor, e todos os seus problemas de ódio e amargura desapareceriam. Mas o destino de seus filhos estava na bolsa de fumo ao redor do pescoço e, redobrando os esforços, concentrou todas as suas energias em direção ao farol. Vinte minutos depois, ele tremia e pingava na sala de sinalização do farol, o qual transmitia para toda a guarda-costeira que uma lancha estava à deriva na baía. “Não há muito perigo, desde que não caia uma tempestade”, disse o vigia. “A esta altura já devem ter pego uma corrente que os levará a Peyton Harbor.” “Sim”, disse Henry, que freqüentara aquela costa nos últimos três verões, “eu sabia disso.”

IV. Em outubro, Henry deixou os filhos internados na escola e embarcou no Majestic para a Europa. Tinha voltado para os Estados Unidos como quem volta para a própria mãe, e recebera até mais do que pedira — dinheiro, libertação de uma situação intolerável e novas forças para lutar por si. Contemplando a cidade que sumia e a costa que se afastava, de seu posto de observação no convés do Majestic, teve uma sensação de gratidão e alegria por saber que a América existia, e que, debaixo

dos horrorosos detritos da indústria, a terra rica ainda pulsava, fértil e luxuriante; e que, no coração de seu povo ingovernável, a velha fé e generosidade se mantinham, às vezes convertendo-se em excesso e fanatismo, mas indomável e invencível. Naquele momento, uma geração perdida estava no comando, mas parecia-lhe que os homens que chegavam, os que haviam lutado na guerra, eram melhores; e sua antiga convicção de que a América era um estranho acidente, um feliz acaso histórico, desfez-se para sempre. O que havia de melhor na América era o que havia de melhor no mundo. Ao se dirigir à cabine do comissário de bordo, esperou que uma passageira desocupasse o guichê. Quando ela se virou, ambos gritaram de surpresa e ele viu que era a moça. “Olá!”, ela disse. “Que bom saber que você está aqui! Vim perguntar ao comissário quando seria aberta a piscina. O bom deste navio é que sempre se pode nadar.” “Por que gosta tanto de nadar?”, ele perguntou. “Você sempre me pergunta isso.” Ela riu. “Talvez você me contasse, se jantássemos juntos esta noite.” Mas quando se despediram, descobriu que ela nunca saberia lhe contar — nem ela nem ninguém. A França era a terra, a Inglaterra era o povo, mas a América era difícil de definir — eram os túmulos da Guerra Civil, os rostos cansados e nervosos de seus grandes homens, os rapazes morrendo no Oeste por uma frase que já não queria dizer nada antes mesmo que seus corpos estrebuchassem. Era um querer do coração. (1929)

Dois equívocos

Olhe este sapato”, disse Bill, “vinte e oito dólares.”



O sr. Brancusi olhou. “Bonito.” “Feito sob medida.” “Eu sabia que você era meio janota. Mas não foi para me mostrar o sapato que você me trouxe aqui, foi?” “Não sou janota. Quem disse que eu era?”, perguntou Bill. “Só porque estudei mais que a maioria dos artistas?” “Além disso, é jovem e bonitão”, disse Brancusi secamente. “Claro que sou — comparado a você, pelo menos. As moças pensam que sou ator, até descobrirem... Tem um cigarro? Mas, principalmente, sei que pareço um homem, o que não se pode dizer da maioria daqueles garotos bonitinhos em Times Square.” “Bonitão. Educado. Bom sapato. E com uma sorte...” “Aí é que você se engana”, objetou Bill. “Cérebro. Três anos, nove peças, quatro grandes sucessos, só um fracasso... Onde entra a sorte nisso?” Um pouco entediado, o olhar de Brancusi se perdeu. O que ele teria visto, se não tivesse desviado seus olhos opacos e se concentrado em outra coisa, era um jovem irlandês de rosto fresco porejando agressividade e autoconfiança e com ela impregnando toda a atmosfera do escritório. Em pouco tempo, Brancusi sabia, Bill ouviria o som da própria voz, ficaria envergonhado e se refugiaria em seu outro estilo — o de um homem tranqüilamente superior, sensível, patrono das artes, inspirado nos intelectuais do Theatre Guild. Bill McChesney ainda não se decidira por um ou outro, tais misturas raramente se definem antes dos trinta anos. “Veja, por exemplo, Ames, Hopkins ou Harris — qualquer um”, insistiu Bill. “O que eles têm contra mim? Qual é o problema? Quer beber alguma coisa?” “Nunca bebo de manhã. Só queria saber quem está batucando na porta. Faça isso parar. Fico nervoso com esse tipo de coisa.” Bill foi rapidamente à porta e escancarou-a. “Ninguém”, ele disse... “Ora! O que deseja?” “Ah, desculpe”, respondeu uma voz. “Mil perdões. Estava tão excitada que não percebi que estava com este lápis na mão.” “O que você quer?” “Queria falar com o senhor, mas o empregado disse que o senhor estava muito ocupado. Trago esta carta de Alan Rogers, o dramaturgo, e queria lhe entregar pessoalmente.” “Estou ocupado”, disse Bill. “Procure o senhor Cadorna.” “Procurei, mas ele me desencorajou, e o senhor Rogers disse...” Brancusi, inquieto, olhou rapidamente para ela. Muito jovem, com um belo cabelo ruivo e um rosto

com mais personalidade que sua tagarelice parecia indicar; não ocorreu ao sr. Brancusi que isso se devia ao fato de ela ser de Delaney, na Carolina do Sul. “O que devo fazer?”, ela perguntou, depositando tranqüilamente seu futuro nas mãos de Bill. “Bem, o que você quer que eu faça... que me case com você?”, explodiu Bill. “Gostaria de ter um papel numa peça sua.” “Então sente-se e espere. Estou ocupado. Senhorita Cohalan!” Tocou uma campainha, olhou azedo de novo para a moça e fechou a porta do escritório. Mas, durante a interrupção, seu outro estilo veio à tona e ele retomou a conversa com Brancusi na clave de quem era unha e carne com Max Reinhardt na luta pelo futuro artístico do teatro. Por volta de meio-dia e meia, já tinha esquecido tudo, exceto que ia ser o maior produtor teatral do mundo e que havia marcado um almoço com Sol Lincoln para lhe dizer isso. Ao sair do escritório, olhou expectante para a srta. Cohalan. “O senhor Lincoln não poderá almoçar com o senhor”, ela disse. “Ligou agorinha mesmo.” “Agorinha mesmo”, repetiu Bill, chocado. “Está bem. Risque o nome dele da lista de quinta-feira à noite.” A srta. Cohalan riscou alguma coisa numa folha de papel. “Senhor McChesney, o senhor não se esqueceu de mim, não?”, disse uma voz atrás dele. Virou-se e viu a moça ruiva. “Não”, disse com ar distante, e, de novo para a srta. Cohalan: “Tudo bem, convide-o para a quinta-feira ainda assim. Ou que vá para o inferno”. Não queria almoçar sozinho. Passara a não gostar de fazer nada sozinho, porque é divertido estabelecer contatos quando se tem proeminência e poder. “Se pudesse falar com o senhor por dois minutos...”, ela começou. “Lamento, mas agora não dá.” E só então se deu conta de que ela era a pessoa mais bonita que já vira na vida. Olhou para a moça. “O senhor Rogers me disse...” “Venha, vamos almoçar”, disse; em seguida, com ar apressado, deu rápidas e contraditórias instruções à srta. Cohalan e abriu a porta para a moça. Saíram na rua 42 e ele respirou todo o ar a que tinha direito — o ar, ali, só é suficiente para algumas pessoas de cada vez. Estávamos em novembro, e a primeira euforia da temporada já terminara, mas ao olhar para leste ele podia ver a marquise em neon de uma de suas peças; ao olhar para oeste, via outra. No teatro da esquina, estava aquela que montara com Brancusi — a última vez que produziria alguma coisa em sociedade com alguém. Foram ao Bedford, onde os garçons e maîtres se agitaram à sua chegada. “Muito bonito este restaurante”, ela disse, impressionada, preparando-se para se enturmar. “É o paraíso dos canastrões.” Acenou para várias pessoas. “Olá, Jimmy… Olá, Bill… Oi, Jack… É Jack Dempsey. Não almoço muito aqui. Geralmente vou ao Harvard Club.” “O senhor freqüenta o Harvard? Ouvi dizer que...” “Sim.” Hesitou. Sua história no Harvard tinha duas versões, e ele se decidiu de repente pela verdadeira. “Sim, e eles costumavam me esnobar como um caipira, mas isso já passou. Uma semana atrás, eu estava em Long Island, no Gouverneer Haights — gente muito chique — e dois rapazes da Costa Dourada, que nunca tinham me visto, vieram com essa de ‘Oi, Bill, meu chapa’.” Hesitou de novo e preferiu parar com a história por ali. “O que você quer? Emprego?”, perguntou. Lembrou-se de que as meias dela estavam esburacadas.

Meias esburacadas sempre o comoviam e amaciavam. “Sim, senão vou ter de voltar para a minha cidade”, ela disse. “Quero ser dançarina — de balé russo. Mas as aulas são muito caras, por isso preciso arranjar um emprego. Além disso, achei que elas podiam me dar um pouco mais de presença de palco.” “Sapateadora, é isso?” “Não, juro.” “Bem, Pavlova é uma espécie de sapateadora, não é?” “Ah, não!” Ela ficou chocada com aquele sacrilégio, mas, depois de um momento, continuou: “Estudei com a senhorita Campbell — Georgia Berriman Campbell — em minha cidade, talvez o senhor tenha ouvido falar dela. Ela estudou com Ned Wayburn e é maravilhosa. Ela...”. “É?”, ele disse, desinteressado. “Olhe, a concorrência é dura, as agências estão até o teto de gente que diz que sabe fazer de tudo, até que faço um teste com elas. Que idade você tem?” “Dezoito anos.” “Estou com vinte e seis. Cheguei aqui há quatro anos, sem um centavo.” “Meu Deus!” “Poderia me aposentar agora e viver confortavelmente pelo resto da vida.” “Meu Deus!” “Vou tirar um ano de férias no ano que vem, me casar... Já ouviu falar de Irene Rikker?” “Claro! Ela é a minha favorita!” “Estamos noivos.” “Meu Deus!” Quando saíram em Times Square, ele disse, descuidadamente: “O que vai fazer agora?” “Ué, continuar procurando emprego.” “Não, digo agora, neste minuto.” “Ora, nada.” “Quer dar um pulo no meu apartamento, na rua 46, para tomar um café?” Seus olhos se encontraram, e Emmy Pinkard decidiu que saberia se cuidar. Era um enorme apartamento do tipo estúdio, bem claro, com um sofá de mais de três metros. Depois que ela tomou um café e ele um uísque com soda, o braço dele pousou em seu ombro. “Por que eu deveria beijá-lo?”, ela perguntou. “Mal o conheço e, além disso, o senhor está noivo de outra.” “Ah! Ela não se importa.” “Não mesmo?” “Você é bem direitinha, hein?” “Bem, certamente não sou uma idiota.” “Está bem, continue sendo direitinha.” Ela se levantou, mas parou por um momento, muito fresca e composta, e nem um pouco aborrecida. “Isso significa que o senhor não me dará emprego, não é isso?” Ele já estava pensando em outra coisa — em uma entrevista e um ensaio —, mas, ao olhar de novo para ela, viu que ainda tinha a meia esburacada. Pegou o telefone. “Joe, aqui é o Metidinho... Pensou que eu não soubesse que você me chama assim, é?... Tudo bem... Já arranjou as três garotas para a cena da festa? Escute, reserve uma vaga para uma garota do Sul que vai procurá-lo ainda hoje.” Olhou jovialmente para ela, consciente de ser um bom sujeito.

“Não sei como lhe agradecer”, ela disse, corajosamente. “E ao senhor Rogers. Até logo, senhor McChesney.” Ele não se dignou a responder.

II. Durante os ensaios, ele começou a aparecer com freqüência no teatro e a observar tudo com uma expressão de sabedoria, como se soubesse o que se passava na cabeça das pessoas. Na verdade, estava meio hipnotizado por sua própria prosperidade, não enxergava mais nada e estava pouco ligando. Passava quase todos os fins de semana em Long Island com os grã-finos que o haviam “adotado”. Quando Brancusi o classificava de “mariposa social”, respondia: “E daí? Não estudei em Harvard? Pensa que eles me acharam na rua, como você?”. Seus novos amigos o estimavam por ser bonito, tranqüilo e bem-sucedido. Seu noivado com Irene Rikker era a coisa mais insatisfatória em sua vida; já tinham se cansado um do outro, mas não se animavam a pôr um fim àquilo. Assim como, com freqüência, os dois jovens mais ricos de uma cidade se atraem pelo dinheiro, Bill McChesney e Irene Rikker, nascidos lado a lado nas vagas do sucesso, não podiam dispensar uma apreciação mútua do que se devia àquele sucesso. Mesmo assim, brigavam para valer, cada vez com mais freqüência, e o fim estava próximo. Este fim se materializou num certo Frank Llewellen, um ator forte e charmoso que trabalhava na peça com Irene. Ao perceber a situação, Bill ficou amargo; a partir da segunda semana de ensaios, começou uma certa tensão no ar. Enquanto isso, Emmy Pinkard, com dinheiro suficiente apenas para leite e biscoitos, além de algum amigo que a convidava para jantar, estava feliz. Seu amigo Easton Hughes, de Delaney, cursava odontologia em Columbia. Às vezes trazia outros rapazes solitários, também futuros dentistas, e, ao preço — se é que se pode chamá-los assim — de alguns beijos inocentes em táxis, Emmy matava a fome com um jantar. Certa tarde ela apresentou Easton a Bill McChesney na saída do teatro e, a partir daí, ele transformou seu ciúme jocoso na base da relação. “Já vi que aquele dentista está se insinuando de novo para você. Se ele quiser jogar gás hilariante em você, não deixe, é o meu conselho.” Embora seus encontros fossem esparsos, viviam flertando. Quando Bill olhava para ela, era como se, por um instante, nunca a tivesse visto, e só então se lembrasse de que ela gostava de ser provocada. Quando era ela quem olhava para ele, via muitas coisas — um dia lindo lá fora, com multidões correndo pelas ruas; uma bela limusine nova em folha estacionada na esquina, à espera de duas pessoas usando roupas bonitas e também novas, que entravam e iam para um lugar parecido com Nova York, só que longe dali e mais divertido. Muitas vezes ela gostaria de tê-lo beijado, mas, em outras tantas, achava melhor não ter feito isso; e, à medida que as semanas se passavam, ele ficou menos romântico e mais ligado, como todos os outros, na trabalhosa evolução da peça. Iam estrear em Atlantic City. Uma súbita irritação, aparente para todo mundo, apossou-se de Bill. Estava impaciente com o diretor e sarcástico com os atores. Comentou-se que a causa disso era o fato de Irene Rikker ter vindo com Frank Llewellen num trem separado da companhia. Sentado com o autor da peça na noite do ensaio geral, parecia uma figura quase sinistra na meia-luz da platéia. Mas não disse nada até o fim do segundo ato quando, com Llewellen e Irene Rikker sozinhos no palco, ele gritou: “Vamos repetir a cena — e que tal acabar com a pieguice?” Llewellen aproximou-se do proscênio: “Que pieguice?”, perguntou. “Essas falas são da peça.”

“Você sabe do que estou falando — limite-se ao que está escrito.” “Não, não sei do que está falando.” Bill se levantou. “Estou falando desses cochichos.” “Mas que cochichos? Só perguntei a ela...” “Chega, faça o que eu disse.” Llewellen virou-se furioso e já estava a ponto de retomar o ensaio, quando ouviu Bill acrescentar: “Mesmo um canastrão tem de seguir o texto”. Llewellen não agüentou: “Não posso tolerar esse tipo de insulto, senhor McChesney”. “Por que não? Você é um canastrão, não é? Já sentiu vergonha de ser um canastrão? Sou eu que estou montando esta peça e exijo que você siga o texto.” Bill levantou-se e desceu pelo corredor. “E, sempre que não fizer isso, vou lhe chamar a atenção como a todo mundo.” “Está bem, mas cuidado com o tom de voz...” “É? O que você vai fazer?” Llewellen pulou para dentro do poço da orquestra. “Não tenho que agüentar nada de você.” Irene Rikker, no palco, gritou: “Pelo amor de Deus, vocês estão loucos?”. Nesse momento, Llewellen deu um soco em Bill, que desmoronou sobre uma fileira de poltronas, caiu em cima de uma, desmontando-a, e ficou estendido ali. Houve um momento de violenta confusão; Llewellen era contido por alguns, o autor, absolutamente pálido, tentava levantar Bill e o diretor-assistente gritava: “Quer que eu mate ele, chefe? Quer que eu quebre a cara dele?”, com Llewellen resfolegando e Irene Rikker apavorada. “Voltem para o palco!”, gritou Bill, passando um lenço no rosto, amparado pelo autor. “Todo mundo de volta ao palco! Retomem a cena, e sem conversa fiada! Volte, Llewellen!” Antes de se darem conta, todos já tinham voltado para o palco, Irene levando Llewellen pelo braço e falando rápido com ele. Alguém acendeu todas as luzes da platéia e depois diminuiu-as às pressas. Quando Emmy deu um passo à frente para fazer sua cena, viu de relance que Bill estava sentado com uma máscara de lenços sobre o rosto ensangüentado. Odiou Llewellen e temeu que, logo depois, eles abandonassem a peça e voltassem para Nova York. Mas Bill salvara o espetáculo, contendo a própria loucura e sabendo que Llewellen não tomaria a iniciativa de pedir demissão, porque isso prejudicaria sua reputação profissional. O ato terminou e o seguinte começou sem intervalo. Quando tudo acabou, Bill já havia saído. Na noite seguinte, durante o espetáculo, ele sentou-se numa poltrona das laterais, à vista de todo mundo que entrasse ou saísse. Seu rosto estava inchado e com escoriações, mas ele parecia não saber disso e ninguém comentou nada. Em certo momento, foi até a frente da platéia e, ao voltar, alguém deixou escapar que duas agências em Nova York estavam comprando grande quantidade de ingressos. Ele tinha um sucesso nas mãos — todos tinham um sucesso nas mãos. À visão do homem a quem Emmy achava que todos deviam tanto, uma onda de gratidão a inundou. Foi até ele e lhe agradeceu. “Sei escolher, ruivinha”, ele concordou, amargo. “Obrigada por ter me escolhido.” Subitamente, Emmy se comoveu e se deixou arrebatar. “Seu rosto está tão machucado!”, exclamou. “Achei tão corajoso de sua parte não ter deixado tudo se perder ontem à noite!” Ele olhou duro para ela por um instante e depois, com um sorriso irônico, tentou, em vão, recompor seu rosto inchado.

“Você me admira, meu bem?” “Sim.” “Mesmo quando me esborrachei sobre as poltronas, você me admirou?” “Você assumiu o controle de tudo tão rápido.” “Isso é que é lealdade. Você achou o que admirar naquela estupidez.” Emmy borbulhava de felicidade: “Não importa, você se comportou maravilhosamente”. Parecia tão fresca e jovem que Bill, que tivera um dia de cão, queria descansar seu rosto inchado contra o dela. Na manhã seguinte ele levou o machucado e o desejo para Nova York. O machucado desapareceu, mas o desejo continuou. Quando estrearam na Broadway e outros homens começaram a ser atraídos pela beleza de Emmy, ela passou a significar para ele a peça, o sucesso e tudo o que ele buscava quando se meteu com o teatro. Depois de uma bela temporada, a peça saiu de cartaz bem na época em que ele estava bebendo demais e precisava de alguém para ajudá-lo a atravessar os dias cinzentos de entressafra. Casaram-se de repente em Connecticut, no começo de junho.

III. Dois homens estavam sentados no Savoy Grill, em Londres, esperando pelo 4 de Julho. Já era fim de maio. “Ele é um sujeito legal?”, perguntou Hubbel. “Muito”, respondeu Brancusi. “Muito legal, bonitão, disputado.” E acrescentou: “Quero fazer com que ele volte”. “É isso que não entendo”, disse Hubbel. “Teatro em Londres não é nada em comparação com Nova York. Por que ele prefere continuar aqui?” “Para circular com esses duques e madames.” “Ah, é?” “Semana passada, quando o encontrei, estava com três fulanas — Lady isso, Lady aquilo, Lady aquilo outro.” “Pensei que fosse casado.” “Casado há três anos”, disse Brancusi, “um filho lindo e outro a caminho.” Interrompeu-se ao ver McChesney chegar, com seu rosto indisfarçavelmente americano saindo do colarinho de um sobretudo com ombreiras e perscrutando o ambiente. “Olá, Mac. Este é meu amigo, senhor Hubbel.” “Oi”, disse Bill. Sentou-se, sem parar de examinar o recinto para ver quem estava presente. Depois de alguns minutos, Hubbel foi embora e Bill perguntou: “Quem é a figura?” “Chegou aqui há um mês. Ainda não ganhou nenhum título de nobreza. Você já está há seis, lembrese.” Bill resmungou. “Você me acha pretensioso, não? Bem, pelo menos não tento me enganar. Gosto das coisas em Londres; sinto-me bem aqui. Gostaria de me tornar o marquês de McChesney.” “Se continuar bebendo desse jeito, talvez você chegue lá”, sugeriu Brancusi. “Cale a boca. Quem lhe disse que estou bebendo? É isso que andam dizendo agora? Olhe, se você me apontar algum outro produtor americano na história do teatro que teve o sucesso que tenho tido em Londres em menos de oito meses, embarco com você para os Estados Unidos amanhã. Se me falar...”

“Sim, com as peças antigas. Depois delas, você teve dois fracassos em Nova York.” Bill levantou-se, sério, agora. “Quem você pensa que é?”, perguntou. “Veio aqui só para me dizer isso?” “Não fique aborrecido, Bill. Só quero que você volte. Digo qualquer coisa para conseguir isso. Se tiver de novo três temporadas como teve em 1922 e 1923, você estará feito para o resto da vida.” “Nova York me dá náuseas”, disse Bill com voz sombria. “Num minuto, você é um rei; aí tem dois fracassos e saem dizendo que você está acabado.” Brancusi sacudiu a cabeça. “Não foi por isso. Foi porque você teve aquela briga com Aronstael, seu melhor amigo.” “Amigo, o cacete!” “Seu melhor amigo no teatro, pelo menos. E aí...” “Não quero falar nisso.” Olhou para o relógio. “Olhe aqui, Emmy não está se sentindo bem, por isso acho que não vou poder jantar com você esta noite. Dê um pulo no escritório antes de embarcar.” Cinco minutos depois, diante da tabacaria, Brancusi viu Bill entrar de novo no Savoy e descer as escadas que levavam ao salão de chá. Está treinando para se tornar um diplomata, pensou Brancusi. Quando tinha um encontro, não escondia de ninguém. Mas, de tanto sair com esses duques e madames, está ficando mais fino. Talvez Brancusi tivesse ficado um pouco magoado, embora não fosse típico dele magoar-se. Fosse como fosse, concluiu ali mesmo que McChesney estava descendo a ladeira e, como era típico de pessoas como ele, apagou-o da mente para sempre. Não havia nenhuma indicação flagrante de que Bill estivesse descendo a ladeira; um sucesso no New Strand, outro no Prince of Wales, e bilheterias semanais quase tão boas quanto as de dois ou três anos antes em Nova York. Um homem de ação como ele tinha seus motivos para mudar de base. E esse homem, que, uma hora depois, voltou para sua casa no Hyde Park para jantar, tinha toda a vitalidade de quem ainda não chegara aos trinta anos. Emmy, muito cansada e desajeitada, descansava num sofá, na sala do andar de cima. Ele a estreitou brevemente nos braços. “Não vai demorar”, disse. “Você está linda.” “Não seja ridículo.” “É verdade. Você está sempre linda. Talvez porque tenha personalidade, e isso está escrito em seu rosto, mesmo quando está desse jeito.” Ela gostou de ouvir aquilo e correu a mão pelo cabelo dele. “Personalidade é a maior coisa do mundo”, ele declarou. “Não conheço ninguém que tenha mais do que você.” “Encontrou-se com Brancusi?” “Sim, mas é um cretino. Decidi não trazê-lo para jantar.” “Qual foi o problema?” “Ah, é a mania de se meter, falando da minha briga com Aronstael como se tivesse sido minha culpa.” Ela hesitou, apertou os lábios e depois disse tranqüilamente: “Você brigou com Aronstael porque estava bêbado”. Ele se levantou, impaciente: “Você também vai começar...” “Não, Bill, mas você anda bebendo muito. Você sabe disso.” Consciente de que ela tinha razão, fugiu do assunto e jantaram. Ao reflexo de uma garrafa de

clarete, decidiu que daria uma parada na bebida a partir do dia seguinte e até o bebê nascer. “Sempre parei quando quis, não foi? E sempre cumpro minhas promessas. Você nunca me viu voltar atrás até hoje.” “Até hoje, não.” Tomaram um café juntos e, em seguida, ele se levantou. “Volte cedo para casa”, disse Emmy. “Claro... Qual é o problema, meu bem?” “Estou só chorando. Não ligue. Ah, vá embora. Não fique parado aí como um idiota.” “Mas é natural que eu fique preocupado. Não gosto de ver você chorar.” “Ah, nunca sei para onde você vai toda noite; não sei com quem se encontra. E essa Lady Sybil Combrinck, que não pára de telefonar. Está tudo bem, eu acho, mas aí acordo de madrugada e me sinto tão só, Bill. Sempre fomos tão unidos, pelo menos até recentemente, não fomos?” “E continuamos unidos... O que está havendo com você, Emmy?” “Eu sei, devo estar ficando louca. Um nunca deixou o outro na mão, não é? Nunca...” “Claro que não.” “Volte mais cedo, ou volte quando puder.” Ele saiu e foi dar uma rápida conferida no espetáculo do teatro Prince of Wales; dali, foi para o hotel vizinho e discou um número. “Gostaria de falar com Sua Senhoria. É o senhor McChesney.” Levou algum tempo para Lady Sybil atender: “Que surpresa. Já faz algumas semanas desde que tive o prazer de ouvir sua voz.” A voz dela estava cortante como um chicote e fria como uma geladeira, no estilo que as damas inglesas tinham adotado em conjunto depois de se verem retratadas pela literatura. Por algum tempo aquilo fascinara Bill, mas só por algum tempo. Ele soubera manter a cabeça. “Não tenho tido um minuto”, explicou, sem vacilar. “Não está chateada, está?” “Eu dificilmente diria ‘chateada’.” “Estava com medo que você estivesse. Afinal, não me mandou o convite para sua festa desta noite. Como falamos tanto a respeito dela, achei que...” “Você falou muito a respeito”, ela disse. “Talvez um pouco demais.” E, de repente, para espanto de Bill, ela bateu o telefone. Dando uma de inglesa comigo, ele pensou. No teatro, seria uma cena intitulada ‘A Filha de Mil Condes’. O fora que levara o excitou e a indiferença reavivou seu até então decrescente interesse. Quase sempre as mulheres perdoavam suas oscilações de sentimento por causa de sua óbvia devoção a Emmy, e ele permanecia na memória de várias delas com um suspiro nada desagradável. Mas não detectara nenhum suspiro do gênero naquele telefonema. Preciso resolver esse problema, pensou. Se estivesse com uma roupa mais formal, daria um pulo à festa e conversaria com ela; ao mesmo tempo, não queria passar em casa para se trocar. Pensou melhor e decidiu que o importante era acabar logo com aquele desentendimento; daí cogitou ir como estava — aos americanos se desculpavam certos não-convencionalismos no vestir. Fosse como fosse, ainda era cedo, e ele dedicou a hora seguinte a pensar sobre o assunto, na companhia de vários drinques. À meia-noite, subiu a escadaria da casa de Lady Sybil, em Mayfair. Os encarregados dos casacos olharam com nariz torcido para seu paletó de tweed e um criado de libré procurou em vão por seu nome na lista de convidados. Por sorte, seu amigo sir Humphrey Dunn chegou nesse momento e

convenceu o criado de que devia ser um engano. Lá dentro, Bill procurou imediatamente pela anfitriã. Era uma mulher ainda jovem e muito alta, meio americana e, mais intensamente ainda, inglesa. De certa forma, fora Lady Sybil quem descobrira Bill McChesney e apostara em seu charme selvagem. Seu sumiço era uma das experiências mais humilhantes por que ela já passara na vida. Lady Sybil se postava com seu marido à frente da fila de recepção — até então, Bill nunca os vira juntos. Bill achou melhor escolher um momento menos formal para se apresentar. Enquanto a recepção dos convidados se arrastava, Bill foi se sentindo cada vez menos à vontade. Identificou algumas pessoas que conhecia, mas não muitas, e sabia que sua roupa estava chamando um pouco a atenção; sabia também que Lady Sybil já o vira, e ela poderia ter aliviado seu embaraço com um aceno, mas não fizera nenhum sinal. Arrependera-se de ter vindo, mas fugir agora seria absurdo e, dirigindo-se ao bufê, pegou uma taça de champanhe. Quando se virou, viu-a finalmente sozinha. Quando estava prestes a se aproximar dela, um mordomo o interceptou: “Com licença, senhor. O senhor está com o convite?” “Sou amigo de Lady Sybil”, disse Bill, impaciente. Afastou-se, mas o mordomo o seguiu. “Desculpe, senhor, mas tenho de pedir-lhe que me siga para podermos resolver essa questão.” “Não há necessidade. Vou falar com Lady Sybil agora mesmo.” “Tenho ordens diferentes, senhor”, disse o mordomo com firmeza. Antes de Bill se dar conta do que estava acontecendo, seus braços estavam sendo pressionados junto ao corpo e ele sendo conduzido a uma pequena ante-sala nos fundos do bufê. Lá, viu um homem de pincenê, que reconheceu como sendo o secretário particular dos Combrinck. O secretário olhou para o mordomo e disse: “É esse o homem”, com o quê Bill foi liberado. “Senhor McChesney”, disse o secretário, “o senhor forçou sua entrada aqui sem convite, e Sua Senhoria solicita que o senhor deixe a casa imediatamente. Pode me passar o cartão de seu casaco?” Só então Bill entendeu, e a única palavra que considerou aplicável a Lady Sybil veio-lhe à boca; o secretário fez um sinal para dois criados e, debatendo-se furiosamente, Bill foi arrastado por uma despensa, sob as vistas dos empregados, depois por um longo hall, e arremessado por uma porta na direção da noite. A porta se fechou. Um instante depois, abriu-se de novo, e dela saíram voando seu casaco e sua bengala, que retiniu nos degraus. De pé ali, atarantado, estupefato, viu parar um táxi e ouviu o motorista perguntar: “Está se sentindo mal, patrão?” “O quê?” “Sei de um lugar onde o senhor pode se recuperar. Nunca é tarde.” A porta do táxi abriu-se para um pesadelo. Viu-se num cabaré que não respeitava o horário de fechamento, brigando com fulanos que também pareciam ter sido apanhados na rua, tentando pagar a conta com um cheque e proclamando aos quatro ventos que era William McChesney, o produtor, e não convencendo ninguém disso, nem a si próprio. Parecia-lhe importante ver Lady Sybil imediatamente e chamá-la às falas; mas, logo depois, nada lhe parecia importante. Estava de novo num táxi e o motorista o sacudia para acordá-lo em frente a sua própria casa. O telefone estava tocando quando ele entrou, mas passou direto pela empregada e só ouviu a voz dela quando seu pé já começava a subir a escada. “Senhor McChesney, é o hospital telefonando de novo. A senhora McChesney foi internada e eles estão telefonando de hora em hora.” Ainda atordoado, ele levou o aparelho ao ouvido.

“Estamos falando do Hospital Midland, em nome de sua esposa. Ele deu à luz uma criança prematura às nove da manhã.” “Espere um pouco.” Sua voz estava seca e quebradiça. “Não estou entendendo.” E só então entendeu que o filho de Emmy estava morto e que ela precisava dele. Seus joelhos vergaram, bêbados, quando correu para a rua em busca de um táxi. O quarto estava escuro. Emmy, entre lençóis amarfanhados, olhou para ele. “Até que enfim!”, gritou. “Pensei que você tivesse morrido! Onde estava?” Ele se jogou de joelhos à beira da cama, mas ela se afastou. “Você está fedendo”, ela disse. “Me dá vontade de vomitar.” Mas ela manteve a mão em seu cabelo e ele ficou ali, ajoelhado, por muito tempo. “Não quero mais saber de você”, ela murmurou, “mas foi horrível pensar que você tinha morrido. Todo mundo morreu. Se eu pudesse, também estaria morta.” Uma cortina se abriu com o vento. Quando ele se levantou para fechá-la, Emmy o viu à luz da manhã, pálido, com um aspecto horrível, roupas amarrotadas e ferimentos no rosto. Desta vez ela o odiou, em vez de odiar os que o tinham ferido. Ela podia senti-lo deslizando de seu coração, sentia o vazio que ele deixava e que tudo de repente acabava, mas podia também perdoá-lo e sentir pena dele. Tudo isso em um minuto. Emmy levara um tombo na porta do hospital, ao tentar descer do táxi sozinha.

IV. Quando Emmy se recuperou, física e mentalmente, foi tomada pela idéia de estudar balé. O velho sonho que lhe fora inculcado pela srta. Georgia Berriman Campbell, da Carolina do Sul, persistira sob a forma de uma avenida iluminada que a levava de volta ao início de sua juventude e aos dias de esperança em Nova York. Para ela, dançar significava aquela elaborada mistura de tortuosas posturas e piruetas criada na Itália vários séculos antes e que chegara ao apogeu na Rússia no começo do século. Queria dedicar-se a algo em que acreditasse, e lhe parecia que a dança era o instrumento feminino para a música; em vez de dedos fortes, ela tinha pernas com as quais interpretar Tchaikovsky e Stravinsky, e pés que podiam ser tão eloqüentes sobre Chopin quanto as vozes em O anel. Na pior das hipóteses, era algo a meio caminho dos acrobatas e das focas amestradas; na melhor, era Pavlova, e era a grande arte. Quando voltaram a se instalar num apartamento em Nova York, ela se atirou à dança como uma garota de dezesseis anos — quatro horas por dia de exercícios na barra, posições, sauts, arabescos e piruetas. Dançar tornou-se a parte mais real de sua vida e sua única preocupação era sobre se já não seria muito velha. Aos vinte e seis anos, tinha dez anos de atraso para tirar, mas era uma dançarina natural, com um corpo excelente — e aquele rosto lindo. Bill estimulou-a. Quando Emmy estivesse pronta, montaria para ela o primeiro balé americano de verdade. Havia momentos em que até invejava a maneira como ela se dedicava, porque, para ele, as coisas estavam difíceis desde que tinham voltado. Entre outros motivos, porque fizera muitos inimigos nos velhos tempos de autoconfiança; e havia histórias exageradas a respeito de seu hábito de beber, de ser duro com os atores e difícil de lidar. Concorria contra ele o fato de ser incapaz de guardar dinheiro e de precisar de quem lhe financiasse cada produção. Por outro lado, o que não deixava de ser curioso, era inteligente, assim como corajoso o bastante para se meter em empreitadas pouco comerciais. Porém, como não tinha o Theatre Guild por trás, sempre que perdia dinheiro isso lhe era cobrado. Teve alguns sucessos também, mas cada vez eles lhe custavam mais caro, ou assim lhe parecia,

porque já começara a pagar o preço de sua vida irregular. Vivia pensando em dar uma parada ou largar de vez seus incessantes cigarros, mas agora havia muita concorrência — novos produtores surgindo, com novas reputações de infalibilidade — e, além disso, não estava habituado à regularidade. Gostava de trabalhar aos arrancos, tomando grandes quantidades de café, o que parece obrigatório no show business mas exige demais de um homem que já passou dos trinta. Acostumarase a depender, de certa forma, da saúde e da vitalidade de Emmy. Estavam sempre juntos e, se sentia alguma insatisfação por precisar mais dela do que ela dele, sempre havia a esperança de que as coisas melhorassem no mês seguinte, ou na temporada seguinte. Ao voltar de uma aula de balé numa noite de novembro, Emmy balançava sua bolsinha cinza, o chapéu jogado para trás sobre o cabelo úmido, enquanto se entregava a agradáveis pensamentos. Havia já um mês que percebia a presença de pessoas no estúdio que tinham ido apenas para observála — ela estava pronta para estrear. Não fazia muito tempo, Emmy se dedicara a uma coisa penosa e arrastada — sua relação com Bill —, apenas para chegar a um clímax de tristeza e desespero, mas agora só dependia de si mesma. Mesmo assim, sentia-se um pouco ousada ao pensar: “Chegou a hora. Vou ser feliz”. Apressou o passo, porque precisava conversar com Bill sobre algo que acontecera naquele dia. Encontrou-o na sala e lhe pediu que voltasse até o quarto enquanto ela se trocava. Começou a falar sem olhar em volta. “Olhe só o que aconteceu!” Falava alto, para competir com o barulho da água correndo na banheira. “Paul Makova quer que eu dance com ele no Metropolitan na próxima temporada. Mas não está certo ainda, é segredo — nem eu devia estar sabendo.” “Ótimo.” “A única dúvida é se não seria melhor para mim estrear fora do país. Mas Doniloff diz que estou pronta para estrear. O que você acha?” “Não sei.” “Você não parece muito entusiasmado.” “Estou pensando em outra coisa, vamos falar sobre isso depois. Continue.” “É só isso, querido. Se você ainda estiver com vontade de passar um mês na Alemanha, como queria, Doniloff dará um jeito para que eu estréie em Berlim, mas eu preferia estrear aqui e dançar com Paul Makova. Imagine só...” Parou de falar ao sentir, através de sua espessa camada de alegria, como ele estava distante. “O que houve?”, perguntou. “Fui ao doutor Kearns esta tarde.” “O que ele disse?” Sua mente continuava cantando de felicidade. Bill, com seus intermitentes ataques de hipocondria, havia muito não a preocupava. “Falei-lhe sobre o sangue de hoje de manhã, e ele repetiu o que já tinha dito no ano passado, que podia ser uma veia arrebentada na garganta. Mas como eu estava tossindo e preocupado, achou melhor eu tirar um raio X e esclarecer a coisa. Bem, agora ficou esclarecido: meu pulmão esquerdo praticamente não existe.” “Bill!” “Por sorte, não há manchas no outro.” Ela esperou, sentindo um medo horrível. “Não podia acontecer em pior hora”, ele continuou, com voz firme, “mas tem de ser enfrentado. Ele acha que eu deveria ir para os Adirondacks ou para Denver no inverno. Prefere Denver. Com isso, posso ficar bom em cinco ou seis meses.”

“Claro que vamos ter de...” Ela se interrompeu bruscamente. “Não conto que você vá, principalmente diante dessa oportunidade de agora.” “Mas claro que eu vou”, ela disse depressa. “Sua saúde está em primeiro lugar. Sempre enfrentamos tudo juntos.” “Ah, não.” “Mas claro.” Ela tornou sua voz forte e decisiva. “Sempre estivemos juntos. Eu não conseguiria ficar aqui sem você. Quando terá de ir?” “O mais rápido possível. Fui ao Brancusi para ver se ele queria ficar com a peça de Richmond, mas ele não pareceu muito interessado.” Seu rosto endureceu. “Claro que não há mais nada no momento, mas vou ter o suficiente, e mais o que estão me devendo...” “Se pelo menos eu estivesse ganhando algum dinheiro!”, lamentou Emmy. “Você trabalha tanto, e eu não faço nada além de gastar duzentos dólares por semana só nas aulas de balé — mais do que vou conseguir ganhar em anos.” “Claro que, em seis meses, estarei melhor do que nunca — é o que o médico diz.” “Claro, querido; você vai ficar bom. Vamos partir o mais depressa possível.” Ela o enlaçou com um dos braços e beijou seu rosto. “Sou uma parasita”, disse. “Eu devia saber que o meu querido não estava bem.” Ele puxou automaticamente um cigarro, mas parou no meio do gesto. “Esqueci... tenho de começar a cortar o cigarro.” Subitamente, ele pareceu criar ânimo. “Não, meu bem. Decidi ir sozinho. Você iria morrer de tédio por lá e eu não ia parar de pensar que estava afastando você do seu balé.” “Nem pense nisso. O importante é você sarar.” Discutiram o assunto hora após hora pela semana seguinte, cada qual dizendo tudo, menos a verdade — que ele queria que ela fosse com ele e ela querendo apaixonadamente continuar em Nova York. Emmy falou sobre isso com Doniloff, seu professor de balé, e, na opinião dele, um adiamento seria desastroso. Ao ver suas colegas de classe fazendo planos para o inverno, ela preferia morrer a ir para Denver, e Bill percebeu todas as indicações involuntárias de seu sofrimento. Por algum tempo, falaram de um meio-termo nos Adirondacks, para onde ela poderia ir de avião nos fins de semana, mas, quando começou uma febrícula, o médico lhe ordenou que fosse Denver. Bill decidiu tudo numa triste noite de domingo, com aquela justiça áspera e generosa que fizera com que ela o admirasse desde o início, que o tornava trágico diante da adversidade e que sempre o tornara tolerável nos tempos de arrogante sucesso. “Isso compete a mim, querida. Fui eu que me meti nessa situação, por falta de autocontrole — só você tem isso na família —, e agora cabe a mim sair da encrenca. Você está dando duro no balé há três anos e merece uma oportunidade. Se for comigo, vai me atirar isso na cara pelo resto da vida.” Sorriu com um esgar. “E eu não poderia suportar. Além disso, não fará bem ao garoto.” Por fim, Emmy concordou, envergonhada, sofrendo — e feliz. Porque o mundo do balé, onde ela existia sem Bill, era agora maior para ela do que o mundo em que existiam juntos. Nele, havia mais espaço para ela ser feliz do que no outro para ser infeliz. Dois dias depois, já com o bilhete para a viagem dele marcado para as cinco daquela tarde, passaram as últimas horas juntos, falando só de coisas esperançosas. Novamente ela insistiu em acompanhá-lo, e estava sendo sincera. Se ele tivesse fraquejado por um instante, ela teria ido. Mas o choque operara uma mudança em Bill, e ele demonstrara mais personalidade face à doença do que em qualquer situação nos últimos anos. Talvez lhe fizesse bem enfrentar aquilo sozinho. “Até a primavera!”, um disse ao outro.

Na estação, abraçado ao pequeno Billy, Bill disse: “Detesto despedidas funéreas. Vamos nos separar aqui. Preciso dar um telefonema antes do trem sair”. Nos últimos seis anos, nunca tinham passado mais que uma noite separados, exceto quando Emmy estava no hospital; e, exceto pela época na Inglaterra, tinham um bom histórico de fidelidade e ternura recíprocas, mesmo que, a princípio, ela se sentisse alarmada e infeliz diante da fanfarronice instável do início. Quando ele passou pelo portão, Emmy ficou feliz por saber que ele tinha um telefonema a dar e tentou imaginá-lo fazendo isso. Emmy era boa pessoa; amara Bill de todo o coração. Quando saiu da estação para a rua 33, foi como se a cidade estivesse absolutamente morta e o apartamento que Bill comprara para eles fosse lhe parecer vazio sem ele — mas ali estava ela, pronta para fazer algo que a deixaria feliz. Parou alguns quarteirões depois, pensando: “Meu Deus, isso é terrível, o que estou fazendo? Abandonei Bill como se ele quisesse a pior pessoa do mundo. Deixei-o na mão e vou jantar com Doniloff e Paul Makova, de quem eu gosto só porque é bonito e tem olhos e cabelo da mesma cor. Bill pegou o trem sozinho”. Tomou Billy de repente pela mão, como se quisesse voltar para a estação. Podia ver Bill sentado no trem, pálido e cansado, sem ela. “Não posso deixá-lo na mão”, gemeu baixinho, inundada por ondas e mais ondas de sentimentalismo. Mas só de sentimentalismo — ele já não a deixara na mão, não fizera o que tivera vontade de fazer em Londres? “Ah, pobre Bill!” Permaneceu ali, sem saber o que fazer, e, num último lampejo de honestidade, pensou em como logo esqueceria tudo aquilo e arranjaria desculpas para o que estivesse fazendo. Lembrou-se bem do que acontecera em Londres e sua consciência se desanuviou. Mas, com Bill sozinho no trem, parecialhe horrível pensar daquela forma. Ainda havia tempo para voltar até a estação e dizer-lhe que iria junto, mas não foi, sentindo a vida forte dentro de si, lutando por ela. A calçada era estreita no ponto onde ela estava; um mar de gente saindo dos teatros desaguou em sua direção, e ela e o pequeno Billy foram arrastados pela multidão. No trem, Bill falou ao telefone até o último minuto e demorou a ir para seu camarote, quase certo de que ela não estaria lá. Quando o trem partiu, foi para a cabine e, claro, ela estava vazia, exceto por suas malas no suporte e algumas revistas no assento. Soube então que a perdera. Viu o quadro sem ilusões — o tal Paul Makova e meses de proximidade, e solidão — depois nada seria como antes. Após pensar muito sobre isso, nos intervalos de leitura de Variety e Zit’s, começou a lhe parecer que, de alguma forma, Emmy tinha morrido. “Era uma menina ótima, das melhores. Tinha personalidade.” Deu-se conta de que era o único responsável por tudo e que agora havia uma espécie de compensação. Convenceu-se de que, ao ir embora, tornara-se uma pessoa tão boa quanto ela; estavam quites agora. Pensou que, maior que tudo, maior até que sua dor, era a sensação quase confortável de estar se entregando a alguma coisa maior do que ele; e, embora se sentisse um pouco cansado e inseguro — duas condições que nunca tolerara —, a coisa já não parecia tão terrível se estivesse indo para o Oeste para um final definitivo. Tinha certeza de que no fim Emmy acabaria indo, não importava o que estivesse fazendo ou a excelência do contrato que tivesse. (1930)

Puro sangue

Lembro-me de você me procurar desesperada quando Josephine tinha uns três anos”, disse a sra.



Bray. “George estava furioso porque não conseguia decidir onde trabalhar, por isso batia em Josephine.” “Eu me lembro”, disse a mãe de Josephine. “E, de repente, aqui está Josephine.” Sim, ali estava Josephine. Ela olhou para a sra. Bray e sorriu, e o olhar da sra. Bray endureceu imperceptivelmente. Josephine continuou sorrindo. “Está com que idade, Josephine?” “Acabo de fazer dezesseis.” “Ahh. Parece mais.” Na primeira oportunidade, Josephine perguntou à sra. Perry: “Posso ir ao cinema com Lillian hoje à tarde?”. “Não, querida, você precisa estudar.” E virou-se para a sra. Bray como se o caso estivesse resolvido, mas... “Sua burra”, murmurou Josephine de forma audível. A sra. Bray disse alguma coisa rapidamente para encobrir a situação, mas é claro que a sra. Perry não podia deixar aquilo passar em branco. “De que você me chamou, Josephine?” “Não sei por que não posso ir ao cinema com Lillian.” A mãe aproveitou a oportunidade. “Porque tem de estudar. Você sai todos os dias, e seu pai quer que isso pare.” “Que louco!”, disse Josephine, e continuou, com veemência, “que coisa mais maluca! Papai só pode ser maluco. De repente vai começar a arrancar os cabelos e pensar que é Napoleão ou coisa assim!” “Não”, interpôs-se jovialmente a sra. Bray, enquanto a sra. Perry corava. “Talvez ela tenha razão. Talvez George esteja louco — tenho certeza de que meu marido, por exemplo, está louco. É essa guerra.” Mas, no fundo, a sra. Bray não estava achando graça — fosse com ela, Josephine levaria uma surra. A conversa mudou para Anthony Harker, amigo da irmã mais velha de Josephine. “Ele é divino”, interrompeu Josephine — não bruscamente, porque, apesar do que acontecera, não era uma menina rude; era raro até que falasse muito, embora às vezes perdesse a calma e xingasse quando lhe parecia que as pessoas estavam erradas. “Ele é absolutamente...” “Parece muito disputado”, disse sua mãe. “Pessoalmente, não vejo muita coisa nele. Acho-o até bem superficial.” “Ah, não, mamãe”, disse Josephine. “Longe disso. Todo mundo acha que ele tem muita

personalidade, o que não se pode dizer da maioria desses rapazes idiotas. Qualquer garota se daria por feliz em agarrá-lo. Eu me casaria com ele neste minuto.” Até então, ela nunca pensara nisso. Na verdade, inventara a frase para expressar seus sentimentos por Travis de Coppet. Dali a pouco, quando o chá foi servido, pediu licença e foi para seu quarto. A casa era nova, mas os Perry estavam longe de ser novidade. Eram da alta sociedade de Chicago, quase muito ricos e não de todo incultos para os padrões de 1914. Mas Josephine, sem saber, era uma pioneira da geração que estava destinada a “fugir ao controle”. Em seu quarto, vestiu-se para ir à casa de Lillian enquanto pensava em Travis de Coppet, assim como já pensara nele na noite anterior, quando voltava para casa depois da festa dos Davidson. Travis estava usando uma capa azul, solta sobre o smoking, herdada de um tio antiquado. Era alto e magro, belo dançarino, e seus olhos escuros já tinham sido descritos por várias de suas contemporâneas como “profundos” — os adultos percebiam apenas que ele tinha olhos pretos no sentido da contusão, e que provavelmente todas as noites eles recebiam, justificadamente, novos golpes; a área ao redor deles era tão roxa (ou marrom ou vermelha) que eles eram a primeira coisa que se notava em seu rosto e, exceto pelos dentes muito brancos, a última. Como Josephine, ele também era uma espécie de novidade na cidade. Havia uma porção de novidades em Chicago naquela época, mas, para que não se perca o ponto desta narrativa, basta dizer que Josephine era a novidade mais absoluta. Já vestida, desceu as escadas e, abrindo delicadamente uma porta lateral, saiu à rua. Estávamos em outubro e uma áspera brisa açoitou-a ao passar pelas árvores sem folhas, por casas com quinas geladas, pelas cavernas de vento que eram as bocas das ruas residenciais. Dessa época até abril, Chicago é uma cidade de portas para dentro, em que entrar por uma delas é como sair em outro mundo. O frio do lago é hostil e não se parece com o verdadeiro frio do Norte — serve apenas para acentuar as coisas que se passam nos interiores. Não há música nas ruas nem casais de namorados e, mesmo em tempos prósperos, a riqueza que desfila em limusines provoca mais inveja do que encanto nos que a contemplam da calçada. Mas dentro das casas reina uma tranqüilidade profunda e amena, ou um rumor excitado e musical, como se quem estivesse lá se dedicasse a inventar novas danças. É um pouco a isso que as pessoas se referem quando dizem adorar Chicago. Josephine ia encontrar sua amiga Lillian Hammel, mas seus planos não incluíam ir ao cinema. Se soubessem, suas mães teriam preferido o mais sinistro, o mais condenável dos filmes. As duas iam dar uma longa volta de carro com Travis de Coppet e Howard Page, durante a qual não trocariam apenas um beijo, mas um monte de beijos. Os quatro já queriam fazer isso desde o sábado anterior, quando circunstâncias adversas atrapalharam seus planos. Travis e Howard já estavam lá — não sentados, mas de pé, com seus sobretudos como símbolos de ação, apressando as moças ofegantes em direção ao futuro. Travis usava um sobretudo com colarinho de pele e trazia uma bengala com castão de ouro. Beijou a mão de Josephine com um ar entre jocoso e sério, e ela disse: “Olá, Travis!”, com o afeto caloroso de um político saudando um eleitor em potencial. Mas, por um momento, as moças trocaram comentários em voz baixa. “Acabei de vê-lo”, sussurrou Lillian, “agorinha mesmo!” “Jura?” Os olhos de ambas se incendiaram e se fundiram juntos. “Ele não é divino?”, disse Josephine. Referiam-se a Anthony Harker, que tinha vinte e dois anos e não tomava conhecimento da existência delas, exceto pelo fato de que, na casa dos Perry, às vezes reconhecia Josephine como a irmã mais nova de Constance.

“Ele tem o nariz mais lindo do mundo”, exclamou Lillian, rindo. “É...” Desenhou-o no ar com o dedo e as duas tiveram um acesso de riso. Mas o rosto de Josephine se recompôs quando os olhos escuros de Travis, vistosos como se tivessem sido fabricados na noite anterior, olharam para ela através do saguão. “Bem!”, ele disse, tenso. Os quatro jovens saíram, atravessaram quinze metros de uma odiosa ventania e entraram no carro de Page. Estavam muito confiantes e sabiam muito bem o que queriam. Ambas as moças estavam desobedecendo expressamente a seus pais, mas seu sentimento de culpa não era maior que o de um soldado fugindo de uma prisão inimiga. No banco traseiro, Josephine e Travis se olharam; ela esperou enquanto ele ardia, sombrio. “Olhe”, disse, olhando a própria mão trêmula. “Fiquei até as cinco da manhã com as garotas do Follies.” “Ah, Travis!”, ela disse, automaticamente, embora pela primeira vez um comunicado dessa natureza não fizesse a menor diferença para ela. Tomou a mão dele, perguntando-se o que se estaria passando com ela. Estava escuro e ele se inclinou sobre Josephine para beijá-la, mas, num movimento abrupto, ela virou o rosto. Aborrecido, ele fez gestos cínicos com a cabeça e se enfiou amuado no fundo do carro. Travis concentrou-se em acalentar seu negro segredo — o segredo que sempre a fizera suspirar por ele. Ela o viu escrito nos olhos do rapaz, nas maçãs de seu rosto e subindo-lhe pelas sobrancelhas, mas não conseguia se concentrar nele. O romântico mistério do mundo transferira-se para outro homem. Travis deu dez minutos para que ela capitulasse e depois tentou de novo, e nessa segunda investida ela o viu como ele realmente era. E foi o suficiente. A imaginação e os desejos de Josephine podiam ser facilmente explorados até certo ponto, mas, a partir dali, sua impulsividade a protegia. Agora, de repente, ela encontrara um fato real contra Travis, e sua voz se modulou num tom de suave lástima. “Eu soube do que você disse ontem à noite. Soube muito bem.” “O que foi?” “Você disse a Ed Bement que ia se esbaldar porque ia me levar em casa no seu carro.” “Quem lhe contou isso?”, ele perguntou, culpado mas sem ansiedade. “Ed Bement, e me disse também que quase deu um murro na sua cara quando você disse isso. Mal pôde se conter.” Mais uma vez, Travis recuou para seu canto no assento. Viu ali a razão para a frieza de Josephine. À luz da teoria do dr. Jung, de que inúmeras vozes masculinas discutem no subconsciente de uma mulher e até falam por seus lábios, era o ausente Ed Bement quem falava por Josephine naquele momento. “Decidi não beijar mais rapazes, para não gastar os beijos que quero dar no homem que eu realmente ame.” “Mas que...” “É isso mesmo. Estão falando muito de mim em Chicago. Nenhum homem respeita uma moça que ele beija na hora que quiser, e quero ser respeitada pelo homem com quem um dia vou me casar.” Ed Bement ficaria maravilhado se soubesse a extensão de seu domínio sobre Josephine naquela tarde. Ao caminhar de volta para casa, da esquina onde os jovens discretamente a tinham deixado, Josephine sentia aquela agradável leveza que se segue ao fim de uma tarefa. A partir de agora seria uma moça direita, sairia com menos rapazes, como seus pais desejavam, e tentaria ser o que a escola

da sra. Benbower classificava como uma Perfeita Garota Benbower. Depois, no ano seguinte, quando fosse estudar no colégio Breerly, tentaria ser uma Perfeita Garota Breerly. Mas as primeiras estrelas surgiam sobre a estrada de Lake Shore; ao redor, ela podia sentir a agitação de Chicago a cento e cinqüenta quilômetros por hora, e Josephine sabia que estava somente querendo querer aquilo para o bem de sua alma. Na verdade, não aspirava a nenhuma realização. Seu avô, sim, tinha se realizado, e seus pais achavam isso importante, mas Josephine acatava o mundo orgulhoso em que nascera. Era fácil em Chicago, que, ao contrário de Nova York, era uma cidade independente, onde as famílias tradicionais formavam uma casta — a vida intelectual limitava-se aos professores da universidade e não havia ramificações, exceto que até os Perry tinham de se curvar perante meia dúzia de famílias ainda mais ricas e importantes do que a deles próprios. Josephine adorava dançar, mas o território da glória feminina, o salão de dança, era um lugar do qual se escapulia com um homem. Ao chegar ao portão de ferro de sua casa, Josephine viu a irmã tiritando nos degraus mais altos com um jovem que se despedia; depois a porta da frente se fechou e o homem desceu as escadas. Ela sabia quem ele era. Ele estava distraído, mas reconheceu-a brevemente ao passar por ela. “Ah, olá”, ele disse. Ela girou a cabeça num círculo completo, para que ele pudesse ver seu rosto à luz do lampião da rua; além disso, levantou o rosto para fora da gola de pele e na direção dele, e só depois sorriu. “Olá”, respondeu com recato. Passaram um pelo outro. Ela encolheu a cabeça na roupa, como uma tartaruga. Bem, agora ele pelo menos sabe como eu sou, pensou ela, excitada, ao entrar em casa.

II. Vários dias depois, Constance Perry falou em tom sério para a mãe: “Josephine é tão convencida que acho que está meio louca.” “Ela é muito convencida”, admitiu a sra. Perry. “Seu pai e eu estivemos conversando e decidimos que, no começo do ano, ela deve ir para uma escola no Leste. Mas não diga nada sobre isso até termos certeza.” “Pelo amor de Deus, mamãe, quanto mais cedo, melhor! Ela e aquele horrível Travis de Coppet circulando por aí, com aquela capa dele, como se tivessem mil anos de idade. Entraram no Blackstone na semana passada e minha espinha gelou. Pareciam dois loucos — Travis todo furtivo e Josephine retorcendo a boca como se tivesse a doença de são Guido. Francamente...” “O que você estava dizendo sobre Anthony Harker?”, interrompeu a sra. Perry. “Que ela tem uma fixação por ele, e ele tem idade para ser avô dela.” “Nem tanto.” “Mamãe, ele tem vinte e dois anos e ela dezesseis. Toda vez que Jo e Lillian chegam perto dele, ficam dando risinhos e olhando...” “Josephine, venha cá”, disse a sra. Perry. Josephine entrou lentamente no quarto e encostou-se ao batente da porta aberta, deixando-se balançar contra ele. “O que foi, mamãe?” “Querida, você não quer que riam de você, quer?” Josephine virou-se emburrada para a irmã. “Quem está rindo de mim? Só se for você. Você é a única que ri de mim.” “Você é tão convencida que não se enxerga. Quando você e Travis de Coppet entraram no

Blackstone aquela tarde, minha espinha gelou. Todo mundo na nossa mesa e na maioria das outras mesas riu — aqueles que não ficaram chocados.” “Acho que todos ficaram chocados”, arriscou Josephine com complacência. “Você vai ficar com uma bela fama, não demora muito.” “Ah, cale a boca!”, disse Josephine. Houve um momento de silêncio. A sra. Perry sussurrou com ar solene: “Vou ter de contar a seu pai assim que ele chegar”. “Então conte!” Mas, subitamente, Josephine começou a chorar. “Por que não me deixam em paz? Preferia estar morta!” Sua mãe abraçou-a, dizendo: “Josephine, ora, Josephine”. Mas Josephine continuou com soluços profundos e entrecortados que pareciam brotar do fundo do coração. “É aquele bando de... mulheres feias e invejosas que ficam loucas quando alguém olha para mim, e inventam essas mentiras porque posso ter quem eu quiser. Imagino que Constance esteja louca comigo porque me sentei durante cinco minutos com Anthony Harker enquanto ele esperava por ela ontem à noite.” “É isso mesmo, fiquei com um ciúme terrível! Sentei e chorei a noite inteira por causa disso. Principalmente porque ele ficou falando comigo a respeito de Marice Whaley. Ora! Ficou tão maluco por você que não parou de rir até chegarmos à casa dos Warren.” Josephine respirou fundo pela última vez e parou de chorar. “Se lhe interessa saber, já desisti dele.” “Ha-ha!”, explodiu Constance. “Escute isso, mamãe! Ela desistiu dele — como se ele algum dia tivesse olhado para ela para saber se estava viva! Nunca vi ninguém tão convencido...” A sra. Perry não tolerou mais aquilo. Enlaçou Josephine com os braços e conduziu-a para o quarto desta. “Sua irmã só não quer que zombem de você”, explicou. “Tudo bem, já desisti dele.” *** Ela desistira dele, renunciando a mil beijos que nunca tivera e a cem festas emocionantes e intermináveis em cem noites que nunca tinham sido vividas. Não disse nada sobre a carta que lhe escrevera na noite anterior — carta que não mandara e nunca mandaria. “Na sua idade, você não deve pensar nessas coisas, querida”, disse a sra. Perry. “Você ainda é uma criança.” Josephine levantou-se e foi em direção ao espelho. “Prometi a Lillian ir à casa dela. Já estou atrasada.” De volta a seu quarto, a sra. Perry pensava: Dois meses até fevereiro... Era uma mulher bonita, que queria apenas ser amada por todos em volta; não havia nela nenhum poder de comando. Arrumou os pensamentos num pacote bem-feitinho e o levou ao correio, com Josephine dentro, endereçada com segurança ao colégio Breerly. Uma hora depois, no salão de chá do Blackstone Hotel, Anthony Harker e outro rapaz batiam papo a uma mesa. Anthony era um sujeito feliz, preguiçoso, rico e satisfeito com o fato de ser muito disputado. Depois de uma breve carreira numa universidade do Leste, tinha ido para uma famosa faculdade na Virgínia e, à sombra de poucas exigências, encerrou seus estudos; pelo menos, absorvera certos maneirismos e gentilezas que as moças de Chicago achavam encantadores.

“Lá vem aquele tal de Travis de Coppet”, observou seu amigo. “Quem ele pensa que é?” Anthony olhou com ar distante para os jovens no outro lado do salão, reconheceu a menina dos Perry e outras moças que ultimamente ele vivia encontrando na rua. Mesmo sentindo-se ostensivamente à vontade, elas pareciam bobas e barulhentas; dali a pouco ele tirou os olhos delas e perscrutou o salão em busca da pessoa que esperava para dançar; e ainda estava sentado ali quando a sala — que tinha um ar de penumbra, apesar das luzes de dentro e da escuridão lá fora — despertou ao som de uma música potente e excitante. Os homens, de paletós longos, como se estivessem chegando de alguma importante proeza, e as mulheres, usando chapéus que pareciam a ponto de sair voando, davam um ar mágico à cena. A certeza de que esse quadro, pouco mais que espontâneo, pouco menos que clandestino, logo se desfaria tornou-o ansioso para aproveitar seus últimos minutos, e Anthony observou ainda mais intensamente a multidão à procura de um rosto que conhecesse. Um rosto emergiu subitamente enlaçado pelo braço de um homem a menos de dois metros de distância e, por um instante, Anthony foi objeto do olhar mais triste e trágico já dirigido a ele — dois grandes olhos cinzentos, margeados por brilhantes triângulos coloridos, e uma boca retorcida numa piedade que parecia incluí-lo e a ela. Não a expressão de uma vítima, mas a de um demônio de terna melancolia — e, pela primeira vez, Anthony realmente enxergou Josephine. Seu instinto imediato foi ver com quem ela estava dançando. Era um rapaz que ele conhecia e, certificando-se disso, pôs-se de pé, deu um puxão no paletó e adentrou a pista. “Permite-me?” Josephine achegou-se a ele, encarou-o a fundo e, depois, baixou os olhos e olhou à distância. Não disse nada. Ao perceber que ela não podia ter mais de dezesseis anos, Anthony esperou que a pessoa que ele esperava não chegasse no meio da dança. Quando a dança acabou, ela o encarou de novo e ele foi possuído por uma sensação de se ter enganado, de ela ser mais velha do que ele pensava. Ao devolvê-la à mesa, viu-se compelido a dizer: “Podemos dançar de novo mais tarde?” “Ah, claro.” Ela uniu seus olhos aos dele, cada cintilação aguda como um prego — como os pregos das estradas de ferro sobre as quais se fundava a fortuna de suas famílias e das quais dependiam. Anthony estava desconcertado ao voltar para sua mesa. Uma hora depois, saíram juntos do Blackstone no carro dele. Acontecera simplesmente — Josephine dizendo, ao fim da segunda dança, que precisava ir embora e, por parte dele, a consciência de estar caminhando ao lado dela pelo salão vazio. Era um favor que fazia à irmã de Josephine, o de levá-la em casa, mas ele estava tomado de uma indisfarçável sensação de expectativa. Lá fora, trazido de volta a seus sentidos pelo frio, tentou avaliar suas responsabilidades na questão. O que não era fácil, com a insistente juventude de Josephine pressionada contra ele. Ao se aproximarem do carro, tentou dominar a situação com um olhar masculino, mas os olhos de Josephine, brilhando febris, derreteram sua falsa austeridade numa fração de segundo. Casualmente, ele afagou-lhe a mão — e, de repente, estava no raio de ação de seu perfume e beijando-a sem respirar. “E assim terminou tudo”, ela sussurrou. Espantado, ele se perguntou se havia se esquecido de alguma coisa, algo que tivesse dito antes a ela. “Que observação cruel”, ele disse, “e logo quando eu estava ficando interessado.”

“Só quis dizer que qualquer minuto com você pode ser o último”, ela esclareceu, com tristeza. “Minha família vai me mandar embora daqui para estudar — eles pensam que eu não estou sabendo.” “Que pena.” “... e hoje mesmo se juntaram para me dizer que você nem sabia que eu existia.” Depois de uma longa pausa, Anthony comentou debilmente: “Espero que eles não a tenham convencido disso”. Ela deu um risinho curto. “Não, eu ri e fui para o baile.” Sua mão escondeu-se na dele; quando ele a apertou, os olhos dela, agora brilhantes, e não mais escuros, subiram e se fixaram nos dele. Um minuto depois, ele pensou: Que sujeira estou fazendo. Tinha certeza disso. “Você é tão doce”, disse Josephine. “Você é muito querida.” “Detesto a inveja mais que qualquer coisa no mundo”, ela declarou, “e eu é que tinha de ser vítima dela. Pior de tudo, da minha própria irmã.” “Ah, não”, ele protestou. “Não pude evitar de me apaixonar por você. Até tentei. Costumava sair de casa quando sabia que você estava indo para lá.” A força de suas mentiras brotava de sua sinceridade e da confiança, simplista e fatal, de que se amasse alguém, esse alguém iria amá-la em troca. Josephine nunca se envergonhava ou se queixava. Seu mundo era o de estar sozinha com um homem, um mundo em que ela penetrara com segurança desde que fizera oito anos de idade. Não planejou aquilo; apenas se deixou levar, e a arrebatadora vida contida nela fez o resto. É só quando a juventude se esvai e a experiência já nos brindou com uma espécie de coragem barata que muitos de nós nos damos conta de como as coisas são simples. “Mas você não pode estar apaixonada por mim”, Anthony queria dizer, sem conseguir. Lutou contra o desejo de beijá-la de novo, mesmo com ternura, e começou a dizer-lhe que estava sendo imprudente, mas, antes mesmo de começar essa nobre empreitada, ela já estava de novo em seus braços, sussurrando algo que ele tinha de aceitar, já que vinha embrulhado num beijo. E, dali a pouco, estava sozinho, afastando-se de sua casa no carro. Tinham marcado o quê, mesmo? Tudo o que fora dito entre eles repercutia em seu ouvido como uma febre inesperada — amanhã às quatro naquela esquina. Meu Deus!, pensou, desconfortável. Aquela conversa sobre desistir de mim. Ela é louquinha e vai se meter numa encrenca se encontrar alguém disposto a embarcar. Imagine se vou encontrá-la amanhã! Mas nem o jantar nem a festa a que ele compareceu naquela noite fizeram Anthony tirar o episódio de sua cabeça; dedicou-se a olhar amuado para o salão, como se faltasse alguém que deveria estar lá.

III. Duas semanas depois, esperando por Marice Whaley numa “sala” indefinida, pobre, de porão, Anthony tirou do bolso a correspondência semi-esquecida. Guardou três das cartas; a outra — após escutar por um momento se não vinha ninguém —, abriu rapidamente e leu, de costas para a porta. Era a terceira de uma série — cada qual havia se seguido a um encontro seu com Josephine —, e era exatamente como as outras: a carta de uma criança. Apesar da maturidade emocional acumulada em sua expressão, assim que ela punha a pena no papel era soterrada pela tolice. Havia muito “seu sentimento por mim” e “meu sentimento por você”, frases começavam com “Sim, eu sei que sou romântica” ou, mais desastradamente, “Sou sujeita a paixonites, e não posso evitar”, além das

inevitáveis citações de versos de canções em voga, como se expressassem melhor o estado de espírito da correspondente do que as palavras que ela teria de se esforçar para juntar. A carta perturbou Anthony. Quando chegou ao pós-escrito, que friamente marcava um encontro para as cinco horas daquela tarde, ouviu Marice descendo as escadas e pôs a carta de novo no bolso. Marice cantarolava alguma coisa e se movia pela sala. Anthony fumava. “Vi você na terça à tarde”, ela disse de repente. “Parecia estar se divertindo.” “Terça-feira...”, ele repetiu, como se pensasse. “Ah, sim. Encontrei umas meninas e fomos a um chá dançante. Foi divertido.” “Você estava quase sozinho quando o vi.” “Aonde quer chegar?” Marice voltou a cantarolar. “Vamos sair. Vamos a uma matinê.” No caminho, Anthony explicou como lhe aconteceu de estar com a irmã caçula de Connie; a necessidade de se explicar o irritava. Quando terminou, Marice disse secamente: “Se você está a fim de assaltar berçários, por que teve de escolher aquela diabinha? A fama dela já chegou a tal ponto que a senhora McRae não queria convidá-la ao baile de formatura este ano — só fez isso por causa de Constance.” Seu compromisso às cinco horas não lhe saía da cabeça durante toda a matinê. Embora os comentários de Marice só servissem para que ele ficasse perigosamente com pena de Josephine, decidiu que aquele encontro seria o último. Era incômodo ser visto na companhia dela, ainda que ele tivesse tentado evitar. O assunto poderia facilmente redundar numa pequena mas perigosa confusão, sem vantagem para Josephine ou para ele. Não estava ligando para a indignação de Marice; ela estivera à sua disposição o outono inteiro, mas Anthony não estava com vontade de se casar; não queria se envolver a sério com ninguém. Já estava escuro quando se viu livre às cinco e meia e foi de carro ao novo edifício Filantrofilógico, no labirinto de reconstruções em Grant Park. A desolação do lugar e da hora o deprimiu e deu um caráter ainda mais penoso ao caso. Ao sair do carro, passou por um rapaz esperando numa baratinha — um rapaz que teve a impressão de reconhecer — e encontrou Josephine na semi-escuridão da pequena câmara formada pelas portas muito grossas. Cumprimentando-o com um ruído difuso, ela avançou com determinação para os braços dele e ergueu o rosto. “Só posso ficar um segundo”, ela disse, como se Anthony estivesse lhe implorando para ficar mais. “Preciso ir a um casamento com minha irmã, mas eu tinha de ver você.” Quando Anthony falou, sua voz congelou-se numa bruma gelada, que pareceu piscar na escuridão. Disse coisas que já dissera antes, mas, desta vez, de maneira firme e definitiva. Foi mais fácil, porque ele mal podia vê-la e também porque, a meio caminho, ela o irritou quando começou a chorar. “Eu sabia que você devia ser volúvel”, ela sussurrou, “mas não esperava isto. Enfim, tenho orgulho bastante para não incomodá-lo mais.” Hesitou. “Mas gostaria que pudéssemos nos encontrar só mais uma vez, para tentar achar uma solução diferente.” “Não.” “Alguma garota invejosa andou falando mal de mim para você.” “Não.” Então, em desespero, ele a golpeou direto no coração. “Não sou volúvel. Nunca amei você e nunca disse que amava.” Já prevendo a expressão de desamparo que tomaria o rosto de Josephine, Anthony se virou e deu um passo sem direção; quando se voltou de novo para ela, a porta acabara de se fechar — Josephine tinha ido embora.

“Josephine!”, ele gritou, com impotente piedade, mas não houve resposta. Esperou, com o coração na mão, até que ouviu o som de um carro se afastando. Já em casa, Josephine agradeceu a Ed Bement, que ela acabara de usar, com uma migalha de esperança; entrou por uma porta lateral e subiu para seu quarto. A janela estava aberta e, ao se vestir apressadamente para o casamento, deixou-se ficar perto dela para pegar um resfriado e morrer. Ao ver seu rosto no espelho do banheiro, caiu no choro e sentou-se na borda da banheira, produzindo um som resfolegante como quem luta contra uma tosse, ao mesmo tempo que passava uma escovinha nas unhas. Mais tarde, se quisesse, poderia chorar a noite inteira na cama, quando todos estivessem dormindo, mas, naquela hora, ainda era o fim da tarde. As duas irmãs e sua mãe postaram-se lado a lado durante o casamento de Mary Jackson e Jackson Dillon. Foi um casamento triste e sentimental — o fim da linda e glamorosa juventude de uma garota admirada e adorada por todos. Talvez um circunstante não percebesse nos detalhes o fim de uma época, mas, já sob o ponto de vista de uma década, certas coisas que aconteceram ali pareciam polvilhadas com o ridículo do passado, até mesmo matizadas com lavanda de véspera. A noiva levantou o véu, abrindo o mesmo sorriso grave e doce que a fizera “adorada”, mas com lágrimas escorrendo-lhe pela face, e encarou as dezenas de mãos de amigos estendidas para ela, como se as tomasse pela última vez. Depois virou-se para o marido, tão sério e imaculado como ela, e olhou-o como se a dizer: “Pronto. Tudo o que sou é seu para todo o sempre”. Em seu lugar no banco, Constance, que fora colega de escola de Mary Jackson, chorava francamente, como se seu coração fosse uma catacumba retumbante. Mas o rosto de Josephine a seu lado exigia um estudo mais intrincado — ela apenas observava atentamente. Uma ou duas vezes, embora os olhos nunca vacilassem em sua reta intensidade, uma lágrima isolada escapava e, acusando alguma surpresa ao senti-la, o rosto enrijecia ligeiramente e a boca permanecia em desafiadora imobilidade, como a de uma criança advertida para não cometer uma travessura. Moveuse apenas uma vez; ao ouvir uma voz a suas costas dizendo “É a menina dos Perry? Ela é linda”, virou-se e olhou para uma janela, para que seus admiradores desconhecidos não perdessem a visão de seu perfil. A família de Josephine foi à recepção, por isso ela jantou em casa, sozinha — sem contar seu irmãozinho e a babá, o que dava na mesma. Sentia-se inteiramente vazia. Naquela noite, Anthony Harper, “tão profundamente adorável, tão docemente adorável, tão profunda e docemente adorável”, estaria nos braços de outra mulher, beijando seu rosto feio e invejoso; não demoraria muito, iria desaparecer para sempre, junto com todos os homens de sua geração, tragado por um casamento sem amor, deixando apenas um mundo de Travis de Coppets e Ed Bements, pessoas que raramente valiam o esforço de um sorriso. “Ah, que pena”, ela sussurrou. Abriu a janela e, segurando sua única lembrança de Anthony, um grande lenço de linho com monogramas, atirou-se desolada na cama. Enquanto os lençóis ainda estavam frescos, ouviu baterem à porta. “Carta urgente”, disse a empregada. Acendendo a luz, Josephine abriu-a, conferiu a assinatura e voltou para o começo, o peito arfando sob a camisola. MINHA QUERIDA JOSEPHINE: Não adianta, não consigo evitar, não posso mentir. Estou desesperadamente apaixonado por você. Quando você foi embora esta tarde, a coisa me tomou de assalto e tive certeza de que não poderia abrir mão de você. Fui para casa, não consegui

comer ou ficar quieto, fiquei andando para lá e para cá pensando no seu rosto querido e nas suas lágrimas queridas naquele saguão. E agora aqui estou eu, escrevendo esta carta... Tinha quatro páginas. Em algum ponto, minimizava a diferença de idade entre eles, e as últimas palavras eram: Sei como você deve estar se sentindo miserável. Daria dez anos de minha vida para estar aí com você e dar um beijo de boa-noite em seus doces lábios. Quando acabou de ler, Josephine continuou sentada imóvel por alguns minutos; a dor sumira subitamente e, por um momento, sentiu-se tão arrebatada que supôs que a alegria tivesse ocupado o seu lugar. No rosto, via-se um franzir pestanejante. “Puxa!”, disse. Leu a carta inteira de novo. Seu primeiro impulso foi telefonar para Lillian, mas pensou melhor e decidiu que não. A imagem da noiva durante o casamento pipocou em sua mente — a noiva irretocável, sem mácula, querida e santificada com um halo doce. Uma adolescência de retidão, um punhado de amigos e, então, a aparição do amante perfeito, do Ideal. Com esforço, trouxe de volta sua mente para o presente. Com certeza Mary Jackson nunca guardaria tal carta. Levantando-se da cama, Josephine rasgou-a em pedacinhos e, com certa dificuldade, causada por uma inesperada coluna de fumaça, queimou-a sobre uma mesa com tampo de vidro. Nenhuma moça bem-educada responderia a uma carta dessa; a coisa certa a fazer era ignorá-la. Limpou o tampo da mesa com o lenço de linho que conservava na mão; com ar ausente, atirou o lenço num cesto de roupa suja e meteu-se na cama. De repente, sentiu muito sono.

IV. Por tudo que se seguiu, ninguém, nem mesmo Constance, poderia culpar Josephine. Se um homem de vinte e dois anos se rebaixava a ponto de fazer uma frenética corte a uma garota de dezesseis, contra a vontade de seus pais e dela própria, só havia uma providência a tomar — era alguém que não deveria ser recebido por pessoas decentes. Quando Travis de Coppet fez uma polêmica observação sobre o assunto durante um baile, Ed Bement deu-lhe uma surra no banheiro, e a reputação de Josephine melhorou, estacionando em níveis aceitáveis. Histórias de como Anthony tentou ir inúmeras vezes à casa dos Perry e foi proibido de entrar em todas elas, de como ameaçara o sr. Perry, de como tentara subornar uma empregada para entregar cartas a Josephine e de como tentara interceptar Josephine na volta da escola — tudo levava a crer que ele estava meio louco. Foi a própria família de Anthony Harker que insistiu que ele fosse para o Oeste. Tudo isso consistiu numa época difícil para Josephine. Ela viu quão perto chegara do desastre e, por constante consideração e implícita obediência, tentou compensar para seus pais a encrenca que sem querer causara. A princípio decidiu não comparecer às festas de Natal, mas foi convencida pela mãe, que esperava que ela se distraísse com os rapazes e moças vindos de fora durante as férias. A sra. Perry iria levá-la para o colégio Breerly, no Leste, no começo de janeiro, e acompanhá-la na compra de roupas e uniformes — mãe e filha estavam agora muito unidas, e a sra. Perry se encantava com os novos sentimentos de responsabilidade e maturidade de Josephine. De fato, tudo aquilo era sincero, e apenas uma vez Josephine fez alguma coisa que não se podia contar ao mundo. No primeiro dia do ano, vestiu suas novas roupas de viagem e seu novo casaco de pele, escapou por sua costumeira saída lateral e foi até ao fim do quarteirão, tomando o carro de Ed Bement, que a esperava. No Centro da cidade, deixou Ed numa esquina e entrou numa lanchonete na velha Union Station, na rua LaSalle. Um homem com boca infeliz e olhos confusos e desesperados a

aguardava. “Obrigado por ter vindo”, ele disse, infeliz. Ela não respondeu. Seu rosto estava grave e composto. “Olhe só o que eu quero saber — só uma coisa”, ele disse depressa. “Por que você mudou? O que eu fiz para você mudar tão de repente? Foi alguma coisa que aconteceu, alguma coisa que eu fiz? Foi o que eu disse no saguão naquela noite?” Ainda olhando para ele, ela tentou pensar, mas só conseguia ver como agora o achava desinteressante e terrível, e não queria que ele percebesse. Era inútil dizer-lhe a simples verdade — que não podia evitar ter feito aquilo, que uma grande beleza tem necessidade, quase obrigação, de se pôr à prova, que sua dose de emoção transbordara sozinha, e que só por acaso isso tinha destruído a ele, não a ela. Os olhos da piedade talvez seguissem Anthony Harker em sua viagem para o Oeste, mas, certamente, foram os olhos do destino que seguiram Josephine quando ela atravessou a rua sob os flocos de neve em direção ao carro de Ed Bement. Sentou-se no carro e, quando ele se pôs em movimento, ela se sentiu aliviada e cheia de espanto. Anthony Harker tinha vinte e dois anos, era bonito, querido e disputado, e como ele a tinha amado... Tanto, na verdade, que agora era obrigado a ir embora da cidade. Sentia-se tão impressionada como se eles fossem duas outras pessoas. Interpretando seu silêncio como alguma tristeza, Ed Bement comentou: “Bem, pelo menos isso teve uma vantagem — acabou com aquela outra história que contavam de você.” Ela se virou rapidamente para ele: “Que história?”. “Ah, uma história louca.” “Qual era?”, exigiu. “Ah, nada de mais”, ele disse, hesitante, “mas em agosto todos estavam comentando que você e Travis de Coppet tinham se casado escondido.” “Meu Deus, que horror!”, ela exclamou. “Nunca ouvi uma mentira igual! É...” Calou-se a um milímetro de dizer a verdade — que, embora ela e Travis tivessem aventurescamente viajado quarenta quilômetros até New Ulm, não conseguiram achar um juiz que os casasse. Isso agora lhe parecia infantil, esquecido, coisa de séculos atrás. “Que horror!”, repetiu. “Esse é o tipo de história que essas invejosas inventam.” “Eu sei”, disse Ed. “Só quero ouvir algum rapaz tentar me repetir isso. Embora ninguém vá acreditar.” Era coisa das feias e invejosas. Ed Bement, consciente do corpo a seu lado e daquele rosto brilhando como fogo em meio à quase escuridão, sabia que uma garota tão linda nunca faria nada errado. (1930)

A festa de casamento

Chegou o tradicional bilhete, insincero como sempre, dizendo: “Quero que você seja o primeiro a saber”. Foi um duplo choque para Michael, porque anunciava tanto o noivado como o iminente casamento; o qual, para piorar as coisas, se realizaria não em Nova York, a uma distância decente, mas ali mesmo em Paris, bem debaixo do nariz dele — caso a afirmação se aplicasse à Igreja Protestante Episcopal da Santíssima Trindade à Avenue George v. A data era dali a duas semanas, no começo de junho. A princípio, Michael teve medo e sentiu um vazio no estômago. Ao sair do hotel naquela manhã, a femme de chambre, que estava apaixonada por seu belo e afilado perfil e por sua vivacidade, farejou o ar de dura abstração que se apoderara dele. Aturdido, foi a pé até o banco, comprou um romance policial na Smith’s, na Rue de Rivoli, olhou com simpatia por alguns instantes para uma estampa desbotada de campos de batalha numa vitrine de agência de turismo e xingou um grego que o seguiu exibindo um baralho de inócuos cartões-postais que ele garantia serem imagens pornográficas. Mas o medo continuou presente e, dali a pouco, Michael o identificou como o medo de nunca ser feliz. Conhecera Caroline Dandy quando ela tinha dezessete anos. Possuíra seu jovem coração durante toda a primeira temporada dela em Nova York e depois a perdera, devagar, tragicamente, bobamente, porque ele não tinha dinheiro e não tinha como ganhá-lo; porque, com toda a energia e boa vontade do mundo, não conseguia se encontrar; porque, embora ainda o amasse, Caroline perdera a fé que tivera nele e começara a vê-lo como algo patético, fútil e pobre, distante do brilhante fluxo da vida que inevitavelmente a atraía. Como seu único consolo era saber que ela o amava, apoiou-se incerto nessa muleta; a muleta quebrou, mas ele continuou agarrado a ela, deixou-se arrastar ao mar e foi dar na costa francesa, com seus pedaços na mão. Trazia-os consigo na forma de fotografias, de um maço de cartas e de sua preferência por uma xaroposa canção intitulada “Among my souvenirs”. Manteve distância das outras moças, como se Caroline pudesse saber disso e lhe desse a recíproca de um coração fiel. Mas agora o bilhete dela o informava de que a perdera para sempre. Era uma linda manhã. Nas calçadas em frente às lojas da Rue de Castiglione, os proprietários e os clientes olhavam para cima, onde o Graf Zeppelin, glorioso e reluzente, símbolo da fuga e da destruição — da fuga, se necessário, pela destruição —, deslizava pelo céu de Paris. Ouviu uma mulher dizer em francês que não se surpreenderia se bombas fossem despejadas dele. Então ouviu outra voz, cortada por ásperas gargalhadas, e o vazio de seu estômago congelou. Ao virar a cabeça, viu-se frente a frente com Caroline Dandy e seu noivo. “Michael! Imagine, estávamos querendo saber por onde você andava! Perguntei no Guaranty Trust, no Morgan and Company, e finalmente mandamos um bilhete para o National City...” Por que eles não sumiam dali, como num filme ao contrário? Por que não saíam caminhando de costas, descendo a Rue de Castiglione, atravessando a Rue de Rivoli, passando pelo Jardim das

Tulherias, sempre andando de costas, o mais rápido possível, até se tornarem figuras vagas e apagadas no outro lado do rio? “Este é Hamilton Rutherford, meu noivo.” “Já nos conhecemos.” “No Pat’s, não foi?” “E na primavera, no bar do Ritz.” “Michael, onde você anda se escondendo?” “Por aí.” Que agonia. Lampejos de Hamilton Rutherford piscaram diante de seus olhos — uma rápida sucessão de imagens, frases. Lembrou-se de ter ouvido que, em 1920, ele comprou uma casa de campo por cento e vinte e cinco mil dólares, com dinheiro emprestado, e que, pouco antes da quebra da Bolsa, vendeu-a por mais de meio milhão. Sem ser bonito como Michael, era vitalmente atraente, confiante, posudo, e da altura certa para Caroline — ao dançar com ela, Michael parecia mais baixo. Rutherford estava dizendo: “Faço questão de que você vá à minha despedida de solteiro. Vou fechar o bar do Ritz a partir das nove. E depois do casamento haverá uma recepção e um almoço no Hotel George v”. “E, Michael, George Packman dará uma festa para nós depois de amanhã no Chez Victor, e quero que você vá. E também ao chá nesta sexta na casa de Jebby West; ela já o teria convidado se soubesse por onde você andava. Qual é seu hotel, para podermos mandar um convite? Sabe, decidimos nos casar em Paris porque mamãe está fazendo um tratamento de saúde aqui e a família inteira veio junto. Além disso, a mãe de Hamilton também está aqui e...” A família inteira; eles sempre o haviam detestado, exceto a mãe dela; sempre foram contra o namoro. Que moeda vagabunda ele era, naquele jogo de famílias e dinheiro! Sob o chapéu, sua testa suava com a humilhação de saber que, apesar de todo o seu sofrimento, seu valor não passava daqueles convites. Freneticamente, começou a tartamudear desculpas de que precisava ir embora. Foi então que aconteceu — Caroline olhou fundo para ele, e Michael sabia o que ela estava vendo. Ela enxergou a profundidade da ferida dele e algo estremeceu em seu íntimo, morrendo na curva da boca e em seus olhos. Ele a comovera. Todos os impulsos inesquecíveis de seu primeiro amor tinham ressurgido; de alguma forma, seus corações haviam vencido a distância e se tocado sob o sol de Paris. Subitamente, ela tomou o braço de seu noivo, como que o usando para se aprumar. Foram embora. Michael caminhou depressa por alguns instantes; depois parou, fingindo olhar uma vitrine, e viu os dois se distanciarem na rua, andando depressa para a Place Vendôme, como pessoas com muito o que fazer. Ele também tinha o que fazer — precisava pegar sua roupa na lavanderia. Nada jamais será como antes, pensou. Ela nunca será feliz naquele casamento e eu nunca serei feliz em nada. Os dois anos vívidos de seu amor por Caroline voltaram-lhe à cabeça como os anos na física de Einstein. Lembranças intoleráveis ressurgiram: de passeios ao luar em Long Island; de horas felizes em Lake Placid, ela com o rosto muito frio, mas morno, sob a superfície; de uma tarde melancólica num café da rua 48, nos últimos e tristes meses em que a idéia de casamento já lhes parecia impossível. “Entre”, ele gritou. O concièrge com um telegrama; brusco, porque as roupas do sr. Curly estavam meio rotas; porque o sr. Curly quase não dava gorjetas; porque o sr. Curly era obviamente um petit client. Michael leu o telegrama.

“Tem resposta?”, perguntou o concièrge. “Não”, disse Michael, e depois, num impulso: “Olhe”. “Que pena... que pena”, disse o concièrge. “Seu avô morreu.” “Nem tanto”, disse Michael. “Significa que vou herdar uns duzentos e cinqüenta mil dólares.” Mas agora era tarde — por coisa de apenas um mês. Depois do impacto inicial da notícia, sua miséria pareceu ainda mais profunda. De noite, na cama, sem conseguir dormir, ouviu a interminável caravana de um circo se movendo pelas ruas de Paris, de uma feira a outra. Quando o rumor do último carro desapareceu de seus ouvidos e as bordas dos móveis se tornaram azul-pastel com a alvorada, ele ainda pensava no olhar de Caroline na véspera — o olhar que parecia dizer: “Por que você não tomou alguma providência? Por que não foi mais forte e me obrigou a casar com você? Não vê como estou triste?”. Os punhos de Michael se cerraram. “Bem, não vou desistir até o último minuto”, sussurrou. “Já esgotei toda a minha falta de sorte e talvez a sorte tenha virado. Agüentei o que pude, até o limite das minhas forças, e, se Caroline não for minha, pelo menos irá para esse casamento com um pouco de mim no coração.”

II. E, assim, dois dias depois, Michael subiu ao mezzanino e ao pequeno salão do Chez Victor onde se daria a festa. Chegou cedo; a única outra pessoa presente era um homem alto e magro, de cerca de cinqüenta anos. Cumprimentaram-se. “Veio para a festa de George Packman?” “Sim. Sou Michael Curly.” “E eu sou...” Michael não gravou o nome. Pediram uma bebida, e Michael comentou que os noivos deviam estar felizes. “Até demais”, o outro concordou, de cara fechada. “Não sei como agüentam. Viemos todos juntos no navio; cinco dias de loucura e depois duas semanas de Paris. Você...”, hesitou, com um breve sorriso, “me perdoe, mas sua geração bebe demais.” “Menos Caroline.” “Sim, menos Caroline. Ela toma um coquetel e uma taça de champanhe, e pronto, já bebeu o suficiente, graças a Deus. Mas Hamilton bebe muito, e essa turma toda bebe demais. Mora em Paris?” “No momento, sim.” “Não gosto de Paris. Minha mulher, melhor dizendo, minha ex-mulher, a mãe de Hamilton, vive em Paris.” “O senhor é o pai de Hamilton Rutherford?” “Tenho essa honra. E não pense que não me orgulho do que ele tem feito; foi só um comentário genérico.” “Claro.” Michael olhou nervoso a chegada de quatro pessoas. Percebeu subitamente que seu smoking estava velho e brilhava; mandara fazer um novo naquela manhã. Os recém-chegados eram ricos e estavam à vontade uns com os outros em sua riqueza — uma linda morena, com um risinho histérico, que ele já conhecia; dois homens cujas piadas se referiam invariavelmente ao escândalo da noite passada e às potencialidades daquela noite, como se desempenhassem papéis importantes numa peça que se estendia sem fim, rumo ao passado e ao futuro. Quando Caroline chegou, Michael mal teve um

momento com ela, mas foi suficiente para notar que, como todos os outros, parecia tensa e cansada. Estava pálida sob o rouge e com olheiras. Com um misto de alívio e orgulho ferido, viu-se colocado longe dela e em outra mesa; precisava de algum tempo para ajustar-se ao ambiente. Esse pessoal não era imaturo como aquele que ele e Caroline freqüentavam; os homens tinham mais de trinta anos e um ar de quem partilhava o melhor das coisas boas da vida. A seu lado, estava Jebby West, a quem ele conhecia; e, do outro, um sujeito jovial que logo começou a contar a Michael sobre uma brincadeira para a despedida de solteiro: iriam contratar uma garota francesa para aparecer com um bebê de verdade no colo, gritando: “Hamilton, você não pode me abandonar agora!”. A idéia parecia boba e sem graça para Michael, mas seu criador já se sacudia de rir por antecipação. Mais adiante, na mesa, falava-se do mercado de capitais — outra queda hoje, a pior desde a quebradeira. Alguns estavam gozando Rutherford por causa disso: “Que pena, meu velho. É melhor você nem se casar!”. Michael perguntou ao homem à sua esquerda: “Ele perdeu muito?”. “Ninguém sabe. Hamilton tem muito dinheiro em ações, mas é um dos rapazes mais espertos de Wall Street. Enfim, esse é um ramo em que ninguém diz a verdade.” Desde o começo, o jantar foi regado a champanhe e, já perto do fim, atingiu um agradável nível de camaradagem. Mas Michael percebeu que todas aquelas pessoas estavam muito preocupadas para se deixar embalar por um estimulante comum; durante semanas tinham tomado seus drinques antes das refeições, ao estilo americano; vinhos e conhaques, ao estilo francês; cerveja, ao estilo alemão; uísque e soda, ao estilo inglês; e, como já tinham passado dos trinta, essa mélange absurda, que parecia um gigantesco coquetel num pesadelo, servia apenas para torná-los temporariamente menos conscientes dos equívocos da noite anterior. O que significa que aquela não era uma festa propriamente alegre; a escassa alegria reinante estava disponível apenas para os poucos que não tinham bebido nada. Mas Michael não estava cansado, e o champanhe estimulou-o e tornou sua miséria menos aguda. Estava longe de Nova York havia mais de oito meses e não conhecia a maioria das novas canções, mas, aos primeiros compassos de “Painted doll”, sob a qual tinham experimentado tanta felicidade e desespero no verão anterior, dirigiu-se à mesa de Caroline e convidou-a a dançar. Ela estava linda com seu vestido de um azul etéreo, e a proximidade de seu cabelo louro e quebradiço, de seus olhos cinza, frios e ternos, tornou-o rígido e desajeitado; o primeiro passo que deram no salão foi em falso. No começo, pareceu-lhe que não tinha nada a dizer; queria contar a Caroline sobre sua herança, mas a idéia parecia-lhe abrupta, inconveniente. “Michael, é tão bom dançar de novo com você.” Ele sorriu, amargo. “Estou tão feliz que tenha vindo”, ela continuou. “Tive medo de que você desse uma de bobinho e sumisse. Agora podemos ser bons amigos. Seria tão bom que você e Hamilton gostassem um do outro.” O noivado parecia tê-la emburrecido; ele nunca a ouvira dizer tantas obviedades antes. “Eu poderia matá-lo sem nenhum remorso”, disse Michael, sorrindo, “mas ele parece um bom sujeito. Nada contra. O que eu quero saber é: o que acontece com pessoas como eu, que não conseguem esquecer?” Ao dizer isso, não pôde impedir que sua boca descaísse; Caroline percebeu e seu coração estremeceu violentamente, como na véspera. “Você se importa tanto assim, Michael?” “Sim.” Por um segundo, enquanto ele dizia isso com uma voz que parecia vinda de seus sapatos, os dois

não dançaram; apenas se apoiaram um no outro. Depois ela se afastou dele e torceu a boca num lindo sorriso. “A princípio eu não sabia o que fazer, Michael. Contei a Hamilton sobre nós, que eu gostava muito de você, mas ele não ficou preocupado, e tinha razão. Porque eu superei você — sim, superei. E um belo dia, quando menos esperar, você vai acordar e descobrir que também me superou.” Ele sacudiu a cabeça teimosamente. “Vai, sim!”, ela continuou. “Não fomos feitos um para o outro. Sou muito avoada e preciso de alguém como Hamilton para tomar decisões. Foi mais isso do que uma questão de... de...” “De dinheiro.” Mais uma vez, ele se viu a ponto de lhe dizer o que havia acontecido e, mais uma vez, algo lhe disse que ainda não era a hora. “Então, como explica o que aconteceu quando nos encontramos ontem?”, ele perguntou, desolado. “O que aconteceu agorinha mesmo, quando nos derramamos um para o outro, como costumávamos fazer, como se fôssemos uma só pessoa, como se o mesmo sangue corresse dentro de nós dois?” “Pare com isso”, ela implorou. “Você não pode falar assim. Já está tudo decidido. Amo Hamilton de todo o meu coração. É que me lembro de certas coisas do passado e fico com pena de você — de nós — pelo que já fomos um para o outro.” Sobre o ombro dela, Michael viu um homem se aproximando para tirá-la para dançar. Em pânico, dançou com ela para mais longe, mas inevitavelmente o homem reapareceu. “Preciso ver você a sós, nem que seja por um minuto”, disse Michael, bem rápido. “Quando pode ser?” “Irei ao chá de Jebby West amanhã”, ela sussurrou, no exato momento em que uma mão caiu educadamente sobre o ombro de Michael. Mas ele não pôde falar com ela a sós no chá de Jebby West. Rutherford não desgrudou dela e um arrastava o outro para todas as conversas. Saíram cedo. Na manhã seguinte, o convite de casamento chegou pelo primeiro correio. Michael, desesperado e farto de andar de um lado para o outro no quarto, tomou uma atitude ousada: escreveu a Hamilton Rutherford convidando-o para um encontro na tarde seguinte. Numa rápida comunicação por telefone, Rutherford concordou, mas para um dia depois do sugerido por Michael. E o casamento estava a apenas seis dias. Ficaram de se encontrar no bar do hotel Jena. Michael sabia o que iria dizer: “Olhe aqui, Rutherford, você tem idéia da responsabilidade de levar adiante esse casamento? Já se deu conta do que vai ter de problemas e lamentos ao forçar uma moça a contrariar os instintos de seu coração?”. Iria explicar-lhe que a barreira entre ele e Caroline era artificial e que agora deixara de existir, e exigiria que ele expusesse francamente a situação a Caroline antes que fosse tarde demais. Rutherford ficaria furioso, era bem provável que houvesse uma cena, mas Michael sentia-se lutando por sua vida. Achou Rutherford conversando com um homem mais velho, que Michael já encontrara em várias festas de casamento. “Vi o que aconteceu à maioria dos meus amigos”, Rutherford estava dizendo, “e decidi que não iria acontecer comigo. Não é difícil; se você escolher uma moça de bom senso, der-lhe as coordenadas, ficar atento e for direito com ela, então este será um casamento de verdade. Mas se você vacilar no começo, já sabe — em cinco anos, o homem cai fora ou a mulher o engole.” “Certo!”, concordou o homem, com entusiasmo. “Hamilton, meu rapaz, você está certo.” O sangue de Michael ferveu lentamente. “Não lhe ocorre, Rutherford”, perguntou, frio, “que sua atitude está fora de moda há pelo menos

uns cem anos?” “Não”, disse Rutherford com um sorriso, mas impaciente. “Sou mais moderno que qualquer um. Eu me casaria num avião neste sábado, se isso agradasse à minha noiva.” “Não me refiro a essa maneira de ser moderno. Não se pode pegar uma mulher sensível...” “Sensível? As mulheres não têm nada de sensíveis. Sujeitos como você é que são sensíveis, e são eles que elas exploram, por toda essa devoção e gentileza de vocês. Elas lêem um ou dois livros e vêem alguns filmes porque não têm o que fazer, e dizem que são mais sensíveis que os homens; para provar isso, tomam o freio nos dentes, e ai de você se reclamar — são tão sensíveis quanto um cavalo do Corpo de Bombeiros.” “Caroline, por exemplo, é sensível”, disse Michael com voz entrecortada. Nesse ponto, o outro homem se levantou para ir embora; quando a disputa pela conta foi resolvida e eles se viram sozinhos, Rutherford inclinou-se para Michael como se ele lhe tivesse feito uma pergunta. “Caroline não é sensível”, disse. “Apenas tem bom senso.” Seus olhos combativos, fixos em Michael, piscaram com uma luz cinza. “Isso pode lhe parecer meio brutal, senhor Curly, mas me parece que hoje os homens só faltam pedir para serem feitos de bobo pelas mulheres, as quais já nem acham graça em reduzi-los a isso. Há poucos homens no mundo de quem se pode dizer que mandam na mulher, e eu serei um deles.” Para Michael, parecia a hora de trazer de volta a conversa para a situação concreta. “Você se dá conta da responsabilidade que está assumindo?” “Sem a menor dúvida”, disse Rutherford. “Não tenho medo de responsabilidades. Eu é que tomarei as decisões — justas, espero, mas irrevogáveis.” “E se você já estiver começando errado?”, perguntou Michael impetuosamente. “E se o seu casamento não estiver fundado sobre um amor recíproco?” “Acho que sei aonde quer chegar”, disse Rutherford, ainda amável. “E, já que tocou no assunto, deixe-me lhe dizer que se você e Caroline tivessem se casado, esse casamento não duraria três anos. Sabe em que se baseava o caso de vocês? Em piedade. Os dois tinham pena um do outro. A piedade pode ser divertida para muitas mulheres e alguns homens, mas me parece que um casamento deve se basear na esperança.” Olhou para o relógio e se levantou. “Tenho um encontro com Caroline. Lembre-se, você está convidado para minha despedida de solteiro depois de amanhã.” Michael sentiu que o momento lhe escapava. “Quer dizer que os sentimentos de Caroline não têm importância?”, perguntou impetuosamente. “Caroline está cansada e aborrecida. Mas ela conseguiu o que queria, e é isso o que importa.” “Está se referindo a você?” “Sim.” “Posso perguntar há quanto tempo ela queria você?” “Há uns dois anos.” Antes que Michael pudesse responder, Hamilton foi embora. Nos dois dias seguintes, Michael pairou sobre um abismo de desolação. Angustiava-o que tivesse deixado de fazer alguma coisa para cortar esse nó que se atava com cada vez mais força bem debaixo de seus olhos. Telefonou para Caroline, mas ela deixou claro que seria fisicamente impossível encontrá-lo até a véspera do casamento, quando talvez pudessem se ver. Por isso foi à despedida de solteiro, um pouco por não querer passar a noite sozinho no hotel, mas também pelo sentimento de que sua presença naquela reunião traria Caroline para mais perto, mantendo-a à vista. O bar do Ritz fora decorado para a ocasião, com bandeiras francesas e americanas e com uma lona

revestindo toda uma parede, contra a qual os presentes foram convidados a concentrar sua disposição para quebrar copos. Nos primeiros coquetéis, tomados no bar, houve muito derramamento de bebida provocado por mãos trêmulas, mas, mais tarde, com o champanhe, veio uma crescente onda de risos e ocasionais arroubos musicais. Michael estava surpreso em verificar a diferença que seu smoking novo, a cartola nova de seda e a nova e imaculada roupa de baixo fizeram em sua auto-estima. Sentiu menos ressentimento para com aquelas pessoas por elas serem ricas e pomposas. Pela primeira vez desde que deixara a universidade, ele próprio se achava rico e pomposo. Sentiu-se fazendo parte daquele ambiente e aderiu até mesmo à brincadeira de Johnson, a da aparição da mulher traída, que esperava tranqüilamente numa sala no outro lado. “Não queremos pegar pesado”, disse Johnson, “porque imagino que Ham já tenha tido um dia de cão. Sabia que Fullman Oil’s caiu dezesseis pontos hoje de manhã?” “Isso faz diferença para ele?”, perguntou Michael, tentando fazer uma voz desinteressada. “Claro. Ele jogou tudo ali; sempre joga tudo em alguma coisa. Até ontem, vinha tendo sorte; ou, pelo menos, até um mês atrás.” Os copos se enchiam e se esvaziavam mais depressa agora e os homens gritavam uns para os outros de um lado a outro da mesa estreita. No bar, um grupo estava sendo fotografado e os flashes espocavam pela sala, formando uma nuvem sufocante. “Está na hora”, disse Johnson. “Fique perto da porta, e nós dois vamos tentar impedi-la de entrar, até atrair a atenção de todo mundo.” Foi para o corredor e Michael esperou obedientemente perto da porta. Vários minutos se passaram. Depois Johnson reapareceu com uma expressão estranha nos olhos. “Está acontecendo uma coisa engraçada.” “O que foi, a moça não está mais lá?” “Não, está lá, sim, mas há outra mulher também, e não é ninguém que nós contratamos. Está procurando por Hamilton Rutherford e parece estar decidida a alguma coisa.” Foram até a sala. Plantada numa cadeira perto da porta, havia uma jovem americana, meio de pileque, mas com uma firme expressão no rosto. Encarou-os com um gesto brusco de cabeça. “E aí, falaram com ele?”, exigiu. “O nome é Marjorie Collins, ele sabe quem é. Vim de longe e quero ver ele agora — já! —, ou vou armar a maior confusão aqui dentro.” Levantou-se e ficou de pé, meio instável. “É melhor ir falar com Ham”, sussurrou Johnson para Michael. “Talvez seja bom ele cair fora. Vou segurá-la aqui.” De volta à mesa, Michael inclinou-se sobre o ouvido de Rutherford e, com uma certa amargura, cochichou: “Há uma moça lá fora, Marjorie Collins, que quer falar com você. Está ameaçando armar confusão.” Hamilton Rutherford piscou e sua boca se abriu; depois, lentamente, seus lábios se fecharam formando uma linha fina e ele disse com voz seca: “Segurem a moça lá. E mande o barman vir falar comigo.” Michael falou com o barman e, sem voltar à sua mesa, foi pegar tranqüilamente seu casaco e chapéu. De novo no hall, passou por Johnson e pela moça sem falar com eles e saiu na Rue Cambon. Chamou um táxi e deu o endereço do hotel de Caroline. Seu lugar agora era ao lado dela. Não para lhe levar más notícias, mas apenas para estar com ela

quando o castelo de cartas caísse sobre sua cabeça. Rutherford insinuara que ele era frouxo — bem, era firme o bastante para não desistir da garota que amava sem tirar proveito de todas as chances nos limites da honra. Se ela desse as costas a Rutherford, ele estaria à espera. Caroline estava no apartamento; ficou surpresa quando o telefone a chamou, mas ainda estava vestida e desceria imediatamente. Em poucos minutos, apareceu com um vestido de noite e com dois telegramas azuis na mão. Sentaram-se nas poltronas do lobby deserto. “Mas, Michael, a festa já acabou?” “Queria ver você, por isso vim para cá.” “Que bom.” Sua voz era cordial, mas neutra. “Agorinha mesmo liguei para seu hotel, explicando que tenho provas do vestido e ensaios durante todo o dia de amanhã. Agora podemos ter nossa conversa.” “Você está cansada”, ele arriscou. “Talvez eu não devesse ter vindo.” “Não. Eu estava esperando por Hamilton. Esses telegramas podem ser importantes. Ele disse que precisava ir a algum lugar e não sabia a que horas voltaria, portanto fico feliz de ter alguém com quem conversar.” Michael estremeceu diante da impessoalidade da última frase. “Você não se importa sobre a hora em que ele chega?” “Claro”, ela disse, rindo, “mas não posso fazer nada sobre isso, posso?” “Por que não?” “Não posso ficar dizendo a ele o que fazer ou não.” “Por que não?” “Ele não toleraria.” “Ele parece estar querendo uma dona de casa”, disse Michael com ironia. “Fale de seus planos, Michael”, ela pediu, mudando de assunto. “Planos? Não consigo enxergar nenhum futuro além de depois de amanhã. O único plano de verdade que já tive foi amar você.” Seus olhos passaram uns pelos outros, e o olhar que ele conhecia tão bem estava agora fixo no dele. As palavras vazaram rapidamente de seu coração. “Deixe-me contar-lhe pela última vez o quanto amei você, nunca vacilando por um momento, nunca olhando para outra mulher. Agora, quando penso em todos os anos que me esperam sem você, sem esperança, já não quero viver, Caroline querida. Sonhei tanto com nossa casa, com nossos filhos, sonhei que a abraçava e tocava seu rosto, suas mãos e seu cabelo, que costumavam me pertencer; enfim, sonhei tanto que não consigo acordar.” Caroline estava chorando baixinho. “Pobre Michael... pobre Michael.” Esticou a mão e seus dedos esfregaram a lapela de seu smoking. “Fiquei com tanta pena de você na outra noite. Parecia tão magro, como se precisasse de um terno novo e de alguém que tomasse conta de você.” Fungou e olhou com mais atenção para o smoking: “Ora, você está de smoking novo! E um novo chapéu de seda! Que chique!”. Riu, subitamente alegre em meio às lágrimas. “Você deve estar com dinheiro, Michael. Nunca o vi tão bem vestido.” Naquele momento, pela reação dela, ele odiou suas roupas novas. “Estou, sim”, ele disse. “Meu avô me deixou cerca de duzentos e cinqüenta mil dólares.” “Michael”, ela gritou, “que maravilha! Nem consigo dizer como estou feliz. Sempre achei que você era o tipo de pessoa que devia ter dinheiro.” “Pois é. Mas veio tarde para fazer alguma diferença.”

A porta giratória que dava para a rua emitiu um grunhido e Hamilton Rutherford apareceu no lobby. Seu rosto estava injetado, os olhos agitados e impacientes. “Olá, querida; olá, Curly.” Curvou-se e beijou Caroline. “Passei aqui por um minuto para ver se havia algum telegrama. Estou vendo que você os recebeu.” Tomou-os da mão dela e comentou com Curly: “História estranha, aquela do bar, não? Principalmente porque vocês estavam armando uma na mesma linha”. Abriu um dos telegramas, fechou-o e virou-se para Caroline com expressão dividida, de quem traz duas coisas na cabeça ao mesmo tempo. “Uma moça que não vejo há dois anos surgiu de repente”, ele disse. “Parecia uma espécie de chantagem, mas desastrada, porque não tenho e nunca tive nenhuma espécie de obrigação com ela.” “O que aconteceu?” “O barman chamou alguém da Sûreté Générale e em dez minutos estava tudo resolvido. As leis francesas contra chantagem fazem as nossas parecerem brincadeira de criança, e imagino que devem ter-lhe dado um susto que ela nunca irá esquecer. Mas achei mais sábio vir lhe contar.” “Está insinuando que toquei no assunto com Caroline?”, perguntou Michael, severo. “Não”, Rutherford respondeu lentamente. “Não, apenas decidiu estar por perto. E, já que está aqui, vou lhe dar algumas notícias que podem ser de seu interesse.” Entregou a Michael um telegrama e abriu o outro. “Está em código”, disse Michael. “Este também. Mas aprendi a decifrar esse código na semana passada. Os dois juntos significam que vou precisar começar a vida de novo, do zero.” Michael viu o rosto de Caroline empalidecer, mas ela continuou sentada e tranqüila como um ratinho. “Investi mal e continuei cometendo esse erro por muito tempo”, continuou Rutherford. “Como você vê, nem sempre tenho toda a sorte, Curly. Por falar nisso, disseram-me que herdou um bom dinheiro.” “Foi”, disse Michael. “Então, é isso.” Rutherford virou-se para Caroline. “Você compreende, querida, não estou brincando nem exagerando. Perdi praticamente cada centavo que tinha e vou ter de começar tudo de novo.” Dois pares de olhos a fitavam — os de Rutherford, vazios e ausentes, e os de Michael, famintos, trágicos, implorantes. Em um minuto, Caroline levantou-se da poltrona e, com um gritinho, atirou-se aos braços de Hamilton Rutherford. “Ah, querido”, exclamou, “que importa? É melhor assim; prefiro assim, juro que prefiro! Quero começar assim, do nada! Por favor, não se preocupe nem fique triste, nem por um minuto!” “Está bem, menina”, disse Rutherford. Suas mãos acariciaram gentilmente o cabelo dela; em seguida, afastou-a de si. “Prometi voltar à festa por mais uma hora”, disse. “Tenha uma boa noite, vá para a cama e durma bem. Boa noite, Curly. Lamento tê-lo incomodado com essas questões financeiras.” Mas Michael já apanhara o chapéu e a bengala. “Vou com você”, disse.

III. Era uma delícia de manhã. O fraque de Michael não fora entregue, por isso ele se sentia desconfortável ao passar diante das câmaras fotográficas e de cinema em frente à igrejinha na Avenue George v. Era uma igreja tão nova e limpinha que parecia imperdoável não se estar vestido de acordo. Michael, branco e trêmulo pela noite insone, decidiu ficar nas últimas fileiras. Dali podia contemplar

as costas de Hamilton Rutherford, as costas rendadas e veladas de Caroline e as costas gordas de George Packman, que lhe sugeriram instabilidade, como se ele quisesse se apoiar na noiva e no noivo. A cerimônia arrastou-se por longo tempo sob os alegres galhardetes e bandeiras que pendiam do teto e os grossos raios da luz de junho que penetravam pelas janelas altas sobre aquelas pessoas bem vestidas. Quando a procissão, encabeçada pela noiva e pelo noivo, começou a descer a nave, Michael se deu conta, alarmado, de que estava exatamente onde, ao se dispersar, o cortejo se tornaria um grupo informal, e todos falariam com ele. Foi o que aconteceu. Rutherford e Caroline foram os primeiros; Rutherford, contrariado pela tensão do casamento; Caroline, mais linda do que nunca, flutuando com maciez em meio aos amigos e parentes de sua juventude, em meio ao passado e em direção ao futuro, através da porta ensolarada. Michael conseguiu murmurar, “Linda, simplesmente linda”, depois outras pessoas passaram e vieram falar com ele — a velha sra. Dandy, direto de seu leito de enferma e parecendo espantosamente bem-disposta, ou, pelo menos, se esforçando para isso, como a bela senhora que era; o pai e a mãe de Rutherford, divorciados havia dez anos, mas caminhando juntos e parecendo orgulhosos e feitos um para o outro. Em seguida, as irmãs de Caroline e seus maridos e seus pequenos sobrinhos, vestidos com terninhos Eton, e depois uma longa fila, todos se dirigindo a Michael porque ele se postara, paralisado, justamente no ponto em que a fila se dispersava. Perguntou-se o que aconteceria agora. Os convites convocavam para a recepção no George v; um lugar caro que só Deus sabe. Será que Rutherford iria manter a programação mesmo diante dos tais telegramas desastrosos? Evidente que sim, porque a procissão se dirigia para lá naquela manhã de junho, de três em três ou de quatro em quatro. Na esquina, os vestidos longos das meninas, cinco delas lado a lado, drapejavam suas cores ao vento. As moças tinham se tornado diáfanas, uma flora ambulante; era lindo vê-las ondulando seus vestidos ao vento naquele dia iluminado. Michael precisava beber alguma coisa; não conseguiria encarar a fila de cumprimentos sem um drinque. Escapando por uma porta lateral do hotel, saiu em busca do bar, para onde um chasseur o conduziu por meio quilômetro de novos corredores que lembravam os hotéis americanos. Mas — como isso foi acontecer? — o bar estava cheio. Havia uns dez, quinze homens e duas, quatro moças, todos saídos do casamento e já precisando de um drinque. Havia coquetéis e champanhe no bar; coquetéis e champanhe de Rutherford, como se soube depois, porque ele fechara o bar inteiro, o salão de baile, os dois grandes salões de recepção e todas as escadarias para cima e para baixo, além das janelas que davam para aquele quarteirão de Paris. Aos poucos, Michael saiu e juntou-se ao longo e lento fluxo da fila dos cumprimentos. Ao cabo de uma florida névoa de “Que lindo casamento”, “Você esteve maravilhosa, querida” e “Você é um homem de sorte, Rutherford”, ele chegou ao fim da fila. Quando se aproximou de Caroline, ela deu um passo à frente e o beijou nos lábios, mas ele não sentiu nenhum contato nesse beijo; era um beijo irreal e ele se afastou. A velha sra. Dandy, que sempre gostara dele, segurou sua mão por um minuto e agradeceu-lhe as flores que ele mandara ao saber que ela estava doente. “Lamento tanto não lhe ter escrito; você sabe, nós, as velhas, ficamos gratas por...” As flores, o fato de ela não lhe ter escrito, o casamento — Michael percebeu que tudo aquilo tinha para ela a mesma importância relativa; ela casara cinco outros filhos e vira dois desses casamentos serem destruídos, e essa cena, tão pungente e confusa para Michael, era para ela uma simples charada familiar em que já desempenhara o mesmo papel anteriormente. O jantar com champanhe já estava sendo servido em mesinhas e havia uma orquestra tocando para

o salão vazio. Michael sentou-se com Jebby West; sentia-se ainda um pouco envergonhado por não estar usando o paletó adequado para a manhã, mas via agora que não era o único nessa omissão, e se sentiu melhor. “Caroline não estava divina?”, disse Jebby West. “Tão completamente dona de si. Perguntei-lhe hoje de manhã se não estava um pouco nervosa por dar um passo como esse, e ela disse: ‘Por quê? Estou a fim dele há dois anos, e agora estou feliz, só isso’.” “Deve ser verdade”, disse Michael, com ar sombrio. “O quê?” “Isso que você acabou de contar.” Acabara de ser apunhalado, mas, para seu próprio desgosto, não sentiu a ferida. Convidou Jebby para dançar. Na pista, o pai e a mãe de Rutherford estavam dançando. “Fico um pouco triste”, ela disse. “Aqueles dois não se viam há anos; ambos se casaram de novo e ela se divorciou mais uma vez. Ela foi à estação esperá-lo quando ele chegou para o casamento e convidou-o a ficar em sua casa na Avenue du Bois, junto com outras pessoas, tudo perfeitamente de acordo. Mas ele teve medo de que sua mulher ficasse sabendo e não gostasse, por isso foi para um hotel. Você não acha triste?” Uma hora e pouco depois, Michael deu-se conta de que já era de tarde. Num canto do salão, tinham feito um arranjo de telas, como as dos cinemas, e os fotógrafos estavam fotografando o novo casal. Para os dançarinos girando pela semitreva modulada do salão, os recém-casados, inertes como a morte e pálidos como cera sob luzes fortes, pareciam aqueles grupos alegres ou sinistros que se encontram à saída do trem-fantasma num parque de diversões. Depois que o casal acabou de ser fotografado, veio um grupo de pajens; depois, as damas de honra, as famílias, as crianças. Mais tarde, Caroline, ativa e excitada, tendo havia muito dispensado a serenidade implícita em seu vestido e em seu buquê, apareceu e capturou Michael no meio do salão. “Agora vamos tirar a nossa, a dos amigos.” Sua voz implicava que aquela foto seria a melhor, a mais íntima de todas. “Venha, Jebby, George — você não, Hamilton, esta é só com os meus amigos. Sally...” Pouco depois, o que restava de formalidade desapareceu e as horas fluíram fáceis, numa profusa corrente de champanhe. À moda moderna, Hamilton Rutherford sentou-se à mesa com seu braço enlaçando uma antiga namorada e informou aos convidados, os quais incluíam alguns não poucos europeus atônitos e entusiasmados, que a festa não estava nem perto do fim; que continuaria no Zelli’s depois da meia-noite. Michael viu quando a sra. Dandy, não de todo recuperada da doença, levantou-se para ir embora e teve de parar em cada grupo; ele relatou o fato a uma das filhas, que finalmente conseguiu seqüestrar a mãe e conduzi-la até seu carro. Michael sentiu-se orgulhoso e amável por ter feito aquilo, e bebeu mais champanhe por conta. “É incrível”, George Packman estava dizendo entusiasmado. “Esse regabofe custará a Ham uns cinco mil dólares e, na minha opinião, devem ser os últimos cinco mil que ele tem no banco. Mas pensa que ele economizou uma única garrafa de champanhe ou uma flor? Não! Ele é assim. Sabia que hoje de manhã, dez minutos antes do casamento, T. G. Vance ofereceu-lhe um salário de cinqüenta mil dólares por ano? Em mais um ano, estará de volta ao clube dos milionários.” A conversa foi interrompida por um plano para carregar Rutherford para fora nos ombros da turma — um plano que seis deles puseram em ação e depois se postaram, ao nascer do sol, às quatro da manhã, dando adeus à noiva e ao noivo. Mas deve ter havido um engano porque, cinco minutos depois, Michael viu os dois, noivo e noiva, descendo as escadas até a recepção, cada qual com uma taça de champanhe erguida desafiadoramente no ar.

Esta é a nossa maneira de fazer as coisas, ele pensou. Generosa, fresca e livre; uma espécie de hospitalidade de fazenda da Virgínia, mas com um ritmo diferente, nervoso como o telégrafo de cotações da Bolsa. De pé, inconspícuo no meio da sala, tentando identificar o embaixador americano, Michael só então se deu conta de que havia horas não pensava em Caroline. Olhou em volta e finalmente a viu, no outro lado da sala, refulgente e muito jovem, radiantemente feliz. Viu Rutherford perto dela, olhando-a como se nunca fosse se cansar disso, e, aos olhos de Michael, eles pareciam se afastar como ele gostaria que tivessem feito no outro dia, na Rue de Castiglione — se afastar e sumir em suas próprias dores e alegrias, nos anos que cobrariam a conta do justo orgulho de Rutherford e da comovente juventude e beleza de Caroline, recuar mais ainda, de forma que ele mal pudesse vê-los, como se fossem envolvidos por algo tão enevoado quanto seu vestido encapelado e branco. Michael estava curado. A cerimônia, com sua pompa e fantasia, servira-lhe de ingresso numa vida em que sua própria dor não poderia acompanhá-los. A amargura dissolveu-se e o mundo reconstituiuse a partir da juventude e da felicidade que o cercavam, dissoluto como o sol da primavera. Ao se aproximar de Hamilton e Caroline Rutherford para se despedir, estava tentando se lembrar com qual das damas de honra marcara um encontro para jantar naquela noite. (1930)

Uma viagem ao estrangeiro

À tarde, o ar ficou carregado de gafanhotos, e algumas mulheres começaram a gritar de medo, encolhendo-se no chão do ônibus e cobrindo a cabeça com as mantas de viagem. Os gafanhotos vinham do Norte, comendo tudo o que encontravam pelo caminho, o que não queria dizer muito naquela parte do mundo. Voavam em silêncio e em filas, como flocos de neve preta. Mas nenhum se atirou contra as vidraças ou penetrou no ônibus, o que fez com que as mulheres mais brincalhonas estendessem o braço para fora da janela, tentando capturar alguns. Dez minutos depois, a nuvem se dissipou, sumiu, e as mulheres emergiram dos cobertores, descabeladas e sentindo-se tolas. E todas falando ao mesmo tempo. Todo mundo falando; de fato, seria absurdo permanecer mudo depois de atravessar uma tempestade de gafanhotos nos confins do Saara. A esmirnéia-americana contava à viúva inglesa sobre sua ida a Biskra para tentar pela última vez conhecer um certo xeque. O corretor da Bolsa de São Francisco perguntava timidamente ao escritor: “O senhor não é escritor?”. Um homem de Wilmington e sua filha conversavam com o aviador cockney que iria voar até Timbuktu. O próprio motorista francês virou-se e disse em voz alta e clara: “Besouros”, o que provocou frouxos risos histéricos na enfermeira diplomada de Nova York. No meio da azáfama dos viajantes, um diálogo merecia ser ouvido com mais atenção. O sr. e sra. Liddell Miles, como se fossem uma só pessoa, sorriram e se dirigiram ao jovem casal americano no banco de trás: “Não ficou nenhum preso no cabelo?” O jovem casal sorriu de volta, educadamente. “Não. Sobrevivemos à praga.” Tinham pouco mais de vinte anos e ainda conservavam um agradável ar de noivos. Um belo casal: o rapaz, com um jeito intenso e vivo; a moça, de pele e olhos espantosamente claros, rosto sem sombras, com um frescor modulado por uma calma confiante e deliciosa. O sr. e a sra. Miles não deixaram de notar sua educação, a origem “sofisticada” deles, evidente tanto em sua naturalidade quanto numa certa reserva, que nada tinha de empostada. Se pareciam distantes do grupo, era porque bastavam-se um ao outro, ao passo que a indiferença do sr. e da sra. Miles aos outros passageiros era uma máscara consciente, uma atitude social, uma postura tão ostensiva quanto os insistentes avanços da esmirnéia-americana, esnobada por todos. Os Miles, na verdade, decidiram que o jovem casal Kelly era “aceitável” e, entediados consigo mesmos, tentavam francamente se aproximar dos dois. “Já estiveram na África antes? É incrível, fascinante. Vocês vão a Túnis?” Os Miles, mesmo algo desgastados por quinze anos de convivência com determinado círculo em Paris, eram inegavelmente elegantes, tinham um certo charme e, antes que a noite caísse sobre a cidadezinha-oásis de Bou Saada, os quatro já tinham criado uma camaradagem. Descobriram amigos

comuns em Nova York e, ao se encontrarem para um drinque no bar do hotel Transatlantique, marcaram um jantar para aquela noite. Mais tarde, quando os jovens Kelly desceram, Nicole sentia-se um pouco arrependida por terem aceitado, ao se dar conta de que aquilo os obrigaria a conviver com seus novos conhecidos até pelo menos Constantine, quando seguiriam roteiros diferentes. Nos oito meses de casamento, tinham sido tão felizes que aquilo parecia estragar alguma coisa. No navio italiano que os levara até Gibraltar, conseguiram manter-se afastados dos grupos que se apoiavam uns nos outros no bar; em vez disso, estudaram francês para valer, e Nelson dedicou-se às possibilidades comerciais de sua recente herança de meio milhão de dólares. Além disso, pintou um quadro de uma chaminé do navio. Quando um membro da festiva turma desapareceu para sempre nas águas do Atlântico, perto dos Açores, os Kelly ficaram quase satisfeitos, porque isso justificava sua atitude distante. Mas havia outra razão para que Nicole se arrependesse de terem aceitado jantar. Falou com Nelson a respeito: “Passei por aquele casal no saguão agora há pouco”. “Quem, os Miles?” “Não, aquele casal jovem, mais ou menos da nossa idade, que estava no ônibus e que parecia tão agradável em Bir Rabalou, depois do almoço, no mercado de camelos.” “De fato, pareciam agradáveis.” “Encantadores, ambos”, ela disse enfaticamente, “a moça e o rapaz. Tenho quase certeza de que já vi aquela moça em algum lugar antes.” O casal a que se referiam estava sentado no outro lado da sala durante o jantar, e Nicole sentiu seus olhos serem atraídos irresistivelmente para eles. Mas o rapaz e a moça também estavam acompanhados, e, mais uma vez, Nicole, que havia dois meses não conversava com uma mulher da sua idade, sentiu um ligeiro desapontamento. Os Miles, tão sofisticados e francamente esnobes, eram outra conversa. Já tinham ido a um número impressionante de lugares e pareciam conhecer todas as celebridades que passavam como relâmpagos pelos jornais. Jantaram na varanda do hotel sob um céu baixo e tomado pela presença de um Deus estranho e vigilante; em torno do terreno do hotel, a noite já se agitava com os sons sobre os quais eles tinham lido tanto, mas que agora lhes pareciam tão histericamente inusitados — tambores do Senegal, uma flauta nativa, o lamento exigente e efeminado de um camelo, o ruído dos passos dos árabes em seus sapatos feitos de pneus velhos, a lamúria das orações dos feiticeiros. Na recepção do hotel, um viajante discutia com o empregado sobre a taxa de câmbio, e a falta de sentido da discussão contribuía para o alheamento deles, que aumentara consideravelmente à medida que se dirigiam para o sul. A sra. Miles foi a primeira a quebrar o prolongado silêncio; com uma espécie de impaciência, arrancou-os do fascínio pela noite e os trouxe de volta à mesa. “Devíamos ter nos vestido a rigor. Um jantar é sempre mais divertido quando as pessoas se compõem, porque se sentem diferentes em roupas formais. Os ingleses sabem disso.” “Nos vestir aqui?”, seu marido protestou. “Eu me sentiria como aquele homem de terno em frangalhos que vimos hoje, tocando o rebanho de carneiros.” “Sempre me sinto como uma turista quando não estou vestida a rigor.” “Mas é o que nós somos, não é?”, observou Nelson. “Não me considero uma turista. Turista é quem levanta cedo, vai a catedrais e fica comentando sobre a paisagem.” Nicole e Nelson, tendo visitado todos os cartões-postais de Fez a Argel, filmado rolos inteiros e

se sentido mais cultos, admitiram a si mesmos terem feito aquilo tudo, mas concluíram que suas experiências de viagem não interessariam à sra. Miles. “Todo lugar é igual”, continuou a sra. Miles. “A única coisa que importa é quem está nele. Qualquer paisagem só tem graça por meia hora; a partir daí, você quer ver é gente parecida com você. Por isso alguns lugares entram de certa forma na moda, depois a moda muda e as pessoas passam a freqüentar outros lugares. O lugar em si não tem importância.” “Mas alguém tem de ser o primeiro a decidir que um lugar é interessante, não?”, objetou Nelson. “Os primeiros a ir lá é porque gostaram do lugar.” “Para onde estão indo na primavera?”, perguntou a sra. Miles. “Pensamos em San Remo ou, talvez, Sorrento. Nunca fomos à Europa.” “Meninos, conheço tanto Sorrento quanto San Remo, e vocês não conseguirão tolerar nenhum dos dois por mais de uma semana. Vivem cheio de ingleses horríveis lendo o Daily Mail, esperando o carteiro e falando sobre as coisas mais chatas. Tanto faz ir a Brighton ou a Bournemouth, comprar um poodle branco e um guarda-sol e passear no píer. Quanto tempo vão ficar na Europa?” “Não sabemos; talvez alguns anos.” Nicole hesitou. “Nelson herdou algum dinheiro e queríamos mudar de ares. Quando eu era mais jovem, meu pai tinha asma e precisei viver com ele durante anos nos retiros mais deprimentes, porque lhe faziam bem à saúde. Nelson comerciava peles no Alasca e odiava aquilo. Assim, quando nos libertamos, viemos para o exterior. Nelson pretende pintar e eu quero estudar canto.” Olhou triunfalmente para o marido. “Até agora, tem sido absolutamente maravilhoso.” Pelas roupas da jovem, a sra. Miles constatou que ali havia muito dinheiro, e o entusiasmo deles contagiou-a. “Vocês não podem perder Biarritz”, aconselhou. “Ou então ir a Monte Carlo.” “Parece que vamos ter um grande espetáculo aqui”, disse Miles, pedindo champanhe. “As Ouled Naïls. O concierge disse que são uma tribo de garotas que descem das montanhas, tornam-se dançarinas e sabe-se lá o quê, até juntar ouro suficiente para voltarem para as montanhas e se casar. Vão se apresentar esta noite.” A caminho do Café das Ouled Naïls, Nicole lamentou que ela e Nelson não estivessem apenas passeando por aquela noite cada vez mais aconchegante, suave e brilhante. Nelson retribuíra a garrafa de champanhe no jantar, e nenhum dos dois estava acostumado a beber tanto. Ao se aproximarem do som triste de uma flauta, Nicole não queria entrar; preferia subir ao topo de uma pequena colina onde uma mesquita branca se impunha como uma estrela na noite. A vida era melhor que qualquer espetáculo; colando-se a Nelson, apertou sua mão. O café, na forma de uma pequena caverna, estava repleto dos passageiros dos dois ônibus. As dançarinas — mulatas berberes, de nariz achatado e olhos bonitos e sombreados — já estavam fazendo, cada uma, seu solo no tablado. Usavam roupas de algodão, que lembravam as das amas do Sul dos Estados Unidos; dentro delas, seus corpos se contorciam em lentos movimentos, culminando com uma dança do ventre em que cintos de prata se agitavam selvagemente e colares e pulseiras de moedas de ouro tilintavam em seus pescoços e braços. O flautista era também um cômico; dançava, imitando as moças. O baterista, vestido de peles de animais como um feiticeiro da tribo, era um sudanês autêntico. Através da fumaça dos cigarros, cada uma das moças fazia movimentos com os dedos, como se tocasse piano no ar — coisa que parecia muito fácil, mas que em pouco tempo mostrava como podia ser difícil — e, depois, mudava para passos simples e lânguidos, mas igualmente precisos. Tudo, no entanto, era só preparação para a violenta sensualidade da dança que se aproximava do fim.

Houve um silêncio. O espetáculo não parecia ter terminado, mas a maioria das pessoas começou a se levantar para sair, e um murmúrio brotou no ar. “O que é isto?”, perguntou Nicole ao marido. “Bem, acho que... parece que as Ouled Naïls não têm muito a ver com... o estilo oriental — exceto, talvez, pelas jóias.” “Oh.” “Vamos continuar assistindo”, disse o sr. Miles, jovialmente. “Afinal, estamos aqui para ver os verdadeiros costumes do país; não podemos deixar que uma dose de puritanismo interfira.” Muitos homens ficaram, e algumas mulheres. Nicole levantou-se de repente. “Vou esperar lá fora.” “Mas por quê, Nicole? Afinal de contas, a senhora Miles vai continuar vendo.” O flautista fazia alguns floreios preliminares. Sobre o tablado, duas meninas de talvez quatorze anos tiravam seus vestidos de algodão. Por um instante, Nicole hesitou, dilacerada entre a repulsa e o desejo de não parecer puritana. Então viu outra jovem americana levantar-se e correr em direção à porta. Reconhecendo a moça atraente do outro ônibus, tomou sua decisão rapidamente e saiu também. Nelson correu atrás dela. “Se você for, eu também vou”, disse, mas com evidente relutância. “Por favor, não se incomode. Vou esperar aqui fora com o guia.” “Bem...” O tambor estava começando. Ele concedeu a si mesmo: “Vou ficar só um minuto. Quero ver o que é isso”. Esperando na noite fresca, ela sentiu que o incidente a magoara — Nelson não ter logo saído com ela e dado como argumento o fato de que a sra. Miles ia ficar... Da mágoa, passou à raiva, e fez sinais ao guia de que queria voltar para o hotel. Vinte minutos depois, Nelson apareceu, furioso tanto por ela ter sumido como para esconder sua culpa por tê-la deixado. Incrédulos, ambos viram-se de repente discutindo. Mais tarde, quando já não se ouvia nenhum som em Bou Saada e os nômades na praça do mercado, enrolados em seus albornozes, pareciam trouxas imóveis, ela dormia sobre o ombro dele. A vida é um processo, não importam nossas intenções, mas algo se rompera, e um precedente de possíveis desacordos se firmara. Mas era uma disputa de amor, e ainda podia comportar muitos confrontos. Ela e Nelson tinham vivido juventudes solitárias; agora, queriam conhecer o cheiro e o gosto do mundo vivo; no momento, ainda os encontravam um no outro. Um mês depois, estavam em Sorrento, onde Nicole passou a tomar aulas de canto e Nelson tentava pintar alguma coisa nova na baía de Nápoles. Era a vida que haviam planejado e sobre a qual tinham lido tanto. Mas descobriram que o encanto desses interlúdios líricos depende de que um deles “dê a festa” — o que significa fornecer o ambiente, a experiência, a paciência, diante dos quais o outro pareça desfrutar de novo os feitiços de uma tranqüilidade pastoral recuperada da infância. Nicole e Nelson eram, ao mesmo tempo, muito velhos e muito jovens, além de muito americanos, para mergulharem num suave e imediato acordo com uma terra estranha. Sua vitalidade os tornava irrequietos, porque, até então, a pintura dele ainda não tinha uma direção e o canto dela nenhuma perspectiva de ser levado a sério. Diziam que não estavam “chegando a lugar nenhum” — as noites eram longas e, com isso, começaram a beber muito vin de Capri ao jantar. Os ingleses dominavam o hotel. Eram mais velhos e tinham vindo para o Sul em busca de calor e tranqüilidade. Nelson e Nicole achavam-nos modorrentos. Como podiam se contentar em falar interminavelmente sobre o tempo, passear pelos mesmos caminhos e encarar a mesma variedade de macarrão ao jantar, mês após mês? Começaram a se entediar, e americanos entediados vivem em busca de excitação. Coisas lhes vieram à cabeça certa noite.

Após uma garrafa de vinho ao jantar, decidiram ir para Paris, alugar um apartamento e trabalhar a sério. Paris prometia-lhes diversão cosmopolita, amigos de sua própria idade e uma espécie de intensidade que faltava à Itália. Excitados pelas novas esperanças, foram ao salão depois do jantar, quando, pela décima vez, Nelson viu um velho e enorme piano automático e resolveu ligá-lo. Do outro lado do salão, estavam os únicos ingleses com quem eles haviam tido algum contato — o general sir Evelyne Fragelle e Lady Fragelle. O contato fora breve e desagradável — ao vê-los saírem do hotel para nadar, cobertos apenas por um roupão, Lady Fragelle bradou, a poucos metros de distância, que aquilo era um ultraje e não devia ser permitido. Mas isso não foi nada comparado à sua reação ao ouvir as primeiras explosões de som do piano elétrico. Quando as primeiras notas vibraram e a poeira de anos dissipou-se do teclado, ela atirou-se para a frente com um trejeito, como se tivesse recebido um choque elétrico. Nelson, ele próprio espantado com o súbito estrépito de “Waiting for the Robert E. Lee”, mal tinha voltado para sua mesa, quando Lady Fragelle projetou-se através da sala, com a cauda do vestido arrastando atrás dela, e, sem olhar para os Kelly, desligou o instrumento. Foi um daqueles gestos que ou se justificam plenamente ou constituem uma afronta. Por um instante, Nelson hesitou, incerto; depois, lembrando-se da arrogante observação de Lady Fragelle sobre seu traje de banho, voltou ao instrumento, ainda no vagalhão da passagem da mulher, e ligou-o de novo. O incidente tornara-se internacional. Os olhos de todo o salão caíram ansiosos sobre os protagonistas, à espera do próximo movimento. Nicole correu para Nelson, implorando que ele ignorasse o caso, mas já era tarde. Da furibunda mesa dos ingleses levantou-se, articulação por articulação, o general sir Evelyne Fragelle, pronto para sua, talvez, mais crucial situação desde a rendição de Ladysmith. “Mas que afronta! Que afronta!” “Como?”, perguntou Nelson. “Quinze anos aqui!”, gritou sir Evelyne para si mesmo, “e nunca soube de ninguém que tivesse feito tal coisa!” “Pensei que a máquina fosse para divertir os hóspedes.” Não se dignando a responder, sir Evelyne agachou-se, agarrou o pino e empurrou-o no sentido errado, fazendo com que a velocidade e o volume do instrumento triplicassem, provocando um pandemônio sonoro; como se passasse por comoções militares, sir Evelyne ficou lívido e Nelson estava a ponto de enlouquecer de rir. A mão firme do gerente do hotel resolveu o problema; o instrumento engasgou e parou, tremendo um pouco depois de tantos arroubos a que não estava acostumado e produzindo um grande silêncio, durante o qual sir Evelyne virou-se para o gerente. “Esta é a maior afronta que já vi na vida. Minha esposa desligou o piano, e ele...”, pela primeira vez, reconhecia a identidade de Nelson como algo distinto do instrumento, “ele o ligou de novo!” “Esta é uma sala pública num hotel”, protestou Nelson. “Aparentemente, o piano está aqui para ser usado.” “Não discuta”, sussurrou Nicole. “Eles são mais velhos.” Mas Nelson continuou: “Se alguém merece desculpas, certamente sou eu”. O olho de sir Evelyne fixou-se ameaçadoramente no gerente, esperando que ele cumprisse seu dever. O funcionário pensou nos quinze anos de residência de sir Evelyne no hotel e aviltou-se. “Não temos o hábito de tocar o instrumento à noite. Os clientes devem se limitar a suas mesas.” “Americano atrevido!”, vociferou sir Evelyne.

“Muito bem”, disse Nelson, “amanhã vamos poupar o hotel de nossa presença.” Como reação a esse incidente, numa espécie de protesto contra sir Evelyne Fragelle, acabaram não indo para Paris, mas para Monte Carlo. Não queriam mais ficar sozinhos.

II. Certa manhã, pouco mais de dois anos depois da primeira visita do casal a Monte Carlo, Nicole acordou num lugar que, embora tivesse o mesmo nome, tornara-se para ela completamente diferente. Apesar dos meses de correria em Paris e Biarritz, ali era agora o seu lar. Tinham uma villa, um largo círculo de amigos nas turmas que vinham para a primavera e o verão — turmas que, naturalmente, não incluíam pessoas que chegavam em viagens fretadas ou para festas marítimas em cruzeiros pelo Mediterrâneo; esses, para eles, eram agora os “turistas”. Adoravam a Riviera em pleno verão, com tantos amigos de visita e noites cheias de música. Antes que a criada fechasse as cortinas naquela manhã para amenizar a claridade, Nicole viu pela janela o iate de T. F. Golding, placidamente aportado entre os grã-finos da baía monegasca, como se sempre pronto para uma romântica viagem para a qual não precisava sair do lugar. O iate adquirira o ritmo lento da costa; nunca fora além de Cannes, ida e volta, durante todo o verão, embora pudesse ter viajado pelo mundo. Os Kelly jantariam a bordo naquela noite. Nicole falava excelente francês; tinha cinco vestidos novos para a noite e quatro outros que também serviam; tinha seu marido; e, além dele, dois homens apaixonados por ela, de um dos quais sentia alguma pena. E tinha seu lindo rosto. Às dez e meia da manhã, iria encontrar um terceiro homem, que estava começando a se apaixonar por ela, “de maneira inofensiva”. À uma da tarde, receberia umas dez pessoas encantadoras para almoçar. Tudo isso. Estou feliz, pensou, diante das venezianas douradas. Sou jovem, atraente e meu nome vive nos jornais por eu ter ido aqui ou ali, mas, na verdade, não ligo muito para essa agitação. Acho tudo uma bobagem, mas, se você está a fim de conhecer pessoas, é melhor conhecer os mais chiques e divertidos; e, se as pessoas chamarem você de esnobe, é por inveja, como elas bem sabem e todo mundo sabe. Repetiu a essência desse pensamento para Oscar Dane no campo de golfe do Mont Agel, duas horas depois, e ele a repreendeu: “De jeito nenhum”, disse. “Você está ficando esnobe. Acha divertidos esses bêbados com quem anda? Ora, não são nem chiques. São uns grossos que, depois de aprontarem por toda a Europa, vieram parar aqui, no Mediterrâneo.” Aborrecida, Nicole citou um nome, mas ele respondeu: “Terceira classe. Só engana os principiantes”. “E os Colby — ou, pelo menos, ela?” “Terceira categoria.” “E o marquês e a marquesa de Kalb?” “Se ela não fosse drogada e ele não tivesse outras peculiaridades...” “Bem, então, onde estão as pessoas divertidas?”, ela perguntou, impaciente. “Sozinhas, em algum lugar. Elas não andam em bandos, só às vezes.” “E você? Já aceitou convites de todas as pessoas que citei. Ouvi histórias a seu respeito muito piores do que as que você poderia inventar. Os homens que conhecem você há mais de seis meses não aceitariam um cheque seu de dez dólares que fosse. Você é um chupim, um parasita e...” “Um momentinho...”, ele interrompeu. “Não quero estragar este passeio... Só não gosto de ver você enganar a si mesma”, continuou. “O que você pensa ser a sociedade internacional não tem

condições, atualmente, nem de entrar nas salas públicas do cassino; e, se tento ganhar a vida me agarrando a eles, ainda dou vinte vezes mais do que recebo. Nós, os arruinados, somos as únicas pessoas nessa turma com algum conteúdo, e só nos grudamos a eles porque não temos escolha.” Ela riu, adorando-o imensamente e imaginando como Nelson ficaria furioso se soubesse que Oscar lhe roubara a tesourinha de unhas e seu exemplar do New York Herald naquela manhã. Seja como for, pensou Nicole depois, ao voltar para o almoço em casa, iremos embora daqui rapidamente, vamos ficar mais sérios e ter um filho. Assim que acabar o verão. Ao dar uma paradinha no florista, viu uma moça saindo com uma braçada de flores. Quando a moça olhou para ela sobre o buquê de cores, Nicole percebeu que ela era muito interessante e seu rosto, familiar. Alguém que ela já conhecera, mas só de vista; o nome lhe escapava, portanto não lhe acenou com a cabeça, e esqueceu o caso até aquela tarde. Eram doze para o almoço: a turma do iate dos Golding, Liddell e Cardine Miles, o sr. Dane — sete nacionalidades diferentes, pelas suas contas; entre eles, uma linda francesa, madame Delauney, que Nicole chamava brincando de “namorada de Nelson”. Noel Delauney era, talvez, sua melhor amiga; quando jogavam golfe em dupla ou viajavam em quatro, ela fazia par com Nelson; mas, naquele dia, ao apresentá-la a alguém como “namorada de Nelson”, a brincadeira soou mal para a própria Nicole. Durante o almoço, Nicole declarou: “Nelson e eu vamos dar o fora daqui”. Todo mundo disse que também iria dar o fora dali. “Só é bom para os ingleses”, disse alguém, “porque eles estão fazendo uma espécie de dança da morte, dando um baile num forte condenado, com os sipaios de guarda no portão. Está escrito nos rostos deles ao dançar — pela intensidade. Eles sabem disso, acham ótimo e não enxergam nenhum futuro. Mas vocês, americanos, passam maus bocados por aqui. Se quiserem sair à rua de chapéu verde, de chapéu amassado ou do que for, têm antes de tomar um porre.” “Vamos dar um jeito nisso indo embora”, disse Nicole com firmeza, mas algo dentro dela protestava: “Que pena... esse mar tão lindo, essa felicidade”. O que viria depois? Bastava aceitar um afrouxamento da tensão? De certa forma, cabia a Nelson responder. Seu crescente descontentamento com o fato de que não estava chegando a lugar nenhum deveria explodir numa nova vida para ambos, ou, melhor ainda, numa nova esperança e disposição de viver. Aquele segredo deveria ser sua contribuição como homem. “Bem, crianças, até logo.” “Foi um belo almoço.” “Não se esqueçam de cair fora.” “Nos vemos quando...” Os convidados desceram a alameda em direção aos carros. Só Oscar, ligeiramente lubrificado pelos licores, ficou com Nicole na varanda, falando sem parar sobre a moça que ele convidara para ver sua coleção de selos. Subitamente cansada das pessoas, ansiosa por ficar sozinha, Nicole escutou-o por um momento e, pegando um jarro de vidro sobre a mesa do almoço, saiu com ele pelas janelas francesas em direção à villa escura e sombreada, seguida pela voz de Oscar, que não parava de falar. Foi ao atravessar o primeiro salão, ainda ouvindo o monólogo de Oscar na varanda, que ela começou a escutar outra voz na sala ao lado, cortando afiada os murmúrios de Oscar. “Ah, me beije de novo”, disse a voz. Parou. Nicole parou também, rígida no silêncio, quebrado agora apenas pela voz no alpendre. “Tenha cuidado.” Nicole reconheceu o suave sotaque francês de Noel Delauney.

“Estou cansado de ter cuidado. Além do mais, eles estão na varanda.” “Não, é melhor no lugar de sempre.” “Querida, minha doce querida.” A voz de Oscar Dane na varanda pareceu cansada e sossegou. Como se libertada de sua paralisia, Nicole deu um passo — para a frente ou para trás, nem percebeu para onde. Ao som de seu calcanhar no assoalho, ouviu as duas pessoas na sala ao lado se separarem rapidamente. Entrou. Nelson estava acendendo um cigarro; Noel, de costas, parecia procurar um chapéu ou uma bolsa na cadeira. Mais pasma do que furiosa, Nicole atirou — na verdade, jogou para longe de si — o vaso de vidro que carregava. Se tivesse mirado alguém, seria em Nelson. Mas a força de seu sentimento pareceu apossar-se do objeto inanimado; o jarro passou por Nelson, e Noel Delauney, ao se virar, recebeu-o no lado do rosto e da cabeça. “Ei, o que é isso?”, gritou Nelson. Noel desabou lentamente sobre a cadeira às suas costas, a mão subindo devagar até o rosto. O jarro rolou sem quebrar pelo grosso carpete, espalhando as flores. “Cuidado!” Nelson estava ao lado de Noel, tentando remover sua mão para ver o que havia acontecido. “C’est liquide!”, arquejou Noel num sussurro. “Est-ce que c’est le sang?” Ele retirou a mão dela à força e gritou, sem fôlego, “Não, é só água!”, e depois para Oscar, que surgira na porta: “Arranje algum conhaque!”, e, para Nicole: “O que houve, ficou louca?”. Nicole, respirando com dificuldade, não disse nada. Quando o conhaque chegou, houve um prolongado silêncio, como o de pessoas que acompanham uma cirurgia, enquanto Nelson despejava o copo pela garganta de Noel. Nicole fez sinal a Oscar pedindo um drinque e, como se com medo de quebrar o silêncio sem ele, todos beberam conhaque. Depois, Noel e Nelson falaram ao mesmo tempo: “Se você puder pegar meu chapéu...” “Isso é a coisa mais estú...” “... vou-me embora imediatamente.” “... pida que já vi. Eu...” Todos olharam para Nicole, que disse: “Tragam o carro dela até a porta”. Oscar foi providenciar isso, rápido. “Tem certeza de que não precisa de um médico?”, perguntou Nelson, ansioso. “Quero ir embora.” Um minuto depois, quando o carro se afastou, Nelson entrou e se serviu de outro conhaque. Foi tomado por uma onda restante de tensão, que se revelou em seu rosto; Nicole percebeu, como também percebeu a força que ele estava fazendo para superá-la. “Quero saber por que você fez isso”, exigiu. “Não, não vá embora, Oscar.” Ele teve uma visão da história saindo dali e ganhando o mundo. “Por que razão...” “Ah, cale a boca”, devolveu Nicole. “E daí se eu beijei Noel; não há nada de terrível nisso. Não teve absolutamente nenhum significado.” Nicole emitiu um som de desprezo. “Ouvi o que você disse para ela.” “Você está louca.” Ele disse isso como se ela estivesse mesmo louca, o que a encheu de fúria. “Seu mentiroso! Todo esse tempo fingindo ser tão quadrado, tão preocupado com o que eu fazia, e, pelas minhas costas, tendo um caso com aquela...”

Usou uma palavra pesada e, como que enlouquecida pelo som dela, avançou em direção à cadeira dele. Para se proteger desse súbito ataque, ele estendeu os braços para a frente e os nós de seus dedos abertos acertaram-na no olho. Levando a mão ao rosto como Noel fizera dez minutos antes, Nicole caiu ao chão, soluçando. “Isto já não foi longe demais?”, gritou Oscar. “Foi”, admitiu Nelson. “Acho que sim.” “Vá para a varanda e tente esfriar a cabeça.” Oscar depositou Nicole num divã e sentou-se a seu lado, segurando-lhe a mão. “Coragem... coragem, querida”, disse Oscar muitas vezes. “Quem você pensa que é, Jack Dempsey? Você não pode sair por aí batendo nas francesas; elas vão processá-la.” “Ele disse a ela que a amava”, resfolegou Nicole, histérica. “Ela disse que iria se encontrar com ele no mesmo lugar... Foi para lá que ele foi agora?” “Ele está ali fora, na varanda, andando de um lado para o outro, morrendo de arrependimento de ter batido em você e de, um dia, ter conhecido Noel Delaney.” “Ah, claro!” “Você pode ter ouvido errado e, de qualquer maneira, isso não prova nada.” Vinte minutos depois, Nelson entrou de repente e atirou-se de joelhos ao lado de sua mulher. Oscar Dane, certo de que dera muito mais do que recebera, recuou discretamente e, de muito boa vontade, foi embora. Uma hora depois, Nelson e Nicole, de braços dados, saíram de sua villa e caminharam devagar até o Café de Paris. Foram a pé, não de carro, como que tentando recuperar sua antiga simplicidade ou esclarecer algo que ficara mal explicado. Nicole aceitou as explicações de Nelson, não porque fossem dignas de crédito, mas porque queria apaixonadamente acreditar nelas. Estavam ambos silenciosos e arrependidos. O Café de Paris parecia muito agradável naquela tarde, o sol se pondo através dos toldos amarelos e dos guarda-sóis vermelhos como se eles fossem vidros coloridos. Ao olhar em volta, Nicole viu a jovem que encontrara de manhã. Estava com um homem, e Nelson os identificou imediatamente como o jovem casal que tinham visto na Argélia, quase três anos antes. “Eles mudaram”, comentou. “Acho que nós também, mas não tanto. Estão com uma expressão mais dura e ele parece cansado. A dissipação fica mais aparente em olhos claros do que em olhos escuros. A moça é tout ce qu’il y a de chic, como eles dizem, mas há uma certa dureza em seu rosto também.” “Gosto dela.” “Quer que eu vá até lá e pergunte se são o mesmo casal?” “Não! Isso é coisa de turistas solitários. Eles têm seus próprios amigos.” Naquele momento, outras pessoas estavam se juntando ao casal na mesa. “Nelson, e quanto a hoje à noite?”, Nicole perguntou pouco depois. “Acha que podemos ir ao iate dos Golding depois do que aconteceu?” “Não apenas podemos como devemos ir. Se a história circular e nós não estivermos lá, será um prato cheio para conversas... Nossa! Que diabo...” Algo estridente e violento acontecera no café; uma mulher gritou e as pessoas de uma mesa levantaram-se todas, movendo-se para lá e para cá como se fossem uma só. As pessoas das outras mesas também se levantaram e formou-se uma multidão; por um breve momento, os Kelly viram o rosto da moça que haviam estado observando, agora pálido e distorcido de ódio. Em pânico, Nicole agarrou-se à manga de Nelson. “Quero ir embora daqui. Não agüento mais emoções por hoje. Leve-me para casa. Todo mundo

enlouqueceu?” No caminho para casa, Nelson olhou para o rosto de Nicole e concluiu, assustado, que não iriam, afinal, ao jantar no iate dos Golding. Nicole já estava com o princípio de um nítido e indisfarçável olho roxo — um olho que, às onze da noite, estaria fora do alcance de qualquer cosmético do Principado. Seu coração apertou e ele decidiu não dizer nada até chegarem em casa.

III. No catecismo, há sábios conselhos sobre como evitar expor-se ao pecado e, quando os Kelly foram para Paris um mês depois, fizeram uma lista de lugares que deixariam de visitar e de pessoas que não queriam mais ver. Os lugares incluíam vários bares famosos, todas as boates — exceto uma ou duas mais decentes —, todos os clubes esportivos e todos os retiros de verão onde campeasse a agitação — uma agitação triunfante e sem limites, a principal atração da temporada. Entre as pessoas de quem não queriam mais saber, estavam três quartos daquelas com quem tinham passado os últimos dois anos. Fizeram isso não por esnobismo, mas para se autopreservar, e não sem um certo receio no coração de que estavam se isolando para sempre de todo contato humano. Mas o mundo é sempre surpreendente, e as pessoas se tornam valiosas apenas por não estar disponíveis. Descobriram que havia outros em Paris interessados apenas naqueles que tinham se separado da maioria. A primeira turma de que tinham feito parte era em boa parte de americanos, temperada com europeus; a segunda era de europeus, apimentada com americanos. Esta última turma vinha do society e, aqui e ali, estava ligada ao definitivo milieu, composto de indivíduos em altas posições, de grande fortuna, muito ocasionalmente de gênio, e sempre de poder. Sem se tornar íntimo dos grandes, fizeram novos amigos de estilo mais conservador. Mais ainda, Nelson voltou a pintar; instalou seu estúdio, e visitavam os estúdios de Brancusi, Léger e Deschamps. Tinham a impressão de agora fazerem parte de alguma coisa, mais do que antes, e, quando ouviam menção a certos eventos pomposos, sentiam desprezo por seus dois primeiros anos na Europa, referindo-se aos antigos conhecidos como “aquela turma” e “gente ociosa”. Assim, embora se mantivessem dentro de suas normas, recebiam com freqüência em casa e iam à casa dos outros. Eram jovens, bonitos e inteligentes; com o tempo, aprenderam o que era adequado e o que não era, e se adaptaram. Além disso, mostravam-se naturalmente generosos e, dentro dos limites do bom senso, dispostos a pagar a conta. Quando saíam, quase sempre bebiam. Beber significava pouco para Nicole, que tinha horror a perder seu ar soigné, perder um toque de frescor ou um raio de admiração. Mas Nelson, frustrado em algum ponto, revelou-se tentado a beber tanto nos pequenos jantares quanto no mundo mais francamente turbulento. Não era um bêbado, não fazia nada impertinente ou grosseiro, mas já não queria sair socialmente sem o estímulo da bebida. Foi com a intenção de trazê-lo de volta para uma atitude mais séria e responsável que Nicole decidiu, depois de um ano em Paris, que chegara a hora de terem um filho. Isso coincidiu com a apresentação deles ao conde Chiki Sarolai. Ele era uma vistosa relíquia da corte austríaca, sem fortuna ou pretensão a tê-la, mas com sólidas ligações sociais e financeiras na França. Sua irmã era casada com o marquês de la Clos d’Hirondelle, que, além de pertencer à velha nobreza, era um bem-sucedido banqueiro em Paris. O conde Chiki circulava pelos ambientes, vivendo francamente à custa dos outros, mais ou menos como Oscar Dane, só que numa esfera diferente. Tinha um fraco por americanos; agarrava-se ao que eles diziam com patética sofreguidão, como se cedo ou tarde eles fossem lhe revelar sua fórmula misteriosa para ganhar dinheiro. Depois de um

encontro casual, seu interesse gravitou para os Kelly. Durante os meses de gravidez de Nicole, não saía de sua casa, mostrando incansável interesse por tudo o que se referisse à América — violência, gíria, finanças, costumes. Aparecia para almoçar e jantar e, com tácita gratidão, convenceu sua irmã a visitar Nicole, a qual ficou imensamente envaidecida. Combinou-se que, quando Nicole fosse para o hospital, ele ficaria no appartement fazendo companhia a Nelson — um arranjo que Nicole não aprovou, desde que os dois ficariam inclinados a beber juntos. Mas, no dia em que aquilo foi decidido, ele chegara com a notícia de que seu cunhado daria uma de suas famosas festas de barco no Sena, para a qual os Kelly estavam convidados, e que, convenientemente, ela se realizaria três semanas depois de Nicole ter o bebê. E assim, quando Nicole foi para o American Hospital, o conde Chiki instalou-se no apartamento. O bebê era um menino. Por algum tempo, Nicole esqueceu tudo sobre as pessoas, suas posições e seus valores humanos. Até mesmo admirou-se do fato de ter se tornado tão esnobe, na medida em que tudo ficara irrelevante, comparado ao novo ser, que, oito vezes por dia, era levado a seu peito. Duas semanas depois, ela e o filho voltaram para o apartamento, mas Chiki e seu valete continuaram lá. Ficou subentendido, com a sutileza que só havia pouco os Kelly tinham começado a apreciar, que ele ficaria apenas até a festa de seu cunhado, embora o apartamento parecesse atulhado e Nicole não visse a hora de ele ir embora. Mas sua antiga idéia de que, se tivessem de conviver com alguém, deveria ser com as melhores pessoas incluía ser convidada para a festa do marquês de la Clos d’Hirondelle. Estirado numa chaise longue na véspera do evento, Chiki explicou os arranjos, dos quais ele evidentemente participara. “Todo mundo ao chegar deve beber dois coquetéis à moda americana, antes de subir a bordo — como se fosse o ingresso.” “Mas pensei que esses franceses chiques — Faubourg Saint-Germain e outros mais — não tomassem coquetéis.” “Ah, mas minha família é moderna. Adotamos muitos hábitos americanos.” “Quem estará lá?” “Todo mundo! Todo mundo de Paris.” Grandes nomes dançaram aos olhos de Nicole. No dia seguinte, não resistiu a falar do assunto com seu médico. Mas ficou ofendida com o olhar de espanto e incredulidade que viu em seus olhos. “Será que a entendi bem?”, ele perguntou. “A senhora disse que vai a um baile amanhã?” “É... sim”, ela hesitou. “Por que não?” “Minha cara senhora, a senhora não pode sair de casa por duas semanas; e não deve dançar ou fazer nenhum esforço por outras duas semanas.” “Isso é ridículo!”, ela gritou. “Já faz três semanas! Esther Sherman voltou para a América depois de...” “Não importa”, ele interrompeu. “Cada caso é diferente. Há uma complicação que torna indispensável que siga minhas ordens.” “Mas a idéia é eu ficar apenas duas horas, porque, naturalmente, terei de voltar para amamentar Sonny...” “A senhora não pode ficar nem dois minutos.” Ela sabia, pela seriedade de sua voz, que ele estava certo, mas não tocou no assunto com Nelson. Disse apenas que estava cansada, que talvez não pudesse ir e passou a noite sem dormir, equilibrando-se entre o desapontamento e o medo. Acordou para a primeira mamada de Sonny e pensou: Mas se eu der apenas dez passos entre a limusine e uma cadeira e depois ficar sentada por

meia hora... No último minuto, o lindo vestido verde-pálido comprado na Callets, estentido sobre uma cadeira em seu quarto, decidiu tudo. Ela foi. Em certo momento, durante a confusão e a demora na prancha de embarque, com os convidados sendo desafiados a mandar para dentro seus coquetéis e a resultante euforia disso, Nicole percebeu que cometera um erro. Não havia uma fila organizada para receber as pessoas e, depois de cumprimentar os anfitriões, Nelson providenciou-lhe uma cadeira no convés, com o que, dali a pouco, sua sensação de que ia desmaiar passou. Então ficou satisfeita por ter ido. O barco estava iluminado por frágeis lanternas, que se misturavam ao tom pastel das pontes e às estrelas refletidas no escuro Sena, como um sonho de criança extraído das Mil e uma noites. Uma multidão de espectadores de olhos esbugalhados concentrava-se nas margens. O champanhe passava em pelotões, como uma formação de garrafas, enquanto a música, em vez de alta e impertinente, deslizava do deque superior como uma cobertura escorrendo de um bolo. Nicole se deu conta de que eles não eram os únicos americanos ali — no outro lado do deque estava o casal Liddell Miles, que fazia anos eles não viam. Outras pessoas daquela antiga turma estavam presentes e ela sentiu uma ligeira decepção. E se esta não fosse a melhor festa do marquês? Lembrou-se dos resguardos de sua mãe. Pediu a Chiki, que estava a seu lado, que lhe mostrasse as personalidades, mas, quando perguntou sobre várias pessoas que ela considerava da elite, ele respondeu vagamente que estavam longe, ou que chegariam mais tarde, ou que não tinham podido vir. Nicole pensou ver na sala a moça que fizera aquela cena no Café de Paris, em Monte Carlo, mas não teve certeza porque, com o movimento quase imperceptível do barco, deu-se conta de que a sensação de desmaio estava voltando. Mandou chamar Nelson para levá-la para casa. “Você pode voltar, se quiser. Não precisa ficar comigo, porque vou direto para a cama.” Ele a deixou aos cuidados da enfermeira, que a ajudou a subir as escadas e a se despir. “Estou extremamente cansada”, Nicole disse para ela. “Pode guardar minhas pérolas?” “Onde?” “Na caixa de jóias em cima da cômoda.” “Não estou vendo”, disse a enfermeira depois de um minuto. “Então deve estar numa gaveta.” Houve uma busca completa na cômoda, sem resultado. “Mas é claro que tem de estar nela.” Nicole tentou levantar-se, mas caiu para trás, exausta. “Continue procurando, por favor, por favor. Está tudo nela — todas as coisas de minha mãe e minhas jóias de casamento.” “Desculpe, senhora Kelly. Não há nada neste quarto que corresponda a essa descrição.” “Acorde a empregada.” A empregada não sabia de nada; mas, depois de um interrogatório cruzado, revelou-se que ela sabia de alguma coisa. O valete do conde Sarolai fora embora carregando uma mala meia hora depois de madame ter saído para a festa. Contorcendo-se em uma dor aguda e súbita, e já com um médico chamado às pressas à sua cabeceira, a Nicole pareceram horas até Nelson voltar. Quando ele chegou, seu rosto estava mortalmente pálido e os olhos injetados de raiva. Entrou direto no quarto. “Imagine você!”, disse, furioso. E só então viu o médico. “O que está acontecendo?” “Ah, Nelson, estou passando muito mal e a caixa de jóias desapareceu, e o valete de Chiki sumiu. Contei à polícia... Talvez Chiki saiba onde está o homem...”

“Chiki nunca porá os pés aqui de novo”, ele disse, bem devagar. “Sabe de quem era aquela festa? Tem idéia de quem era aquela festa?” Explodiu num riso. “Era a nossa festa... a nossa festa, entendeu? Nós demos a festa — sem saber, mas demos.” “Maintenant, monsieur, il ne faut pas exciter madame...”, disse o médico. “Já achei estranho quando o marquês foi embora mais cedo, mas só suspeitei no fim. Eles eram apenas convidados — Chiki convidou todo mundo. Quando terminou, os fornecedores e os músicos vieram falar comigo, perguntando para onde deveriam mandar as contas. E Chiki teve a coragem de me dizer que pensava que eu estava sabendo. Disse que só tinha prometido que aquela seria uma festa como as de seu cunhado, e que sua irmã estaria presente. Disse que talvez eu estivesse bêbado ou que talvez não tivesse entendido seu francês — como se falássemos com ele em outra língua que não inglês.” “Não pague!”, ela disse. “Nem pense em pagar.” “Foi o que eu disse, mas eles ameaçaram processar — o pessoal do barco e os outros. Eles querem doze mil dólares.” De repente, ela relaxou. “Ah, vá embora!”, gritou. “Que me importa! Perdi minhas jóias e estou me sentindo mal, muito mal!”

IV. Esta é a história de uma viagem ao estrangeiro, e o elemento geográfico não deve ser minimizado. Tendo visitado o Norte da África, a Itália, a Riviera, Paris e vários pontos entre eles, não surpreendia que, em pouco tempo, os Kelly acabassem na Suíça. A Suíça é um país onde poucas coisas começam, mas muitas terminam. Embora tivesse havido um elemento de escolha em seus outros portos de chegada, os Kelly foram para a Suíça porque não tinham alternativa. Estavam casados havia pouco mais de quatro anos quando chegaram, num dia de primavera, ao lago que é o centro da Europa — um lugar plácido e sorridente, com encostas pastorais, um cenário de montanhas e águas de um azul cartão-postal, águas um tanto sinistras sob a superfície, com a miséria que se arrastou para elas, vinda de todos os cantos da Europa. Fadiga para se recuperar e morte para morrer. Há escolas também, e jovens chapinhando nas plages ensolaradas; há a masmorra de Bonivard e a cidade de Calvino, e os fantasmas de Byron e Shelley ainda navegam à noite pelas costas sombrias. Mas o lago de Genebra a que Nelson e Nicole chegaram era exatamente aquele, assustador, dos sanatórios e casas de repouso. Como se por uma profunda afinidade que continuara a existir por trás do infeliz destino de suas trajetórias, a saúde faltou a ambos ao mesmo tempo. Nicole deixou-se jazer no terraço de um hotel, voltando lentamente à vida depois de duas cirurgias sucessivas, enquanto Nelson lutou pela vida contra a icterícia num hospital a três quilômetros dali. Mesmo depois que as reservas de força de seus vinte e nove anos o tinham posto de pé, havia ainda meses pela frente nos quais deveria ficar quieto. Muitas vezes se perguntaram por que, de todos os que tinham ido para a Europa em busca de prazer, a infelicidade teve de acontecer justamente para eles. “Tantas pessoas em nossa vida”, disse Nelson. “Nunca conseguimos resistir a elas. Éramos tão felizes quando não havia tanta gente.” Nicole concordou. “Se conseguirmos ficar sozinhos — realmente sozinhos — poderemos construir uma espécie de vida para nós. Vamos tentar, não vamos, Nelson?” Mas havia dias em que eles precisavam desesperadamente de companhia, mesmo que escondessem isso um do outro. Dias em que contemplavam os obesos, os acabados, os deficientes e os falidos de todas as nacionalidades que lotavam o hotel, em busca de alguém que fosse divertido. Era uma nova

vida para eles, ansiosos pela visita de seus dois médicos, a chegada do correio e dos jornais de Paris, a pequena caminhada pelo vilarejo da encosta ou, de vez em quando, a descida pelo funicular até a pálida estação de cura à beira do lago, com sua Kursaal, sua praia de grama, suas quadras de tênis e ônibus de passeio. Liam as edições de Tauchnitz e Edgar Wallace de capa amarela; a certa hora, todos os dias, admiravam o banho de seu filho; três noites por semana, havia uma orquestra cansada e paciente no saguão, depois do jantar; e era só isso. Às vezes havia um bombardeio vindo das colinas de vinhedos no outro lado do lago, o que significava que canhões estavam sendo disparados contra as nuvens de granizo, para poupar as plantações de uma iminente tempestade; ela chegava depressa, caindo primeiro do céu e, depois, de novo, em torrentes vindas das montanhas, lavando com estrondo as estradas e os canais; chegava com um céu escuro e assustador, com selvagens filamentos de luz e trovões tonitruantes, de rachar o mundo, enquanto nuvens destroçadas e em farrapos eram levadas pelo vento que açoitava o hotel. As montanhas e o lago desapareciam por completo; o hotel se curvava servilmente ao tumulto, caos e treva. Foi durante uma dessas tempestades, em que o simples abrir de uma porta significava um tornado de chuva e vento no saguão, que os Kelly, pela primeira vez em meses, viram alguém que conheciam. Sentados no primeiro andar com outras vítimas de nervos em frangalhos, observaram dois recémchegados — um homem e uma mulher que reconheceram como o casal que tinham visto primeiro em Argel e que depois cruzara o caminho deles diversas vezes. Um único e silente pensamento relampejou por Nelson e Nicole. Parecia fatal que, por fim, nesse lugar tão desolado, eles viessem a conhecê-los e, olhando em torno, viram que outros casais os observavam da mesma forma hesitante. Algo, no entanto, conteve os Kelly. Não tinham se queixando de que havia gente demais em sua vida? Mais tarde, quando a tempestade se aquietou numa chuva suave, Nicole viu-se ao lado da moça na varanda envidraçada. Protegida pelo livro que estava lendo, inspecionou de perto o rosto da outra. Viu logo que era um rosto inquisitivo, talvez calculista; os olhos, muito inteligentes, mas sem paz, lambiam as pessoas numa única e rápida mirada, como se medindo seu valor. Uma egoísta terrível, pensou Nicole com desgosto. Quanto ao resto, as faces estavam abatidas e havia pequenas bolsas nada saudáveis sob os olhos; tudo isso combinado com alguma flacidez dos braços e pernas, causava uma impressão malsã. Estava vestida com roupas caras, mas com uma ponta de desleixo, como se não achasse que as pessoas no hotel fossem importantes. No todo, Nicole decidiu que não gostava dela; estava satisfeita por nunca terem conversado; só estava surpresa de nunca ter percebido tudo isso quando cruzara com ela no passado. Ao contar a Nelson sua impressão, ele concordou. “Encontrei o sujeito no bar do hotel, notei que ambos estávamos tomando água mineral e pensei em dizer alguma coisa. Mas dei uma boa olhada em seu rosto no espelho e decidi ficar calado. O rosto é tão fraco e complacente que é quase inexpressivo — o tipo de rosto que precisa de uma meia dúzia de drinques para abrir de fato os olhos e firmar a boca até ela ficar normal.” Depois do jantar, a chuva parou e a noite pareceu linda lá fora. Precisando de ar, os Kelly saíram para passear no jardim escuro; no caminho, passaram pelos objetos de sua recente conversa, os quais desviaram abruptamente por uma passagem lateral. “Acho que eles também não desejam nos conhecer”, riu Nicole. Demoraram-se por entre os roseirais e pelos canteiros de indistinguíveis flores úmidas e adocicadas. Abaixo do hotel, onde o terraço se debruçava a trezentos metros do lago, desfiavam-se os colares de luzes de Montreux e Vevey e, adiante, como um pingente escuro, Lausanne; o piscar borrado do outro lado do lago eram Evian e a França. De algum lugar lá embaixo — provavelmente

o Kursaal — vinha o som encorpado de música para dançar — americana, eles calcularam, embora só ficassem conhecendo as novas canções com meses de atraso, meros ecos distantes do que estava acontecendo muito longe dali. Além do Dent du Midi, além da massa de nuvens negras que formavam a retaguarda da tempestade, a lua se impôs e o lago brilhou; a música e as luzes distantes eram a esperança, como a distância encantada pela qual as crianças enxergam as coisas. Cada qual com seu coração, Nelson e Nicole olhavam para trás, para um tempo em que a vida era assim. O braço dela o enlaçou tranqüilamente e o puxou para perto de si. “Podemos ter tudo isso de novo”, ela murmurou. “Por que não tentamos, Nelson?” Calou-se ao ver que duas formas escuras se aproximavam de uma sombra próxima e contemplavam o lago lá embaixo. Nelson também abraçou Nicole e a puxou para ainda mais perto. “É que não entendemos o que nos aconteceu”, ela disse. “Por que perdemos a paz, o amor e a saúde, um atrás do outro? Se pudéssemos saber, se alguém nos explicasse, acho que poderíamos tentar. Eu me esforçaria muito.” As últimas nuvens se levantaram sobre os Alpes bernenses. De repente, com uma intensidade final, o Oeste se acendeu com um pálido clarão branco. Nelson e Nicole se viraram e, simultaneamente, o outro casal se virou também, bem no instante em que a noite se tornou clara como o dia. Em seguida a escuridão retornou, ouviu-se um último e surdo estampido de trovão e Nicole emitiu um grito agudo e aterrorizado. Atirou-se contra Nelson; mesmo no escuro, percebeu que o rosto dele estava tão branco e tenso quanto o dela. “Você os viu?”, disse num sussurro. “Viu?” “Sim!” “Eles são nós! Eles são nós! Entendeu?” Tremendo, agarraram-se um ao outro. As nuvens se fundiram à massa escura das montanhas; olhando em torno, Nelson e Nicole viram-se sozinhos e juntos à luz do tranqüilo luar. (1930)

A menina do hotel

É o tipo de lugar onde você se sente mais ou menos obrigado a dizer: “Sabe, estou aqui porque...”. Se não fizer isso, será alvo de ligeiras suspeitas, porque este canto da Europa não atrai as pessoas; ao contrário, limita-se a aceitá-las sem muitas perguntas inconvenientes. É um lugar aonde vão dar senhores em busca de cliniques particulares ou de asilos para tuberculosos nas montanhas e gente que já não é muito persona grata na Itália ou na França. E como se não bastasse... No entanto, numa noite de gala no Hotel des Trois Mondes, um recém-chegado dificilmente perceberia a agitação abaixo da superfície. Ao observar o baile, notaria uma galeria de inglesas de certa idade, com golas abotoadas no pescoço, cabelos tingidos e quilos de pó no rosto, e uma galeria de americanas, também de certa idade, todas de vestido preto, lábios pintadíssimos e pele quebradiça. E notaria que a maioria delas parecia incapaz de tirar os olhos da ubíqua Fifi. Todo o hotel ficara sabendo que Fifi fazia dezoito anos naquela noite. Fifi Schwartz. Uma bela e radiante judia, cuja testa alta estendia-se até que seu cabelo, como um brasão heráldico, explodisse em madeixas, ondas e caracóis de um vermelho escuro e macio. Os olhos eram grandes, claros, úmidos e brilhantes; a cor intensa de seus lábios e faces era real, assomando quase à superfície depois de bombeada por seu jovem e impetuoso coração. O corpo era tão bem torneado que um cínico chegou a dizer que ela parecia nunca usar nada sob o vestido; mas estava enganado, porque Fifi era tão bem equipada por Deus quanto pelas lojas. Tinha dezenas de vestidos — os cor de cereja, de Chanel; os lilases, de Molyneux; os rosa, de Patou — justos nos quadris, ondulando a um milímetro da pista de dança. Esta noite ela parecia uma mulher de trinta anos, num reluzente vestido preto, com longas luvas brancas. “Que gosto!”, resmungava-se aos sussurros. “Onde estamos? No teatro, numa vitrine, num desfile? O que não deve pensar sua mãe? Mas, enfim, olhe para a mãe dela!” A mãe estava sentada à distância com uma amiga, pensando em Fifi, no irmão de Fifi e em suas outras filhas, já casadas e, para ela, ainda mais bonitas que Fifi. A sra. Schwartz era uma mulher simples; estava tão habituada a ser judia que lhe era tranqüilamente indiferente o que os outros dissessem. Outros que não se importavam com os comentários sobre Fifi eram as dezenas de rapazes que andavam por ali. Viviam atrás de Fifi o dia todo, nas lanchas, clubes, lagos, automóveis, funiculares e salões de chá, dizendo “Ei, Fifi, olhe!”, exibindo-se, implorando “Me beije, Fifi” ou até mesmo “Me beije de novo, Fifi”, tentando conquistá-la. A maioria deles, no entanto, era jovem demais, porque esta cidadezinha, por algum ilógico motivo, tinha uma atmosfera considerada excelente para um centro educacional. Fifi não era muito crítica, nem tinha consciência de que estava sendo criticada. Aquela noite, o alvo das atenções era sua festa de aniversário e a maneira pela qual Fifi entrou no salão. A mesa fora posta na última de uma série de salas, cada qual dando para o saguão central. Mas Fifi, com seu extravagante vestido preto, entrou pela primeira sala, seguida por um pelotão de rapazes de todas as

nacionalidades e misturas possíveis e, num passinho apressado que a obrigava a gingar os quadris e menear a cabeça, conduziu-os pelo salão, fazendo com que senhores idosos engasgassem com espinhas de peixe, os músculos faciais de suas esposas despencassem e uma onda de protesto acompanhasse a passagem do séquito. Mas não precisavam ter ficado tão ressentidos. Não foi uma festa brilhante, porque Fifi sentiu-se na obrigação de ser gentil com todo mundo, multiplicando-se por doze, falando com a mesa inteira e interrompendo cada conversa, sem ligar para a distância a que estivesse do interlocutor. Assim, como ninguém se divertiu, as pessoas do hotel não tiveram nenhuma razão para se importar com o fato de ela ser jovem e feliz. Depois da festa, alguns homens escapuliram e foram apresentar seus respeitos a outras mesas. Entre eles estava o jovem conde Stanislas Borowki, com seus belos olhos castanhos, como os de uma corça empalhada, e seu cabelo preto mechado de branco, como um teclado de piano. Dirigiu-se à mesa de uma importante família chamada Taylor e sentou-se com um suspiro, o que os fez rir. “Foi assim terrível?”, perguntou alguém. A loura srta. Howard, que viajava com os Taylor, era quase tão bonita quanto Fifi, mas vestia-se com mais recato. Tinha feito o possível para não ser apresentada à srta. Schwartz, embora tivesse repartido com ela vários dos rapazes ali. Os Taylor eram profissionais de carreira do serviço diplomático e estavam agora a caminho de Londres, depois da Conferência da Liga das Nações, em Genebra. Naquela temporada iriam apresentar a srta. Howard à corte. Eram americanos já europeizados; na verdade, tinham chegado a uma posição na qual dificilmente se poderia dizer que pertencessem a qualquer nação; certamente não a uma grande nação, mas talvez a uma espécie de Estado qualquer dos Bálcãs, composto de pessoas como eles próprios. Na opinião deles, Fifi era uma invenção tão gratuita quanto uma nova listra na bandeira americana. A inglesa alta, com sua longa piteira e um pequinês semiparalítico, levantou-se, anunciou aos Taylor que tinha um compromisso no bar e saiu, levando o pequinês e provocando uma lufada gelada ao passar pela mesa de Fifi. Cerca de meia-noite, o sr. Weicker, gerente do hotel, entrou no bar, onde o fonógrafo de Fifi despejava os mais recentes tangos alemães no burburinho de fumaça e conversas. O sr. Weicker tinha olhos apertados que viam tudo rapidamente e, toda noite, costumava assestá-los com ar de censura sobre o bar. Não estava ali para admirar Fifi, mas para continuar tentando descobrir por que as coisas não estavam indo bem no Hotel des Trois Mondes naquele verão. Um dos motivos, naturalmente, era o mercado americano de ações, que não parava de cair. Com tantos hotéis europeus implorando para ser ocupados, os clientes haviam se tornado ranhetas, exigentes, difíceis de agradar, e o sr. Weicker tivera que tomar muitas decisões ultimamente. Uma família enorme havia saído do hotel por causa de uma vitrola que tocava a noite inteira, de propriedade de Lady Capps-Karr. Havia também, como se pensava, um ladrão agindo no hotel; foram registradas queixas sobre bolsas, cigarreiras, relógios e anéis desaparecidos. As pessoas dirigiam-se às vezes ao sr. Weicker como se quisessem revistar os seus bolsos. E havia muitas suítes que não poderiam estar vazias naquele verão. De passagem, seu olhar caiu severamente sobre o conde Borowki, que jogava bilhar com Fifi. O conde Borowki não pagava sua conta havia três semanas. Justificou-se com o sr. Weicker dizendo que estava esperando pela chegada da mãe, a qual arranjaria as coisas. E havia também Fifi, que atraía uma gente indesejável — jovens estudantes que viviam em pensões e que bebiam sem pagar. Lady Capps-Karr, no entanto, era uma grande cliente; consumia no mínimo três garrafas de uísque por dia, para ela e sua entourage, e seu pai em Londres garantia o pagamento de cada gota. O sr. Weicker

decidiu dar um ultimato a respeito da conta de Borowki naquela mesma noite e saiu. Sua visita durara cerca de dez segundos. O conde Borowki guardou o taco e aproximou-se de Fifi, murmurando qualquer coisa. Ela tomou sua mão e levou-o para um cantinho escuro, perto do fonógrafo. “Meu sonho americano”, ele disse. “Precisamos pintar um retrato seu em Budapeste, do jeito que está hoje. Seu retrato fará companhia aos de meus ancestrais, em meu castelo na Transilvânia.” Era de supor que qualquer garota americana normal, que tivesse ido algumas vezes ao cinema, teria detectado uma vaga familiaridade na corte persistente do conde Borowki. Mas o Hotel des Trois Mondes vivia tão cheio de ricos e nobres autênticos quanto de gente que consumia cocaína em apartamentos fechados, enquanto se diziam aspirantes a tronos europeus, e Fifi não estava preocupada em checar quem pagava tributo a sua beleza. Naquela noite nada poderia surpreendê-la — nem mesmo o precipitado pedido que ele lhe fizera, de que se casassem naquela semana. “Mamãe não quer que eu me case este ano. Mas podemos ficar noivos.” “Mas minha mãe quer que eu me case. Ela é durona, como vocês, americanos, dizem. Vive me pressionando para que eu me case com a princesa disto ou a condessa daquilo.” Enquanto isso, Lady Capps-Karr estava promovendo uma reunião no outro lado da sala. Um inglês alto e curvado, empoeirado de viagem, acabara de abrir a porta do bar, e Lady Capps-Karr, com um grasnido de “Bopes!”, atirou-se sobre ele: “Bopes!”. “Capps, querida. Olá, Rafe... Engraçado encontrá-la aqui, Capps.” “Bopes! Bopes!” Suas exclamações e risos encheram a sala, e o barman sussurrou para uma americana mais curiosa que o recém-chegado era o marquês Kinkallow. Bopes esticou-se sobre várias cadeiras ao mesmo tempo e chamou o barman. Disse que havia dirigido de Paris até ali sem parar e que zarparia na manhã seguinte para Milão, a fim de encontrar a única mulher que tinha amado na vida. Mas não parecia em condições de encontrar ninguém. “Ah, Bopes, sou tão desastrada”, disse Lady Capps-Karr pateticamente. “Tão desastrada! Vim de Cannes para cá, pensando ficar só um dia, mas encontrei Rafe e alguns americanos que conhecia e, com isso, já se vão duas semanas, e agora meus bilhetes para Malta estão vencidos. Fique aqui e salve-me, Bopes! Ah, Bopes! Bopes!” O marquês Kinkallow contemplou o bar com olhos cansados. “Quem é aquela?”, perguntou. “A judia. E quem é aquela peça com ela?” “É americana”, informou a filha de uma centena de condes. “E ele é um vigarista qualquer, só que, aparentemente, com alguma classe. É amigo de Schenzi, em Viena. Fiquei até as cinco da manhã, outro dia, jogando chemin de fer a dois com ele no bar, e ele me deve mille suíços.” “Tenho de falar com aquela criatura”, disse Bopes, vinte minutos depois. “Pode arranjar isso para mim, Rafe?” Ralph Berry conhecia Fifi Schwartz e, assim que a oportunidade se apresentou, cumpriu obedientemente a missão. Um chasseur acabara de solicitar a presença de Borowki no escritório. Rafe conseguiu chegar na frente de dois ou três homens que voavam em direção a Fifi. “O marquês Kinkallow está ansioso para conhecê-la. Pode juntar-se a nós?” Fifi contemplou o salão, franzindo um pouco o cenho. Algo advertia-a de que sua noite já estava suficientemente cheia. Lady Capps-Karr nunca lhe dirigira a palavra; Fifi achava que ela sentia inveja de suas roupas. “Não pode trazê-lo aqui?” Um minuto depois, Bopes sentou-se a seu lado com uma visível sombra de tolerância no rosto.

Não podia evitar; na realidade, lutava constantemente contra isso, mas era algo que acontecia à sua expressão na presença de americanos. “São demais para mim”, parecia dizer. “Compare minha confiança com a insegurança deles, minha sofisticação com sua ingenuidade, e, apesar disso, são eles que agora detêm o poder mundial.” Nos últimos anos, descobrira que sua expressão, exceto quando rigorosamente controlada, continha um traço de ressentimento. Fifi apontou-lhe seus olhos brilhantes e falou-lhe longamente de seu glamoroso futuro. “E depois disso vou a Paris”, disse, como se anunciasse a queda de Roma, “estudar na Sorbonne. Depois, talvez me case, nunca se sabe. Tenho apenas dezoito anos. Soprei dezoito velinhas do meu bolo esta noite. Que pena que não chegou a tempo... Tive propostas ótimas para trabalhar no teatro, mas você sabe como uma garota fica falada nesse ambiente.” “O que vai fazer esta noite?”, perguntou Bopes. “Ah, estou esperando um monte de rapazes. Fique para o baile.” “Pensei que eu e você poderíamos fazer alguma coisa. Estou indo para Milão amanhã.” No outro lado da sala, Lady Capps-Karr estava tensa e furiosa com a deserção. “Afinal de contas”, protestava, “os homens são assim mesmo, mas há certas coisas intoleráveis. Nunca vi Bopes desse jeito!” Não tirava os olhos do diálogo que transcorria à distância. “Venha a Milão comigo”, o marquês dizia. “Vamos ao Tibete e ao Hindustão. Vamos assistir à coroação do rei da Etiópia. Então, pelo menos, vamos dar um passeio de carro agora mesmo!” “Estou com muitos convidados aqui. Além disso, não costumo dar voltas de carro com pessoas que acabo de conhecer. Aliás, estou noiva. De um conde húngaro. Ele pode não gostar e resolver desafiá-lo para um duelo.” A sra. Schwartz se aproximou, quase pedindo desculpas. “John sumiu. Voltou para lá”, anunciou. Fifi soltou um ligeiro ganido de aborrecimento. “Mas ele me deu sua palavra de honra que não iria.” “Mas foi. Olhei em seu quarto e não vi seu chapéu. Foi todo aquele champanhe no jantar.” Virou-se para o marquês. “John não é mau menino, mas é muito, muito fraco.” “Acho que vou ter de ir buscá-lo”, disse Fifi. “Detesto estragar sua noite, Fifi, mas não sei o que fazer. Talvez este senhor pudesse ir com você. Você é a única a quem ele ouve, desde que seu pai morreu. É preciso um homem para controlar um garoto.” “Sem dúvida”, disse Bopes. “Pode ir comigo?”, perguntou Fifi. “É num café na cidade.” Bopes concordou com entusiasmo. Naquela noite de setembro, no carro, com sua fragrância brotando do casaco de arminho, ela explicou melhor: “A tal russa deve tê-lo agarrado de novo; ela se diz condessa, mas só tem um casaco de pele, que usa com todas as roupas. Meu irmão tem dezenove anos e, quando bebe um pouco mais de champanhe, diz que vai se casar com ela, e mamãe fica preocupada.” O braço de Bopes caiu impacientemente sobre seu ombro quando eles começaram a subir a colina em direção à cidade. Quinze minutos depois, o carro parou a vários quarteirões do café, e Fifi desceu. O rosto do marquês estava agora premiado com um longo arranhão irregular, que corria em diagonal por sua face, atravessava o nariz e desaguava numa espécie de grande terminal de riscos de unhas, pouco abaixo do queixo.

“Não gosto de engraçadinhos”, disse Fifi. “Não precisa esperar. Podemos tomar um táxi.” “Esperar!”, gritou o marquês, furioso. “Por uma figurinha insignificante como você? Disseram-me que o hotel inteiro ri de você, e agora entendo por quê!” Fifi correu pela rua e parou um pouco na porta do café, até que viu seu irmão. Ele era uma reprodução exata de Fifi, só que sem a sensação de calor que ela transmitia; naquele momento, estava sentado a uma mesa com uma frágil exilada do Cáucaso e dois tuberculosos sérvios. Fifi esperou sua fúria chegar a um nível razoável, depois atravessou a pista de dança, conspícua como um trovão em seu vestido preto. “Mamãe me mandou buscá-lo, John. Pegue seu casaco.” “Ora, qual é o problema?”, ele perguntou, com um olhar distante. “Mamãe quer que você venha.” Ele se levantou de má vontade. Os dois sérvios também se levantaram; a condessa permaneceu imóvel; seus olhos fundamente escavados sobre aquelas maçãs mongóis fixaram-se no rosto de Fifi. Estava usando a famosa raposa que, segundo Fifi, representava a última mesada de seu irmão. Enquanto John Schwartz equilibrava-se com alguma dificuldade, a orquestra atacou de “Ich bin von Kopf bis Fuss”. Fifi agarrou seu braço, conduziu-o até a bengaleira para pegar o casaco e saíram pela porta em direção ao ponto de táxi. Era tarde, a noite se arrastava, seu aniversário acabara e, de volta ao hotel, com John adernado sobre seu ombro, Fifi sentiu uma súbita depressão. Nunca precisara batalhar por nada, e, talvez porque a família Schwartz sempre tivesse enfrentado circunstâncias hostis, não tivera nenhum sentimento de frustração naquela noite, no Hotel des Trois Mondes — mas, de repente, começou a achar que tudo saíra errado. Não costuma acontecer que as noites terminem em alta, em vez de acabarem num bar? Todas as noites, depois das dez, ela se sentia a única pessoa viva numa colônia de fantasmas. O porteiro ajudou-a a levar o irmão até o elevador. Ao entrar na cabine, Fifi descobriu, tarde demais, que havia duas outras pessoas. Antes que pudesse puxar John para fora, ambas saíram rapidamente, como se temendo um possível contágio. Fifi ouviu exclamações de “Meu Deus!” e “Revoltante!”, respectivamente da sra. Taylor e da srta. Howard. O elevador subiu. Fifi prendeu a respiração até chegar ao seu andar. Foi talvez o impacto desse último encontro que fez com que ela entrasse rígida no quarto e se mantivesse quieta, no escuro. Teve então a sensação de que havia alguém lá dentro. Enquanto o irmão cambaleou pelo quarto e se despejou num sofá, ela esperou. “Mamãe”, disse. Mas não obteve resposta. Ouviu apenas um som mais suave que um sussurro, como o de um sapato roçando no chão. Minutos depois, quando sua mãe subiu, chamaram o valet de chambre e juntos vasculharam os quartos, mas não havia ninguém. Foram então para o balcão, que dava para o lago, com o brilho de Evian na costa francesa e os picos nevados das montanhas. “Acho que já estamos aqui há muito tempo”, disse a sra. Schwartz. “John precisa voltar para os Estados Unidos no outono.” Fifi não gostou. “Mas pensei que John e eu fôssemos para a Sorbonne, em Paris.” “Como posso confiar nele em Paris? E como posso deixá-la sozinha lá?” “Mas estamos habituados a viver na Europa. Para que aprendi francês? Ora, mamãe, já não conhecemos ninguém nos Estados Unidos...” “Faremos novas amizades. Não é tão difícil.” “Mas você sabe que é diferente. Todo mundo lá é tão preconceituoso. Uma garota não tem a menor

chance de conhecer pessoas interessantes, mesmo que elas existissem. As pessoas vivem nos controlando!” “Exatamente como aqui”, disse sua mãe. “Aquele senhor Weicker me parou no saguão; viu quando você entrou com John e me pediu que a mantivesse longe do bar, porque você é jovem demais. Eu lhe disse que você só toma limonada, mas ele não quis saber; disse que cenas como as de hoje fazem as pessoas irem embora do hotel.” “Mas que cretino!“ “Por isso, acho melhor voltarmos para casa.” Aquela palavra vazia — “casa” — soou terrível aos ouvidos de Fifi. Enlaçou a cintura de sua mãe, ao se dar conta de que era ela, e não a mãe, que estava completamente perdida no universo. Seu irmão roncava no sofá, tendo já entrado no mundo dos fracos, dos que se escoram uns nos outros e consideram suficiente o calor recíproco dos ébrios. Mas Fifi continuou olhando para o céu, sabendo que poderia alcançá-lo e descobrir seu próprio caminho, mesmo que contra toda a inveja e corrupção. Pela primeira vez, pensou seriamente na idéia de se casar imediatamente com Borowki. “Não quer descer e dizer boa-noite aos rapazes?”, sugeriu sua mãe. “Há uma porção deles lá embaixo, perguntando por você.” Mas algo mudara em Fifi — em sua complacência infantil, em sua inocência, mesmo em sua beleza — a ponto de desfazer tudo em algo intangível e escorregadio. Quando ela disse que não se sentia disposta e caminhou em direção a seu quarto, era como se lhe tivessem tirado, para sempre, alguma coisa muito importante.

II. Na manhã seguinte, a sra. Schwartz foi ao escritório do sr. Weicker comunicar a perda de duzentos dólares em dinheiro americano. Tinha deixado a soma em seu chiffonier ao sair; quando acordara, o dinheiro havia desaparecido. A porta do apartamento fora trancada, mas, pela manhã, a tranca aparecera levantada, e nenhum de seus dois filhos estava acordado. Felizmente, guardara suas jóias num saquinho de camurça sob o travesseiro. O sr. Weicker disse que a situação era delicada. Havia alguns hóspedes no hotel em situação difícil e talvez inclinados a gestos desesperados, e que, por isso mesmo, ele deveria investigar com cuidado. Na América, as pessoas têm dinheiro ou não têm; mas na Europa o herdeiro de uma fortuna pode não ter dinheiro sequer para cortar o cabelo até a morte de um primo em quinto grau e, ainda assim, sentir-se muito ofendido com qualquer insinuação. Abrindo seu exemplar do Almanaque de Gotha, o sr. Weicker descobriu que Stanislas Karl Joseph Borowki era o último descendente de uma linhagem mais antiga que a coroa de santo Estêvão. Naquela manhã, em roupas de montaria que mais lembravam um uniforme hussardo, fora passear a cavalo com a corretíssima srta. Howard. Por outro lado, não havia dúvida sobre quem havia sido roubado, e a indignação do sr. Weicker começou a se concentrar sobre Fifi e sua família, os quais poderiam ter-lhe poupado mais essa amolação se tivessem ido embora há algum tempo. Era concebível até que John, o filho boêmio, tivesse apanhado o dinheiro. Para todos os efeitos, os Schwartz estavam de partida. Durante três anos tinham vivido em hotéis — em Paris, Florença, São Rafael, Como, Vichy, La Baule, Lucerne, Baden-Baden e Biarritz. Uma escola em cada cidade — sempre escolas modernas —, nas quais ambos os filhos aprenderam perfeito francês e rudimentos de italiano. Fifi tinha passado de uma gordota de quatorze anos para uma beldade de dezoito; John, ao contrário, parecia cada vez mais apagado e perdido. Ambos jogavam bridge, mas Fifi aprendera também a sapatear, uma novidade na época. A sra. Schwartz

sentia que tudo aquilo ainda era insatisfatório, mas não sabia dizer por quê. Assim, dois dias depois da festa de Fifi, ela anunciou que iriam fazer as malas, ir a Paris para as últimas compras e, depois, voltar para a América. Naquela mesma tarde, Fifi foi ao bar para apanhar seu fonógrafo, deixado lá na noite da festa. Sentou-se num banquinho alto e conversou com o barman, enquanto tomava um ginger ale. “Mamãe quer me levar de volta para a América, mas eu não vou.” “O que vai fazer?” “Ah, tenho um pouco de dinheiro guardado e, quem sabe, talvez até me case.” “Ouvi dizer que vocês foram roubados”, ele disse. “Como foi isso?” “Bem, o conde Borowki acha que o sujeito entrou cedo no apartamento, escondeu-se entre as portas que separam os dois quartos e, quando fomos dormir, pegou o dinheiro e saiu.” “Humm.” Fifi suspirou: “De qualquer maneira, acho que você não me verá mais aqui no bar”. “Sentiremos sua falta, senhorita Schwartz.” O sr. Weicker pôs a cabeça na porta e entrou em seguida. “Olá”, disse Fifi com frieza. “Boa tarde, senhorita.” Apontou-lhe o dedo com falsa cordialidade. “Por acaso não sabe que falei à sua mãe a respeito de sua presença no bar? É para seu próprio bem.” “Estou apenas tomando um ginger ale”, disse ela, indignada. “Mas ninguém sabe o que está tomando. Poderia ser uísque ou qualquer outra coisa. São os hóspedes que se queixam.” Olhou-o irritada. O quadro era tão diferente daquele a que se habituara, o dos homens que a admiravam enquanto ela desfilava, inatingível. O rosto subserviente, porém hostil, do sr. Weicker enfureceu-a. “Estamos deixando o hotel!”, ela disse. “Nunca vi gente tão mesquinha em minha vida; sempre criticando todo mundo, inventando coisas horríveis e fazendo-se de santos. Espero que esta droga pegue fogo assim que dermos o fora daqui!” Batendo com o copo no balcão, apanhou seu fonógrafo e retirou-se. No vestíbulo, um carregador ofereceu-se para ajudá-la, mas ela recusou a ajuda e, apressada, seguiu em frente pelo saguão, onde cruzou com o conde Borowki. “Ah, estou tão furiosa!”, disse. “Nunca vi gente tão atrasada. Acabei de dizer ao senhor Weicker o que penso deles.” “Alguém ousou ser mal-educado com você?” “Ah, não importa, estamos indo embora.” “Embora?”, ele se assustou. “Quando?” “Já. Não quero ir, mas mamãe está decidida.” “Preciso falar-lhe seriamente a esse respeito”, ele disse. “Telefonei há pouco para o seu quarto. Acabo de comprar-lhe uma coisinha para o noivado.” Quando ela pegou a bela cigarreira de ouro e marfim que ele lhe oferecia, sua animação voltou. “Que linda!” “Agora, escute. O que você acaba de me dizer apenas torna mais importante o que eu estava pensando. Recebi outra carta de minha mãe. Escolheu para mim uma garota em Budapeste — linda, rica, da minha própria classe e que adoraria se casar comigo —, mas estou apaixonado por você. Nunca achei que isso seria possível, mas caí de amor por uma americana!” “Ora, por que não?”, disse Fifi, quase indignada. “O padrão de beleza por aqui é o das garotas

com um rosto bonito, não importa que tenham pernas arqueadas ou dentes estragados.” “Você é perfeita.” “Ah, é verdade”, disse Fifi com modéstia. “Mas tenho um nariz um pouco grande. Alguém diria que sou judia?” Com um toque de impaciência, Borowki voltou ao assunto: “Por isso estão me pressionando para casar. As questões de herança dependem disso”. “Além do mais, minha testa é muito alta”, disse Fifi vagamente. “Tão alta que tem até rugas. No ginásio, costumavam me chamar de intelectual...” “Portanto, a coisa mais sensata a fazer”, continuou Borowki, “seria nos casarmos imediatamente. Posso dizer-lhe, com toda a franqueza, que outras americanas, não muito longe daqui, não hesitariam um minuto.” “Mamãe ficaria louca”, disse Fifi. “Pensei nisso também”, ele rebateu, ansioso. “Não lhe diga nada. Se atravessarmos a fronteira esta noite, poderemos nos casar amanhã de manhã. Então, poderemos voltar e mostrar a sua mãe o brasão dourado bordado em sua bagagem. Na minha opinião, ela adorará vê-la na melhor posição social da Europa. Talvez esteja até dizendo a si mesma: ‘Por que aqueles dois não resolvem logo o assunto e me poupam as confusões e as despesas de um casamento?’. Tenho certeza de que ela gostaria da nossa ousadia.” Calou-se à chegada de Lady Capps-Karr, que saiu do restaurante com seu pequinês e parou diante deles. O conde Borowki foi obrigado a apresentá-las. Como não sabia da deserção do marquês Kinkallow na outra noite, nem que ele fora obrigado a levar um arranhão para Milão, não fazia idéia do que estava a caminho. “Já conheço a senhorita Schwartz de vista”, disse a inglesa. “É impossível não notá-la, por causa de suas roupas.” “Não quer sentar-se?”, disse Fifi. “Não, obrigada.” Voltou-se para Borowki. “As roupas da senhorita Schwartz fazem com que todas pareçamos desmazeladas. Sempre me recuso a me empetecar nos hotéis. Tenho a impressão de desperdício. Não acha?” “Acho que as pessoas deviam se empetecar sempre que pudessem”, respondeu Fifi, ruborizandose. “Quis apenas dizer que as pessoas devem vestir-se com capricho apenas na casa dos amigos.” Sem esperar resposta, disse “Até loguinho” para Borowki e afastou-se, deixando para trás uma nuvem de fumaça e uma leve fragrância de uísque. O insulto fora cortante como uma chicotada, e isso roubou de Fifi o orgulho por seu guarda-roupa. De repente, passou a ouvir comentários que nunca ouvira antes — por exemplo, o de que usava todas as suas roupas ali por não ter mais onde usá-las. E apenas por isso a srta. Howard considerava-a vulgar e não se dignava a dirigir-lhe a palavra. Por um instante, sua ira concentrou-se em sua mãe, por não lhe ter contado. Mas logo percebeu que a mãe também não sabia. “Quem essa mulher pensa que é, afinal?”, perguntou Fifi, referindo-se a Lady Capps-Karr. “Qual é o título dela?” “É viúva de um baronete.” “E isso é importante? Mais que uma condessa?” “Não. Uma condessa é muito mais importante. Infinitamente mais.” Borowki puxou sua cadeira para mais perto de Fifi e continuou falando.

Meia hora depois, Fifi levantou-se, ainda indecisa. Borowki insistiu: “Às sete horas você me dará sua resposta. Às dez, estarei esperando-a no carro.” Fifi concordou. Ele a acompanhou até o saguão e, pela grande parede espelhada, viu-a desaparecer no elevador. Quando voltou, Lady Capps-Karr, tomando café sozinha numa mesa, chamou-o: “Preciso falar com você. Por algum lapso, sugeriu a Weicker que, em caso de dificuldades, eu assumiria suas despesas?” Borowki ficou vermelho. “Talvez tenha dito qualquer coisa parecida, mas...” “Pois perca as esperanças. Contei-lhe que nunca tinha posto os olhos em você até duas semanas atrás.” “Eu, naturalmente, apelei para uma pessoa de minha própria condição social...” “Condição social! Que descaramento! Os únicos títulos de nobreza que ainda contam são os ingleses. Devo lhe pedir que nunca mais use meu nome de novo.” Ele se curvou. “Essas inconveniências logo serão coisas do passado para mim.” “Vai explorar aquela americaninha vulgar?” “Como disse?”, ele perguntou secamente. “Não fique nervoso. Posso lhe pagar um uísque com soda. Estou me pondo em forma para receber Bopes Kinkallow, que acaba de me telefonar dizendo que estará aqui à noite.” Enquanto isso, em seu quarto, a sra. Schwartz dizia a Fifi: “Agora que decidimos ir embora, estou ficando excitada com a idéia da volta. Será ótimo rever os Hirst, a senhora Bell, Amy, Marjorie, Gladys e seu novo bebê. Você também gostará; deve até ter se esquecido de como eles são. Você e Gladys eram muito amigas. E Marjorie...” “Ah, mamãe, pare de falar nisso”, disse Fifi, sentindo-se miserável. “Não posso voltar.” “Mas não precisamos ficar lá. Se John for para a universidade, como seu pai queria, talvez pudéssemos ir para a Califórnia.” Mas, para Fifi, todo o romance da vida estava sugerido naqueles três últimos anos de Europa. Recordou os guardas de Roma, o velho espanhol que, pela primeira vez, a tornara consciente de sua beleza, em Villa d’Este, em Como, e o aviador francês que, do avião, jogara um bilhete apaixonado em seu jardim, em São Rafael, e a sensação que tinha às vezes, quando dançava com Borowki, de que ele usava um dólman forrado de branco e botas reluzentes. Já tinha visto muitos filmes americanos e sabia que as garotas de seu país sempre se casavam com o namoradinho local e depois disso murchavam e morriam. “Não vou voltar”, anunciou. Sua mãe virou-se, com uma pilha de roupas nas mãos. “Que história é essa, Fifi? Acha que eu poderia deixá-la aqui, sozinha?” E como Fifi não respondesse, continuou: “Não deve dizer essas coisas. Agora, pare de reclamar e vá à cidade com minha lista de compras”. Mas Fifi já decidira. Sua única chance de uma vida plena de aventuras era Borowki. Talvez ele entrasse para o serviço diplomático e, um dia, quando encontrassem Lady Capps-Karr e a srta. Howard num baile na embaixada, ela poderia fazer em voz alta a observação que já tinha na ponta da língua: “Detesto pessoas que se vestem como se estivessem indo ou voltando de um enterro”. “Ande logo”, ordenou sua mãe. “E veja se John está no café e traga-o para o chá.” Fifi pegou mecanicamente a lista de compras. Depois correu a seu quarto e escreveu um recado para Borowki, planejando deixá-lo com o concièrge quando saísse. Quando fechou a porta, viu sua mãe lutando com um pesado baú e sentiu pena de abandoná-la. Mas havia Amy e Gladys na América, e isso a consolou.

Desceu as escadas, só no meio do caminho se lembrando de que, em sua distração, deixara de dar a tradicional olhada no espelho; mas havia um enorme espelho no saguão e ela parou em frente a ele. Era linda — certificou-se disso de novo, só que, desta vez, com uma ponta de tristeza. Imaginou se o vestido que estava usando seria de mau gosto e se daria motivo para que Lady Capps-Karr e a srta. Howard se sentissem superiores a ela. Parecia-lhe um belo vestido, bem-feito, mas de cor talvez um pouco extravagante, com aquele azul-metálico. Então, um ruído rompeu subitamente o silêncio do saguão e Fifi ficou sem fala e sem fôlego.

III. Às onze horas daquela noite o sr. Weicker sentia-se cansado, mas o bar vivia um de seus momentos de agitação e ele resolveu esperar que as coisas se acalmassem um pouco. Não havia nada a fazer no escritório ou no saguão vazio; o salão, onde, durante todo o dia, ele mantinha longas conversas com inglesas e americanas solitárias, estava deserto. Assim, saiu pela porta da frente e começou a fazer a ronda do hotel. O fato de fiscalizar as lâmpadas acesas e verificar a limpeza do chão da cozinha deulhe a sensação de controle sobre o hotel, de responsabilidade, como se fosse um navio que ele inspecionasse do tombadilho superior. Passou pela agitação de conversas e canções do bar e por uma saleta onde dois rapazes jogavam cartas e tomavam um vinho espanhol. Havia um fonógrafo tocando num quarto do segundo andar. Virou num corredor para dar a volta e regressar ao ponto de partida. Defronte ao hotel, à luz mortiça da porte-cochère, viu o conde Borowki. Algo chamou-lhe a atenção — algo estranho. Borowki, que não podia sequer pagar a conta, estava num carro com motorista, ao qual dava uma espécie de instrução. Havia também uma mala no banco da frente. Weicker aproximou-se: “Vai nos deixar, conde Borowki?” Borowki pareceu assustado. “Só esta noite”, respondeu. “Vou encontrar minha mãe.” “Compreendo.” Borowki olhou-o com ar de censura. “Minha bagagem e meu chapéu estão em meu quarto, como poderá ver. Achou que eu estava fugindo para não pagar a conta?” “Claro que não. Espero que faça boa viagem e encontre sua mãe bem-disposta.” Mas, de volta ao hotel, Weicker despachou um valet de chambre para verificar se a bagagem continuava lá, recomendando-lhe que a abrisse para se certificar de que não estava vazia. Tirou uma soneca durante uma hora. Acordou com o concièrge da noite puxando-o pelo braço e sentiu um cheiro forte de fumaça, mas levou alguns instantes para se dar conta de que uma das alas do hotel estava em chamas. Mandou o concièrge dar o alarme e correu para o bar, atravessando a fumaça, ainda a tempo de ver a mesa de bilhar sendo devorada pelo fogo e as garrafas nas prateleiras explodindo com o calor, numa espécie de êxtase alcoólico. Fugindo dali às pressas, cruzou com um batalhão de chasseurs e camareiros semi-uniformizados tentando enfrentar o incêndio com baldes de água. O concièrge gritou-lhe que os bombeiros estavam a caminho. Mandou as telefonistas acordarem os hóspedes e, quando foi juntar-se aos que tentavam apagar o fogo, pensou pela primeira vez em Fifi. Um ódio cego o consumiu. Ela fora cruel o suficiente para executar sua ameaça. Ele cuidaria daquilo mais tarde — ainda havia lei no país. O barulho lá fora anunciou a chegada dos bombeiros e ele correu para o saguão, repleto agora de homens de pijama trazendo suas malas e mulheres de camisola carregando cãezinhos e estojos de jóias. O saguão ficava cada vez mais cheio, com o alarido passando da conversa sonolenta e desencontrada para um staccato de pânico.

Um chasseur chamou o sr. Weicker ao telefone, mas o gerente não lhe deu ouvidos. “É o comissário de polícia”, insistiu o rapaz. “Disse que precisa falar com o senhor.” Com uma exclamação, o sr. Weicker correu para seu escritório: “Alô!”. “Aqui é da polícia. O senhor é o gerente?” “Sim, mas está havendo um incêndio...” “Há entre os seus hóspedes um homem chamado conde Borowki?” “Sim, mas...” “Vamos levá-lo até aí para ser identificado. Foi preso na estrada, com base em uma denúncia que recebemos.” “Mas...” “Havia uma garota com ele. Vamos levá-los aí imediatamente.” “Mas estou lhe dizendo...” O telefone foi desligado do outro lado e o sr. Weicker voltou correndo para o saguão, onde a fumaça estava diminuindo. As mangueiras trabalhavam furiosamente havia cinco minutos. O sr. Weicker foi de hóspede em hóspede, tranqüilizando-os; as telefonistas ligaram de novo para os quartos, assegurando a todos que poderiam voltar a dormir; só então pensou de novo em Fifi e, desta vez por vontade própria, correu ao telefone. A voz ansiosa da sra. Schwartz respondeu: Fifi não estava com ela. Era o que ele queria saber. Desligou bruscamente. Tinha a história completa e não conseguia pensar em nada mais sórdido — ela pusera fogo no hotel e fugira com um vigarista procurado pela polícia. Iria pagar por isso, e nem todo o dinheiro da América faria diferença. Se aquela temporada estava perdida para o hotel, Fifi nunca mais teria uma temporada na vida. Seria internada numa instituição cujo uniforme ainda era pior que as roupas que usava. Quando o último hóspede tomou o elevador e só alguns curiosos permaneciam entre os sofás ensopados, outra procissão entrou pela porta da frente. Consistia em um homem à paisana, uma pequena muralha de policiais fardados e duas outras pessoas. “Gostaria que identificasse essas pessoas. É esse o homem que conhece pelo nome de Borowki?” “Sim”, respondeu prontamente o sr. Weicker. “É procurado pela polícia da Itália, da França e da Espanha. E quem é essa moça?” A moça estava parcialmente oculta atrás de Borowki, com o rosto na sombra. Ansioso, o sr. Weicker esticou o pescoço para vê-la. Tratava-se da srta. Howard. Uma onda de terror o acometeu. Olhou de novo, como se, pela intensidade de seu olhar, pudesse transformá-la em Fifi, ou pudesse ver Fifi através dela. Mas teria sido difícil porque, naquele exato momento, Fifi estava defronte ao café, ajudando o cambaleante John Schwartz a entrar num táxi. “Mamãe quer voltar para os Estados Unidos, John, e nos obrigar a ir com ela”, dizia.

IV. O conde Borowki reagiu com certa elegância à prisão, como se, depois de ter passado a vida recorrendo a expedientes, encontrasse algum alívio no fato de ter seu futuro imediato garantido pelas autoridades. Lamentava apenas a falta de comunicação com o mundo exterior, quando, no quarto dia de sua prisão, recebeu a visita de Lady Capps-Karr. “Os amigos são para essas coisas”, disse ela. “Felizmente, nosso cônsul aqui é amigo de meu pai, ou não me deixariam entrar. Tentei até pagar sua fiança, dizendo que você havia estudado em Oxford durante um ano e falava inglês perfeitamente, mas os brutos nem me deram atenção.” “Acho que não adiantaria”, disse tristemente o conde Borowki. “Quando acabarem de me julgar

aqui, vão dar um passeio comigo pelos tribunais de outros países.” “Mas isso não é o pior”, ela continuou. “Aqueles idiotas expulsaram Bopes e eu do Trois Mondes, e as autoridades estão querendo nos forçar a sair da cidade!” “Por quê?” “Estão tentando nos acusar daquele incêndio desagradável.” “Vocês começaram o fogo?” “Bem, na realidade apenas fizemos uma fogueirinha com álcool, para cozinhar umas batatas, depois que o barman foi dormir e nos deixou lá. Mas, da maneira como aqueles cretinos falam, até parece que tínhamos a intenção de fritar todos os hóspedes durante o sono. A acusação é ridícula e Bopes está furioso. Disse que nunca mais porá os pés naquele hotel. Fui ao consulado e eles também acharam que o equívoco era lamentável, mas, mesmo assim, comunicaram ao Serviço Diplomático, em Londres.” Borowki pensou por um momento e disse: Na próxima encarnação, se houver, espero nascer na Inglaterra. “Pois eu seria qualquer coisa, menos americana! Por falar nisso, os Taylor não apresentarão a senhorita Howard à corte, depois de todo o escândalo que os jornais fizeram sobre o caso.” “O que me intriga é por que Fifi suspeitou de mim”, disse Borowki. “Então foi ela quem o denunciou?” “Sim. Pensei que a tivesse convencido a fugir comigo e sabia que, se ela não aceitasse, bastaria estalar os dedos para a outra garota... Naquela mesma tarde, Fifi foi ao joalheiro e descobriu que eu havia pago a cigarreira que lhe tinha dado com uma nota de cem dólares que roubei de sua mãe. Foi direto à polícia.” “E sem falar com você primeiro!” “Só queria saber por que ela suspeitou de mim e foi investigar a coisa. Por quê? Por quê?” Naquele momento, Fifi estava sentada num banquinho alto, no bar de um hotel em Paris, tomando limonada e respondendo aquela exata pergunta ao barman, que a ouvia interessado. “Eu estava no saguão olhando-me ao espelho”, dizia, “quando ouvi Borowki conversando com a inglesa — a tal que pôs fogo no hotel. Ouvi-o dizer: ‘Meu único pesadelo é que, depois de velha, ela fique parecida com a mãe’.” A voz de Fifi estava cheia de indignação. “Bem, você conhece minha mãe, não conhece?” “Sim, uma senhora muito elegante.” “Depois disso, desconfiei que havia alguma coisa errada com ele e imaginei quanto teria pago pela cigarreira. Então fui investigar e eles me mostraram a nota com que ele a havia pago.” “E, agora, vai voltar para a América?”, perguntou o barman. Fifi terminou seu copo. O canudinho fez um ruído gorgolejante no açúcar do fundo. “Não sei. Temos de voltar para o julgamento, e isso vai tomar alguns meses.” Levantou-se. “Até logo. Tenho de provar umas roupas.” O destino ainda não ajustara contas com ela — por enquanto. Recuara alguns passos e se escondera nas sombras, rangendo os dentes. Mas havia tempo de sobra. No entanto, quando Fifi caminhou pelo saguão, com o rosto refletindo suas novas esperanças e a ansiedade pela visita ao couturier, o próprio destino ficou na dúvida se, algum dia, chegaria a pegá-la de jeito. (1931)

Babilônia revisitada

E onde está o senhor Campbell?”, perguntou Charlie.



“Foi para a Suíça. Ele está muito doente, senhor Wales.” “Que pena. E George Hardt?”, continuou Charlie. “Voltou para a América, para trabalhar.” “E que fim levou o Pássaro da Neve?” “Esteve aqui na semana passada. O amigo dele, senhor Schaeffer, está em Paris.” Apenas dois nomes familiares numa longa lista de um ano e meio antes. Charlie rabiscou um endereço em seu bloco e rasgou a página. “Se encontrar o senhor Schaeffer, dê-lhe isto”, disse. “É o endereço de meu cunhado. Ainda não me instalei num hotel.” Na verdade, não estava desapontado por encontrar Paris tão vazia. Mas o marasmo no bar do Ritz era estranho e imponente. Já não era um bar americano — sentia-se elegante ali, e não como se fosse o dono. Era um bar que voltara a pertencer à França. Pressentiu o marasmo assim que desceu do táxi e viu o porteiro, antes em frenética atividade àquela hora, fofocando com um chasseur na porta dos empregados. Ao passar pelo corredor, ouviu apenas uma única voz entediada, vinda da toalete feminina, em outros tempos tão ruidosa. Quando se encaminhou para o bar, atravessou os seis metros de carpete verde com os olhos fixos à frente, por força de hábito; depois, com o pé plantado no batente da porta, virou-se e contemplou a sala, encontrando apenas um par de olhos que surgiu por cima de um jornal, num canto. Charlie perguntou pelo barman Paul, que, nos últimos dias de alta na Bolsa, vinha para o trabalho em seu carro fabricado sob medida — só que, educadamente, desembarcando na esquina mais próxima. Mas Paul estava hoje em sua casa de campo, e era Alix quem lhe passava as informações. “Agora chega”, disse Charlie. “Ando devagar, esses dias.” Alix felicitou-o. “O senhor estava exagerando na dose há uns dois anos.” “E pretendo continuar devagar”, Charlie assegurou-lhe. “Já estou assim há um ano e meio.” “Como estão as coisas nos Estados Unidos?” “Há meses que não vou à América. Estou com uns negócios em Praga, fazendo umas representações. Eles não me conhecem por lá.” Alix sorriu. “Lembra-se da noite da despedida de solteiro de George Hardt?”, disse Charlie. “Por falar nisso, que fim levou Claude Fessenden?” Alix baixou o tom de voz para uma confidência: “Está em Paris, mas não vem mais aqui. Paul não permite. Deixou uma conta de trinta mil francos, pendurou todos os drinques e almoços, e quase sempre o jantar, durante mais de um ano. Quando Paul finalmente lhe disse que ele tinha de pagar,

Fessenden deu-lhe um cheque sem fundos”. Alix sacudiu a cabeça com tristeza. “Não entendo isso, um sujeito tão bacana. Agora está todo inchado...” Suas mãos estão redondas como uma maçã. Charlie observou um grupo de mulheres estridentes instalando-se num canto. Nada as afeta, pensou. As ações sobem e descem, as pessoas vadiam ou trabalham, mas elas continuam firmes. O lugar o oprimia. Pegou os dados e apostou um drinque com Alix. “Chegou há muito tempo, senhor Wales?” “Há uns quatro ou cinco dias, para ver minha garotinha.” “Ahhh... O senhor tem uma filha?” Lá fora, os neons vermelho-fogo, azul-gás e verde-fantasma piscavam enfumaçados através da chuva tranqüila. Era um fim de tarde e as ruas estavam vivas; os bistrôs refulgiam. Na esquina do Boulevard des Capucines, tomou um táxi. A Place de la Concorde se movia em rósea majestade; cruzaram o Sena, e Charlie sentiu a súbita atmosfera provinciana da Rive Gauche. Charlie mandou o táxi seguir pela Avenue de l’Opéra, que estava fora de seu caminho. Mas queria ver a hora azul se espalhar sobre a magnífica fachada e imaginar que as buzinas dos táxis, tocando interminavelmente os primeiros compassos de “La plus que lente”, eram os trompetes do Segundo Império. O portão de ferro da livraria Brentano estava sendo fechado, e as pessoas já começavam a jantar atrás da bem aparada cerca-viva do Duval. Ele nunca jantara num restaurante barato em Paris — jantar com cinco pratos, a quatro francos e cinqüenta, mais dezoito centavos se houvesse vinho incluído. Por alguma razão, gostaria de ter experimentado. Ao rodar pela Rive Gauche e sentindo seu súbito provincianismo, pensou: Estraguei esta cidade para mim. Eu não percebia, mas os dias foram correndo, um atrás do outro, dois anos se passaram e tudo acabou, inclusive eu. Ele tinha trinta e cinco anos e boa aparência. A mobilidade irlandesa de seu rosto era contrabalançada por uma ruga profunda entre os olhos. Ao tocar a campainha da casa do cunhado na Rue Palatine, a ruga se aprofundou até repuxar suas sobrancelhas; sentiu uma espécie de cãibra no estômago. Por trás da empregada que lhe abriu a porta, surgiu uma adorável garotinha de nove anos que gritou “Papai!” e voou, debatendo-se como um peixe, para dentro de seus braços. Ela puxou a cabeça dele por uma orelha e colou seu rosto ao do pai. “Minha gatinha.” “Ah, papai, papai, papai, papai, pápi, pápi, pápi!” Ela o conduziu à sala, onde a família o esperava, um menino e uma menina da idade de sua filha, sua cunhada e o marido dela. Cumprimentou Marion com voz cuidadosamente modulada, para não demonstrar nem desprazer nem fingido entusiasmo, mas a resposta dela foi francamente morna, embora suavizasse sua expressão de inalterável desconfiança concentrando seu olhar na criança. Os dois homens deram-se as mãos de maneira amistosa e Lincoln Peters descansou a sua por um momento no ombro de Charlie. O aposento era acolhedor e confortavelmente americano. As três crianças se moviam com intimidade por ali, brincando sobre os retângulos amarelos que levavam aos outros quartos; a animação das seis horas manifestou-se nos estalos ansiosos da lareira e nos sons de azáfama francesa na cozinha. Mas Charlie não relaxava; seu coração mantinha-se rígido dentro do corpo e ele só absorvia confiança de sua filha, que de tempos em tempos chegava-se a ele, segurando nos braços a boneca que ele lhe trouxera. “Extremamente bem”, declarou em resposta a uma pergunta de Lincoln. “Há muitas empresas por

lá estagnadas, mas a nossa vai melhor do que nunca. Bem demais, na verdade. No mês que vem, vou trazer minha irmã dos Estados Unidos para me ajudar na casa. Meu rendimento no ano passado foi maior do que no tempo em que tinha dinheiro. Sabe, os tchecos...” Sua gabolice tinha um propósito específico; mas, em pouco tempo, ao sentir alguma impaciência nos olhos de Lincoln, mudou de assunto: “Belas crianças você tem, bem-educadas, bons modos.” “Honoria também é uma menina e tanto.” Marion Peters voltou da cozinha. Era uma mulher alta, com olhos preocupados, que no passado exibira uma fresca beleza americana. Charlie nunca fora sensível a ela e sempre se surpreendia quando as pessoas comentavam como tinha sido bonita. Desde o começo houvera uma antipatia instintiva entre eles. “Bem, o que achou de Honoria?”, ela perguntou. “Maravilhosa. Estou espantado em ver como cresceu nesses dez meses. Todas as crianças me parecem muito bem.” “Não recebemos um médico em casa há um ano. Que tal estar de novo em Paris?” “É engraçado ver tão poucos americanos por aqui.” “Estou achando ótimo”, disse Marion com veemência. “Agora, pelo menos, já se pode ir a uma loja sem ter de fazer pose de milionário. Sofremos como todo mundo, mas, num todo, agora está muito mais agradável.” “Mas foi bom enquanto durou”, disse Charlie. “Éramos uma espécie de realeza, quase infalíveis, com uma aura de magia. No bar, esta tarde”, hesitou, percebendo seu erro, “não havia ninguém que eu conhecesse.” Ela o olhou com ar penetrante. “Achei que já tivesse se fartado de bares.” “Só fiquei um minuto. Tomo um drinque todas as tardes, não mais que isso.” “Não quer beber alguma coisa antes do jantar?”, perguntou Lincoln. “Tomo apenas um drinque à tarde, e já tomei o de hoje.” “Espero que você se limite a isso”, disse Marion. Seu desprazer era evidente na frieza com que falou, mas Charlie apenas sorriu; tinha planos mais importantes. A agressividade de Marion dava-lhe uma vantagem, e ele sabia esperar. Queria que eles tomassem a iniciativa de discutir o que o trouxera a Paris. Durante o jantar, não conseguia se decidir sobre se Honoria se parecia mais com ele ou com a mãe. Seria uma sorte ela não combinar os traços de ambos que os tinham levado ao desastre. Uma grande onda protetora o acometeu. Pensou que sabia o que fazer por ela. Acreditava em personalidade; se pudesse, daria um salto para trás, sobre toda uma geração, e voltaria a confiar na personalidade como um elemento eternamente valioso. Tudo se desgastara. Saiu logo depois do jantar, mas não foi para casa. Estava curioso por ver Paris à noite, com olhos mais claros e lúcidos que os de outros tempos. Comprou um strapontin para o Casino e foi ver Josephine Baker fazer seus arabescos de chocolate. Uma hora depois foi embora e caminhou na direção de Montmartre, subindo a Rue Pigalle até a Place Blanche. A chuva parara e havia algumas pessoas em roupas de noite, desembarcando de táxis em frente aos cabarés, e cocottes desfilando sozinhas ou em pares, e muitos negros. Passou por uma porta iluminada da qual brotava música e parou ali, com uma sensação de familiaridade; era o Bricktop’s, onde já perdera muitas horas e muito dinheiro. Algumas portas à frente, descobriu outros antigos rendezvous e, imprudente, pôs a cabeça para dentro. Imediatamente uma ansiosa orquestra começou a tocar, uma dupla de dançarinos profissionais atirou-se a seus pés e o maître veio

correndo, gritando: “A turma já está vindo, senhor!”. Mas ele se retirou no ato. Só mesmo muito bêbado, pensou. O Zelli’s estava fechado e os sinistros e desolados hotéis ao redor estavam escuros; subindo a Rue Blanche, havia mais luz e um grupo coloquial de franceses do bairro. A Poet’s Cave desaparecera, mas as duas grandes bocas do Café of Heaven e Café of Hell ainda bocejavam, ou devoravam, como ele percebeu, o magro conteúdo de um ônibus turístico — um alemão, um japonês e um casal de americanos que olhou para ele com ar amedrontado. Já se fartara do afã e da inventividade de Montmartre. Constatou que, ali, a oferta de vício e extravagância se dava numa escala tremendamente ingênua, e só então se deu conta do significado da palavra “dissipar” — dissipar no ar; transformar qualquer coisa em nada. Às altas horas da madrugada, cada deslocamento de um lugar para outro era um gigantesco salto humano, e pagava-se um preço cada vez mais alto pelo privilégio de movimentos mais e mais lentos. Ele se lembrou das notas de mil francos dadas a orquestras para tocarem uma única canção, das notas de quinhentos francos atiradas a porteiros por terem chamado um simples táxi. Mas esse dinheiro não tinha sido em vão. Mesmo as quantias mais loucamente desperdiçadas haviam sido dadas como oferenda ao destino, para que ele se lembrasse das coisas que realmente mereciam ser lembradas, coisas de que ele agora sempre se lembraria — sua filha sendo tirada dele, sua mulher, que fugira para um túmulo em Vermont. No fulgor de uma brasserie, uma mulher dirigiu-se a ele. Ele lhe pagou alguns ovos e café, e, evitando seu olhar cheio de promessas, deu-lhe uma nota de vinte francos e tomou um táxi para o hotel.

II. Ao acordar, era um belo dia de outono. A depressão da véspera passara e ele gostou das pessoas nas ruas. Ao meio-dia, sentou-se com Honoria no Le Grand Vatel, o único restaurante que não associava a jantares com champanhe e longos almoços que começavam às duas e terminavam num vago e borrado crepúsculo. “E agora, que tal alguns legumes? Você não devia comer legumes?” “Não sei, acho que sim.” “Então, aqui temos épinards e chou-fleur e cenouras e haricots.” “Eu quero chou-fleur.” “Não prefere dois legumes diferentes?” “Todo dia só como um no almoço.” O garçom fingia gostar muito de crianças. “Qu’elle est mignonne la petite! Elle parle exactement comme une française.” “E a sobremesa? Vamos esperar para ver?” O garçom desapareceu. Honoria olhou para o pai com ar expectante. “O que vamos fazer?” “Primeiro, vamos àquela loja de brinquedos na Rue Sainte-Honoré, comprar o que você quiser. Depois vamos a um show de vaudeville no Empire.” Ela hesitou. “Gostei da idéia do vaudeville, mas não da loja de brinquedos.” “Por que não?” “Porque você já me trouxe esta boneca.” Ela estava com a boneca. “E já tenho muitos brinquedos. E não somos mais ricos, somos?”

“Nunca fomos, querida. Mas hoje você pode ganhar o que quiser.” “Está bem”, ela suspirou, resignada. Quando havia sua mãe e uma babá francesa, ele tendia a ser rigoroso; agora ele se expandia e tentava exercitar uma nova tolerância; tinha de ser pai e mãe para ela, e não fechar nenhum canal de comunicação. “Quero conhecê-la melhor”, disse, com voz grave. “Primeiro, permita que eu me apresente. Meu nome é Charles J. Wales, de Praga.” “Ah, papai!”, ela caiu na risada. “E quem é a senhorita?”, ele insistiu, e ela aceitou o papel imediatamente: “Honoria Wales, Rue Palatine, Paris”. “Casada ou solteira?” “Não, casada não. Solteira.” Ele apontou para a boneca. “Mas vejo que tem uma criança, madame.” Sem querer perdê-la, puxou a boneca contra o peito e pensou rápido: “Sim, já fui casada, mas não estou casada agora. Meu marido morreu”. Ele continuou depressa: “E qual é o nome da criança?” “Simone. Em homenagem à minha melhor amiga na escola.” “Fico satisfeito de saber que está indo bem na escola.” “Fiquei em terceiro lugar este mês”, ela se gabou. “Elsie”, esta era sua prima, “ficou em décimo oitavo e Richard foi um dos últimos.” “Você gosta de Richard e Elsie, não gosta?” “Ah, sim, gosto muito de Richard e gosto dela também.” Com cuidado, e casualmente, ele perguntou: “E tia Marion e tio Lincoln... de quem você gosta mais?” “Ah, do tio Lincoln, acho.” Ele estava cada vez mais tomado por sua presença. Ao entrarem, um murmúrio de “Que linda!” os seguira, e agora as pessoas na mesa ao lado dedicavam seus silêncios a ela, admirando-a como se fosse algo não mais consciente que uma flor. “Por que eu não moro com você?”, perguntou Honoria. “Porque mamãe morreu?” “Você precisa continuar aqui e aprender mais francês. Seria difícil para o papai cuidar de você tão bem.” “Já não preciso que cuidem tanto de mim. Faço tudo sozinha.” Quando saíram do restaurante, ele foi abordado por um homem e uma mulher. “Ora, o velho Wales!” “Olá, Lorraine... Oi, Dunc.” Súbitos fantasmas do passado: Duncan Schaeffer, um amigo dos tempos de faculdade. Lorraine Quarrles, uma loura bonita de uns trinta anos e uma da turma que havia feito os meses se transformarem em dias nos tempos de opulência, três anos antes. “Meu marido não pôde vir este ano”, ela disse, em resposta à pergunta dele. “Estamos para lá de pobres. Prometeu me dar duzentos dólares por mês e disse que eu me virasse com essa fortuna... Sua filha?” “Que tal voltar e se sentar conosco?”, convidou Duncan. “Não posso.” Estava feliz por ter uma desculpa. Como sempre, sentiu a atração provocante e passional de Lorraine, mas seu ritmo agora era diferente.

“E que tal jantar?”, ela perguntou. “Não estou livre. Me dê seu telefone que eu ligo quando puder.” “Charlie, acho que você está sóbrio”, ela disse, com ar crítico. “Sinceramente, acho. Dunc, dê-lhe um beliscão para ver se ele está sóbrio.” Charlie indicou Honoria com a cabeça. Os dois riram. “Qual é o seu endereço?”, perguntou Duncan, cético. Ele hesitou, não querendo dar o nome do hotel. “Ainda não me instalei. É melhor eu telefonar para vocês. Estamos indo a um show de vaudeville no Empire.” “Ótimo! É exatamente do que estou precisando!”, exclamou Lorraine. “Quero ver palhaços, acrobatas e malabaristas. Vamos também, Dunc.” “Temos algumas coisas para fazer primeiro”, disse Charlie. “Talvez nos encontremos por lá.” “Está bem, seu esnobe... Até logo, garotinha linda.” “Até logo.” Honoria fez um gesto gracioso. Um encontro desagradável. Gostaram dele porque viram que ele estava bem, que estava sério; queriam vê-lo de novo porque ele agora parecia mais forte do que eles e porque queriam sugar um pouco dessa força. No Empire, Honoria recusou-se orgulhosamente a sentar sobre o casaco dobrado de seu pai. Já era uma pessoa com seu próprio código, e Charlie viu-se cada vez mais absorto pelo desejo de incutir um pouco de si em sua filha, antes que ela se cristalizasse definitivamente. Mas era impossível vir a conhecê-la em tão pouco tempo. No intervalo, encontraram Duncan e Lorraine no lobby, onde uma banda estava tocando. “Que tal um drinque?” “Está bem, mas não no bar. Vamos para uma mesa.” “O pai perfeito.” Ouvindo Lorraine sem prestar atenção, Charlie observava os olhos de Honoria percorrerem a sala e se perguntava o que ela via. Seus olhos se cruzaram e ela sorriu. “Gostei daquela limonada”, ela disse. O que ela tinha dito? O que ele esperava? Ao voltarem de táxi para casa, puxou-a para si até que a cabeça dela descansasse em seu peito. “Querida, você às vezes pensa na mamãe?” “Sim, às vezes”, ela respondeu de um jeito vago. “Não quero que você a esqueça. Tem uma foto dela?” “Acho que sim. Tia Marion tem. Por que você não quer que eu a esqueça?” “Porque ela amava muito você.” “Eu também a amava muito.” Ficaram em silêncio por um momento. “Papai, quero morar com você”, ela disse de repente. Seu coração deu um pulo; era aonde ele desejava chegar. “Mas você não está feliz aqui?” “Estou, mas gosto mais de você do que de todo mundo. E você gosta de mim mais do que de todo mundo, agora que mamãe morreu, não é?” “Claro que sim. Mas você não vai gostar de mim sempre desse jeito, querida. Você vai crescer e conhecer alguém da sua idade e se casar e se esquecer do papai.”

“É, é verdade”, ela concordou tranqüilamente. Ele não entrou. Ficara de voltar às nove da noite e queria se conservar fresco e novo para o que tinha a dizer. “Assim que tiver acabado de entrar, vá à janela e me dê um adeuzinho.” “Está bem. Até logo, pápi, pápi, pápi, pápi.” Esperou na rua escura até que ela aparecesse, calorosa e fulgurante, na janela do andar de cima, e beijou à distância os dedos que lhe acenavam na noite.

III. Eles o esperavam. Marion sentou-se atrás do aparelho de café num sóbrio vestido de noite preto que era uma leve sugestão de luto. Lincoln andava de um lado para o outro com a animação de quem falava havia horas. Estavam tão ansiosos quanto ele para chegar logo ao assunto. Ele abriu a conversa de saída. “Imagino que saibam o que quero falar com vocês... o verdadeiro motivo pelo qual vim a Paris.” Marion distraía-se com as estrelinhas pretas de seu colar e franziu a testa. “Estou louco para ter de novo um lar”, ele continuou. “E estou louco para ter Honoria comigo. Sou grato a vocês por terem acolhido Honoria por causa de sua mãe, mas agora as coisas mudaram”, hesitou e disse, enfático, “mudaram radicalmente comigo, e gostaria de pedir que reconsiderassem o assunto. Seria tolice minha negar que há três anos eu estava me comportando mal...” Marion o encarou com olhos duros. “... mas isso já passou. Como disse, tenho me limitado a um drinque por dia há mais de um ano, e tomo esse drinque deliberadamente, para que a idéia do álcool não cresça na minha imaginação. Estão entendendo?” “Não”, disse Marion sucintamente. “É uma espécie de desafio a que me proponho. Mantém as coisas no lugar.” “Eu entendo”, disse Lincoln. “Você não quer admitir que o álcool exerce muita atração sobre você.” “Mais ou menos isso. Às vezes me esqueço e não bebo nada. Mas tento tomar um. De qualquer maneira, não posso me dar ao luxo de beber na minha atual posição. As pessoas que represento estão mais do que satisfeitas comigo, e pretendo trazer minha irmã de Burlington para me ajudar a manter a casa, e quero muito que Honoria more lá. Vocês sabem que, mesmo quando eu e a mãe dela não estávamos nos dando bem, nunca deixamos que nada interferisse com Honoria. Sei que ela gosta de mim e sei que sou capaz de cuidar dela. Bem, é isso. O que vocês acham?” Ele sabia que agora seria a sua vez de apanhar. Duraria uma hora ou duas, e seria difícil, mas, se ele regulasse seu inevitável ressentimento para a atitude casta de um pecador regenerado, poderia fazer prevalecer seu ponto de vista. Fique calmo, disse a si mesmo. Você não quer ser aceito. O que você quer é Honoria. Lincoln falou primeiro: “Temos discutido o assunto desde que recebemos sua carta há um mês. Gostamos de ter Honoria conosco. Ela é uma coisinha querida e estamos felizes de poder ajudá-la, mas, naturalmente, esse não é o problema...” Marion interrompeu de repente. “Quanto tempo vai ficar sóbrio, Charlie?”, perguntou. “Para sempre, espero.” “Como pode ter certeza?” “Vocês sabem que nunca bebi demais até que parei de trabalhar e vim para cá sem nada para fazer. Então Helen e eu começamos a andar com...”

“Por favor, deixe Helen de fora. Não suporto ouvir você falar dela desse jeito.” Ele a encarou com amargor; nunca soube até que ponto as duas irmãs gostavam uma da outra. “Só bebi durante um ano e meio — desde a época em que cheguei aqui até o dia em que... desabei.” “Tempo suficiente.” “Tempo suficiente”, ele concordou. “Meu dever é com a Helen”, ela disse. “Tento imaginar o que ela gostaria que eu fizesse. Sinceramente, desde a noite em que fez aquela coisa terrível, você deixou de existir para mim. Não posso evitar. Ela era minha irmã.” “Está certo.” “Quando estava morrendo, ela pediu que eu cuidasse de Honoria. Se você não estivesse internado na época, poderia ter ajudado.” Ele não tinha resposta. “Nunca vou me esquecer da manhã em que Helen bateu à minha porta, ensopada e tremendo, dizendo que você a trancara do lado de fora de casa.” Charlie agarrou-se às laterais da cadeira. Estava sendo mais difícil do que ele esperava; queria desfechar uma longa explicação, porém disse apenas: “A noite em que a tranquei...”, mas ela interrompeu: “Não quero falar nisso”. Após um momento de silêncio, Lincoln disse: “Estamos nos desviando do assunto. Você quer que Marion abra mão de sua guarda legal e lhe entregue Honoria. Acho que o importante é se ela tem ou não confiança em você”. “Não censuro Marion”, disse Charlie, lentamente, “mas agora ela pode ter inteira confiança em mim. Minha ficha era boa até três anos atrás. Claro que, sujeito às vicissitudes humanas, posso sofrer uma recaída a qualquer momento. Mas, se esperarmos muito, vou perder a infância de Honoria e minha chance de ter um lar.” Balançou a cabeça. “Vou terminar perdendo-a, entende?” “Sim, entendo”, disse Lincoln. “Por que não pensou nisso antes?”, disse Marion. “Acho que pensava, de vez em quando, mas Helen e eu estávamos nos entendendo muito mal. Quando consenti que ela ficasse com a guarda de Honoria, estava derrubado numa clínica e o mercado se fechara para mim. Sabia que tinha me comportado mal e que, se isso trouxesse alguma paz para Helen, eu concordaria com qualquer coisa. Mas agora é diferente. Estou bem. Estou me comportando bem pra cacete, pelo menos até...” “Por favor, modere a língua na minha presença”, disse Marion. Charlie olhou-a espantado. A cada observação, o desapreço de Marion por ele parecia mais aparente. Convertera todo o seu medo da vida num muro que interpusera entre eles. Essa reprovação tão sem sentido podia ser fruto de algum aborrecimento que tivera com a cozinheira horas antes. Charlie preocupou-se com a perspectiva de deixar Honoria nesse ambiente de hostilidade contra ele; mais cedo ou mais tarde, tal hostilidade iria transpirar, uma palavra aqui, um gesto de cabeça ali, e vestígios dessa desconfiança seriam irrevogavelmente plantados na cabeça de Honoria. Mesmo assim, apagou a fúria de seu rosto e trancafiou-a dentro de si; marcara um ponto, porque Lincoln percebera o absurdo do que Marion dissera e lhe perguntara o que havia de mal na palavra “cacete”. “Outra coisa”, disse Charlie. “Agora estou em condições de propiciar a ela alguns benefícios. Vou levar uma governanta francesa para Praga. Vou alugar um novo apartamento...” Parou ao se dar conta de que estava estragando tudo. Eles não aceitariam bem o fato de que seu rendimento era, de novo, o dobro do deles.

“Realmente, você pode lhe dar mais luxos do que nós”, disse Marion. “Enquanto você torrava dinheiro, nós tínhamos de viver contando cada dez francos... Pelo visto, vai fazer isso de novo.” “Ah, não”, ele se apressou a dizer. “Aprendi muito. Trabalhei duro durante dez anos, vocês sabem, até que tive sorte na Bolsa, como tantas pessoas. Muita sorte. Parecia sem sentido continuar trabalhando, por isso parei. Não vai acontecer de novo.” Houve um longo silêncio. Todos se sentiam tensos e, pela primeira vez em um ano, Charlie teve vontade de tomar um drinque. Tinha certeza agora de que Lincoln Peters queria que ele ficasse com sua filha. Marion estremeceu subitamente; por um lado, via que os pés de Charlie estavam firmes no chão, e seu sentimento de mãe reconheceu a normalidade do que ele pedia; mas vivera por muito tempo com um preconceito — um preconceito fundado numa curiosa descrença na felicidade de sua irmã e que, diante do choque de uma noite terrível, transformara-se em ódio por ele. Tudo acontecera numa época de sua vida em que uma combinação de doença e circunstâncias adversas tornou necessário para ela acreditar numa vilania palpável e num vilão palpável. “Não posso esconder o que penso!”, ela gritou de repente. “O quanto você foi responsável pela morte de Helen, não sei dizer. É uma coisa entre você e a sua consciência.” Uma corrente elétrica de agonia correra por ele; por um momento, quase se pôs de pé, com um som aprisionado na garganta. Mas controlou-se. “Vamos com calma, Marion”, disse Lincoln, constrangido. “Nunca achei Charlie responsável por aquilo.” “Helen morreu de um problema cardíaco”, disse Charlie bem devagar. “Foi, problema cardíaco.” Helen falou como se a frase tivesse para ela outro significado. Então, no abatimento que se seguiu à sua explosão, ela o viu com clareza e percebeu que, de alguma forma, ele estava no controle da situação. Olhando para o marido, não encontrou nele um apoio e, abruptamente, como se o assunto já não tivesse importância, jogou a toalha. “Ah, faça o que quiser!”, gritou, saltando da cadeira. “É sua filha. Não sou eu que vou ficar no caminho. Se fosse minha filha, preferia vê-la mor...” Mas também conseguiu se controlar. “Vocês dois decidam. Não agüento mais isso. Estou me sentindo mal. Vou para a cama.” Saiu às pressas da sala; depois Lincoln disse: “Foi um dia difícil para ela. Você sabe como ela se sente em relação à Honoria...” Sua voz quase pedia desculpas. “Quando uma mulher põe uma idéia na cabeça...” “Claro.” “Vai dar tudo certo. Acho que ela está vendo que você... será capaz de sustentar a criança e, com isso, não podemos ficar no seu caminho ou no de Honoria.” “Obrigado, Lincoln.” “Acho melhor eu subir e ver como ela está.” “Vou embora.” Ainda estava tremendo quando chegou à rua. A caminhada da Rue Bonaparte até o cais restabeleceu-o e, ao cruzar o Sena, rejuvenescido sob os lampiões do quai, sentiu-se exultante. Mas, ao voltar para seu quarto, não conseguiu dormir. A imagem de Helen o assombrava. Helen, a quem ele amara tanto até que, insensatamente, os dois começaram a abusar desse amor e a rasgá-lo em tiras. Naquela terrível noite de fevereiro, de que Marion se lembrava tão vivamente, uma briga se arrastara por horas. Houve uma cena no Florida; ele tentou levá-la para casa e, então, ela beijou o jovem Webb numa mesa; a partir dali, aconteceu o que Marion histericamente descrevera. Quando ele chegou em casa, entrou e trancou a porta, furioso. Como poderia adivinhar que Helen chegaria

uma hora depois, sozinha, que ela atravessaria uma tempestade de neve de sandálias, muito confusa para tomar um táxi? E depois o rescaldo, Helen escapando da pneumonia por um milagre e todo o horror subseqüente. Eles se “reconciliaram”, mas aquele foi o começo do fim, e Marion, que assistiu com os próprios olhos ao que imaginou ser uma das muitas cenas do martírio de sua irmã, nunca esqueceu. Reviver tudo isso trouxe Helen para mais perto dele e, à luz branca e suave que invade o semisono quando chega a manhã, Charlie viu-se falando de novo com ela. Helen dizia que ele tinha toda razão sobre Honoria e que, por ela, Honoria ficaria com ele. Disse que estava feliz por vê-lo bem e se comportando ainda melhor. Disse muitas outras coisas — coisas muito amáveis —, mas estava de vestido branco sentada em um balanço, e balançando cada vez mais depressa, de forma que ele não pôde ouvir tudo o que ela disse.

IV. Acordou feliz. A porta do mundo se abria de novo para ele. Imaginou planos, perspectivas, futuros para Honoria e para si mesmo, mas de repente ficou triste, lembrando-se dos planos que ele e Helen tinham feito. Ela não planejava morrer. Agora só o presente importava — trabalho para realizar e alguém para amar. Mas não para amar muito, porque ele sabia o mal que um pai pode fazer a uma filha ou uma mãe a um filho, por se ligar muito a eles; depois, quando saísse ao mundo, essa criança buscaria no parceiro de casamento a mesma ternura cega e, talvez fracassando em encontrá-la, se virasse contra o amor e a vida. Era outro dia claro e brilhante. Procurou Lincoln Peters no banco em que ele trabalhava e perguntou-lhe se podia contar em levar Honoria quando fosse para Praga. Lincoln concordou em que não havia razão para adiamentos. Exceto por uma coisa — a guarda legal. Marion queria retê-la por mais algum tempo. Estava aborrecida com a história e facilitaria as coisas se sentisse que a situação continuava sob seu controle por mais um ano. Charlie concordou, querendo apenas a criança visível, tangível. Depois, a questão da governanta. Charlie foi a uma agência sombria e conversou com uma bernense meio grossa e com com uma robusta camponesa bretã, nenhuma das quais ele conseguiria suportar. Falaria com outras no dia seguinte. Almoçou com Lincoln Peters no Griffons, tentando disfarçar a euforia. “Não há nada como o nosso próprio filho”, disse Lincoln. “Mas você precisa entender como Marion também se sente.” “Ela se esquece de quanto eu dei duro aqui por sete anos”, disse Charlie. “Só se lembra de uma noite.” “E há outra coisa”, hesitou Lincoln. “Enquanto você e Helen se esbaldavam pela Europa rasgando dinheiro, estávamos apenas sobrevivendo. Nunca fiquei rico porque nunca tive reserva suficiente para aplicar em nada, exceto em meu seguro de vida. Acho que Marion via nisso uma espécie de injustiça — você já nem mesmo trabalhava e ia ficando cada vez mais rico.” “Acabou tão rápido quanto começou”, disse Charlie. “Sim, e grande parte do dinheiro ficou nas mãos de chasseurs, saxofonistas e maîtres. Bem, a farra acabou. Só disse isso para contar como Marion se sentiu naqueles anos loucos. Se você aparecer hoje por volta das seis, antes que Marion se sinta muito cansada, podemos acabar de discutir os detalhes.” De volta ao hotel, Charlie encontrou um pneumatique que fora enviado ao bar do Ritz, onde ele deixara seu endereço com a intenção de encontrar um certo homem.

QUERIDO CHARLIE: Você estava tão esquisito no outro dia, quando nos encontramos, que fiquei pensando se fiz alguma coisa que o ofendeu. Se fiz, não foi consciente. Na verdade, tenho pensado demais em você desde o ano passado e sempre achando que queria vê-lo de novo. Nós nos divertimos tanto naquela primavera maluca, como na noite em que você e eu roubamos o triciclo do açougueiro, e na noite em que tentamos ligar para o presidente e você estava de chapéu-coco e bengala de metal. Tudo parece tão antigo ultimamente, mas eu não me sinto nem um pouco antiga. Que tal nos encontrarmos hoje para lembrar os velhos tempos? Estou com uma tremenda ressaca neste momento, mas vou me sentir melhor à tarde e estarei esperando você por volta das cinco no bar do Ritz. Sempre sua, LORRAINE Seu primeiro sentimento foi de horror ao lembrar-se de que, realmente, já homem maduro, roubara um triciclo e pedalara com Lorraine por toda a Étoile quase ao nascer do sol. Em retrospecto, era um pesadelo. Deixar Helen na rua não combinava com nada que fizera na vida, mas o incidente do triciclo, sim, era um entre muitos. Quantas semanas ou meses de dissipação para chegar a esse estado de completa irresponsabilidade? Tentou visualizar como Lorraine então lhe parecia — muito atraente; Helen ficava triste com aquilo, embora não dissesse nada. Na véspera, no restaurante, Lorraine lhe parecera gasta, cediça, extenuada. Decididamente não queria vê-la e ficou feliz por Alix não ter dado a ela o endereço do hotel. Em compensação, era um alívio pensar em Honoria, pensar nos domingos que passaria com ela, em desejar-lhe bom-dia e em saber que ela estaria em casa à noite, prendendo a respiração no escuro. Às cinco horas, tomou um táxi e comprou presentes para todos os Peter — uma charmosa boneca de pano e uma caixa de soldadinhos romanos para as crianças, flores para Marion e grandes lenços de linho para Lincoln. Ao chegar ao apartamento, viu que Marion aceitara o inevitável. Ela o recebeu como a um recalcitrante membro da família e não mais como um forasteiro ameaçador. Honoria ficara sabendo que iria embora; Charlie gostou de ver que sua educação a fazia esconder sua excessiva felicidade. Somente ao subir-lhe no colo é que sussurrou seu deleite e perguntou “Quando?”, antes de sumir junto com as outras crianças. Por um minuto, ele e Marion viram-se sozinhos na sala e, num impulso, ele disse com certa ousadia: “Brigas de família são coisas amargas. Não seguem nenhuma regra. Não são como as dores ou as feridas; são mais como farpas na pele, que custam a sarar porque não há substância suficiente. Gostaria que eu e você nos déssemos melhor.” “Algumas coisas são difíceis de esquecer”, ela respondeu. “É uma questão de confiança.” Não havia resposta para isso e, em seguida, ela perguntou: “Quando pretende levá-la?”. “Assim que conseguir uma governanta. Espero que depois de amanhã.” “Isso é impossível. Tenho de pôr as coisas de Honoria em ordem. Não antes de sábado.” Ele consentiu. De volta à sala, Lincoln ofereceu-lhe um drinque. “Está bem, vou tomar meu uísque de hoje”, ele disse. Estava ameno ali; era um lar, com as pessoas ao redor da lareira. As crianças se sentiam seguras e importantes; a mãe e o pai estavam sérios, vigilantes. Tinham tarefas mais importantes relativas às crianças do que fazer sala à visita. Uma colher de remédio, afinal, era mais importante do que as

tensas relações entre Marion e ele. Não eram pessoas medíocres, mas se deixavam levar demais ao sabor da vida e das circunstâncias. Perguntou-se se não podia fazer alguma coisa para livrar Lincoln da rotina de seu banco. Um longo toque da campainha da frente; a bonne à tout faire passou por eles e saiu pelo corredor. A porta se abriu em meio a outro longo toque, ouviram-se vozes e os três na sala se olharam expectantes; Lincoln moveu-se para fazer o corredor entrar no seu campo de visão e Marion se levantou. A empregada voltou, seguida de perto por vozes, as quais se materializaram na sala sob a forma de Duncan Schaeffer e Lorraine Quarrles. Estavam alegres, muito alegres — na verdade, morrendo de rir. Por um momento, Charlie ficou atônito; incapaz de entender como tinham descoberto o endereço dos Peter. “Ah-h-h!” Duncan apontou seu dedo canalhamente para Charlie. “Ah-h-h!” Os dois despejaram nova cascata de risos. Ansioso e desconcertado, Charlie apertou-lhes as mãos rapidamente e os apresentou a Lincoln e Marion. Marion respondeu com a cabeça, mal falando. Dera um passo para trás, em direção ao fogo; sua garotinha se postara a seu lado, e Marion pôs um braço em seu ombro. Com crescente aborrecimento pela intrusão, Charlie esperou que se explicassem. Depois de alguma concentração, Duncan disse: “Viemos convidá-lo para jantar. Lorraine e eu insistimos que todo esse misterinho, esse segredinho sobre o seu endereço precisa terminar.” Charlie aproximou-se deles, como se para forçá-los a recuar rumo ao corredor. “Desculpem, mas não posso. Digam onde estarão e prometo telefonar em meia hora.” Isso não lhes causou a menor impressão. Lorraine sentou-se no braço de uma cadeira e, focalizando seus olhos em Richard, gritou: “Ah, que gracinha de menino! Vem cá, menino”. Richard olhou para a mãe, mas não se mexeu. Com um perceptível dar de ombros, Lorraine voltou-se para Charlie: “Vamos jantar. Seus primos não vão dar a mínima. É tão difícil ver você. Ou ter você.” “Não posso”, disse Charlie, ríspido. “Vocês dois vão jantar e eu telefono depois.” A voz dela ficou subitamente desagradável. “Está bem, nós vamos. Mas ainda me lembro muito bem de quando você esmurrou minha porta, um dia, às quatro da manhã. Eu fui boazinha e te ofereci um drinque. Vamos, Dunc.” Ainda em câmera lenta, com rostos irritados e desfeitos e passos incertos, eles se retiraram pelo corredor. “Boa noite”, disse Charlie. “Boa noite!”, disse Lorraine enfaticamente. Quando ele voltou para a sala, Marion permanecia imóvel, só que agora seu filho estava de pé a seu lado, envolto por seu outro braço. Lincoln continuava balançando Honoria, como um pêndulo, de um lado para o outro. “Que atrevimento!”, disse Charlie. “Que verdadeiro atrevimento!” Nenhum dos dois respondeu. Charlie desabou numa poltrona, pegou seu drinque, devolveu-o à mesinha e disse: “Gente que não vejo há dois anos tendo o descaramento de...” Calou-se. Marion omitira o som “Ah!” num arquejo rápido e irado, virou-se de supetão e saiu da sala. Lincoln sentou Honoria cuidadosamente. “Crianças, vão lá para dentro tomar a sopa”, disse. Quando elas obedeceram, virou-se para

Charlie: “Marion não está bem e não consegue agüentar choques. Esse tipo de gente a deixa fisicamente doente.” “Não lhes pedi para vir aqui. Eles arrancaram de alguém o seu nome e deliberadamente...” “Bem, foi uma pena. Não ajudou nada. Me dê licença por um minuto.” Sozinho, Charlie sentou-se, tenso. Podia ouvir as crianças jantando e conversando em monossílabos no aposento ao lado, já esquecidas da cena entre os mais velhos. Ouviu um murmúrio vindo da outra sala e depois o ruído de um telefone sendo tirado do gancho. Em pânico, foi para o outro extremo da sala, onde não conseguia ouvir nada. Um minuto depois, Lincoln voltou. “Escute, Charlie. É melhor cancelarmos o jantar esta noite. Marion não está bem.” “Está furiosa comigo?” “Mais ou menos”, ele disse, um pouco áspero. “Ela não é forte e...” “Mudou de idéia a respeito de Honoria?” “Neste momento está bem amarga. Não sei. Telefone para o banco amanhã.” “Gostaria que você explicasse a ela que nunca imaginei que essas pessoas viriam aqui. Estou tão indignado quanto vocês.” “Não dá para explicar nada a ela agora.” Charlie se levantou. Pegou o casaco e o chapéu e dirigiu-se para o corredor. Em seguida abriu a porta da sala de jantar e disse, com uma voz estranha: “Boa noite, crianças”. Honoria se levantou e deu a volta na mesa para abraçá-lo. “Boa noite, minha querida”, ele disse, e em seguida, tentando tornar sua voz mais terna, como se para conciliar alguma coisa: “Boa noite, meus filhos”.

V. Charlie foi direto ao bar do Ritz, com a furiosa idéia de encontrar Lorraine e Duncan. Mas eles não estavam lá, e ele se deu conta de que, de qualquer maneira, não podia fazer nada. Nem tocara em seu drinque na casa dos Peter e agora pediu um uísque com soda. Paul apareceu para cumprimentálo. “As coisas mudaram muito”, disse, com tristeza. “Nosso movimento caiu pela metade. Ouvi falar de tanta gente que voltou para os Estados Unidos e perdeu tudo, talvez não na primeira queda da Bolsa, mas na segunda. Seu amigo George Hardt foi um deles, pelo que sei. Vai voltar para lá?” “Não, estou trabalhando em Praga.” “Ouvi dizer que você também perdeu muito.” “Perdi.” E acrescentou, amargo: “Mas já tinha perdido muito na alta”. “Vendendo barato.” “Mais ou menos isso.” De novo a lembrança daqueles dias assolou-o como um pesadelo — as pessoas que eles tinham conhecido em viagens; e, depois, pessoas que não sabiam somar dois e dois ou pronunciar uma frase coerente. O homenzinho com quem Helen consentiu em dançar na festa do navio e que a insultara a três metros da mesa; as mulheres e as moças alcoolizadas e drogadas que eram arrastadas, aos gritos, para fora dos lugares públicos... ... Os homens que deixavam suas mulheres na rua em meio a tempestades de neve, porque a neve de 1929 não era neve de verdade. Se você não quisesse que fosse neve, bastava pagar. Foi ao telefone e ligou para o apartamento dos Peter; Lincoln atendeu.

“Estou telefonando porque esse assunto não me sai da cabeça. Marion disse alguma coisa mais definitiva?” “Marion não está bem”, Lincoln respondeu, abrupto. “Sei que não foi sua culpa, mas não posso permitir que ela sofra as conseqüências. Acho que deveríamos deixar o caso esfriar por uns seis meses; não posso me arriscar a forçá-la a nada neste momento.” “Entendo.” “Lamento, Charlie.” Ele voltou para sua mesa. O copo de uísque estava vazio, mas ele fez um sinal de negativo com a cabeça quando Alix olhou para ele, oferecendo-lhe outro. Não tinha muito a fazer agora, exceto mandar a Honoria algumas coisas; no dia seguinte, mandaria muitos presentes para Honoria. Pensou irritado que eles só lhe custavam dinheiro — tinha dado dinheiro a tanta gente... “Não, já chega”, disse para outro garçom. “Quanto foi?” Um dia ele voltaria; não podiam obrigá-lo a pagar para sempre. Queria sua filha e nada mais interessava. Já não era jovem, capaz de sustentar-se sozinho com belos sonhos e pensamentos. Tinha absoluta certeza de que Helen não gostaria de vê-lo só. (1931)

Uma página virada

Era o primeiro dia agradável para que se pudesse almoçar ao ar livre no Bois de Boulogne. As flores dos castanheiros pendiam sobre as mesas e caíam petulantes sobre a manteiga e o vinho. Julia Ross comeu algumas com o pão enquanto ouvia os peixes dourados ondulando na piscina e os pardais chilreando sobre uma mesa vazia. Podia-se ver todo mundo ali de novo — os garçons, com suas caras profissionais; as francesas, cheias de olhos e bocas; Phil Hoffman, sentado à sua frente com o coração equilibrado num garfo; e aquele homem extraordinariamente bonito que acabara de surgir no terraço. ... o poder transparente da tarde. O hálito leve da umidade Cercando as flores em botão. Julia chegou a tremer, mas controlou-se. Por pouco não saiu aos saltos, cantando e empurrando o maître sobre o canteiro de lírios. Ficou ali sentadinha, como uma moça bem-comportada de vinte e um anos, apenas ligeiramente abalada. Phil levantou-se com o guardanapo na mão: “Olá, Dick”. “Oi, Phil!” Era o homem lindo. Phil foi até ele e falaram coisas de que Julia só ouviu pedaços. “... vi Carter e Kitty na Espanha...” “... choveu em Bremen...” “... aí fui para...” O homem seguiu seu caminho entre as mesas e Phil sentou-se de novo. “Quem é?”, ela perguntou. “Um amigo — Dick Ragland.” “Sem dúvida, é o homem mais bonito que já vi na vida.” “É, ele é bonito”, concordou Phil sem entusiasmo. “Bonito?! Ele é um arcanjo, ele é um leão da montanha, dá vontade de comer inteiro! Por que não me apresentou?” “Porque ele é o americano com pior fama em Paris.” “Bobagem. Aposto que não passam de intrigas — um bando de maridos morrendo de ciúme porque suas mulheres não tiram os olhos dele. Sou capaz de jurar que nunca faz nada na vida além de comandar cargas de cavalaria e salvar criancinhas de afogamentos.” “O fato é que ninguém o recebe em lugar nenhum — e não por uma razão, mas por umas mil.” “Que razões?” “Todas. Bebedeiras, mulheres, prisões, escândalos, vadiagem, matar alguém com um automóvel...” “Não acredito em nada disso”, disse Julia com firmeza. “Ele é tremendamente atraente. E você

falou como se também achasse...” “Realmente”, respondeu Phil com relutância, “como a maioria dos alcoólatras, ele tem um certo charme. Se aprontasse suas confusões sozinho e em outro lugar, tudo bem, mas bem no colo das pessoas? E quando alguém tenta recuperá-lo e faz um espalhafato a respeito, ele entorna sopa no decote da anfitriã, beija a copeira e desmaia na casinha do cachorro. Já fez isso várias vezes. Agora cansou todo mundo, não sobrou ninguém.” “Sobrei eu”, disse Julia. Sobrava Julia, que era um pouco demais para qualquer um e que às vezes lamentava ter nascido tão bem-dotada. Há um preço a pagar por tudo que se soma à beleza — quer dizer, as qualidades que costumam substituir a beleza passam a ser defeitos quando somadas à beleza. O brilhante olhar de gazela de Julia já devia ser bastante, sem o raio de inteligência que ele continha; seu irreprimível senso de ridículo revelava-se no relevo da boca; e a perfeição de seu corpo seria ainda mais evidente se ela não mantivesse a postura rígida herdada da disciplina imposta pelo pai. Rapazes igualmente perfeitos tinham-lhe aparecido diversas vezes trazendo presentes, mas quase sempre com um ar de que já se sentiam completos e acabados, sem espaço para maiores aperfeiçoamentos. Por outro lado, ela descobrira que os homens que realmente admirava tinham sido menos que perfeitos na juventude, só que ela era ainda muito nova para apreciar isso. Phil Hoffman, sentado à sua frente, era o exemplo típico: com tudo para ser um brilhante advogado, praticamente a seguira até Paris. Gostava dele, mais talvez do que de qualquer outro que conhecia, mas agora ele se revelava tão repressor como o filho de um chefe de polícia. “Estou indo para Londres esta noite e, na quarta-feira, tomo o navio”, ele disse. “Enquanto isso, você ficará na Europa todo o verão, com um namorado novo por semana.” “Depois de uma série de observações como essa, acho bom fazer jus à fama”, disse Julia. “Apenas para não desapontá-lo, por que não me apresenta ao rapaz?” “Nas minhas últimas horas aqui!”, gemeu Hoffman. “Mas eu lhe dei três dias para tentar alguma tática que funcionasse. Seja civilizado e convide-o a tomar café conosco.” Quando Dick Ragland juntou-se a eles, Julia respirou fundo de prazer. Era um belo homem, louro e queimado de sol, com um rosto cheio de uma particular luminosidade. Sua voz era suave e intensa, parecendo às vezes tremer um pouco, numa espécie de alegre desespero; olhava para Julia de um jeito que a fazia sentir-se irresistível. Durante meia hora, enquanto conversavam entre o aroma das violetas, dos miosótis e dos amores-perfeitos, seu interesse por ele cresceu. Até gostou quando Phil disse: “Acabo de lembrar que preciso pegar meu visto na embaixada inglesa. Vou ser obrigado a deixar vocês dois, pombinhos apaixonados, juntos, mesmo sabendo que isso é um erro. Posso contar com você na Gare St. Lazare às cinco da tarde para o bota-fora?” Olhou para Julia como que esperando que ela dissesse: “Vou com você”. Julia sabia perfeitamente que não era aconselhável ficar sozinha com aquele homem, mas ele a fazia rir, e ela não havia achado coisa nenhuma divertida ultimamente. Assim, preferiu dizer: “Vou ficar mais um pouco. Está ótimo aqui!”. Quando Phil foi embora, Dick Ragland sugeriu um bom champanhe. “Ouvi dizer que você tem uma péssima reputação”, ela disse impulsivamente. “Terrível. Ninguém mais me convida para nada. Quer que eu ponha meu bigode postiço?” “Que estranho!”, continuou Julia. “Como consegue não morrer de fome? Sabe que Phil me advertiu a seu respeito antes de apresentá-lo a mim? Eu poderia perfeitamente ter me recusado.”

“E por que não recusou?” “Achei-o tão bonito que seria uma pena.” O rosto dele revelou o vazio; Julia sentiu que aquela observação já lhe havia sido feita tantas vezes que não lhe dizia mais nada. “Nem é da minha conta”, ela tentou corrigir. Ainda não havia percebido que o fato de ele ser um rejeitado é que aumentava seu fascínio por ele, e não a sua dissipação, porque, nunca a tendo conhecido, esta era uma espécie de abstração, mas que fazia dele alguém tão sozinho. Um ser tão diferente prometia-lhe o inesperado, prometia-lhe aventuras. “Vou lhe dizer uma coisa”, ele disse. “Vou parar de beber para sempre no dia 5 de julho, quando eu fizer vinte e oito anos. Não acho mais graça na bebida. Ficou claro para mim que não sou dessas poucas pessoas que podem beber.” “Tem certeza de que vai conseguir?” “Sempre cumpro o que digo. Além disso, estou voltando para Nova York a fim de trabalhar.” “Fico feliz em saber disso.” Era mentira, mas ela deixou escapar. “Quer outro bom champanhe?”, sugeriu Dick. “Ficará mais feliz ainda.” “Então vai parar mesmo no seu próximo aniversário?” “Espero que sim. Nesse dia estarei em alto-mar, no Olympic.” “Que coincidência! Eu também!”, ela exclamou. “Então poderá ver. Estarei em forma para o concerto no navio.” Os garçons começaram a limpar as mesas. Julia achou que era hora de ir, mas não tolerava a idéia de deixá-lo ali, com aquele sorriso tão triste. Pensou, maternalmente, que devia dizer qualquer coisa para ajudá-lo a manter sua resolução. “Por que você bebe tanto? Talvez haja alguma razão obscura, que nem você conheça.” “Ah, sei muito bem como começou.” Passou uma hora contando. Fora para a guerra aos dezessete anos e, quando voltou, ser calouro em Princeton não parecia algo tão emocionante. Por isso, foi para a Boston Tech e, dali, resolveu enfrentar a Beaux Arts em Paris. Foi lá que algo lhe aconteceu. “Quando tive algum dinheiro para gastar, descobri que, com uns poucos drinques, ficava descontraído e agradava mais às pessoas. Isso me virou a cabeça. Foi então que comecei a beber muito mais para ficar sempre desse jeito e todo mundo pensar que eu era maravilhoso. Naturalmente, as pessoas começaram a me achar meio chato e briguei com a maioria dos meus amigos, até que encontrei uma nova turma. Mas às vezes eu pensava: ‘O que estou fazendo com esses caras?’. Eles percebiam e não gostavam. Finalmente, quando um táxi no qual eu estava atropelou e matou um sujeito, fui processado. Foi um acidente, mas os jornais exploraram o caso e, mesmo depois que ele acabou, a impressão era a de que eu tinha matado o homem. Portanto, nos últimos cinco anos, a única coisa que tenho a apresentar é o tipo da reputação que faz com que as mães tranquem as filhas nos quartos quando sabem que estou hospedado no mesmo hotel.” Um garçom impaciente adejava por ali, e ela olhou para o relógio. “Puxa, temos que nos despedir de Phil às cinco. Passamos a tarde toda aqui!” No caminho para a Gare St. Lazare, ele perguntou: “Posso vê-la de novo? Ou acha melhor não?”. Ela devolveu seu olhar comprido. Não havia sinal de dissipação no rosto dele, nas suas bochechas coradas nem em seu andar firme. “Estou sempre bem na hora do almoço”, ele acrescentou, como um inválido. “Não estou preocupada com isso”, ela riu. “Vamos almoçar depois de amanhã.” Subiram correndo os degraus da Gare St. Lazare, apenas a tempo de ver o último vagão da Golden

Arrow desaparecer em direção ao canal. Julia sentiu-se culpada, porque Phil tinha vindo de tão longe para estar com ela. Como uma espécie de compensação, foi ao apartamento onde vivia com sua tia e tentou escrever uma carta para ele, mas Dick Ragland intrometia-se em seus pensamentos. Pela manhã, o efeito do rosto de Dick em sua lembrança dissipara-se um pouco; estava até inclinada a lhe escrever um bilhete, dizendo que não queria mais vê-lo. No entanto, ele fora tão pouco incisivo que aquilo a impressionara. Ao meio-dia e meia do dia marcado, postou-se à espera. Julia não dissera nada a sua tia, a qual estava recebendo amigas para o almoço e talvez mencionasse o nome dele — era estranho ir almoçar com alguém cujo nome não podia ser mencionado. Dick estava atrasado e ela esperava na sala, pouco atenta ao alarido das convidadas durante o almoço. À uma hora, foi atender à campainha. Ao abrir a porta, viu um homem que pensara nunca ter visto antes. Era um rosto mortalmente pálido, barbado, chapéu esmagado sobre a cabeça, colarinho sujo, gravata desgrenhada. Mas, no momento em que percebeu a figura de Dick Ragland, tudo mais deixou de importar: o que importava era a mudança na expressão dele. Todo o seu rosto era um prolongado ar de escárnio: as pálpebras mal se mantinham sobre os olhos vidrados, os lábios caíam com um esgar e seu queixo parecia feito de uma parafina que houvesse escorrido — um rosto que inspirava e expressava repulsa. “Oi”, ele disse. No primeiro momento, ela recuou. Depois, diante do súbito silêncio da sala e inspirada por esse silêncio, ela quase o empurrou para fora, saiu e fechou a porta atrás de si. “Ah-h-h!”, disse ela, aos poucos. “Não vou para casa desde ontem. Fui a uma festa e...” Repugnada, agarrou-o pelo braço e desceu com ele as escadas, passando pela mulher do concièrge, que os espiou por sua janelinha. No térreo, saíram à plena luz do sol da Rue Guynemer. Exposto ao frescor da primavera dos Jardins de Luxemburgo, ele parecia ainda mais grotesco. Assustava-a; ela procurou desesperadamente um táxi, mas o único que dobrou a esquina da Rue de Vaugirard fez que não ao seu sinal. “Onde vamos almoçar?”, ele perguntou. “Você não está em condições de almoçar. Não está vendo? Precisa ir para casa e dormir.” “Estou bem. Mais um drinque e ficarei ótimo.” Outro táxi parou quando ela acenou. “Vá para casa e durma. Você não está em condições de ir a lugar nenhum.” Ele forçou a vista e viu-a subitamente como uma pessoa nova, fresca, adorável, diferente do mundo turbulento e enfumaçado em que passara as últimas horas. Uma fugidia corrente de razão fluiu em seu íntimo. “Você tem razão. Desculpe.” “Onde você mora?” Ele deu o endereço e atirou-se num canto do assento, o rosto lutando ainda contra a realidade. Julia bateu a porta. Quando o táxi arrancou, ela atravessou correndo a rua em direção ao jardim. Sentia-se como se alguém a estivesse seguindo.

II. Por coincidência, ela própria atendeu quando ele telefonou às sete daquela noite. A voz dele estava tensa e trêmula:

“Acho que não adianta me desculpar pelo que aconteceu esta manhã. Não sabia o que estava fazendo, embora isso não seja desculpa. Mas, se pudesse vê-la por uns minutos amanhã — não mais que alguns minutos — talvez lhe pudesse dizer o quanto lamento...”. “Estarei ocupada amanhã.” “Bem, sexta-feira então, ou qualquer outro dia.” “Desculpe, mas estarei ocupada a semana inteira.” “Não pretende me ver nunca mais?” “Senhor Ragland, não vejo por que continuar com isso. O que aconteceu hoje de manhã foi um pouco demais para mim. Lamento muito. Espero que esteja se sentindo melhor. Adeus.” Ela o tirou completamente do pensamento. Nunca poderia ter associado a má fama dele a tal espetáculo — para ela, um bêbado era alguém que bebia champanhe até altas horas e voltava para casa cantando. Aquele papelão ao meio-dia era outra coisa. Julia não queria mais saber. Enquanto isso, houve outros homens com quem ela almoçou no Ciro’s e dançou no Bois. Houve também uma recriminativa carta que Phil enviou da América. Gostou um pouco mais de Phil, porque ele provara ter razão a respeito daquele assunto. Passaram-se duas semanas e ela já teria esquecido Dick Ragland se não fosse por ouvir seu nome mencionado com desprezo em uma ou outra conversa. Era evidente que ele já fizera coisas como aquela anteriormente. Uma semana antes de embarcar, topou com Dick no escritório da White Star Line. Estava tão bonito quanto antes — ela mal podia acreditar. Tinha um cotovelo fincado sobre o balcão, o resto do corpo rígido e as luvas amarelas tão impecáveis quanto seus olhos claros e brilhantes. Sua forte personalidade afetara o funcionário, que o atendia com total reverência; as estenógrafas trocavam olhares sugestivos. Foi então que ele viu Julia; ela o cumprimentou em silêncio e, com uma rápida mudança de expressão, ele tirou o chapéu. Ficaram juntos diante do balcão, em opressivo silêncio, por alguns momentos. “Não é uma chatice tudo isto?”, ela perguntou. “Também acho”, ele respondeu. “Vai no Olympic?” “Vou.” “Pensei que tivesse mudado de navio.” “Claro que não”, disse ela friamente. “Pensei em mudar; aliás, vim aqui para isso.” “Isso é absurdo.” “Talvez detestasse me ver. Podia ficar enjoada quando nos cruzássemos no navio.” Ela sorriu. Ele tentou se aproveitar: “Melhorei um pouco desde a última vez que me viu.” “Prefiro não falar sobre isso.” “Está bem, então, mas você melhorou! Acho que nunca vi uma mulher tão bem vestida!” O que, obviamente, era falso, mas ela gostou do elogio. “Que tal”, disse ele, “tomarmos um café aqui perto, para nos recuperarmos desta provação?” Seria uma fraqueza da parte dela deixar-se submeter. Mas era como estar sob o encanto de uma cobra. “Não sei se tenho tempo.” Uma expressão terrivelmente tímida e vulnerável passou pelo rosto dele, repercutindo imediatamente no coração dela. “Está bem”, ouviu-se dizendo, chocada. Sentados a uma mesa de calçada à luz do sol, nada havia nele que lembrasse aquele dia horrível apenas duas semanas antes. O médico e o monstro. Estava gentil, encantador e divertido. E, como antes, fazia-a sentir-se tão atraente!

“Já parou de beber?”, ela perguntou. “Não antes do dia cinco.” “Ah!” “Nunca disse que pararia antes. Mas, nesse dia, vou parar.” Quando Julia se levantou para ir embora, balançou a cabeça negativamente quando ele sugeriu um novo encontro. “Nos veremos no navio. Depois que você completar vinte e oito anos.” “Está bem. Estou apenas sendo punido por algo horrível que devo ter feito à única garota pela qual me apaixonei na vida.” Ela o viu de passagem no primeiro dia a bordo, e seu coração não a deixou em paz, quando se deu conta de quanto o queria. Não importava seu passado, nem o que tivesse feito — o que não significava que o deixaria saber disso —, mas ele a mobilizava quimicamente mais do que qualquer outra pessoa que havia conhecido. Comparados a ele, todos os outros não tinham a mínima importância. Ele se tornou rapidamente conhecido no navio e ela ouviu dizer que haveria uma festa na noite dos seus vinte e oito anos. Julia não foi convidada; quando se encontravam, falavam-se cordialmente, nada mais. No dia seguinte à festa, ela o viu estirado numa cadeira do convés, pálido e exangue. Havia rugas ao redor de seus olhos, e sua mão tremia ao pegar a xícara de bouillon. Continuava lá no fim da tarde, visivelmente sofrendo. Ao passar por ele pela terceira vez, Julia não resistiu a falar com ele: “Começou a nova era?” Ele fez um frágil esforço para se levantar, mas ela dispensou-o do sacrifício e sentou-se na cadeira a seu lado. “Você parece cansado.” “Apenas um pouco nervoso. É o primeiro dia em cinco anos em que ainda não bebi nada.” “Daqui a pouco se sentirá melhor.” “Eu sei”, disse amargamente. “Não desista.” “Não vou desistir.” “Posso ajudá-lo de alguma forma? Quer um refrigerante?” “Não suporto refrigerantes”, respondeu, irritado. “Obrigado.” Julia levantou-se. “Sei que prefere ficar sozinho. As coisas lhe parecerão melhores amanhã.” “Não vá embora — se puder me tolerar.” Julia sentou-se de novo. “Cante alguma coisa. Sabe cantar?”, ele perguntou. “O que quer que eu cante?” “Qualquer coisa triste — um blues, por exemplo.” Ela cantou “This is how the story ends”, de Libby Holman, com uma voz grave e triste. “Lindo. Cante outra coisa. Ou cante isso de novo.” “Está bem. Se quiser, posso cantar para você a noite inteira.”

III. No segundo dia em Nova York, ele telefonou para ela. “Senti sua falta”, ele disse. “Sentiu a minha?” “Acho que sim”, ela respondeu com relutância.

“Muito?” “Lembrei muito de você. Sente-se melhor?” “Estou bem agora. Apenas um pouco nervoso, mas vou começar a trabalhar amanhã. Quando posso vê-la?” “Quando quiser.” “Esta noite então. Olhe... diga aquilo de novo.” “O quê?” “Que acha que sentiu a minha falta.” “Acho que senti”, disse Julia obedientemente. “Que sentiu a minha falta”, ele completou. “Acho que senti a sua falta...” “Vindo de você, parece música.” “Até logo, Dick.” “Até logo, Julia querida.” Ela ficou em Nova York dois meses em vez das duas semanas que planejara, porque ele não a deixava ir embora. Trocou a bebida pelo trabalho durante o dia, mas, depois do expediente, seu mundo era Julia. Às vezes ela sentia ciúmes de seu trabalho, quando ele telefonava dizendo que estava muito cansado para ir ao teatro. Sem beber, a vida noturna passara a significar pouco ou nada para ele — algo sem sentido ou interesse. Para Julia, que nunca bebia, a noite era o próprio estímulo — a música, os vestidos e o belo casal que eles faziam quando dançavam juntos. No começo eles se encontravam com Phil Hoffman de vez em quando, mas Julia achou que ele reagiu mal ao namoro e, com isso, pararam de procurá-lo. Alguns incidentes desagradáveis aconteceram. Uma antiga colega, Esther Cary, perguntou a Julia se ela conhecia a fama de Dick Ragland. Em vez de se irritar, Julia apresentou-a a Dick e adorou a facilidade com que os preconceitos de Esther desapareceram. Houve outros pequenos aborrecimentos, mas, felizmente, todas as arruaças de Dick tinham se limitado a Paris e, em Nova York, soavam distantes e exageradas. Os dois se amavam profundamente agora, e a lembrança daquela manhã desaparecia lentamente da memória de Julia. Mesmo assim, ela queria ter certeza. “Se as coisas continuarem correndo desse jeito pelos próximos seis meses, ficaremos noivos. E, dentro de outros seis meses, nos casaremos.” “É muito tempo”, ele resmungou. “Mas houve cinco anos antes disso”, respondeu Julia. “Confio em você do fundo do coração, mas algo me diz para esperar. Lembre-se, estou decidindo pelos meus filhos.” Cinco anos passados e perdidos, ele pensou. Em agosto, Julia foi à Califórnia para passar dois meses com sua família. Queria ver como Dick se sairia sozinho. Escreviam-se diariamente, e as cartas dele alternavam estados de euforia, depressão, desânimo e esperança. Estava indo bem no emprego. À medida que ia recuperando a prática, o tio passava a confiar nele para valer, mas nada o fazia esquecer sua Julia. Foi quando um certo tom de desespero começou a aflorar que ela resolveu antecipar em uma semana sua volta a Nova York. “Ah, que bom ter você de volta!”, ele exclamou, enquanto saíam abraçados da Grand Central Station. “Tem sido horrível. Pelo menos uma meia dúzia de vezes quase fiz uma loucura, mas então pensava em você. E você tão longe!” “Querido, você está pálido e cansado. Tem trabalhado demais.” “Não, é que a vida tem sido vazia sem você. Quando vou para a cama, minha cabeça não pára.

Não podemos nos casar já?” “Não sei. Vamos ver. Sua Julia chegou e nada mais importa.” Uma semana depois, a depressão de Dick passou. Quando o via triste, Julia tratava-o como criança, deitando a cabeça dele em seu peito; mas ela gostava mais quando ele se mostrava confiante e a fazia rir e sentir-se segura. Julia alugara um apartamento com outra moça e estava estudando biologia em Columbia. Quando chegou o outono, os dois passaram a ir juntos aos jogos de futebol e às comédias musicais, a caminhar na neve no Central Park e, várias vezes por semana, ficavam longas noites ao pé do fogo no apartamento dela. Mas o tempo se arrastava e ambos estavam impacientes. Pouco antes do Natal, uma visita já não muito familiar bateu à sua porta — Phil Hoffman. Era a primeira vez que Julia o via em muitos meses. Nova York, com seus muitos escaninhos independentes, dificulta os encontros até de amigos íntimos; no caso de relações estremecidas, esses encontros são ainda mais fáceis de evitar. Sentiam-se estranhos um para o outro. Desde que ele demonstrara todo o seu ceticismo a respeito de Dick, ela passara a encará-lo, automaticamente, como inimigo. Por outro lado, achou que Phil progredira; aparadas algumas arestas de sua personalidade, tornara-se um promissor advogado e demonstrava uma crescente confiança em sua profissão. “Quer dizer que vai se casar com Dick?”, ele perguntou. “Quando?” “Em breve. Quando mamãe vier a Nova York.” Ele sacudiu a cabeça enfaticamente. “Julia, não se case com Dick. Escute, não se trata de ciúme — sei que perdi essa parada —, mas parece loucura uma garota como você dar um mergulho cego num rio cheio de pedras. Acha que as pessoas mudam tanto? Algumas vezes costumam dar uma parada ou então se viciarem em outra coisa, mas não conheço ninguém que tenha se curado.” “Dick está curado.” “Talvez. Mas a dúvida sempre continua. Se ele fosse feio e você gostasse dele, eu diria vá em frente. Posso estar errado, mas é tão óbvio que o fascinante nele para você é aquele rosto e aquelas boas maneiras.” “Você não o conhece”, Julia respondeu protetoramente. “Ele é diferente comigo. Você não sabe como ele é gentil e responsável. Você não está sendo mesquinho?” “Hummm.” Phil pensou por um momento. “Gostaria de revê-la daqui a alguns dias. Ou talvez seja melhor eu falar com Dick.” “Deixe Dick em paz”, ela gritou. “Ele já tem muito com que se preocupar sem ninguém o aborrecendo. Se você fosse amigo dele, tentaria ajudá-lo, em vez de vir falar comigo pelas suas costas.” “Sou seu amigo em primeiro lugar.” “Dick e eu somos uma única pessoa agora.” Mas, três dias depois, Dick veio vê-la numa hora em que, normalmente, deveria estar no escritório. “Tive de vir aqui”, disse. “Phil Hoffman está ameaçando me denunciar.” Ela pensou assustada: Será que ele voltou a beber? “É a respeito daquela moça que você me apresentou no verão, Esther Cary, lembra? Você me pediu que eu fosse amável com ela.” O coração de Julia passou a bater devagar. “Quando você foi para a Califórnia, comecei a me sentir sozinho e a procurei. Ela gostou de mim e, durante algum tempo, passamos a sair juntos. Quando você voltou, rompi com ela. Foi um pouco difícil, eu não havia notado que ela estava tão envolvida.”

“Sei.” A voz de Julia soava distante. “Tente compreender. Aquelas noites horríveis, sozinho. Acho que, se não fosse por Esther, eu teria voltado a beber. Claro que eu nunca a amei — a única pessoa que amo é você —, mas precisava de alguém que gostasse de mim.” Tentou enlaçá-la, mas sentiu seu corpo gelado e recuou. “Quer dizer que qualquer mulher teria servido”, disse Julia. “Não importava qual.” “Não!”, ele gritou. “Passei todo aquele tempo fora apenas para deixá-lo caminhar com seus próprios pés e recuperar o respeito próprio.” “Só amo você, Julia.” “Mas qualquer mulher podia ajudá-lo. Não precisa realmente de mim, não é?” O rosto de Dick revelava aquele jeito vulnerável que Julia já tinha visto tantas vezes antes; ela se sentou no braço da cadeira dele e passou a mão por seu rosto. “O que você tem a me oferecer?”, ela perguntou. “Pensei que tivesse acumulado força ao derrotar sua fraqueza. O que tem a me oferecer agora?” “Tudo que tenho.” “Nada. Só a sua beleza — e o maître daquele restaurante de ontem também tinha isso.” Conversaram durante dois dias e nada decidiram. Às vezes ela o puxava para si e procurava aqueles lábios que amava tanto, mas seus braços pareciam fechar-se sobre palha. “Vou sumir por uns tempos para você pensar melhor”, ele disse, quase desesperado. “Não consigo imaginar a vida sem você, mas não creio que possa se casar com um homem em quem não confia ou não acredita. Meu tio pediu que eu vá a Londres tratar de um negócio...” Na noite de sua partida, a despedida no navio foi triste. O que a consolava era saber que não era uma imagem de força que a estava deixando; ela continuaria tão forte quanto antes sem ele. Mas, quando as luzes do píer caíram sobre o rosto de Dick, uma terrível sensação de vazio abateu-se sobre ela, como que querendo dizer: “Não importa, querido, vamos tentar de novo”. Mas tentar o quê? Era humano arriscar entre ganhar e perder, mas arriscar naquele jogo desesperado no qual perder significaria o desastre... “Ah, Dick, não se deixe vencer. Volte para mim!” “Até breve, querida.” Quando ela o viu pela última vez, o fósforo com que ele acendeu um cigarro iluminou o seu perfil como o de um camafeu.

IV. Phil Hoffman era quem deveria estar a seu lado no fim, como no começo. Ele lhe deu a notícia, tão cuidadosamente quanto possível. Chegou ao apartamento dela às oito e meia, jogou fora o jornal que encontrou à sua porta e contou-lhe: Dick Ragland desaparecera em alto-mar. Depois que Julia passou pelo primeiro e violento espasmo de dor, ele se tornou propositadamente um pouco cruel. “Dick se conhecia. Sua força de vontade acabara; não queria mais viver. Olhe, Julia, apenas para convencê-la de que não tem do que se culpar, vou lhe dizer uma coisa: há quatro meses, Dick quase não aparecia no escritório — desde que você foi para a Califórnia. Só não foi despedido por causa do tio; o tal negócio do qual ele fora tratar em Londres não tinha a menor importância. Quando seu entusiasmo inicial acabou, ele entregou os pontos.” Ela o olhou agressivamente: “Mas ele não voltou a beber, voltou? Estava bebendo?”.

Phil hesitou por uma fração de segundo: “Não. Não voltou a beber. Manteve a promessa — pelo menos isso”. “Então foi assim”, ela disse. “Manteve a promessa e morreu para cumpri-la.” Phil ficou em silêncio, sentindo-se mal. “Ele fez o que disse que iria fazer, mesmo que partisse o seu coração”, ela continuou, chorando. “Como a vida é cruel — tão cruel que não perdoa ninguém. Ele era tão corajoso!” Phil ficou satisfeito por ter se livrado do jornal que falava da farra de Dick no bar do navio, na noite de sua morte — uma das muitas farras de que participara nos últimos meses. Sentia-se aliviado por aquilo ter acabado, porque a fraqueza de Dick ameaçava a mulher que ele, Phil, amava. Lamentava pelo amigo, mesmo compreendendo que seria inevitável para Dick canalizar seu desajuste na vida para uma tragédia ou outra, mas sentia-se sábio por tê-la deixado com o sonho de que escapara ao naufrágio. Houve um momento difícil, um ano mais tarde, pouco antes de se casarem, quando ela disse: “Você compreende o sentimento que tenho e sempre terei por Dick, não é, Phil? Não apenas porque ele era tão bonito, mas também porque eu acreditava nele — e, de certa forma, estava certa. Era desses que quebram, mas não se curvam; não tinha salvação, mas era uma boa pessoa. Meu coração me disse isso quando o vi pela primeira vez.” Phil franziu o cenho, mas não falou nada. Talvez houvesse mais verdade naquilo do que ambos pudessem imaginar. Melhor deixar que tudo ficasse para trás, nas profundezas do mar ou do coração de Julia. (1931)

Um belo casal

Às quatro horas de uma tarde de novembro de 1902, Teddy van Beck desceu de um cabriolé defronte a uma mansão em Murray Hill. Era um jovem alto, de ombros largos, com um nariz adunco e olhos suaves e castanhos num rosto sensível. Em suas veias corria o sangue dos governadores coloniais e dos grandes ladrões de gado de outros tempos, mas, nele, a síntese produzira algo diferente e novo, pelo menos naquela hora e lugar. Sua prima, Helen van Beck, esperava-o na sala. Tinha os olhos vermelhos de chorar, mas era jovem bastante para que aquilo não lhe diminuísse a beleza — uma beleza que parecia conter o segredo de seu próprio crescimento, como se nunca fosse parar de aumentar. Tinha dezenove anos e, ao contrário do que tudo fazia indicar, era extremamente feliz. Teddy abraçou-a e tentou beijá-la na face, mas só acertou sua orelha porque ela o evitou. Seu entusiasmo esfriou. “Não parece feliz em me ver.” Helen tinha uma premonição de que esta seria uma das cenas mais memoráveis de sua vida e, com inconsciente crueldade, parecia disposta a extrair dela toda a intensidade dramática. Sentou-se num canto do sofá, olhando para o outro lado. “Sente-se”, ordenou, com um jeito quase imperial, mas quando Teddy escarrapachou-se sobre o banquinho do piano, mudou de idéia: “Não, aí não. Não posso falar com você se ficar girando nesse banquinho”. “Sente-se no meu colo”, ele sugeriu. “Não.” Dedilhando rapidamente o piano, ele disse: “Posso ouvi-la melhor daqui”. Helen desistiu de começar a conversa do jeito triste e tranqüilo que pretendera. “Isso é um assunto sério, Teddy. Pensei muito antes de tomar esta decisão. Tenho de lhe pedir... de lhe pedir que me libere do nosso compromisso.” “O quê?” O rosto de Teddy empalideceu de repente. “Tenho que lhe contar desde o começo. Andei concluindo ultimamente que não temos nada em comum. Você está entregue à sua música e eu não sei tocar nem gramofone.” Ela parecia sofrer; seus dentinhos atracavam-se ao lábio inferior. “E daí?”, ele perguntou, quase aliviado. “Minha música é suficiente para nós dois. E desde quando você teria de entender de bancos para se casar com um banqueiro?” “Isto é diferente”, Helen continuou. “O que faríamos juntos? Você nem mesmo gosta de andar a cavalo, já me disse que tem medo.” “Claro que tenho medo. Eles vivem tentando me morder e...” “É tão...” “Nunca conheci um cavalo que não tentasse me morder! Primeiro, era quando eu ia selá-los.

Depois, quando desisti disso, passaram a tentar alcançar a minha barriga da perna!” Os olhos do pai de Helen, que lhe tinha dado um potro aos três anos, brilhavam frios e duros nos dela. “Você nem sequer gosta das pessoas de quem eu gosto, sem falar nos cavalos!”, ela exclamou. “Mas posso tolerá-los. Não tenho feito outra coisa na vida.” “Pois essa me parece uma maneira bem idiota de começar um casamento. Não vejo condições para um razoável... um razoável...” “Passeio a cavalo?” “Não, nada disso.” Helen hesitou, mas completou, num tom não muito convincente: “Talvez eu não seja inteligente o bastante para você”. “Deixe de asneira!” Ele exigiu a verdade: “Quem é o outro?”. Ela precisou de um momento para se recompor. Sempre se ressentira do jeito de Teddy tratar as mulheres, com menos cerimônia do que o habitual na época. “Realmente há alguém”, ela admitiu. “Alguém que eu já conhecia ligeiramente, mas há um mês, quando estive em Southampton, acabei sendo... arremessada a ele.” “Arremessada... de um cavalo?” “Por favor, Teddy”, ela protestou, séria. “Eu estava ficando cada vez mais infeliz a respeito de mim e de você, e sempre que eu estava com ele, tudo parecia em ordem.” Uma ponta de exaltação, que ela não conseguiu esconder, surgiu em sua voz. Levantou-se e atravessou a sala, com suas pernas longas e finas silhuetadas através do vestido. “Andamos a cavalo, nadamos e jogamos tênis juntos — enfim, fizemos tudo o que gostamos de fazer.” Ele procurou com o olhar o vazio que ela acabara de criar. “E foi só isso que a atraiu para esse sujeito?” “Não, foi mais que isso. Ele mexeu comigo como ninguém antes.” Ela riu. “Talvez tudo tenha começado no dia em que voltamos de um passeio a cavalo e alguém comentou que formávamos um belo casal.” “Já o beijou?” Ela hesitou. “Sim, uma vez.” Ele se levantou do banquinho do piano. “Estou me sentindo como se estivesse com uma bala de canhão dentro do estômago”, exclamou. O mordomo anunciou o sr. Stuart Oldhorne. “É o tal?”, Teddy perguntou, tenso. Ela ficou subitamente confusa e aborrecida. “Ele só deveria chegar mais tarde. Quer sair pelos fundos para não encontrá-lo?” Mas Stuart Oldhorne, confiante com sua nova sensação de propriedade, havia seguido o mordomo. Os dois homens se entreolharam com uma curiosa incapacidade de expressão, porque é impossível haver comunicação entre dois homens numa situação como aquela. A relação é indireta e consiste no quanto cada qual possuiu ou vai possuir da mulher em questão, de modo que suas emoções passam através dela divididas, como em uma ligação telefônica ruim. Stuart Oldhorne sentou-se ao lado de Helen, mas seus olhos educados não deixaram Teddy por um segundo. Ele tinha a mesma exuberância física de Helen. Fora um dos melhores atletas de Yale, campeão num torneio em Cuba e agora era o melhor cavaleiro de Long Island. As mulheres o adoravam, não apenas por seus pontos nas competições, mas pela sua doçura de temperamento. “Você passou tanto tempo na Europa que raramente o vi por aqui”, disse ele a Teddy. Teddy não respondeu e Stuart Oldhorne virou-se para Helen: “Acho que cheguei muito cedo. Não fazia idéia...”.

“Chegou na hora certa”, disse Teddy um tanto bruscamente. “Fiquei para lhes dar meus parabéns sob a forma de música.” Para alarme de Helen, Teddy voltou-se para o teclado e correu os dedos sobre ele. Então começou a tocar. O que ele estava tocando, nem Helen nem Stuart sabiam, mas Teddy fazia questão de especificar. Forneceu um breve resumo da história da música, começando com alguns acordes de O Messias e terminando com “La plus que lente”, de Debussy, que lhe evocava um momento importante — o dia da morte de seu irmão. Em seguida, depois de uma pequena pausa, começou a tocar mais pensativamente, e os amantes no sofá perceberam que estavam sozinhos — que ele os deixara de lado e já não se comunicava com eles — e, com isso, o constrangimento de Helen diminuiu. Mas a mobilidade, o caráter fugidio da música irritaram-na, deram-lhe uma sensação de aborrecimento. Se Teddy estivesse tocando as canções do momento, ela teria compreendido e até se emocionado, mas ele tentava mergulhá-la num mundo de emoções maduras, nas quais sua natureza não podia nem queria penetrar. Ela sacudiu ligeiramente a cabeça e perguntou a Stuart: “Comprou aquele cavalo?”. “Sim, e por uma ninharia... Sabe que eu a amo?” “Sei”, ela murmurou. O piano parou de repente. Teddy fechou-o e girou o banquinho em direção a eles: “Gostaram dos meus parabéns?”. “Muito”, disseram os dois juntos. “Estava realmente muito bom”, ele admitiu. “A última peça era baseada num pequeno contraponto. Sabem, a idéia me surgiu do fato de vocês formarem um belo casal.” Riu meio sem jeito e Helen acompanhou-o até a porta. “Adeus, Teddy”, ela disse. “Vamos continuar bons amigos, não vamos?” “Não vamos?”, ele repetiu. Piscou-lhe sem sorrir e, depois de soltar um som de desespero com a boca, saiu rapidamente. Por alguns instantes, Helen tentou em vão avaliar a situação, perguntando-se como aquilo tinha acontecido e só aos poucos se dando conta de que nunca detivera o controle da situação. Imaginava vagamente que Teddy era mais aberto do que ela, mas essa mesma abertura a assustava e, com alívio e emoção, voltou correndo para a sala e para o abrigo dos braços do seu amor. O noivado durou todo o verão. Stuart visitou a família de Helen em Tuxedo, e Helen visitou a família dele em Wheatley Hills. Antes do café-da-manhã, as patas de seus cavalos trilhavam o orvalho das clareiras ou cobriam-nas de pó nas estradas secas. Compraram uma bicicleta de dois selins e pedalaram por toda a Long Island — o que a sra. Cassius Ruthven considerou “muito inconveniente” para um casal ainda noivo. A inclinação de Helen por esportes era avançada para a sua geração. Cavalgava quase tão bem quanto Stuart e fazia-lhe frente no tênis. Ele ensinou-lhe um pouco de pólo, e ambos eram loucos por golfe, um jogo ainda considerado meio ridículo. Gostavam de sentir-se em forma. Viam-se como uma dupla e todos achavam que eles “combinavam” muito bem. Podia-se sentir também uma ponta de inveja benigna no rastro de seu glamour. “É uma pena que você tenha de ir todos os dias ao escritório”, ela disse um dia. “Seria ótimo se houvesse alguma coisa que pudéssemos fazer juntos — sei lá, algo assim como domar leões...” “Sempre achei que poderia ganhar a vida criando e treinando cavalos”, disse Stuart. “Eu também acho, querido.” Em agosto ele importou um automóvel Thomas e foi de carro até Chicago com três amigos. Foi um

evento de interesse nacional e suas fotos saíram em todos os jornais. Helen também queria ir, mas não parecia “correto”, donde chegaram a um acordo: dariam um passeio com o carro pela Quinta Avenida numa ensolarada manhã de setembro, diante de toda a sociedade. Isso os marcou ainda mais como um par. “Imagine!”, exclamou Helen. “Teddy me mandou um presente estranhíssimo: uma estante para troféus.” Stuart riu: “Deve estar querendo dizer que não fazemos outra coisa a não ser ganhar troféus”. “Pareceu-me mais uma crítica”, Helen ruminou. “Foi convidado para tudo, mas nem respondeu aos convites. Você se importaria se parássemos no apartamento dele? Há meses não o vejo e não gosto de deixar nada desagradável para trás.” Mas ele se recusou a subir com ela. “Vou ficar aqui, conversando com os curiosos que me perguntarem sobre o carro.” A porta foi aberta por uma mulher de avental, e Helen ouviu o som do piano de Teddy vindo da sala ao lado. A mulher relutou um pouco em deixá-la entrar. “Ele disse que ninguém o interrompesse, mas acho que sendo a prima dele...” Teddy a recebeu bem, naturalmente surpreso e um pouco aborrecido, mas logo recobrou a naturalidade. “Prometo que não vou me casar com você”, assegurou-lhe. “Já lhe dei uma chance.” “Está bem”, ela riu. “Como vai?” Jogou-lhe uma almofada. “Está mais linda do que nunca. Continua feliz com aquele... aquele centauro? É verdade que ele lhe dá umas chicotadas de vez em quando?” Olhou-a mais de perto. “Você parece um pouco mais burrinha do que quando a vi pela última vez. Eu costumava excitá-la tanto que você quase conseguia parecer inteligente.” “Estou feliz, Teddy. Espero que você também esteja.” “Claro, estou feliz. Estou trabalhando. Tenho uma coisinha programada no Carnegie Hall em setembro.” Seus olhos tornaram-se maliciosos. “O que achou da minha namorada?” “Sua namorada?” “A que abriu a porta para você.” “Ah, pensei que fosse a empregada.” Corou e calou-se. Ele riu. “Ei, Betty!”, chamou. “Você foi confundida com a empregada!” “É nisso que dá fazer a limpeza da casa aos domingos”, respondeu uma voz da outra sala. Teddy abaixou o tom de voz: “Gostou dela?”, perguntou. “Teddy!” Ela se remexeu no sofá, sem saber se devia sair dali imediatamente. “O que acharia se eu me casasse com ela?”, perguntou em tom de confidência. “Teddy!” Estava abismada; tinha-lhe bastado apenas um olhar para ver que ela não passava de... “Está brincando. É muito mais velha que você... Você não seria tolo de jogar o seu futuro fora desse jeito.” Ele não respondeu. “Ela gosta de música?”, Helen perguntou. “Ajuda-o no seu trabalho?” “Não conhece nem uma nota. Igualzinha a você. Mas eu tenho talento musical por vinte esposas.” Imaginando-se como uma delas, Helen sentou-se rígida: “Tudo o que posso lhe dizer é o que sua mãe acharia disso... e também as pessoas que gostam de você... Adeus, Teddy.” Levou-a até a porta e desceu com ela as escadas. “Na realidade, já estamos casados há dois meses”, ele disse, despreocupado. “Ela trabalhava

como garçonete num lugar que eu freqüentava.” Helen queria sentir-se furiosa ou indiferente, mas lágrimas de orgulho ferido vieram a seus olhos. “Você a ama?“ “Gosto dela; é uma boa pessoa e me trata bem. O amor é outra coisa. A mulher que eu amei foi você, Helen, mas isso está morto no momento. Talvez se reflita em minha música. Algum dia, provavelmente, amarei outras mulheres — ou talvez nunca haja outra como você. Adeus, Helen.” A declaração a tocou. “Espero que você seja feliz, Teddy. Traga sua esposa ao casamento.” Ele inclinou o corpo em sinal de agradecimento, mas sem se comprometer. Quando Helen foi embora, voltou pensativo ao apartamento. “Aquela era a prima pela qual eu estava apaixonado”, disse. “Estava?” O rosto de Betty, de uma placidez irlandesa, iluminou-se de interesse. “É bonita.” “Fiz bem em trocá-la por uma bela camponesa como você.” “Sempre pensando em si mesmo, não é, Teddy van Beck?” Ele riu. “Claro. Mas você me ama assim mesmo, não ama?” “Essa é uma boa pergunta.” “Está bem”, ele continuou. “Vou me lembrar disso quando você implorar por um beijo. Se meu avô soubesse que me casei com uma lavadora de privadas, ele se reviraria no túmulo. Agora dê o fora e deixe-me terminar meu trabalho.” Sentou-se ao piano, com um lápis atrás da orelha. O rosto já havia readquirido a determinação e voltara a se recompor, mas seus olhos só aos poucos foram ficando mais intensos, quase vítreos, como se atentos aos ouvidos e ao que os dedos tocavam. Em poucos instantes já não havia nele a menor indicação de que algo viera perturbar a tranqüilidade da sua manhã de domingo.

II. A sra. Cassius Ruthven e uma amiga, com os véus jogados sobre o chapéu, estavam sentadas no automóvel ao lado da pista: “Uma moça jogando pólo de calção!”, suspirou a sra. Ruthven. “A filha de Amy van Beck! Quando Helen organizou as amazonas, pensei que iria se contentar com as saias de montaria. Mas seu marido, aparentemente, não se incomoda. Olhe para ele, todo apaixonado. Claro, os dois sempre gostaram das mesmas coisas.” “Um casal de puros-sangues”, disse a outra mulher, complacente, insinuando com isso que eles eram iguais a ela própria. “É difícil olhar para eles e imaginar que alguma coisa ali já tenha dado errado.” Referia-se aos equívocos de Stuart na crise da Bolsa em 1907. Seu pai o tinha deixado em uma situação bastante precária e Stuart cometeu um erro de avaliação. Sua honra não foi questionada e os amigos permaneceram lealmente a seu lado, mas sua carreira em Wall Street acabou e sua pequena fortuna desapareceu. Em meio a um grupo de homens com quem jogaria pólo dali a pouco, Stuart tomava nota mentalmente de detalhes que comentaria com Helen depois do jogo — ela às vezes corria pouco e seus cavalos costumavam refugar. Era o preço que se pagava por usar cavalos alugados, mas, mesmo assim, era a melhor jogadora do clube e, no último minuto, fez uma defesa que arrancou aplausos. “Grande garota! Grande garota!” Stuart foi investido da desagradável tarefa de tirar as garotas do campo. Já haviam começado uma hora atrasadas e agora uma equipe de Nova Jersey esperava para jogar; pressentiu alguns problemas quando juntou-se a Helen e caminhou com ela até os estábulos. Estava linda, com as faces rosadas,

os olhos brilhantes e triunfantes, e o fôlego curto e excitado. Ele a princípio contemporizou: “Você esteve ótima naquela última jogada”, disse. “Obrigada. Quase quebrei o braço. Mas isso quer dizer que não estive ótima o tempo todo?” “Você foi a melhor de todas.” “Eu sei.” Esperou que ela desmontasse e entregou o animal a um cavalariço. “Helen, acho que arranjei um emprego.” “O que é?” “Mas ainda preciso pensar bem. Gus Myers quer que eu dirija seu haras. Oito mil dólares por ano.” Helen pensou um pouco. “É um belo salário. E aposto que você faria um bom trabalho com os cavalos dele.” “O importante é o salário. Assim eu teria tanto dinheiro quanto você e as coisas seriam mais fáceis.” “Você teria tanto quanto eu”, Helen repetiu. Quase lamentava que ele não iria precisar mais da ajuda dela. “Mas Gus Myers é muito esperto. Deve estar querendo outras coisas também.” “Talvez esteja”, respondeu Stuart, “e se eu puder ajudá-lo a subir socialmente, não vejo inconveniente. Aliás, convidou-me para um jantar só de homens esta noite.” “Está bem, então”, Helen disse com ar ausente. Ainda hesitando em contar-lhe que ela teria de abandonar o campo, Stuart notou que o olhar dela observava um carro que acabara de entrar e estacionava ali perto. “Olhe o seu velho amigo Teddy”, ele observou secamente. “Ou, devo dizer, seu novo amigo Teddy. Ele parece estar com um súbito interesse por pólo. Vai ver ele acha que os cavalos não estão mordendo neste verão.” “Seu humor não está muito bom hoje”, protestou Helen. “Você sabe que basta dizer uma palavra que eu nunca mais falo com ele. A única coisa que me importa é eu e você continuarmos juntos.” “Eu sei”, ele admitiu a contragosto. “Fiquei sabendo que todas as mulheres estão se apaixonando por Teddy, agora que está ficando famoso. Mas, se ele se meter a engraçadinho com você, quebro-lhe o piano na cabeça... Ah, outra coisa”, ele disse, observando os homens já montados, “a respeito de sua última partida...” Explicou-lhe a situação da melhor maneira que pôde. Mas não esperava que ela reagisse tão mal. “Mas não é justo. Meu nome está há três dias no boletim do clube!” “Você começou uma hora atrasada.” “E sabe por quê?”, ela quase gritou. “Porque seu amigo Joe Morgan insistiu para que Celie montasse mais um pouco.” “Não posso fazer nada.” “Como não pode? Já não foi diretor deste clube? Como podem querer que as mulheres joguem bem se são obrigadas a parar quando os homens pedem o campo? Eles só querem que as mulheres cheguem à noitinha e lhes digam como eles jogaram bem!” Ainda furiosa e culpando Stuart, Helen atravessou o campo e foi em direção ao carro de Teddy. Ele saiu e cumprimentou-a com efusiva intensidade: “Cheguei a ponto de não comer nem dormir, só pensando em você!” Havia algo fascinante nele que ela nunca notara antes; mas talvez fossem as histórias de seus romances recentes que começassem a torná-lo tão atraente. “Bem, não pense em mim do jeito que estou agora”, ela riu. “Minha pele está ficando cada dia

mais enrugada e meus músculos estão parecendo os de um homem. As pessoas agora me chamam de bonita, em vez de linda. Além disso, estou de péssimo humor. As mulheres não têm a mínima vez neste clube.” Stuart jogou como um possesso naquela tarde. Em menos de cinco minutos deu-se conta de que o carro de Teddy já não estava ali. Depois do jogo, galopou até a casa e seu humor não melhorou quando a criada entregou-lhe este bilhete: QUERIDO: Como seus amigos me impediram de continuar jogando, eu não iria ficar por lá me lamentando; assim, pedi a Teddy que me levasse para casa. E, como você irá a um jantar exclusivo esta noite, convidei-o a me levar ao teatro em Nova York. Se eu não voltar no último trem, passarei a noite na casa de mamãe. HELEN Stuart subiu a seu quarto e se vestiu. Não tinha defesa contra as garras pouco familiares do ciúme, que agora começavam uma longa dissecção de suas entranhas. Helen costumava ir a festas e jantares com outros homens, mas aquilo era diferente. Sentia por Teddy o desprezo que os atletas sentem pelos artistas, mas os últimos seis meses haviam ferido seu orgulho. Percebeu a possibilidade de que Helen poderia estar seriamente interessada em alguém. Ficou de mau humor durante todo o jantar de Gus Myers, aborrecido por ele ter começado a falar tão ostensivamente a respeito do acordo comercial que tinham fechado. Quando finalmente se levantaram da mesa, decidiu que havia mudado de idéia e chamou Myers em particular. “Olhe, pensando melhor naquele assunto...” Seu anfitrião olhou-o alarmado. “Não vai querer desistir, meu amigo...” “Vamos desfazer o trato.” “Posso saber por quê? Ou não tenho esse direito?” Stuart refletiu. “Está bem, vou lhe dizer. Quando você fez aquele pequeno discurso à mesa, tentou dar a impressão de que havia me comprado e que eu agora era apenas um empregado de seu escritório. Acontece que, nos círculos esportivos, as coisas não são assim. Elas são... bem, são mais democráticas. Fui criado junto com todos esses amigos que estão aqui, e eles também não gostaram do que ouviram.” “Compreendo”, Myers ponderou. Subitamente deu um tapinha nas costas de Stuart e disse animado: “Esse é exatamente o tipo de argumento que gosto de ouvir; me ajuda a entender melhor as coisas. A partir de agora, não falarei de você como se estivesse em minha... como se tivéssemos feito um arranjo comercial. Está bem assim?” Afinal de contas, eram oito mil dólares. “Está bem, então”, concordou Stuart. “Mas terá de me dar licença agora. Vou pegar um trem até a cidade.” “Porei um automóvel à sua disposição.” Às dez horas ele tocou a campainha do apartamento de Teddy na rua 48. “Estou procurando pelo senhor Van Beck”, disse à mulher que atendeu a porta. “Sei que ele foi ao teatro, mas será que poderia me dizer...” De repente deu-se conta de quem era a mulher. “Meu nome é Stuart Oldhorne. Sou marido da prima do senhor Van Beck.” “Ah, entre”, disse Betty cordialmente. “Sei tudo a seu respeito.” Ela devia ter pouco mais de quarenta anos e não chegava a ser bonita, mas parecia cheia de vitalidade. Sentaram-se na sala. “Está procurando Teddy?”

“Ele está com minha esposa e gostaria de me juntar a eles depois do teatro. Sabe onde posso encontrá-los?” “Ah, então Teddy está com sua esposa...” Havia um tom de secreto prazer em sua voz. “Bem, ele não me disse exatamente onde estaria esta noite.” “Então não sabe?” “Não. Não faço a menor idéia”, admitiu com um sorriso. “Lamento.” Ele se levantou e Betty viu a angústia mal disfarçada em seu rosto. De repente, começou a sentir pena dele. “Ouvi-o dizer qualquer coisa a respeito de ir ao teatro. Sente-se de novo, vou tentar me lembrar. Ele sai muito à noite e uma peça por semana já chega para mim, por isso costumo embaralhar as coisas na cabeça. Sua mulher não lhe disse onde poderiam se encontrar?” “Não. Só decidi vir aqui depois que eles já tinham saído. Ela disse que voltaria de trem depois do teatro ou que passaria a noite com sua mãe.” “Exatamente”, exclamou Betty triunfante, como se tivesse acabado de se lembrar. “Foi o que ele disse quando telefonou — que poria uma pessoa no trem depois do teatro e que voltaria para casa em seguida. Estamos com uma criança doente e isso me confundiu um pouco.” “Desculpe tê-la incomodado nessas condições.” “Não é incômodo. Sente-se. Passa pouco das dez.” Sentindo-se melhor, Stuart relaxou e aceitou um charuto. “Se eu tentasse acompanhar Teddy para todo lado, já estaria de cabelos brancos”, brincou Betty. “Claro, vou sempre a seus concertos, mas durmo no meio — ele não pode saber disso. Desde que não beba muito e se lembre onde mora, não me incomodo com suas vagabundagens...” Ao ver o rosto de Stuart ficar mais sério, mudou de tom: “Afinal, ele é um excelente marido e somos felizes, sem que um interfira na vida do outro. Como ele conseguiria trabalhar ao lado do berçário, com as crianças berrando? E como eu poderia ir com ele à casa da senhora Ruthven, com toda aquela gente falando de arte e de sociedade?” Uma frase de Helen veio à cabeça de Stuart: “Sempre juntos — gosto de fazer tudo com você”. “Tem filhos, não tem, senhor Oldhorne?” “Sim. Meu garoto já tem idade suficiente para montar.” “Ah, claro; vocês dois gostam de cavalos.” “Minha esposa diz que assim que as perninhas das crianças ficam compridas que chegue para alcançar os estribos, elas voltam a ficar interessantes.” Mas aquilo não soou bem nem para o próprio Stuart, e ele tentou se corrigir: “Quero dizer, ela sempre se interessou pelas crianças, mas nunca se deixou monopolizar por elas ou permitiu que ficassem entre nós. Sempre acreditamos que o casamento deve se apoiar no companheirismo, na existência de interesses comuns. Imagino que a senhora goste de música e ajude seu marido.” Betty riu. “Gostaria que Teddy ouvisse isso. Não sei nem assobiar.” “Não?” Ele ficou confuso. “Não sei por que, tive a impressão de que a senhora também conhecia música.” “Acha que, se não fosse assim, ele não teria se casado comigo?” “Absolutamente, não foi o que eu quis dizer.” Alguns minutos depois, despediu-se com a impressão de que gostara dela. Quando ele saiu, o rosto de Betty foi mudando lentamente de expressão, passando à pura exasperação. Foi ao telefone e ligou para o estúdio do marido:

“Você está aí, Teddy? Escute com atenção: sei que sua prima está com você e quero falar com ela... Não, não minta. Ponha-a ao telefone. O marido dela esteve aqui e, se não me deixar falar com ela, a coisa vai ficar séria.” Ouviu um diálogo ininteligível e, depois, a voz de Helen: “Alô.” “Boa noite, senhora Oldhorne. Seu marido esteve aqui à sua procura e de Teddy. Eu lhe disse que não sabia a que peça tinham ido, portanto é melhor que pensem numa. Disse-lhe também que Teddy a levaria à estação depois do teatro.” “Ah, muito obrigada. Nós...” “Portanto, acho melhor que vá encontrar seu marido ou poderá haver problemas, se é que conheço bem os homens. E... ah, sim, diga a Teddy que, se for voltar muito tarde, que tenha cuidado para não acordar Josie e para não tocar piano quando chegar.” Betty ouviu quando Teddy chegou às onze horas e foi até a sala onde ele estava. Ele a cumprimentou com ar ausente; havia um traço de sofrimento em seu rosto e seus olhos pareciam mais claros e distantes. “Você se acha um grande músico, Teddy van Beck”, disse ela, “mas parece muito mais interessado em mulheres.” “Não se meta, Betty.” “Eu não me meto, mas quando os maridos começam a vir aqui, a coisa muda de figura.” “Isso foi diferente, Betty. É uma coisa já bem antiga.” “A mim me parece bem recente.” “Não faça juízo errado de Helen. É uma boa moça.” “Apesar de você, imagino.” Ele afundou a cabeça entre as mãos. “Tentei esquecê-la. Evitei-a durante seis anos. Mas, quando a reencontrei no mês passado, tudo voltou à minha cabeça. Tente compreender, Bet. Você é minha melhor amiga. É a única pessoa que me amou.” “Quando você é bom, eu o amo”, ela disse. “Não se preocupe. Já acabou. Ela ama o marido dela. Veio a Nova York comigo só porque estava com raiva dele. Ela me acompanha à distância, como antigamente, e... seja como for, não vamos nos ver mais. Vá dormir, Bet. Quero tocar um pouco.” Dirigiu-se para o piano, mas ela o deteve. “Não pode tocar piano esta noite.” “Ah, me esqueci de Josie”, disse arrependido. “Bem, então vou tomar uma cerveja e ir para a cama.” Aproximou-se dela e abraçou-a. “Querida Bet, nada poderia interferir em nossa vida.” “Você é mau, Teddy. Eu nunca seria tão má assim com você.” “Como sabe, Bet? Como sabe o que poderia ou não fazer?” Acariciou seus cabelos, dando-se conta, pela milésima vez, que ela não tinha nem um pouco da magia do mundo, mas que ele não poderia passar seis horas seguidas sem ela. “Querida Bet”, ele murmurou, “Bet querida.”

III. Os Oldhorne tornaram-se como que visitantes profissionais. Nos últimos quatro anos, desde que Stuart libertara-se de sua servidão a Gus Myers, tinham começado a procurar as pessoas. As crianças

passavam o inverno com a avó Van Beck e freqüentavam a escola em Nova York. Stuart e Helen visitavam amigos em Asheville, Aiken e Palm Beach e, no verão, costumavam ocupar um pequeno sítio na propriedade de alguém em Long Island. “Meus caros, o sítio fica sempre vazio. Nem pensem em pagar aluguel. Estão nos fazendo um favor morando nele durante o verão.” E geralmente estavam mesmo. Dedicavam-se com afinco àquele constante entusiasmo e simpatia que tornam um hóspede desejável, e isso tornou-se quase a profissão deles. Movendo-se num mundo que ficava cada vez mais rico com a guerra na Europa, Stuart, no entanto, parecia perdido. Brilhante golfista amador, aceitou um emprego como profissional num clube que seu pai ajudara a fundar. Sentia-se inquieto e infeliz. Naquele fim de semana, visitavam um de seus ex-alunos. Em conseqüência de uma confusa partida de duplas, os Oldhorne subiram para se vestir com a desagradável sensação de muitos meses insatisfatórios acumulados. Naquela tarde, Stuart havia jogado com sua anfitriã e Helen com outro homem — uma situação que Stuart detestava, porque o obrigava a competir com ela. Tentou até errar um buraco por alguns milímetros, mas, sem querer, a bola entrou. Helen fez a encenação superficial da boa perdedora, mas passou a dar ostensiva atenção a seu parceiro pelo resto da tarde. Suas expressões ainda fingiam despreocupação quando entraram no quarto. Quando a porta fechou, Helen assumiu toda a sua contrariedade e sentou-se ao espelho, como se o reflexo de sua imagem fosse a única companhia tolerável. Stuart observou-a, de cenho franzido. “Sei que está de péssimo humor”, ele disse. “Não estou de péssimo humor”, ela retrucou irritada. “Está sim e sei por quê. É por causa daquele buraco.” Ela se virou lentamente, com ar incrédulo. “Quer dizer que devo acrescentar mais este aos meus inúmeros defeitos? O de não saber perder?” “Você não costuma ser má perdedora”, ele admitiu, “mas por que todo esse interesse em outros homens? E por que ficou me olhando como se aquilo fosse tão importante?” “Não notei nada disso.” “Mas eu notei.” E notara também que, agora, havia sempre um homem em sua vida — alguém rico e poderoso que lhe fazia a corte e lhe dava a sensação de solidez que ele era incapaz de lhe oferecer. Stuart não via motivos para sentir ciúmes de ninguém em particular, mas a pressão de tantos era irritante. Aborrecia-o que, por causa de uma coisa à-toa, Helen não deixasse de lembrá-lo, com suas ações, de que ele já não preenchia a vida dela. “Se Anne faz tanta questão de ganhar, que faça bom proveito”, disse Helen subitamente. “Não é mesquinho de sua parte? Sabe que ela não joga nem metade do que você.” Sentindo-se um pouco culpada, ela abrandou a voz. “Ah, não é isso. Apenas gostaria que voltássemos a jogar juntos, como antigamente. Agora você é obrigado a jogar com os outros e a fazê-los ganhar. E precisa ser sempre tão galante com elas?” O tênue desprezo em sua voz, o ciúme fingido que escondia uma crescente indiferença — tudo ficou claro para ele. Houve um tempo em que, se ele dançasse com outra mulher, os olhos injetados de Helen o seguiriam por todo o salão. “Meus galanteios são simplesmente comerciais”, ele respondeu. “As aulas de golfe nos renderam trezentos dólares por mês durante o verão. Como poderia ir vê-la jogar em Boston na semana que vem se não tivesse essas mulheres a quem ensinar?“ “E vai me ver ganhar, sabia?” “Claro, é só o que quero”, Stuart disse automaticamente. Mas o desnecessário tom de desafio na voz dela inspirou-lhe repulsa, e ele, de repente, perguntou-se se estava ou não se importando que ela

ganhasse. No mesmo instante, o estado de espírito de Helen mudou e, de repente, ela viu claramente a situação — que ela podia jogar em torneios amadores e Stuart não, que os novos troféus na estante eram agora os dela, que ele trocara a competitividade puramente esportiva, que sempre fora a razão de sua vida, pela necessidade de ganhar dinheiro. “Ah, lamento tanto por você, Stuart!” Lágrimas vieram-lhe ao rosto. “É uma pena que não possa fazer as coisas de que gosta, e eu possa. Talvez eu não devesse jogar neste verão.” “Bobagem”, ele disse. “Você não pode ficar em casa contando os dedos.” Ela se agarrou a isso. “Nem você gostaria. Sou boa em esporte, o que posso fazer? Você me ensinou quase tudo que sei. Só gostaria de ajudá-lo.” “Então tente se lembrar de que sou seu melhor amigo. Às vezes você se comporta como se fôssemos rivais.” Ela hesitou, aborrecida pela verdade de suas palavras mas sem querer dar-lhe um pingo de razão. Uma enxurrada de lembranças, entretanto, passou por sua cabeça e ela recordou como ele sempre fora corajoso ao juntar os pedaços de sua vida. Aproximou-se e o abraçou. “Querido, querido, as coisas vão melhorar. Você verá.” Helen ganhou o torneio de Boston na semana seguinte. Torcendo por ela no meio da multidão, Stuart sentiu-se orgulhoso. Esperou que, em vez de alimentar o egoísmo dela, aquela vitória tornasse as coisas mais fáceis entre eles. Detestava o conflito que surgira por eles aspirarem às mesmas excelências e aos mesmos troféus da vida. Ele acompanhou à distância sua entrada triunfal na sede do clube, entre divertido e ligeiramente enciumado do séquito que a bajulava. Foi dos últimos a entrar no clube. Um funcionário dirigiu-se a ele: “Os jogadores profissionais só têm direito às dependências inferiores”. “Está tudo certo. Meu nome é Oldhorne.” Começou a entrar, mas o homem barrou-lhe os passos. “Desculpe, senhor. Sei que a senhora Oldhorne está participando do torneio, mas tenho ordens de encaminhar os profissionais às outras dependências. E, pelo que sei, o senhor é profissional.” “Ei, escute aqui...”, Stuart começou, furioso, mas parou. Estava sendo observado por um grupo de pessoas. “Está bem. Não importa”, disse, amuado, e retirou-se. A lembrança daquele dia machucou-o e foi determinante em sua decisão, semanas depois, de mudar radicalmente de vida. Havia algum tempo vinha pensando em alistar-se na Força Aérea canadense, para servir na França. Sabia que sua ausência teria pouco significado prático na vida de Helen e das crianças; depois de uma conversa com alguns amigos que também estavam acometidos pelas inquietudes de 1915, decidiu-se definitivamente. Mas não contara com o efeito da coisa sobre Helen; sua reação não foi de dor ou alarme, mas de indignação por ter sido surpreendida. “Devia ter me contado!”, ela se queixou. “Como pode tomar uma decisão dessas sem me avisar com antecedência?” Mais uma vez, Helen viu nele o herói, e sua alma dobrou-se a ele como da primeira vez em que se encontraram. Ele era um guerreiro para quem a paz era apenas o intervalo entre as guerras, e a paz é que o estava destruindo. De repente, o jogo dos jogos o conclamava e, a não ser que a lógica inteira de suas vidas caísse por terra, não havia nada que ela pudesse dizer. “É desse tipo de coisa que eu gosto”, ele disse, confiante, rejuvenescido de excitação. “Mais alguns anos nesta vida e eu acabaria sendo levado a beber. Cheguei a perder o seu respeito e preciso recuperá-lo, mesmo estando tão longe.” Ela estava orgulhosa dele novamente e contou para todo mundo que ele iria para a guerra. Então,

numa tarde de setembro, voltando para casa cheia de novidades e sentindo dentro de si a velha camaradagem que os unia, encontrou-o afundado em total depressão. “Stuart”, ela gritou. “Adivinhe o que...” Mas parou. “O que houve, querido? Qual o problema?” Ele a olhou como se não a reconhecesse. “Fui recusado.” “O quê?” “Por causa do olho esquerdo.” Ele sorriu, amargo. “Quando aquele idiota me acertou com o taco. Estou quase cego desse olho.” “E não há nada que possa fazer?” “Nada.” “Stuart!” Ela o olhou horrorizada. “Eu ia lhe fazer uma surpresa. Elsa Prentice organizou uma unidade da Cruz Vermelha para servir na França e resolvi alistar-me porque achei que seria maravilhoso irmos os dois juntos. Acabamos de tirar as medidas para fazer os uniformes e vamos embarcar no fim da semana que vem!”

IV. Helen era apenas uma das muitas figuras no convés do navio, mantido às escuras por causa da ameaça dos submarinos. Quando o navio desapareceu rumo a seu obscuro destino, Stuart desceu a rua 57. A dor pelo rompimento de tantos laços era profunda, e ele caminhou lentamente, como se tentando ajustar-se a ela. Em compensação, havia uma curiosa sensação de leveza em sua mente. Pela primeira vez em doze anos estava sozinho, e teve a impressão de que, a partir de agora, ficaria sozinho para sempre. Conhecendo Helen e conhecendo a guerra, sabia que, pelas experiências que ela teria, seria difícil os dois voltarem a viver juntos. Ele fora descartado; ela vencera, afinal de contas. Era estranho e triste que seu casamento terminasse daquele jeito. Passou pelo Carnegie Hall, às escuras após um concerto, e seu olho pousou sobre o nome de Theodore van Beck, impresso nos cartazes à porta. Enquanto tentava lê-los, uma porta verde se abriu e dela saiu um grupo de pessoas vestidas a rigor. Stuart e Teddy estavam frente a frente, antes mesmo que pudessem se reconhecer. “Olá!”, disse Teddy cordialmente. “Helen embarcou?” “Acabou de embarcar.” “Encontrei-a na rua outro dia e ela me disse. Gostaria que tivessem vindo a meu concerto. Não acha que ela é uma heroína, indo para lá? Conhece minha mulher?” Stuart e Betty sorriram um para o outro. “Já nos conhecemos.” “E eu não sabia”, protestou Teddy. “É preciso ficar de olho nessas mulheres... Olhe, Stuart, vamos receber algumas pessoas em nosso apartamento. Não haverá música alta, nem nada parecido. Apenas uma ceia e algumas garotas para me dizer o quanto eu estava divino. Seria bom se você viesse. Imagino que já esteja morrendo de saudades de Helen.” “Não creio que...” “Ora, venha conosco. Elas vão lhe dizer que você também é divino.” Percebendo que o convite era sincero, Stuart aceitou. Era o tipo de reunião que ele raramente freqüentava, e ficou surpreso ao encontrar tantos conhecidos. Teddy dominava o ambiente com seu ar seguro e questionador. Stuart ouviu quando ele discorreu para a sra. Cassius Ruthven sobre um de seus temas favoritos: “As pessoas tentam fazer de seus casamentos uma parceria, mas eles sempre acabam em competição. É uma situação impossível. O homem que for esperto deve fugir dessas mulheres

meramente decorativas e se casar com uma que lhe seja grata. Como a Betty.” “Ora, pare de dizer asneiras, Theodore van Beck”, interrompeu Betty. “Já que você é um músico tão importante, limite-se a expressar-se através do piano.” “Não concordo com seu marido”, disse a sra. Ruthven. “As mulheres inglesas caçam com seus maridos e fazem política com eles de forma absolutamente igual, e creio que isso os mantém juntos.” “De jeito nenhum”, insistiu Teddy. “É por isso que a sociedade inglesa é a mais desorganizada do mundo. Betty e eu somos felizes porque não temos nenhuma característica em comum.” A exuberância de Teddy caía sobre Stuart como um raio, e o sucesso que parecia fluir dele apenas enfatizava seu próprio fracasso. Stuart não sabia ainda que sua vida não estava destinada ao fracasso. Não podia imaginar que, três anos depois, em seu túmulo de soldado, seria gravado um epitáfio contando uma bela história de bravura. Ou que seu corpo inquieto, que nunca fugiu ao esporte ou ao perigo, estava destinado a um último e orgulhoso galope. “Fui recusado”, ele dizia à sra. Ruthven. “Vou ter que me contentar em servir no Esquadrão A, a menos que me convoquem.” “Quer dizer que Helen embarcou.” A sra. Ruthven olhou-o com expressão reminiscente. “Nunca me esquecerei do casamento de vocês. Pareciam feitos um para o outro. Todo mundo achou isso.” Stuart também se lembrava e, por um momento, pareceu-lhe que tinha pouco mais que isso para recordar. “Realmente”, concordou, pensativo. “Formávamos um belo casal.” (1932)

Domingo louco

Era domingo — não apenas um dia, mas um intervalo entre dois outros dias. Para todos eles, tinham ficado para trás os cenários e as seqüências, as longas esperas sob a girafa que sustenta o microfone, as centenas de quilômetros por dia de automóvel pela região, as batalhas entre criatividades rivais nas salas de reunião, as infindáveis concessões, os choques e as tensões entre personalidades que lutavam pela vida. E agora, domingo, a vida de cada um era retomada com um brilho candente em olhos que na tarde da véspera pareciam vitrificados de monotonia. Devagar, à medida que as horas se arrastavam, eles despertavam como gnomos numa loja de brinquedos: um intenso colóquio num dos cantos, casais sumindo para namorar numa sala e uma sensação de “Depressa, não estamos atrasados, mas, pelo amor de Deus, vamos logo, antes que essas quarenta horas de lazer acabem”. Joel Coles era roteirista-assistente. Tinha vinte e oito anos e ainda não fora destruído pelo estúdio. Desde sua chegada a Hollywood, seis meses antes, já tivera o que se chamava de boas tarefas em alguns filmes e entregava suas cenas e seqüências com entusiasmo. Referia-se modestamente a si mesmo como um mercenário, mas, no fundo, não se achava isso. Sua mãe fora uma atriz de sucesso; Joel passara a infância entre Londres e Nova York, tentando separar o real do irreal ou, pelo menos, adivinhar o passo seguinte. Era um jovem bonito, com agradáveis olhos castanhos que, em 1913, haviam contemplado pela primeira vez as platéias da Broadway por intermédio do rosto de sua mãe. Quando recebeu o convite, teve certeza de que estava subindo na vida. Normalmente não saía aos domingos; permanecia sóbrio e levava trabalho para casa. Havia pouco tempo tinham lhe dado uma peça de Eugene O’Neill para adaptar, destinada a uma estrela muito importante. Tudo o que fizera até então agradara a Miles Calman, e Miles Calman era o único diretor no estúdio que não trabalhava sob as vistas de um supervisor e que respondia apenas aos homens do dinheiro. Tudo parecia nos eixos na carreira de Joel. (“Sou a secretária do senhor Calman. Ele o convida para um chá das quatro às seis no domingo. O endereço é Beverly Hills, número...”) Joel sentiu-se honrado. Era uma festa do alto escalão. Uma homenagem a si próprio como um rapaz de futuro. A turma de Marion Davies, os figurões, os mais bem pagos, talvez até mesmo Dietrich, Garbo e a Marquesa, gente que não era vista em qualquer lugar, todos estariam na casa de Calman. “Não vou beber nada”, prometeu a si mesmo. Calman não escondia seu desapreço por beberrões e achava uma pena que o cinema não pudesse passar sem eles. Joel também achava que os roteiristas bebiam muito — como ele —, mas não pretendia beber naquela tarde. Gostaria que Miles estivesse por perto quando o garçom passasse com as bebidas, para ouvi-lo dizer, sucinta e discretamente, “Não, obrigado”. A casa de Miles Calman fora construída para momentos de grande emoção. Havia um permanente ar de escuta, como se o longínquo silêncio de seus espaços escondesse uma platéia. Mas nessa tarde a casa estava apinhada, como se as pessoas tivessem sido convocadas, e não convidadas. Joel notou

com orgulho que só dois outros roteiristas do estúdio estavam na multidão, um nobre gagá inglês e, para sua surpresa, Nat Keogh, que inspirara o comentário impaciente de Calman sobre beberrões. Stella Calman (Stella Walker, naturalmente) não se dirigiu aos outros convidados depois de falar com Joel. Deixou-se ficar nas proximidades — olhava para ele com aquele lindo olhar que exige alguma espécie de reconhecimento, e Joel sacou rapidamente dos recursos teatrais que herdara da mãe: “Ora, você não deve ter mais que dezesseis anos. Onde está seu carrinho de brinquedo?” Ela ficou visivelmente satisfeita e continuou ali. Ele sentiu que deveria dizer algo mais, alguma coisa que demonstrasse segurança e naturalidade — vira-a pela primeira vez quando ela disputava pontas em Nova York. Naquele momento, uma bandeja passou por eles e Stella pôs um copo em sua mão. “Está todo mundo com medo, não está?”, ele disse, olhando para os lados com ar ausente. “Todo mundo parece de olho nos escorregões dos outros ou tenta se aproximar de gente com quem valha a pena estar. Claro que isso não acontece na sua casa”, ele acrescentou rápido. “Quero dizer em Hollywood, de modo geral.” Stella concordou. Apresentou várias pessoas a Joel como se ele fosse muito importante. Depois de se certificar de que Miles estava no outro lado da sala, Joel tomou sua bebida. “Então você tem um filho?”, perguntou. “Essa é a hora de tomar cuidado. Depois que uma mulher tem o primeiro filho, torna-se muito vulnerável, porque precisa ter certeza de seus encantos. Precisa atrair a devoção incondicional de um novo homem, para provar a si mesma que não perdeu nada.” “Não atraio essa devoção incondicional de ninguém”, disse Stella, ressentida. “As pessoas têm medo de seu marido.” “Será que é isso?” Franziu o cenho diante dessa idéia; em seguida, a conversa foi interrompida no exato momento em que Joel teria escolhido. As atenções dela o tinham deixado confiante. Não era do estilo de Joel freqüentar grupos familiares, procurar um refúgio esquivo sob as asas de conhecidos, como ele via acontecer naquela sala. Foi até a janela e olhou para o Pacífico, descorado sob um apático pôr-do-sol. Gostava dali — a Riviera americana e tudo o mais, como se houvesse tempo para desfrutá-la. Havia pessoas bonitas e bem vestidas na sala, lindas mulheres e... bem, lindas mulheres. Não se pode ter tudo. Viu o rosto fresco e juvenil de Stella, com a pálpebra cansada que sempre lhe caía um pouco sobre um dos olhos, movendo-se entre os convidados. Gostaria de sentar e conversar muito tempo com ela, como se ela fosse uma mulher, não uma estrela; seguiu-a para ver se estava dando tanta atenção aos outros como dera a ele. Tomou outro drinque — não porque precisasse adquirir confiança, mas porque ela tinha lhe dado o bastante. Depois sentou-se ao lado da mãe do diretor. “Seu filho é uma lenda do cinema, senhora Calman. O Oráculo, o Homem do Destino e tudo mais. Pessoalmente, sou contra ele, mas estou em minoria. O que a senhora acha dele? Fica impressionada? Está surpresa por ele ter chegado tão longe?” “Não, não estou surpresa”, ela disse calmamente. “Sempre esperamos muito de Miles.” “Bem, isso não é muito comum”, observou Joel. “Sempre pensei que todas as mães fossem como a mãe de Napoleão. Minha mãe não queria que eu tivesse nada a ver com o ramo dos espetáculos. Queria que eu fizesse carreira militar em West Point.” “Sempre tivemos toda a confiança em Miles.” Ele se encaminhou para o bar da sala de jantar, onde estava Nat Keogh, bem-humorado, muito bem pago e bebendo todas. “... ganhei cem mil no ano passado e perdi quarenta mil nas cartas, por isso agora contratei um

gerente.” “Você quer dizer um agente”, disse Joel. “Não, isso eu já tenho. Gerente mesmo. Entrego tudo que ganho à minha mulher. Então, ela e o gerente se reúnem e me dão uma quantia. Pago a ele cinco mil dólares por ano para me dar dinheiro.” “Você quer dizer o agente.” “Não, o gerente, e não sou o único — ele trabalha também para um monte de outros irresponsáveis.” “Bem, se você é irresponsável, como foi responsável para contratar um gerente?” “Só sou irresponsável quando se trata de jogo. Olhe aqui...” Um cantor começou a se apresentar; Joel, Nat e os outros deram um passo à frente para ouvi-lo.

II. O canto chegava difusamente até Joel; ele se sentia feliz e amistoso em relação às pessoas ali reunidas, pessoas corajosas e capazes, superiores a uma burguesia que ganhava deles em ignorância e vida ociosa e elevada a uma posição da mais alta proeminência num país que, durante toda uma década, só quisera se divertir. Gostava deles — na verdade, amava-os. Grandes ondas de bem-estar fluíram por ele. Quando o cantor encerrou a apresentação e houve uma corrida em direção à anfitriã para as despedidas, Joel teve uma idéia. Pensou em interpretar “Incrementando”, um monólogo cômico que escrevera. Era seu único truque de salão, mas já fizera sucesso em muitas festas e poderia agradar a Stella Walker. Tomado pela idéia, os glóbulos vermelhos do sangue pulsando de exibicionismo, foi falar com ela. “Claro”, ela disse. “Fique à vontade! Vai precisar de alguma coisa?” “Alguém terá de ser a secretária para quem estou ditando uma carta.” “Eu serei a secretária.” A notícia se espalhou e os convidados, alguns já vestindo o casaco ou saindo, voltaram para a sala, e Joel viu-se diante dos olhos de muitos estranhos. Teve um mau pressentimento ao se dar conta de que o homem que acabara de se apresentar era um famoso cantor de rádio. Alguém fez “Shhh!”, pedindo silêncio, e ele se viu sozinho com Stella, no centro de um sinistro semicírculo à maneira dos índios. Stella sorriu para ele, na expectativa, e ele começou. Sua paródia se baseava nas famosas limitações intelectuais de Dave Silverstein, um extravagante produtor independente; mostrava Silverstein ditando um memo em que esboçava o tratamento de uma história recém-comprada. “... uma história de divórcio, com rapazes muito jovens, no meio da Legião Estrangeira”, ele ouviu sua voz dizer, com o sotaque e os erros de Silverstein. “Mas temos de incrementar essa história, entende?” A aguda agonia de uma dúvida trespassou-o. Os rostos que o cercavam, à luz delicadamente modulada, pareciam atentos e curiosos, mas não havia nenhuma sombra de riso; bem à sua frente, o Grande Amante das telas encarava-o com um olho tão penetrante quanto o de uma batata. Somente Stella Walker o acompanhava com um sorriso infalível e radiante. Joel continuou. “Vamos fazer dele um tipo meio Adolph Menjou, só que vamos incrementar o tipo e então teremos uma espécie de Michael Arlen, só que com um clima de Honolulu.” Mais uma vez, nem um sussurro nas filas da frente, mas, nas de trás, ouviu-se um perceptível farfalhar em direção à esquerda, à porta de saída.

“... então ela diz que sente esse apelo sequiçual por ele e ele se irrita e diz ‘Ah, vá se morder’...” Em algum ponto ele ouviu Nat Keogh dar um risinho e, aqui e ali, algumas expressões de estímulo. Mas, ao terminar, teve a nauseante percepção de que fizera um papelão na frente de um importante setor do mundo do cinema, de cuja aprovação sua carreira dependia. Por um momento, Joel derivou em meio a um confuso silêncio, quebrado apenas por uma debandada geral rumo à porta. Sentiu a subcorrente de desprezo desaguando em comentários; depois — tudo isso no espaço de dez segundos — o Grande Amante, o olho duro e vazio como o olho de uma agulha, gritou: “Uuuu! Uuuu!”, dando voz ao sentimento que ele sabia ser de todos. Era a indignação do profissional diante do amador, da comunidade diante do estranho, o clã mostrando o polegar para baixo. Só Stella Walker continuava perto dele, agradecendo-lhe como se ele tivesse sido um sucesso sem igual, como se não percebesse que ninguém gostara. Ao ser ajudado por Nat Keogh a vestir o casaco, Joel foi invadido por uma onda de asco por si mesmo e se agarrou desesperadamente à sua regra de nunca trair uma emoção inferior até finalmente deixar de senti-la. “Que fiasco”, disse, de passagem, para Stella. “Não importa, é um monólogo engraçado, as pessoas riem. Obrigada pela sua cooperação.” O sorriso não abandonou o rosto de Stella. Ele fez uma mesura ligeiramente bêbada e Nat o empurrou em direção à porta. A chegada do café-da-manhã devolveu-o a um mundo destruído, arruinado. Ontem ele era alguém, uma lança de fogo contra uma indústria; hoje, via-se diante de um enorme prejuízo, diante daqueles rostos, do escárnio de alguns e da zombaria coletiva. Pior ainda, aos olhos de Miles Calman tinha se transformado em um dos beberrões despidos de dignidade que Calmon lamentava ter de empregar. Para Stella Walker, forçada a passar por aquele martírio para preservar a cortesia de sua casa — quanto à opinião dela, nem ousava imaginar. Seus sucos gástricos pararam de fluir e ele depositou os ovos quentes na mesinha do telefone. Escreveu: CARO MILES: Você bem pode imaginar meu profundo arrependimento. Admito uma ponta de exibicionismo, mas às seis da tarde, em plena luz do dia! Meu Deus! Minhas desculpas à sua esposa. Sempre seu, JOEL COLES Joel emergiu de seu escritório no estúdio e esgueirou-se como um fugitivo até a tabacaria. Tão suspeito era seu comportamento que o guarda pediu para ver sua identificação funcional. Já decidira almoçar quando Nat Keogh, alegre e confiante, o abordou. “Que história é essa de se isolar o tempo todo? E daí se o Mascarado Almofadinha vaiou você? Escute”, continuou Keogh, arrastando Joel para o restaurante do estúdio. “Na pré-estréia de um filme dele no Grauman’s Chinese Theatre, Joe Squires deu-lhe um chute na bunda enquanto ele se curvava para a multidão. O canastrão jurou que Joe ia levar o troco mais tarde, mas, quando Joe ligou para ele, às oito da manhã do dia seguinte, para dizer que continuava esperando o troco, o outro desligou.” Essa história absurda animou Joel e ele encontrou um triste consolo em olhar para o grupo na mesa ao lado, para as lindas e tristes gêmeas siamesas, o anão malvado e o orgulhoso gigante do filme de circo. Mas, ao olhar mais longe, para as belas mulheres de rosto amarelecido, olhos melancólicos e cobertos de rímel e vestidos de gala berrantes à luz do dia, viu também um grupo que estivera na casa de Calman, e tremeu. “Nunca mais”, exclamou. “Aquela foi minha última aparição social em Hollywood.”

Na manhã seguinte, um telegrama esperava por ele no escritório: Você foi uma das pessoas mais agradáveis de nossa festa. Espero-o na ceia de minha irmã Janet no próximo domingo. STELLA WALKER CALMAN O sangue disparou por suas veias durante um minuto febril. Incrédulo, leu e releu o telegrama. “Ora, se esta não é uma das coisas mais doces que já me disseram na vida!”

III. Mais um domingo louco. Joel dormiu até as onze, depois leu um jornal para saber o que tinha acontecido na semana. Almoçou em seu quarto um prato de truta com salada de abacate e vinho da Califórnia. Ao se vestir para o chá, escolheu um terno axadrezado, camisa azul e gravata laranja. Tinha olheiras escuras de cansaço. Em seu carro de segunda-mão, dirigiu-se ao condomínio Riviera. Quando se apresentava à irmã de Stella, Miles e Stella chegaram em roupas de montaria — tinham passado grande parte da tarde discutindo nas estradas de terra perto de Beverly Hills. Miles Calman, alto, nervoso, com um humor violento e os olhos mais infelizes que Joel já vira, era um artista da cabeça aos pés, e sobre estes ele se postava com firmeza — nunca fizera um filme barato, embora às vezes tivesse pago caro por experimentalismos fracassados. A despeito de sua excelente figura, ninguém precisava ficar muito tempo perto dele para se dar conta de que não era um homem saudável. A partir do momento de sua chegada, o dia de Joel ligou-se inextricavelmente ao deles. Quando Miles juntou-se ao grupo que os cercava, Stella virou-se com um muxoxo de impaciência, e Miles Calman disse ao homem mais próximo: “Vá devagar com Eva Goebel. Estou comendo o pão que o diabo amassou por causa dela.” Miles virou-se para Joel: “Lamento não tê-lo visto no estúdio ontem. Passei a tarde no psicanalista”. “Você está fazendo psicanálise?” “Há alguns meses. Primeiro, por causa de claustrofobia; agora estou fazendo uma revisão de toda a minha vida. Dizem que levará mais de um ano.” “Não há nada de errado com a sua vida”, Joel assegurou-lhe. “Ah, não? Stella não pensa assim. Pergunte a qualquer um — eles vão lhe dizer outra coisa.” Uma garota acomodou-se no braço da poltrona de Miles; Joel dirigiu-se a Stella, que estava desconsolada junto à lareira. “Obrigado por seu telegrama”, disse. “Foi um amor de sua parte. Não consigo imaginar alguém tão bonito como você ter tanto bom humor.” Ele nunca a achara tão atraente assim, e talvez tenha sido a irrestrita admiração em seus olhos que a estimulou a despejar tudo — não demorou muito, porque ela estava obviamente à beira de uma crise emocional. “... e Miles está mantendo essa coisa há dois anos, e eu nunca soube. Incrível, era uma das minhas melhores amigas, não saía lá de casa. Finalmente, quando as pessoas começaram a me contar, Miles foi obrigado a admitir.” Sentou-se impetuosamente no braço da poltrona de Joel. Suas calças de montaria eram da cor da poltrona e Joel percebeu que seu cabelo era composto de mechas de um louro avermelhado e de um louro pálido, de forma a não admitir tintura, e que ela não estava usando maquiagem. Era bonita assim mesmo...

Ainda trêmula pelo choque da descoberta, Stella achava intolerável o espetáculo de uma mulher rondando Miles; levou Joel para um quarto e, sentados cada qual num lado da cama, continuaram conversando. Pessoas que passavam por ali a caminho do banheiro botavam a cabeça para dentro e faziam piadas, mas Stella, despejando a história, não dava atenção a ninguém. Depois de algum tempo, Miles também botou a cabeça para dentro e disse: “Não faz sentido tentar explicar a Joel em meia hora algo que eu próprio não entendo e que o psicanalista diz que levará um ano para entender”. Mas ela continuou falando como se Miles não estivesse ali. Amava Miles, ela dizia, e fora sob terríveis condições que sempre se conservara fiel a ele. “O psicanalista disse a Miles que ele tinha um complexo em relação à mãe. Em seu primeiro casamento, transferiu esse complexo para sua mulher — e o sexo foi transferido para mim. Mas quando nos casamos a coisa se repetiu — ele transferiu o complexo para mim e toda a sua libido concentrou-se nessa outra mulher.” John sabia que isso podia não ser conversa fiada, embora parecesse conversa fiada. Conhecia Eva Goebel; era uma mulher matronal, mais velha e provavelmente mais esperta que Stella, que não passava de uma menina dourada. Miles, agora, sugeria impacientemente que Joel fossem embora com eles, já que Stella tinha tanto a dizer, e assim foram para a mansão de Beverly Hills. Sob aqueles tetos altos, a situação parecia mais dignificada e trágica. Era uma noite brilhante e fantasmagórica, com as trevas cercando todas as janelas e Stella, róseo-dourada, chorando enfurecida pela sala. Joel não acreditava muito na dor das atrizes de cinema. Elas têm outras preocupações — são lindas figuras róseo-douradas que têm a vida soprada por roteiristas e diretores, e que se reúnem tarde da noite para soltar risinhos abafados, fazer frases de efeito e contar as aventuras vividas por seus personagens. Algumas vezes ele fingia ouvir e, em vez disso, pensava em como ela se vestia bem — calças insinuantes, com um par de pernas idem dentro delas, um suéter italiano colorido de gola alta e um casaquinho de camurça marrom. Não conseguia decidir se ela era a imitação de uma dama inglesa ou se as damas inglesas é que a imitavam. Stella pairava em algum ponto entre a mais concreta realidade e a mais espalhafatosa personificação. “Miles tem tanto ciúme de mim que pergunta tudo que faço”, ela disse com desprezo. “Quando eu estava em Nova York, escrevi-lhe contando que tinha ido ao teatro com Eddie Baker. Miles ficou com tanto ciúme que passou a me telefonar dez vezes por dia.” “Eu estava louco”, disse Miles, fungando, o que nele era um hábito em momentos de tensão. “O analista não pôde fazer nada durante uma semana.” Stella balançou a cabeça como se diante de um caso perdido. “Você esperava que eu ficasse três semanas trancada no hotel?” “Eu não esperava nada. Admito que sou ciumento. Tento não ser. Tenho conversado sobre isso com o doutor Bridgebane, mas não está funcionando. Tive ciúme de Joel esta tarde quando você se sentou no braço da poltrona dele.” “Teve?” Ela deu um salto. “Você teve ciúme! Não havia uma mulher sentada no braço da sua poltrona? E você ficou sem falar comigo por duas horas.” “Você estava contando seus problemas a Joel no quarto.” “Quando me lembro que aquela mulher”, parecia achar que omitir o nome de Eva Goebel diminuiria sua existência, “estava sempre aqui...” “Está bem, está bem”, disse Miles, entediado. “Já admiti tudo e me sinto tão mal quanto você.” Virando-se para Joel, passou a falar de cinema, enquanto Stella andava de um lado para o outro com as mãos enfiadas nos bolsos.

“Eles estão tratando Miles muito mal”, ela disse, metendo-se subitamente na conversa, como se até havia pouco não estivessem discutindo seus problemas pessoais. “Querido, conte para ele sobre o velho Beltzer tentando mudar o seu filme.” Enquanto ela pairava protetoramente sobre Miles, os olhos faiscando de indignação a favor dele, Joel se deu conta de que estava apaixonado por ela. Sufocado de excitação, levantou-se para se despedir. Na segunda-feira, a semana retomou seu ritmo de trabalho, em agudo contraste com as discussões teóricas, a fofoca e o escândalo de domingo; havia os intermináveis detalhes das revisões de roteiros — “Em vez de uma fusão medíocre, podemos deixar a voz dela na trilha sonora e cortar para um plano médio do táxi do ponto de vista de Bell, ou podemos recuar a câmera para incluir a estação, segurar ali por um minuto e depois fazer uma panorâmica até a fila de táxis” —, a tal ponto que, na tarde daquele dia, Joel já se esquecera de que as pessoas que ganham a vida produzindo diversão também tinham o direito de se divertir. No fim do dia, ligou para a casa de Miles. Pediu para falar com ele, mas foi Stella quem veio ao telefone. “E aí, as coisas melhoraram?” “Não muito. O que vai fazer no sábado à noite?” “Nada.” “Os Perry vão dar uma festa com jantar e teatro, e Miles não estará aqui; estará voando para South Bend a fim de assistir ao jogo Notre Dame-Califórnia. Achei que você podia ir comigo no lugar dele.” Após um longo momento, Joel disse: “Ah, está bem. Se eu tiver uma reunião, talvez não pegue o jantar, mas chegarei a tempo para a peça”. “Então vou dizer que iremos.” Joel caminhou pelo escritório. Em vista das tensas relações entre os Calman, será que Miles gostaria dessa história? Ou ela não pretendia contar a ele? A última hipótese estava fora de questão — se Miles não tocasse no assunto, Joel lhe contaria. Levou mais de uma hora antes que ele pudesse se concentrar de novo no trabalho. Na quarta-feira, houve uma contenda de quatro horas numa sala de reunião abarrotada de planetas e nebulosas de fumaça de cigarro. Três homens e uma mulher revezaram-se andando de cá para lá sobre o carpete dando sugestões ou derrubando-as, opinando crítica ou favoravelmente, em tom de confiança ou de desesperança. Ao fim da reunião, Joel ficou para trás para falar com Miles. O homem estava cansado — não com uma fadiga produtiva, mas cansado da vida, suas pálpebras estavam caídas e, sob a pele perto da boca, via-se a sombra azul da barba proeminente. “Ouvi dizer que vai viajar para assistir ao jogo de Notre Dame.” Miles olhou para um ponto distante e negou com a cabeça. “Mudei de idéia.” “Por quê?” “Por sua causa.” E continuou sem olhar para Miles. “Mas Miles...” “Foi por isso que mudei de idéia.” Cortou a frase com um riso dirigido a si mesmo. “Não posso prever o que Stella seria capaz de fazer para se vingar. Ela o convidou para levá-la à casa dos Perry, não foi? Eu não me divertiria com o jogo.” O instinto agudo de Miles, que funcionava com tanta rapidez e segurança quando se tratava do estúdio, tornava-se frágil e impotente em sua vida pessoal. “Olhe, Miles”, disse Joel, franzindo a testa. “Nunca me insinuei de modo algum para Stella. Se

você realmente está pensando em cancelar sua viagem por minha causa, não irei à casa dos Perry com ela. Não irei a lugar nenhum com ela. Pode confiar em mim.” Miles olhou para ele, agora atentamente. “Talvez.” Deu de ombros. “De qualquer maneira, sempre haveria alguém. Eu não iria me divertir.” “Você parece não ter muita confiança em Stella. Ela me disse que sempre lhe foi fiel.” “Talvez tenha sido.” Nos últimos minutos, diversos outros músculos ao redor da boca de Miles também tinham caído. “Mas como posso exigir qualquer coisa dela depois do que aconteceu? Como posso esperar...” Fez uma pausa e seu rosto endureceu. “Vou lhe dizer uma coisa. Certo ou errado, e não importa o que eu tenha feito, se eu tivesse alguma coisa contra ela eu me divorciaria. Não consigo ver meu orgulho ferido — seria a última gota.” Esse argumento aborreceu Joel, que perguntou: “Ela já não se acalmou depois do episódio Eva Goebel?” “Não.” Miles fungou com ar pessimista. “Eu também não superei a coisa.” “Pensei que havia terminado.” “Estou tentando não ver Eva, mas você sabe que não é fácil largar uma coisa assim; não é como uma menina que eu tenha beijado ontem à noite num táxi! O psicanalista disse...” “Já sei”, interrompeu Joel. “Stella me contou.” Isso era deprimente. “Bem, no que me diz respeito, se você for ao jogo não verei Stella. E tenho certeza de que Stella não está pensando em mais ninguém.” “Talvez não”, Miles respondeu com ar ausente. “Mesmo assim, vou ficar aqui e levá-la à festa. Olhe”, disse de repente, “gostaria que você viesse também. Preciso de alguém compreensivo com quem conversar. Este é o problema — influenciei Stella em tudo. Aliás, influenciei-a de tal maneira que ela gosta de todos os homens de quem eu gosto — é muito difícil.” “Deve ser”, concordou Joel.

IV. Joel não chegou a tempo para o jantar. Cheio de si sob sua cartola de seda, esperou pelos outros em frente ao Hollywood Theatre e apreciou o desfile noturno: réplicas obscuras de astros do cinema, homens trôpegos em casacos de pólo, um desajeitado dervixe com uma barba e um bastão de apóstolo, uma dupla de filipinos em uniforme colegial, lembrando que este canto da República se abria para os sete mares — na verdade, uma longa e fantástica balbúrdia de calouros que apenas protagonizavam uma espécie de trote escolar. A turba se dividiu para deixar passar duas elegantes limusines que pararam perto da esquina. Lá estava ela, num vestido que parecia de gelo, feito com milhares de peças azul-pálidas e pingentes no pescoço. Ele deu um passo à frente. “Gostou do meu vestido?”, perguntou. “Onde está Miles?” “Acabou viajando para ver o jogo. Foi ontem de manhã — eu acho...” Interrompeu-se. “Acabo de receber um telegrama de South Bend dizendo que ele já está voltando. Me esqueci... você conhece essas pessoas?” A turma de oito pessoas entrou no teatro. Miles tinha viajado e Joel agora se perguntava se fizera bem em vir. Mas, durante o espetáculo, com o perfil de Stella sob a textura impecável de seu cabelo claro, não pensou mais em Miles. Em certo momento, virou-se para olhá-la e ela retribuiu o olhar, sorrindo e fixando-se em seus olhos pelo tempo que ele queria. No intervalo, foram fumar no lobby e ela sussurrou:

“O pessoal irá à inauguração da boate de Jack Johnson. Não quero ir... você quer?” “Precisamos ir?” “Acho que não.” Hesitou. “Preciso falar com você. Podíamos ir à minha casa — se eu tivesse certeza...” Hesitou de novo e Joel perguntou: “Certeza de quê?” “Certeza de que... Ah, estou confusa, mas como posso ter certeza de que Miles foi mesmo ao jogo?” “Você acha que ele está com Eva Goebel?” “Não, acho que isso não, mas suponha que ele esteja por aqui, me espionando. Às vezes, Miles faz umas coisas estranhas. Certa vez, cismou que queria tomar chá com um homem de barba comprida, e mandou vir um da agência de atores. Tomou chá com o homem a tarde inteira.” “Isso é diferente. Ele mandou a você um telegrama de South Bend, prova de que ele foi ao jogo.” Terminada a peça, despediram-se dos outros junto ao meio-fio e receberam olhares divertidos como resposta. Caminharam pela alameda brilhante e espalhafatosa, em meio à multidão que se aglomerava em torno de Stella. “Ele poderia fabricar esse telegrama com a maior facilidade”, ela disse. Era verdade. E, com a idéia de que talvez o desconforto de Stella se justificasse, ficou furioso: se Miles os estivesse seguindo com uma câmera, então Joel já não se sentiria obrigado a nada em relação a Miles. Disse alto: “Isso é loucura.” Já havia árvores de Natal nas vitrines das lojas e a lua cheia sobre a avenida era de papel, tão falsa quanto as gigantescas lâmpadas de boudoir nas esquinas. No carro, por entre a escura vegetação de Beverly Hills, luminosa como eucaliptos à luz do dia, Joel via apenas o brilho de um rosto branco sob o seu, a curva do ombro dela. Stella o afastou de repente e olhou para ele. “Seus olhos são iguais aos de sua mãe”, ela disse. “Eu tinha um álbum de recortes cheio de fotos dela.” Algo fez Joel observar os jardins quando se aproximaram da casa, como se Miles estivesse escondido entre os arbustos. Um telegrama os esperava sobre a mesinha da sala. Ela o leu em voz alta: CHICAGO Chego amanhã à noite. Pensando em você. Te amo. MILES “Está vendo”, ela disse, jogando o telegrama de novo na mesa, “ele pode ter forjado este também.” Pediu ao mordomo que trouxesse bebidas e sanduíches e subiu, enquanto Joel perambulava pelos salões vazios. Num deles, passou pelo piano onde se vira em desgraça dois domingos antes. “Nesse caso poderíamos combinar uma história de divórcio, a geração mais jovem, e a Legião Estrangeira”, ele disse em voz alta. Seus pensamentos pularam para outro telegrama: “Você foi uma das pessoas mais agradáveis de nossa festa...” Uma idéia lhe ocorreu. Se o telegrama de Stella tivesse sido apenas um gesto de cortesia, era possível que Miles o tivesse inspirado, porque fora Miles quem o convidara. Miles poderia ter dito: “Mande-lhe um telegrama, ele deve estar se sentindo péssimo, achando que fez um papelão.”

Combinava com “Influenciei Stella em tudo. De tal maneira que ela gosta de todos os homens de quem eu gosto”. Uma mulher mandaria aquele bilhete por ser compreensiva; um homem só faria isso por se sentir responsável. Quando Stella voltou à sala, ele tomou suas mãos. “Tenho a estranha sensação de estar sendo uma espécie de peão num jogo que você vem disputando com Miles”, disse. “Pegue uma bebida.” “E o engraçado é que, ainda assim, estou apaixonado por você.” O telefone tocou e ela soltou suas mãos para atendê-lo. “Outro telegrama de Miles”, ela anunciou. “Despachou-o, ou diz que o despachou, do avião em Kansas City.” “Imagino que tenha me mandado lembranças.” “Não, só disse que me amava. Acho que ama. Ele é muito fraco.” “Venha se sentar comigo”, disse Joel. Era cedo. Meia hora depois, ainda faltava um pouco para a meia-noite, Joel passou pela lareira fria e disse, de maneira direta: “Quer dizer que você não tem nenhuma curiosidade sobre mim?” “Não é nada disso. Você me atrai muito, e sabe disso. O problema é que acho que amo Miles.” “Isso é óbvio.” “E esta noite estou me sentindo mal sobre uma série de coisas.” Ele não se irritou, estava até ligeiramente aliviado, porque uma possível confusão seria evitada. Mesmo assim, ao olhar para ela, com o calor e a maciez de seu corpo degelando o vestido azul, sabia que aquela era uma das coisas que ele sempre lamentaria ter perdido. “Preciso ir”, disse. “Vou chamar um táxi.” “Bobagem, há um motorista de plantão.” Estremeceu diante da pressa de Stella em se ver livre dele; percebendo isso, ela o beijou levemente e disse: “Você é doce, Joel”. Então, de repente, três coisas aconteceram: ele tomou seu drinque de um só gole, o telefone tocou estridentemente pela casa e um relógio na parede soou como um trompete: Nove... dez... onze... doze...

V. Àquela hora, já era domingo de novo. Joel se deu conta de que, poucas horas antes, fora ao teatro, com o trabalho da semana arrastando-se às suas costas como uma mortalha. Fizera a corte a Stella como se se dedicasse a um assunto que precisava ser resolvido antes do fim do expediente. Mas agora já era domingo — a adorável e preguiçosa perspectiva das próximas vinte e quatro horas abria-se à sua frente —, cada minuto era algo a ser vivido com tranqüila indecisão, cada momento continha o germe de inúmeras possibilidades. Nada era impossível, tudo estava apenas começando. Serviu-se de mais um drinque. Com um gemido agudo, Stella desabou, inerte, com o telefone na mão. Joel apanhou-a no chão e a colocou no sofá. Ensopou um lenço com água mineral e passou-o em seu rosto para reanimá-la. O fone ainda estava fora do gancho e ele o levou ao ouvido. “... o avião caiu nas proximidades de Kansas City. O corpo de Miles Calman foi identificado e...” Ele pôs o fone no gancho. “Fique quieta”, disse, contendo-a, quando Stella abriu os olhos.

“Ah, o que aconteceu?”, ela sussurrou. “Ligue de volta. O que aconteceu?” “Vou ligar já. Quem é o seu médico?” “Disseram que Miles está morto?” “Fique quieta... Há algum empregado acordado?” “Me abrace... estou com medo.” Ele a abraçou. “Preciso do nome do seu médico”, ele disse, sério. “Pode ser um engano, mas quero alguém aqui.” “É o doutor... Ah, meu Deus, Miles morreu?” Joel correu ao andar de cima e vasculhou os armários de remédios em busca de amônia. Quando voltou, Stella gritou: “Ele não morreu... sei que não morreu. Isto faz parte do plano dele. Está me torturando. Sei que ele está vivo. Posso sentir que está vivo.” “Quero chamar algum amigo seu, Stella. Você não pode ficar sozinha esta noite.” “Ah, não”, ela chorou. “Não quero ver ninguém. Você fica. Não tenho nenhum amigo.” Levantouse, lágrimas correndo-lhe pelo rosto. “Ah, Miles é meu único amigo. Ele não está morto, não pode estar morto. Vou até lá para ver. Me consiga um trem. Você precisa ir comigo.” “Você não pode ir. Não há nada a fazer esta noite. Quero que me diga o nome de alguma mulher que eu possa chamar: Lois? Joan? Carmel? Não há ninguém?” Stella olhou para ele como uma cega. “Eva Goebel era minha melhor amiga.” Joel pensou em Miles, em seu rosto triste e desesperado no escritório dois dias antes. No terrível silêncio de sua morte, tudo agora ficara claro sobre ele. Era o único diretor de cinema nascido nos Estados Unidos com um estilo interessante e com consciência artística. Enredado nos negócios da indústria, pagou com seus nervos em frangalhos por sua falta de capacidade de se adaptar, por não ter um cinismo saudável ou um refúgio — apenas uma saída lamentável e precária. Houve um som no lado de fora da porta. Ela se abriu e ouviram-se passos no hall. “Miles!”, gritou Stella. “É você, Miles? Ah, é Miles.” Um menino do Correio apareceu no pórtico. “Não achei a campainha. Ouvi vozes e entrei.” O telegrama era uma duplicata do que chegara por telefone. Enquanto Stella o lia muitas vezes, como se fosse uma grossa mentira, Joel deu um telefonema. Ainda era cedo, mas ele teve dificuldade em encontrar alguém; quando finalmente achou alguns amigos, obrigou Stella a tomar algo forte. “Fique aqui, Joel”, ela sussurrou, semi-adormecida. “Não vá embora. Miles gostava de você... dizia que você...” Tremeu violentamente. “Ah, meu Deus, você não imagina como me sinto só.” Fechou os olhos. “Me abrace. Miles tinha um terno como este seu.” Tentou se levantar. “Pense no que ele deve ter sentido. Tinha medo de quase tudo.” Sacudiu a cabeça, como que zonza. De repente, agarrou o rosto de Joel e segurou-o perto do seu. “Você não vai embora. Você gosta de mim... você me ama, não ama? Não chame ninguém. Amanhã há tempo para isso. Fique comigo esta noite.” Ele olhou para ela, a princípio incrédulo, depois com chocada compreensão. Ao agarrá-lo daquele jeito sombrio, Stella tentava manter Miles vivo, ao sustentar uma situação que ele havia previsto — como se a mente de Miles não pudesse morrer enquanto as possibilidades que tanto o aborreciam ainda existissem. Era um esforço maníaco e torturante de adiar a constatação de que ele estava morto. Resolutamente, Joel foi ao telefone e ligou para um médico. “Não, não chame ninguém!”, gritou Stella. “Volte aqui e me abrace!”

“O doutor Bales está?” “Joel!”, continuou Stella. “Pensei que pudesse contar com você. Miles gostava de você. Tinha ciúmes... Joel, venha aqui.” Se ele traísse Miles, ela o manteria vivo, pois, se estivesse mesmo morto, como poderia ser traído? “... teve um choque muito forte. Pode vir logo e trazer uma enfermeira?” “Joel!” Agora a campainha da porta e a do telefone tocavam intermitentemente e carros paravam na porta da casa. “Você não vai embora”, implorava Stella. “Você vai ficar, não vai?” “Não”, ele respondeu. “Mas vou voltar, se você precisar de mim.” De pé nos degraus da casa, agora palpitando com a vida que vibra ao redor da morte como folhas protetoras, ele começou a soluçar baixinho. Tudo que ele tocava se tornava mágico, pensou. Deu vida até a essa garota e a transformou numa espécie de obra-prima. E depois: Que buraco ele deixa nesse deserto... aliás, já deixou! E depois, com certa amargura: Ah, claro que vou voltar... vou voltar! (1932)

Mais que uma casa

Este era o tipo de coisa a que Lew estava habituado — e ele já era macaco velho. Você é conduzido a uma sala, às vezes estreitinha, estilo colonial da Nova Inglaterra, outras vezes cuidadosamente espaçosa. Ao chegar ao hall, o dono da casa diz: “Clare” — ou Virginia, ou Querida —, “esse é o senhor Lowrie”. A mulher diz: “Prazer, senhor Lowrie”, e Lew responde: “Prazer, madame”. Em seguida, o homem da casa sugere: “Quer beber alguma coisa?”. E Lew levanta as sobrancelhas dizendo “Aceito”, num tom que sugere: “Que hospitalidade — ou consideração, ou atenção!”. Esses canapés deliciosos. “Humm! O que são? Plumas grelhadas? Por elas, vale a pena perder o apetite.” Mas Lew estava subindo na vida, com um armário cheio de ternos novos e aprendendo como eram as coisas. Seu nome estava na lista para entrar num clube chique da região e ele estava de olho num moderno apartamento de solteiro, cheio de grades de ferro — como se fosse um bebê ameaçado de despencar lá embaixo —, quando salvou a vida de uma garota dos Gunther e suas preferências passaram por uma revisão. Isso foi em 1925, antes da guerra hispano-americana — ou melhor, antes de qualquer coisa que tenha acontecido desde então. As meninas Gunther desceram do trem pelo lado errado e caminhavam de braço dado, com Amanda na direção de um vagãozinho auxiliar que se aproximava. Amanda era alta, loura e de nariz empinado, e o vagão era atarracado, escuro e determinado. Lew não teve tempo de especular sobre suas respectivas chances no choque que se avizinhava; empurrou Jean, que estava mais perto dele, e, ao mesmo tempo que as duas irmãs desabavam juntas, espantadas, puxou Amanda para fora do trilho por tão pouco que um cilindro do motor chegou a tocar na capa dela. E assim as preferências de Lew mudaram no que diz respeito a arquitetura e decoração de interiores. Na casa das Gunther, servia-se chá, quente ou gelado, bolinhos, pão de gengibre e pãezinhos quentes às quatro e meia. Na primeira vez que foi lá, sentiu vergonha de seu status de herói — pelos primeiros cinco minutos. Depois, soube que, durante a Guerra Civil, a avó delas fora salva pela própria avó de uma casa em chamas no condado de Montgomery, que certa vez o pai delas salvara dez homens no mar e fora recomendado para receber a medalha Carnegie, que Jean em criança fora salva de morrer afogada em Cape May — e que, na verdade, os Gunther vinham salvando pessoas ou sendo salvos nos últimos cinqüenta anos e que sua principal dívida para com Lew era a de que agora não haveria uma lacuna nessa tradição. Isso se dava numa larga varanda com cortinas cor de vinho (“A primeira coisa que eu faria seria arrancar aquela monstruosidade”, disse um arquiteto de visita) que praticamente cercava toda a casa, construída por volta de 1880. As irmãs — eram três — apareciam de vez em quando, enquanto Lew tomava chá com os mais velhos. Ele próprio tinha apenas vinte e seis anos e gostaria que Amanda ficasse mais à vista para ele olhar para ela, mas só Bess, a irmã de dezesseis anos, aparecia por mais tempo; à frente das outras duas, interpunha-se uma tela de flanela branca, composta de jovens interessados.

“Foi a rapidez”, disse o sr. Gunther, andando de um lado para o outro sobre o tapete de palha, “aquele segundo de coordenação. Suponha que você tentasse avisá-las — não conseguiria. Seu subconsciente percebeu que elas estavam juntas, percebeu que, se você empurrasse uma delas, empurraria as duas. Um segundo, um pensamento, uma ação. Lembro-me de que em 1904...” “Aceita mais um pão de gengibre, senhor Lowrie?”, perguntou a avó. “Papai, por que não mostra ao senhor Lowrie as colheres dos missionários?”, sugeriu Bess. “O quê?” O pai parou de andar. “Quem disse que o senhor Lowrie está interessado em colheres velhas?” Naquele momento, Lew imaginava Amanda girando em algum lugar entre a claridade das quadras de tênis e a sombra da varanda, em meio ao calor e a graça daquela tarde. “Colheres? Não, já tenho uma colher, obrigado.” “Colheres dos missionários”, explicou Bess. “Papai tem uma das melhores coleções dos Estados Unidos. Quando ele gosta de uma pessoa, mostra-lhe as colheres. Pensei que, como o senhor salvou a vida de Amanda...” Ele mal viu Amanda naquela tarde — falou com ela de passagem na escadaria, enquanto um rapaz a seu lado brincava de jogar a raquete para o alto e pegá-la pelo cabo com uma curvatura de joelhos a cada pegada. O sol passeava pelas mechas douradas do cabelo de Amanda, espraiava-se pelo bronze rosado de suas faces e espalhava-se pelos braços que ela contemplava distraída enquanto falava com ele. “É difícil agradecer a uma pessoa por ter salvado a nossa vida, senhor Lowrie”, ela disse. “Talvez o senhor não devesse ter feito isso. Talvez não valesse a pena salvar.” “Ah, não, valeu, sim!”, disse Lew, num espasmo, embaraçado. “Bem, gostaria de pensar que sim.” Virou-se para o rapaz: “Não é, Allen?”. “Acho que valeu”, admitiu Allen. “Para quem gosta de louras com muito cabelo.” Ela desfechou seu delicado sorriso sobre Lew e depois mirou-o em outra direção, como se fosse uma lanterna capaz de cegá-lo. “Sempre vou achar que pertenço ao senhor, senhor Lowrie; minha vida está hipotecada ao senhor. O senhor sempre terá o direito de me levar de volta àquele trilho e me pôr na frente do vagão.” Sua boca orgulhosa exagerava um pouco por ter sido salva, embora Lew não percebesse; para Amanda teria sido melhor se seu salvador tivesse sido alguém de sua própria turma. Os Gunther eram uma família arrogante — sem muito motivo, porque o sr. Gunther fora certa vez apresentado à Corte de St. James e nunca mais se recuperara do choque. Mesmo Bess era arrogante e fora ela, no fim das contas, quem acompanhara Lew a seu carro. “De fato, é uma casa ótima”, ela concordou. “Íamos modernizá-la, mas pusemos o assunto em votação e decidimos que era melhor fazer uns reparos na piscina.” Os olhos de Lew correram sobre Bess — parecia-se com Amanda, exceto pela leveza e por estar infantilmente desfigurada por uma armação de arame nos dentes — e se detiveram na casa, com seus balcões decorativos nas janelas, suas empenas caprichosas, seus dísticos em letras douradas no estilo chalé suíço e suas reentrâncias abauladas. Contemplou-a sem olhos críticos e ela lhe pareceu uma das casas mais bonitas que já vira. “Claro, estamos há quilômetros da cidade, mas vivemos sempre rodeados de gente aqui. Papai e mamãe irão para o Sul depois do Natal, quando voltarmos para a escola.” Era mais que uma casa, concluiu Lew ao pegar o carro e ir embora. Era um lugar onde muitas coisas diferentes poderiam acontecer ao mesmo tempo — uma vida inteira para os mais velhos, um romance para cada filha. Promovendo a si mesmo, escolheu seu recanto favorito — um sofá de

balanço atrás de uma das parreiras que dividiam a varanda em quatro. Mas estávamos em 1925, quando os dez mil dólares por ano que Lew ganhava não lhe permitiam cruzar indiscriminadamente as fronteiras sociais. Fora recebido pelos Gunther e mantido a um braço de distância, e só aos poucos começara a ser apreciado pelas qualidades que afloravam de sua falta de jeito. Um homem bem-apanhado e ambicioso é capaz de pôr imediatamente em prática tudo o que aprende; Lew nunca mais se impressionou com as casas de subúrbio que conhecia, com crianças brincando na rua em carrinhos de rolimã. Já era setembro quando foi convidado a visitar os Gunther de forma mais íntima, e isso porque a mãe de Amanda insistira. “Ele salvou sua vida. Quero que o convide para o baile.” Mas Amanda ainda não o perdoara por ele a ter salvo. “É uma festa só para os amigos”, queixou-se. “Por que não o convida para o baile de debutante de Jean em outubro? Todo mundo vai pensar que ele é um dos conhecidos de papai nos negócios. Podese ser gentil com uma pessoa sem que seja preciso dançar com ela.” Corretamente, a sra. Gunther traduziu isso como: “Pode-se também ser horrível com uma pessoa sem que ela perceba” — e bruscamente silenciou Amanda: “Não se pode ter vantagens sem responsabilidades”. A vida se abria tão depressa para Lew que ele teve um smoking preto antes de ter um smoking roxo. Convidado para o jantar, chegou cedo; e, pensando em dar-lhe sua cota de atenção quando isso fosse mais conveniente, Amanda levou-o a passear pelo jardim menos à vista. Esperava morrer de tédio, mas Lew a desarmou com sua suave vitalidade e fez com que ela olhasse para ele quase que pela primeira vez. “Tenho ouvido dizer que você é um rapaz de futuro”, ela disse. Lew admitiu que sim. Gabou-se um pouco; não lhe contou que analisara o fascínio que a casa dos Gunther exercia sobre ele — seu pai fora jardineiro de uma propriedade parecida em Maryland quando ele tinha cinco anos. Sua mãe ajudou-o a se lembrar disso quando ele lhe falou dos Gunther. E agora esse jardim brilhava ao pôr-do-sol, com Amanda como uma de suas flores, com seu vestido também florido. O que ele lhe disse, num surto de emoção, foi como ela estava bonita, e Amanda, excitada pela perspectiva de passar as próximas horas com outro homem, permitiu-se encorajá-lo. Lew nunca se sentiu tão feliz como no momento em que ela se levantou do banco e pôs a mão em seu braço. “Gosto de você”, ela disse. “Você é muito bonito, sabia?” O baile acontecia num espaço em L formado por três aposentos que foram desocupados. Cerca de trinta jovens estavam lá, além de uns dez pais, mas não se sentia a superlotação, porque três grandes janelas se abriam para a varanda e os casais tinham a sensação de dançar numa noite infinita. Uma orquestra da região revezava com o fonógrafo, bebia-se um suave ponche de cidra e respirava-se a segurança que emanava das prateleiras da biblioteca e dos retratos a óleo da sala, como se aquele fosse um dos inúmeros bailes que já tinham acontecido ali e continuariam acontecendo. “Pensei que nunca fosse me tirar”, disse Bess para Lew. “Você seria um bobo se não fizesse isso. Sou a melhor dançarina das três e também a mais esperta. Jean é a mais assanhadinha, a mais chic, mas considero passé ser assanhada, aprontar armadilhas para os rapazes e sair aos beijos com o primeiro que aparece. Amanda é a mais bonita, claro. Mas eu é que vou ser a Cinderela, senhor Lowrie. Elas vão ser as duas irmãs más. Aos poucos o senhor vai me achar a mais linda e ficar de cabeça virada por minha causa.” Houve um intervalo interminável antes que Lew conseguisse manobrar Amanda para seu cantinho

favorito na varanda. Ela estava radiante, tremeluzindo. Mais do que contente por estar com ele, Amanda tentou relaxar ouvindo o rangido do sofá. Seu instinto lhe dizia que algo iria acontecer. Lew, lembrando-se de uma observação de Jean — “Ele me pediu em casamento sem nunca ter me beijado!” —, não conseguia pensar num pretexto gracioso para enlaçar Amanda. Mesmo assim, estava decidido a dizer-lhe naquela noite que estava apaixonado por ela. “Isso pode parecer repentino”, aventurou-se, “mas é melhor você saber logo. Por favor, me ponha na lista dos que gostariam de ter uma chance com você.” Ela não ficou surpresa, mas, como estava muito voltada para si mesma no momento, foi como se tivesse levado um susto. Abandonando a idéia de relaxar, aprumou-se no sofá. “Senhor Lowrie — posso chamá-lo de você? —, posso lhe dizer uma coisa? Não, não vou... Ah, vou, sim, porque agora gosto de você. A princípio não gostava. Que tal minha franqueza?” “É isso que queria me dizer?” “Não. Escute. Sabe o senhor Horton, o homem de Nova York, aquele alto com um cabelo meio fora de moda?” “Sim.” Lew sentiu uma estocada de premonição no estômago. “Estou noiva dele. Você é o primeiro a saber — só mamãe suspeita. Uau! Bem, já contei, porque você salvou minha vida e, de certa maneira, é meu dono — eu nem pensaria em ficar noiva, exceto de você.” Então se surpreendeu diante da expressão dele. “Deus do céu, não fique assim!” Ela o olhou, condoída. “Não me diga que está secretamente apaixonado por mim esses meses todos. Por que não fiquei sabendo? Agora é tarde!” Lew tentou rir. “Eu mal a conheço”, confessou. “Não tive tempo de me apaixonar por você.” “Talvez eu seja muito apressada. Enfim, se você tivesse se apaixonado, teria de esquecer o assunto e ser meu amigo.” Tomou a mão dele e apertou-a. “Hoje é uma grande noite para esta garotinha, Lew; é minha chance na vida. Passei dois dias com medo de que a gaveta dele emperrasse ou que a água quente evaporasse e ele voltasse para a civilização.” Ficaram em silêncio por um momento. Depois, ele perguntou: “Está muito apaixonada por ele?” “Claro que estou. Quer dizer, não sei. Você é que vai me dizer. Já me apaixonei por tantos; como posso saber? Seja como for, vou cair fora deste estábulo.” “Desta casa? Você quer ir embora daqui? Ora, é uma casa tão antiga e linda.” Ela agora estava atônita e, subitamente, explosiva. “Esta antiga tumba! Ela é a principal razão pela qual vou me casar com George Horton. Já não a suportei por vinte anos? Já não implorei a papai e mamãe de joelhos para nos mudarmos para a cidade? Esta... palhoça, onde todo mundo pode ouvir o que todo mundo diz a três cômodos de distância, e papai nunca quis ter um rádio, nem mesmo um telefone, até o verão passado. Tenho medo inclusive de convidar alguma colega para passar a noite aqui — ela ficaria louca ouvindo as persianas numa noite de tempestade.” “É uma linda casa antiga”, ele insistiu, automaticamente. “Linda e antiquada”, ela concordou. “Que bom que você gosta. Quem não é obrigado a morar nela geralmente gosta, mas você devia nos ver sozinhas aqui — se acontece uma discussão em família, ela dura horas. E só porque papai gosta de morar a oitenta quilômetros de qualquer lugar, estamos condenadas a apodrecer. Prefiro um apartamentinho de três quartos na cidade!” Chocada com sua própria veemência, ela se calou. “Enfim”, continuou, “pode parecer linda para você, mas é um estorvo para nós.”

Um homem afastou as parreiras e olhou para eles, tomou Amanda pelas mãos e a pôs de pé; quando ela se foi, Lew foi até o parapeito e desceu para o jardim; caminhou para bem longe, até que as luzes e a música vindas da casa se dissipassem em algo como um efeito teatral, como um porto visto à distância, à noite, do convés de um navio. “Só a vi quatro vezes”, disse a si mesmo. “Quatro vezes não são muito. Uni-duni-tê-salamê... o que eu poderia esperar de quatro vezes? Não tinha que sentir nada.” Mas estava assolado de medo. O que ele passara a saber que, agora, jamais chegaria a saber? O que acontecera naqueles momentos à tarde no jardim? Qual fora a emoção que se apagara no exato instante em que surgira? A emergente imagem de Amanda — ele não queria carregá-la consigo para sempre. Aos poucos, foi percebendo uma verdade por trás de sua dor: ele chegara tarde; sem que soubesse, ela já fugia para longe dele havia anos. Contra tudo, conseguira plantar-se em rocha firme e, então, ao olhar em volta para procurar a moça, descobrira que ela se fora. “Lamento, mas acabou de sair; foi embora nesse instante.” Tarde demais em todos os aspectos — até para a casa. Pensando no que ela dissera, Lew concluiu que chegara atrasado para a casa; era a casa de uma infância com que as três moças estavam rompendo, a casa de uma geração mais velha e, por isso, suficiente para ela. Para uma geração mais jovem, tinha uma aura de completude e realização que superava sua capacidade de acrescentar qualquer coisa mais. Era só uma casa velha. Mesmo assim, ele se lembrava do vazio de muitas mansões imponentes, construídas de forma ainda mais espetacular — vazias para ele, desde que vira pela primeira vez a casa dos Gunther três meses antes. Alguma coisa de grande valor humano se perderia com o rompimento daquela família. A própria casa, projetada para a leitura de longos romances vitorianos em noites à luz da lareira, não pertencia a nenhum período arquitetônico digno de restauração. Lew contornou uma estradinha externa e viu-se em silêncio à sombra de uma roseira, exatamente quando um casal saía da casa; reconheceu as vozes de Jean e Allen Parks. “Já decidi, vou para Nova York”, Jean disse, “e não quero saber se vão deixar... Não, agora não, você é louco. Não estou com vontade.” “Então está com vontade de quê?” “Com vontade de nada. Só estou com inveja de Amanda, porque ela fisgou aquele M’sieur e vai viver com ele numa casa em Long Island, e não nesta ratoeira. Ah, essa coisa de ser rica, mas humilde...” Ficaram fora do alcance de seus ouvidos. Era a pausa da orquestra, e Lew viu pelas janelas as cores dos vestidos e o branco fugidio do peito das camisas, à medida que os convidados iam para a varanda. Olhou para o segundo andar quando uma luz se acendeu nele — na sua imaginação, as paredes daquele andar eram forradas de fotografias; devia haver malas repletas de coisas antigas, baús com fantasias, manequins, velhas casinhas de boneca e nas paredes vazias uma torrente de livros para todas as gerações — uma quantidade de infâncias escorrendo por todos os cantos. Outro casal surgiu na alameda, vindo da casa e, suspeitando de que, sem querer, estava numa posição estratégica, Lew resolveu sair dali; mas não sem antes identificá-los como Amanda e o homem de Nova York. “O que você acharia se eu lhe dissesse que recebi outra proposta de casamento esta noite?” “Não ficaria nem um pouco surpreso.” “Um rapaz de muito valor. Salvou minha vida... Por que não era você que estava lá para me salvar, Bubbles? Você me teria salvo de modo espetacular, tenho certeza.” De pé diante da casa, Lew contemplou-a com mais profundidade. Sentia um parentesco com a casa — não exatamente isso, porque a utilidade dela já estava quase no fim e a dele, apenas começando;

melhor dizendo, aquele mesmo sentimento de superioridade que certos jovens atribuem aos mais velhos, a superioridade de um avô. Aquela era mais que uma casa. Ele gostaria de se ver tão esgotado quanto ela antes de ser jogado a um canto na velhice. Em seguida, por querer prestar um serviço a casa enquanto podia, mesmo que fosse dançar com aquela arrogante irmãzinha, passou um pente de metal no cabelo e entrou.

II. O homem da cicatriz aproximou-se de Lew mais uma vez. “Esta deve ser a maior festa da história de Nova York”, declarou. “Ouvi quando você disse isso da primeira vez”, concordou Lew alegremente. “Mas, por outro lado”, calculou o homem, “pensei o mesmo de uma festa há dois anos, em 1927. Provavelmente as festas vão se tornar cada vez maiores. Você joga pólo, não joga?” “Só no quintal”, afirmou Lewis. “Apenas falei que gostaria de jogar. Sou um homem de negócios muito sério.” “Alguém me disse que você era um astro do pólo.” O homem parecia meio desapontado. “Sou escritor. Um filan.... filantropo. Tentei ajudar uma garota lá naquela sala onde eles guardam o champanhe. É uma moça distinta. E, caramba, é a única na sala que não sabe se cuidar.” “Nunca tente ajudar ninguém”, Lew aconselhou-o. “A pessoa acaba odiando você por isso.” Mas, embora o apartamento, ou a série de apartamentos e coberturas agregados para a festa, representasse os melhores recursos do skyline de Nova York, não passava de um limitado espaço metropolitano, e, esgueirando-se entre os remoinhos de dançarinos, mais escassos ao raiar do dia, Lew viu-se finalmente na sala de que o homem falara. De início ele não reconheceu a garota que assumira o papel de divertir aqueles cidadãos esgazeados, escolhidos por seleção natural para personificar a dissolução; só então, quando ela dirigiu um convite coletivo a uma plêiade de vedetes do vaudeville para irem para o Sul recuperar-se em suas propriedades em Maryland, é que ele reconheceu Jean Gunther. Ela era a ovelha negra dos Gunther — negra, resplandescente e rodada. Lew, agora morando em Nova York, nunca mais encontrara ninguém da família desde o casamento de Amanda, quatro anos antes. Ao levar Jean de carro para casa, quinze minutos depois, extraiu dela as notícias que pôde; depois, ao nascer do sol, deixou-a na porta de seu apartamento, amassada e trôpega, mas ainda orgulhosa, e cambaleando com absoluta formalidade ao agradecer-lhe e se despedir dele. Ele a visitou no dia seguinte e levou-a a tomar chá no Central Park. “Sou a filha do século”, ela o informou. “Outras pessoas se dizem filhas do século, mas a filha do século sou eu. E estou me divertindo à larga com isso.” Pensando em outros tempos — de rapazes em quadras de tênis, pãezinhos quentes no fim da tarde e hera e glicínias subindo pelo parapeito ornado de uma varanda —, Lew sentiu-se tão moralista quanto era possível naquele inesquecível ano de 1929. “E o que está ganhando com isso? Por que não investe em algum homem confiável, como uma espécie de segurança?” “Os homens só servem para investir dinheiro para a gente”, ela desviou o assunto. “No ano passado, um amoreco espichou minha pensão de tal forma que ela durou dez meses em vezes de três.” “Mas que tal escolher um candidato e se casar com ele?” “Não tenho nenhum. Na verdade, conheço quatro... cinco... conheço seis milionários com quem talvez pudesse me casar. Esta garotinha do condado de Carroll. Mas é muito. Agora, se aparecesse alguém que tivesse tudo...” Olhou para Lew, com ar de aprovação. “Você, por exemplo, melhorou.”

“Acho que sim”, admitiu Lew, rindo. “Vou até as estréias da Broadway. Mas a coisa mais bonita a meu respeito é que me lembro dos velhos amigos e, entre eles, as lindas Gunther do condado de Carroll.” “Você é muito gentil”, ela disse. “Estava terrivelmente apaixonado por Amanda?” “Acho que sim.” “Estive com ela na semana passada. Ficou super-Park Avenue e está muito ocupada tendo filhos do tipo Park Avenue. Tem vergonha de mim e conta a todos os amigos sobre nossa magnífica fazenda no velho Sul.” “Costuma ir a Maryland?” “Se vou? Vou domingo à noite, para passar dois meses e economizar dinheiro para voltar. Quando mamãe morreu”, fez uma pausa, “deve ter sabido que mamãe morreu... fiquei com uma parte do dinheiro vivo, e ainda tenho algum, mas ele tem de ser esticado para durar, entende?”, esticou o guardanapo, “com investimentos sólidos. Acho que o próximo passo é um verão tranqüilo na fazenda.” Lew levou-a ao teatro na noite seguinte, curiosamente excitado pelo encontro. A selvagem exuberância daqueles tempos se revelava nela; percebia que a pulsação de Jean parecia às vezes correr a um ritmo anormal, mas a maioria das jovens que conhecia levava uma vida louca, exceto aquelas aprisionadas na domesticidade. Não tinha críticas a fazer a ela — além disso, não ousaria criticá-la. Tendo subido a partir de um dos degraus mais baixos da escada, aprendera a basear seus padrões naquilo que podia ver de onde estava no momento. Longe dele dizer a Jean Gunther o que fazer da vida. Ao descer do trem em Baltimore três semanas depois, sentiu aquele calor peculiar que precede uma tempestade com raios. Ignorou os táxis comuns e tomou uma limusine para a longa viagem até o condado de Carroll, e, enquanto atravessava a rica vegetação, moribunda em pleno verão entre as cercas brancas que margeavam a estrada, o tempo voltou, e ele era de novo o jovem faminto por um lar que vira pela primeira vez a casa dos Gunther quatro anos antes. Desde então, mudara-se para um apartamento de doze cômodos em Nova York e alugara uma casa de verão em Long Island, mas seu espírito, ferroado pela solidão e disperso por tantas mudanças, voltava persistentemente àquela casa. Como era inevitável, ela se revelou menor do que ele esperava, uma pequena casa grande, com mais aposentos que espaço. Tinha um ar de intangível abandono — sua cor castanho-esverdeada era apenas um produto do sol; Lew nunca soubera que o estábulo tinha uma inclinação como a da Torre de Pisa; ou que o jardim sempre fora deixado para crescer de forma vulgar e selvagem. Jean estava no pórtico — não, como ela mesma profetizara, no papel de rainha da chita ou de amazona rural, mas totalmente Rue-de-la-Paix contra as almofadas marrons do sofá de balanço. Lá estava William, o robusto mordomo negro de quem Lew se lembrava e que, com astúcia racial, fingiu grande satisfação ao revê-lo. Levou sua mala para o antigo quarto de Amanda, e Lew examinou o quarto antes de descer. Jean e Bess o esperavam para um drinque na varanda. Espantou-o que Bess tivesse saltado da infância para algo que não era exatamente a juventude. Havia em sua beleza um desligamento, quase uma impaciência, como se não tivesse pedido por ela e a encarasse mais como um fardo; para um rapaz, a gravidade de seu rosto devia parecer formidável. “Como está o pai de vocês?”, Lew perguntou. “Não vai descer esta noite”, disse Bess. “Ele não está bem. Já passou dos setenta, você sabe. As pessoas o cansam. Quando temos convidados, ele janta no quarto.” “Seria melhor que comesse no quarto dele de uma vez”, observou Jean, servindo os drinques. “Não, não seria”, rebateu Bess. “Os médicos dizem que não seria. Esse assunto não se discute

mais.” Jean virou-se para Lew. “Há mais de um ano que Bess não sai desta casa. Nós poderíamos...” “Que mentira! Ando a cavalo todo dia de manhã.” “... poderíamos contratar uma enfermeira, que daria conta do recado.” O jantar foi formal, com velas na mesa e as duas moças em vestido de noite. Lew sentiu falta de muita coisa, da sensação de que a casa fervia de atividade, de vida em expansão — tudo isso acabara. Era difícil para a família, agora encolhida, fazer mais do que habitar a casa. Não havia reposição nos lugares vazios; apenas continuava-se ali, anacronicamente, entre um passado que se extinguia e um futuro impossível de calcular. Em meio ao jantar, Lew levantou a cabeça numa pausa da conversa, mas o que ele confundira com o murmúrio de um trovão era um longo gemido vindo do andar de cima, seguido por uma fala compassada, cujas palavras foram interrompidas pelo barulho de Bess ao levantar-se rapidamente da cadeira. Alguém gritou lá de cima: “Você sabe o que eu pedi para o jantar! Enquanto eu for o chefe desta...” “É papai.” Jean olhou para Lew como se achasse aquela situação ligeiramente cômica, mas, ao ver seu rosto preocupado, ela continuou, séria: “É melhor você saber. Ele tem demência senil. Não é perigoso. Às vezes ele volta totalmente ao normal. Mas é duro para Bess”. Bess não desceu; depois do jantar, Lew e Jean foram para o jardim, salpicado das primeiras gotas da chuva que se aproximava. À viva luz verde do crepúsculo, Lew seguiu o vestido longo de Jean, pontilhado de rosas vermelhas e brilhantes — o primeiro que ele via no gênero; naquele silêncio tenso, teve uma ilusão de intimidade com ela, como se partilhassem segredos de muitos anos e, quando, a um estrondo mais forte, ela pegou de repente em seu braço, ele a trouxe para si com o outro braço e beijou sua boca orgulhosa e bem desenhada. “Bem, até que enfim você beijou uma Gunther”, disse Jean, com voz leve. “Que tal? Não acha que está se aproveitando de nós, tão desprotegidas aqui no meio do mato?” Ele a olhou como se ela estivesse brincando e, sempre rindo, ela tomou de novo seu braço. Começou a chover de verdade e eles correram para dentro de casa, onde encontraram Bess, de joelhos na biblioteca, acendendo a lareira. “Tudo bem com papai”, ela informou. “Gosto de lhe dar o remédio apenas quando não há mais jeito. Está preocupado com um homem que lhe emprestou vinte dólares em 1892.” Bess continuou por ali, consciente de estar sobrando, mas impelida a desempenhar o papel de sua mãe e transmitir uma certa solidariedade antes de se retirar. A chuva caiu de vez, guinchando contra as janelas, e Bess aproveitou a oportunidade para ir checar as janelas do andar de cima. Dali a pouco gritou: “O telefone está tocando. Você acha que é perigoso atender?” “Claro que não”, Jean gritou de volta. “Se fosse, não estaria tocando.” Aproximou-se de Lewis no centro da sala, longe das janelas açoitadas pela chuva. “É estranho ter você aqui. Na verdade, é ótimo que esteja. Mas, mesmo que não estivesse, acho que daríamos um jeito.” “Quer que eu ajude Bess a fechar as janelas?” Ao mesmo tempo, Bess gritou de novo: “Atendi o telefone, mas não há ninguém falando e não gosto de ficar segurando esse aparelho.” Um trovão devastador sacudiu a casa e Jean atirou-se nos braços de Lew, separando-se dele ao ver Bess descer as escadas às pressas com um uivo de aflição. “As luzes se apagaram lá em cima”, disse. “Nunca tive medo de tempestade quando era pequena.

Papai nos obrigava a sentar na varanda, lembra-se?” Um clarão penetrou por todas as janelas do primeiro andar, refletindo-se nos espelhos de tal modo que cada aposento foi banhado por uma luz branca; seguiu-se um som de um milhão de fósforos sendo acesos ao mesmo tempo, tão alto e terrível que o trovão ficou em segundo plano; depois, um som de estilhaço separou-se do resto, e ouviu-se a voz de Bess: “Esse acertou!” Mais uma vez veio o terrível clarão e, vencendo o pandemônio sonoro, eles foram de janela em janela, até que Jean gritou: “É o quarto de William. A árvore caiu em cima!” Num átimo, Lew escancarou a porta da cozinha e viu, no clarão seguinte, o que tinha acontecido: a enorme árvore, ao cair, separara do resto da casa a ala do quarto de William. “William está lá?” “Deve estar.” Munindo-se de coragem, Lew atirou-se pelos cinco metros de charco recém-criado e, usando um instrumento da cozinha, quebrou a janela mais próxima. Inundado de chuva e trovão, deu-se conta de que a tempestade estava se afastando e de que sua voz já se fazia ouvir: “William! Você está bem?”. Nenhuma resposta. “William!” Fez uma pausa e ouviu uma resposta: “Quem é?” “Você está bem?” “Quero saber quem é.” “A árvore caiu em cima de você. Está machucado?” Da cabana, ouviu-se uma súbita gargalhada, como se o mordomo emergisse mentalmente de suas negras e atávicas superstições. De novo soou a gargalhada. “Machucado? Machucado, eu não. Nada me machuca. Estou muito bem, como se diz. Nada me machuca.” Irritado por ver suas roupas se desfazendo, Lew disse bruscamente: “Bem, fique sabendo que você está preso aí. Tente sair por uma janela. A árvore é muito grande para ser puxada esta noite.” Meia hora depois, em seu quarto, estendeu suas roupas ensopadas ao calor de uma única vela. Deitado nu na cama, lamentou estar naquelas condições, desnecessariamente exausto pelo esforço de puxar um homem obeso para fora de uma janela. Então, sobre o rumor do trovão, escutou o telefone tocando de novo no hall e a voz de Bess: “Não consigo ouvir você. Ligue de novo”, e, por trinta segundos, cochilou, sendo acordado pelo estalo de sua porta se abrindo. “Quem é?”, ele perguntou, puxando o cobertor sobre o corpo. A porta se abriu devagarinho. “Quem é?” Escutou um risinho; um último relâmpago revelou-lhe três dedos tensos e cheios de veias azuis, e a seguir a voz de homem sussurrou: “Só queria ver se você estava aqui esta noite, minha filha. Eu me preocupo... me preocupo”. A porta se fechou com cuidado e Lew concluiu que era o velho Gunther, em alguma espécie de ronda noturna. Incapaz de dormir, enfiou-se em sua única muda de roupa, escutando Bess pela terceira vez ao telefone: “... de manhã”, ela dizia. “Não dá para esperar? Temos que conseguir uma ligação.”

No andar de baixo, encontrou Jean surpreendentemente alerta ao pé do fogo. Ela lhe fez um sinal, e ele se postou de pé a seu lado, subitamente indiferente a seu convite para beijá-la. Tentando ainda decidir como se sentia, afagou-lhe levemente os ombros. “Seu pai está andando pela casa. Foi ao meu quarto. Você não acha que devia...” “Ele sempre faz isso”, disse Jean. “É uma ronda noturna para ver se estamos na cama.” Lew olhou-a duramente; uma suspeita que vinha ocupando seu subconsciente assumiu uma forma tangível. Uma expressão vazia e linda o contemplava; mas seus ouvidos estavam concentrados no andar de cima, onde Bess continuava lutando com o telefone. “Está bem. Vou tentar anotar assim... Efe-a-ele-e-cê-e-u... fa-le-ceu. Certo. Faleceu. ‘Faleceu’?” Sua voz, ao completar a palavra, foi sacudida pelo pânico. “O que você disse? Amanda Gunther faleceu?” Jean olhou para Lew de um jeito engraçado. “Por que Bess está tentando pegar essa mensagem agora? Por que não...” “Cale-se!”, ele ordenou. “Isso é sério.” “Não vejo nenhuma...” Alarmado pelo silêncio que tomara o alto da escada, Lew subiu correndo e encontrou Bess sentada ao lado da mesinha do telefone, com o aparelho no colo, arfando e de olhos arregalados. Ele tomoulhe o telefone e pegou a mensagem: “Amanda faleceu ao dar à luz um menino.” Lew tentou levantar Bess da cadeira, mas ela afundou de volta, entregue a um choro seco. “Não conte a papai esta noite.” O que importava se isso se somasse àquela barafunda de lembranças confusas? Mas importava para Bess. “Vá”, sussurrou. “Vá contar a Jean.” Mas uma premonição já tomara conta de Jean, e ela estava ao pé da escada quando ele desceu. “O que houve?” Ele a conduziu meigamente de volta à biblioteca. “Amanda morreu”, disse, ainda amparando-a. Ela reuniu todas as suas forças e começou a gritar, mas ele fechou-lhe a boca com a mão. “Você estava bebendo”, ele disse. “Precisa se controlar. Não sobrecarregue mais sua irmã.” Jean se controlou visivelmente — primeiro, sua boca orgulhosa, depois o corpo inteiro —, mas o que podia ser heróico em outras condições pareceu a Lew apenas desprezível, um reles esforço animal. Tudo o que ele começara a sentir por ela esvaiu-se em alguns segundos do relógio. Duas horas depois, a casa estava tranqüila, sob o comando de uma cozinheira aposentada que Bess mandara chamar; Jean fora posta para dormir com um sedativo por um médico de Ellicott City. E foi só ao voltar para a cama que Lew finalmente pensou em Amanda, e chorou de repente, ainda que só por um instante. Ela já não existia — seu segundo, não, terceiro amor —, morta em combate. Pensou no jardim que respingava lá fora e na inocência da natureza na noite que se abria. Se não estivesse tão cansado, se vestiria e iria passear por entre as samambaias, para olhar mais uma vez para a casa e seus habitantes, mas de uma forma um pouco mais impessoal — o velho arruinado, a jovem desmoronando e envelhecendo com ela, a outra jovem escapando pela dissipação. Caminhando por entre aqueles sonhos destruídos, foi dar, na sua imaginação, ao lugar em que a árvore ao cair dividira o quarto de William do resto da casa, e ali se deixou ficar, no escuro de uma sombra, tentando juntar os cacos do que pensava sobre os Gunther. É loucura, concluiu, todo esse apego ao passado. Eu estava errado. Alguns de nós sobreviveremos,

ao passo que essas pessoas e esse telhado não resistirão ao tempo. Vou ficar feliz em dar o fora daqui para sempre e voltar amanhã para o ambiente fresco, novo e limpo de Wall Street. Somente uma vez acordou durante a noite, ao escutar o velho Gunther falar com voz trêmula sobre vinte dólares que tomara emprestados em 1892. Ouviu a voz de Bess acalmando-o e, pouco antes de dormir de novo, a velha empregada negra silenciando as duas vozes.

III. Os negócios de Lew levavam-no com freqüência a Baltimore, e, com os anos, ela parecia voltar a ser a Baltimore que ele conhecera antes de se ligar aos Gunther. Pensava neles muitas vezes, mas, depois da noite da morte de Amanda, nunca mais voltara lá. Em 1933, o papel que a família desempenhara em sua vida parecia tão remoto — exceto pelo inesquecível fato de que fora ela que definira suas idéias sobre a vida — que ele podia pegar a estrada Frederick e passar pelo ponto em que ela descia para o condado de Carroll sem uma sensação de reconhecimento. Desta vez, impelido por um motivo indefinido, parou o carro. Era pleno verão; um coelho cruzou a estrada à sua frente e um esquilo fazia acrobacias num galho arqueado. A casa dos Gunther ficava na encruzilhada seguinte, a cinco minutos de distância — em meia hora poderia satisfazer sua curiosidade sobre a família; mesmo assim, hesitou. Com penosas conseqüências, tentara certa vez repetir o passado, e agora, em tempos normais, bastava seguir em frente com a sensação de haver deixado o passado totalmente para trás. Mas, não fazia muito tempo, concluíra que a vida nem sempre era uma progressão, ou uma busca de novos horizontes, tampouco uma fuga. Os Gunther eram uma parte dele; não conseguiria viver com seus novos amigos as mesmas coisas que vivera com os Gunther. Se a lembrança que tinha deles se extinguisse, algo dentro dele também se extinguiria. O vôo do esquilo entre os galhos, o vento provocando as folhas, o galo cantando ao longe, um raio de sol transpirando na imobilidade, tudo o embalou num transe adolescente, e ele se recostou contra o assento. Ficou assim por dez minutos até que o “po-co-tó, po-co-tó, po-co-tó” de um cavalo se aproximando se fez ouvir na curva da estrada. O cavalo trazia uma moça em calças de montaria. Curvando-se para olhar, Lew reconheceu Bess Gunther. Saltou do carro. O cavalo se assustou quando Bess o fez parar assim que reconheceu Lew. “Senhor Lowrie!... Êêê! Calma, garota!... De onde saiu? O carro quebrou?” Era um rosto lindo e triste, mas pareceu a Lew que algo o rejuvenescera, como se ela tivesse finalmente abandonado aquela noção grandiosa de responsabilidade que a fazia parecer mais velha quatro anos antes. “Estava pensando em vocês”, ele disse. “Pensando em lhes fazer uma visita.” Percebendo a sombra de uma dúvida em seu rosto, ele se apressou em concluir, sorrindo: “Não exatamente uma visita, mas uma visitinha rápida. Estou com dinheiro... hoje em dia, às vezes, é preciso explicar as coisas.” Ela também riu: “Só estava pensando no fato de que a casa está cheia e onde o alojaríamos”. “Estou a caminho de Baltimore. Por que não desce do cavalo e vem sentar-se comigo no carro um pouco?” Ela amarrou a égua numa árvore e entrou no carro. Lew não imaginava que uma beleza tão cintilante pudesse ter sobrevivido aos anos 20 — exceto pelo fato de que, quando ela não estava sorrindo, podia-se ver, em três pequenas rugas de expressão, que ela continuava uma moça séria. Teve uma rápida lembrança de Amanda numa tarde de agosto e, olhando para Bess, reconheceu tudo que sempre recordava em Amanda.

“Como está seu pai?” “Papai morreu no ano passado. Ficou de cama um ano antes de morrer.” Sua voz parecia uma cantilena muito repetida. “Foi melhor assim.” “Lamento. E Jean? Está onde?” “Jean se casou com um chinês — ou melhor, casou-se com um sujeito que mora na China. Nunca o vi.” “Quer dizer que você mora sozinha aqui?” “Não, há também minha tia.” Hesitou. “De qualquer forma, vou me casar na semana que vem.” Inexplicavelmente, seu diafragma acusou a velha sensação de perda. “Parabéns! Quem é o infeliz...” “Da Filadélfia. A turma foi às corridas de cavalo esta tarde. Vim dar um último passeio com Júniper.” “Vai morar na Filadélfia?” “Ainda não está nada certo. Estamos pensando em construir outra casa no lugar, botar abaixo a antiga. Ou reformá-la.” “Vale a pena fazer isso?” “Por que não?”, ela se apressou em dizer. “Alguma coisa nela pode ser aproveitada. Os arquitetos disseram.” “Você gosta dela, não é?” Bess pensou um pouco. “Eu não diria que ela é a minha idéia de modernidade. Mas sou o tipo de moça caseira.” Acentuou as palavras com ironia. “Nunca fiz grandes espalhafatos em Baltimore, você sabe — sou o fracasso da família. Nunca tive aquela coisa que Amanda e Jean tinham.” “Talvez você não quisesse ter.” “Quando eu era jovem, eu achava que queria.” A égua relinchou peremptoriamente e Bess desceu do carro. “Portanto, essa é a história, Lew Lowrie, da última Gunther. Você sempre teve um carinho por nós, não teve?” “Se tive! Se pudesse ficar em Baltimore, faria questão de ir ao seu casamento.” Pela expressão perdida de seu rosto, ele se perguntou a quem ela estava se dando, a quem estava entregando seu eu tão precioso. Ele agora sabia mais sobre as pessoas e sentia o aço sob a ternura de Bess, as vigas que transpareciam sob as curvas suaves de suas faces e de seu queixo. Era uma pessoa bonita, e ele esperava que seu marido fosse um bom sujeito. Quando ela desapareceu com o cavalo por uma alameda verde, ele pegou relutantemente a estrada para Baltimore. Aquele era o fim de uma experiência humana que evocava velhas imagens que se reagrupavam ao redor dele — suponhamos que ele tivesse se casado com uma das irmãs... O passado, deslizando sob as rodas do carro, evocava sua perspicácia com seus rangidos. “Talvez eu sempre tenha sido um intruso naquela família...” E só então lhe ocorreu: “Mas por que Bess estaria cavalgando de chinelos?”. Parou para comprar cigarros numa loja da estrada. Um jovem empregado o atendeu com a típica lentidão local. “Grande casamento hoje nos Gunther, hein?”, disse Lew. “O quê? Dona Bess vai casar?” “Semana que vem. Mas a festa já está acontecendo hoje.” “Olha só, quem diria! E a gente querendo saber onde elas iriam dormir, depois que Mark H.

Bourne levou a mobília embora!” “Como é isso? Conte direito.” “Um mês atrás Mark H. Bourne levou a mobília e tudo que havia dentro enquanto dona Bess saía para cavalgar; já estava tudo hipotecado mesmo antes da morte do velho. Dizem por aqui que ela não tem um tostão exceto as roupas de montaria. Mark H. Bourne ficou furioso. Disse que elas venderam todos os móveis bons sem ele saber... Aqui estão seus dez centavos de troco.” “Do que ela e a tia vivem?” “Nunca ouvi falar de tia nenhuma — estou aqui há só um ano. Quem cuida do jardim é ela mesma. De nós, só compra açúcar, sal e café.” Tudo era possível naqueles tempos, mas Lew se perguntava que fantástico orgulho inspirara Bess a contar aquelas mentiras. Deu à ré no carro e voltou para o sítio Gunther. A casa da qual ele agora se aproximava estava completamente abandonada, o jardim transformado em selva; um dos lados da varanda desabara sobre os pilares de tijolos e fora ao chão; um telhado de ardósia, deixado incompleto, apodrecia sem pintura; uma vidraça quebrada espiava de uma janela na biblioteca. Lew entrou sem bater. Uma voz disse alguma coisa na sala de jantar e ele foi para lá, seus passos ecoando muito alto no assoalho nu, pelos aposentos vazios de mobília e livros, vazios de tudo exceto de poeira. Bess Gunther, usando o mais modesto dos vestidos caseiros, levantou-se de um caixote onde estava sentada, com medo nos olhos; uma colher de lata retiniu na caixa que usava como mesa. “Estava brincando comigo?”, ele perguntou. “É assim que está vivendo?” “Ah, é você.” Sorriu, aliviada, e, com visível esforço, tentou derivar para amenidades. “Pegue um caixote, senhor Lowrie. Os de lata são melhores; o acabamento é mais fino. E seja bem-vindo aos grandes espaços. Fume um charuto, aceite uma taça de champanhe, prove esse ensopado de coelho e conheça meu noivo.” “Pare com isso.” “Está bem”, ela concordou. “Por que não sai daqui e vai viver com seus parentes?” “Não tenho parentes. Jean está na China.” “E você não faz nada? O que espera que aconteça?” “Esperava por você, eu acho.” “O que quer dizer com isso?” “Você sempre apareceu quando foi preciso. Pensei que, se aparecesse, eu faria um teatrinho por alguns momentos. Mas, quando chegou a hora de desmentir, achei que era melhor mentir. Acho que não tenho a classe que minhas irmãs tinham.” Lew a fez levantar-se do caixote e enlaçou-a pela cintura. “Não para mim.” A vitalidade que ela demonstrara quando Lew a encontrou na estrada parecia ter fugido dela; olhou para ele com ar de grande cansaço. “Quer dizer que você gostava das Gunther”, sussurrou. “Gostava de todas nós.” Lew tentou pensar, mas seu coração batia tão depressa que ele apenas a depositou de novo no caixote e passou a andar de um lado para o outro. “Vamos nos casar”, ele disse. “Não sei se amo você — nem mesmo a conheço direito —, mas saber que você está em dificuldades me deixa fisicamente doente.” De repente, pôs-se de joelhos diante dela, para que ela não lhe parecesse tão insuportavelmente pequena e impotente. “Senhorita Bess Gunther, quer dizer que era você que eu estava destinado a amar esse tempo todo?”

“Não fique tão ansioso”, ela riu. “Não estou habituada a ser amada. Eu nem saberia o que fazer; nunca aprendi.” Olhou-o, tímida e fatigada. “Pois aqui estamos. Eu lhe disse, há muitos anos, que a Cinderela seria eu.” Ele tomou sua mão; ela a retirou instintivamente e depois a pôs de volta. “Desculpe. Não estou habituada nem a ser tocada. Mas não tenho medo de você, desde que fique quieto e não faça movimentos súbitos.” Era a velha história da moça reservada, incompreensível para Lew, talvez porque os motivos estivessem num passado que ele não partilhara. Com aquelas três jovens, os fatos pareciam revelarse de forma precipitada, abrindo caminho por uma alegre superfície; eram sempre coisas insuspeitas, tendências e predileções estranhas a um homem acostumado a linhas retas. “Eu era a irmã conservadora”, disse Bess. “Não que gostasse menos de ter prazer, mas, quando se trata de três meninas, alguém tem de ser o menino e, aos poucos, este se tornou o meu papel... Sim, pode me tocar. Toque meu rosto. Quero ser tocada; quero ser abraçada. E estou feliz que seja você; mas você tem de ir aos poucos; tem de ser cuidadoso. Tenho medo de ser aquele tipo de pessoa para sempre. Posso viver por você e posso morrer por você, mas nunca soube o que significava o meio do caminho... Sim, isto é um pulso. Você gosta dele? Tenho me divertido muito olhando para mim no último mês, porque há um espelho lá em cima que era muito grande para ser levado embora.” Lew se pôs de pé. “Está bem, vamos começar assim. Vou fazer de você uma pessoa saudável de novo.” “Isso, saudável de novo.” “Que tal se começássemos tocando fogo nessa casa?” “Ah, não!” Ela o levara a sério. “Em primeiro lugar, está no seguro. Em segundo lugar...” “Está bem, então vamos apenas embora. Vamos nos casar em Baltimore, ou em Ellicott City, se você preferir.” “E Júniper? Não posso deixá-la para trás.” “Vamos deixá-la com aquele rapaz da loja.” “A casa não é minha. Está hipotecada, mas eles me deixam morar nela — acho que por remorso, depois que levaram as partituras, os álbuns de recortes. Além disso, nunca conseguiram achar um inquilino.” De minuto a minuto, Lew descobria mais coisas a respeito dela, e gostava do que descobria, mas percebia que, nela, o amor estava incrustado nos anos de sacrifício e que ele teria de cuidar dela como um jardineiro. A tarefa parecia fascinante. “Querida”, ele disse. “Querida! Vamos sobreviver, nós dois, porque você é maravilhosa e estou convencido disso.” “E Júniper... Será que ela conseguirá sobreviver se formos embora?” Ela franziu a testa, depois sorriu — desta vez, sorriu de verdade — e disse: “Me parece que você está se apaixonando”. “Essa é a sua opinião. A minha é a de que esta vai ser a melhor coisa que já aconteceu.” “Prometo ajudar. Insisto em...” Saíram juntos. Bess vestiu sua roupa de montaria e não quis levar nenhum outro objeto. Ao atravessar os emaranhados de ervas daninhas no jardim, Lew virou-se para olhar a casa. “Semana que vem decidimos o que fazer com ela.” Era um brilhante pôr-do-sol. Os raios de luz rosada brincando nos pára-lamas azuis do carro e em seus rostos loucos de felicidade banharam também a casa, a porta paralisada do frigorífico, as calhas de lata enferrujadas, as persianas despencadas, o cimento rachado da alameda, a quadra de tênis

reduzida a depósito de lixo queimado no ano anterior. Não importava sua história futura, todo um trabalho de colaboração humana já havia sido feito. O objetivo da casa fora atingido — já era passado —, um objetivo que visara o bem geral. Um esforço difícil de calcular, de tanto que ela ainda existia em nós. (1933)

Financiando Finnegan

Finnegan e eu temos o mesmo agente literário para vender nossos textos, mas, embora eu tenha estado várias vezes no escritório do senhor Cannon pouco antes ou depois das visitas de Finnegan, nunca cheguei a encontrá-lo. Temos também o mesmo editor e, sempre que eu ia vê-lo, Finnegan tinha acabado de sair. Podia perceber pelos profundos suspiros com que se referiam a ele... “Ah, Finnegan...” “Sim, Finnegan esteve aqui.” ... que a visita de Finnegan tinha sido um acontecimento. Algumas observações insinuavam que ele levara alguma coisa ao sair — o manuscrito, eu pensava, de um de seus romances de enorme sucesso. Finnegan o levara para uma revisão final, uma última versão, das quais se dizia que fazia umas dez até atingir aquela fluência irresistível, aquela graça que caracterizava sua obra. Só aos poucos descobri que a maioria das visitas de Finnegan tinha a ver com dinheiro. “Que pena que você tenha de ir”, o sr. Cannon me dizia. “Finnegan virá aqui amanhã.” E depois de uma pausa: “Provavelmente vou ter de dedicar algum tempo a ele”. Não sei que nota em sua voz me lembrou uma conversa com um nervoso presidente de banco ao saber que Dillinger estava nas vizinhanças. Seus olhos contemplaram a distância e ele falou, como que para si mesmo: “Naturalmente, vai me trazer um manuscrito. É um romance em que está trabalhando, sabe. E uma peça também.” Falava como se referindo a um evento interessante, mas remoto, talvez ocorrido no século XVI; mas seus olhos brilhavam de esperança ao acrescentar: “Ou talvez um conto”. “Ele é muito versátil”, eu disse. “Ah, sim”, empolgou-se o sr. Cannon. “Não há nada que não saiba fazer — desde que se envolva com o projeto. Nunca houve um talento igual.” “Não tenho visto muita coisa dele ultimamente.” “Ah, mas ele está dando duro. Várias revistas estão segurando contos dele.” “Segurando por quê?” “Ah, para uma época mais apropriada, uma subida do mercado. Elas gostam de saber que têm alguma coisa de Finnegan.” Era realmente um nome cravejado de ouro. Sua carreira começara de forma esplendorosa e, mesmo que não tivesse correspondido a seu início fulgurante, pelo menos recomeçara de forma brilhante várias vezes nos últimos anos. Era a eterna promessa da literatura americana — espantoso o que sabia fazer com as palavras, elas cintilavam, adquiriam vida, frases, parágrafos e capítulos que eram obras-primas de tessitura e ritmo. Precisei conhecer um pobre roteirista de cinema que estava tentando extrair uma história lógica de um de seus livros para me dar conta de que ele tinha inimigos. “É bonito de ler”, disse o homem, revoltado, “mas, se você tentar reduzir a coisa a uma história, é

como passar uma semana no hospício.” Do escritório do sr. Cannon, fui à minha editora, na Quinta Avenida, e lá também me informaram de que Finnegan era aguardado no dia seguinte. Na verdade, já estendera de tal forma sua sombra que o almoço no qual eu esperava discutir meu próprio trabalho foi quase todo dedicado a se falar de Finnegan. E, mais uma vez, tive a impressão de que meu anfitrião, o sr. George Jaggers, estava falando mais consigo mesmo do que comigo. “Finnegan é um grande escritor”, disse. “Sem dúvida.” “E é muito boa pessoa, você sabe.” Como eu não tivesse questionado esse fato, perguntei se havia alguma dúvida a respeito. “Ah, não”, ele se apressou a responder. “É que ele tem passado por maus momentos ultimamente...” Concordei, compreensivo. “Eu sei. Aquele mergulho numa piscina semivazia foi uma falta de sorte.” “Não, ela não estava semivazia. Estava cheia de água, até a borda. Você precisa ouvir Finnegan contando a história — é de morrer de rir. Parece que ele estava mais para lá do que para cá, mas mergulhando, todo comportado, da beira da piscina...”, Jaggers apontou para seu garfo e faca na mesa, “até que viu algumas moças saltando do trampolim, a cinco metros de altura. Aí ele se lembrou de sua juventude perdida, subiu ao trampolim para fazer o mesmo e deu um lindo vôo de pássaro... Mas seu ombro se deslocou sozinho, em pleno ar.” Olhou para mim com ar ansioso. “Você nunca ouviu falar de casos assim, em que um jogador, ao arremessar a bola, tem o braço deslocado?” Naquele momento, não consegui me lembrar de nenhum paralelo ortopédico. “E depois”, ele continuou, “Finnegan teve de escrever no teto.” “No teto?” “Praticamente. Não parou de escrever, tem a maior garra esse rapaz, embora alguns possam não acreditar. Deu um jeito de ficar pendurado do teto, deitado de costas, e escrevia no ar.” Tive de concordar que era mesmo um jeito corajoso de escrever. “E isso afetou o estilo dele?”, perguntei. “Os textos tinham de ser lidos ao contrário, como em chinês?” “A princípio, saíram confusos”, admitiu, “mas agora Finnegan está bem. Recebi várias cartas dele que lembram o velho Finnegan — cheias de vida e esperança e de planos para o futuro.” O olhar distante voltou a seu rosto e desviei a discussão para problemas mais próximos do meu coração. Mas quando estávamos de novo no escritório, o assunto retornou, e me envergonha escrever isto porque envolve confessar uma coisa que raramente faço: ler um telegrama de outra pessoa. Aconteceu porque o sr. Jaggers foi interceptado no hall e, quando entrei em seu escritório e me sentei, o telegrama estava aberto à minha frente: COM CINQÜENTA PODERIA PELO MENOS PAGAR DATILÓGRAFO VG CORTAR O CABELO E COMPRAR LAPIS PT VIDA FICOU IMPOSSÍVEL E SE RESUME EM SONHAR COM BOAS NOTÍCIAS PT DESESPERADAMENTE FINNEGAN Eu não conseguia acreditar — cinqüenta dólares, sendo que eu sabia que o preço de Finnegan por um simples conto estava pela casa dos três mil. George Jaggers me flagrou ainda abestalhado olhando para o telegrama. Depois de lê-lo, me encarou com olhos injetados. “Em sã consciência, não sei como posso atendê-lo”, disse. Espantei-me e olhei em volta para me certificar de que estava numa das mais prósperas editoras

de Nova York. Então entendi — eu lera mal o telegrama. Finnegan estava pedindo cinqüenta mil dólares de adiantamento, uma exigência que faria vacilar qualquer editor, fosse quem fosse o autor. “Outro dia mesmo, na semana passada”, disse Jaggers, desconsolado, “mandei cem dólares. Isso põe meu departamento no vermelho, daí nem ouso mais falar com meus sócios. Tiro do meu próprio bolso e mando — para mim, é um terno ou um par de sapatos a menos.” “Quer dizer que Finnegan está quebrado?” “Quebrado!” Olhou para mim e deu uma gargalhada silenciosa, e, para dizer a verdade, não gostei nada do jeito como ele riu. Meu irmão uma vez teve um esgotamento nervoso... Mas isso é outro assunto. Um minuto depois, ele se controlou. “Você não pode contar a ninguém, ouviu? A verdade é que Finnegan está em queda e tem tido um fracasso depois do outro, mas agora está se recuperando e sei que recuperaremos cada centavo que lhe...” Tentou pensar numa palavra, mas o que saiu foi “demos”. Dessa vez, ele é quem parecia ansioso para mudar de assunto. Não quero passar a impressão de que os negócios de Finnegan me absorveram durante toda uma semana em Nova York, mas era inevitável que, ao freqüentar os escritórios de meu agente e de meu editor, sem querer eu acabasse sabendo tanto. Por exemplo, dois dias depois, ao usar o telefone no escritório do sr. Cannon, entreouvi por acaso uma conversa entre ele e George Jaggers. Não posso ser totalmente acusado de xereta, porque só ouvi um lado da conversa, e isso não é tão mau como se tivesse ouvido tudo. “Mas eu achava que ele estava bem de saúde... Ele realmente falou alguma coisa a respeito do coração há alguns meses, mas tive a impressão de que já estava tudo bem... Foi, e comentou sobre uma cirurgia que teria de fazer — acho que falou em câncer... Bem, tive vontade de dizer a ele que também vou precisar fazer uma pequena cirurgia e que já teria feito se estivesse com dinheiro... Não, não disse. Ele parecia tão animado que seria uma pena falar alguma coisa que pudesse deprimi-lo. Começou a escrever um conto hoje, me leu um trecho ao telefone... “... dei-lhe vinte e cinco dólares porque ele não tinha um centavo no bolso... Ah, sim, posso garantir que ele está bem agora. Parece mesmo a fim de trabalhar.” Agora eu entendia tudo. Os dois estavam numa conspiração silenciosa para que um animasse o outro em relação a Finnegan. O que já haviam investido nele, em seu futuro, chegara a um valor tão considerável que Finnegan simplesmente lhes pertencia. Não suportavam ouvir uma palavra contra ele — nem vinda deles próprios.

II. Rasguei o verbo para o sr. Cannon. “Se esse Finnegan é um picareta, não adianta ficar dando dinheiro a ele indefinidamente. Se ele acabou, acabou, e não há nada a fazer. É um absurdo que o senhor adie uma cirurgia, enquanto Finnegan anda por aí mergulhando em piscinas semivazias.” “Estava cheia”, disse o sr. Cannon pacientemente, “cheia até a borda.” “Bem, cheia ou vazia, o cara me parece um chato.” “Escute”, disse Cannon. “Estou ao telefone com Hollywood. Enquanto isso, você pode ir dando uma olhada.” Atirou um manuscrito em meu colo. “Talvez isso o ajude a entender. Ele me trouxe ontem.” Era um conto de Finnegan. Comecei a lê-lo de má vontade, mas, menos de cinco minutos depois, estava completamente imerso, absolutamente encantado, absolutamente persuadido e pedindo a Deus que eu também soubesse escrever daquela forma. Quando Cannon terminou o telefonema, mantive-o esperando até acabar de ler e, quando terminei, havia lágrimas nesses olhos duros e profissionais. Qualquer revista no país publicaria esse conto com destaque.

Mas, enfim, ninguém jamais negou que Finnegan escrevesse bem.

III. Meses se passaram antes que eu voltasse a Nova York, e, pelo menos no que se referia aos escritórios de meu agente e de meu editor, mergulhei num mundo mais tranqüilo e estável. Finalmente tivemos tempo para conversar sobre meus modestos projetos literários, visitar a casa de campo do sr. Cannon e passar algumas noites de verão com George Jaggers em restaurantes ao ar livre em que as estrelas se despejavam sobre os jardins. Era como se Finnegan estivesse no Pólo Norte — e de fato estava. Levara um grupo com ele, entre os quais três antropólogas de Bryn Mawr, e parecia empenhado numa enorme pesquisa. Passariam vários meses lá e, se isso me soava mais como uma festa, devia ser pelo meu cinismo e inveja. “Estamos muito contentes”, disse Cannon. “Caiu do céu para ele. Estava morrendo de tédio e o que ele precisava era exatamente de... de...” “Gelo e neve”, arrisquei. “Exatamente, gelo e neve. Algo sem nada a ver com ele, como ele mesmo disse. Seja o que for que escrever, vai ser branco puro — capaz de cegar quem ler.” “Posso imaginar. Mas, me diga uma coisa, quem está bancando isso? Na última vez que estive aqui, ouvi dizer que o homem estava duro.” “Ah, ele foi muito decente a esse respeito. Estava me devendo algum dinheiro e acho que também devia um pouco a George Jaggers...”, o velho hipócrita “achava”. Sabia muito bem, “e, por isso, antes de viajar, transferiu seu seguro de vida para nós. No caso de não voltar, claro; essas viagens são muito perigosas.” “Devem ser mesmo”, eu disse, “especialmente com três antropólogas.” “Com isso, Jaggers e eu estamos absolutamente cobertos caso alguma coisa aconteça — simples assim.” “A companhia de seguros está financiando a viagem?” Ele ficou perceptivelmente nervoso. “Ah, não. Na verdade, quando souberam a razão da transferência do seguro, ficaram um pouco aborrecidos. George Jaggers e eu sentimos que, diante de um plano específico como este, destinado a um livro específico, havia um motivo para bancá-lo um pouco mais.” “Não entendi”, eu disse, direto. “Não?” O olhar mortificado voltou a seu rosto. “Bem, admito que hesitamos. A princípio, sabia que era errado. Já adiantei pequenas somas a autores em outros tempos, mas ultimamente estabeleci uma regra contra isso — e a tenho mantido. Só a quebrei uma vez nos últimos dois anos, e foi para uma autora que estava passando por um período difícil, Margaret Trahill, você a conhece? Aliás, foi namorada de Finnegan.” “Lembre-se que não conheço nem Finnegan.” “É verdade. Você o conhecerá quando ele voltar — se voltar. Vai gostar dele, é encantador...” Mais uma vez parti de Nova York, para os Pólos Nortes da minha própria imaginação, enquanto o ano atravessava o verão e o outono. Quando os primeiros estrépitos de novembro estavam no ar, senti um calafrio ao pensar na expedição de Finnegan, e qualquer inveja que eu tivesse do homem desapareceu. Estava fazendo por merecer o espólio, literário ou antropológico, que conseguisse trazer. E, então, menos de três dias depois de chegar a Nova York, li num jornal que ele e alguns membros de seu grupo tinham sido apanhados por uma tempestade de neve, o suprimento de comida acabara e o Ártico era responsável por mais esse sacrifício.

Senti pena dele, mas fui prático o bastante para ficar contente por Cannon e Jaggers estarem cobertos. Claro que, com Finnegan não tendo ainda sequer esfriado — se essa não for uma imagem muito pungente —, eles não tocaram no assunto, mas imaginei que as companhias de seguro tivessem dispensado o habeas corpus, ou seja lá como dizem no seu jargão, e eles iriam receber o dinheiro. Seu filho, um belo rapaz, entrou no escritório de George Jaggers quando eu estava lá e, por ele, pude ter uma mostra do charme de Finnegan — uma certa franqueza triste, combinada com a impressão de que abrigava uma dura batalha interna que não conseguia expressar, mas que transparecia como um clarão em sua obra. “O garoto também escreve bem”, disse George, depois que o filho de Finnegan saiu. “Mostrou-me alguns poemas notáveis. Ainda não está pronto para substituir o pai, mas sem dúvida é uma promessa.” “Posso ler alguma coisa dele?” “Claro. Aqui está um que deixou comigo pouco antes de sair.” George pegou um papel em sua mesa, abriu-o e soltou um pigarro. Depois apertou os olhos e curvou-se um pouco em sua cadeira para ler. “Caro senhor Jagger”, começou, “não gostaria de lhe pedir isso pessoalmente...” Jagger parou, os olhos correndo à frente do texto. “Quanto ele quer?”, perguntei. Ele suspirou. “Mas o menino me deu a impressão de que isto era uma amostra do seu trabalho”, disse, com voz torturada. “Na verdade, é”, consolei-o. “Naturalmente, ainda não está pronto para substituir o pai.” Depois me arrependi de ter dito isso, porque, afinal, Finnegan pagara suas dívidas, e era bom estar vivo agora que a situação do país começava a melhorar e que livros já não eram vistos como luxos desnecessários. Muitos escritores que eu conhecia, e que tinham passado aperto durante a Depressão, estavam agora fazendo viagens há muito adiadas, pagando suas hipotecas ou realizando um trabalho mais caprichado, o que só é possível com certo conforto e segurança. Eu próprio acabara de receber mil dólares de adiantamento de uma venda para Hollywood e pretendia torrá-los ao estilo dos velhos tempos, quando dinheiro era mato. Ao entrar para me despedir de Cannon e pegar o dinheiro, gostei de ver que ele também estava indo bem — insistiu em que eu fosse com ele para ver um barco que estava comprando. Mas algum problema de última hora o estava retendo, fiquei impaciente e decidi ir embora. Bati à porta de seu santuário, não obtive resposta e abri-a assim mesmo. O recinto parecia meio confuso. Cannon tinha vários telefones no ouvido e ditava algo sobre uma companhia de seguros para a estenógrafa. Uma secretária estava vestindo o casaco e o chapéu às pressas, como se tivesse de sair para alguma tarefa, enquanto outra contava as notas em sua bolsa. “Só um minutinho”, disse Cannon ao me ver, “é só um probleminha no escritório — você nunca nos viu assim.” “É o seguro de Finnegan?” Não pude deixar de perguntar. “Não estava valendo?” “O seguro... Ah, não, tudo certo, perfeitamente certo. É só uma questão de levantar algum dinheiro neste momento. Os bancos estão fechados e estamos fazendo uma pequena coleta.” “Tenho o dinheiro que o senhor acabou de me dar”, eu disse. “Não preciso de tudo para chegar à Califórnia.” Tirei duzentos dólares do bolo. “Isto chega?” “Está ótimo... já nos salvou. Tudo bem, senhorita Carlsen. Senhorita Mapes, já não precisa sair.” “Bem, acho que já vou andando”, eu disse.

“Espere mais dois minutos”, ele pediu. “Agora só falta cuidar desse telegrama. Que notícia maravilhosa. É de dar pinotes de alegria.” Era um cabograma de Oslo, na Noruega. Mesmo antes de lê-lo, eu já tinha uma premonição. ESTOU MILAGROSAMENTE SALVO MAS DETIDO PELAS AUTORIDADES PT MANDE PASSAGENS DINHEIRO PARA QUATRO PESSOAS E MAIS DUZENTOS EXTRAS PT LEVANDO GRANDE MATERIAL PT SAUDAÇÕES DO MUNDO DOS MORTOS FINNEGAN “Sim, uma notícia maravilhosa”, concordei. “Agora ele terá uma história para contar.” “Não é?”, disse Calman. “Senhorita Carlsen, passe um telegrama para os pais daquelas moças... E é melhor informar o senhor Jaggers.” Ao caminharmos pela rua alguns minutos depois, percebi que o sr. Cannon, como que ainda atônito pela maravilhosa notícia, caíra num estado de profunda meditação. Não quis perturbá-lo porque, afinal, não conheço Finnegan e não seria sincero partilhar sua alegria. O silêncio continuou até chegarmos à porta da exposição de barcos. Parou debaixo do letreiro e olhou para cima, como se só agora percebesse para onde tínhamos ido. “Ah, meu Deus”, disse, recuando. “Já não faz sentido estarmos aqui. Pensei que íamos tomar um drinque.” Fomos. O sr. Cannon continuava um pouco reticente, ainda sob a magia da enorme surpresa. Atrapalhou-se tanto com o dinheiro para pagar sua rodada, que insisti em dizer que era por minha conta. Acho que o episódio o deixou um pouco em estado de choque porque, embora seja um homem da maior correção, os duzentos dólares que lhe emprestei no escritório nunca apareceram nos extratos que sua editora me manda. Imagino, no entanto, que algum dia os receberei, porque, inevitavelmente, Finnegan será de novo um sucesso e as pessoas vão implorar para ler o que ele escreve. Recentemente, dediquei-me a investigar algumas das histórias a seu respeito e descobri que quase todas são tão falsas quanto a da piscina semivazia. Aquela piscina estava cheia até a borda. Até agora, só houve um conto sobre a expedição polar, um conto de amor. Talvez o assunto não fosse tão fabuloso quanto ele esperava. Mas o cinema está interessado em Finnegan — caso consigam dar uma boa conferida nele primeiro, e tenho boas razões para acreditar que ele vai concordar. Acho melhor ele concordar. (1938)

A década perdida

Todo tipo de gente entrava na redação da revista e Orrison Brown tinha todo tipo de relações com eles. Fora dali, ele era “um dos editores”, mas, durante o expediente, era apenas um rapaz de cabelos encaracolados que no ano anterior fora editor da Jack-O-Lantern, de Dartmouth, e agora ficava contente em pegar as tarefas que ninguém mais queria, desde reescrever artigos ilegíveis até ser uma espécie de moço de recados, sem o título. Ele vira o visitante entrar na sala do editor — um homem alto e pálido de seus quarenta anos, de cabelo louro e parecido com cabelo de estátua e um jeito que não era nem inseguro nem tímido, nem transcendente como o de um monge, mas que tinha um pouco dos três. O nome em seu cartão, Louis Trimble, evocava alguma vaga lembrança, mas, sem ter por onde começar, Orrison não esquentou a cabeça com aquilo — até a campainha soar em sua mesa e sua experiência adverti-lo de que ele teria o sr. Trimble ao almoço. “Senhor Trimble, senhor Brown...”, disse a Fonte de todas as verbas de almoço. “Orrison, o senhor Trimble esteve fora por muito tempo. Ou ele acha que foi por muito tempo, quase doze anos. Algumas pessoas, se pudessem, também prefeririam ter perdido esta última década.” “É verdade”, disse Orrison. “Não posso almoçar hoje”, continuou o chefe. “Leve-o ao Voisin ou ao 21, ou a qualquer lugar que ele queira. O senhor Trimble acha que há vários lugares que ele não conhece.” Trimble objetou educadamente: “Posso me virar sozinho...” “Eu sei, meu velho. Ninguém conheceu este lugar como você no passado — e se Brown tentar lhe explicar o que é uma carruagem sem cavalo, mande-o de volta para a redação. E você voltará às quatro, não é?” Orrison pegou seu chapéu. “Ficou fora dez anos?”, perguntou, ao descerem pelo elevador. “Eles estavam começando a construir o edifício Empire State”, disse Trimble. “Quando foi isso?” “Cerca de 1928. Mas, como disse o chefe, o senhor não perdeu nada.” E, para espicaçá-lo, acrescentou: “Provavelmente tinha coisas mais interessantes para ver”. “Não posso dizer que não.” Chegaram à rua e, pela maneira com que o rosto de Trimble se contraía ao rugido do tráfego, Orrison arriscou mais um palpite. “Esteve fora da civilização?” “De certa forma.” As palavras eram tão calculadas que Orrison concluiu que esse homem não falaria nada que não quisesse — ao mesmo tempo, perguntou-se se ele não teria passado a década de 30 numa prisão ou num hospício. “Esse é o famoso 21”, informou Orrison. “Ou prefere outro lugar?”

Trimble parou, olhando atentamente para a fachada marrom. “Ainda me lembro de quando o nome 21 ficou famoso”, disse, “mais ou menos na mesma época que o Moriarity’s.” E continuou, como se desculpando: “Talvez pudéssemos andar pela Quinta Avenida por uns cinco minutos e almoçar em qualquer lugar. Algum lugar com pessoas jovens que se possam espiar”. Orrison deu-lhe uma olhada de esguelha e de novo pensou em grades, paredes cinza e mais grades; perguntou-se se sua obrigação incluía apresentar ao sr. Trimble algumas moças obsequiosas. Mas o sr. Trimble não dava a impressão de que isso estivesse lhe passando pela cabeça; a expressão dominante era de uma absoluta e profunda curiosidade, e Orrison tentou ligar seu nome ao esconderijo do almirante Byrd no Pólo Sul ou ao de aviadores perdidos nas selvas brasileiras. Que era, ou tinha sido, um grande sujeito, era óbvio. Mas as únicas pistas a respeito de sua origem — pistas que, para Orrison, não levavam a nada — eram sua obediência interiorana aos sinais de trânsito e sua predileção por andar na calçada rente às lojas, e não à rua. Em dado momento, parou e admirou a vitrine de uma camisaria. “Gravatas de crepe”, disse. “Não vejo uma desde que saí da faculdade.” “Onde estudou?” “Em Massachusetts, tecnologia.” “Grande lugar.” “Vou dar uma passada lá na semana que vem. Vamos comer em algum lugar por aqui mesmo”, estavam na altura da rua 50, “você escolhe.” Havia um bom restaurante com um pequeno toldo bem na esquina. “O que gostaria de ver?”, perguntou Orrison quando se sentaram. Trimble pôs-se a pensar. “Bem... a nuca das pessoas”, sugeriu. “Os pescoços... como as cabeças se juntam aos corpos. Gostaria de ouvir o que aquelas duas meninas estão dizendo para o pai delas. Não exatamente o que estão dizendo, mas saber se as palavras afundam ou bóiam, ou se elas fecham a boca depois de falar. É uma questão de ritmo... Cole Porter voltou para os Estados Unidos em 1928 porque sentiu que havia novos ritmos aqui.” Orrison agora tinha certeza de que estava na pista certa, mas, com grande delicadeza, não avançou por ela nem um milímetro — mesmo reprimindo um súbito desejo de dizer que havia um ótimo concerto no Carnegie Hall naquela noite. “O peso das colheres”, disse Trimble, “tão leves. Uma tigelinha com um cabinho preso. O olhar daquele garçom. Eu o reconheci, mas ele não se lembrará de mim.” Mas, ao saírem do restaurante, o garçom olhou para Trimble confuso, como se tivesse a impressão de conhecê-lo. Quando saíram, Orrison riu: “Depois de dez anos, as pessoas esquecem.” “Eu jantei ali no último mês de maio...” Calou-se de forma abrupta. É muito louco, concluiu Orrison — e transformou-se de repente num guia turístico. “Daqui pode-se ver bem o Rockefeller Center”, apontou, “e o edifício Chrysler, e o Armistead, que é o pai de todos eles.” “O edifício Armistead.” Trimble olhou obedientemente. “Sim... fui eu que o projetei.” Orrison sacudiu a cabeça, animado; estava habituado a sair com todo tipo de gente. Mas a história de ele ter ido àquele restaurante em maio... Parou diante de uma placa de metal na fachada do edifício. “Construído em 1928”, dizia. Trimble assentiu com a cabeça.

“Mas eu passei aquele ano inteiro bêbado... Bêbado tempo integral. De modo que esta é a primeira vez que o vejo.” “Ah.” Orrison hesitou. “Gostaria de entrar?” “Já estive dentro dele — uma porção de vezes. Mas nunca o vi. E agora não é o que eu gostaria de ver. Nem seria capaz de vê-lo agora. Quero apenas ver como as pessoas andam na rua e que cara têm suas roupas, sapatos e chapéus. E seus olhos e suas mãos. Importa-se de apertarmos as mãos?” “De modo algum, senhor.” “Obrigado. Obrigado. Você é muito gentil. Imagino que pareça estranho, mas as pessoas vão pensar que estamos nos despedindo. Vou dar uma volta pela avenida, portanto estamos nos despedindo. Diga na redação que estarei lá às quatro.” Orrison observou-o afastar-se, esperando que entrasse em algum bar. Mas não havia nada nele que sugerisse bebida, ou que um dia tivesse sugerido. “Meu Deus”, concluiu. “Bêbado durante dez anos.” Subitamente, Orrison sentiu-se com a textura do próprio casaco; depois, esticou o braço e apertou o polegar contra o granito do edifício. (1939)

Último beijo

Estar por cima era uma grande sensação. Podia-se ter certeza de que tudo daria certo, de que os refletores cairiam sobre belas mulheres e homens importantes, de que os pianos emitiriam as notas certas e de que tantos lábios jovens e cantando dirigiam-se a corações felizes. Todos aqueles lindos rostos, por exemplo, deviam estar completamente felizes. Foi então que, em meio a uma rumba, passou pela mesa de Jim um rosto decididamente infeliz. Antes mesmo que ele chegasse a essa conclusão, o rosto desapareceu, permanecendo porém em sua retina por alguns segundos. Era o rosto de uma garota quase tão alta quanto ele, com olhos castanhos e opacos e uma tez delicada como uma louça chinesa. “Pronto”, disse a anfitriã, seguindo seu olhar. Ela suspirou: “Aconteceu em apenas um segundo. E eu, que venho tentando há anos...”. Jim pensou em responder: — Mas você já teve a sua chance — três maridos! E eu? Estou com trinta e cinco anos e ainda tentando encontrar em cada mulher um amor perdido na infância, ainda me apaixonando pelas semelhanças e não pelas diferenças. Quando as luzes voltaram a diminuir, ele perambulou entre as mesas até o salão de entrada. De vez em quando era saudado por amigos — mais que os de costume, porque seu contrato como produtor havia sido noticiado pelo Hollywood Reporter naquela manhã. Jim, porém, já dera passos parecidos antes e estava habituado àquilo. Era uma festa beneficente e, no bar, pronto para entrar em cena, estava um homem que imitava papel de parede, e Bob Bordley, fazendo-se de homem-sanduíche, mostrava um cartaz que dizia: Às 22:00 no Hollywood Bowl SONJA HEINE estrelando em HOT SOUP Nas proximidades, Jim viu o produtor que ele substituiria no dia seguinte tomando um inesperado drinque com o agente que provocara sua ruína. Ao lado do agente, a garota de rosto triste que dançara a rumba. “Jim”, gritou o agente. “Quero que conheça Pamela Knighton, sua futura estrela.” Ela se virou para ele com ansiedade profissional. O agente lhe cochichara: “Acorde! Esse cara é importante!”. “Pamela agora está comigo”, disse o agente. “Estou pensando em mudar o nome dela para Boots.” “Pensei que você tinha dito Toots”, riu a garota. “Toots ou Boots. É por causa do som. Oots! Pamela é inglesa. Seu nome verdadeiro é Sybil

Higgins.” Pareceu a Jim que o produtor destituído o olhava de um jeito indefinível — não com ódio nem inveja, mas com um profundo e curioso espanto, como que perguntando: “Por quê? Por quê?”. Perturbado por isso, Jim surpreendeu-se tirando a inglesa para dançar. Quando se viram abraçados na pista de dança, sua euforia do começo da noite voltou. “Hollywood é um bom lugar”, disse, como se antecipando a qualquer crítica dela. “Você vai gostar. A maioria das inglesas se dá bem aqui — talvez por não esperarem muito. Tenho tido sorte trabalhando com inglesas.” “Você é diretor?” “Já fui de tudo — de agente para cima. Assinei um contrato de produção que começa amanhã.” “Também gosto daqui”, ela disse, depois de um minuto. “Não se pode evitar uma certa expectativa. Mas, se nada acontecer, posso voltar à minha profissão de professora.” Jim recuou para olhá-la melhor. Parecia-se tão pouco com uma professora — mesmo aquelas mostradas nos faroestes — que ele riu. Mas, ainda uma vez, viu algo triste e perdido no triângulo formado por seus lábios e olhos. “Está com quem esta noite?”, ele perguntou. “Com Joe Becker”, ela respondeu, dizendo o nome do agente. “Eu e mais três garotas.” “Olhe, tenho que sair durante meia hora, para encontrar um sujeito. Não, não é um truque. Quer vir comigo para me fazer companhia e respirar um pouco de ar fresco?” Ela fez que sim. No caminho, passaram pela anfitriã, que olhou fixo para a garota e balançou a cabeça ligeiramente para Jim. Lá fora, sob a noite estrelada da Califórnia, ele gostou pela primeira vez de seu carro novo, principalmente por não precisar dirigir. As ruas por onde passaram estavam tranqüilas àquela hora e a limusine deslizou silenciosamente pela escuridão. A srta. Knighton esperou que ele falasse. “O que você ensina na escola?”, ele perguntou. “Aritmética. Dois mais dois, cinco, coisas assim.” “É um belo salto, da sala de aula para Hollywood.” “É também uma longa história.” “Não pode ser tão longa. Você não tem mais que uns dezoito anos.” “Vinte.” Ela perguntou ansiosa: “Isso já é ser velha demais?”. “Meu Deus, claro que não! É uma idade linda. Sei disso, porque tenho vinte e um e só agora as artérias começaram a endurecer.” Ela o olhou atentamente, calculando sua verdadeira idade, mas guardando para si sua opinião. “Que tal se me contasse a longa história?”, ele perguntou. Ela suspirou. “Bem, um monte de homens se apaixonou por mim. Todos muito velhos. Eu era a favorita dos velhinhos.” “Você quer dizer, anciãos de vinte e dois anos?” “Entre sessenta e setenta. É verdade. Com isso, arranquei bastante dinheiro deles para ir para Nova York. Fui ao 21 na primeira noite e Joe Becker me viu.” “Então ainda não trabalhou em nenhum filme?”, ele perguntou. “Ah, sim — fiz um teste hoje de manhã.” Jim sorriu. “E não se sentia mal tomando dinheiro dos velhos?”, perguntou. “Não muito”, ela respondeu, bem franca. “Eles gostavam de me agradar. Além disso, não era

dinheiro vivo. Quando queriam me dar presentes, eu os mandava ir a determinado joalheiro e, em seguida, levava o presente ao joalheiro, que me devolvia quase todo o dinheiro.” “Ora, ora, uma picaretinha esperta!” “Isso mesmo”, ela admitiu placidamente. “Uma pessoa me ensinou a fazer isso. Quero tudo que puder agarrar.” “Eles não se importavam, digo, os velhos, quando você não usava os presentes?” “Mas eu usava — pelo menos uma vez. Depois de certa idade as pessoas já não enxergam muito bem, ou não se lembram. Por isso é que não tenho nem uma jóia em casa.” Calou-se. “Imagino que aluguem jóias aqui.” Jim olhou-a de novo e riu alto. “Se eu fosse você, não ficaria preocupada. A Califórnia está cheia de velhinhos.” Entraram num bairro residencial. Quando dobraram uma esquina, Jim abriu o vidro e disse ao motorista: “Pare aqui”. Virou-se para Pamela: “Tenho que fazer um trabalhinho sujo”. Consultou o relógio, saiu e subiu a rua em direção a um edifício com o nome de vários médicos numa placa. Passou pela placa lentamente, até que um homem saiu do edifício e começou a segui-lo. No ponto mais escuro entre dois postes, Jim deixou-o aproximar-se, entregou-lhe um envelope e falou alguma coisa. O homem voltou para o edifício e Jim entrou no carro. “Também estou explorando uns velhos”, ele disse. “Algumas coisas são piores que a morte.” “Ah, mas parei de fazer isso”, ela assegurou. “Estou noiva.” “Ah!” Depois de um instante ele perguntou: “De um inglês?”. “Claro! Acha que...” Parou, mas já era tarde. “Somos tão desinteressantes assim?”, ele perguntou. “Ah, não.” Mas o tom descomprometido com que falou piorou ainda mais as coisas. E quando ela sorriu, no exato momento em que a luz da rua a vestiu com uma beleza radiante, foi ainda mais irritante. “Agora é a sua vez”, ela disse. “Que coisa misteriosa foi essa que você fez?” “Dinheiro”, ele respondeu, com uma voz ausente. “Um medicozinho grego anda dizendo a uma determinada senhora que ela precisa extrair o apêndice. Mas precisamos dela no filme, então dei-lhe algum para calar a boca. É a última vez que faço o trabalho sujo dos outros.” Ela franziu o cenho. “Mas ela não precisa tirar o apêndice?” Ele deu de ombros. “Talvez não. E, se precisar, não é esse rato que vai saber. É cunhado dela e quer explorá-la.” Depois de algum tempo, Pamela falou: “Um inglês jamais faria isso.” “Alguns talvez façam, assim como alguns americanos não fariam.” “Um cavalheiro inglês jamais faria isso”, ela insistiu. “Não está começando com o pé errado, se pretende trabalhar aqui?” “Ah, eu gosto dos americanos — pelo menos dos civilizados.” Do jeito que ela falou, Jim imaginou que aquilo o incluía, mas, longe de ficar envaidecido, demonstrou alguma indignação. “Você está se arriscando. Não sei como ousou sair comigo. Já imaginou o que pode haver debaixo do meu chapéu?” “Você não estava de chapéu”, ela disse, tranqüila. “Além disso, Joe Becker me autorizou. Disse que seria bom para minha carreira.” Jim, agora, era produtor e, quando se atinge tal eminência, não se perde o controle por tão pouco

— exceto de propósito. “Tenho certeza de que será bom para você”, disse, com um ronronado ligeiramente traiçoeiro na voz. “Tem mesmo?”, ela perguntou. “Acha que posso me firmar? Ou sou apenas uma entre milhares?” “Você já se firmou”, ele continuou no mesmo tom. “Todo mundo na festa estava olhando para você.” Perguntou-se se aquilo era mesmo verdade, ainda que remotamente. Ou se ele tinha sido o único a ver nela alguma coisa. “Você é um tipo novo”, ele prosseguiu. “Um rosto como o seu poderá dar aos filmes americanos um toque mais... mais civilizado.” Era a sua flecha, mas, para sua surpresa, não pareceu atingir o alvo. “Acha mesmo? Você vai me dar uma chance?” “Claro.” Era difícil de acreditar que a ironia em sua voz estivesse errando o alvo. “Mas, depois desta noite, haverá tanta competição que...” “Ah, mas eu preferiria trabalhar para você”, ela declarou. “Vou dizer a Joe Becker que...” “Não, não lhe diga nada”, ele interrompeu. “Está bem, não direi nada. Como você quiser”, ela prometeu. Os olhos dela estavam dilatados e expectantes. Perturbado, ele notou que palavras estavam sendo postas em sua boca ou brotando dele sem querer. Era impressionante que tanta inocência e tanta fúria predatória saíssem ao mesmo tempo daqueles lindos lábios da inglesa. “Seria um desperdício usar você em pontas”, ele disse. “Precisamos arranjar um grande papel...” Fez uma pausa e recomeçou: “Você tem uma personalidade tão forte que...”. “Ah, pare.” Ele viu lágrimas no canto de seus olhos. “Deixe-me apenas dormir com isso esta noite. Telefone pela manhã — ou quando precisar de mim.” O carro parou a poucos centímetros do tapete vermelho que levava à festa. Ao ver Pamela sob os refletores, a multidão forçou a corda grotescamente, com os caderninhos de autógrafos à mão. Como não a reconheceram, deram um suspiro em uníssono e a corda recuou com eles. No salão, ele a conduziu dançando até a mesa de Becker. “Não vou lhe dizer nada”, ela garantiu. De sua bolsa tirou um cartão com o nome do hotel escrito a lápis e lhe entregou. “Se surgirem outras ofertas, prometo recusar.” “Não, não faça isso”, ele disse rapidamente. “Ah, sim.” Sorriu para ele e, por um instante, a sensação que Jim tivera ao vê-la pela primeira vez voltou. Era uma impressão de calor, juventude e sofrimento, tudo junto. Tentou estourar a bolha que ele próprio havia criado: “Daqui a um ano ou pouco mais...”, começou. Mas a música e a voz dela o abafaram. “Esperarei pelo seu chamado. Você é... você é o americano mais civilizado que já conheci.” Deu-lhe as costas, como que embaraçada pela magnitude de seu elogio. Jim voltou para sua mesa, mas, ao ver a anfitriã conversando com uma mulher ao lado de sua cadeira vazia, mudou subitamente de direção. A sala e a festa haviam se tornado desagradáveis, a mistura de música e vozes soava estridente, sem harmonia, e, ao percorrer o salão com os olhos, viu apenas ódio e inveja — egos batendo como tambores. Não estava ainda tão imune à batalha como tinha pensado. Caminhou até a chapeleira, pensando em mandar, pelo garçom, um bilhete à anfitriã. “Você estava dançando, portanto eu...” Mas, ao passar pela mesa de Pamela Knighton, mudou de idéia e saiu em direção à porta.

II. Um executivo de cinema pode se virar sem inteligência ou criatividade, mas não chegará a lugar nenhum sem um pouco de habilidade. Habilidade era agora a única preocupação de Jack Leonard. O poder normalmente deveria despachar a diplomacia para um segundo plano, mas, em vez disso, intensifica todas as suas relações — com os executivos, diretores, roteiristas, atores e técnicos de sua unidade, além dos chefes de departamento, dos censores e dos “homens de Nova York”. Portanto, driblar uma garota inglesa armada apenas de um telefone e de um bilhete deixado por ela na portaria do estúdio não deveria ser problema. Passei por aqui e me lembrei de você e de nosso passeio. Tive algumas ofertas, mas continuo cozinhando Joe Becker. Se me mudar daqui, mando-lhe o novo endereço. A juventude e a esperança transpiravam do bilhete em duas óbvias mentiras e na corajosa falsidade de seu tom. Era como se nada lhe importasse — todo o dinheiro e a glória por trás das intransponíveis paredes do estúdio. E ela tinha apenas passado por ali — apenas passado por ali. Isso foi duas semanas depois da festa. Na semana seguinte, Joe Becker foi procurá-lo. “Sobre aquela inglesa, Pamela Knighton, lembra? O que achou dela?” “Gostei.” “Por algum motivo, ela não quer que eu fale com você”, disse Joe, olhando pela janela. “Por isso achei que vocês não se deram muito bem naquela noite.” “Claro que nos demos.” “A garota é noiva de um sujeito na Inglaterra.” “Ela me contou”, disse Jim, aborrecido. “Não dei em cima dela, se é isso que está querendo saber.” “Não se preocupe, entendo essas coisas. Apenas queria lhe dizer uma coisa sobre ela.” “Não há mais ninguém interessado?” “Ela está aqui há um mês. Todo mundo tem que começar em algum lugar. Só quero lhe dizer que, quando Pamela entrou no 21, os homens do bar caíram em cima dela como moscas. Em menos de um minuto, só se falava nela.” “Deve ter sido fantástico”, disse Jim secamente. “E foi. Heddy Lamarr estava lá naquela noite. Escute só, Pam estava sozinha, vestida à inglesa, com uma roupa bem-comportada e um casaco de pele de coelho, acho. Mas brilhou mais que um diamante.” “Foi mesmo?” “Mulheres poderosas derramavam lágrimas dentro de suas vichyssoises. Elsa Maxwell...” “Joe, estou ocupadíssimo hoje...” “Quer dar uma olhada no teste dela?” “Esses testes só servem para os maquiadores, Joe.” Jim estava impaciente. “Não confio em nenhum teste bom. E sempre desconfio dos ruins.” “Acha que sabe tudo, não é?” “Mais ou menos”, Jim admitiu. “Há muitos canastrões por aí que se saíram bem nos testes.” “Executivos também”, disse Joe, levantando-se. Mais uma semana e mais um bilhete: Quando lhe telefonei ontem, uma secretária disse que você tinha saído; a outra disse que estava em reunião. Se está querendo fugir, basta me dizer. Não estou ficando nem um pouco mais jovem. Os vinte e um anos estão à minha espera. Como vão os velhinhos da sua área?

O rosto dela estava agora quase apagado de sua memória. Lembrava-se das maçãs delicadas e dos olhos assustados, como num retrato visto havia muito tempo. Teria sido fácil ditar uma carta falando de mudança de planos, de alterações no elenco, de dificuldades que tornavam impossível... Sentia-se mal quando se lembrava dela, mas, enfim, era um caso encerrado. Enquanto comia um sanduíche na lanchonete de seu bairro, pensou em seu trabalho durante o primeiro mês e considerouo satisfatório. Exalava habilidade. O departamento estava funcionando bem. Mas as sombras que controlavam seu destino não demorariam a entrar em cena. Havia poucas pessoas na lanchonete. Pamela Knighton era a garota diante da banca de revistas. Tinha nas mãos um exemplar de The Illustrated London News e olhava-o surpresa. Ao assinar a nota que lhe tinham posto no balcão, Jim tentou fingir que não a vira. Virou-se ligeiramente, prendeu a respiração e ficou à escuta. Mas, embora ela o tivesse visto, nada aconteceu. Odiando sua típica covardia hollywoodiana, virou-se de novo e falou com ela: “Fica sempre acordada até tarde?” Pamela investigou seu rosto por alguns momentos. “Estou morando ali na esquina”, disse. “Acabei de me mudar. Escrevi-lhe sobre isso hoje.” “Também moro perto daqui.” Ela repôs a revista na pilha. A habilidade de Jim fugiu-lhe desta vez. Sentiu-se subitamente velho, assediado, e fez a pergunta errada. “Como vão as coisas?” “Ah, muito bem. Estou trabalhando numa peça — uma peça de verdade, no teatro New Faces, em Pasadena. Apenas para ganhar experiência.” “Isso é ótimo.” “Vamos estrear daqui a duas semanas. Gostaria que fosse me ver.” Saíram juntos e pararam sob o luminoso vermelho de neon. Na rua, jornaleiros gritavam os resultados dos jogos daquela noite. “Esquerda ou direita?”, ela perguntou. Qualquer uma, menos a sua, ele pensou, mas, quando ela indicou um dos lados, ele foi junto com ela. A simples menção de Pasadena o fez lembrar de quando ele viera para a Califórnia, dez anos antes, verde e fresco como ela. Pamela parou diante dos pequenos bangalôs que circundavam uma praça. “Boa noite”, disse. “Não se preocupe por não ter podido me ajudar. Joe me explicou como as coisas estão difíceis, com a guerra e tudo mais. Eu sei que tentou.” Ele assentiu solenemente, no fundo se desprezando. “É casado?”, ela perguntou. “Não.” “Então me dê um beijo de boa-noite.” Quando ele hesitou, ela disse: “Gosto de ganhar um beijo de boa-noite. Durmo melhor”. Ele a enlaçou timidamente e curvou-se sobre seus lábios, mal os roçando — pensando na carta sobre sua escrivaninha, que ele não poderia mandar agora, mas, acima de tudo, gostando de abraçála. “Como você vê, não foi nada de mais”, ela disse. “Um beijo de amigos. Um beijo de boa-noite.” Caminhando para casa, Jim disse alto “Raios me partam!”, e continuou repetindo essa sinistra profecia por algum tempo depois de já estar na cama.

III.

Na terceira noite da peça de Pamela, Jim foi a Pasadena e comprou um lugar na última fila. Entrou num pequeno auditório e foi o primeiro a chegar, exceto pelos lanterninhas e por algumas vozes que se ouviam dos bastidores. Pensou em retirar-se discretamente, mas, ao ver chegar um grupo de cinco pessoas, entre as quais o principal assistente de Joe Becker, resolveu ficar. As luzes se apagaram; ouviu-se um gongo; e, para uma platéia de seis pessoas, a peça começou. Jim observou Pamela; à sua frente, o grupo dos cinco inclinava-se e cochichava depois de cada cena. Ela tinha talento? Jim podia dizer que sim. Mas, com o cinema atraindo meio mundo, dificilmente poderia existir uma coisa chamada talento “natural”. Havia apenas possibilidades — e sorte. Ele tivera sorte. Talvez ele fosse a sorte daquela garota — se achasse que o que ela lhe provocava fosse de apelo universal. As grandes estrelas já não eram criadas pela vontade de um homem, como nos tempos do cinema mudo. Quando o pano finalmente baixou, como uma doméstica persiana, ele foi aos bastidores, limitando-se, para isso, a abrir uma porta a seu lado. Ela esperava por ele. “Torci para que você não viesse esta noite”, disse Pamela. “Foi um fracasso. Mas, na primeira noite, a casa estava cheia e procurei por você.” “Você estava ótima”, ele disse timidamente. “Ah, não. Você devia ter me visto na estréia.” “Vi o suficiente”, ele disse de repente. “Acho que tenho um pequeno papel para você. Não quer ir ao estúdio amanhã?” Ele observou a mudança em sua expressão. De seus olhos, da curva de sua boca, brilhou uma súbita e repentina piedade. “Ah, que pena. Joe apresentou-me a algumas pessoas outro dia e assinei um contrato com Bernie Wise.” “Assinou?” “Achei que você me queria, mas, a princípio, não percebi que você era apenas uma espécie de supervisor. Pensei que tivesse mais poder...” Cortou o que estava dizendo e emendou às pressas. “Não, pessoalmente, gosto muito mais de você. É muito mais civilizado que Bernie Wise.” Ela não poderia ter escolhido palavras mais ásperas para feri-lo. Está bem, ele era civilizado. “Quer uma carona para Hollywood?” No caminho, a noite de outubro lembrava as de abril. Quando atravessaram uma ponte, ele fez um gesto em direção às grades de proteção e ela entendeu. “Sei para que servem”, ela disse. “Mas é estúpido! Os ingleses nunca cometem suicídio quando não conseguem o que querem.” “Eu sei. Eles vêm para os Estados Unidos.” Ela riu e olhou-o como se o avaliasse positivamente. Sim, ele lhe serviria para alguma coisa. Deixou sua mão descansar sobre a dele. “Um beijo de boa-noite?”, ele sugeriu depois de alguns momentos. Pamela olhou para o motorista, insulado em sua cabine. “Está bem, um beijo de boa-noite.” Ele voou para Nova York no dia seguinte, em busca de uma atriz exatamente como Pamela Knighton. E buscou tanto que quaisquer olhos com ar de distante melancolia e o mínimo sotaque britânico já o predispunham a favor. Tentava desesperadamente encontrar alguém parecido com ela, quando um impaciente telegrama chamou-o de volta a Hollywood e ele viu Pamela ser atirada em seu colo. “Você ganhou uma segunda oportunidade, Jim”, disse Joe Becker. “Não a perca de novo.”

“Qual foi o problema?” “Não tinham um bom papel para ela. Estão perdidos numa confusão burocrática. Assim, rasgamos o contrato.” Mike Harris, o chefe do estúdio, investigou o assunto. Por que Bernie Wise, que era tão esperto, estava soltando a moça? “Bernie diz que ela não sabe representar”, disse a Jim. “E que é uma criadora de casos. Fico pensando em Simone e naquelas duas austríacas.” “Já a vi trabalhar”, insistiu Jim “Tenho alguma coisa para ela. Não é preciso nem promovê-la. Vou encaixá-la num pequeno papel e você vai ver.” Uma semana depois, Jim entrou ansiosamente pela porta do palco três. Alguns figurantes fantasiados viraram-se para ele na semi-escuridão e olhos se arregalaram. “Onde está Bob Griffin?”, perguntou Jim. “Naquele bangalô, com a senhorita Knighton.” Estavam sentados lado a lado sob as luzes dos maquiadores e, pela resistência no rosto de Pamela, Jim sabia que o problema era sério. “Não é nada”, insistia Bob efusivamente. “Nos damos muito bem, não é, Pam?” “Você cheira a cebola”, disse Pamela. Griffin tentou de novo. “Há um estilo inglês e um estilo americano. Estamos buscando um meio-termo, só isso.” “Há um estilo educado e um estilo mal-educado”, cortou Pamela. “Não quero começar a carreira como uma idiota.” “Por favor, Bob, deixe-nos a sós, está bem?”, pediu Jim. “Claro. O tempo que quiserem.” Jim ainda não a tinha visto naquela semana cheia de testes, provas de roupas e ensaios, e só então se deu conta de como a conhecia mal, e ela a eles. “Bob parece furioso com você”, ele disse. “Quer que eu diga coisas que ninguém em sã consciência diria.” “Está bem, talvez você esteja certa”, ele concordou. “Pamela, desde que está trabalhando aqui, já esqueceu alguma fala?” “Ora, acontece com todo mundo às vezes.” “Escute, Pamela, Bob Griffin ganha dez vezes mais do que você por uma razão muito simples. Não porque seja o diretor mais brilhante de Hollywood — ele não é —, mas porque nunca esquece as falas dele.” “Mas ele não é ator”, ela protestou, confusa. “Refiro-me às falas na vida real. Escalei-o para este filme porque, às vezes, costumo explodir, mas ele não. Assinou um contrato por uma montanha de dinheiro — que ele não merece, que ninguém merece. Mas a delicadeza é a quarta dimensão desse negócio, e Bob já esqueceu como se diz “eu”. Gente com o triplo do talento dele costuma afundar por não conseguir esquecer isso.” “Sei que estou sendo repreendida”, ela disse, hesitante. “Mas não entendo. Uma atriz tem sua própria personalidade...” Ele concordou. “E nós lhe pagamos cinco vezes mais do que ganharia em outro lugar para evitar que essa personalidade atrapalhe o resto do trabalho — e você está atrapalhando, Pamela.” Pensei que você fosse meu amigo, disseram os olhos dela. Ele falou por mais alguns minutos. Acreditava em tudo que dissera, mas, como já havia beijado

duas vezes aqueles lábios, sabia que eles só queriam apoio e proteção. Pamela ficou chocada ao descobrir que ele não estava do seu lado. Meio confuso e lamentando a solidão de Pamela, Jim foi à porta do bangalô e gritou: “Bob!” Depois foi tratar de outras coisas. Quando voltou à sua sala, encontrou Mike Harris esperando. “Aquela garota está criando caso de novo.” “Acabei de vir de lá.” “Refiro-me aos últimos cinco minutos!”, gritou Harris. “Depois que você saiu, já houve outro problema! Bob Griffin teve de parar a filmagem. Está vindo para cá.” Bob entrou. “É do tipo que não dá para entender.” Houve um momento de silêncio. Mike Harris, aborrecido pela situação, suspeitou que Jim estava tendo um caso com a moça. “Me dê até amanhã de manhã”, pediu Jim. “Acho que posso descobrir o que está havendo.” Griffin hesitou, mas havia uma espécie de apelo pessoal nos olhos de Jim. “Está bem, Jim.” Quando eles saíram, Jim discou o número de Pamela. O que ele quase esperava aconteceu, mas nem por isso seu coração deixou de bater quando a voz de um homem atendeu o telefone.

IV. Com exceção das enfermeiras, as atrizes são a presa mais fácil para qualquer homem inescrupuloso. Jim sabia que, por trás dos problemas ou fracassos dessas moças, havia sempre um confidente, alguém que exercia sua masculinidade através de um ombro amigo ou de um mau conselho. A técnica desse homem era invariavelmente diminuir a importância do trabalho da mulher ou a inteligência dos outros com quem ela trabalhava. Já passava das seis quando Jim chegou ao hotel em Beverly Hills para onde Pamela se mudara. No pátio, uma fonte de água fria esguichava absurdamente contra a névoa de dezembro e ele ouviu a voz forte do major Bowes soar a partir de três aparelhos de rádio. A porta do apartamento se abriu e Jim entendeu tudo. O homem era um velho — um inglês curvado, com uma tez descorada de inverno. Estava de roupão e chinelos, e convidou Jim a sentar-se, como se estivesse em sua casa. Pamela não demoraria a chegar. “O senhor é parente dela?”, Jim perguntou, intrigado. “Não. Pamela e eu nos conhecemos aqui em Hollywood. Somos dois estranhos num lugar estranho. Também trabalha no cinema, senhor... senhor...” “Leonard”, disse Jim. “No momento, sou o patrão de Pamela.” Os olhos do homem se transformaram — o olhar aquoso tornou-se firme, as velhas pálpebras se enrijeceram. Os lábios curvaram-se para baixo e para trás, numa expressão maligna. Momentos depois, voltaram ao estado normal, velhos e grosseiros. “Espero que Pamela esteja sendo bem tratada”, disse. “Já trabalhou no cinema?”, perguntou Jim. “Até onde minha saúde permitiu. Mas ainda estou ligado ao ramo, conheço tudo sobre este negócio e a alma das pessoas que trabalham nele...” Parou de repente. A porta se abriu e Pamela entrou. “Ora, ora!”, disse, surpresa. “Já se conhecem? O Honourable Chauncey Ward… o senhor Leonard.”

Sua beleza, que parecia ter sido trazida pelo vento da rua, deixou Jim momentaneamente sem fôlego. “Achei que já tivesse me acusado de meus pecados esta tarde”, ela disse, em tom de desafio. “Quis conversar com você fora do estúdio.” “Não aceite redução de salário”, disse o velho. “É um truque antigo.” “Não se trata disto, senhor Ward”, disse Pamela. “O senhor Leonard tem sido meu amigo até agora. Mas hoje o diretor tentou me fazer de boba, e o senhor Leonard ficou do lado dele.” “São todos iguais”, disse o sr. Ward. “Eu gostaria...”, disse Jim. “Será que poderia falar com você a sós?” “Confio no senhor Ward”, disse Pamela. “Mora em Hollywood há vinte e cinco anos e é praticamente meu agente.” Jim perguntou-se de que profunda solidão esse relacionamento surgira. “Ouvi dizer que houve mais problemas depois que saí”, disse. “Problemas!” Ela arregalou os olhos. “O assistente de Griffin me xingou e eu ouvi. Peguei minhas coisas e saí. E se Griffin o mandou para pedir desculpas, não aceito — nosso relacionamento, a partir de agora, será puramente profissional.” “Ele não lhe mandou desculpas”, disse Jim. “Mandou um ultimato.” “Um ultimato!”, ela gritou. “Tenho um contrato, e você é o chefe dele, não é?” “Até certo ponto”, admitiu Jim. “Mas, como você sabe, fazer um filme é um trabalho em equipe...” “Então deixe-me tentar outro diretor.” “Lute por seus direitos”, disse o sr. Ward. “É a única coisa que os impressiona.” “O senhor está fazendo tudo para acabar com a carreira da garota, não é?”, comentou Jim de passagem. “Você não nos assusta”, respondeu Ward. “Conheço seu tipo.” Jim olhou de novo para Pamela. Não havia nada que ele pudesse fazer. Se estivessem apaixonados, se fosse o momento de estimular o que poderia haver entre eles, ele poderia tê-la convencido naquele momento. Mas já era tarde. Lá fora, nas trevas de Hollywood, Jim quase podia ouvir as engrenagens rodando. Sabia que, quando o estúdio reabrisse amanhã, Mike Harris teria novos planos — que não incluiriam Pamela. Por mais um momento, hesitou. Era um sujeito apreciado, ainda jovem e objeto de ampla aprovação. Poderia engambelá-los a respeito da garota, mandá-la para uma escola de arte dramática. Não conseguia tolerar que ela cometesse um engano daqueles. Por outro lado, achava que os outros já a haviam estragado para aquele tipo de carreira. “Hollywood não é um lugar muito civilizado”, disse Pamela. “É uma selva”, enfatizou o senhor Ward. “Cheia de aves de rapina!” Jim levantou-se. “Bem, esta ave aqui vai rapinar em outra parte”, ele disse. “Pam, lamento muito. Do jeito que você vê as coisas, acho que o melhor é voltar para a Inglaterra e se casar.” Por instantes houve a sombra de uma dúvida nos olhos dela. Mas sua confiança, seu jovem egoísmo eram maiores que sua capacidade de avaliação. Não percebia que aquele exato minuto era sua última oportunidade e que a estava perdendo para sempre. Acabou de perdê-la quando Jim se virou e saiu. Levou semanas para entender o que lhe acontecera. Recebeu seu salário por mais alguns meses — graças a Jim —, mas nunca mais pôs os pés no estúdio. Nem em nenhum outro. Foi colocada tranqüilamente na lista negra, que nunca chega a ser escrita, mas que existe e é comentada entre um jantar e outro ou durante as corridas de cavalos.

Homens influentes olhavam-na com interesse nos restaurantes, mas, de alguma forma, acabavam sabendo que ela era um mau negócio. Mas Pam não desistiu nos meses seguintes — nem mesmo depois que Becker a abandonou e ela parou de freqüentar os lugares a que as pessoas vão para serem vistas. Assim, não foi por desgosto ou fraqueza, mas por circunstâncias corriqueiras, que, em junho, ela morreu.

V. Quando Jim ficou sabendo, pareceu-lhe inacreditável. Soube por acaso que ela estava num hospital com pneumonia — quando ele telefonou, informaram-lhe que ela havia morrido. “Sybil Higgins, atriz, inglesa. Idade, vinte e um anos.” Ela tinha dado o nome do velho Ward como o da pessoa a ser informada sobre seu paradeiro e Jim fez chegar a ele algum dinheiro para as despesas do enterro, sob o pretexto de que se tratava de um acerto de contas de salário. Temeroso de que Ward descobrisse a fonte do dinheiro, preferiu não ir ao enterro, mas, uma semana depois, foi visitar seu túmulo. Era um ensolarado dia de junho e ele ficou por lá cerca de uma hora. Em toda a cidade havia jovens felizes e bem vivos, e parecia-lhe absurdo que a inglesinha não fosse um deles. Tentou de todas as maneiras ajeitar as coisas de forma que desse tudo certo para ela, mas não adiantava mais. Despediu-se dela em voz alta e prometeu voltar outro dia. De novo no estúdio, reservou uma sala de projeção e mandou que trouxessem seu teste e as poucas cenas do filme que ela chegara a rodar. Sentou-se numa poltrona de couro e apertou um botão para que a sessão começasse. No teste, Pamela estava vestida como na noite em que haviam se conhecido. Parecia feliz, e ele ficou satisfeito de que, pelo menos, ela tivesse conseguido expressar aquela felicidade. O rolo de tomadas do filme começou a rodar e seguiu, aos solavancos, com a voz de Bob Griffin em off e as claquetes antes de cada cena. Então, na penúltima cena, Jim viu Pamela virar-se para a câmera e sussurrar: “Prefiro morrer a ter que me submeter a isto.” Jim levantou-se e voltou para o escritório. Abriu os três bilhetes que ela tinha lhe enviado e os releu. ... passei por aqui e me lembrei de você e de nosso passeio. Passou pelo estúdio. Na primavera ela lhe telefonara duas vezes, e ele quisera vê-la. Mas não podia fazer nada por ela e não suportava ter de lhe dizer isso. “Não sou muito corajoso”, Jim disse a si próprio. Mesmo agora, em seu coração, havia o medo de que essa lembrança não o abandonasse, e ele não queria ser infeliz. Alguns dias depois, após trabalhar até tarde na sala de dublagem, deu um pulo à lanchonete de seu bairro para comer um sanduíche. Era uma noite de calor e havia muitos jovens no balcão. Estava pagando a conta, quando notou uma figura na banca de jornais, observando-o por trás de uma revista. Parou. Não queria virar-se para ver quem era, nem para descobrir qualquer semelhança. Mas também não queria ir embora dali. Ouviu o ruído de uma página sendo virada e, pelo rabo do olho, viu a capa da revista: The Illustrated London News. Não teve medo — estava pensando depressa e desesperadamente. Se aquilo fosse verdade e ele pudesse tê-la de volta, para começar tudo de novo, naquela mesma noite... “Seu troco, senhor Leonard.” “Obrigado.”

Ainda sem olhar, dirigiu-se para a porta. Então, ouviu a revista ser jogada sobre a pilha de outras revistas e uma respiração pesada perto dele. Na rua, os jornaleiros gritavam uma manchete qualquer. Dobrou a esquina errada em direção à casa dela, e ouviu que ela o seguia — tão nitidamente que chegou a diminuir o passo para que pudesse acompanhá-lo. Defronte ao apartamento dela, tomou-a nos braços e puxou para si sua radiante beleza. “Dê-me um beijo de boa-noite”, ela disse. “Gosto de ganhar um beijo de boa-noite. Durmo melhor.” Então durma, ele pensou, ao ir embora — durma. Não pude fazer nada. Tentei, mas não consegui. Quando você nos trouxe sua beleza, não quis que ela se perdesse em vão, mas, de alguma forma, foi o que acabei fazendo. Só lhe resta agora dormir. (1940)

Mocinho Bonito

Ah, Mocinho Bonito, lendo Platão, que divino! Meu negro lindo, campeão de golfe de Chicago, eu conheço você. À noite, trabalha como camareiro no pullman da estrada de ferro; depois, à luz amarela do lampião e sob o cheiro das cuspideiras, escreve cartas à Sociedade dos Rosa-cruzes. Sempre tentando aprender as coisas. Mocinho Bonito, olhe para mim. Estou louca por você. Sei que não chego a seus pés, mas pense em mim como uma serpente esperta, capaz de rastejar a seu lado pelo chão e admirá-lo nas alturas! Lilymary o amava. Um dia pediu-o em casamento e se casaram na igreja de St. Jarvis, em North Englewood. Passaram anos apaixonados, mesmo comendo apenas os restos permitidos a sua cor e limitando-se a envelhecer sem nenhuma melhora aparente de vida. A mulher do gerente de publicidade de um jornal de Chicago emprestou a Mocinho Bonito o Manifesto comunista, sem imaginar que ele, de longe, preferia Platão ou, melhor ainda, os livros da Sociedade dos Rosa-cruzes de Sacramento, Califórnia, que lhe afogueavam as orelhas enquanto o trem devorava os trilhos de Alton, Springfield e Burlington pelas madrugadas. Amantes de ébano, durante anos pensaram que nunca teriam um filho lindo e de ébano como eles. Um dia, sinos soaram, gongos gongaram, e o dr. Edwin Burch, da South Michigan Avenue, aceitou cuidar de tudo por apenas duzentos dólares. Você precisava vê-los se acarinhando mutuamente, um evitando ferir o outro o mínimo que fosse. Mocinho Bonito cuidou tão bem de Lilymary durante a gravidez que até contratou a própria irmã para fazer companhia a ela enquanto ele trabalhava, agora dia e noite — à noite no trem, de dia num armazém da cidade. E então o bebê de ébano nasceu. Ah, Mocinho Bonito, disse Lilymary, olhe para seu filho bonito. Estava orgulhosa no leito da enfermaria, que dividia com a mulher de um lutador, a mulher de um papa-defunto e a mulher de um médico. O rosto de Mocinho Bonito irradiou felicidade e seus olhos e dentes brilharam num sorriso, como se dissessem que nada, nada neste mundo... Mocinho Bonito sentou-se à sua cabeceira quando ela dormiu e começou a ler Walden, de Thoreau, pela terceira vez. A enfermeira apareceu e disse que agora ele precisava ir embora. Foi trabalhar no trem e, em Alton, ao postar uma carta para um passageiro, escorregou e caiu sob a roda do trem em movimento, o qual cortou-lhe a perna acima do joelho. Mocinho Bonito passou um ano no hospital. Lilymary voltou a trabalhar como cozinheira. As coisas ficaram difíceis e eles tiveram problemas com o seguro contra acidentes de trabalho. Mocinho Bonito encontrou nos livros a inspiração para ajudá-lo a suportar as privações, quando todos os seres humanos pareciam distantes. O bebê cresceu, mas não era bonito como os pais — não como eles haviam imaginado em seus sonhos dourados. Cada vez mais, dispunham de menos tempo para dedicar-lhe amor e, com isso, era a irmã de Mocinho Bonito quem mais cuidava dele. Os dois só queriam que tudo voltasse a ser como antes — que a perna de Mocinho Bonito crescesse de novo, para que ele pudesse voltar a encontrar

prazer em seus livros e para que Lilymary pudesse esperar outro bebê. Alguns anos se passaram. Tinham decaído tanto que nunca mais se recuperaram. Mocinho Bonito era agora guarda-noturno, mas já fora obrigado a fazer seis operações, e cada perna artificial afixada ao cotoco infligia-lhe dor constante. Lilymary continuava firme como cozinheira. A essa altura, tinham se tornado pessoas rigorosamente comuns. A própria irmã já se esquecera de que, um dia, Mocinho Bonito tinha sido o campeão negro de golfe de Chicago. Certa vez, ao limpar o armário, jogou fora todos os seus livros — Platão, Thoreau, Emerson e até os folhetos e cartas da Sociedade dos Rosa-cruzes. Mocinho Bonito custou a descobrir que tudo havia sumido. Quando se deu conta, apenas olhou para a prateleira que eles haviam habitado e balbuciou: “Puxa... puxa...”. As coisas mudam tanto e ficam tão diferentes que, às vezes, mal as reconhecemos, e parece que só nosso nome continua o mesmo. Mas, já então, parecia-lhes errado chamarem um ao outro de Mocinho Bonito e Lilymary, depois que todo o prazer se esgotara. Alguns anos mais tarde, os dois morreram numa epidemia de gripe e foram para o céu. Pensaram que finalmente tudo iria melhorar — e, de fato, as coisas começaram a acontecer exatamente como lhes tinham prometido em criança. A perna de Mocinho Bonito cresceu de novo e ele se tornou o campeão de golfe de todo o céu, tanto o dos pretos quanto o dos brancos, arremessando a bolinha de nuvem em nuvem pelo firmamento azul. Os seios de Lilymary voltaram a ser jovens e firmes, ela era respeitada pelos outros anjos e seu orgulho por Mocinho Bonito cresceu mais do que nunca. À noite, eles descansavam e tentavam se lembrar do que sentiam falta. Não sentiam falta dos livros porque no céu todos sabiam tudo de cor — nem de seu filhinho porque, na realidade, ele nunca fizera parte da vida deles. Como não se lembravam de nada que sentiam falta, acabaram desistindo e se limitavam a falar de como se adoravam e de como Mocinho Bonito iria jogar bem no dia seguinte. E assim continuaram para sempre. (1940)

Sobre o autor

F. Scott Fitzgerald nasceu em St. Paul, Minnesotta, em 1896. A partir do sucesso do romance de estréia, Este lado do paraíso (1920), dividiu seu tempo entre a Europa e os Estados Unidos. Seus últimos anos foram marcados pela doença mental da esposa, Zelda, e pelo alcoolismo. Morreu em 1940, em Hollywood. Entre outros livros, publicou Este lado do paraíso (1920), Contos da era do jazz (1922), Belos e malditos (1922), O vegetal ou De presidente a carteiro (1923), O grande Gatsby (1925), Suave é a noite (1934), O último magnata (1941).

Copy right dos contos: “Bernice Bobs Her Hair”, copy right © 1920 by Curtis Publishing Co.; “The Diamond as Big as the Ritz”, copy right © 1922 by Smart Set Company Inc.; “Rags Martin-Jones and the Pr-nce of W-les”, copy right © 1924 by McCall Corporation; “‘The Sensible Thing’”, copy right © 1924 by Coloroto Corporation; “Love in the Night”, copy right © 1925 by Curtis Publishing Co., “The Rich Boy ”, copy right © 1925, 1926 by Consolidated Magazines Corp.; “Jacob’s Ladder”, copy right © 1927 by Curtis Publishing Co.; “Majesty ”, copy right © 1929 by Curtis Publishing Co.; “At Your Age”, copy right © 1929 by Curtis Publishing Co.; “The Swimmers”, copy right © 1929 by Curtis Publishing Co.; “Two Wrongs”, copy right © 1930 by Curtis Publishing Co.; “First Blood”, copy right © 1930 by Curtis Publishing Co.; “The Bridal Party ”, copy right © 1930 by Curtis Publishing Co.; “One Trip Abroad”, copy right © 1930 by Curtis Publishing Co.; “The Hotel Child”, copy right © 1931 by Curtis Publishing Co.; “Baby lon Revisited”, copy right © 1931 by Curtis Publishing Co.; “A New Leaf”, copy right © 1931 by Curtis Publishing Co.; “What a Handsome Pair!”, copy right © 1932 by Curtis Publishing Co.; “Crazy Sunday ”, copy right © 1932 by American Mercury, Inc.; “More Than Just a House”, copy right © 1933 by Curtis Publishing Co.; “Financing Finnegan”, copy right © 1938 by Esquire, Inc.; “The Lost Decade”, copy right © 1939 by Esquire, Inc.; “Last Kiss”, copy right © 1949 by Crowell Collier Publishing Co.; “Dearly Beloved”, copy right © 1969 by The National Cash Register Company. Copy right do prefácio © 2004 by Ruy Castro Título original The Short Stories of F. Scott Fitzgerald: A New Collection Capa Jeff Fisher Preparação Maria Cecília Caropreso Revisão May sa Monção Renato Potenza Rodrigues ISBN 978-85-8086-891-3 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br