Salmos e Sapienciais

SALMOS E SAPIENCIAIS CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA – EAD Salmos e Sapienciais – Profª. Ms. Rita de Cácia Ló e Prof.

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SALMOS E SAPIENCIAIS

CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA – EAD Salmos e Sapienciais – Profª. Ms. Rita de Cácia Ló e Prof. Dr. Cássio Murilo Dias da Silva.

Meu nome é Rita de Cácia Ló. Sou bacharel em Teologia e mestre em Ciências da Religião, na área de Literatura e Religião no Mundo Bíblico – UMESP. Atualmente, colaboro na formação de leigos nas dioceses de Campinas e Bragança Paulista. Publiquei vários artigos na área de exegese e teologia bíblica. E-mail: [email protected]

Meu nome é Cássio Murilo Dias da Silva. Tenho mestrado e doutorado em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Faço parte do corpo de tradutores e revisores da Bíblia da CNBB e colaboro com as Edições Loyola como tradutor e assessor. Tenho livros e artigos publicados sobre exegese e teologia bíblica. Dedico minha vida ao estudo e ao ensino da Bíblia. Encorajo todos a buscarem conhecer sempre mais a Palavra de Deus. E-mail: [email protected]

Prof. Dr. Cássio Murilo Dias da Silva Profª. Ms. Rita de Cácia Ló

SALMOS E SAPIENCIAIS

Plano de Ensino Caderno de Referência de Conteúdo Caderno de Atividades e Interatividades

© Ação Educacional Clareana, 2010 – Batatais (SP) Trabalho realizado pelo Centro Universitário Clareano de Batatais (SP) Curso: Bacharelado em Teologia Disciplina: Salmos e Sapienciais Versão: fev./2011 Reitor: Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva Vice-Reitor: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula Pró-Reitor Administravo: Pe. Luiz Claudemir Bo!eon Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Ms. Luís Cláudio de Almeida Coordenador Geral de EAD: Prof. Ms. Areres Estevão Romeiro Coordenador do Curso de Bacharelado em Teologia: Prof. Ms. Pe. Vitor Pedro Calixto dos Santos Coordenador de Material Didáco Mediacional: J. Alves

Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional Preparação Aletéia Patrícia de Figueiredo Aline de Fátima Guedes Camila Maria Nardi Matos Cáa Aparecida Ribeiro Dandara Louise Vieira Matavelli Elaine Aparecida de Lima Moraes Elaine Cristina de Sousa Goulart Josiane Marchiori Marns Lidiane Maria Magalini Luciana A. Mani Adami Luciana dos Santos Sançana de Melo Luis Henrique de Souza Luiz Fernando Trentin Patrícia Alves Veronez Montera Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Simone Rodrigues de Oliveira

Revisão Felipe Aleixo Isadora de Castro Penholato Maiara Andréa Alves Rodrigo Ferreira Daverni Vanessa Vergani Machado Projeto gráfico, diagramação e capa Joice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa Ferrão Luis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de Oliveira Renato de Oliveira Violin Tamires Botta Murakami Wagner Segato dos Santos

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana.

Centro Universitário Claretiano Rua Dom Bosco, 466 - Bairro: Castelo – Batatais SP – CEP 14.300-000 [email protected] Fone: (16) 3660-1777 – Fax: (16) 3660-1780 – 0800 941 0006 www.claretiano.edu.br

SUMÁRIO PLANO DE ENSINO 1 2 3 4 5

APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 9 DADOS GERAIS DA DISCIPLINA........................................................................... 10 CONSIDERAÇÕES GERAIS ................................................................................... 12 BIBLIOGRAFIA BÁSICA ........................................................................................ 12 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ........................................................................ 13

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 15 2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA ................................................. 17

UNIDADE 1 ! INTRODUÇÃO À LITERATURA SAPIENCIAL BÍBLICA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

OBJETIVOS.......................................................................................................... 31 CONTEÚDOS....................................................................................................... 31 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 31 INTRODUÇÃO À UNIDADE ................................................................................. 32 O QUE É LITERATURA SAPIENCIAL? .................................................................... 32 LINGUAGEM DA SABEDORIA .............................................................................. 35 SABEDORIA NO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO .................................................... 35 SABEDORIA NOS TEXTOS BÍBLICOS .................................................................... 41 TEOLOGIA DA RETRIBUIÇÃO .............................................................................. 43 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 45 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 45 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 46

UNIDADE 2 ! ESTUDO DOS LIVROS DE PROVÉRBIOS E SIRÁCIDA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

OBJETIVOS.......................................................................................................... 47 CONTEÚDOS....................................................................................................... 47 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 47 INTRODUÇÃO À UNIDADE ................................................................................. 48 PROVÉRBIOS....................................................................................................... 48 GÊNEROS LITERÁRIOS ....................................................................................... 52 CONTEÚDO TEOLÓGICO .................................................................................... 57 SIRÁCIDA "ECLESIÁSTICO# ................................................................................... 63 ORIGINAL EM HEBRAICO.................................................................................... 64 CANONICIDADE .................................................................................................. 65 BEN SIRA NETO E A TRADUÇÃO PARA O GREGO ................................................ 68 GÊNEROS LITERÁRIOS ....................................................................................... 70 CONTEÚDO TEOLÓGICO ..................................................................................... 73

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MENSAGENS DOS ACRÉSCIMOS......................................................................... 78 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 79 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA ............................................................................ 80

UNIDADE 3  ESTUDO DOS LIVROS DE JÓ E QOHÉLET 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

OBJETIVOS.......................................................................................................... 83 CONTEÚDOS....................................................................................................... 83 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 83 INTRODUÇÃO À UNIDADE ................................................................................. 84 O LIVRO DE JÓ .................................................................................................... 84 QUEM É JÓ? ....................................................................................................... 87 ESTRUTURA ........................................................................................................ 88 GÊNERO LITERÁRIO DO LIVRO .......................................................................... 88 CONTEÚDO TEOLÓGICO .................................................................................... 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE JÓ .................................................................... 95 O LIVRO DE QOHÉLET ECLESIASTES ................................................................. 96 ESTRUTURA ....................................................................................................... 100 CONTEÚDO TEOLÓGICO ..................................................................................... 101 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 107 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 108 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 109

UNIDADE 4  ESTUDO DO LIVRO DA SABEDORIA 1 2 3 4 5 6 7 8 9

OBJETIVOS.......................................................................................................... 111 CONTEÚDOS....................................................................................................... 111 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 111 INTRODUÇÃO À UNIDADE ................................................................................. 112 SABEDORIA......................................................................................................... 112 CONTEÚDO TEOLÓGICO .................................................................................... 117 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 121 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 122

UNIDADE 5  ESTUDO DO LIVRODOS SALMOS 1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 123 2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 123 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 123

4 5 6 7 8 9 10 11

INTRODUÇÃO À UNIDADE ................................................................................. 125 RESUMO DA HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS ................................ 125 SALMOS ............................................................................................................. 127 GÊNEROS LITERÁRIOS ........................................................................................ 137 VEJAMOS, COM MAIORES DETALHES, CADA UMA DESSAS FAMÍLIAS................ 140 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 152 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 152 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 153

UNIDADE 6  ESTUDO DO LIVRO DE CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

OBJETIVOS.......................................................................................................... 155 CONTEÚDOS....................................................................................................... 155 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 155 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 156 TÍTULO ............................................................................................................... 157 CANONICIDADE .................................................................................................. 157 DATA .................................................................................................................. 158 AUTOR ................................................................................................................ 158 GRANDES CORRENTES DE INTERPRETAÇÃO DO CÂNTICO ................................ 159 ESTRUTURA ....................................................................................................... 161 GÊNEROS LITEÁRIOS .......................................................................................... 162 CONTEÚDO TEOLÓGICO ..................................................................................... 163 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 164 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 166

UNIDADE 7  CRÍTICA SOCIAL 1 2 3 4 5 6 7 8

OBJETIVOS.......................................................................................................... 167 CONTEÚDOS....................................................................................................... 167 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 167 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 168 A LITERATURA SAPIENCIAL BÍBLICA COMO FRUTO DAS CLASSES DOMINANTES 169 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 179 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 182 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 182

UNIDADE 8  CRIAÇÃO, LIBERTAÇÃO E RETRIBUIÇÃO NA LITERATURA SAPIENCIAL 1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 183 2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 183

3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 184 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 184 MUNDO, COSMOS: QUE É ISSO?........................................................................ 185 CRIAÇÃO ............................................................................................................. 186 SABEDORIA CRIADORA....................................................................................... 189 CRIAÇÃO E HISTÓRIA DA SALVAÇÃO................................................................... 189 LIBERTAÇÃO HISTÓRICA E MESSIÂNICA ............................................................. 190 LIBERTAÇÃO SOCIAL ........................................................................................... 190 LIBERTAÇÃO FILOSÓFICOTEOLÓGICA OU RETRIBUIÇÃO................................. 191 CONCLUSÃO: LITERATURA SAPIENCIAL E NOVO TESTAMENTO ......................... 194 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 201 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 201 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 202

EAD Plano de Ensino

PE 1 1. APRESENTAÇÃO Olá! Seja bem-vindo à disciplina Salmos e Sapienciais, que está à sua disposição em ambiente virtual (Educação a Distância). É uma alegria recebê-lo para iniciarmos esta caminhada de estudo dos seguintes livros: Salmos, Cântico dos Cânticos, Provérbios, Eclesiástico, Jó, Eclesiastes e Sabedoria. Salmos e Cântico dos Cânticos são livros de poesia lírica; os demais são, especificamente, os livros sapienciais. Desejamos, pois, que você empreenda, com muito ânimo, este itinerário. Os livros que serão estudados nesta disciplina se encontram no Antigo Testamento. Mesmo sem conhecer os livros sapienciais, quem nunca ouviu a frase: "precisa ter uma paciência de Jó"? Quem nunca leu ou ouviu um salmo ou uma oração? Quem não conhece um provérbio antigo ou, ainda, um conselho de pai para orientar o filho? Isso tudo faz parte da vida e da história sagrada de um povo e foi preservado nos textos sagrados que chamamos de "literatura sapiencial".

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Assim, neste estudo, você passeará pelo Antigo Oriente Próximo e aprenderá que a sabedoria não foi um fenômeno particular de Israel. A busca pelo sentido da vida e da morte é uma preocupação presente, também, no Egito, na Mesopotâmia e em vários outros povos daquela região. Todavia, a particularidade da religião de Israel, a saber, o monoteísmo, imprimiu a essa busca acentos próprios, como veremos nos textos bíblicos. Nesta disciplina, você participará das discussões acerca de pontos candentes e ainda não resolvidos: a autoria, a data e o local de composição de cada livro. Você também terá uma visão panorâmica da organização de cada livro, isto é, como eles estão estruturados, o que lhe ajudará a compreender o objetivo de cada autor. Mais ainda, você será lançado no turbilhão dos "gêneros literários", isto é, aprenderá que existe um modo correto de dizer aquilo que você quer dizer. Tudo isso, para que você possa compreender a mensagem e a teologia de cada livro aqui estudado.

2. DADOS GERAIS DA DISCIPLINA Ementa Salmos e Sapienciais como resposta ao Deus da Aliança diante das diferentes situações individuais e coletivas. Conceito de sabedoria. História (pós-exílio, formação do judaísmo) e teologia dos livros sapienciais e poéticos do Antigo Testamento, bem como o gênero literário e as linhas de interpretação, visando formar fundamentos para aprofundamento e atualização teológico-pastoral. Objetivo geral Os alunos da disciplina Salmos e Sapienciais do curso de Bacharelado em Teologia, na modalidade EaD do Claretiano, dado o Sistema Gerenciador de Aprendizagem e suas ferramentas, terão condições para compreender o projeto teológico e histórico da Literatura Sapiencial e Poética na Bíblia. Centro Universitário Claretiano

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Com esse intuito, os alunos contarão com recursos técnico-pedagógicos facilitadores de aprendizagem, como Material Didático Mediacional, bibliotecas físicas e virtuais, ambiente virtual, bem como acompanhamento do professor responsável, do tutor a distância e do tutor presencial, complementado por debates no Fórum. Ao final desta disciplina, de acordo com a proposta orientada pelo professor responsável e pelo tutor a distância, terão condições de ler criticamente textos dos livros sapienciais bíblicos e utilizá-los em sua prática pastoral ou em seu estudo pessoal. Para esse fim, levarão em consideração as ideias debatidas na Sala de Aula Virtual, por meio de suas ferramentas, bem como o que produziram durante o estudo. Competências, habilidades e atitudes Ao final deste estudo, os alunos do curso de Bacharelado em Teologia contarão com uma sólida base teórica para fundamentar criticamente sua prática educacional/profissional. Além disso, adquirirão as habilidades necessárias não somente para cumprir seu papel de docente/profissional nesta área do saber, mas também para agir com ética e com responsabilidade social, contribuindo, assim, para a formação integral do ser humano. Modalidade ( ) Presencial

( X ) A distância

Duração e carga horária A carga horária da disciplina Salmos e Sapienciais é de 60 horas. O conteúdo programático para o estudo das oito unidades que a compõem está desenvolvido no Caderno de Referência de Conteúdo, anexo a este Plano de Ensino, e os exercícios propostos constam no Caderno de Atividades e Interatividades (CAI).

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É importante que você releia no Guia Acadêmico do seu curso as informações referentes à Metodologia e à Forma de Avaliação da disciplina Salmos e Sapienciais, descritas pelo tutor na ferramenta "cronograma" na Sala de Aula Virtual – SAV.

3. CONSIDERAÇÕES GERAIS Neste Plano de Ensino, você pôde obter informações práticas sobre como será desenvolvida a disciplina, sobre os objetivos que poderá atingir, bem como sobre as bibliografias básica e complementar que fundamentam os conteúdos que nos propomos a desenvolver com você. Esperamos sua participação nos debates da Sala de Aula Virtual, para que, assim, possamos construir o conhecimento de forma colaborativa. Durante nosso estudo, você será convidado a fazer pesquisas sobre os temas abordados. Por isso, faça da pesquisa um hábito e compartilhe suas ideias conosco por meio das ferramentas disponibilizadas na Sala de Aula Virtual, pelo telefone ou por fax. Esperamos que você atinja suas metas! Bom estudo!

4. BIBLIOGRAFIA BÁSICA BROWN, R E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Eds.). Novo comentário Bíblico São Jerônimo – Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2007. MORLA, A. V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25). A Bibliografia Básica apresenta obras gerais, abrangentes, de introdução aos temas propostos. Já a Bibliografia Complementar apresenta estudos específicos sobre cada carta analisada.

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5. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ALONSO SCHÖKEL, L.; CARNITI, C. Salmos I-II. São Paulo: Paulus, 1998. (Grande Comentário Bíblico) ALONSO SCHÖKEL, L.; VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Provérbios. Madrid: Cristiandad, 1978. (Nueva Biblia Española - Sapienciales, 1). ALONSO SCHÖKEL, L.; STORNIOLO, I. Salmos – a oração do povo de Deus. São Paulo: Paulus, 1997. BÍBLIA de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2002. BORTOLINI, J. Conhecer e rezar os Salmos. São Paulo: Paulus, 2000. BRENNER, A. (Org). Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. (A Bíblia: uma leitura de gênero). CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). DIAS DA SILVA, C. M. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. (Bíblia e história). ______. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007. (Ferramentas Bíblicas). LAFFEY, A. L. Introdução ao AT - perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas, 1994. (Nova Coleção Bíblica). MAZZAROLO, I. Cântico dos Cânticos: uma leitura política de amor. Porto Alegre: Mazzarolo, 2000. MINISSALE, A. Sirácida: as raízes na tradição, São Paulo: Paulinas, 1993. MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). PEREIRA, N. B. Sirácida ou Eclesiástico. Petrópolis: Vozes/Sinodal, 1992. (Comentário bíblico). RAVASI, G. Libro dei Salmi - 1 (1-50); 2 (51-100); 3 (101-150). Bologna: Dehoniane, 1988/4. (Lettura Pastorale della Bibbia, 12). STADELMANN, L. Cântico dos Cânticos. São Paulo: Loyola, 1993. (Bíblica Loyola, 11). STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. Como ler Cântico dos Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1991. (Como ler). ______. Como ler o livro do Eclesiástico. São Paulo: Paulus, 2002. (Como ler). ______. Como ler o livro dos Provérbios. São Paulo: Paulinas, 1991. (Como ler). TERNAY, H. O livro de Jó. São Paulo: Vozes, 2001. (Comentário Bíblico AT). VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Eclesiastes ou Qohélet. São Paulo: Paulus, 1999. (Grande Comentário Bíblico). ______. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999 (Bíblica Loyola, 25). WEISER, A. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994. (Grande Comentário Bíblico).

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EAD

Caderno de Referência de Conteúdo

CRC 1. INTRODUÇÃO Nossa disciplina está dividido em três partes bem delimitadas. Na primeira, estudamos a Literatura Sapiencial Bíblica propriamente dita: Provérbios, Jó, Qohélet (Eclesiastes), Sirácida (Eclesiástico), Sabedoria. Na segunda parte, toma lugar a Literatura Lírica: Cântico dos Cânticos e Salmos. A terceira e última parte oferecerá algumas sínteses teológicas por meio de temas que atravessam todos esses livros. Literatura Sapiencial propriamente dita Que é Literatura Sapiencial? Começamos distinguindo a Literatura Sapiencial dos demais corpos literários da Sagrada Escritura, bem como discutindo a finalidade da tarefa sapiencial. Veremos que a sabedoria é uma "oferta de sensatez": oferta, porque deixa o discípulo na liberdade de rejeitá-la; sensatez, porque oferece critérios para percepção e juízo da realidade. Além disso, trata-se de uma sabedoria artesã, um conhecimento prático para solucionar

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os problemas da vida quotidiana. Sábio, portanto, não é o intelectual, mas o homem que sabe aproveitar-se das experiências, próprias e alheias, para discernir o caminho a tomar. Sabedoria no Antigo Oriente Próximo Num segundo momento, estudaremos como a preocupação sapiencial não foi um fenômeno particular de Israel, mas algo comum a todos os povos do Antigo Oriente Próximo (AOP). Mesopotâmia, Egito e Ugarit: os vizinhos de Israel tinham seus próprios caminhos. O povo de Deus foi mais passivo que ativo nesse processo, importando e assimilando muito do patrimônio internacional. Somente quando fica superado o confronto Javismo versus Sabedoria do AOP, Israel começará a ser mais original. Gêneros literários sapienciais Embora não se limitem à Literatura Sapiencial, conheceremos alguns deles nesta disciplina. Nossos antepassados sábios tinham uma maneira própria de organizar o conhecimento e de formular o raciocínio. Queremos oferecer, pois, algumas ferramentas para ler e compreender melhor esses textos. Sabendo como os sábios articulavam suas ideias e as defendiam, torna-se mais fácil para nós captar o alcance e as consequências de suas posições. Introdução especial a cada livro Em nossa disciplina, a chave de leitura para a Literatura Sapiencial é a chamada Teologia da Retribuição. Essa teologia pode ser assim esquematizada: • Fidelidade = bênção = justo = sábio. • Infidelidade = castigo = ímpio = estulto. Os cinco livros sapienciais, no entanto, não são unânimes quanto à eficácia dessa teologia. Afinal de contas, a Teologia da Retribuição funciona ou não?

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• Pr e Sir: sim! • Jó e Qo: não! • Sb: sim, mas só na outra vida! É sob essa perspectiva que tais livros serão estudados. Literatura Lírica Na segunda parte do estudo, veremos dois livros no quais se manifesta o fenômeno do lirismo, comum a todo o Antigo Oriente Próximo. Ganharão destaque dois tipos de cantos: os cantos de amor (presentes abundantemente no Cântico dos Cânticos) e os cantos ligados à vida religiosa, no livro dos Salmos. Sínteses teológicas Por fim, elaboraremos uma visão panorâmica, por meio de temas globalizantes: crítica social; criação, salvação e retribuição; a literatura sapiencial e o Novo Testamento.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA Abordagem Geral da Disciplina Neste tópico, apresentamos uma visão geral do que será estudado nesta disciplina. Aqui, você entrará em contato com os assuntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade. No entanto, essa Abordagem Geral visa fornecerlhe o conhecimento básico necessário a partir do qual você poderá construir um referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competência cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos começar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que fundamentam esta disciplina.

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As introduções são temáticas e históricas. Não são exaustivas, pois o interesse é levar você a pesquisar o texto da disciplina e, de modo especial, estimular a leitura do texto da disciplina na Educação a Distância e o texto dos livros bíblicos em questão, bem como a consulta de alguma obra indicada nas bibliografias. Apresentaremos, nesta Abordagem Geral, uma introdução do que é Literatura Sapiencial. Vamos lá?! Trata-se de uma coleção de livros que contém: conselhos, reflexões e exemplos destinados a oferecer a sensatez e o bom senso. Devemos ter bem claro que a sabedoria é uma oferta de sensatez. É uma oferta, porque deixa o discípulo livre para rejeitála. E é uma oferta de sensatez, porque apresenta critérios para perceber e julgar a realidade. Além disso, é uma sabedoria artesã, um conhecimento prático para solucionar os problemas da vida quotidiana. O sábio, portanto, não é o intelectual, mas o homem que sabe aproveitar-se das experiências, próprias e alheias, para discernir o caminho a tomar. Agora, veremos uma introdução especial para cada livro. A disciplina de Salmos e Sapienciais estudará sete livros. Cinco são os livros propriamente sapienciais: Provérbios, Jó, Eclesiastes (ou Qohélet), Eclesiástico (ou Sirácida) e Sabedoria. Dois são de poesia lírica: Salmos e Cântico dos Cânticos. A chave de leitura para os livros sapienciais propriamente ditos é a chamada Teologia da Retribuição, que é uma doutrina longamente amadurecida e vivida ainda hoje, que tem o seguinte princípio: "tudo o que a gente faz aqui, aqui mesmo a gente paga". Essa Teologia pode ser assim esquematizada: Fidelidade ↔ Bênção Justo ↔ Sábio Infidelidade ↔ Castigo Ímpio ↔ Insensato Centro Universitário Claretiano

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Os cinco livros sapienciais, no entanto, não são unânimes quanto à eficácia dessa teologia. Para a pergunta "A Teologia da Retribuição funciona ou não?", eles respondem da seguinte maneira: • Pv e Sir: Sim! • Jô e Qo: Não! • Sb: Sim, mas não agora. Só depois, na outra vida. É nessa perspectiva que tais livros serão estudados. Com relação à doutrina dos provérbios, veremos as seguintes linhas: 1) A Sabedoria: é a mediadora entre o fiel e Deus; portanto, deve ser amada e buscada. 2) A vida pessoal de cada homem deve ser pautada pela busca das atitudes louváveis (prudência no falar, ser justo, saber ser rico) e pela fuga das censuráveis (preguiça, embriaguez, tagarelice, injustiça). 3) A vida em família: a autoridade paterna é forte, a educação dos filhos é rígida, o adultério é condenado. 4) A vida em sociedade: tudo gira ao redor da Teologia da Retribuição: sensato = justo = rico; insensato = ímpio = pobre. Sem o instrumental da Sociologia ou do materialismo dialético, os sábios cujos ensinamentos encontramos no livro de Provérbios tinham uma visão que hoje poderíamos chamar de ingênua. No entanto, devemos notar que sua análise era religiosa, e não sociológica. 5) O âmbito religioso: não se questiona a existência de Deus. Ele é Criador, Senhor, Juiz e, acima de tudo, o Retribuidor, isto é, Ele é quem fundou e garante a Teologia da Retribuição. Por isso, é necessário temer a Deus. O Eclesiástico, por sua vez, foi escrito entre 190 a 180 a.C. O ponto focal do livro de Jesus Ben Sira é o seguinte: • a tradição de Israel não perde nada para a filosofia grega; • a história de Israel é uma história de heróis igual (pra não dizer melhor) à mitologia grega. Ou seja, não há nada que invejar.

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Jesus Ben Sira é um "conservador progressista": apoia-se nas tradições dos antigos para responder às questões do seu tempo. A Teologia da Retribuição, nesse sentido, deve servir de base e encorajamento para não se deixar enganar pelos atrativos do helenismo e da nova mentalidade social que ele impõe. Boa mesmo é a tradição sapiencial de Israel. O tema central do livro é a Sabedoria: • Ela tem uma origem divina, é uma criatura de Deus e ele a dá como dom a seus amigos; mas isso somente depois de prová-los. • Ela está intimamente ligada à Torah; é a shekinah, a própria revelação e presença de Deus a Israel. A Torah é a melhor expressão da Sabedoria. Em outras palavras, a prática da Lei é a manifestação concreta da Sabedoria e do temor do Senhor. Baseado nisso, Jesus Ben Sira passa a descrever a vida em família, os servos, as profissões, os amigos, a injustiça social, as expectativas futuras. Na contramão da Teologia da Retribuição, um teólogo-poeta pergunta: como fica o sofrimento do justo? E quem é Deus nisso tudo? Essas perguntas não foram formuladas somente pelo autor do livro de Jó. Outros sábios de outros povos também o fizeram. Nosso autor, portanto, vive num tempo de crise da Teologia da Retribuição. Começaremos com uma panorâmica do livro: O prólogo: honradez desinteressada (1-2,13). O diálogo com os 3 amigos, sobre a Teologia da Retribuição: o destino do malvado e a justiça de Deus; Jó desafia a Deus (3-31). A Teofania: Deus responde no meio da tempestade: o mistério de Deus a vera religião (38-42,6). A verdadeira sabedoria (28). O epílogo: a liberdade de Deus (42,7-17).

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Jó não é o autor, mas o personagem principal. Outro aspecto interessante do livro é que são dois "Jós": • O primeiro está no prólogo (1,1-2,13) e no epílogo (42,7-17); esses dois blocos formam uma história completa: é o mito primitivo de Jó, um homem saudável e rico que perde tudo e fica muito doente. A causa dessa desgraça é uma aposta entre Deus e um de seus conselheiros, Satã, que exerce a função de acusador. Mesmo sem saber o porquê, Jó perde tudo, mas não se rebela. Antes, torna-se o modelo de piedade, paciência e perseverança. Por isso, Deus restitui-lhe tudo em dobro. Essa era e é a história mais conhecida de Jó. • O segundo apresenta um Jó rebelde (4-27), que recebe a visita dos três amigos (Elifaz, Bildad, Sofar), os quais são representantes da Teologia da Retribuição. Cada um expõe seu ponto de vista por meio de longos discursos e Jó responde a cada um deles com outro discurso criticando a Teologia da Retribuição: ele quer discutir com o próprio Deus. Enquanto Deus não lhe responder, Jó considera seu sofrimento injusto: Jó tem certeza de sua inocência (21,4; 23,2). Por isso, o pano de fundo e o escopo de todo o livro é "ver Deus" (42,5), mas não o Deus da Teologia da Retribuição pregado pelos amigos, mas o verdadeiro Deus, experimentado pessoalmente. Apesar de seu esforço para negar a Teologia da Retribuição, o livro termina de forma um tanto quanto paradoxal: por sua justiça, Jó foi reabilitado e recebeu em troca muito mais que antes. Ou seja, Deus deu-lhe a retribuição. Outro livro que questiona a Teologia da Retribuição é Qohélet (Eclesiastes). Já de cara, o autor expõe sua tese fundamental: "vaidade das vaidades tudo é vaidade". Com essas palavras, Qohélet questiona as equiparações em que sempre acreditou: • Fidelidade = bênção – justo = sábio. • Infidelidade = castigo – ímpio = insensato.

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O método de conhecimento de Qohélet é o empírico: ele aplica na prática, em todos os âmbitos da vivência humana, os esquemas da Teologia da Retribuição e avalia os resultados sob o crivo de sua experiência pessoal. Sua conclusão é que nada acontece como se esperaria: o sentido da realidade permanece oculto. Não há retribuição nesta vida, e muito menos na outra (porque a outra também não existe): o destino é o mesmo para os justos e injustos, para sábios e insensatos. As únicas coisas que valem a pena nesta vida, as "vantagens para o homem", são: • ver o bom resultado de sua própria obra; • o gozo que deriva de tudo que dá prazer; • as coisas belas da criação e a alegria de estar vivo. Mas não devemos nos empolgar muito com elas e achar que nos acontecem porque Deus está nos retribuindo por alguma boa ação, pois são consequências infalíveis de nossos esforços. Na verdade, esse jeito de pensar é hébel, vaidade. Com relação ao livro da Sabedoria, este foi escrito entre os anos 30 a. C. e 14 d. C. em grego. Foi escrito em Alexandria, no Egito, isto é, em ambiente grego. Seu autor é um judeu que escreve para judeus e para pagãos. Por isso, ele usa não só a tradição de Israel, mas também os conceitos fornecidos pela própria filosofia grega. O livro, portanto, tem uma dupla finalidade: • sustentar na fé o judeu piedoso; • fazer os pagãos reconhecerem quem é o verdadeiro Deus. É mais ou menos o mesmo projeto de Jesus Ben Sira, mas num outro ambiente, com novas categorias. Podemos dividir esse livro em três partes: • Parte 1 (1-5[6,21]) – a esperança do justo é cheia de imortalidade. Centro Universitário Claretiano

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• Parte 2 (6[,22]-9) – a Sabedoria como irradiação da luz de Deus. • Parte 3 (10-19) – o grande Midrash sobre o Êxodo. As duas primeiras partes são mais filosóficas; a terceira é uma releitura teológico-moral da libertação do Egito. Após esta apresentação dos livros sapienciais propriamente ditos, podemos passar para os livros de poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos. O livro dos Salmos é uma coleção de orações do povo de Deus. Neles, Israel expressou sua fé e seus sentimentos ao longo de sua história: as alegrias, as dores, as revoltas, as conquistas, a esperança de um governo melhor etc. Os salmos são canções de um povo que crê. Deve-se, no entanto, notar que nem todos os salmos da Bíblia estão no livro dos Salmos: há vários espalhados aqui e acolá. E, ainda assim, o livro dos Salmos é o maior da Bíblia. Ainda hoje, os salmos ajudam-nos a rezar e a cantar a presença carinhosa de Deus. De fato, eles não falam "de" Deus, mas "a" Deus. Ou seja, eles colocam palavras em nossas bocas e ensinam-nos a louvar a Deus como convém. Os salmos são divididos em sete famílias, algumas delas com subdivisões: 6) Família hínica: a) hinos a Deus Salvador; b) hinos a Deus Criador; c) hinos a Deus Rei; d) hinos a Sião; 7) Família dos salmos de súplica: a) súplicas individuais; b) súplicas coletivas. 8) Família dos salmos de confiança e de ação de graça: a) confiança individual; b) confiança coletiva;

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c) ação de graças individual; d) ação de graças coletiva. Família litúrgica: a) salmos de ingresso; b) salmos proféticos; c) salmos de peregrinação. Família sapiencial: a) salmos sapienciais; a) salmos alfabéticos. Família histórica Família dos salmos régios: a) salmos de maldição e vindita.

O Cântico dos Cânticos contém poemas de vários gêneros literários, tais como cântico de descrição, cântico de admiração e cântico de desejo. São várias as correntes de interpretação: 1) Interpretação literal (ou naturalista): o Cântico é expressão do amor humano, um livro erótico (não pornográfico). O amor do homem e da mulher é mistério do amor criador de Deus. 2) Interpretação alegórica (ou típica): o noivo é Javé, ou Jesus Cristo; a noiva é Israel, ou a Igreja. 3) Interpretação antológica: o Cântico é uma releitura das várias fases da história da salvação e das manifestações do amor de Deus para com Israel. 4) Interpretação mítico-cultual: o Cântico é a versão israelita do matrimônio sagrado dos deuses da fertilidade. 5) Interpretação política (histórico-popular): o Cântico é um texto cifrado e tem por objetivo incentivar a união dos vários grupos do período pós-exílico. 6) Interpretação feminista: o Cântico faz uma reviravolta no preconceito patriarcal sobre a mulher. Quanto à Teologia, o Cântico dos Cânticos envereda pela polissemia: o mesmo texto pode ter uma pluralidade de significados, ou seja, amor humano e amor divino. Centro Universitário Claretiano

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Na Literatura Sapiencial o acento maior recai sobre o significado da vida e da existência humana, interligando os discursos sobre Deus, o homem e sua atividade. Glossário de Conceitos Este glossário permite a você uma consulta rápida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados na disciplina Salmos e Sapienciais. Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos desta disciplina: 1) Exegese e teologia bíblica: estudo da Bíblia de modo científico, com o objetivo de fazer uma reflexão sistemática, abrangente e crítica sobre os conteúdos da doutrina e dos dogmas. Cada autor bíblico tem sua própria teologia, que pode ser estudada por meio de um estudo exegético de sua obra. 2) Gêneros literários: esquema relativamente fixo e comum presente em vários textos formalmente semelhantes (ainda que o conteúdo seja diferente). Cada um dos livros estudados nesta disciplina usa e abusa de vários gêneros literários. 3) Retribuição: teologia ou doutrina segundo a qual "aqui se faz, aqui se paga": Deus recompensa (retribui) a cada um conforme suas obras. Essa doutrina está presente em vários livros bíblicos, em maior ou menor intensidade. No caso da literatura sapiencial propriamente dita, é o fio condutor que perpassa cada livro, que pode aceitála ou criticá-la. Em outras palavras, o dogma da retribuição oferece o conceito fundamental para uma síntese da teologia dos livros sapienciais bíblicos. 4) Sabedoria: não deve ser confundida com inteligência nem com conhecimento enciclopédico do universo. É o conhecimento prático e artesanal, que dá ao homem discernimento e sensatez para resolver os problemas práticos do cotidiano, bem como a orientação fundamental para toda a sua vida.

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Esquema dos Conceitos-chave Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Esquema dos Conceitos-chave da disciplina. O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema ou, até mesmo, seu mapa mental. Esse exercício é uma forma construir seu conhecimento, ressignificando as informações com base em suas próprias percepções. É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações entre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino. Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir seu conhecimento de maneira mais produtiva e, assim, obter ganhos pedagógicos significativos em seu processo de ensino e aprendizagem. Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem escolar, tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em Educação, o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que estabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos de ancoragem. Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, apenas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preciso, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure como uma aprendizagem significativa. Para tanto, é importante considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos conceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez que, ao fixar esses conceitos em suas já existentes estruturas cognitivas, outros serão também relembrados.

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Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimento, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por objetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do site disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2010).

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave da disciplina Salmos e Sapienciais.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais importantes desse estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre

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um e outro conceito desta disciplina e descobrir o caminho para construir o seu processo de ensino-aprendizagem. O Antigo Testamento, ao qual pertencem os livros da Literatura Sapiencial, Salmos e Cântico dos Cânticos, deve ser inicialmente compreendido por si mesmo, e não em função da releitura cristã. Independentemente de Jesus Cristo, o Antigo Testamento vale por si mesmo e é assim que será estudado nesta disciplina: com as ferramentas oferecidas pela exegese e pela teologia bíblica. Para os livros sapienciais propriamente ditos, da exegese utilizaremos principalmente os gêneros literários, e da teologia bíblica vamos nos servir da reflexão sapiencial acerca da Sabedoria como o caminho para encontrar o sentido da vida, e a temática da retribuição (um dogma que, para alguns sábios, é infalível, enquanto, para outros, é um devaneio). Para os livros poéticos, isto é, Salmos e Cântico dos Cânticos, a exegese e a teologia bíblica vão nos ajudar a compreender a mensagem de fé, bem como o modo em que os autores expressaram tal conteúdo. O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EAD, deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento. Questões Autoavaliativas No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser de múltipla escolha ou abertas com respostas objetivas ou dissertativas. Vale ressaltar que se entendem as respostas objetivas como as que se referem aos conteúdos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada, inalterada. Responder, discutir e comentar essas questões, bem como relacioná-la pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a resolução de questões pertinentes ao Centro Universitário Claretiano

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assunto tratado, você estará se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profissional. Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabarito, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões autoavaliativas (as de múltipla escolha e as abertas objetivas). As questões dissertativas obtêm por resposta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado. Por isso, não há nada relacionado a elas no item Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma.

Bibliografia Básica É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as bibliografias apresentadas no Plano de Ensino e no item Orientações para o estudo da unidade. Figuras (ilustrações, quadros...) Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte integrante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustrativas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os conteúdos da disciplina, pois relacionar aquilo que está no campo visual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual. Dicas (motivacionais) O estudo desta disciplina convida você a olhar, de forma mais apurada, a Educação como processo de emancipação do ser humano. É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois,

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ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade. Você, como aluno do curso de Bacharelado em Teologia na modalidade EAD e futuro profissional da educação, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente. Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugerimos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas. É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produções científicas. Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas. No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadurecimento intelectual. Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores. Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a esta disciplina, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para ajudar você.

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EAD Introdução à Literatura Sapiencial Bíblica

1 1. OBJETIVOS • Comparar a sabedoria bíblica com a sabedoria da Mesopotâmia e do Egito. • Compreender a importância da Teologia da Retribuição.

2. CONTEÚDOS • • • •

A linguagem da sabedoria. Sabedoria no Antigo Oriente Próximo. Sabedoria no Antigo Testamento. Teologia da Retribuição.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir:

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1) Leia os livros da bibliografia indicada para que você amplie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre com o material didático em mãos e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor. 2) Tenha sempre à mão o significado dos conceitos explicitados no Glossário e suas ligações pelo Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste Caderno de Referência de Conteúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho. 3) Para maior compreensão do assunto que será discutido nesta unidade, sugerimos outras narrações egípcias, como: As instruções de Duauf-Jeti; As instruções de Ani e As instruções de Ank-sesonqy. Sugerimos, também, que você leia: VÍLCHEZ LÍNDEZ, José. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. 4) São vários os exemplos de ditos no Antigo Oriente Próximo que poderíamos citar aqui. Eles podem ser encontrados em: VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Estamos iniciando nossos estudos da disciplina Salmos e Sapienciais. Nesta primeira unidade, será abordado o conteúdo referente à sabedoria e à sua linguagem, sua história no Antigo Oriente, Antigo Egito, Mesopotâmia e Ugarit. Além disso, iremos estudá-la nos textos bíblicos e, para terminarmos nossa introdução à literatura sapiencial bíblica, conheceremos a Teologia da Retribuição. Vamos lá?!

5. O QUE É LITERATURA SAPIENCIAL? Para responder à pergunta que compõe o título deste tópico ("O que é literatura sapiencial?"), seguiremos as considerações de

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Alonso Shökel (1978), no capítulo inicial de seu comentário ao livro de Provérbios (p. 17-29). A expressão "literatura sapiencial" designa um tipo específico de livros, bem diferente dos demais escritos da Bíblia: 1) é diferente de Pentateuco, Samuel e Reis, porque não são narrativos; 2) é diferente dos corpos legais (Ex, Lv, Dt), porque não apresentam leis obrigatórias; 3) é diferente dos profetas, porque não faz denúncias nem anúncios; 4) é diferente das novelas (Tb, Est, Jt), porque não são relatos nem ficções; 5) é diferente dos Salmos, porque não são orações. Que é então a literatura sapiencial? Para responder a tal pergunta, é necessário antes responder a outra: que é sabedoria e qual a sua tarefa? A tarefa sapiencial não pode ser confundida com outras: • Sabedoria e conhecimento: "sábio" não equivale a "filósofo", pois a busca do conhecimento e de soluções de enigmas não esgota a tarefa dos sábios, nem é o enfoque específico da sabedoria. • Sabedoria e ética: os sábios não buscam unicamente a ordem moral; antes, interessam-se por um conteúdo mais abrangente, uma vez que aconselhar não é estabelecer um código moral. • Sabedoria e ordem cósmica: os sábios não buscam descobrir uma ordem no cosmo ao qual o homem deve adaptarse (algo semelhante à Ma'at dos egípcios): também nesse caso, o ensinamento sapiencial é bem mais abrangente. A melhor definição de sabedoria talvez seja "uma oferta de sensatez": é "oferta", porque não é uma lei; é de "sensatez", porque implica percepção, discernimento e juízo. Por isso, "sabedoria" (em hebraico,

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hokhmah; em grego, téchnê; e, em latim, ars) é um "saber fazer" (em tempos modernos, algo semelhante ao famoso know how ou savoir faire). Não é, portanto, equivalente à inteligência e ao intelecto. Antes, é uma sabedoria artesã, isto é, habilidade no comércio, na política, na indústria, na construção, na agricultura etc. Em outras palavras, um conhecimento prático para solucionar problemas do dia a dia. Essa definição de sabedoria leva inevitavelmente a perguntar: como adquirir a sabedoria? Quais as fontes da sabedoria? Quais os passos para atingi-la? Tudo parte das experiências concretas (pessoais ou de outros) que são somadas, amadurecidas, catalisadas, verbalizadas. Assim, a aquisição da sabedoria é algo contínuo e interminável, uma vez que novas situações na vida (mesmo na velhice) implicam fazer novas experiências e refletir sobre elas. Além disso, é um fato social: não se restringe a uma única pessoa, mas é um processo coletivo, que cresce e se desenvolve com a própria humanidade. Tal processo pode ser assim esquematizado: 1) experiência: diante de determinada situação em uma realidade complexa, a busca de uma solução até encontrá-la; 2) reflexão e formulação: avaliação daquela experiência inicial (o que foi positivo e o que foi negativo) e tradução em palavras do que se aprendeu de modo a consolidar um conhecimento que pode ter valor para conduta (não só para o saber), e que deve ser confirmado pelo sucesso; 3) transmissão e adaptação: difusão, de geração em geração, de povo para povo, daquela verdade prática e comprovada, e adequando-a ao momento, à cultura e a novas situações; 4) aceitação: recepção não obrigatória daquele ensinamento, porque é percebido como algo que tem valor e autoridade. O sucesso de um ensinamento muitas vezes depende de como ele é formulado. Por isso, é necessário que a formulação seja concisa e fácil de memorizar. Por exemplo: "casa de ferreiro, espeto de pau", "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura", "vingança é um prato que se come frio". Centro Universitário Claretiano

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Ser sábio, portanto, não é ter uma profissão ou um diploma, mas é ter uma experiência (ou muitas); é ter um comportamento, um caráter. O sábio não impõe nem obriga; ao contrário, ele constata, avalia, aconselha, ensina. E cada conselho tem uma autoridade própria que transcende quem formula, quem transmite e quem acolhe tal ensinamento. E, finalmente, podemos responder à pergunta: que é literatura sapiencial? É um conjunto de livros que reúne ensinamentos resultantes daquele processo descrito anteriormente (experiência – reflexão e formulação – transmissão e adaptação – aceitação), ensinamentos conservados e difundidos (oralmente e por escrito) pelos sábios e que, no caso da literatura sapiencial bíblica, são considerados também eles "palavra de Deus".

6. LINGUAGEM DA SABEDORIA Para uma maior compreensão da literatura sapiencial, é necessário um estudo das raízes da sabedoria, bem como sua linguagem e sua origem no Antigo Oriente Próximo. Em hebraico, a palavra "sabedoria" vem da raiz hkm, que significa "ser sábio, ser hábil". O termo aparece na maioria das línguas semitas, principalmente no ugarítico, embora também apareça no fenício e no egípcio. No hebraico, encontramos os termos: hakhamim ("sábios") ou hakham ("sábio"). Deles deriva os termos hokhmah e hokhmot, ambos traduzidos por "sabedoria".

7. SABEDORIA NO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO Como vimos anteriormente, o conceito de "sabedoria" não é bem delimitado e preciso. Vários tipos de pessoas recebem, no

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Antigo Oriente Próximo, o título de sábios: escribas, conselheiros políticos e administrativos, magos, feiticeiros, astrólogos etc. Algumas culturas não tinham um termo correspondente ao hebraico hokhmah - "sabedoria", mas o conceito sim. A sabedoria bíblica tem suas raízes nas civilizações vizinhas da Mesopotâmia e do Egito, que, desde muitos séculos, têm sido consideradas como os principais berços das culturas. Em algumas pesquisas realizadas no Egito, arqueólogos encontraram documentos escritos que datam do terceiro milênio antes de Cristo. Fundamentado nesse raciocínio, conclui-se que Israel não inventou a literatura sapiencial; ao contrário, ela é mais antiga que Israel (ALONSO SCHÖKEL, 1978). O Antigo Oriente Próximo teve seu centro de cultura nas cortes de seus reis e nos seus grandes santuários. Nessa época, a sabedoria era transmitida por meio da instituição de ensino, que podia ser o palácio onde o rei transmitia o ensinamento para o príncipe, e os nobres, para os seus filhos; a aldeia, onde o escriba ensinava o conhecimento ao seu discípulo; ou, mesmo, a casa, onde o pai transmitia a sabedoria dos seus antepassados ao seu filho. Nos textos sapienciais, o aluno ou discípulo é chamado indiscriminadamente de "filho"; por esse motivo, nem sempre é fácil saber de quem se trata. Praticamente em toda a cultura do Antigo Oriente Próximo, instruções ou ensinamentos eram dados por meio de frases ou de pequenos poemas, cuja finalidade era a educação. Podemos dizer que era um tipo de testamento ou frase de sabedoria que os mais velhos endereçavam aos jovens. Vejamos, nos tópicos a seguir, alguns exemplos desses escritos anteriores à Bíblia. Antigo Egito No Antigo Egito, vigorava a noção de ma'at. Trata-se de um termo que designa tanto o conceito de "ordem cósmica e social" (equilíbrio, ritmo da natureza, bem, justiça, direito), como a deuCentro Universitário Claretiano

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sa que personifica essa ordem. A deusa Ma'at é representada por uma jovem com uma pluma na cabeça, para simbolizar a leveza e a fragilidade da ordem cósmica. A finalidade da sabedoria é criar condições para a ma'at: em cada nova situação, é necessário atualizá-la. A ma'at é algo imutável universalmente válido; ao homem cabe adaptar-se, integrar-se e submeter-se a ela. O ideal para o homem é ser silencioso e justo, pois a cada ação corresponde um resultado preciso: recompensa ou castigo. Todo homem, ao morrer, era julgado pela deusa Ma'at: em prato da balança, a pluma de sua cabeça; no outro, o coração do falecido. Caso o coração fosse mais pesado que a pluma, ele era entregue a Ammut (a deusa do Inferno) para ser devorado. Quanto ao que chamaríamos de "literatura sapiencial", o Egito é o país que mais nos oferece material escrito. Da grande quantidade desse material, podemos destacar alguns por sua importância no estudo aqui proposto. Os ditos de Ptah-hotep podem ser considerados como as instruções mais antigas (2.450 a.C.). Neles, podemos notar que uma pessoa da nobreza instrui seu filho; as sentenças são muito semelhantes às que se encontram no livro dos Provérbios. Vejamos alguns ditos de Ptah-hotep: Ninguém nasce sábio. A injustiça jamais conduziu sua empresa a um bom porto. A palavra é mais difícil que qualquer outro trabalho; confere autoridade apenas a quem a domina completamente. Não responda em estado de agitação. Conhece-se o sábio pelo que ele sabe, e o nobre por suas boas ações (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 19).

Convém citar, também, as instruções dirigidas a Meri-ka-re (2.100 a.C). São nobres conselhos que um pai dirige ao próprio filho: Sê hábil nas palavras, para poder convencer; pois a língua é a força do homem. Só se converte em mestre aquele que deseja se instruir.

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Acalme o que chora, não oprimas a viúva, não expulses um homem da terra de seus pais. Não faças diferença entre o filho de um nobre e um homem comum (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 20).

Todavia, não podemos deixar de citar os ensinamentos de Amen-em-opet (de 1.000 a 600 a.C). Descobertos em 1923, tornaram-se os ensinamentos mais estudados, graças à sua relação com o livro dos Provérbios (cf. 22,17-24,11). Particularmente interessante é Pr 22,20: "Escrevi para ti trinta máximas de experiência"; tal frase só pode ser explicada à luz das instruções Amen-em-opet 27,7-8: "Considera estes trinta capítulos que instruem e educam". Seguindo esse raciocínio, veja outras instruções de Amenem-opet com estreitos paralelos em Provérbios: Guarda-te de roubar de um infeliz e de atormentar quem está debilitado. Não levantes tuas mãos para afastar um ancião nem interrompas a palavra a um velho (4,4-7). Outra coisa boa segundo o coração de Deus: fazer uma pausa antes de falar (5,7-8). Não sejas avarento e encontrarás abundância... Não ambiciones um palmo de terra, nem ultrapasses a divisa de uma viúva (7,14-15). Mais vale o pão com alegria do coração que riquezas com tormentos (9,7-8 e 16,13-14). Que tua língua não revele mais que o bem, e que o mal fique oculto diante de ti (11,10-11). Não te rias de um cego, não zombes de um anão, não faças mais pesada a provação de um coxo (24,8-10). Deus gosta mais de quem honra o pobre do que de quem adula o rico (26,13-14) (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 21-22).

Graças à grande semelhança entre os ensinamentos de Amen-em-opet e Pr 22,17-23,14, H. Gunkel, em 1906, fez esta observação: Os escritos sapienciais do Antigo Testamento não dependem nem dos profetas, nem dos escritos da Lei, mas formam um corpo à parte; e quiçá tenhamos de buscar no Egito a origem da poesia proverbial, que também existiu na Babilônia (apud ALONSO SCHÖKEL, 1978, p. 42). Centro Universitário Claretiano

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Mesopotâmia Na Mesopotâmia, não se encontra um termo equivalente ao hakham hebraico. Os textos sumérios e assírio-babilônicos não são tão numerosos como os egípcios, porém formam um corpo respeitável, uma vasta literatura sapiencial contendo uma grande coleção de provérbios (textos escolares) e de questões referentes à vida prática (ética e ordem moral). Incluem, também, fábulas, disputas, listas enciclopédicas (coleção de termos para sistematizar o mundo objetivo e empírico), bem como mitos e poesias que falam da criação e da restauração da ordem cósmica. Veja alguns exemplos de ditos populares, conselhos e provérbios da região da Mesopotâmia: "Fiz caminhar meu irmão; meu irmão caminha como eu." "Fiz caminhar minha irmã; minha irmã caminha como eu." "A arte de escrever é a mãe dos oradores, pai dos doutos." "Faz a vontade do presente, calunia o ausente." "Fruto da primavera, fruto da aflição." "A vida de ontem é a vida de qualquer dia." "A amizade dura uma vida, a escravidão é perpétua." "Um cidadão vulgar em outra cidade vira chefe." "Em boca fechada não entra mosquito" (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 26-27).

Eis alguns provérbios sumérios: "Para o pobre, mais vale estar morto do que vivo. Se ele tem pão, não tem sal; se tem sal, não tem pão." "Quem nunca sustentou mulher ou filho jamais teve argila no nariz." "A bilha, no deserto, é a vida do homem, a esposa é o futuro do homem, o filho é o refúgio do homem. Mas a nora é o inferno do homem."

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"Aquele que tem muito dinheiro pode ser feliz; aquele que possui muita cevada pode ser feliz. Mas aquele que não tem nada pode dormir" (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 27).

Ugarit Na região de Ugarit, foram encontrados vários escritos, dentre os quais devemos destacar o texto acerca da "origem da sabedoria". Segundo ele, a sabedoria tem sua origem no deus El, o pai dos deuses. El é sábio porque tem muitos anos de experiência, o que lhe dá autoridade para presidir o destino do mundo, da humanidade e dos outros deuses do panteão ugarítico. Por isso, os outros deuses, quando se aproximam de El, saúdam-no como o deus da sabedoria: A tua palavra, ó El, é sábia, A tua sabedoria é para sempre, A vida é o resultado da tua palavra.

Como veremos mais adiante, essa atribuição da origem da sabedoria ao deus El encontrará um paralelo na literatura sapiencial bíblica, que atribui a origem da sabedoria a Javé, o Deus de Israel. Israel Visto que a sabedoria era um fenômeno cultural de todo o Antigo Oriente Próximo, Israel foi mais passivo que ativo e sofreu grande influência dos povos vizinhos. Em contrapartida, a fé de Israel em um único deus nacional, Javé, levou os sábios a desmitologizar e purificar a experiência e os ensinamentos sapienciais dos povos vizinhos, adaptando-os à sua própria fé. Dependência, sim, mas com desenvolvimentos e originalidade. Um exemplo dessa originalidade é encontrado na diferenciação entre a ma'at dos egípcios e a hokhmah dos israelitas. Esquematicamente:

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ma'at

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hokhmah

• Grande, permanente, imutável desde sempre e para sempre.

• Sabedoria artesã, que se adapta à realidade e a cada nova situação.

• Uma deusa, filha de uma divindade, personificação da justiça, do direito, da ordem cósmica e social.

• Não é uma divindade, nem a personificação de uma qualidade de Deus, mas uma realidade criada por Deus para uma função precisa.

8. SABEDORIA NOS TEXTOS BÍBLICOS Segundo Alonso Schökel (1978), a melhor definição para a sabedoria nos textos bíblicos é uma "oferta de sensatez": oferta, porque deixa ao indivíduo a liberdade de aceitá-la ou não; sensatez, porque proporciona critérios para a percepção e o juízo da realidade. Além disso, trata-se de uma sabedoria artesã, ou seja, um conhecimento prático para solucionar os problemas da vida cotidiana. Portanto, ser sábio não é ser intelectual, e, sim, saber aproveitar das experiências próprias e alheias para discernir qual caminho seguir. Acima de tudo, a Bíblia mostra que toda sabedoria é dom de Deus: O Senhor falou a Moisés: Eis que chamei pelo nome a Beseleel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. Eu o enchi com espírito de Deus em sabedoria, entendimento e conhecimento para toda espécie de trabalho, para elaborar desenhos, para trabalhar em ouro, prata e bronze, para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, e para realizar toda espécie de trabalhos (Ex 31,1-5).

É Deus quem concede o "espírito de sabedoria": "Dirás a todas as pessoas hábeis, a quem enchi do espírito de sabedoria [...]" (Ex 28,3). Ele é o grande artesão, criador e sábio por excelência: Ele fez a terra por sua potência, por sua sabedoria estabeleceu o mundo e por sua inteligência estendeu os céus. Quando ele faz ressoar o trovão, há um bramido de águas no céu; ele faz subir as nuvens do extremo da terra, produz os raios para a chuva e faz sair o vento de seus depósitos. [...] A Porção de Jacó não é como eles, porque ele é o que formou o universo, e Israel é a tribo da sua herança. Senhor dos Exércitos é o seu nome (Jr 10,12-16. Cf. também Jr 51,15; Sl 104,24; Pr 3,19).

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Deus é a fonte da sabedoria, assim diz o Sirácida (Eclesiástico): "Toda sabedoria vem do Senhor, ela está junto dele desde sempre." (Eclo 1,1; cf. Br 3,12; Eclo 11,15; Pr 2,6). Logo, a sabedoria é um atributo essencialmente divino (Sb 9,1-4) e Deus a concede a quem quiser (Eclo 1,26; Sb 9,6; 1Rs 3,12). O verbo "hakham" – "ser sábio" – pode também ser traduzido por "ser inteligente, ser especialista" e, normalmente, refere-se a alguém que entende e domina algum assunto. Ou seja, é aplicado ao cotidiano das pessoas e tem o sentido de executar com excelência o próprio serviço. Veja, a seguir, alguns exemplos de hakham com o sentido de habilidade e destreza nas artes e nos ofícios: 1) Pessoas dotadas de habilidades manuais e que o texto bíblico chama de sábias: a) As mulheres habilidosas: Ex 35, 25-26. b) Vários tipos de artesãos: Jr 10,9; Is 3,3. c) Marinheiros peritos nos seus ofícios: Ez 27,8-9 Sb14,1-2. d) Escultores: Is 40,20. e) Escribas: Eclo 38,24. f) Construtores do templo de Jerusalém: Ex 31,6-7; 35,10; 36,1-2.8; 1Cr 22,15; 2Cr 2,6.12. g) Carpideiras: Jr 9,16. Essa concepção de sabedoria também se aplica às atividades intelectuais: o saber acumulado, a ciência e a doutrina. 2) Personagens famosos são igualmente considerados sábios: a) Davi, no relato da mulher de Técua (2Sm 14): a sabedoria do rei é considerada sobrenatural, de um "anjo de Deus" (cf. 2Sm 14,20). b) Salomão, segundo a tradição bíblica, é o rei sábio por excelência: 1Rs 5,9-14. 10,1-13; 2Cr 9,22-28; Ecl 1,16-18; 2,9.

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c) Quando se trata de governar, vários reis são considerados sábios: o da Assíria (Is 10,13), o da Babilônia (Is 47,10) e o de Tiro (Ez 28,17). d) Há, também, um mau uso da sabedoria em Is 29,14 e Jó 12,2. Aconselhar e planejar seriam funções da classe dos dirigentes, sacerdotal ou conselheiros políticos; quando isso não acontece, a sabedoria divina fará falhar a sabedoria deles. O mesmo acontece em Jr 8,8-9; 9,22; 49,7. 3) A sabedoria é prudência política: a) A sabedoria é a arte de governar bem: Is 11,2; Dt 34,9; 2Cr 1,11; 1Rs 3,28. b) O sábio é o governante ideal: Dt 1,13; 1Rs 5,21. 4) A sabedoria como prudência e sensatez, ou seja, o homem moralmente responsável: a) A sabedoria é a virtude pela qual o homem orienta sua vida ordenadamente e segundo a vontade de Deus. Mas o homem não está só, pois Deus o ajuda a conseguir a sensatez: Dt 4,6; Sl 90,12. b) Sensatez e prudência são adquiridas com o passar dos anos (Jó 12,12), mas a juventude e a prudência não são incompatíveis (veja a história de José, em Gn 37-50). c) A sede da sabedoria está no coração (Sl 90,12; Pr 2,10; 14,33). A sabedoria é própria do homem justo e piedoso (Pr 10,31; 11,2).

9. TEOLOGIA DA RETRIBUIÇÃO Além das considerações sobre a sabedoria no Antigo Oriente Próximo, para o nosso estudo sobre a literatura sapiencial bíblica, é necessário compreender a Teologia da Retribuição. Correntes teológicas nasceram e desapareceram ao longo da história humana; porém, a Teologia da Retribuição está presente claramente nos tempos da Bíblia e nos nossos dias.

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Em palavras mais simples, a Teologia (ou Doutrina) da Retribuição defende que o justo e o injusto colherão o resultado de suas ações ainda neste mundo. A retribuição é temporal, isto é, antes da morte. É o velho e conhecido ditado: "tudo o que a gente faz, aqui mesmo a gente paga". Portanto, felicidade, saúde e riqueza são bênçãos de Deus para o justo; desgraça, doença e pobreza são castigos para o injusto. Assim, os textos em que aparece a personificação da sabedoria, principalmente quando ela nos convida a aceitar seus ensinamentos, têm um cunho moral: ou o homem aceita-a e tem uma vida em abundância, ou ele rejeita-a e encontra a desgraça. É a antítese "vida versus morte" (cf. Pr 8,1-11.32-36; 9,1-6). Dessa forma, a sabedoria deixa de ser conhecimento adquirido pela experiência e passa ser resultado, um processo de educação moral. A sabedoria com que Deus criou o mundo se entrega aos homens, mora no meio deles e tem um nome: Torah (Lei). Nesse sentido, a ordem cósmica e social está submissa a um paradigma moral que se encarrega do resultado. A submissão à Torah garante um resultado positivo, isto é, saúde, riqueza etc.; em contrapartida, a desobediência à Torah provoca um resultado negativo e desastroso: doença, pobreza etc. Mas os livros sapienciais bíblicos não são unânimes quanto à infalibilidade desse princípio. Provérbios e Sirácida (Eclesiástico) advogam que a doutrina da retribuição funciona; em contrapartida, Jó e Qohélet (Eclesiastes) negam tal doutrina; por sua vez, o livro da Sabedoria faz uma síntese: ela funciona, mas só na outra vida. Esquematicamente: PROVÉRBIOS e SIRÁCIDA ! a Retribuição funciona; – a vida humana tem sentido. JÓ e QOHÉLET ! a Retribuição não funciona; – a vida não tem sentido.

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SABEDORIA – a Retribuição funciona sim, mas só depois da morte; – o sentido da vida humana está na felicidade ultraterrena.

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10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta unidade, bem como que as discuta e as comente. A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para testar seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estudados para sanar suas dúvidas. Este é o momento ideal para você fazer uma revisão do estudo desta unidade. Lembre-se de que, na Educação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma cooperativa e colaborativa. Portanto, compartilhe com seus colegas de curso as suas descobertas. Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Qual a influência da sabedoria do Antigo Oriente Próximo nos textos bíblicos? 2) Como a Bíblia apresenta a Sabedoria? 3) Comente a Teologia da Retribuição e sua influência nas pessoas hoje.

11. CONSIDERAÇÕES Os livros sapienciais do Antigo Testamento são: Provérbios, Jó, Eclesiastes (Qohélet), Eclesiástico (Sirácida) e Sabedoria. Esses cinco livros representam o esforço de gerações de sábios preocupados com a cultura religiosa, social e política de seu povo. Nesse sentido, escrever foi a forma encontrada para preservar e transmitir valores para as novas gerações. Como você pôde perceber, nesta apresentação, ficaram de fora Salmos e Cântico dos Cânticos, pois estes não são propriamente livros sapienciais, mas livros de poesia lírica. Todavia, são estudados com os livros sapienciais propriamente ditos, porque também estes são em grande parte poéticos. Assim, em nossa dis-

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ciplina, iniciaremos com os cinco livros sapienciais e, depois, veremos Salmos e Cântico dos Cânticos. Na próxima unidade, teremos a oportunidade de iniciar nossos estudos com dois livros: Provérbios e Sirácida.

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO SCHÖKEL, L.; VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Proverbios. Madrid: Cristiandad, 1978. (Nueva Biblia Española – Sapienciales, 1). CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao estudo da Bíblia, 5). VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25).

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EAD Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida

2 1. OBJETIVOS • Compreender, historicamente, os livros de Provérbios e Sirácida. • Possibilitar aos alunos distinguir os diversos gêneros literários desses livros.

2. CONTEÚDOS • Questões introdutórias: título, data e autoria. • Gêneros literários. • Estrutura e conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Leia, a seguir, algumas orientação que podem ajudá-lo no estudo desta unidade:

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1) Utilize o Esquema de conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste Caderno de Referência de Conteúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho. 2) Para saber mais a respeito dos Provérbios, sugerimos que você leia as obras, descritas nas referências bibliográficas, de Alonso Schökel (1984, p. 99-103) e de Morla Asensio (1997, p. 103-104). 3) Para informar-se mais sobre os provérbios populares, frases de para-choques de caminhão e outras máximas, leia a obra de Coloda (1988, p. 31). A referência completa você encontra no tópico Referências Bibliográficas, ao final desta unidade. 4) Se você gostar deste assunto e quiser aprofundar seus conhecimentos, há três obras interessantes para consulta que constam nas Referências Bibliográficas: Morla Asensio (1997, p. 192-194); Minissale (1993, p. 20-27); Storniolo (2002, p. 9-10). Boa leitura!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, você observou a comparação entre duas sabedorias: a bíblica e a da Mesopotâmia e do Egito. Assim, para dar prosseguimento aos seus estudos, foi essencial aprender acerca da importância da Teologia da Religião. Agora, nesta unidade, adentraremos a história sapiencial bíblica por meio dos Provérbios (Pr) e da Sirácida e conheceremos, também, seus gêneros literários.

5. PROVÉRBIOS Provavelmente, o livro dos Provérbios é o que melhor representa toda a literatura sapiencial bíblica. Os provérbios são, talvez, a memória escrita mais antiga da sabedoria israelita. Já antes do período da monarquia, isto é, antes do ano 1.000 a.C., eram colecionados ensinamentos da sabedoria popular, surgidos no Centro Universitário Claretiano

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ambiente familiar. Os assim chamados "sábios" eram os que colecionavam, organizavam e transmitiam esses ensinamentos, com a finalidade de educar os mais jovens. Título Na Bíblia Hebraica, o título do livro que ora estudamos é Provérbios (em hebraico, meshalim) de Salomão. Todavia, a palavra portuguesa "provérbios" não traduz com precisão a palavra hebraica "meshalim". Os primeiros escritores cristãos davam o mesmo nome, "Sabedoria", a três livros: Provérbios, Eclesiástico e Sabedoria. Talvez, tal denominação tivesse sua origem nas comunidades judaicas. Meshalim é o plural de mashal. Mas o que é um mashal? Originalmente, mashal é um dito popular breve e incisivo: "Como é o homem, tal é a sua força" (Jz 8,21); "Dos malvados procede a maldade" (1Sm 24,14); "Que tem a palha em comum com o grão?" (Jr 23,28). Ou seja, é uma sentença curta que corre de boca em boca. Nos dias de hoje, existem, também, muitos meshalim: "Quem muito fala muito erra"; "Saiba ir para poder voltar"; "Macaco velho não mete a mão em cumbuca"; "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura". Portanto, mashal era um dito popular fundamentado na experiência da vida e formado de uma única frase. Posteriormente, os sábios ampliaram o mashal e ele deixou de ser apenas um dito breve, para englobar, também, aforismos, enigmas, poemas numéricos, sátiras, discursos comparativos, comparações, fábulas profanas e religiosas. Tal ampliação tinha a finalidade de completar o sentido ou mesmo dar a explicação do mashal original. Vejamos um exemplo descrito em Pr 12,1: "Quem ama a disciplina ama o conhecimento, e quem odeia a repreensão é como um animal". Podemos perceber, pois, que a primeira parte é uma frase breve, densa e completa, isto é, não necessita da segunda frase. Todavia, a segunda foi acrescentada para formar uma contraposição ou antítese, a fim de dar ênfase à primeira.

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Normalmente, os Provérbios são compostos de duas partes, as quais dizemos que são paralelas. Quando a segunda parte é, de algum modo, a repetição da primeira, dizemos que formam um "paralelismo sinonímico", isto é, a segunda frase é sinônimo da primeira: "Liberta os que são levados à morte, salva os que são arrastados aos suplício" (Pr 24,11). Quando a segunda parte apresenta uma antítese, isto é, uma situação contraposta à descrita na primeira, temos o "paralelismo antitético": "A esperança dos justos é alegria; o anseio dos ímpios fracassa" (Pr 10,28). E, quando a segunda parte descreve uma consequência da primeira ou mostra novos aspectos do que foi afirmado, temos o "paralelismo sintético": "O primeiro que se defende tem razão, até que chegue outro e o conteste" (Pr 18,17). Data O livro dos Provérbios é uma coleção de coleções. Isso não deveria ser novidade nem provocar espanto. Basta abrir o livro dos Provérbios e prestar atenção aos títulos: Provérbios de Salomão... (1,1); Palavras dos sábios (22,17), Palavras de Agur (30,1). Foram cinco séculos de atividade literária e cultural. Assim, muitos provérbios foram recolhidos da sabedoria popular em um período muito antigo; outros são mais recentes e refletem o ambiente da corte. Em outras palavras, a redação do livro dos Provérbios passou por várias etapas, o que torna impossível datar com precisão cada uma das coleções. Acredita-se, porém, que esse longo processo redacional foi completado na metade do século 3 a.C. As datas mais aceitas para cada coleção serão vistas mais adiante. Autor O livro dos Provérbios é fruto do trabalho de sábios anônimos que, pacientemente, recolheram essas preciosidades no meio cultural do povo. Centro Universitário Claretiano

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Ele é atribuído a Salomão, mas trata-se de um caso de pseudonímia, isto é, o verdadeiro autor, para dar maior peso e autoridade a uma obra literária, atribui seu escrito a um importante personagem do passado. Com isso, os verdadeiros autores podiam evitar serem perseguidos (como no caso dos livros apocalípticos), bem como garantir que seus livros fossem aceitos e distribuídos na comunidade leitora. Estrutura Entre os estudiosos, surgiram várias propostas para dividir e organizar o livro dos Provérbios. A divisão que vamos adotar é aceita por um bom número de autores, tais como: José Vílchez Líndez e Victor Morla Asensio (1984, p. 99-103); G. Laurentini (1978, p. 381); e Artur Weiser (1966, p. 9). Dessa forma, o livro dos Provérbios é composto de nove coleções: Quadro 1 Livro dos Provérbios – Nove coleções. COLEÇÕES

Introdução: 1,1-7 Primeira coleção: 1,8-9,18

Segunda coleção: 10,1-22,16

Terceira coleção: 22,17-24,22

Quarta coleção: 24,23-34

EXPLICAÇÕES ACERCA DAS COLEÇÕES O autor é anônimo e o tema principal desse bloco é o convite do "pai" (o sábio) ao "filho" (o discípulo). Este deve buscar a sabedoria, isto é, a sensatez e a prudência; fugir dos perigos e se manter na vigilância; ter cuidado com as más companhias, especialmente a mulher estrangeira. Em 1,22-33 e 8,436, a sabedoria personifica-se e fala da sua origem divina, recomendando a si mesma. Essa foi a última coleção a ser inserida no livro, provavelmente após o ano 400 a.C. Essa é a primeira coleção salomônica. Comparando-a com o primeiro grupo, percebemos que se trata de outro mundo literário. São provérbios com paralelismo antitético e sinonímico. A coleção pode ser pós-exílica, não obstante seja intitulada Provérbios de Salomão. Trata-se da primeira coleção dos sábios, com quartetos em paralelismo sinonímico. São conselhos endereçados ao néscio, para que aprenda a se comportar devidamente. Essa coleção pode se dividir em dois grupos: 22,17-23,11 e 23,12-24,11. Essa subdivisão baseia-se na semelhança entre os provérbios do primeiro grupo e as máximas de Amen-em-opet (sábio egípcio, difícil de localizar no tempo: as datas variam de 1000 a 600 a.C.). É a segunda coleção dos sábios. A única coisa que a distingue da primeira é o título, no v. 23. Esses provérbios não oferecem datas para poder se realizar uma datação.

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COLEÇÕES

EXPLICAÇÕES ACERCA DAS COLEÇÕES

Quinta coleção: 25-29

Segunda coleção salomônica. Foi recolhida pelos sábios a serviço do rei Ezequias (715-687 a.C.).

Sexta coleção: 30,1-14

São os ensinamentos de "Agur, filho de Jaces, de Massa". Na verdade, temos aqui vários apêndices. Os vv. 1-6 recordam textos de Jó; os vv. 7-9 são uma oração; e os vv. 11-14 são uma série de provérbios que começam com: "Há quem...".

Sétima coleção: 30,15-33

Coleção de "provérbios numéricos", que utilizam, principalmente, o paralelismo sintético. Temos aqui provérbios de um período impossível de determinar.

Oitava coleção: 31,1-9

São os ensinamentos de "Lamuel, rei de Massa". Quatro estrofes de quatro versos, com as recomendações de uma mãe a seu filho rei. Na pequena coleção, predomina o paralelismo sinonímico. Tanto Lamuel quanto Agur, cujos ensinamentos estão reunidos na sexta coleção, são os nomes de dois sábios árabes fictícios. Por essa razão, não é possível estabelecer uma data tanto para a sexta quanto para a oitava coleção.

Nona coleção: 31,10-30

Não é uma coleção de provérbios, mas uma longa poesia, que constitui o "fecho de ouro" do livro dos Provérbios. Inspirado na sabedoria rural, o tema da mulher ideal é antigo; não obstante, a redação desse último capítulo de Provérbios é bem recente.

Fonte: Alonso Schökel (1984, p. 99-103).

6. GÊNEROS LITERÁRIOS Quando começamos a ler os provérbios, percebemos que eles não são todos iguais. Antes, há provérbios de vários tipos. Veja alguns nos tópicos a seguir. Mashal simples O mashal simples caracteriza-se por ter apenas uma proposição: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7). A apresentação pode ser negativa: "Não há sabedoria, nem entendimento, nem conselho diante do Senhor" (21,30), ou generalizante: "Muitos buscam favores de quem governa" (29,26). Alguns provérbios descrevem um tipo de comportamento: "O homem colérico provoca discórdia" (15,18), enquanto outros não se contentam em descrevê-lo, mas emitem uma opinião a seu respeito: "não é justo..." "não convém..." "desagrada o Senhor..." Centro Universitário Claretiano

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etc. São comuns, também, as formulações valorativas: "Melhor x que y": "Melhor é ser simples e ter um servo, que passar por rico e não ter nada" (12,9); e "Vale mais x do que y": "Vale mais um prato de verdura com amor do que um boi gordo com rancor" (15,17). Comparação A comparação trata-se de uma proposição que confronta duas ou mais realidades e estabelece uma semelhança ou mesmo uma antítese. No caso da semelhança, o esquema básico é "como x, assim y". Geralmente, um fato tirado da natureza presta-se para um ensinamento: "Como o pássaro que foge do seu ninho, assim é o homem que foge do seu lar" (27,8). Às vezes, as comparações são bastante simples e iniciadas por duas proposições: "Como o vinagre nos dentes e o fumo nos olhos, assim é o preguiçoso para quem o envia" (10,26). Por sua vez, a antítese é uma comparação ao contrário, isto é, colocam-se lado a lado duas realidades contrastantes: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7). A comparação enriquece-se com a imaginação: "Uma porcaria, diz o comprador: mas depois vai-se gabando da compra" (20,14). É, pois, algo bem mais elaborado do que o nosso provérbio "Quem desdenha quer comprar". Metáfora A metáfora diferencia-se da comparação por não usar a partícula "como". O predicado é atribuído diretamente ao sujeito em sentido figurado: "Pois o preceito é uma lâmpada, e a instrução é uma luz, e é um caminho de vida a exortação que disciplina" (6,23); "Um anel de ouro no focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso" (11,22). Na maioria das vezes, a metáfora é mais agressiva que a comparação. Pergunta retórica Em alguns provérbios, temos interrogações retóricas, isto é, perguntas feitas não para serem respondidas, mas para levar o

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discípulo/leitor a pensar: "Para que serve o dinheiro na mão do insensato? Para adquirir sabedoria? Mas ele não tem juízo!" (17,16). Tais perguntas servem para exprimir uma convicção generalizada: "Pode alguém carregar fogo consigo sem queimar a própria roupa? Pode alguém caminhar sobre as brasas sem queimar os próprios pés?" (6,27-28). Essas duas perguntas servem para dar força ao v. 29: "Assim acontece com aquele que procura a mulher do próximo: quem a toca não ficará impune." Repetição A repetição não é sinal de pobreza mental ou de estilo mal curado, mas um modo de reforçar a ideia que se quer transmitir: Quem subiu ao céu, e de lá desceu? Quem encerrou o vento no punho? Quem amarrou o mar numa túnica? Quem fixou os limites do orbe? Qual é o seu nome, e o nome de seu filho, se é que sabes? (30,4).

Cena breve Também chamada de "etopeia", cena breve é a descrição do temperamento, do caráter, das inclinações ou do comportamento de alguém. Normalmente, está cheia de ironia e sua finalidade é fazer que o discípulo evite determinados comportamentos e imite outros. Um comportamento a ser imitado é descrito em 6,6-11: Anda, preguiçoso, olha a formiga, observa o seu proceder, e tornate sábio: sem ter chefe, nem guia, nem dirigente, no verão, acumula o grão e reúne provisões durante a colheita. Até quando dormirás, ó preguiçoso? Quando te levantarás do sono? Um pouco dormes, cochilas um pouco; um pouco esticas os braços cruzados e descansas; mas te sobrevêm a pobreza do vagabundo e a indigência do mendigo.

Diferentemente, 23,29-35 descreve um comportamento a ser evitado: Para quem os ais? Para quem os lamentos? Para quem as disputas? Para quem as queixas? Para quem os golpes sem motivo? Para quem os olhos turvados? Para aqueles que entardecem sobre o vinho e vão à procura de bebidas misturadas. Não olhes o vinho: Centro Universitário Claretiano

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como é vermelho, como brilha no copo, como escorre suave! No fim ele morde como a cobra e fere como a víbora. Teus olhos verão coisas estranhas, e teu coração dirá disparates. Serás como alguém deitado em alto mar ou deitado no topo de um mastro. "Feriramme... e eu nada senti! Bateram-me... e eu nada percebi! Quando irei acordar? Vou continuar a beber!". 7. Estruturas fundamentais do pensamento de Provérbios

As intenções do livro estão claramente afirmadas em Pr 1,2: Para conhecer a sabedoria e a disciplina, para entender as sentenças da prudência, para acolher uma instrução esclarecida, na justiça, no direito e na equidade, para proporcionar sagacidade aos inexperientes e, aos jovens, conhecimento e reflexão.

Os provérbios, portanto, querem atingir e exercitar as quatro dimensões do conhecimento bíblico: 1) mente; 2) vontade; 3) paixão; 4) ação. No Qohélet (Eclesiastes), o conhecimento humano tem uma nota negativa: "Que vantagem...?" (Qo 1,3); "Tudo é vaidade" (Qo 1,2...). Contrariamente, em Provérbios, o conhecimento tem uma nota positiva: a realização plena do homem e de sua história. Pragmatismo No Antigo Oriente Próximo, a sabedoria nasce da magia e da mandinga: "Mas o faraó convocou os sábios e os feiticeiros, e também eles – os magos do Egito – fizeram o mesmo com seus encantamentos [...]"(Ex 7,11), ou nas escolas burocráticas da corte. Em Israel, ela é dessacralizada e democratizada: é uma sabedoria tribal. Isso fica claro no livro dos Provérbios: a sabedoria refere-se à técnica, às relações públicas, à política, à educação, à argúcia. Trata-se de um comportamento que, substancialmente, poderia ser chamado de "iluminista". A sabedoria é a arte de viver (Pr 1,5), a arte de saber viver na riqueza e na pobreza (Pr 13,7-8), na alegria e na tristeza (Pr 14,10), no trabalho e no repouso (Pr 6,6).

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Antropocentrismo Daquele "iluminismo", nasce uma nova figura do homem: o "Adão universal". Trata-se de uma espécie de humanismo integral. A multiplicidade de temas revela uma multiplicidade de dimensões do ser humano: • da busca racional de Deus (Filosofia e Teologia) às relações com o próximo (ética); • da justiça e da política (sociedade) à relação homem-cosmo (prática). Esboça-se uma nova visão da sociedade: o próximo não é o parente de sangue, mas o "outro" (cf. Pr 6,1.3.29; 22,17). Essa nova sociedade é descrita em Pr 3,27-35. Ortopráxis A ortopráxis é bem mais que uma ortodoxia teórica. O termo "sábio" é praticamente sinônimo de "justo", e "estulto" de "ímpio". Trata-se, obviamente, da doutrina da retribuição, que torna a moral de Provérbios algo substancialmente imanente: a morte tem uma finalidade de equilíbrio, pois ela pacifica a atribulada vida terrestre. Assim, o homem faz uma caminhada ética: do ventre materno ao ventre da terra. O grande juiz é a morte, não a imortalidade! Trata-se de uma visão otimista da retribuição, mesmo que a realidade seja enigmática e complexa. Como veremos, Jó e Qohélet questionarão esse esquema simplista e coercitivo, que obriga Deus a retribuir: Deus não pode ser enquadrado e preso a um esquema, nem mesmo à justa e sábia teologia de Provérbios (cf. Pr 19,21). Todavia, Provérbios não consegue dar um passo adiante, pois sua escala de valores é bem enraizada no ser e na história: seu sistema moral jamais se abala.

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Teologia Como consequência dos pontos citados anteriormente, Deus está em contato direto com o mundo: é Criador, é quem garante o sistema retributivo. Em Provérbios, não aparece o "Israel povo eleito", mas o "Adão homem" (45 vezes). E o termo hebraico "berit" ("aliança") é usado uma única vez, em Pr 2,17, aplicado ao contrato matrimonial, não à Aliança do povo com Deus. Há diferenças entre a Teologia clássica (javista) e a Teologia de Provérbios: Quadro 2 Teologia clássica (javista) e a Teologia de Provérbios Teologia clássica

Teologia de Provérbios

• Contempla as ações salvíficas de Deus na história.

• Analisa a existência humana comum, cotidiana, atemporal e constante.

• Baseia-se na Torah e nos profetas.

• Ignora a Palavra revelada, não se apresenta como revelação.

• É normativa (imperativos e sanções).

• É didática (ensinamentos e propostas frutos da experiência humana, e não da revelação divina).

• Busca a obediência.

• Busca a compreensão.

Fonte: Ravasi (1988, p. 1254-1256).

Porque nasce da experiência humana, a Teologia de Provérbios é mais ecumênica, humana e universal.

7. CONTEÚDO TEOLÓGICO Amor e sabedoria A sabedoria presente nos provérbios é a intermediária entre o discípulo e Deus. Ela permite conhecer os desígnios do Senhor e tem origem divina (8,22-31); por isso, ela deve ser amada (8,17-21; 3,13-18). Ela é a mãe que chama a atenção do filho:

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Portanto, meus filhos, escutai-me: felizes os que guardam os meus caminhos! Escutai a disciplina e tornai-vos sábios, não a desprezeis. Feliz o homem que me escuta, velando em minhas portas a cada dia, guardando os batentes de minha porta! Quem me encontra, encontra a vida, e goza do favor do Senhor. Quem peca contra mim fere a si mesmo, todo o que me odeia ama a morte (8,32-36).

Os mestres insistem para que os discípulos adquiram a sabedoria (cf. 4,5-9), pois só ela pode ensinar a justiça e o direito (cf. 2,9-13). Provérbios e vida pessoal Há provérbios que retratam várias questões práticas: 1) Contra a preguiça: os sábios zombam do preguiçoso: "A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece" (10,4b); "O preguiçoso espera e nada tem para sua fome; a fome dos diligentes é saciada" (13,4). Alguns provérbios descrevem os graves males que o acompanham: "A preguiça faz cair no sono; o preguiçoso passará fome" (19,15); "Pois bebedor e glutão empobrecem, e o sono veste o homem com trapos" (23,21). A preguiça paralisa as forças do preguiçoso e as desculpas são as mais variadas: "O preguiçoso diz: 'Um leão está lá fora! Serei morto no meio da rua!’" (22,13); "A porta gira nos seus gonzos, e o preguiçoso no seu leito. O preguiçoso mete a mão no prato: levá-la à boca é muita fadiga" (26,14-15). Como último exemplo, uma cena breve: Passei junto ao campo do preguiçoso, pela vinha do homem sem juízo: eis que tudo estava cheio de urtigas, sua superfície coberta de espinhos, e seu muro de pedra em ruínas. Ao ver isso, comecei a refletir, vi e tirei uma lição: "Dormir um pouco, cochilar um pouco, um pouco cruzar os braços e deitar-se, e tua pobreza virá como um vadio, como um mendigo a tua indigência" (24,30-34).

2) Prudência no falar: os sábios chamam a atenção para o reto uso da fala: "A alegria de um homem está na resposta de sua boca: que bom é uma resposta oportuna!" (15,23). É recomendável guardar segredos, bem como manter-se em silêncio: "Quem retém os lábios é prudente" (10,19b); "Quem guarda a boca e a língua guarda-se Centro Universitário Claretiano

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da angústia" (21,23). Falar demais é perigoso: "Quem anda tagarelando revela o segredo" (11,13a); "Nas muitas palavras não falta ofensa" (10,19a). 3) A justiça acima de tudo: para os sábios, a principal virtude é o comportamento reto: "Quem revela a verdade proclama a justiça, a falsa testemunha diz mentiras" (12,17); "Mais vale o pouco com justiça do que muitos ganhos sem o direito" (16,8); "O ímpio faz um trabalho enganador, mas quem semeia a justiça terá a verdadeira retribuição" (11,18). 4) Rico e pobre: como vimos nos textos que falam do preguiçoso, a pobreza é considerada consequência da preguiça: "A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece" (11,16). Portanto, a riqueza é vista como prêmio. Não obstante, há uma série de provérbios que fazem um juízo negativo das riquezas, pois elas são um apoio frágil: "quem confia na riqueza cairá" (11,28a); "no dia da ira, a riqueza será inútil" (11,4a). Além disso, há provérbios que advertem contra riquezas injustas ou mal adquiridas: "Tesouros injustos não trazem proveito" (10,2a); "Fazer tesouros com língua falsa é vaidade fugitiva de quem procura a morte" (21,6); "O homem de olho ávido corre atrás da riqueza e não sabe que a necessidade cairá sobre ele" (28,22). A importância e a responsabilidade da família A família é a principal instituição no Antigo Oriente Próximo. Basta lembrar a tradição da páscoa judaica ou a celebração do sábado: a família e a casa são os lugares por excelência do culto. Assim, o pai é a cabeça da família: cabe a ele transmitir aos filhos os valores dos antepassados e a história do seu povo. Em Pr 3-4, encontramos ensinamentos paternos de toda ordem. Vejamos alguns: "Meu filho, não esqueças minha instrução, guarda no coração os meus preceitos" (3,1). "O amor e a fidelidade não te abandonem" (3,3).

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"Confia no Senhor com todo o teu coração, não te fies em tua própria inteligência; em todos os teus caminhos reconhece-o, e ele endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus olhos, teme o Senhor e evita o mal" (3,5-7; cf. vv. 9.11-12).

Abundantes são, também, os provérbios que contêm correções explícitas (e, às vezes, rígidas) dos pais/mestres aos filhos/ discípulos: "Escuta, meu filho, a disciplina do teu pai, não desprezes a instrução de tua mãe" (1,8; cf. 5,7; 4,1; 13,1; 15,5.16.20.27); "A vara e a repreensão dão sabedoria, mas o jovem deixado a si mesmo envergonha sua mãe" (29,15); "Não afastes do jovem a disciplina! Se lhe bates com a vara, não morrerá" (23,13); "Quem poupa a vara odeia seu filho, aquele que o ama aplica a disciplina" (13,24; cf. 19,18; Sr 30,1-13). Provérbios e a vida na sociedade O livro dos Provérbios aborda, praticamente, todas as situações da vida em sociedade, tais como: 1) Visão de conjunto: o comportamento humano é descrito por meio de antíteses polares, isto é, confrontam-se os extremos: sensato/néscio; justo/ímpio; rico/pobre. Vejamos, agora, cada um desses extremos: a) Sensato/néscio: é muito comum, na Literatura Sapiencial do Antigo Oriente Próximo, assinalar as atitudes fundamentais do homem diante do sentido vida. Não se tratam de categorias morais (bom/ mau), mas de categorias existenciais (correta/equivocada). Entretanto, na prática, falta muito pouco para uma equiparação: sábio = justo; néscio = ímpio. Você pode conferir alguns exemplos em Provérbios: 10,1,8.23; 12,15; 13,16; 17,24. b) Justo/ímpio: nessa antítese, engloba-se toda a vida moral, sem meio termo ou ponto neutro. Exemplos: 10,11,16.24; 14,19; 28,1. c) Rico/pobre: os sábios não estudaram Sociologia; não tinham teoria social que explicasse a diferença entre ricos e pobres. Mesmo assim, vários provérbios queCentro Universitário Claretiano

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rem corrigir juízos equivocados comuns naquele tempo: 28,6; 13,8. Os sábios não elaboram uma teoria que solucione o problema, mas procuram dar pistas para minorar conflitos. Exemplos: 22,22-23; 19,17; 21,13. 2) Injustiça social: tanto quanto os profetas, os sábios também criticaram as injustiças, mas não com os discursos inflamados dos profetas, e, sim, com ditos e provérbios, para formar espírito critico. A situação parece-se muito com a de hoje: "O ímpio aceita suborno debaixo do manto, para distorcer o direito" (17,23); "Não é bom favorecer o ímpio para declinar o justo num julgamento" (18,5; cf. 14,34; 20,23). Diz-se, então, que não basta criticar; é necessário atacar a raiz: "Aquele que despreza o próximo peca; feliz é quem tem piedade dos pobres" (14,21; cf. 3,29-31). As motivações para isso são quase sempre religiosas (cf. 3,32-33). 3) Amizade: quanto ao convívio social, os provérbios dão ênfase à amizade sincera: "Não abandones teu amigo, nem o amigo do teu pai, e não vás à casa do teu irmão no teu dia difícil: mais vale o vizinho perto do que o irmão distante" (27,10); "Há amigos mais queridos do que irmão" (18,24b); "Em toda ocasião ama o amigo, um irmão nasce para o perigo" (17,17). Nesse sentido, o melhor conselho é o de um amigo: "Óleo e perfume alegram o coração, e a doçura do amigo é melhor que o próprio conselho" (27,9). 4) Autoridade civil: o modelo de autoridade é o do Antigo Oriente Próximo, isto é, a monarquia absoluta. O rei é eleito e conduzido diretamente por Deus (ou pela sabedoria divina) e, portanto, deve-se temê-lo (24,21-22). O rei ideal é o que julga com justiça (29,4.14); contudo, nem sempre o rei é justo e sábio (28,15-16). Em contrapartida, também aos ministros se deve o êxito ou o fracasso do povo (29,2.12). Provérbios e o âmbito religioso Veja, a seguir, como o âmbito religioso é tratado nos Provérbios:

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1) Deus: o livro dos provérbios jamais questiona a existência de Deus. Isso é algo pacífico: Ele é Criador, Senhor, Juiz (3,19) (cf. 20,12; 5,21; 24,12); é, também, protetor e providente: "Pois o Senhor ficará ao teu lado, e guardará o teu pé da armadilha!" (3,26; cf. 18,10; 10,29). Ele tem a última palavra (19,21; 16,33) e abomina o mal: Seis coisas detesta o Senhor, e sete lhe são abomináveis: olho altivo, língua mentirosa, mãos que derramam o sangue inocente, coração que maquina planos malvados, pés que correm para a maldade, testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia discórdia entre irmãos (6,16-19; cf. 11,1).

2) Doutrina sobre a retribuição: o livro dos Provérbios é fiel à Teologia tradicional. Logo, a linha do homem não ultrapassa a morte; por isso, no livro dos Provérbios, a Teologia da Retribuição é forte e infalível: "Quando morre o ímpio, acaba seu anseio, e a esperança nas riquezas perece" (11,7; cf. 11,21.23; 12,7.21; 13,9). Quem garante esse sistema infalível é o próprio Deus. As contrariedades da vida são parte da pedagogia de Deus: Meu filho, não desprezes a disciplina do Senhor, nem te canses com a sua exortação; porque o Senhor repreende os que Ele ama, como um pai ao filho que preza (3,11-12; 17,3).

3) Temor do Senhor: esse é um ensinamento típico da literatura sapiencial. "Temor" significa "reverência" e "respeito", e não "terror" ou "medo". Além disso, significa reconhecer o senhorio de Deus sobre tudo e sobre todos. E esse temor a Deus coloca o homem em seu lugar adequado: "O temor do Senhor é disciplina e sabedoria" (15,33). Nele está a fonte da Sabedoria e da vida: "O princípio da sabedoria é o temor do Senhor" (9,10); "O temor do Senhor é fonte de vida" (14,27a); "No temor do Senhor há poderosa segurança" (14,26). Até o presente momento, estudamos o livro dos Provérbios. Dando continuidade aos nossos estudos, veremos o livro do Eclesiástico ou Sirácida.

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Considerações finais sobre provérbios No livro dos Provérbios, sábio é aquele que fez experiências na sua vida e sabe aproveitá-las para si e orientar o filho/discípulo, ajudando-o a não cometer os erros e a investir sua energia no caminho certo. Podemos dizer que a origem da sabedoria está ligada à história e à situação de um povo e de seus problemas. Logo, sábio é aquele que consegue formular um mashal para transmitir a sua própria experiência e a de seu grupo. Os provérbios nascem da necessidade de formar as novas gerações no direito e na justiça, no temor ao seu Deus, na formação de um estado justo. Portanto, a sabedoria contida no livro dos Provérbios abarca as múltiplas situações vividas por uma pessoa, desde os ambientes mais restritos, até a esfera pública e governamental: a) Casa: família, clã, tribo, corpo, saúde, educação, amor. b) Campo: trabalho, plantio, animais, estações, tempo, natureza, entre outros. c) Portão: justiça, comércio, cidade, praça, feira, roda, processo etc. d) Palácio: governo, organização, corte, exército, conflitos. e) Templo: religião, culto, Deus, orações, romaria, promessas.

8. SIRÁCIDA !ECLESIÁSTICO" O livro do Eclesiástico, como é conhecido na tradição católica, também é chamado de Sirácida, uma vez que seu autor é Jesus Ben Sira (51,30). Para não corrermos o perigo de confundi-lo com o Eclesiastes, vamos usar "Sirácida" (abreviatura: "Sir", que corresponde, portanto, a "Eclo"). Contudo, antes de iniciarmos esse estudo, é necessário lembrar que o livro do Sirácida não consta na Bíblia protestante, pois Lutero adotou o cânon da Bíblia hebraica.

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9. ORIGINAL EM HEBRAICO O Sirácida é o único livro bíblico com um prólogo do tradutor. Graças a tal prólogo, sabemos que estamos diante de uma versão: Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção, e a serdes indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecermos enfraquecer algumas expressões: é que não tem a mesma força, quando se traduz para outra língua, aquilo que é dito em hebraico.

Não obstante sempre soubéssemos da existência de um original em hebraico, há até pouco mais de cem anos, tínhamos somente as versões grega, latina e siríaca. Mas, desde o final do século 19, foram encontrados vários manuscritos que permitiram reconstruir grande parte do texto hebraico do Sirácida. Em 1896, na Genizah de uma sinagoga do Cairo, foram achados manuscritos com Sir 6,6-16, 26; 35,11-38, 27; 39,15-51, 30. Em 1931, outro manuscrito proveniente do Cairo continha Sir 32,16-34,1. Em 1952 e 1955, alguns fragmentos em duas grutas de Qumrã continham Sir 3,14-15; 6,20-31; 51,13-20.30b. Em 1958 e 1960, outros manuscritos no Cairo com Sir 10,19-11,10; 15,1-16,7, e alguns versículos dos capítulos 3; 4; 20; 26; 36; 41. Em 1964, foi descoberto o famoso rolo de Massada, com Sir 39,27-32; 40,1019; 40,26-44,17. Em resumo, temos dois terços do livro em manuscritos do século 1 a.C. (Qumrã e Massada) e dos séculos 11 e 12 d.C. (Cairo). Dos 1616 versículos do Sirácida, foram recuperados 1108 em hebraico. Genizah é o depósito em que são guardados manuscritos envelhecidos ou em desuso. Massada trata-se da fortaleza herodiana no Mar Morto, célebre pela desesperada resistência zelota contra a ocupação romana, entre 70 e 74 d.C.

Quando, porém, o texto grego é confrontado com os manuscritos hebraicos, nota-se que o tradutor fez algumas atualizações que refletem uma nova situação: a que ele vivia, após o ano 132 a.C., no Egito. Centro Universitário Claretiano

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10. CANONICIDADE O livro de Jesus Ben Sira não entrou no cânon judaico porque, após a queda de Jerusalém em 70 d.C., o judaísmo se desenvolveu na linha dos fariseus, único grupo religioso que sobreviveu à catástrofe. No concílio judaico de Jâmnia, após 90 d.C., os líderes religiosos judaicos definiram que só seriam canônicos os livros escritos em hebraico ou aramaico, que datassem de antes de Esdras (398 a.C.) e tivessem sido escritos na terra de Israel. Parece que, naquele momento, nenhum dos participantes do concílio tinha um manuscrito hebraico do Sirácida, pois, não obstante o prólogo do neto de Ben Sira, o livro não foi considerado sagrado. Mesmo assim, o livro foi muito popular entre os judeus (como demonstram os manuscritos encontrados em Qumrã e em Massada) e muito citado por rabinos até a Idade Média. Entre os cristãos, até mesmo São Jerônimo chegou a considerá-lo como apócrifo. E, embora o livro já fosse aceito pelas comunidades cristãs desde o início da Igreja, só em 1438, no concílio de Florença, foi definida a sua canonicidade. As traduções presentes em nossas Bíblias baseiam-se no texto grego porque ele contém a versão integral do livro e constitui o texto tradicionalmente aceito como canônico. A palavra "apócrifo" vem da língua grega e significa "algo que é secreto, que está escondido, oculto". Os livros eram chamados assim porque seu uso era restrito, particular. (CRB, 1993).

Título No Antigo Testamento Grego, isto é, na Septuaginta, o título desse livro é Sophia Sirach (Sabedoria de Sirach). No século 3º d.C., São Cipriano chamava-o de Eclesiástico, para sublinhar o seu uso oficial na Igreja, em contraposição à Sinagoga. Assim, São Jerônimo (340-420 d.C.) incorporou-o na sua versão latina, a Vulgata,

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e chamou-o de Ecclesiasticus. São Rufino, contemporâneo de São Jerônimo, para explicar o título latino, afirmou que, a princípio, Sirácida e Sabedoria receberam o mesmo título para dizer que não eram canônicos, mas eclesiais (da Igreja), e que, posteriormente, tal título passou a designar somente o Sirácida, porque é mais importante que Sabedoria. Hoje em dia, porém, a explicação mais aceita é a seguinte: Sirácida foi chamado de "Eclesiástico" porque era lido na Igreja (Ecclesia), tal qual o livro de Qohélet, que, em latim, passou a ser chamado de "Eclesiastes". Data Em relação à data, o neto de Ben Sira diz ter traduzido o livro do original hebraico para o grego no trigésimo oitavo ano do reinado Evergetes. O que isso significa? Vejamos. O nome "Evergetes" significa "benfeitor". Somente dois reis da era ptolomaica receberam esse título: Ptolomeu III Evergetes I (246-222 a.C.) e Ptolomeu VII Evergetes II (145-116 a.C.). O primeiro reinou pouco mais de vinte cinco anos. Uma vez que o tradutor fala do ano trigésimo oitavo do reinado de Evergetes, ele só pode se referir, então, a Ptolomeu VII. Outra data importante é-nos dada pelo próprio Ben Sira, em 50,1-10, texto em que é nomeado o sumo sacerdote Simão II, que exerceu seu ministério nos anos 219-196 a.C. No livro, nada sugere um clima de rebelião entre os judeus fiéis à Torah (Lei) e que resistiram à cultura helênica imposta por Antíoco IV, que reinou entre 187 e 163 a.C. Igualmente, o livro não faz nenhuma referência ao período dos Macabeus, o que significa que ele já estava concluído quando foi iniciada a revolta macabaica (167-164 a.C.). Considerando todos esses dados, concluímos que o livro do Sirácida foi escrito entre os anos de 190 a 180 a.C. (cf. MORLA ASENSIO, 1997, p. 193-194.).

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Autor O que podemos falar sobre o autor é o que ele mesmo relata ao longo de seu livro. Desde jovem, dedicou-se à sabedoria (51,1322), e a genealogia mencionada em 50,27 permite afirmar que era um cidadão importante de Jerusalém. Ben Sira foi conselheiro e embaixador dos governantes (cf. 39,4; 33,9-12), e suas viagens ao exterior permitiram-lhe tomar contato com as várias correntes sapienciais de seu tempo, principalmente a egípcia (há diversos paralelos no livro de Ben Sira). Depois de aposentar-se, abriu uma "escola de sabedoria" em Jerusalém (50,27; 51,23) para preparar os filhos dos aristocratas para altos encargos. Além disso, era casado, tendo, pelo menos, um filho, tendo em vista que foi seu neto quem traduziu sua obra para o grego (cf. prólogo, 7). A doutrina de Ben Sira demonstra uma postura de alguém conservador, que buscava apoiar-se na sabedoria dos antigos e nas tradições de Israel, e que, ao mesmo tempo, estava aberto às novas questões do seu tempo. Poderíamos chamá-lo de "conservador progressista": fidelidade à tradição e, simultaneamente, abertura ao presente e ao futuro. Trata-se de um sábio leigo com clara devoção ao Templo, aos sacerdotes e ao culto (50,2-21). Quanto ao helenismo, Ben Sira tem conhecimentos literários, não os desprezando e, até, aceitando alguns de seus costumes. Entretanto, os pontos de contato são apenas culturais, não se referindo à religião. Desse modo, a finalidade da obra de Ben Sira era formar os jovens judeus fascinados pela cultura grega. Ele queria mostrar que as tradições judaicas são verdadeira sabedoria e não perdem nada para a Filosofia e para as tradições gregas. Ben Sira considerava seu ensinamento como "profecia" (24,33). Ele compilou tradições judaicas numa espécie de "enciclopédia sapiencial" ou manual de sabedoria, sob o ponto de vista da fé no Deus de Israel.

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11. BEN SIRA NETO E A TRADUÇÃO PARA O GREGO Como dissemos, quem traduziu o livro de Jesus Ben Sira para o grego foi seu neto, cujo nome não conhecemos. No prólogo, o neto explica quando e por que traduziu a obra do avô. Como já vimos, a tradução foi feita após o ano 132 a.C., na chamada "diáspora", ou seja, fora da palestina. Ben Sira Neto viveu no Egito (cf. prólogo, 27), onde o grego havia se tornado a língua corrente, mesmo entre os judeus. Ele decidiu, então, traduzir a obra de seu avô para que a comunidade judaica pudesse conhecê-la e, assim, "instruir-se, reformar os costumes e viver conforme a Torah" (prólogo, 31-35). Tudo indica que Ben Sira Neto possuía uma cópia não muito boa do livro de seu avô: faltavam colunas e versos. Além disso, ele fez alguns acréscimos que acabaram deturpando certas posições teológicas de Ben Sira. Mais ainda, parece que Ben Sira Neto não conhecia o hebraico tão bem assim. Em compensação, conseguiu identificar citações implícitas da Sagrada Escritura e traduziu com a versão da Septuaginta (a tradução grega das escrituras hebraicas, que já estava pronta no tempo de Ben Sira Neto). Em resumo, Ben Sira Neto não faz uma mera tradução; ele opera um upgrade, uma atualização e adaptação do original: atualização para situações e ideias novas, principalmente no que se refere à Escatologia (Ben Sira Neto tem ideias próprias e diverge de seu avô). Veremos exemplos das diferenças entre o texto original (hebraico) e a tradução grega depois de estudarmos a Teologia de Ben Sira. Estrutura Antes de falarmos da organização do livro, é necessário lembrar que o texto de Sirácida tem uma longa história: o original hebraico, as versões para o grego, o latim e o siríaco, e os acréscimos feitos em cada uma dessas versões. O texto atual é o resultado desse processo, e os acréscimos do texto grego supõem um ambiente hebraico de língua grega, ou seja, o judaísmo helenista. Por sua vez, o texto latino sofreu acréscimos cristãos. Isso resultou em uma duCentro Universitário Claretiano

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pla versão: uma mais longa, outra mais breve. Discute-se ainda qual seja a original, uma vez que o judaísmo conservou as duas. Não obstante, pode-se dizer que o tema central do livro é a sabedoria e, por tabela, como o sábio se relaciona com ela: um existe para o outro. No seu conjunto, o Sirácida poderia ser chamado de "enciclopédia sapiencial", dada a riqueza, a variedade e a profundidade dos temas tratados. O livro que temos em nossas Bíblias está assim organizado: Quadro 3 Organização do livro. DIVISÃO Prólogo

SUBDIVISÃO Tradução grega: 15 versículos. a) 1,1-23,27: A Sabedoria na vida humana. Vários textos referem-se, diretamente, à Sabedoria: 1,1-10; 4,11-19; 6,18-37; 14,20 - 15,10. Deve-se notar o tema da criação em 16,24 - 17,14, que será retomado no início da segunda parte.

Ensinamentos sobre temas variados, que, às vezes, se repetem. É Primeira parte – temática: provável que essa parte tenha sido composta em 1,1-42,14 épocas diferentes. Ela subdivide-se em duas.

b) 24,1-42,14: A Sabedoria na natureza e na história de Israel. Inicia-se com uma autoapresentação da Sabedoria, no capítulo 24. Numa primeira edição do livro, esse capítulo pode ter sido a conclusão do conjunto, mas, no texto atual, é a peça central de todo o grande conjunto dos capítulos 1-42. Em 33,7-15 e 39,12-35, aborda-se o tema da "justificação de Deus" perante o mal no mundo, tema que voltará em 42,15-25. Em 33,16-18, temos um pós-escrito do autor, que poderia ser uma conclusão de nova seção da obra.

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DIVISÃO Prólogo

Segunda parte – hínica: 42,15-50,26

SUBDIVISÃO Tradução grega: 15 versículos.

Essa parte difere-se da primeira porque não há mais temas soltos, tampouco provérbios. Adota-se a forma hínica e o tema é um só: o louvor de Deus na criação e na história. Também essa parte subdivide-se em duas.

Conclusão e apêndice: 50,27-51,30

a) 42,15-43,33: hino à glória de Deus na criação. b) 44,1-50,21: elogio dos antepassados de Israel.

a) 50,27-29: conclusão propriamente dita. b) 51,1-30: apêndice.

Fonte: Pereira (1992, p.22-23).

Algumas edições apresentam uma dupla numeração dos versículos. Isso é devido à diferente divisão de versículos na Vulgata e na Septuaginta. No quadro anterior, usamos a numeração da Septuaginta.

12. GÊNEROS LITERÁRIOS No Sirácida, encontram-se vários gêneros literários: paralelismos, provérbios breves (meshalim), ditos, conselhos, discursos etc. Ben Sira colhe seu método, principalmente, da literatura sapiencial. Vejamos os gêneros literários mais frequentes no Eclesiástico a seguir. Paralelismo A poesia hebraica não se baseia, em primeiro lugar, na rima dos sons, mas, sim, na rima dos conceitos. É o chamado "paralelismo". Como já vimos (cf. Introdução aos Provérbios), são três os tipos de paralelismo: • Paralelismo sinonímico: "Ao homem mesquinho não convém a riqueza, e para que grandes bens ao invejoso?" (14,3; cf. 3,3; 26,13-18). Centro Universitário Claretiano

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• Paralelismo antitético: "Porque a bênção do pai consolida a casa dos filhos, mas a maldição da mãe desenraiza os alicerces" (3,9; cf. 20,9; 26,22-26). • Paralelismo sintético ou completivo: "Aquele que teme o Senhor honra seu pai. Ele servirá a seus pais como ao seu Senhor" (3,7; cf. 3,18; 7,15). Formas valorativas As formas valorativas são um recurso utilizado em provérbios breves para expressar a estima ou a reprovação: Ai dos corações covardes e das mãos fracas, e do pecador que segue dois caminhos. Ai do coração fraco, pois não acredita, por isso não será protegido. Ai de vós que perdestes a paciência: que fareis quando o senhor vos visitar? (2,12-14).

Para comparar duas situações, usa-se, com frequência, a fórmula "mais vale... do que..." ou algo equivalente: "Mais vale a vida de pobre sobre abrigo de tábuas do que alimentos finos em casa alheia" (29,22). "É melhor o pobre são e vigoroso do que o rico flagelado em seu corpo" (30,14; cf. 3017; 25,16; 10,27).

Para mostrar a verdadeira felicidade, utiliza-se a fórmula: "feliz aquele..." ou "ditoso aquele que...". Vejamos alguns exemplos: Feliz o homem que não pecou com sua boca e que não foi ferido pelo remorso dos pecadores. Feliz aquele cuja consciência não o acusa e aquele que não perdeu sua esperança (14,1-2; cf. 14,20; 25,7-9; 26,1; 31,8; 50,28).

Quando a comparação envolve três situações, Ben Sira utiliza a fórmula: "melhor que os dois...". Tal modo de raciocinar é bem próximo aos provérbios numéricos: Amigo e companheiro encontram-se no momento oportuno; melhor que os dois uma mulher prudente. Irmão e auxiliar são úteis no tempo da tribulação, melhor que os dois a esmola preserva do perigo. Ouro e prata tornam o caminho firme, melhor que os dois é um bom conselho (40,23-25; cf. 40,18-26).

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Comparação e metáfora A comparação e a metáfora são os artifícios mais simples e, por isso, seu uso é frequente: "Como flecha fincada na coxa, assim é uma palavra nas entranhas do insensato" (19,12); "Como perdiz presa na gaiola, assim é o coração do orgulhoso; como escorpião ele espreita tua ruína" (11,30; cf. 16,7; 24,13-17; 26,25.27; 32,5-6; 43,18-22; 50,6-10). Discurso e pequenos tratados Como todo sábio, Ben Sira dirige a palavra a seus discípulos em tom de exortação (16,24 – 18,1); ele utiliza o apelativo "meu filho" (2-3;4,20-9,16) e é porta voz da sabedoria, ou seja, fala em nome dela (1,1-21; 4,11-19; 14,20-15,10; 24,1-34). Ben Sira utiliza com frequência, também, o recurso literário dos tratados, isto é, conjuntos de provérbios unidos pelo tema. Exemplos: o matrimônio (9,1-9; 25–26), os antepassados de Israel (44,1-50,21), a Sabedoria (24,1-34) etc. Retratos históricos Na "galeria dos heróis de Israel" (capítulos 44-50), aparecem, pelo menos, trinta e quatro personagens do Antigo Testamento. Após a introdução, que diz: "Elogiemos os homens de bem, nossos antepassados, em sua ordem de sucessão" (44,1), Ben Sira descreve, de forma breve, mas bem elaborada, somente os principais traços de cada personagem, tais como: "E Salomão repousou com seus pais, deixando para trás de si alguém de sua raça, o mais louco do povo e pouco inteligente: Roboão, que instigou o povo a revolta" (47,23). Outros recursos estilísticos –––––––––––––––––––––––––––– Há vários outros recursos estilísticos usados por Ben Sira. Eis um resumo: 1) Repetições de termos ou fórmulas: "antes de x" (18,19-23), "interroga x" (19,13-17); "Há x" (19,23-26; 20,1-12.21-23). 2) Plasticidade nas imagens: "Quem toca no piche sujar-se-á, quem convive com o orgulhoso ficará como ele" (13,1); "O preguiçoso é semelhante a um monte de esterco, todo aquele que o toca sacudirá a mão" (22,2; cf.22,1.1921; 36,30-31). Centro Universitário Claretiano

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3) Questões retóricas: esse é um recurso didático muito frequente nos provérbios breves: "O que é mais pesado do que o chumbo? E que outro nome dar-lhe senão o de insensato?" (22,14); "Que paz pode haver entre a hiena e o cão? Que paz pode haver entre o rico e o pobre?" (13,18; cf. 1,6; 2,10; 10,19; 11,23-25; 18,8; 23,18; 31,8-11.27). 4) Provérbios numéricos: com os números dois e três: "duas coisas entristecem meu coração e a terceira me encoleriza: guerreiro reduzido a miséria, homens sensatos votados ao desprezo, aquele que passa da justiça ao pecado;" (26,28). Com o número três: "Há três coisas que encantam minha alma, que são agradáveis a Deus e aos homens: a concórdia entre irmãos, a amizade entre vizinhos, marido e mulher que vivam bem" (25,1-2). Com os números três e quatro, cf. 26,5-6; com os números nove e dez, cf. 25,7-11. 5) Hinos onomásticos: são listas de nomes de animais, vegetais, povos, minerais etc.: 39,26-30; 42,15-43,33; 38,24-34. Esse recurso foi muito utilizado pelos egípcios e também aparecem na literatura sapiencial bíblica: nos livros de Jó (28; 36,27-37; 38,4-39,30) e da Sabedoria (7,17-20,22;14,25-26). 6) Narrações autobiográficas: Ben Sira fala de sua própria pessoa: 24,30-34; 33,16-18; 51,13-22. 7) Poema alfabético: cada verso começa com uma letra do alfabeto (no caso, o alfabeto hebraico). Assim, pode ser considerado 51,13-29, mas no manuscrito hebraico está incompleto. Esse poema foi colocado no final do livro como conclusão (Cf. MORLA ASENSIO, 1997, p. 197-198; VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p. 96-101).

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13. CONTEÚDO TEOLÓGICO Por ora, veremos a Teologia do original hebraico, isto é, o texto de Jesus Ben Sira (o avô). Como já afirmado, Ben Sira poderia ser chamado de "conservador progressista": ele aceita a Teologia tradicional (Teologia da Retribuição), mas deixa-se questionar pelas dificuldades práticas. São muitos os temas abordados, todos ao redor de um tema central: a sabedoria. O tema central: a sabedoria Como já dissemos, a sabedoria e o sábio existem um para o outro. A sabedoria manifesta-se pelo sábio. Para falar da sabedoria, Ben Sira busca inspiração em outros livros sapienciais.

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A sabedoria em si mesma A sabedoria tem origem divina: ela é criatura de Deus (1,9; texto paralelo a Pv 8,22) e as primícias de sua criação (1,4a). Além disso, a sabedoria é um dom de Deus para quem vive na amizade com Ele. O homem recebe-a como graça (1,1-10), mas só depois de ser provado em sua docilidade, tenacidade e perseverança (4,11-19). O discípulo deve amá-la e procurar por todos os meios conquistá-la. Com efeito, ela é digna de ser amada, não só por sua origem divina, mas também porque estabelece um relacionamento pessoal e recíproco com quem a busca como mãe (15,2; 4,11) e como noiva (51,13-22). A sabedoria é, pois, como um tesouro (20,30-31); seus frutos são abundantes como uma boa colheita (6,19) e ela traz saciedade, paz, saúde e vida longa (1,16-20). No discípulo, ela provoca ainda mais fome e sede da própria sabedoria e de agradar a Deus (24,19-21). Sabedoria e Torah (Lei) A Sabedoria é a shekinah, isto é, a própria revelação e presença de Deus em Israel. A Torah é a melhor expressão da sabedoria (1,26; 2,15; 23,27): a Torah já não é um peso nem um jugo, mas a própria sabedoria (24,23). Em outras palavras, a prática da Torah é a manifestação concreta da sabedoria e do temor a Deus. Apesar disso, Ben Sira faz só quatro referências explícitas a preceitos da Torah (7,31; 28,7; 29,9; 35,6). Por quê? Porque Ben Sira não é legalista: ele lê a Torah com olhos de sábio: a Torah não é um conjunto de códigos legislativos, mas a própria revelação histórica de Deus a Israel; é a Sabedoria de Deus que se tornou concreta em Israel (16,26-17,14; 44-49). O sábio A missão do sábio é transmitir a Torah, que é, como já dissemos, a melhor expressão da sabedoria (24,30-34). Assim, o sábio Centro Universitário Claretiano

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deve instruir os outros e a si mesmo (24.34; 33,18). Contudo, não é necessário ser velho para ser sábio, uma vez que o relacionamento que une o sábio e a sabedoria é um relacionamento de amor, como o que une o esposo à esposa (51,13-22). O temor a Deus O temor a Deus é o princípio e o fim da sabedoria (1,11-20). Sem ele, ninguém a atinge nem a recebe. O temor leva a pessoa à procura da sabedoria; por sua vez, ela é princípio e plenitude do ser humano. Juntos, sabedoria e temor a Deus levam à felicidade e à benção, mais do que a riqueza e a força (40,26-27). Quem são os que temem a Deus? Os justos, os que Nele esperam, os que confiam Nele, os que O amam (2,7-9.15-18). Em suma, os que são fiéis à Torah, principalmente no momento da provação (2,1-19). Logo, o temor a Deus é fidelidade concreta à Torah (19,20,24), e a consequência do temor a Ele é a vida (50,29 no texto hebraico; cf. nota na Bíblia de Jerusalém). A história sagrada A visão de Ben Sira a respeito da história sagrada está em consonância com a Teologia da Retribuição e integrada no ensinamento para combater o fascínio do helenismo: a história de Israel é a revelação da sabedoria de Deus. Nesse sentido, concluímos que os antepassados judeus não perdem nada para os heróis gregos. Apesar disso, referências a acontecimentos precisos são raras (cf. 16,6-10). Para Ben Sira, é preciso manter viva a tradição, a memória histórica, a fim de combater a sedução do helenismo e reafirmar a verdadeira sabedoria (a judaica) em contraposição à filosofia grega. Em resumo, a verdadeira sabedoria está nos antepassados. A história dos heróis aparece no final do livro. O "elogio dos pais" (44-50) é uma galeria de personagens louvados por seus fei-

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tos, não pela ação de Deus; e isso vai ao encontro da Teologia da retribuição. Essa galeria de heróis do povo eleito vai de Henoc até Neemias (44,16-49,13); o último a ser elogiado é Adão (49,16). Entretanto, Ben Sira acrescenta uma página sobre Simão, o Justo (50,1-24), que era o sumo sacerdote de seu tempo. Perspectivas futuras Ben Sira não afirma o messianismo, mas a perpetuação do sacerdócio sadoquita (50,24 no hebraico; cf. nota da Bíblia de Jerusalém). Além disso, ele espera a restauração de Israel, o cumprimento das profecias e que toda a humanidade se una no reconhecimento do verdadeiro Deus (36,1-22). Dessa forma, o destino final do homem é a morte. Após ela, só resta o sheol (14,11-19). Da pessoa morta, restam somente as lembranças de sua sabedoria (39,9-11) e de suas ações (41,12-13; 4,10-15). A palavra "xeol" (sheol) ––––––––––––––––––––––––––––––– A palavra "xeol" (sheol) vem do hebraico e indica o mundo inferior onde moravam os mortos. No Antigo Oriente, imaginava-se o mundo estruturado em três níveis: o céu, a terra, e o mundo subterrâneo (os oceanos). Abaixo do mundo subterrâneo, estava o xeol, a habitação dos mortos. Acreditava-se que, quando a terra era aberta para o sepultamento, essa sepultura se tornava a porta de entrada para o xeol. Assim, o xeol é como um arquivo morto: nele não há nada, nem pensamento, nem sabedoria, nem conhecimento, não se louva a Deus. Tudo é pó e escuridão (veja Sl 6,6; Ecl 9,10) (McKENZIE, 1984).

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A vida em família A convivência familiar deve seguir os preceitos do decálogo. Assim, a estrutura da família é patriarcal e a educação dos filhos é rígida (7,23; 22,6). Os pais devem fazer-se respeitar pelos filhos e, principalmente, estar atentos à sua educação (30,1-13; cf. Dt 21). Seguindo essa postura, é arriscado ter filhas (22,3; 42,11), uma vez que a preocupação principal do pai é que a filha chegue íntegra ao casamento (42,9-10; 7,24-25; 26,10; cf. Lv 21,13-15; Dt 22,13-19).

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Assim, a mulher é vista sempre como esposa, nunca como mãe (7,19 26,1-4,13-18). Mesmo quando ela é uma "boa esposa", o marido deve manter sua própria superioridade (9,2; 25,21.26). Em contrapartida, a mulher deve ser respeitada por ter sofrido a dor de parto (7,27). Os conselhos que o autor dá ao homem estão de acordo com sua época; hoje, nós diríamos que são proposições machistas (25-26). Por isso, não entra em discussão como seria o "bom marido", mas sempre como deve ser a mulher virtuosa e silenciosa (36,21-27). Um exemplo: "a mulher aceita todo o tipo de marido" (36,26a). Na sua galeria dos heróis do passado (capítulos 44-49), Ben Sira não cita nenhum nome de mulher; há somente uma referência às mulheres anônimas às quais se entregou Salomão para a sua própria ruína (47,19). Ben Sira admite a bigamia (37,11a) e a possibilidade de repúdio e divórcio, mas somente por parte do marido (7,26; 28,15). Além disso, adverte contra o adultério, tanto o cometido pelo homem (23,16-21) como o cometido pela mulher (23,22-26), tudo segundo a ética do decálogo (Ex 20; Dt 5) (Cf. MINISSALE, 1993, p. 65-67.). Com o servos, contudo, era necessário ser exigente, mas, também, justo e bondoso (7,21; 33,25-32). Ou seja, há uma mescla de humanidade e conveniência. A vida em sociedade Os discípulos de Ben Sira eram jovens ricos, que estavam se preparando para assumir altos encargos na sociedade (7,4.6.11.14.20). As profissões É necessário lembrar que a sabedoria é artesã, isto é, ser sábio é ter habilidade para fazer (hoje diríamos que é ter "know how"). Mais que qualquer outro livro, a Sirácida dedica especial atenção aos ofícios e tem em grande consideração o médico (38,1-

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15) e o escriba (38,34b-39,11). Esse último, Ben Sira considera superior aos artesãos e operários (38,24-34a). Os amigos O autor dá grande valor à amizade (6,5-17) e convida à fidelidade (7,18; 9,10). Por isso, é necessário escolher os amigos com o mesmo cuidado que se escolhe uma esposa (37,1-6). Nesse sentido, não é qualquer conhecido que pode ser conselheiro (37,7-15, especialmente v. 11). A injustiça social Ben Sira tem a mesma sensibilidade dos profetas (21,3; 26,29; 42,4). Como eles, ele adverte que as instituições de justiça podem ser subornadas (4,27-28; 7,6). Assim, justo é quem atua positivamente e evita o exercício da injustiça (35,1-5). Quanto a Deus, Ele recusa a oferenda do ímpio, porque é produto do roubo aos pobres (34,20-22). O clamor do pobre é, neste mundo injusto, como uma voz no deserto, mas Deus o escuta (21,5). O autor recomenda, ainda, a prática da justiça por motivos humanitários e profundamente religiosos (3,30-4,10, especialmente os versículos 9-10 e 4,20-31). Não encontramos em seu livro uma explicação para a desigualdade social; não obstante, ele nutre certa desconfiança em relação aos ricos e poderosos (4,27; 7,4-6; 13,3-11; 27,2) e discreta estima pelos pobres (3,30-4,10). Em contrapartida, a pobreza é sempre "dos outros" (7,32-36; 3,30-4,10). Acima de tudo, é necessário ser humilde na riqueza (3,18; 18,25) e agradecer a Deus por ser rico (11,21-26; 32,13).

14. MENSAGENS DOS ACRÉSCIMOS Conhecidos principalmente pelos manuscritos gregos, os acréscimos são breves; geralmente, eles precisam um texto do original (exemplos: 1,5 comenta 1,6 à luz de 24,3.23; igualmente, 17,18 explicita 17,17b). Em alguns casos, acabaram mudando a Teologia de Ben Sira (o avô). Centro Universitário Claretiano

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Surgiram alguns temas novos ou mais bem desenvolvidos, tais como: 1) Providência: 15,15-16.18c; 18,2b-3. 2) Salvação: 13,14; 17,26b; 24,24. 3) Amor (unido à sabedoria e ao temor a Deus): 1,10cd.12; 24,18; 26,19-27. 4) Mulher: críticas à transviada (26,22-25), elogios à virtuosa (26,23b.26). 5) Perspectivas futuras: 44,16 (alargam os estreitos horizontes de Ben Sira). Nos acréscimos, Deus torna-se mais Pai, compreende a fraqueza humana, escruta as ações e as intenções humanas e visita o homem com retribuição, garantindo-lhe a felicidade ou a miséria. No mundo futuro, ao pecador estão reservadas a vingança e a destruição imediatas; para o justo, a salvação e a vida.

15. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. 1) Leia Pr 10,25-32 e 11,1-10 e tente identificar os três tipos de paralelismo: sinonímico, antitético e sintético. 2) O autor do Livro Sirácida ou Eclesiástico, sem dúvida, era um profundo conhecedor da Sagrada Escritura. Elabore um quadro comparativo dos seguintes textos: Dt 4,6-8; Sir 24,1-22 e Bar 3,9-4,4.

16. CONSIDERAÇÕES A tradição judaica, fortalecida no período persa (pós-exílio) com Esdras e Neemias, promoveu uma observância rigorosa da Torah (Lei). Posteriormente, quem assumirá a missão de incentivar tal observância será o movimento farisaico.

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Entre os anos 190 a 180 a.C., o helenismo torna-se uma ameaça à cultura e à religião dos povos judeus. Trata-se de ameaça, para muitos, quase "invisível", mas bem visível para sábios como Jesus Ben Sira. Sua obra é um meio moderado de enfrentar o perigo. Por meio de seu livro, ele mostra o valor da história de seu povo, de seus heróis e de suas conquistas (44-50,24) sem se fechar ao novo (34,11). Jesus Ben Sira foi um judeu piedoso, estudioso e, acima de tudo, interessado nos jovens de seu tempo e dos tempos futuros, especialmente no que se refere à educação e à fidelidade religiosa. Seu objetivo principal era manter viva a tradição, a memória histórica. Por isso, combateu a sedução do helenismo, reafirmou a verdadeira sabedoria (a judaica) em contraposição à Filosofia grega, defendeu a Torah (Lei), o sacerdócio, a família e o templo. Para ele, a verdadeira sabedoria está na experiência e nos ensinamentos dos antepassados, e não nas escolas dos helenistas. Ironicamente, o Sirácida não pertence ao cânon da Bíblia hebraica. Todavia, mais ironicamente ainda, encontramos nos escritos rabínicos, ao longo dos séculos, várias citações literais da obra de Jesus Ben Sira.

17. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA SALONSO SCHÖKEL, L.; VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Provérbios. Madrid: Cristiandad, 1984. (Nueva Biblia Española - Sapienciales, 1). ARTUSO, V. Anotações para curso de literatura sapiencial. Ponta Grossa: 2000. (texto não publicado). COLODA, S. C.; COLODA, A. A Sabedoria nos pára-choques. Porto Alegre: EST, 1988. CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). ______. O sonho do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 7). DIAS DA SILVA, C. M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007. (Ferramentas bíblicas). ______. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. (Bíblia e história). GILBERT, M. O ensinamento dos sábios. In: MONLOUBOU, L. et al. Os Salmos e os outros escritos. São Paulo: Paulus, 1996.

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LAURENTINI, G. Proverbi. In: BALLARINI, Teodorico. (Ed.). Introduzione alla Bibbia – III: Ultimi Storici. Salmi. Sapienziali. Bologna: Dehoniane, 1978. McKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1984. MINISSALE, A. Sirácida: as raízes na tradição. São Paulo: Paulinas, 1993. (Pequeno Comentário Bíblico). MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). RAVASI, G. Proverbi. In: ROSSANO, P.; RAVASI, G.; GIRLANDA, A. Nuovo Dizionario di Teologia Biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1988. STORNIOLO, I. Como ler o livro do Eclesiástico. São Paulo: Paulus, 2002. (Como ler). ______. Como ler o livro dos Provérbios. São Paulo: Paulinas, 1991. (Como ler). PEREIRA, N. B. Sirácida ou Eclesiástico. Petrópolis: Vozes/sinodal, 1992. (Comentário bíblico). VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25). WEISER, A. Einleitung in das Alte Testament. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.

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EAD Estudo dos livros de Jó e Qohélet

3 1. OBJETIVOS • Situar, historicamente, os livros de Jó e Qohélet. • Identificar a proximidade teológica desses livros. • Analisar as linhas históricas e teológicas que deram origem a esses livros.

2. CONTEÚDOS • Questões introdutórias: título, data e autoria. • Estrutura e conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 1) Utilize o Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste Caderno de Referência de Con-

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teúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho. 2) Ao estudar esta disciplina, confira sempre as referências com as explicações dadas. 3) Faça anotações de todas as suas dúvidas, não deixando nenhuma para trás. Tente solucioná-las por meio do nosso sistema de interatividade ou diretamente com o seu tutor.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, estudamos os livros de Provérbios e Sirácida. Nesta unidade, daremos mais um passo em nossos estudos, pois conheceremos os livros de Jó e Qohélet.

5. O LIVRO DE JÓ O livro de Jó aborda as "questões-limite" da vida humana: por que o justo sofre? Onde está Deus? Por que ele permite o sofrimento do justo? Que Deus é esse? A tais perguntas, o autor responde com a palavra divina em meio a uma teofania e com a presença de Deus nos momentos do sofrimento humano. Acima de tudo, não basta ouvir a resposta dos outros, mas encontrar Deus pessoalmente: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem" (Jó 42,5). As perguntas de Jó são as mesmas de todos os homens: por que há o sofrimento? Por que há o mal? Como encontrar Deus no meio da falência? Isso tudo, porque a pessoa humana tem dificuldade em dialogar com a justiça salvífica de Deus. A tentativa do livro de Jó para responder a essas questõeslimite não é algo inédito; antes, encontramos paralelos em praticamente todo o Antigo Oriente Próximo. No Egito, um poema datado em torno de 2190-2040 a.C. intitula-se Diálogo do desesperado com sua alma. Esse poema traz uma contestação das convicções tradicionais, segundo as quais os Centro Universitário Claretiano

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ricos tinham a vida garantida após a morte. Para o pobre que sofre, o melhor ainda é o suicídio. Eis um breve trecho, muito semelhante a Jó 3: A morte me parece hoje como o lugar de repouso para um enfermo, como sair para o ar livre depois de estar encarcerado. A morte é hoje para mim como o odor da mirra, como sentar-se debaixo de um toldo num dia de brisa. A morte é hoje para mim como o odor das flores do lótus como sentar-se na beira do País da Embriaguez. A morte é hoje para mim como um caminho plano como a volta para casa depois de uma viagem (ALONSO SCHÖKEL; SICRE DIAZ, 1983, p. 24). O meu deus esqueceu-se de mim e desapareceu, minha deusa foi-se embora e permanece distante, o espírito benevolente que sempre estava junto do mim retirou-se (I 43-45) (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999, p.24).

Observe, a seguir, outros textos babilônicos: 1) Diálogo do sofredor com seu amigo piedoso (também chamado de Teodiceia babilônica, cerca de 1000 a.C.). 2) Poema do justo que sofre (entre 1500 e 1200 a.C.). 3) Diálogo do amo pessimista e seu criado (cerca de 1000 a.C.). 4) Ugarit: o diálogo de um suicida com sua alma (cerca de 2200 a.C.). 5) Grécia: o célebre Prometeu acorrentado, de Ésquilo (cerca de 460 a.C.), é uma tragédia na qual o herói (Prometeu) é acorrentado a uma rocha por ter dado o fogo aos homens.

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Título Jó não é o nome do autor, mas do personagem principal. No entanto, esse nome não corresponde a uma raiz de origem hebraica; antes, trata-se de um nome comum em todo o Antigo Oriente Próximo. De fato, ele é encontrado em manuscritos egípcios e acádicos do 2º milênio a.C. Segundo os especialistas, o nome "Jó" pode derivar de duas raízes semitas: 'yb e 'wb. Da primeira raiz ('yb), derivaria 'iyyob e o sentido seria "inimigo, rival, opositor". Seria, portanto, uma designação para a atitude rebelde de Jó diante de Deus. Em contrapartida, se 'iyyob for um passivo, Jó seria a vítima da aposta de Deus. Já a segunda raiz ('wb) provém do árabe e corresponde ao hebraico swb, que significa "voltar/arrepender-se": corresponderia ao Jó arrependido ou penitente do final do livro (cf. MORLA ASENSSIO, 1997, p. 125-126). Afinal, quem é Jó? Como já dissemos, Jó não é o autor do livro, mas o personagem principal. Nomes de pessoas e lugares indicam a região de Edom ou da Transjordânia. Pelo relato, trata-se, pois, de alguém que viveu no período dos patriarcas, pois não há santuário central nem sacerdote; as funções sacerdotais são realizadas pelo pai (1,5; 42,8; cf. Gn 17,23.) e as riquezas eram avaliadas por rebanhos e escravos (1,3; 42,12). Data A datação do conjunto do livro é difícil e existe uma diversidade de opiniões, uma vez que há muitos dados a serem considerados: o vocabulário é rico e variado; além do vocabulário, as circunstâncias históricas e culturais refletem o período persa. Isso tudo faz supor que parte do livro tenha surgido no século 5 a.C., após o exílio babilônico. Em contrapartida, foram feitos acréscimos posteriores, talvez no século 3 a.C. Em outras palavras, o estilo e o ambiente cultural e religioso dão a entender que o livro foi escrito por etapas: Centro Universitário Claretiano

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Quadro 1 Etapas do livro de Jó. 1,1 – 2,13 + 42,7-17

prólogo e epílogo

3,1-26

monólogo de Jó

4,1-27,23

diálogo com os três amigos

29,1-31,40

monólogo de Jó

38,1-42,6

teofania

32,1-37,24

diálogo com o quarto amigo metade do século V a.C

28,1-28

poema sobre a Sabedoria

séculos X-IX a.C

primeira metade do século V a.C

séculos IV-III a.C

Fonte: Leveque (1987, p. 9).

Autor O livro de Jó, que temos em nossas Bíblias, é o resultado da sobreposição de várias camadas. O redator final ainda permanece anônimo. Todavia, podemos fazer algumas afirmações a respeito do autor que reuniu e organizou a parte poética central do livro. Provavelmente, era um israelita, conhecedor da obra profética e dos ensinamentos dos sábios. Alguém erudito, sensibilizado com o sofrimento dos pobres; um intelectual que: Discute os problemas mais diversos, interessa-se por tudo e investiga as relações do homem com Deus. A evolução do protagonista reflete provavelmente sua vida pessoal e sua experiência de Deus. Desde o Deus conhecido, amado e aceito, até o mistério impenetrável que provoca rebeldia e logo a seguir submissão (cf. ALONSO SCHÖKEL, 1983, p. 77-79).

6. QUEM É JÓ? Como já dissemos, Jó não é o autor, mas o personagem principal. O nome "Jó" não é judaico. Antes, é comum em todo o Antigo Oriente Próximo no segundo milênio a.C. Os dados oferecidos pelo livro permitem construir a seguinte figura de Jó: é um homem semissedentário, contemporâneo aos patriarcas. Os nomes dos personagens e dos lugares indicam que ele morava em Edom ou na Transjordânia. Sua religião é primitiva:

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a ira divina é aplacada por sacrifícios. Não se fala de um santuário central, nem de sacerdotes (cf. 1,5; 42,8). Em seu tempo e em sua sociedade, a riqueza de um homem é avaliada pela grandeza de seus rebanhos e pela quantidade de seus escravos (1,3; 42,12).

7. ESTRUTURA A história da composição do livro é complexa. Igualmente complexa é a sua estrutura. Neste estudo, tomaremos por base a seguinte organização do livro: Quadro 2 Organização do livro de Jó. 1,1-2,13

prólogo

3,1-26

monólogo de Jó

4,1-27,23

diálogo com os três amigos: Elifaz, Bildad e Sofar

28,1-28

poema sobre a Sabedoria

29,1-31,40

monólogo de Jó

32,1-37,24

diálogo com o quarto amigo: Eliú

38,1-42,6

teofania

42,7-17

epílogo (com o prólogo, forma a moldura no livro)

8. GÊNERO LITERÁRIO DO LIVRO A questão acerca do gênero literário do livro de Jó provoca animadas discussões entre os especialistas e ainda não se chegou a um consenso. Dizer que Jó é um livro "sapiencial" é fazer uma afirmação genérica demais que não significa nada. As opiniões variam muito: 1) uma peça de teatro (mas fica a questão: trata-se de uma tragédia ou de uma comédia?); 2) uma disputa entre sábios, na qual alguns defendem uma tese, outros questionam-na; 3) uma lamentação dramatizada, isto é, uma lamentação (dirigida a Deus) em forma de drama; Centro Universitário Claretiano

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4) uma disputa processual, com as várias fases do processo: preliminares, tentativa de conciliação, retomada do litígio, julgamento divino, renúncia de Jó. Todas essas opiniões, contudo, são unilaterais, e o livro parece ter um pouco de tudo e nada de completo. Em resumo, o livro de Jó apresenta uma mescla de vários gêneros literários, pertencentes a vários estilos. Por isso, é mais proveitoso estudar unidades menores e blocos de texto. Nele, encontramos prosa, poesia, lamentações, hinos e vários tipos de debates: filosófico, teológico e judicial. Para se ter uma ideia dessa diversidade, basta ler os capítulos 3-10: em Jó 3, encontramos salmos e hinos; nos capítulos 4-5, argumentação sapiencial e salmo; nos capítulos 6-7, salmo e debate jurídico; no capítulo 8, a típica argumentação sapiencial, salmo e debate jurídico; e, nos capítulos 9-10, debate jurídico e salmo.

9. CONTEÚDO TEOLÓGICO O prólogo (1,1-2,13) e o epílogo (42,7-17) do livro de Jó formam uma história completa: é o mito primitivo de Jó, um homem saudável e rico que perde tudo e fica muito doente. A causa dessa desgraça é uma aposta entre Deus e um de seus conselheiros, Satan, que exerce a função de acusador. Mesmo sem saber o porquê, Jó perde tudo, mas não se rebela. Antes, torna-se o modelo de piedade, paciência e perseverança. Por esse motivo, Deus restituiulhe tudo em dobro. Essa é a história mais conhecida de Jó. Trata-se da reformulação literária de um conto didático da tradição oral de Israel, conhecido já por Ezequiel (Ez 14,12-23), que viveu e atuou no período do exílio na Babilônia no século 6 a.C. O prólogo é composto por narrativas didáticas, cujo tema principal é a busca de um justo desinteressado. Só Jó age desse

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modo e Satan quer pô-lo à prova. São três cenas terrestres (1,1-5 .13-22; 2,7-10) e duas cenas celestes (1,6-12; 2,1-6). O sofrimento é a primeira prova para que Jó dê testemunho de sua adesão a Deus. Para superar a prova, é necessária a perseverança. No epílogo do livro, Jó recebe a retribuição por sua fidelidade. Poderíamos dizer que há uma contradição nisso tudo: Jó passou o livro todo questionando a Teologia da Retribuição (o sofrimento do justo é algo injusto) e, como ele se manteve fiel, Deus retribuiu. Mas, talvez, devamos levar em consideração que Jó já não era mais o mesmo: antes ele conhecia Deus "só de ouvir falar", ou seja, seu conhecimento era indireto, baseado nas experiências dos outros; agora, ele "viu" Deus, de forma que seu conhecimento passou a ser direto, fundamentado nas próprias experiências. A Teologia da Retribuição, cheia de medos, deixou espaço para a absoluta liberdade diante de Deus. Os três amigos: o destino do malvado e a justiça de Deus Os capítulos 4-27 reproduzem o diálogo entre Jó e três de seus amigos, cujos nomes indicam serem provenientes da região de Edom. Tais nomes aparecem nas genealogias de Gn 25,2 e 36,11. Temã era uma região de Edom e seus habitantes tinham fama de cultivar a sabedoria: Jr 49,7; Br 3,22. Em hebraico, "Edom" significa "vermelho" e designa um povo e um território citados no Antigo Testamento. Trata-se de uma região com terreno avermelhado, que vai do sul do Mar Morto até o golfo de Ácaba, no que hoje é o território da Jordânia (McKENZIE, 1984, p. 250-251). Veja o mapa em que está situada a região do Edom, no site disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2011.

O conjunto está organizado em três ciclos, cada um dos quais com um discurso de cada amigo. Centro Universitário Claretiano

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Quadro 3 Amigos de Jó. AMIGOS:

CAPÍTULOS:

Elifaz, de Temã

4-5. 15. 22

Bildad, de Suás

8. 18. 25

Sofar, de Naamat

11.20

entre um discurso e outro, as respostas de Jó.

Os três amigos apresentam os argumentos da Teologia tradicional, isto é, a Teologia da Retribuição: • Elifaz argumenta a favor do bom, do destino do justo, mas acaba por contradizer-se: "Recordas-te de algum inocente que tenha perecido?" (4,7). Todavia, a retidão do homem não é uma vantagem diante de Deus: "Que importa a Deus que sejas justo?" (22,3). • Bildad discorre sobre o destino trágico do homem malvado. O homem é mau por natureza e, por isso, Bildad diz a Jó para não se justificar. Agindo assim, Jó condena a Deus, pois dá a entender que Ele é injusto, uma vez que o castigou sem culpa (Jó 8). • Sofar também aborda o destino trágico do malvado (Jó 11,13-20). O homem é incapaz de dialogar com Deus e é seu inimigo pessoal. Isso porque não conhece si mesmo e, muito menos, os desígnios de Deus. Só há uma saída para Jó: reconhecer-se pecador e não insistir na sua inocência. O arrependimento pode mudar o destino. Jó responde a seus amigos, criticando a Teologia da Retribuição: ele quer discutir com o próprio Deus. Enquanto Deus não lhe responder, Jó considerará seu sofrimento sempre injusto: ele tem certeza de sua inocência (21,4; 23,2). Por isso, o pano de fundo e o escopo de todo o livro é "ver Deus" (42,5), não o Deus da Teologia da Retribuição pregado pelos amigos, mas o verdadeiro Deus, experimentado pessoalmente. Em outras palavras, trata-se de contemplar o mistério divino. Para isso, porém, é necessário, antes, experimentar o mistério humano, o mistério do mal.

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O livro de Jó traz a história de um homem, de um fiel e de um sofredor. Em outras palavras, a história dos limites humanos: "O homem, nascido de mulher, vive breve tempo, cheio de inquietação. Nasce como a flor e murcha; foge como a sombra e não permanece" (14,1-2); "Quanto mais aqueles que habitam em casas de barro, cujo fundamento está no pó, e são esmagados como a traça" (4,19). Limites não só metafísicos, mas também morais: "Seria, porventura, o mortal justo diante de Deus? Seria, acaso, o homem puro diante do seu Criador?" (4,17; cf. 14,4; 15,16). O livro traz, também, a história de um homem fiel, que busca a Deus, sem os atalhos da Teologia oficial, codificada e simplista. Por isso, no final do livro, Deus, ignorando as blasfêmias e os protestos, prefere a fé nua de Jó à religiosidade dos amigos teólogos: "Tendo o Senhor falado estas palavras a Jó, disse também a Elifaz de Temã: 'Estou indignado contra ti e contra os teus dois amigos; porque não falastes corretamente de mim, como fez o meu servo Jó’." (42,7). Disso nasce um forte sentido da imagem e presença de Deus na criação: "Na sua mão está a alma de todo ser vivente e o espírito de todo o gênero humano" (12,10.14-15). O caminho de Jó é o caminho do fiel que, no meio da noite, na desgraça sem motivo, alcança a luz. Não se trata de mera resignação ante o poder transcendente de Deus, mas plena aceitação do mistério e confiante entrega de seu próprio destino nas mãos de Deus (40,4-5). Além disso, o livro traz a história de um homem sofredor. Trata-se de uma teologia madura, na qual o sofrimento comprova a fidelidade a Deus e à vida. Jó escolhe o caminho mais difícil para falar de fé, para exaltar a necessidade da fé. A descrição dos sofrimentos conduz ao mistério de Deus. Assim, Jó passa o livro todo desafiando Deus e, não obstante, suas atitudes não são de um infiel, mas de um fiel sofredor: 1) Jó reconhece a transcendência e a onipotência de Deus: "Deus não é homem como eu..." (9,32; cf. 10,5; 12,10.14.22-23; 23,13). Centro Universitário Claretiano

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2) Jó reconhece sua condição de criatura: "Tuas mão me formaram e me modelaram [...]" (10,8; cf. 10,3.8-12, paralelo a Gn 2,7). 3) Jó acusa Deus: ele é a causa de sua ruína: Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia, se fosse íntegro, declarar-me-ia culpado... Por isso eu digo: é a mesma coisa! Ele extermina o íntegro e o ímpio! (9,20-22; cf. 10,16-22; 7,19-20; 14,3).

4) Segundo Jó, Deus persegue-o como se fosse seu inimigo: Por que escondes o rosto e me tens por teu inimigo? Queres aterrorizar uma folha levada pelo vento? E perseguirás a palha seca? Pois decretas contra mim coisas amargas e me atribuis as culpas da minha mocidade. Também prendes os meus pés no cepo, vigias todos os meus passos e examinas as minhas pegadas (13,24-27; cf. 16,9-14; 19,6-12.22).

5) Jó pede e espera um juízo justo: "Mas é a Shaddai que eu falo, a Deus eu quero apresentar minhas queixas" (13,3; cf. 9,3.32; 23,3-4.7). Apesar de todo o sofrimento, ele acredita na justiça de Deus: Os meus pés seguiram as suas pisadas; guardei o seu caminho e não me desviei dele. Do mandamento de seus lábios nunca me apartei, escondi no meu íntimo as palavras da sua boca (23,11-12).

6) Por isso, ele entrega sua causa nas mãos de Deus: "Todavia, o meu caminho ele o conhece! Que me ponha no crisol, dele sairei como ouro puro" (23,10). 7) Jó está no limite e não vê mais sentido na sua vida. Ele amaldiçoa sua própria existência: Pereça o dia em que nasci e a noite em que se disse: 'Foi concebido um homem!’ Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz. Reclamem-no as trevas e a sombra de morte; habitem sobre ele nuvens; espante-o tudo o que pode enegrecer o dia (3,1-10).

O momento presente é horroroso (cf.3,24-26) e Jó perdeu o gosto pela vida (10,1); o futuro é pior, pois Deus fechou-lhe as saídas (3,23). Além disso, Jó anseia pela morte: Quem dera que se cumprisse o meu pedido, e que Deus me concedesse o que anelo! Que se dignasse a esmagar-me, que soltasse a sua mão e acabasse comigo! Isto ainda seria a minha consolação, e

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saltaria de contente na minha dor, que ele não poupa; porque não tenho negado as palavras do Santo (6,8-10).

No entanto, renova sua esperança em seu vingador: o mesmo Deus que chama de seu inimigo: Eis que meu vingador está vivo e que no fim se levantará do pó: depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. Aquele que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho. Dentro de mim consomem-se meus rins (19,25-27).

O mistério de Deus e a verdadeira religião Deus responde a Jó no meio da tempestade; todo o livro preparava a teofania. Depois de ser tantas vezes desafiado, Deus responde a ele nos capítulos 38-41. Deus faz dois discursos que deixam Jó calado. Na verdade, não é Deus, mas o autor que põe na boca de Deus suas próprias palavras, ideias e convicções, para responder às perguntas do livro: • Primeiro discurso (capítulos 38-39): Deus responde às perguntas com outras perguntas, que fazem Jó percorrer a criação para constatar que ele tem uma sabedoria limitada. Diante da sabedoria de Deus, Jó deve se calar. • Segundo discurso (capítulos 40-41): Deus demonstra a Jó como é difícil governar o cosmo. O homem não pode se salvar nem se justificar, pois não é Deus. E Jó, novamente, reconhece sua ignorância. A verdadeira Sabedoria A poesia sapiencial do capítulo 28 prepara o desafio dos capítulos 29-31. Até o capítulo 27, Jó e seus amigos defendem a própria sabedoria e criticam-se mutuamente. Quem tem razão? O capítulo 28 apresenta a verdadeira sabedoria: ela é inacessível ao homem, seja neste mundo, seja nas sombras da morte: Está oculta aos olhos dos mortais e até às aves do céu está escondida. A perdição e a morte confessam: 'O rumo de sua fama chegou até nós’. Só Deus conhece o caminho para ela, só ele sabe o seu lugar (28,21-23). Centro Universitário Claretiano

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Portanto, só Deus é sábio! O quarto amigo: alguém em cima do muro Surge, então, um novo personagem, sem apresentação prévia: Eliú. Ele fala nos capítulos 32-37, mas parece que nem Deus nem Jó dão muita importância à sua fala. Acredita-se que um redator tardio tenha introduzido esse quarto amigo para fazer um pouco de média e aliviar a tensão. Seguindo esse raciocínio, Eliú não está contra nem a favor de Jó; também não está contra nem a favor dos três amigos. Ele quer repropor a Teologia da retribuição: o sofrimento é uma estratégia educativa que Deus usa para tornar o homem melhor. O ser humano tem duas escolhas: aceitar a correção, isto é, converter-se, ou morrer. Tem-se, pois, a impressão de que o autor dos capítulos 32-37 não entendeu nada da discussão.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE JÓ No livro de Jó, articulam-se, continuamente, dois aspectos da vida humana: o desespero e a esperança. Jó é o personagem no qual esses dois sentimentos se misturam. Pode-se dizer, então, que são dois "Jós". Quadro 4 O personagem Jó. Mito primi!vo

Jó paciente

esperança e louvor

predomina a fé

Poema

Jó rebelde

desespero e blasfêmia

predomina a razão

Ao analisar o quadro 4, podemos notar que, no mito primitivo, encontramos um Jó paciente, cheio de esperança e louvor; nesse primeiro Jó, predomina a fé. Já no poema, deparamo-nos com o segundo Jó, rebelde, cheio de desespero e de blasfêmia, no qual predomina a razão. O livro leva-nos, pois, a descobrir o verdadeiro rosto de Deus. Para tanto, é preciso uma fé pura. Deus não se

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enquadra nos esquemas humanos, nem é prisioneiro da Teologia da Retribuição. Infelizmente, a concepção popular conhece somente o Jó paciente. E, mesmo quando lê o poema, enxerga o Jó paciente, capaz de tudo suportar. Na verdade, o livro discute as questões-limite da vida humana para responder a uma pergunta de fundo: em meio ao absurdo da vida, como crer em Deus e em qual Deus crer? Em outras palavras: você continuaria fiel a Deus, mesmo que não ganhasse nada com isso? Contra os raciocínios esquematizados de seus amigos, Jó responde: "É necessário crer em Deus por nada, isto é, gratuitamente, sem interesse". Para ver o rosto de Deus, é necessário uma autêntica experiência de fé.

11. O LIVRO DE QOHÉLET ECLESIASTES O livro de Qohélet (Eclesiastes) questiona e critica a Teologia da retribuição, tomando como base as contradições da vida. Na Bíblia hebraica, o livro de Qohélet pertence ao conjunto dos "Cinco pequenos livros" (em hebraico, meguillot) lidos nas cinco grandes festas da nação judaica: Cântico (lido na festa da Páscoa), Rute (em Pentecostes), Ester (em Purim, uma espécie de carnaval), Lamentações (na recordação da queda de Jerusalém sob os babilônios) e Qohélet (na festa das Tendas). Título Em nossas Bíblias, o livro de Qohélet, normalmente, é chamado de Eclesiastes. Mas é muito fácil confundir com o Eclesiástico, isto é, o Sirácida. Para evitar qualquer possível confusão, utilizaremos o título da Bíblia hebraica, Qohélet, cuja abreviatura é "Qo" (para Sirácida, utilizaremos "Sir"). Centro Universitário Claretiano

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Na Bíblia hebraica, portanto, o livro de que falamos nesta unidade se intitula Qohélet. Todavia, quando foi traduzido para o grego, o livro passou a ser denominado "Eclesiastes". Essa passagem é fácil de entender: "qohélet" deriva do verbo "qahal", que significa "reunir a assembleia, falar a uma assembleia" (em grego, "assembleia" diz-se "ecclesia"). O termo "qohélet" indica alguém que tem a capacidade de falar para a assembleia e de convencê-la com a sua pregação. Ou seja, é o apelido de um pregador tão eloquente que chega a ser a retórica em pessoa. Em nosso estudo, quando nos referirmos ao autor do livro, usaremos "Qohélet" (forma completa); diferentemente, quando estivermos falando o livro, usaremos "Qo" (abrevitatura).

Data Segundo José Líndez (1999), o livro foi escrito entre os séculos 3º e 2º a.C. Observe, a seguir, alguns argumentos em favor dessa data: • A língua usada é um "hebraico coloquial", que alguns autores consideram dialeto hebraico surgido graças à influência de outras línguas durante o período persa (538333a.C.), e que teria durado até a segunda guerra judaica (132-135 d.C). • Foram encontrados fragmentos de Qohélet em Qumran. Esses fragmentos foram datados do ano de 150 a.C. • Jesus Ben Sira (autor do Sirácida/Eclesiástico, em torno de 180 a.C.) conhece e cita Qohélet. Autor Em Qo 1,1, lemos: "Palavra de Qohélet, filho de Davi, rei de Jerusalém". Mas... quem é Qohélet? Talvez, seja melhor perguntar "o que é um Qohélet"?

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Como já dissemos, Qohélet é um apelido, não o verdadeiro nome de uma pessoa. Por isso, quando nos perguntamos sobre quem escreveu Qo, queremos saber, na verdade, quem tinha o apelido de "Qohélet". O nome de Salomão não aparece ao longo do livro, embora as indicações sejam claras: "Eu, Qohélet, fui rei em Israel em Jerusalém" (1,12; cf. 1,13-2,11;). Todavia, vários fatores derrubam a possibilidade de Salomão ter escrito esse livro. Em primeiro lugar, podemos mencionar a data de composição do livro (séculos 3-2 a.C.), a língua usada (o hebraico coloquial do período persa) e a postura pessimista do autor diante da vida (algo que não combina com a imagem que temos de Salomão). Além disso, o livro critica a tirania dos reis, a corrupção dos magistrados, a opressão do povo e a consequente miséria (Qo 3,16; 4,1; 5,7; 8,9; 10,5-7; 10,16-17), coisas que o rei Salomão jamais denunciou. Em contrapartida, a tradição salomônica serviu para garantir a Qohélet um lugar no cânon das Escrituras. Cabe, portanto, a pergunta: quem é esse que se esconde atrás do nome fictício de "Qohélet"? Uma primeira informação é-nos dada pelo discípulo de Qohélet, que, provavelmente, editou o livro e escreveu algumas linhas à guisa de epílogo: Além de ter sido sábio, Qohélet também ensinou o conhecimento ao povo; ele ponderou, examinou e corrigiu muitos provérbios. Qohélet procurou encontrar palavras agradáveis e escrever com propriedade palavras verdadeiras (12,9-10).

Qohélet, portanto, era um mestre de sabedoria, um pedagogo interessado em educar o povo. Encontramos, também, outras características suas ao longo do livro: ele é alguém da aristocracia, provavelmente de Jerusalém; é um intelectual que conhece bem a filosofia grega; para chegar a esse conhecimento, Qohélet recebeu uma sólida formação intelectual, religiosa e profissional e tornou-se aquilo que hoje Centro Universitário Claretiano

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nós chamaríamos de "intelectual orgânico", isto é, um mestre da sabedoria que investiga, constantemente, a realidade e transmite ao povo suas conclusões (cf. 1,13.14; 3,10; 4,1.4; 7,15.23; 8,16). É bem possível que, em Jerusalém, esteja à frente de uma escola para a formação de jovens da classe alta (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999; MORLA ASENSIO, 1997). Local de composição Tudo indica que Qo foi escrito na Palestina, mais especificamente em Jerusalém: • Claras referências ao culto praticado em Jerusalém: templo, sacrifícios, oração e votos: 4,17-5,4. • Referências diretas à cidade de Jerusalém: 1,12; 2,7.9. • Fenômenos naturais que indicam o clima e as estações da Palestina: vento, chuva, nuvens: 1,4-7; 11,3-4. Fontes inspiradoras Muito foi falado acerca das influências que Qohélet teria recebido das culturas dos povos vizinhos (Egito, Mesopotâmia, Grécia). Todavia, como acontece hoje, as ideias circulavam livremente e é difícil afirmar uma dependência direta. No máximo, podemos falar em termos genéricos e em contatos ocasionais. De particular interesse é a "dependência" da cultura grega, visto que o livro é influenciado pelo helenismo, mas isso acontece porque o pensamento grego fazia parte do ambiente cultural de Jerusalém. Com efeito, no século 3, as escolas de cultura helenística penetraram na Palestina. Um exemplo disso é a visão cíclica da história: "O que foi será; o que se fez se tornará a fazer. Nada há de novo debaixo do sol" (1,9). Em contrapartida, é necessário não perder de vista que Qohélet se apoia muito mais no Antigo Testamento do que nos filósofos do Antigo Oriente Próximo: Qo 4,13-16 relaciona-se com Ex

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1,8-2,22; Qo 7,7 com Ex 23,8 e Dt 16,19; Qo 5,3-6 com Lv 5,4, Dt 23,21-23 e Nm 15,25; e Qo 3,14 com Dt 4,2 e 13,1. Embora não se possam estabelecer dependências literárias nem referências de vocabulário, o livro de Qohélet partilha alguns temas com o livro de Jó: 1) a desvalia do homem ao nascer: "Como sai do ventre materno, assim voltará, nu como veio: nada retirou do seu trabalho que possa levar nas mãos" (Qo 5,14 e Jó 1,21). 2) a sorte do aborto: "Pois eu digo que um aborto é mais feliz que eu" (6,3-5 e 3,11-16). 3) a concepção do sheol (a morada dos mortos), em que toda lembrança é apagada: "Os vivos sabem pelo menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento [...]" (Qo 9,5-7 e Jó 14,13-21). 4) a incerteza humana sobre a obra de Deus: "Assim como não conheces o caminho do vento ou do embrião no seio da mulher, também não conheces a obra de Deus, que faz todas as coisas" (Qo 11,5 e Jó 38,2-4; cf. Qo 12,7 e Jó 34,14).

12. ESTRUTURA Qohélet não deixou marcas claras de como organizou seu livro. Os estudiosos também não conseguiram entrar num acordo sobre isso. As várias tentativas (insuficientes) de explicação: folhas soltas que tiveram sua ordem trocada; intervenção e acréscimos feitos por vários revisores; justaposição de sentenças isoladas, de acordo com temas, palavras-chave e estilo; plena unidade e coerência lógica do pensamento; amontoado de anotações que Qohélet fazia dia após dia e que nunca agrupou de modo sistemático, não por preguiça, mas intencionalmente. Em contrapartida, se intencional, a falta de sistematização do livro talvez possa ser assim explicada: visto que Qohélet quer Centro Universitário Claretiano

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criticar uma estrutura de pensamento, a Teologia da retribuição, e demonstrar que a vida não se encaixa em um esquema rígido e infalível, ele, propositadamente, escreve um livro que também escapa a qualquer tentativa de esquematização. E devemos admitir que Qohélet conseguiu: até agora, nenhum especialista foi capaz de encontrar a lógica de Qo.

13. CONTEÚDO TEOLÓGICO Se, por um lado, o livro resiste a qualquer tentativa de se estabelecer uma estrutura do conjunto, por outro, é fácil perceber que todas as questões discutidas por Qohélet podem ser agrupadas em dois grandes temas interligados: hébel e a Teologia da retribuição. Tese fundamental e método de pesquisa Em 1,2, Qohélet expõe a tese fundamental de todo o livro: "tudo é hébel". Mas o que significa essa palavra? Vejamos. A palavra hebraica "hébel", a princípio, indica "o vapor que se dissolve, o vento impalpável, a névoa, a fumaça, o nada", ou seja, algo enganoso, insubstancial, vazio e passageiro. No grego, "hébel" foi traduzido por "mataiótes", que, em latim, equivale a "vanitas", isto é, "vaidade". A frase "vaidade das vaidades" é um superlativo hebraico e pode ser entendida como "a suprema vaidade", "a maior vaidade que existe" e, portanto, "o pior dos enganos", "a coisa mais absurda, sem sentido e sem a menor possibilidade de ser verdadeira", "algo que não vale a pena lutar para conseguir". De modo mais radical, podemos dizer: "Mentira das mentiras, é tudo mentira!". Qohélet toma como base, pois, sua própria experiência e, também, a dos outros. Em outras palavras, ele faz uma pesquisa de campo (cf. 2,12-17: "vi, examinei, poderei, entendi, refleti, odiei"). Ele aplica os esquemas ditos por todos que dizem que funcionam e avalia os resultados, que são decepcionantes: nada acon-

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tece como se esperaria. Eis porque, em sua opinião, "tudo é hébel (vapor, névoa, engano, vaidade etc.)". As riquezas são hébel Em 5,6-6,9, Qohélet contrasta riqueza e pobreza, satisfação e insatisfação, fugacidades e vantagens: "Coma muito ou coma pouco, o sono do operário é gostoso; mas o rico saciado nem consegue adormecer" (Qo 5,11). Portanto, ser rico é hébel, principalmente quando se pensa no herdeiro das riquezas: Observo ainda outra vaidade debaixo do sol: alguém sozinho, sem companheiro, sem filho ou irmão; todo seu trabalho não tem fim, e seus olhos não se saciam de riquezas: 'Para quem trabalho e me privo da felicidade?’ Isso também é vaidade e um penoso trabalho (4,7-8).

Qohélet apresenta o homem solitário, ganancioso, sem desfrutar de descanso. A pergunta retórica: "Para quem trabalho e me privo da felicidade?" traz implícita a resposta: para nada. Esse é o comportamento próprio do insensato (cf. 1,3). As ações humanas são hébel Segundo Qohélet, a atividade humana, principalmente a que fatiga o homem, é hébel, é "correr atrás do vento". Até mesmo aquela que obtém êxito: Coloquei todo o coração em investigar e em explorar com a sabedoria tudo o que se faz debaixo do sol. É uma tarefa ingrata que Deus deu aos homens para com ela se atarefarem. Examinei todas as obras que se faz debaixo do sol. Pois bem, tudo é vaidade e correr atrás do vento! (1,13-14). Todo o trabalho do homem é para sua boca e, no entanto, seu apetite nunca está satisfeito. Que vantagem tem o sábio sobre o insensato, ou sobre o pobre aquele que sabe conduzir-se diante dos vivos. [...] também é vaidade e correr atrás do vento (6,7-9; cf. 4,7-8).

Tudo quanto se pode desfrutar é hébel Travestido de Salomão, o autor fala de suas riquezas, de seu poder e de sua glória (2,3-11), e termina fazendo uma confissão: Centro Universitário Claretiano

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Ao que os olhos me pediam nada recusei, nem privei meu coração de alegria alguma; sabia desfrutar de todo o meu trabalho, e esta foi minha porção em todo o meu trabalho. Então examinei todas as obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de proveitoso debaixo do sol (2,10-11).

Qohélet não nega ter experimentado alegria e gozo como "porção/paga do trabalho", mas não deixa de perguntar: "Compensa trabalhar tanto?". E a resposta que dá a si mesmo é: "Eis que tudo era vaidade!". A sabedoria e a nescidade são hébel Qohélet fala da decepção de ter buscado a sabedoria: Pensei comigo: aqui estou com tanta sabedoria acumulada [...]; minha mente alcançou muita sabedoria e conhecimento. Coloquei todo o coração em compreender a sabedoria e o conhecimento, a tolice e a loucura, e compreendi que tudo isso é também procura do vento. Muita sabedoria, muito desgosto; quanto mais conhecimento, mais sofrimento (1,16-18).

Em 2,12-15, Qohélet pergunta-se: "O que diferencia o sábio do néscio, uma vez que os dois têm o mesmo fim?". Mais adiante, porém, em 7,5-6, voltando a esse confronto, Qohélet tem uma visão um pouco mais positiva do sábio: o riso do insensato é como os gravetos crepitando debaixo de um caldeirão, ou seja, muito barulho, mas pouco efeito. O poder e o seu contexto são hébel Em 9,13-16, encontramos uma parábola cuja finalidade é mostrar que, sem o apoio do poder do rei, a sabedoria e os sábios são ineficazes: Também vi essa sabedoria debaixo do sol, e ela me parece importante: Havia uma cidade pequena com poucos habitantes. Um grande rei veio contra ela, cercou-a, levantou contra ela obras de assédio. Nela encontrou um homem pobre e sábio, que salvou a cidade com sua sabedoria, mas ninguém se lembrou deste homem pobre. Eu digo: Mais vale a sabedoria que a força, mas a sabedoria do pobre é desprezada e ninguém dá ouvido às suas palavras.

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Observemos os detalhes dessa parábola: grande rei versus pequena cidade; poucos habitantes versus muitos soldados; poder real versus homem pobre. A moral da parábola está no v. 16: "Mais vale a sabedoria que a força", que equivale ao que disse Jesus Ben Sira: "Quando um rico fala, todos se calam e elevam até às nuvens a sua palavra. Quando o pobre fala, dizem: 'Quem é este?’" (Sir 13,23). Sobre o poder, confira, também, Qo 4,13-16.

A vida humana é hébel Qohélet ressalta a brevidade da vida do homem, a fragilidade e a futilidade de sua efêmera vida: "Quem sabe o que convém ao homem durante a sua vida, ao longo dos dias contados de sua vida de vaidade, que passam como sombra?" (6,12a; cf. 2,23-24). Ora, se tudo é hébel (cf. 1,2; 12,8), é inevitável perguntar: que vantagem há para o homem? Pode ele ter alguma alegria nesta vida? Qohélet indica três coisas: 1) Ver o bom resultado do próprio esforço: 2,24; 5,17-18. 2) O gozo que deriva de tudo o que lhe dá prazer: amor, boa comida etc.: 3,12-13; 9,9. 3) As coisas belas da criação e a alegria de estar vivo: 11,7; 9,4. Mas tudo isso é dom de Deus, ou seja, não existe a retribuição automática nem uma receita automática para felicidade. Teologia da Retribuição Na perspectiva de Qohélet, o cumprimento da retribuição deve se dar ainda antes da morte, pois não existe vida além desta. Nisso, Qohélet e a Teologia da Retribuição concordam. Mas esse acordo não continuará por muito tempo. Em primeiro lugar, Qohélet afirma que a morte iguala a todos; portanto, a retribuição não é tão justa assim. Eis seus argumentos:

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1)

Sábio e insensato têm o mesmo destino (2,14-16): ambos não só morrerão, mas também serão totalmente esquecidos. Então, por que ser sábio? 2) Homens e animais têm a mesma sorte (3,18-21): "Todos caminham para o mesmo lugar" (3,20) ecoam "Todos os rios correm para o mar" (1,7). Por sua vez, 3,21 não se refere ao céu e ao inferno, mas ao melhor (subir) e ao pior (descer). O homem não é melhor que os animais. 3) Justos e injustos têm um destino comum (9,2-3): nem mesmo as qualidades morais servem para um destino melhor. Em cinco pares de antítese de cunho religioso – justo / injusto; puro / impuro; quem oferece sacrifício / quem não oferece sacrifício; bom / pecador; quem faz juramento / quem não faz juramento –, Qohélet quer provar que não existe retribuição alguma. A pergunta subjacente é: que comportamento seguir, se dá tudo na mesma? 4) O destino definitivo do homem é a aniquilação total (9,4-6.10): embora seja melhor estar vivo que morto (v. 4), isso não é uma grande vantagem. Se nos tempos de Qohélet já se falava de uma retribuição após a morte, ele nega-a veementemente. Como Qohélet sabe que os mortos não sabem nada? Por experiência, não pode ser. Mas é o que ele crê: a morte é o negativo da vida presente, e ninguém se lembrará dos que morreram: eles estão mortos na vida e também na memória. Qohélet afirma que não há retribuição na vida futura, mesmo porque ela não existe. E nesta vida há retribuição? A resposta de Qohélet: "Absolutamente não!". Ele conhece a tradição sapiencial de Israel (8,12a-13), mas, contemplando o dia a dia, constatou o contrário do que ela ensina: "Já vi de tudo em minha vida de vaidade: o justo perece na sua justiça, e o ímpio sobrevive na sua impiedade" (7,15; cf. 8,14). E arremata: "tudo é hébel". As injustiças imperantes fazem que seja preferível estar morto, e não vivo (4,1-3). Nisso, ele se parece com Jó e Jeremias. Cla-

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ro que Deus julgará justo e ímpio (3,16-17), mas quando? E qual a vantagem de quem está vivo sobre quem está morto? Melhor morrer que viver, e mais feliz ainda é quem nunca nasceu. Diante desse quadro, devemos perguntar: qual o fundamento da vida moral? A tradição de Israel apresenta Deus como garantia da Teologia da Retribuição e, portanto, são válidos os valores supremos: a própria vida, a justiça, a busca do bem e a fuga do mal. Mas, que valor tem tudo isso se nenhum desses valores garante ao justo qualquer vantagem, seja aqui ("debaixo do sol"), seja no além-morte? Para Qohélet, não há distinção entre justos e injustos: todos têm a mesma sorte. Por isso, não há "nada de novo debaixo do sol" (1,9;2,12;3,15). A doutrina da retribuição e o hébel de Qohélet Como vimos, a afirmação "Mentira das mentiras, é tudo mentira!" (Qo 1,2; 12,8) constitui a "tese fundamental" e o resumo de todo o livro de Qohélet. Não obstante a enorme disparidade dos assuntos e, por vezes, as contradições no pensamento, há uma constante no livro: Qohélet critica intensamente a crença segundo a qual "aqui se faz, aqui se paga". Por isso, juntando essas duas peças – a "mentira das mentiras" e a crítica à Teologia da Retribuição –, podemos perceber a que Qohélet se refere quando diz "é tudo mentira (hébel): a doutrina pregada pela Teologia da Retribuição". Tal como o autor de Jó, Qohélet passa ponto por ponto da doutrina da retribuição, mas não só o sofrimento (Jó), como também o sucesso, a fortuna, a riqueza. Qohélet avalia com sua experiência pessoal tudo o que lhe foi ensinado sobre o sucesso do justo e a desgraça do ímpio, sobre o destino do sábio e o destino do tonto, sobre a ação de Deus para garantir que a retribuição funcione, e sua conclusão é lapidar: "é tudo hébel, é tudo mentira". A riqueza não traz satisfação nem paz (5,9-11), não livra da Centro Universitário Claretiano

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angústia da morte (6,3-6) e ainda traz outras preocupações (2,1518; 6,1-2), sem falar que o justo pode morrer cedo e o ímpio viver longamente (8,11-13). No fim, nem tudo dá certo (4,7-8), e malvados podem ter a sorte dos justos, e vice-versa (7,15; 8,14). A morte iguala todos (2,15) e todos serão esquecidos (2,16-17). Em outras palavras, a retribuição é infalível só na teoria. Como diríamos hoje, a retribuição acontece só no mundo virtual. No mundo real, a iniquidade esmaga a justiça e o direito (3,16), e as muitas injustiças fazem preferir estar morto, e não vivo (4,1-3). Sem dúvida, Deus julgará o justo e o injusto (3,17), mas quando? Onde? Por isso, essa história de que "aqui se faz, aqui se paga" é "mentira das mentiras... é tudo mentira!"

14. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. 1) Leia Jó 24,1-12 e atualize esse texto, comparando-o ao que anda acontecendo nos dias de hoje, principalmente no Brasil. 2) Na música Aqui se faz aqui se paga, Sá, Rodrix e Guarabyra defendem a ideia de que a doutrina da retribuição funciona: Aqui se faz, aqui se paga Você atira e a bala volta a seu peito Cada mentira tem seu preço na vida E a verdade é como fêmea ferida Que ataca na calada... Aqui se faz, aqui se paga Quem rouba o doce leva a praga da bruxa Às vezes nem todo o dinheiro do mundo Vale a revelação da triste certeza De estar sozinho à mesa Hoje você tem o mundo inteiro Hoje você pode mais

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Hoje você tem tempo e dinheiro Hoje é você quem faz De repente, você não é mais inocente O mundo te bate de frente E a vida te pega por trás Aqui se faz, aqui se paga Você jurava que não tinha perigo Mas o castigo sempre vem a cavalo E o xerife sempre acorda mais cedo Você tem medo e finalmente naufraga Aqui se faz, aqui se paga 3) Como vimos nesta unidade, para as mesmas situações descritas nesta música, Qohélet tem uma opinião totalmente diferente. Encontre no livro de Qohélet/Eclesiastes versículos em que, para essas mesmas situações, o sábio nega que a retribuição funcione.

15. CONSIDERAÇÕES Retomemos um pouco o outro livro que estudamos nesta unidade, o de Qohélet, que, normalmente, é considerado um pessimista. Mas será mesmo? Não seria ele um realista, embora extremado? Sem dúvida, Qohélet é um cético, isto é, alguém que acredita pouco (ou nada) em discursos e explicações teóricas da realidade. Mas seu ceticismo também é teórico e sua atitude não chega a ser profética. Antes, parece demonstrar até certo conformismo, e a causa pode ser simples: sua vida era tolerável e ele jamais afirma ter sido vítima de alguma injustiça. Aliás, ele jamais fala do que chamaríamos hoje de "injustiça social". Os injustos são sempre os indivíduos, não o sistema (o discurso dos profetas é diferente). Em outras palavras, embora Qohélet rompa com a Teologia da retribuição, ele permanece um conservador: não nas ideias, mas na ação. Dessa forma, chegamos ao término de nossa terceira unidaCentro Universitário Claretiano

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de. Na próxima unidade, estudaremos o livro dos Salmos.

16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Job. Madrid: Cristiandad, 1983. (Nueva Biblia Española). ARTUSO, V. Anotações para curso de literatura sapiencial. Ponta Grossa, 2000. (texto não publicado). CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). DIAS DA SILVA, C. M. Universos virtuais bíblicos. Estudos bíblicos. 107 (2010). LEVEQUE, J. Jó: o livro e a mensagem. São Paulo: Paulinas, 1987. (Cadernos bíblicos, 42). McKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1984. MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). STORNIOLO, I. Como ler o livro de Jó. São Paulo: Paulinas, 1992. (Como ler). TERNAY, H. de. O livro de Jó. São Paulo: Vozes, 2001. (Comentário Bíblico AT). VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Eclesiastes ou Qohélet. São Paulo: Paulus, 1999. (Grande Comentário Bíblico). ______. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25). WRIGHT, A. G. Eclesiastes. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Eds.). Novo comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã/ Paulus, 2007.

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EAD Estudo do Livro da Sabedoria

4 1. OBJETIVOS • Apresentar um estudo do livro da Sabedoria. • Conhecer e analisar um material bíblico composto na diáspora.

2. CONTEÚDOS • Questões introdutórias: canonicidade, título, data, autoria e local de composição. • Estrutura e conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 1) Fique atento a todo o conteúdo desta unidade, na qual você encontrará conceitos importantes para sua aprendizagem.

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2) Volte às unidades anteriores para entender e recordar os conceitos propostos. Consulte sempre o Glossário de Conceitos quando surgirem ideias que ainda não foram completamente assimiladas.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 3, tivemos a oportunidade de estudar os livros de Jó e Qohélet, conhecendo: título, autor, livro, data, estrutura, gêneros literários e, por fim, o conteúdo teológico presente em cada um desses dois livros. Agora, destinamos esta quarta unidade da nossa disciplina ao estudo do livro da Sabedoria.

5. SABEDORIA Antes de começarmos nossos estudos acerca do livro da Sabedoria, é necessário lembrar que ele não consta na Bíblia protestante, uma vez que Lutero seguiu o cânon do judaísmo. Para entendermos isso, temos de voltar ao primeiro século da era cristã. No ano 70 d.C., Jerusalém foi invadida pelos romanos. Vinte anos depois, os líderes religiosos judaicos reuniram-se na cidade de Jâmnia para reconstruir o judaísmo. Naquela ocasião, eles definiram que só seriam canônicos os livros escritos em hebraico ou aramaico, que datassem de antes de Esdras (398 a.C.) e tivessem sido escritos na terra de Israel. O livro da Sabedoria foi escrito em grego, na cidade de Alexandria, após o ano 50 a.C. Por isso, ficou fora do cânon judaico, apesar de ser muito judaico. Além disso, o autor usa frequentemente a Septuaginta para citar o Antigo Testamento. Título Nos manuscritos da Septuaginta, o livro recebe o nome de "Sophia Salomonos" (Sabedoria de Salomão). Na Vulgata, S. JerôCentro Universitário Claretiano

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nimo usou "Liber Sapientiae" (Livro da Sabedoria). Atualmente, o livro é conhecido por esses dois títulos. Data Em termos históricos, o período mais adequado para datar o livro da Sabedoria é entre os anos 30 a.C. e 14 d.C. No ano 30 a.C., Augusto torna-se o único senhor dos romanos, e, após longo período de batalhas, o Egito torna-se uma província romana. Para os judeus no Egito, essa conquista foi favorável em todos os sentidos: Augusto garantiu-lhes o direito de formarem uma comunidade autônoma, regida por suas leis religiosas. Nesse período, a comunidade judaica de Alexandria foi florescente e cultivou as artes e as letras, bem como lutou para conservar a própria cultura e para se manter no mesmo nível sociocultural da grande cidade de Alexandria (cf. VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1995, p. 49). Autor Apesar do título da Septuaginta ("Sophia Salomonos") e de alguns textos do livro (7,7-11; 9,7-8.12), sabemos, seguramente, que o livro da Sabedoria não foi escrito por Salomão. As razões são simples. Em primeiro lugar, devemos levar em conta a chamada "pseudonímia": por uma série de motivos, o verdadeiro autor oculta seu nome e atribui sua obra a outra pessoa, normalmente um personagem famoso. Trata-se de algo muito comum no período de composição dos escritos bíblicos. Segundo, encontramos, no final do livro, um encorajamento endereçado aos judeus que sofrem perseguições. No período de Salomão, não houve nenhuma perseguição aos judeus. Em terceiro lugar, se Salomão fosse o autor, o livro da Sabedoria provavelmente estaria no cânon judaico.

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Enfim, a quarta e última razão: o ambiente do livro supõe o mundo helenístico, isto é, algo muito posterior ao reinado de Salomão. O que podemos dizer do autor, com certa segurança, é que ele era um judeu "apaixonado pelas escrituras", que tinha uma fé clara no Deus único, todo-poderoso e soberano. O autor era evidentemente mestre num dos centros judaicos de ensino de Alexandria, bem informado da cultura contemporânea e comprometido em demonstrar a importância dos princípios do judaísmo para os futuros líderes intelectuais do seu povo (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1995, p. 44).

Local de composição Tudo indica que o berço do livro da Sabedoria é o Egito, mais precisamente em Alexandria, onde havia uma grande comunidade de judeus na diáspora. A doutrina do livro da Sabedoria assemelha-se à de outras obras de judeu-alexandrinos do mesmo período. Além disso, também apontam para Alexandria: a comparação de Israel com o Egito (Sb 11-19) e a adoração de animais (zoolatria), algo muito comum no Egito (Sb 13-15). Não sabemos com exatidão quando os judeus se estabeleceram em Alexandria. Segundo Flávio Josefo (Guerra Judaica II, 487), foi o próprio Alexandre Magno quem permitiu que eles ali se estabelecessem com os mesmos direitos civis que os gregos, isto é, eles poderiam viver segundo as leis e os costumes próprios herdados dos antepassados. Flávio Josefo nasceu em Jerusalém, em 37 ou 38 d.C. e morreu em 102 ou 103 d.C., em Roma. Era filho de uma rica família da aristocracia sacerdotal asmoneia. Morando em Roma, Josefo escreveu extensa obra sobre os judeus e sobre a guerra judaica contra Roma: A Guerra Judaica, em sete livros, entre 79 e 81 d.C.; Antiguidades Judaicas, em vinte livros, em 93 d.C.; Contra Apião, um livro, em 95 d.C., e sua última obra, Autobiografia, após 95 d.C. Sua obra está disponível no link: . Acesso em: 5 jan. 2011.

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Segundo o filósofo judeu Fílon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.), a cidade de Alexandria estava dividida em cinco bairros, todos designados pelos nomes das letras hebraicas. Dois deles eram chamados de "bairros judaicos", graças ao grande número de judeus que ali habitavam (WRIGHT in BROWN, 2007, p. 1005-1006). Estrutura e mensagem O autor do livro da Sabedoria escreve para dois públicos: os judeus e os pagãos. Aos judeus, ele quer sustentar na fé e na fidelidade a Aliança; aos pagãos, ou seja, os não judeus, ele quer demonstrar que a sabedoria de Israel é superior à filosofia grega. Essa dupla finalidade do livro faz de Sabedoria um escrito "sapiencial-apocalíptico". Sapiencial porque quer instruir os pagãos; apocalíptico porque quer sustentar na fé os judeus. O resultado é um excelente exemplo de livro em que há uma articulada trama entre estrutura e mensagem, isto é, a maneira de se dizer algo está perfeitamente adequada ao conteúdo que se quer transmitir. O livro é composto de três partes que apresentam três aspectos da Sabedoria: Quadro 1 Três partes da sabedoria. 1)

1,1-6,21

A Sabedoria como norma de vida.

2)

6,22-9,18

A Sabedoria em si mesma.

3)

10-19

A Sabedoria na história da salvação.

Primeira parte: a Sabedoria como norma de vida Nessa primeira parte, há uma clara formulação da doutrina da imortalidade, que emerge após um lento processo de amadurecimento da fé judaica. Basicamente, o pressuposto é a certeza de que o justo não pode ir para o mesmo lugar do ímpio. O autor afirma: "As almas (vidas) dos justos estão nas mãos de Deus e nenhum tormento as atingirá [...] A esperança deles está cheia de imortalidade" (3,1-4).

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Quanto à formulação da doutrina da imortalidade, não se preocupe, pois esse assunto será bordado mais adiante.

Seguindo esse raciocínio, os justos têm a imortalidade já antecipada na história. Os ímpios, ao contrário, têm como destino o hades, isto é, o lugar das tribulações e dos sofrimentos eternos: Logo se tornarão um cadáver sem honra, um objeto de ultraje entre os mortos para sempre. Deus os precipitará mudos [...] serão completamente arruinados, ficarão no meio das dores e sua memória perecerá (4,19).

Segunda parte: a Sabedoria em si mesma O conceito de "sabedoria" passa a significar o relacionamento entre homem e Deus. A Sabedoria não se identifica com a Torah (Lei), como talvez preferisse Ben Sira. Ela também não se reduz à atividade cósmica de Deus. Em outras palavras, ela é a mediação entre Deus, o mundo e a história: A Sabedoria é mais móvel do que qualquer movimento e, por sua natureza, tudo atravessa e penetra. Ela é uma exalação do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente... Ela é a irradiação da luz eterna (7,24-27).

A Sabedoria é descrita e definida com um riquíssimo vocabulário, e as imagens usadas são ligadas à luz: emanação, glória, ofuscamento, irradiação, espelho, brilho, sol, astros etc. Esses conceitos servirão aos autores do Novo Testamento para formularem a Teologia do Verbo de Deus. Essa segunda parte é concluída com uma longa oração colocada da boca de Salomão para obter a Sabedoria (capítulo 9). Diante de tanta luz e grandeza, ao homem só resta reconhecer a própria pequenez: "Sou teu servo, filho de tua serva, homem frágil, de vida efêmera, incapaz de compreender a justiça e as leis" (9,5).

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Terceira parte: a Sabedoria na história da salvação Os capítulos 10-19 constituem um grande midrash sobre o Êxodo. Midrash é um gênero literário tipicamente judaico; trata-se de um comentário livre da escritura para aplicá-la a novas circunstâncias. Os capítulos 10-19 fazem uma releitura teológica e moral da libertação do Egito. O capítulo 10 fala de sete figuras patriarcais, desde as origens até o Egito: Adão, Noé, Abraão, Ló, Jacó, José e Moisés, e faz uma releitura ética da história anterior ao êxodo, com acento no termo "justo" (cf. 10,4.5.6.10.13). Cada minicena começa com "ela", isto é, a Sabedoria (10,1.5.6.10.13.15), que conduz a história e nela realiza a justiça divina. Os capítulos seguintes (11-19) descrevem a manifestação do juízo histórico de Deus, em sete acontecimentos ocorridos durante a saída do Egito. A antítese é forte: o que é castigo para o Egito (símbolo dos ímpios) é salvação para o povo eleito (símbolo dos justos). Graficamente: Tabela 1 Sete conhecimentos ocorridos durante a saída do Egito. PARA O POVO DE DEUS

PARA O EGITO

(SÍMBOLO DO JUSTO)

(SÍMBOLO DO ÍMPIO)

1)

11,5-14

água pura da rocha

águas ensanguentadas do Nilo

2)

16,1-4

codornizes

rãs

3)

16,5-14

serpente de bronze

gafanhotos e moscas

4)

16,15-29

maná

granizo e furacão

5)

17,1-18,4

luz

trevas

6)

18,5-25:

anjo libertador

anjo exterminador

7)

19,1-9:

o mar abre-se

o mar fecha-se

Fonte: (VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1995, p. 16-17; RAVASI, 1988, p. 1444-1446).

6. CONTEÚDO TEOLÓGICO Sabedoria e sabedoria Quando usamos a palavra "sabedoria", devemos estar atentos, pois pode tratar-se da sabedoria de Deus ou da sabedoria do

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ser humano. Graficamente, essa diferença pode ser assinalada com o uso das consoantes: Sabedoria (com maiúscula) para a divina; sabedoria (com minúscula) para a humana. A Sabedoria é um atributo de Deus, que se reflete, ainda que muito imperfeitamente, na sabedoria humana. Muitas vezes, as duas sabedorias confundem-se. Mas o livro da Sabedoria, graças à influência do ambiente cultural em que foi escrito, reflete um processo de compreensão teológica chamado de "personificação da Sabedoria". Em palavras simples: a Sabedoria, esse atributo ou qualidade de Deus, vai ganhando cada vez mais destaque, a ponto de se falar Dele como se fosse uma pessoa. Entretanto, a Sabedoria não chega a ter uma subsistência própria e independente de Deus. Com o advento de Jesus Cristo, os autores do Novo Testamento e os padres da Igreja vão continuar esse processo até afirmarem que "Jesus é a encarnação da Sabedoria Divina". Entretanto, essa afirmação será realizada quase dois séculos após o autor do livro da Sabedoria ter escrito sua obra. Sabedoria divina A personificação é um recurso estilístico utilizado com frequência pelo autor para falar da criação e do universo (5,17.20; 16,17.24; 19,6) e da própria palavra de Deus (18,14-16). No livro, porém, esse recurso estilístico atinge seu auge nos textos em que a "coisa" personificada é a Sabedoria. Ela pertence ao âmbito divino; ela é potência e espírito; ela e Deus são inseparáveis: "A Sabedoria não entra [...] nem habita [...]" (1,4); "A Sabedoria é um espírito amigo dos homens [...] não deixa impune o blasfemo [...]" (1,6). Na opinião do autor, a Sabedoria é o único meio que os governantes têm para fazer o que é justo (6,1-10). Ela é como a noiva: "Eu a quis e a busquei desde a minha juventude, procurei tomá-la como esposa, enamorado de sua formosura" (8,2; cf.8,3-8.16). Em 7,22-8,1, a Sabedoria é o "artífice do mundo", que penetra tudo e todas as coisas: "[...] tudo podendo, tudo abrangendo, Centro Universitário Claretiano

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que penetra todos os espíritos [...]" (7,23). Ela participa da natureza de Deus: "é um eflúvio do poder de Deus" (7,25). Em 7,22-24, o autor enumera 21 atributos da Sabedoria; essa quantidade de atributos não é acidental, mas intencional, pois indica a perfeição absoluta. Na numerologia judaica, 7 e 3 são números que indicam perfeição: 21 = 7 x 3, ou seja, a perfeição multiplicada pela perfeição.

No capítulo 10, a Sabedoria é como a representante do próprio Deus. Na tradição mais antiga, Deus ou seu anjo conduz e liberta Israel de inimigos e dificuldades; quem agora assume essa tarefa é a Sabedoria, pois ela está presente na história. A sabedoria humana Devemos recordar que a sabedoria humana não é algo independente e oposto à Sabedoria de Deus. Antes, a sabedoria humana faz parte da Sabedoria de Deus e, muitas vezes, ambas confundem-se. O homem pode adquirir a sabedoria por duas vias. Em primeiro lugar, com esforço e firmeza. Mas a sabedoria é, também, um dom de Deus, como é o sol, a luz e tudo de bom que alguém faz ou consegue (cf. 7,8-11). Portanto, Deus é o único que pode conceder a Sabedoria ao homem (8,21). Nesse sentido, Salomão é apresentado como uma pessoa igual a todas as outras, isto é, alguém que não nasceu sábio (cf.7,1-6). O capítulo 7 inspira-se em 1Rs 3,9-14: Salomão preferiu a sabedoria no lugar de poder, riquezas etc. Na natureza, não há nada mais belo do que a luz; contudo, a sabedoria supera-a: "Ela é mais bela do que o sol" (7,29). O sábio valoriza, pois, os dons terrenos, sabe que são bons e os compara à Sabedoria. O sábio não despreza nenhum conhecimento (7,17-21), mas sabe que somente a sabedoria pode levá-lo a

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ser autêntico homem, imagem e semelhança de Deus. Por esse motivo, o sábio prefere a sabedoria a todos os bens e conhecimentos. Espírito e espírito No livro da Sabedoria, o vocabulário para se falar do espírito (humano ou divino) é muito rico: sopro, vento suave, ar (leve), alento, respiração. Novamente, é preciso estar atento para se saber se o texto fala do espírito humano ou do Espírito de Deus: 2,3; 5,3.11.23; 15,11.16 etc. Quando, porém, se fala do Espírito de Deus, normalmente usa-se o antropomorfismo (Deus é descrito com características humanas): 1.5-7; 7,7.22; 9,17; 12,1 etc. É de particular interesse a relação entre espírito e sabedoria. Ambos equiparam-se na ação cósmica: um e outra preenchem a terra, dão consistência ao universo e governam o cosmo e a história (1,7; 8,1; 10,1-19,22). Originalmente, porém, são duas noções separadas: espírito (= vento, sopro) pertence à natureza; sabedoria é uma qualidade humana. Todavia, como esses dois conceitos são aplicados também a Deus, não é difícil aproximá-los a ponto de, muitas vezes, tornarem-se intercambiáveis, como em 1,4-6: ambos constituem princípios internos da vida moral dos justos. A expressão "espírito de sabedoria" (7,7) conduz ao sentido de interioridade que dá vigor e transforma tudo e todos que o recebem. A imortalidade Segundo os autores Morla Asensio (1997) e Vílchez Líndez (1995), "Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e o fez imagem de sua própria natureza" (2,23; cf. 1,15; 3,4b; 4,1b; 8,13a. 17c; 15,3b). Essa clara formulação da doutrina da imortalidade emerge após lento processo de amadurecimento na fé israelita. Não é a imortalidade da filosofia platônica, e, sim, uma imortalidade beatífiCentro Universitário Claretiano

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ca; em outras palavras, a imortalidade do justo não é a consequência metafísica da imortalidade da alma, mas puro dom de Deus. Essa imortalidade requer, pois, a comunhão plena com Deus, que se concretiza na vida segundo a justiça (1,15). O autor da sabedoria está convencido de que o justo não vai para o mesmo lugar do ímpio. Dessa forma, o justo alcança a imortalidade e permanece vivo na história (4,1b; 8,13a). O ímpio, por sua vez, é abandonado no hades (inferno) (4,18-19).

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. Nesta unidade, você conheceu um pouco mais do livro da Sabedoria. Leia com atenção Sb 6-9 e responda às seguintes questões: 1) Conforme Sb 6-9, como se relacionam Sabedoria e poder? 2) Para ajudar nesta tarefa: esteja atento ao que o texto bíblico diz sobre o que é o poder, de onde ele vem, para que ele serve, a serviço de quem ele deve estar e quais os perigos que deve evitar alguém investido de poder. 3) Todo ano de eleição, surgem "cartilhas políticas" elaboradas, principalmente, pela Igreja Católica, discutindo aqueles mesmos problemas: o uso do poder, a honestidade dos candidatos etc. Compare alguma dessas cartilhas com o texto bíblico e veja como elas aplicam e atualizam Sb 6-9.

8. CONSIDERAÇÕES Os judeus de Alexandria conviviam com a cultura grega: filósofos, costumes e cultos religiosos. Sofriam a hostilidade dos pagãos e, às vezes, perseguição aberta (Sb 2,12). Isso tudo constituía uma ameaça à fé e à tradição cultural do judaísmo. Em resposta a essa situação, o livro da Sabedoria propõe à comunidade judaica que resista a isso.

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O autor do livro da Sabedoria, profundamente alimentado pelas Escrituras e pela consciência histórica do seu povo, procura afirmar a fé, sustentar a esperança e animar a comunidade para que não se deixe seduzir pelas novidades de vida fácil, idolátrica e injusta. Para alcançar esse objetivo, ele lança mão do patrimônio histórico-religioso dos antepassados. Essa lembrança do passado reforça a identidade do povo judeu, tornando-o capaz de resistir no presente e caminhar com nova luz para o futuro. Ao mesmo tempo, porém, o livro é endereçado aos pagãos e com eles quer abrir um diálogo, a fim de instruí-los e guiá-los na busca do verdadeiro Deus (o de Israel). Enfim, cumpre notar que a doutrina da imortalidade beatífica do justo possibilita ao livro da Sabedoria dar um passo adiante na questão acerca da validade da Teologia da retribuição. Provérbios e Sirácida (Eclesiástico) diziam que ela funciona; Jó e Qohelet (Eclesiastes) diziam que não; Sabedoria pode afirmar: "funciona, mas na outra vida".

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO SCHÖKEL, L., VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Provérbios. Madrid: Cristiandad, 1984. (Nueva Biblia Española - Sapienciales, 1). BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Eds.). Novo comentário bíblico: São Jerônimo – Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2007. CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). MORLA ASENSIO, Víctor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao estudo da Bíblia, 5). RAVASI, G. Sapienza (Libro della). In: ROSSANO, P.; RAVASI, G.; GIRLANDA, A. (Eds.). Nuovo Dizionario di Teologia Biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1988. JOSEFO, F. Guerra Judaica II. 487. VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e Sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25). ______. Sabedoria. São Paulo: Paulus, 1995. (Grande Comentário Bíblico).

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EAD Estudo do Livro dos Salmos

5 1. OBJETIVOS • Compreender e resumir a história da interpretação dos Salmos. • Conhecer os diversos gêneros literários dos Salmos.

2. CONTEÚDOS • Breve histórico da interpretação dos Salmos. • Questões introdutórias: título, numeração, data e autoria. • Gêneros literários e chaves de leitura.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leias as seguintes orientações:

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1) Para maior compreensão a respeito do tema abordado nesta unidade, sugerimos que você leia as obras de: a) MORLA ASENSIO, Victor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 347-355. b) ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos I (1-72). São Paulo: Paulus, 1997, p. 11-71. c) BORTOLINI, José. Conhecer e Rezar os Salmos. São Paulo: Paulus, p. 7-16. d) RAVASI, Gianfranco. Libro dei Salmi - 1 (1-50). Bologna: Dehoniane, 1988, p. 13-17. e) RAVASI, Gianfranco. Libro dei Salmi - 1 (1-50). Bologna: Dehoniane, 1988, p. 15-16; f) ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos I (1-72). São Paulo: Paulus, 1996. p. 84-85. 2) Para aprofundar o que vamos tratar nesta unidade, sugerimos que você leia: a) RAVASI, Gianfranco. Libro dei Salmi - 1 (1-50). Bologna: Dehoniane, 1988, p. 13-17. b) ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecilia. Salmos I (1-72). São Paulo: Paulus, 1996, p. 72-95; c) BORTOLINI, José. Conhecer e rezar os Salmos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 11-12. d) MORLA ASENSIO, Victor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 263-264. 3) Um histórico mais completo da investigação sobre os gêneros literários dos Salmos você encontra na obra Livros sapienciais e outros escritos, de Morla Asensio (1997), nas páginas de 283 a 288. Vale a pena lê-lo! 4) Se você quiser saber mais a respeito da cronologia bíblica, há duas obras interessantes que discorrem sobre esse assunto: a) BORTOLINI, José. Conhecer e rezar os Salmos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 10-11; b) MORLA ASENSIO, Victor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 269-271.

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4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, tivemos a oportunidade de estudar o livro da Sabedoria. Ao longo da história, buscou-se uma forma de interpretar, exegeticamente, os Salmos, os quais serão estudado nesta unidade. No período das primeiras comunidades cristãs, os judeus cristãos seguiram as orientações exegéticas do judaísmo, e, nas citações do Novo Testamento, é feita uma leitura dos Salmos como profecia da vida e obra de Jesus Cristo. Nessa época, não havia preocupação científica para as questões de linguística e histórica crítica.

5. RESUMO DA HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS Na época patrística, à exceção de Orígenes (185-254) e Jerônimo (347-419), os escritores cristãos não conheciam o hebraico. Nesse período, há quatro tendências interpretativas: literal, alegórica, tipológica e ética. Sempre houve, porém, o interesse pela busca do sentido literal-histórico com ajuda da gramática, da análise literária e da história. O primeiro a seguir esse caminho de estudo científico foi Teodoreto, por volta de 450. No período medieval, avançou-se muito pouco ou nada em relação aos períodos anteriores. Merece destaque Nicolau de Lira (1340), que deu início ao estudo literal dos Salmos, superando, assim, a influência da tradição monástica. Na época moderna, tanto os católicos quanto os reformadores superaram o déficit exegético em filologia, que os séculos anteriores haviam acumulado. A exegese crítica abriu o campo para um estudo mais aprofundado dos Salmos sob vários ângulos. Assim, Hermann Gunkel (1862-1932) inova, definitivamente, o estudo do Antigo Testamento. Ele foi o primeiro a classificar os Salmos em vários gêneros literários, tais como: súplica, lamentação, ação de

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graças, hinos etc.; cada um desses gêneros literários estava ligado a um contexto vital (Sitz im Leben) da comunidade. Ao estabelecer gêneros literários e formas peculiares da poesia hebraica, Gunkel pôs as bases para a moderna interpretação dos Salmos. O seu método para classificar os Salmos pode ser resumido em três pontos: • situação litúrgica determinada; • contexto vital (Sitz im Leben); • linguagem comum: gêneros. Entre 1950 e 1970, Sigmund Mowinckel publicou estudos nos quais defende que o culto é o contexto sociológico, a fonte vital do nascimento e da transmissão de muitos Salmos. Sua preocupação é relacionar cada gênero literário com uma festa israelita determinada. Por exemplo, os Salmos que saúdam Javé como rei que acaba de subir ao trono e que se dispõe a exercer sua realeza mediante aclamação dos súditos (Sl 47; 93, 96; 98; 99) têm como contexto uma antiga festa de entronização de Javé, inspirada na entronização do monarca terreno. Javé "tornou-se rei, começou a reinar" (Sl 47,8; 93,1; 97,1; 96,1). Dada a antiguidade de muitas festas, grande parte dos Salmos seriam pré-exílicos. Diferentemente, na opinião de Arthur Weiser, os Salmos são frutos do encontro entre a Palavra que Deus dirige ao homem e a resposta do homem à interpelação divina. Portanto, é nesse enfoque de resposta à Aliança que devem ser entendidos os gêneros literários dos Salmos. Weiser valoriza, também, a história do culto e a história das tradições. Por sua vez, Gerhard Von Rad estabelece a existência de uma festa da renovação da Aliança celebrada pelos representantes tribais Israelitas (Js 24). O festival da Aliança seria o ambiente vital da maioria dos salmos pré-exílicos. Para Hans-Joachim Kraus, o festival de Sião teria surgido como pano de fundo do nascimento e transmissão de muitos Salmos. A tradição subjacente a 2Sm 6; 1Rs 8 e Sl 132 pressupõe um rito processional que incluía a transladação da arca para o Templo. A instalação cultual da Arca representava a entrada de Javé rei. Centro Universitário Claretiano

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Sem desconsiderar o valor dos gêneros literários, Luis Alonso Schökel chama a atenção para a análise poética, incluindo as imagens e os símbolos. Para ele, o fator decisivo no estudo de um salmo é sua organização interna. Nesse sentido, um salmo pode partilhar elementos com outro (frases, estilo) e, ao mesmo tempo, ser diferente e peculiar. Por isso, as fontes, os modelos e os antecedentes não podem explicar a realidade de um poema, assim como uma árvore genealógica não é suficiente para se conhecer uma pessoa. Gunkel tentava entender a prece pelos seus motivos; diferentemente, Alonso Schökel entende-a em sua unidade e validade como conteúdo e forma, uma vez que as formas poéticas são comuns a contextos diferentes. E porque existem padrões universais de estilo e poesia (quiasmo, paralelismo) utilizados em poemas de gêneros literários diferentes, não é necessariamente por meio dos gêneros literários que se descobre o contexto vital.

6. SALMOS Os salmos são a oração por excelência do povo de Deus. Neles, Israel expressou sua fé e seus sentimentos ao longo de sua história: as alegrias, as dores, as revoltas, as conquistas, a esperança de um governo melhor etc. Os salmos são, pois, canções de um povo que crê. Deve-se, no entanto, notar que nem todos os salmos da Bíblia estão no livro dos Salmos: há vários espalhados aqui e acolá. E, ainda assim, o livro dos Salmos é o maior da Bíblia. Mas de onde vem a palavra "salmos"? Na Bíblia hebraica, o livro dos Salmos é chamado "Tehillim", isto é, "hinos, louvores". Uma indicação de que se trata de poemas feitos para serem cantados pode ser encontrada, por exemplo, no primeiro versículo do Sl 12, que cita o "mestre de canto", que é como um "instrumento de oito cordas" a ser utilizado na melodia.

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Quando as escrituras judaicas foram traduzidas para o grego, o "livro de louvores" (sefer Tehillim) recebeu o título de "Psalmoi", que, traduzido literalmente, significa "cantos para instrumento de corda", uma vez que "psalterion" é a palavra grega para "instrumento de corda". Posteriormente, porém, psalterion passou a designar todo o livro como "coleção de cantos". Quando se estudam os Salmos, logo de início, surgem algumas questões: a) Por que há duas numerações dos Salmos? b) Salmos: um ou vários livros? c) É possível determinar as datas e os autores dos poemas? d) Como classificar os Salmos conforme os gêneros literários? Em nosso estudo, responderemos, brevemente, a tais questões. Numeração As escrituras sagradas judaicas são conhecidas como Bíblia hebraica. Entre os séculos terceiro e segundo antes da era cristã, a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego. A principal dessas versões gregas é a chamada Septuaginta, normalmente indicada por LXX. Posteriormente, já na era cristã, houve traduções para o latim: no século 2º, na África do norte, surgiu a Vetus Latina; no século 5º, São Jerônimo, em Belém da Judeia, realizou aquela que se imporia como a versão oficial da igreja cristã, a Vulgata. Quando a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego (LXX), houve uma modificação na numeração (confira a Tabela 1). São Jerônimo seguiu a numeração da LXX e, por isso, na Vulgata, nas traduções que a seguem, e, também, nos livros da liturgia católica, os salmos compreendidos entre o 10 e 147 têm um número menor do que os mesmos salmos na Bíblia hebraica. A razão para isso é que, na Bíblia Hebraica, os Salmos 9 e 10, na LXX, foram compreendidos como um único salmo. O mesmo aconteceu com os salmos 114 e 115. Inversamente, porém, o salmo 116 e o 147 da Bíblia hebraica foram, cada um deles, divididos em duas partes na versão Centro Universitário Claretiano

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grega. Desse modo, foi retomada a numeração da Bíblia hebraica. Nota-se, entretanto, que a LXX acrescentou, ainda, um Sl 151, que não foi considerado canônico. Tabela 1 Resumindo tudo. BÍBLIA GREGA (SEPTUAGINTA) BÍBLIA HEBRAICA

BÍBLIA LATINA (VULGATA) LITURGIA CATÓLICA

1-8

1-8

9-10

9

11-113

10-112

114-115

113

116

114-115

117-146

116-145

147

146-147

148-150

148-150

Para recordar a diferença de numeração ––––––––––––––––– Basta contar as letras das palavras "hebraico", "grego" e "latim": hebraico = oito letras; grego = cinco letras; latim = cinco letras. Oito é maior que cinco: o número maior é sempre da Bíblia hebraica, o número menor é sempre da Bíblia grega (e latina). Quem estiver em dúvida se a sua edição da Bíblia segue a numeração hebraica ou a grega, deve observar qual número está fora dos parênteses e qual está dentro. Veja: Salmo 22 (21): essa Bíblia segue a numeração do hebraico e indica entre parênteses a numeração do grego. Salmo 21 (22): essa Bíblia segue a numeração do grego e indica entre parênteses a numeração do hebraico.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Livros do Saltério O livro dos Salmos ou Saltério é uma coleção de coleções. Provavelmente, no processo de finalização do livro dos Salmos, quem editou o material dividiu o conjunto em cinco livros ou coleções, como memória dos primeiros cinco livros da Bíblia, a Torah. Para delimitar as coleções, os editores inseriram uma doxologia (fórmula de louvor) no fim de cada bloco, conforme a Tabela 2.

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Tabela 2 As diversas coleções do Saltério. COLEÇÕES 1o livro

Salmos 1-41

FORMA DOXOLÓGICA Sl 41,14 "Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém e amém!" Sl 72,18-19

2o livro

3o livro

4o livro

5o livro

42-72

"Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, porque só ele realiza maravilhas. Para sempre seja bendito o seu nome glorioso! Que toda a terra se encha com sua glória. Amém e amém!"

Salmos

Sl 89,53

73-89

"Bendito seja Deus para sempre! Amém e amém!"

Salmos

Salmos

Sl 106,48

90-106

"Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, desde agora e para sempre! E todo o povo dirá: Amém!"

Salmos

Sl 150 - o salmo todo é uma doxologia.

107-150

Fonte: Ravasi (1988, p. 16).

Como já afirmamos, essa divisão em cinco livros lembra a Torah (Lei). Assim, segundo a interpretação rabínica, o livro dos Salmos seria a face orante da Lei de Deus. Segundo os rabinos, "Moisés deu os cinco livros da Lei a Israel, mas Davi deu a Israel os cinco livros dos Salmos". Cumpre ainda notar o seguinte: uma vez que os salmos, a princípio, eram composições isoladas que foram posteriormente recolhidas e agrupadas, há salmos repetidos ou, como se costuma dizer, duplicatas. Confira: Tabela 3 Salmos duplicados. SALMOS DUPLICADOS: 14 = 40,14-18 = 57,8-12 + 60,7-14 = Fonte: Schökel (1996, p. 84).

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53 70,2-6 108

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Cronologia Estabelecer a data dos salmos é algo muito complicado. Pouquíssimos deles trazem referências ou dados históricos do período de sua composição. E, para complicar ainda mais a dificuldade em datálos, há o fato de que muitos são salmos individuais. Alguns exemplos ilustrarão a complexa tarefa de datar os salmos: o Salmo 137, por exemplo, é o único a dar referências do período e do lugar em que foi composto: o período do exílio na Babilônia. Mesmo assim, trata-se de um período longo: entre 587 e 538 a.C. Já o Salmo 18, que se encontra em 2Sm 22,1-51, pode ser localizado no tempo em que Davi governou (de 1010 a 970 a.C., aproximadamente). A linguagem do Salmo 29 e de parte do Salmo 19 tem indícios da cultura dos cananeus, o que permite dizer que são anteriores à monarquia. Já os Salmos 144 e 149 refletem uma espiritualidade do período dos Macabeus e, portanto, são bem mais recentes: por volta do ano 164 a.C. Dada a dificuldade em estabelecer datas precisas, segue-se um critério mais amplo: antes, durante e depois do exílio. Autoria Igualmente complicada é a questão da autoria dos poemas individuais e, de certa forma, esse é um problema ligado ao da datação: impossível datar; impossível dizer quem compôs. No livro dos Salmos, observamos nomes de pessoas (Davi, Salomão, Asaf etc.). Todavia, no hebraico, esses nomes vêm precedidos por uma letra chamada lamed, que tem o valor de uma preposição que pode significar várias coisas: "de", "para", "a respeito de", "para ser executado por", "conforme o estilo de" e "sob a direção de". Levando em consideração as possibilidades do lamed, quando essa preposição está ligada a nomes, sugerimos que se traduza, por exemplo, ledawid por "para Davi" (podemos observar que a indicação ledawid aparece em setenta e três salmos); leasaf = "para Asaf", em doze salmos (cf. Sl 50 e 73-83, Asaf era mestre ou ancestral de um grupo de cantores); onze salmos são "para os filhos de Qorah/Coré" (os cantores oficiais do templo (cf. 1Cr 6,16.22; Sl 42;

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44-49; 84-85); dois salmos "para Salomão" (Sl 72; 127); um salmo "para Moisés" (Sl 90); um salmo "para Eman" (um dos cantores do grupo de Coré. Cf. Sl 88); e um Salmo "para Etan" (Sl 89). Chama a atenção a grande quantidade de salmos atribuídos a Davi. Provavelmente, houve um processo de "davidização" dos salmos. Isso encontra sua explicação no pós-exílio, em torno do ano 300 a.C.: a obra do Cronista (1-2 Crônicas, Esdras e Neemias) exalta a figura de Davi como organizador do culto no Templo e, em particular, do canto sacro (cf. 1Cr 23,26; 2Cr 29,30; Esd 3,10; Ne 12,23-45). No pós-exílio, vários salmos foram atribuídos a grupos que seriam contemporâneos a Davi: Asaf, Idutum, Eman e os filhos de Coré. Então, as tradições judaica e cristã ampliaram a atribuição dos salmos a Davi (Cf. At 1,16.20; 2,25.34; 4,25; 13,34-35; Rm 4,6-8; Mt 22,43-45 etc.). No período patrístico, porém, vários padres da Igreja discordaram dessa tendência "davidizante": Orígines, Atanásio, Eusébio de Cesareia, Jerônimo e outros. Por fim, devemos notar que, junto à fórmula ledawid (para/de Davi), treze salmos (Sl 3; 7; 18; 34; 51; 52; 54; 56; 57; 59; 60; 63; 142) dão notícias biográficas de Davi, tomadas da obra histórica deuteronomista. Deuteronômio: Josué - Juízes - 1-2 Samuel - 1-2 Reis.

Tabela 4 Salmos presentes no livro de 2 Samuel. Sl 7,1

alude a

2Sm 16,5-6

Sl 18

"

2Sm 22,1-51

Sl 34,1

"

1Sm21,11-16

Sl 52

"

1Sm 21-22

Sl 54

"

1Sm 23,15.19

Sl 56

"

1Sm 21,11-16

Sl 57

"

1Sm 22,1; 24,1-23

Sl 59

"

1Sm 19,11-17

Sl 60

"

2Sm 8,13; 10,13-18

Sl 142

"

1Sm 22,1; 24,1-23

Fonte: Ravasi (1988, p. 15).

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Pode-se concluir, então, que os títulos não oferecem datas nem indicações do ambiente da composição dos salmos, mas são testemunhos de uma organização ou interpretação dos redatores de determinada coleção. Outras informações no livro dos Salmos Além dos "autores", os redatores finais deixaram diversas informações, principalmente nos títulos dos Salmos, tal como você pode conferir nas tabelas a seguir: Tabela 5 Melodias populares da sua época. Sobre a melodia "os lírios do testemunho"

Sl 80

Sobre a melodia "a morte do filho"

Sl 9

Sobre "a corsa da manhã"

Sl 22

Tabela 6 Informações musicais. Meditação

2x (Sl 9,17; 92,4)

Pausa? Crescendo?

71x (Sl 9,17.21; 20,4; 21,3; 24,6 ...)

Com instrumentos de corda

4x (Sl 54; 55; 67; 76)

Com instrumentos de sopro

1x (Sl 5)

Sobre a oitava (tom ou corda?)

2x (Sl 6; 12)

Tabela 7 Uso litúrgico ou cúltico. Para o dia de sábado

Sl 92

Para recordar? Para o sacri#cio?

Sl 38; 70

Para (o sacri#cio de?) Ação de Graças

Sl 100

Para ensinar

Sl 60

Canto das subidas (peregrinações)

Sl 120-134

Circunstâncias históricas Há treze salmos cujos títulos os ligam a vários momentos ou etapas da história de Davi: Sl 3; 7; 18; 34; 51; 52; 56; 57; 59; 60; 63; 142.

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Saltério, microcosmo simbólico Para interpretar melhor cada salmo, é necessário compreender a situação humana vivida pelo salmista, a qual ele deixa transparecer nos símbolos, nas imagens e nos recursos poéticos usados no salmo. Ora, o ponto de referência para o homem representar o mundo, a sociedade e Deus é seu próprio corpo. No primeiro volume de seu comentário sobre os Salmos, Ravasi (1988, p. 30-34) adota três categorias fundamentais para explicar esse processo: • vertical; • horizontal; • dinâmica. Vejamos esquematicamente na tabela a seguir: Tabela 8 Categorias fundamentais. Vertical

Horizontal

Dinâmica

• As categorias: em pé, subir, descer, elevar.

• as categorias: sentado, deitado, como sinais de intimidade.

• as categorias: homem a caminho (espaço [120134] e tempo [16,1011]) de seu destino.

• Os símbolos: o cetro (2,9; 45,7); subir ao templo ou ao monte; elevar os olhos (92,9; 121,1; 123,1)

• os símbolos: casa (26,8; 84,5); templo (23,5; 27,4; • os símbolos: caminho, 122); a Cidade Santa como símbolo da (48,3.13); rocha e fortaleza existência, do destino (18,3; 62,3.7); Israel (80). (49,14; 119).

Tudo isso pode ser articulado da seguinte forma:

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1) Linha vertical – teológica: representação simbólica do céu e do mistério de Deus a partir do mundo humano. Pertence a essa linha o seguinte vocabulário: o monte santo (2,6; 15,1; 99,9); luz e vida (13,4; 49,20; 56,14); paz e alegria (27,1; 97,11); salvação (27,1; 31,17; 67,2-3); e obra divina (78,13-16; 136). Tudo isso simbolizando a transcendência e a proximidade de Deus. É de grande importância, nesse sentido, o verbo "ver": "dos altos céus, Deus vê o homem" (33,13-15); "este, por sua vez, deseja ver, contemplar a Deus" (121,1; 123,1). Como você pode notar, o salmista tem uma opinião formada a respeito de Deus: ele O vê como um herói transcendente (18; 31,3; 35,3; 75,9). Além disso, os antropomorfismos e os antropopatismos são onipresentes nesse livro, bem como as imagens arquetípicas de pai e mãe (27,10; 103,13; 131,2; 139,1315). Completam esse quadro os símbolos cósmicos da benevolência de Deus (8,4; 65,10-12). 2) Linha horizontal – antropológica: representação simbólica do seu próprio mundo por meio não só do próprio

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humano, mas também de metáforas dos mundos animal e vegetal. Para exprimir as próprias experiências, os salmistas utilizam: • Zoomorfismos (animais em geral) e teriomorfismos (feras) (18,34; 42,2; 73,22; 102,7). • Ilemorfismos (mundo natural): vegetais (matiz sapiencial) (1,3; 92,13-15); óleo (133,2); sangue (58,11; 68,24). • Antropomorfismos: o corpo como expressão do estado de ânimo, pois, na antropologia bíblica, o homem é uma unidade psicofísica (38,6; 55,5; 102,4.12). 3) Linha vertical – infernal: na linha vertical do cosmo, oposto a Deus é o sheol, que, no saltério, aparece designado por cerca de 30 termos diferentes. Mais ou menos como um buraco negro, o sheol é apresentado como uma não terra, uma cidade de espectros, ou águas demolidoras (18,17; 32,6; 42,8; 66,12). A imagem mais frequente é a da fossa à qual se desce (16,10; 28,1; 30,4.10), por vezes associada aos símbolos do pó (22,16; 119,25), do silêncio (115,17) e de monstros (74,13-14; 91,13; 104,26). O sheol é antecipado no sepulcro e nos inimigos (que são também símbolos dos males sociais: opressão, injustiça etc.). A descrição do mal, isto é, dos inimigos, é extremamente bem articulada: • Simbólica bélica: guerra (27,3; 35,1); armas (3,4; 7,14; 11,2); exércitos (3,7; 27,3); ferozes agressores (55,19; 56,2). • Simbólica teriomorfa: o inimigo é como um leão que espreita (10,9; 17,12), que estraçalha (7,3) e que devora (22,14). • Simbólica cósmica negativa: a noite é símbolo do inferno (18,29; 22,3; 23,4; 91,5-6; 139,11-12). • Simbólica psicofisiológica: a doença é uma "amostra grátis" do inferno (6,3; 30,3; 32,3-4; 38; 88; 118,17-18).

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4) Linha horizontal – cosmológica: na linha horizontal, o extremo oposto ao criado é o nada, o vazio. Contudo, devemos lembrar que o pensamento semita não trabalha com noções abstratas. Por isso, o nada é representado por monstros (74,13-14; 89,10-11; 104,26). No outro extremo, está a harmonia da natureza como expressão da perfeição de Deus: luz e trevas (19,1-7); a sucessão das estações (65 – primavera; 67 – verão; 126; 147 – outono e inverno).

7. GÊNEROS LITERÁRIOS A classificação moderna dos salmos em diversos gêneros literários começa com um estudioso chamado Gunkel, no início do século 20. Esse autor, além do critério do conteúdo, usa também outros: o contexto vital e, principalmente, a forma literária. De lá para cá, seu método foi desenvolvido, modificado, aperfeiçoado; mas as intuições básicas permaneceram inalteradas. Três aspectos são necessários para se determinar o gênero literário de um texto: • Forma literária: deve-se observar as características formais do texto, desde as mais simples (vocabulário, expressões, metáforas), até as mais complexas (construção sintática das frases, estrutura geral do texto, estilo). • Conteúdo: é necessário observar os pensamentos e os sentimentos expressos no texto e como eles se inter-relacionam no texto. • Contexto vital: enfim, é preciso determinar qual relação a forma e o conteúdo do texto podem ter com uma situação concreta da vida. Trata-se do famoso Sitz im Leben, que pode ser a situação na qual se produziu o texto, ou mesmo a situação na qual, supostamente, o texto é utilizado. Gunkel era da opinião de que todos os salmos tinham, em última análise, seu contexto vital no culto. Haveria, então, uma

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ação cultual abrangente, que englobaria todos os salmos. Mas essa posição tem o perigo de cair na unilateralidade de afirmar que necessariamente qualquer situação da vida da comunidade e/ ou do indivíduo acaba se tornando culta. Com efeito, não demorou muito para que os estudiosos se dessem conta de duas coisas: • há vários tipos de ação cultual (festa da renovação da Aliança, entronização de Javé); • muitos salmos não se ligam a nenhuma dessas ações cultuais, mas, mais propriamente, à vida cotidiana. Sem dúvida, toda a vida e toda a história de Israel são (re) lidas religiosamente, mas isso não significa que sejam cultas. Há outros contextos vitais: 1) a própria história; 2) a esperança escatológica; 3) a penitência; 4) as festas; 5) o conflito entre fé e realidade; 6) o sofrimento; 7) a Lei de Deus; 8) a busca de Deus, a saudade; 9) a instrução, a natureza. Todavia, quando consultamos os comentários aos salmos, percebemos algo curioso: não há uma unanimidade na divisão e na catalogação deles. Cada comentador ou estudioso tem suas próprias opiniões, dependendo de como se "tempera" o critério da forma com o do conteúdo. Vejamos um exemplo: as classificações "individual" e "coletivo" são complementos. Acontece que é necessário distinguir o "eu" do salmista a cada caso, pois, muitas vezes, trata-se de um "eu coletivo", isto é, a personificação da comunidade. Além disso, vários salmos misturam elementos de vários gêneros, seja nas características literárias, seja no conteúdo. Outros são nitidamente compostos por duas ou três partes, cada uma delas de um gênero literário diferente. Centro Universitário Claretiano

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A consequência é a falta de uma classificação que agrade a todos. Tudo já começa na catalogação dos gêneros literários fundamentais. Quantos são: nove, onze ou vinte? Devemos nos lembrar de que o "gênero literário" é uma abstração baseada em textos concretos. Porém, muitos salmos são híbridos, isto é, são o amálgama de mais de um gênero literário. Por isso, em muitos casos, é necessário classificar não o salmo inteiro, mas alguns de seus versículos. Poucos são os salmos que não sofreram contaminação de outro gênero literário. O assunto é tão fascinante quanto complexo. Por isso, a classificação a seguir não é "dogma de fé": Tabela 9 Classificação. FAMÍLIA

ESQUEMA

SUBGRUPOS

A. Hinos

a) convite ao louvor b) motivação – "porque" c) novo convite ao louvor

A1) Hinos a Deus Salvador A2) Hinos a Deus Criador A3) Hinos a Deus Rei A4) Hinos de Sião

B. Salmos de Súplica

a) invocação a Deus b) desgraça e súplica c) final feliz

B1) Súplicas individuais B2) Súplicas coletivas

C. Salmos de Confiança e de Ação de Graças

C1) Confiança individual C2) Confiança coletiva a) convite ao louvor C3) Ação de graças individual b) descrição da libertação C4) Ação de graças c) sacrifício ou oração coletiva C5) Salmos afins

D. Salmos Litúrgicos

D1) Salmos de ingresso D2) Salmos requisitórios D3) Salmos de peregrinação

E. Salmos Sapienciais

E1) Salmos sapienciais E2) Salmos alfabéticos

F. Salmos Históricos G. Salmos Régios H. Salmos de Maldição e Vindita Fonte: adaptado de Ravasi (1988, p. 46-65) e de Dias da Silva (2007, p. 61-64).

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8. VEJAMOS, COM MAIORES DETALHES, CADA UMA DESSAS FAMÍLIAS. Hinos Os hinos são cânticos de louvor a Deus pelas grandes obras dele. Normalmente, esses Salmos se iniciam com o imperativo: hallelu ("louvai", Sl 113,1; 117,1 etc.), zammeru ("tocai", Sl 32,2; 66,2 etc.) e outros verbos de júbilos. A recitação era dialogada em solo mais coro, sempre acompanhados de instrumentos musicais. Em geral, os salmos hínicos aqui classificados são os seguintes: 8; 19; 29; 33; 46; 47; 48; 65; 67; 76; 68; 84; 87; 93; 96; 97; 98; 99; 100; 103; 104; 105; 111; 113; 114; 117; 135; 136; 145; 146; 147; 148; 149; 150. Vejamos, a seguir, a estrutura básica desses salmos: • Introdução – convite ao louvor: convocação ao louvor (Sl 117,1) acompanhada de orientações acerca de instrumentos musicais, gestos, palmas, cantos, danças etc., realizadas, provavelmente, pelo dirigente do coro (Sl 33,2-3; 47,2; 98,5-6; 99,5; 105,2; 147,7; 150,3-5; 149,3.5b). • Desenvolvimento ou corpo do hino – motivações para o louvor: é a parte central. Nela estão os motivos para o louvor, normalmente iniciados pela conjunção "ki" (que/ porque), que pode estar subentendida (Sl 117,2c; 145,320; 147, 2-6.8-9.13-20). • Conclusão – novo convite ao louvor: na grande maioria, retoma-se o convite inicial de louvor. Podem aparecer orações de intercessão, maldição ou bênção (Sl 8,10; 29,11; 65,5; 104,33-35; 136,26). Às vezes, a introdução prolonga-se tanto que acaba tomando o salmo inteiro. Um exemplo é o salmo 150: os versículos de 1-6a são o convite ao louvor, e o v. 6b é a conclusão. Desse modo, ficou fora a motivação para o Louvor. Centro Universitário Claretiano

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Hinos a Deus salvador Os hinos a Deus salvador têm uma estreita relação com hinos de vitória e, por isso, têm como pano de fundo a história na qual Deus é o libertador. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 29; 33; 65; 66; 100; 105; 111; 113; 117; 135; 136; 145-150. A história é o lugar em que Deus cumpre a promessa que dá sentido à vida de Israel. Por esse motivo, a recordação do tempo passado abre perspectiva para o futuro. Portanto, esses salmos são confissões de fé, credo histórico e plataforma de esperança. Neles, fica marcado o monoteísmo bíblico. Hinos a Deus criador Os hinos a Deus criador são, como o próprio nome diz, cantos em honra ao Criador, que atuam na história do seu povo, e a história sustenta-se sobre o pressuposto do mistério maravilhoso da criação (cf. Sl 8,2). Na sua maioria, são salmos tardios, do pósexílio, e, muitas vezes, cópias dos hinos dos povos vizinhos, como o Sl 19,1-7, que copia orações ao Deus Sol (Shamash), cultuado em todo crescente fértil; o Sl 104 é um "plágio" do "hino a Aton", denominado, também, como a divindade solar do Antigo Egito. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 8; 18; 19,1-7; 77,14-20; 97,1-6; 104; 139; 144,5-6; 148. Hino egípcio ao deus-sol Aton Tu apareces, perfeito, no horizonte do céu, Disco vivo, que estás na origem da vida. Quando tu te levantas no horizonte oriental, enches todo o país com tuas perfeições. [...] Quando tu te deitas no horizonte ocidental, a terra está em trevas como na morte. [...] A terra jaz no silêncio, porque aquele que a criou repousa no horizonte.

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Depois a terra clareia, quando tu te levantas e, disco solar, brilhas durante o dia. [...] Os homens despertam e se endireitam sobre seus pés. [...] Seus braços adoram tua aparição, em seguida a terra inteira se integra aos seus trabalhos. Todos os animais estão contentes em suas pastagens. As árvores e as ervas verdejam. Os pássaros voam fora dos seus ninhos, as asas em adoração a ti. [...] Os barcos descem e sobem o rio. [...] Os peixes saltam sobre a superfície do rio. [...] És tu que fazes desenvolver-se os germes nas mulheres e que crias a semente nos homens. [...] Como são numerosas as tuas criações! Elas são escondidas aos olhos dos homens, ó deus único, ao qual nenhum outro é semelhante. Tu criaste a Terra, segundo o teu desejo, quando estavas só: homens, rebanhos, pequenos animais, tudo o que está sobre a Terra e caminha sobre suas patas [...] (TRECHOS DO "HINO A ATON", 1985, p. 66-69).

Hinos a Deus Rei Os hinos a Deus Rei são também chamados de "Salmos de entronização", provavelmente ligados a uma entronização da Arca no Santuário depois de uma vitória nas guerras. Era comum levar a Arca da Aliança para as batalhas, como símbolo da presença de Deus. Por tal razão, a volta da Arca para o Templo torna-se uma celebração do reinado escatológico de Deus. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 47; 93; 96-99.

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Hinos a Sião Sião é o monte de Jerusalém onde está o Templo. Provavelmente, tais hinos eram recitados durante peregrinações ou festas em Jerusalém, tais como a Festa das Tendas, durante a qual havia uma procissão com a Arca. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 46, 48; 76; 84; 87; 122; 132. Salmos de Súplica A família dos Salmos de Súplica abrange, aproximadamente, um terço do livro dos Salmos. Alguns estudiosos classificaram esse grupo como "Lamentações". Todavia, essa denominação não é muito precisa, uma vez que os Salmos de Súplica têm dois eixos fundamentais: a exposição do sofrimento e o pedido de ajuda. Tudo leva a crer que o contexto vital era o culto realizado em horas de calamidades, doenças ou perigo. Nesse contexto, é comum falar da dor e do mal com imagens de feras (Sl 22), da guerra (3,7; 27,3; 55,19; 56,22) ou da caça (7,6.16; 31,5; 35,7-8; 57,7). Os elementos formais desse gênero nem sempre aparecem de modo completo e em uma ordem precisa. Além disso, alguns são mais elaborados que outros. Não obstante, é possível delinear uma estrutura básica: • Introdução – invocação do nome divino. Aqui aparecem vários títulos de Deus. O pedido de ajuda, quando ocorre, quase sempre está no imperativo. É a porta de entrada para o diálogo com Deus, e o suplicante tem esperança na ação salvadora Dele. Temos como alguns exemplos os salmos: 54,3-4; 60,3; 71,1-6; 88,2-3. • Desenvolvimento ou corpo – descrição da desgraça e, a seguir, uma súplica. O salmista questiona o silêncio e a inatividade de Deus. O pedido de ajuda dirigido a Ele constitui o elemento central da súplica e usa metáforas

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para descrever a dor e o sofrimento. Os inimigos são simplesmente "eles". A súplica normalmente é a parte mais extensa do salmo e vem acompanhada de perguntas dirigidas a Deus ("por quê?"; "até quando?"). Muitas vezes, há uma confissão dos pecados ou a afirmação da inocência. Os salmos a seguir são alguns exemplos: Sl 54,5-7; 60,4-7; 71,7-21; 88,4-19. • Conclusão: expressões de confiança em um final feliz ou um sacrifício de louvor. Algumas vezes, aparece uma imprecação contra os inimigos. Vejamos alguns exemplos: Sl 54,8-9; 60,8-14; 71,22-14. Súplicas individuais As súplicas individuais são um tipo de salmo que reflete a situação precária em que alguém se encontra, graças à infelicidade, enfermidade grave, perseguição, injustiça etc. Nelas, o salmista vê-se necessitado da ajuda divina. Por esse motivo, é comum, já na introdução, o orante expressar sua confiança em Deus: "Meu Deus" (Sl 22,2); "Tu és o meu Deus" (Sl 140,7). Deus é seu único recurso para superar a desventura. Podemos identificar quatro situações em que as suplicas individuais eram recitadas: 1) Perseguição ou perigo: as causas podem ser naturais: seca, pragas, tempestades; sociais: escravidão, guerra, injustiça, pobreza; ou pessoais: física ou psíquica. Cada um desses males normalmente é chamado de "inimigo" e, às vezes, é representado por símbolos bíblicos negativos: feras, leões, monstros etc. 2) Enfermidade e morte: salmos que falam dessas situações são fortemente marcados pela Teologia da retribuição: o mal que atinge o salmista é resultado de seu próprio pecado ou do pecado de seus antepassados. 3) Inocente injustamente acusado: são salmos com linguagem jurídica, nos quais o inocente apela ao tribunal de Deus (Sl 3,5), no Templo. O esquema da maioria desses Centro Universitário Claretiano

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salmos é: o salmista (a) expõe sua causa (Sl 3,2-3), (b) pede o reconhecimento de sua justiça (Sl 3,6 = "logo adormeço" sinal de inocência, não tem culpa) e o castigo dos culpados (Sl 3,8b) e (c) aguarda confiante a sentença de Deus (Sl 3,4.9). São comuns as linguagens jurídicas, tais como: protesto de inocência contra as acusações, petição em que sejam examinadas a causa e a pessoa acusada, confiança no juiz (que, no caso, é Deus), eventual juramento de inocência. 4) Penitência ou reconhecimento individual da culpa: diferentemente do protesto de inocência, o salmista, influenciado pela Teologia da retribuição, reconhece sua responsabilidade nos males que sofre e confessa a sua culpa (Sl 38,2.5.19). Os salmos que pertencem a esse grupo são: 3; 5; 6; 7; 11; 13; 17; 22; 25; 26; 28; 31; 35; 38; 39; 42; 43; 51; 54-57; 59; 61; 63; 64; 69; 71; 86; 88; 102; 109; 130; 140-143; alguns também incluem 27; 41; 70; 120. Súplicas Coletivas A súplica comunitária segue o mesmo esquema da súplica individual. O que caracteriza "o coletivo" é que o mal, que antes atingia o indivíduo, agora afeta toda a comunidade: guerra (principalmente derrota), pestes ou fome. Por essa razão, o sujeito está na primeira pessoa do plural: "nós". Graças a outras narrações, como Esd 9,9-15 e Ne 9,1-37, podemos inferir o contexto litúrgico desses salmos, talvez um rito de "penitência coletiva", assim organizado: • praticar um jejum proclamado com antecedência (Jz 20,26; Is 58,3; Jr 14,2); • praticar abstinência sexual e cessar todo o tipo de atividade civil (1Sm 21,5); • rasgar as próprias vestes, vestir-se de saco; cobrir-se de cinzas (Jdt 4,9-15; Est 4,1-17; Is 37,1).

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Os salmos que pertencem a esse grupo são: 44; 60; 74; 79; 80; 83; 85,2-8; 89; 39-46; 90; 123; 137. Alguns estudiosos também incluem os salmos: 12; 14; 53,58; 77; 82; 106; 108; 126. Salmos de Confiança e de Ação de Graças Salmos de confiança individual e coletiva Os salmos de confiança individual e coletiva são aqueles nos quais podemos perceber sem dificuldades que a confiança em Deus domina toda a oração. O salmista não suplica para ser libertado de algum mal, muito menos para pedir algo. Ele apenas expressa sua confiança inabalável em Deus, uma confiança que lhe dá a certeza da justiça Dele – "Meu justo Deus" (Sl 4,2) – e isso basta para o orante. A distinção entre individual e coletivo é complicada, pois eles se misturam. Na linguagem da oração, as expressões são espontâneas e livres até na estrutura. Portanto, não é possível apresentar uma organização desses salmos. Além disso, eles englobam elementos de outros gêneros, como hinos, súplicas individuais e ação de graças. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 4; 11; 16; 23; 27; 46; 62; 115; 121; 125; 129; 131. Salmos de ação de graças individual e coletiva Antes de mais nada, convém distinguir súplica de ação de graças. Embora a ação de graças frequentemente apareça no fim dos salmos de súplica, trata-se de uma forma intermediária entre a súplica e o hino de louvor. Provavelmente, esses salmos estavam vinculados ao sacrifício de ação de graça ou de comunhão (cf. Sl 66,13-15). Com o passar do tempo, tornaram-se uma oração recitada também na ausência do sacrifício, seja porque nem todos podiam ir a Jerusalém, seja no período do exílio e mesmo após ele, enquanto o templo ainda estava destruído. Centro Universitário Claretiano

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Havia, pois, três tipos de ritual de comunhão: 1) o sacrifício de louvor ou agradecimento (todah = louvor): Lv 7,12-15; 22,29-30; 2) o sacrifício espontâneo (nedabah), que era oferecido por devoção, sem nenhum outro motivo, promessa ou obrigação: Lv 7,16-17;22,18-23; 3) o sacrifício votivo (neder), oferecido para se cumprir por um voto: Lv 7,16-17; 22,18-23. A estrutura básica desses salmos é a seguinte: • Introdução – convite ao louvor: exemplos: Sl 32,1-2; 124,1-2; 138,1-3. • Desenvolvimento ou corpo – descrição da libertação em três momentos: 1) passado trágico e futuro feliz; 2) convite à assembleia para se unir ao louvor; 3) motivo do louvor ("porque"). Exemplos: Sl 32,3 -5; 124,3-7; 138,4-7. • Conclusão: final feliz com sacrifício ou oração de ação de graças. Exemplos: Sl 32,6-7; 124,8; 138,8. São poucos os salmos desse gênero: 65-67; 118; 124. No entanto, é necessário incluir, também, algumas composições mistas, tais como: 9-10; 30; 32,1-7; 34; 40-41; 52; 66,13-20; 92,107; 138. Salmos litúrgicos Os salmos litúrgicos foram produzidos para a liturgia ou dela derivaram. Salmos de Ingresso ou da Porta Tratam-se de salmos durante a acolhida dos peregrinos que chegavam ao templo. Para entrar nele, era preciso se purificar. Junto à porta, o peregrino era interrogado pelo sacerdote e, depois de responder e mostrar conhecer as condições, podia ser admitido nas orações do templo.

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São somente dois os salmos de entrada: 15 e 24. A estrutura é simples e em forma de diálogo: • o peregrino pede o acesso ao templo: 15,1; • o sacerdote responde: 15,2-5. Salmos requisitórios O grupo dos salmos requisitórios liga-se ao anterior, principalmente por causa da matiz profética que supõe. O modelo literário é o mesmo da requisitória profética (em hebraico, rîb) ou "processo judicial": o profeta atua como advogado de Deus e sua intervenção ambienta-se num contexto cósmico e introduzido pelo apelo "escuta, meu povo". Exemplos de rîb proféticos no livro dos Salmos: 50 ; 95 (forma completa); 78,9-37; 81,7-17 (forma incompleta). No restante do Antigo Testamento, alguns exemplos: Dt 32,1-25; Is 1,2-3.1020; Mi 6,1-8; Jer 2,4-13.29. Esses textos (rîb) talvez estivessem ligados aos ritos de renovação da aliança, no santuário de Siquém (Js 24) ou na pregação profética do reino norte (Amós e Oséias). O salmo 50 pode nos ajudar a traçar um esquema: 1) teofania preliminar (vv. 1-3); 2) rîb para os fiéis: • convocação do céu, da terra, dos fiéis (vv. 4-5); • declaração celeste da fidelidade de Javé (v. 6); • autoproclamação de Javé (v. 7); • requisitória negativa (rejeição sacrifícios) (vv. 8-13); • decreto positivo sobre sacrifícios genuínos (vv. 1415). 3) rîb para os rebeldes à aliança: • interrogatório (vv. 16-17); • requisitória sobre mandamentos violados (vv. 18-20); Centro Universitário Claretiano

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• declaração de culpa (v. 21); • ameaças (v. 22). 4) conclusão (v. 23). Salmos de Peregrinação Tratam-se de salmos entoados durante a romaria à Cidade Santa. São alguns elementos que aparecem nesses salmos: 1) um convite para ir a Jerusalém ("Vinde!"): 122,1; 2) alguns ritos de procissão: 122,2; 3) admiração pelo Templo ou pela Cidade Santa: 122,3-5. 4) oração pela Cidade Santa: 122,6-9. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 24,7-10; 84; 95,1-7a; 122. Salmos sapienciais São classificados como sapienciais os salmos que têm como finalidade refletir, de modo particular, sobre questões sociais, éticas, teológicas e filosóficas. Salmos sapienciais propriamente ditos Seus autores são sábios que transmitem os ensinamentos decorrentes da experiência cotidiana para educar os mais jovens. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 1; 19, 8-15; 32; 34; 37; 49; 73; 91; 112; 127; 128; 133. Salmos alfabéticos Os salmos alfabéticos são aqueles em que cada verso começa com uma letra do alfabeto hebraico. Eles não formam um gênero literário à parte. Em contrapartida, a sequência do alfabeto constitui um recurso que ajuda a memorizar a oração. Infelizmente, é impossível manter a sequência do alfabeto nas traduções, de forma que nem todas as edições trazem a in-

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dicação de que determinado salmo é alfabético, nem colocam a indicação das letras do hebraico. Isso torna difícil identificá-los. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 9-10; 25; 34; 37; 111; 112; 119; 145. Salmos históricos O bloco dos salmos históricos é pouco considerado pelos estudiosos, uma vez que tais salmos podem ser também classificados como hinos ou sapienciais. Entretanto, trata-se de um gênero literário à parte e está ligado à confissão de fé do credo histórico. Em outras palavras, é uma forma de rezar a história de Israel. O Sitz im Leben (contexto vital) desses salmos, provavelmente, é uma celebração da festa da Aliança. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 78; 105; 106. Mas alguns hinos também podem ser considerados históricos: 111; 114; 135; 136. Cada salmo apresenta sua própria teologia da história: 1) Sl 78 – credo histórico (vv. 1-8.12-55.65-72); 2) Sl 105 – visão otimista: a bondade de Deus superior aos obstáculos colocados pelos homens; 3) Sl 106 – visão pessimista: a história é uma sequência de respostas negativas do homem ao amor de Deus; 4) Sl 111 – elenco dos grandes benefícios de Deus; 5) Sl 114 – hino ao Deus do êxodo; 6) Sl 135 – ações históricas de Deus em favor de Israel; 7) Sl 136 – reelaboração cúltica do credo histórico. Salmos régios Alguns salmos falam do rei. Neles, podemos identificar a influência do Antigo Oriente Próximo nos modelos de entendimento da figura do rei, principalmente modelos babilônicos e egípcios, no que se refere à divindade do monarca: Centro Universitário Claretiano

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O rei é santo, é poderoso. Ou seja, ele é divino, porque santidade e poder são as autênticas qualidades divinas. Quem as possui é mais do que um homem. A divinização do rei não é uma loucura, nem adulação cortesã: é uma religião viva (KRAUS, 1985, p. 143).

Nos salmos 110 e 2, o Sitz im Leben é a cerimônia de coroação do rei: 1) declaração do rei como filho de Deus (cf. Sl 2,7; Sl 110,3); 2) convite para subir ao trono "à direita de Deus" (Sl 110,2); 3) instituição do rei como sacerdote (Sl 110,4); 4) vitória sobre os inimigos (Sl 2,9; 110,5-6). Não se apresenta um rito completo de coroação, mas são citados vários elementos desse tipo de cerimônia. Com o novo rei, vem a esperança de que haja um tempo de bem-estar, de liberdade, de justiça e de paz. Esses são os bens messiânicos. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 2; 18; 20; 21; 45; 72; 89; 101; 110; 132. Podemos ainda acrescentar: 61,7-8; 84,910; 99,2-5.20-38. Salmos de maldição e vindita

Os salmos de maldição e vindita não constituem propriamente um gênero literário, já que quase todos eles são partes das súplicas individuais e coletivas. Normalmente, são versos que invocam o mal sobre os inimigos. O salmista pede ou deseja que a vingança divina retribua com a mesma moeda: que faça recair sobre seus perseguidores o mal que eles mesmos conjuraram (Cf. Sl 7,16; 9,16-17; 57,7); diante da calúnia, que sejam confundidos (Sl 35,19.26; 40,15-16;120); seja-lhes feita a mesma violência que eles praticaram contra o fiel. Em outras palavras, o que se impreca é uma carga não superior à ofensa, mas também não inferior.

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Esses versículos dos salmos são pouco conhecidos pelos cristãos, porque foram suprimidos das nossas orações ou canções de salmos. É fácil compreender porque esses cortes foram feitos: eles conflitam com os ensinamentos de Jesus Cristo. Os salmos que pertencem a esse grupo são: 5,5-7.11; 7,16; 9,16-17; 17,13-14; 35,19. 26; 40,15-16; 58, 7-11; 59, 6.12-14; 69,23-29; 83,14-19; 109,6-20; 120; 137,8-9; 140,10-12.

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. 1) Seguindo o modelo e o estilo do gênero literário "salmo de súplica individual", componha um poema, com o seguinte esquema: a) introdução: invocação do nome divino; b) desenvolvimento: descrição do problema; c) conclusão: final feliz. 2) Leia o Salmo 111 e responda: a) Esse salmo pode ser classificado em três gêneros literários diferentes. Quais e por quê? b) Identifique a estrutura básica do Sl 111.

10. CONSIDERAÇÕES A discussão sobre os gêneros literários dos salmos continua em aberto e muitos pontos resistem a um consenso. Mais do que um assunto meramente acadêmico, os gêneros literários ajudamnos a recuperar não só a leitura dos salmos, mas também seu significado profundo em nossa vida de fé. Afinal, essas poesias foram preservadas devido à importância que tiveram na caminhada do povo de Deus: os salmos traduzem em palavras a revelação da vida de fé de um povo.

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Nos salmos individuais, o orante apresenta-se diante do seu Deus, despido de convenções sociais e até religiosas. Na sua angústia, ele clama por ajuda, justiça, saúde e até vingança. Ao mesmo tempo, derrama sua esperança na força divina. Já nos salmos coletivos, há uma comunidade de fé que, recordando os grandes feitos de Deus na história, ensina os mais jovens a cantar o passado e a sonhar com o futuro. Diante de um perigo ou uma catástrofe coletiva, a comunidade une-se em rito religioso e canta para superar o mal que aí está. Acima de tudo, os salmos brotam da vida e para a vida voltam-se: as experiências do passado iluminam o presente e abrem o futuro. Os salmos ajudam-nos, portanto, a enxergar a presença de Deus na caminhada do povo e de cada pessoa individualmente: Deus nunca nos abandona! E mais: os salmos ajudam-nos a rezar e a cantar essa presença carinhosa de Deus. De fato, os salmos não falam "de" Deus, mas falam "a" Deus. Ou seja, eles colocam palavras em nossas bocas e ensinam-nos a louvar a Deus como convém.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO SCHÖKEL, L.; CARNITI, C. Salmos I (1-72). São Paulo: Paulus, 1996. (Grande Comentário Bíblico). ______. Salmos II (73-150). São Paulo: Paulus, 1998. (Grande Comentário Bíblico). ALONSO SHCÖKEL, L.; STORNIOLO, I. Salmos: a oração do povo de Deus. São Paulo: Paulus, 1997. ARTUSO, V. Apostila sobre o livro dos salmos. Ponta Grossa, 2000. (texto não publicado). BORTOLINI, J. Conhecer e rezar os Salmos. São Paulo: Paulus, 2000. CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). DIAS DA SILVA, C.M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007. (Ferramentas Bíblicas). ESTUDOS Bíblicos. 81 Salmos de Asaf - Sl 50.73-83. Petrópolis: Vozes, 2004. KRAUS, Hans-Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca: Sigueme, 1985. (Biblioteca de Estudios Biblicos, 52). LÓ, R. C. Aliança no Êxodo. Estudos bíblicos 90 (2006) 27-44.

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MORLA ASENSIO, V. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). RAVASI, G. Libro dei Salmi – 1 (1-50); 2 (51-100); 3 (101-150). Bologna: Dehoniane, 1988/4. (Lettura Pastorale della Bibbia, 12). VV.AA. Preces do Oriente Antigo. São Paulo: Paulus 1985. (Documentos do Mundo da Bíblia, 1). WEISER, A. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994. (Grande Comentário Bíblico).

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6 1. OBJETIVOS • Compreender a literatura de poesia lírica. • Interpretar e compreender os gêneros literários. • Entender e analisar as linhas de interpretação de Cântico dos Cânticos.

2. CONTEÚDOS • • • •

Questões introdutórias: canonicidade, título, data, autoria. As correntes de interpretação. Gêneros literários. Conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, leia com atenção as orientações a seguir

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1) Como você já sabe, a simples memorização dos textos não lhe servirá para nada. Dessa forma, quanto mais nos concentramos, mais facilidade teremos de aprender. Sabemos que isso varia, naturalmente, de uma pessoa para outra; por exemplo, uns conseguem se concentrar durante um longo período, enquanto outros podem se concentrar melhor em intervalos mais curtos. Sugerimos, portanto, que você procure automonitorar sua capacidade de atenção durante os estudos e realize intervalos oportunos de acordo com ela. Você perceberá que seu rendimento será cada vez melhor. 2) Para aprofundar seus conhecimentos, sugerimos que você leia Livros sapienciais e outros escritos, de Victor Morla Asensio, publicado em 1997, e também, o livro Como ler o Cântico dos cânticos; de Ivo Storniolo e Euclides Balancin, publicado em 1991. 3) Para saber mais a respeito da canonicidade e da data, temos com dica as obras de dois autores: • MORLA ASENSIO, Victor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. • MAZZAROLO, Isidoro. Cântico dos Cânticos: uma leitura política de amor. Porto Alegre: Mazzarolo, 2000. 4) Em Mazzarolo (2000, p. 19-21) e em Goitein (in BRENNER, 2000, p. 65-74), você encontrará todas as informações necessárias que explicam a autoria do livro que estamos estudando. Vale a pena conferi essas obras! 5) Saiba mais sobre os gêneros literários referentes ao livro dos Cânticos dos Cânticos lendo a obra de Dias da Silva (2007, p. 58-60).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, estudamos o livro dos Salmos. Agora, chegamos à Unidade 6 e, com ela, conheceremos o livro de Cântico dos Cânticos.

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Ao estudarmos esta unidade, notaremos que o livro do Cântico dos Cânticos nos apresenta um modelo bíblico de intimidade humana que é expressão do Amor Divino. É o maior e mais belo comentário sobre Gn 1-2: homem e mulher foram criados do Amor para o amor.

5. TÍTULO O título em hebraico é shir hashirim lishlomoh, ou seja, Cântico dos Cânticos de Salomão; na Septuaginta (versão grega do Antigo Testamento), o livro intitula-se Asma Asmaton; na Vulgata (versão latina da Bíblia completa, feita por São Jerônimo), esse mesmo livro chama-se Canticum Canticorum, o que deu origem ao título na nossa língua: Cântico dos Cânticos. Todas essas nomenclaturas traduzem, literalmente, o hebraico, que é uma forma superlativa equivalente a "o cântico por excelência", "o mais belo dos cânticos". Seria o mesmo que dizer que um poema atingiu a sua perfeição máxima. Ao mesmo tempo, pelo título, podemos perceber que se trata de uma coleção de canções e poemas.

6. CANONICIDADE A canonicidade do Cântico foi discutida no sínodo de Jâmnia (90 d.C.), durante o qual, entre outras coisas, ficou definido o cânon judaico. A respeito da canonicidade do livro dos Cânticos, houve uma discussão acirrada sobre sua santidade. A primeira questão ligava-se às condições de um livro para fazer parte do cânon. O livro dos Cânticos preenchia todos os requisitos: foi escrito em hebraico, datado antes de Esdras (398 a.C.) e composto na terra de Israel, ainda com o grande aval: "Cântico de Salomão". A segunda questão era sobre a validade das razões para aceitá-lo como livro sagrado. A escola do rabi Shamai adotava a inter-

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pretação literal; afirmava que o Cântico era um poema puramente humano e não deveria estar entre os livros da Bíblia. Diferentemente, o rabi Eleazar ben Azahiah adotava a interpretação alegórica, segundo a qual o Cântico era um livro inspirado e deveria permanecer na Bíblia. Por fim, o rabi Aquiba afirmava que, se os outros livros eram santos por estarem na Bíblia, o Cântico seria, então, santíssimo, pois aborda três grandes temas da salvação: (a) a origem, (b) o êxodo e (c) o exílio e a redenção. Assim, o Cântico dos Cânticos passou a fazer parte da liturgia da Páscoa judaica, porque reflete o amor de Deus por seu povo.

7. DATA Não há nenhum argumento convincente para a datação, uma vez que, muito provavelmente, se trata de uma coleção de cânticos. Não obstante, podemos apresentar datas prováveis em que o material foi organizado. A data da redação final do livro pode ser estabelecida com base em critérios linguísticos e históricos, que apontam para o período pós-exílio, aproximadamente o ano 500 a.C. Nesse período, o aramaico havia-se tornado a língua usada em Judá, e, da mesma forma, o Cântico possui várias palavras aramaicas. Há, também, marcas da influência pérsia, como, por exemplo, as palavras "jardim" e "paraíso".

8. AUTOR É antiga a discussão sobre a autoria de Cântico dos Cânticos. Há quem defenda a autoria de Salomão, como indicado em 1,1. Para quem adota essa posição, basta o argumento de que Salomão foi o mais sábio de toda a Israel (1Rs 10,14-29), que criou um império de luxúria e erotismo e que teve muitas mulheres. Todavia, trata-se de um caso de pseudonímia: o nome do verdadeiro autor é desconhecido e o livro é atribuído a um persoCentro Universitário Claretiano

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nagem famoso para dar autoridade ao escrito. Esse é também o caso de Provérbios, Qohélet (Eclesiastes) e Sabedoria. Quem segue a vertente da teologia feminista defende a hipótese de que o Cântico dos Cânticos é uma composição feminina, ou seja, trata-se de poemas escritos por uma ou mais mulheres. No entanto, o que podemos dizer com certa segurança é que o(a) autor(a) era de origem judaica e conhecia muito bem a fauna, a flora e a geografia da Palestina.

9. GRANDES CORRENTES DE INTERPRETAÇÃO DO CÂNTICO É necessário evitar posições exclusivistas e que o Cântico pode ser interpretado de vários modos. Veja as suas interpretações a seguir. Interpretação literal Nessa linha de interpretação, o Cântico é a expressão do amor humano e da sexualidade. Contudo, não se pode confundir sexualidade e sensualidade com atitudes obscenas. Em outras palavras, devemos evitar uma atitude moralista. Deus criou o homem e a mulher sexuados, e foi Ele quem colocou no homem e na mulher o amor e o desejo. Então, amor e desejo são mistérios criados por Deus e valem por si mesmos, e por si mesmos falam do amor divino, sem a necessidade de uma explicação alegorizante. Interpretação alegórica Desde muito cedo, o Cântico foi visto de forma alegórica ou tipológica, tanto na tradição judaica quanto na cristã. Apesar de essa interpretação ser antiga, não há como afirmar que ela influenciou a permanência do Cântico no cânon judaico, ainda que hoje ela seja utilizada para justificar tal decisão.

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A interpretação alegórica tem por finalidade buscar o significado escondido nos personagens, na linguagem e na busca amorosa. O judaísmo vê o Cântico como representação da relação amorosa entre de Deus e Israel. Por sua vez, o cristianismo faz semelhante transferência, aplicando-o à relação de amor entre Jesus Cristo (ou Deus) e a Igreja, tendo como testemunhos antigos dessa interpretação Santo Hipólito (160-235), São Gregório de Nissa (340), Orígenes (419/420) e vários outros. Interpretação antológica Essa interpretação está vinculada à alegórica: o Cântico é visto como um Midrash, com muitas citações e alusões bíblicas, e representa as diversas fases da História Sagrada e das relações amorosas entre Deus e seu povo. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Midrash: termo técnico que significa, inicialmente, a atividade exegética destinada à pesquisa à Escritura para interpretá-la. Usa-se coloquialmente para designar uma narração lendária, imaginativa, não histórica, que exemplifica um texto bíblico. Há dois tipos de midrashes: o Midrash Halakhah, usado para exemplificar textos da Torah (Lei), e o Midrash Haggadah, usado para ilustrar narrativas.

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Interpretação mítico-cultural Esse é um método interpretativo baseado no estudo comparativo das religiões. Para os que defendem essa interpretação, o Cântico não está relacionado à fé em Javé, o Deus de Israel, mas seria a transposição veterotestamentária de textos cultuais babilônicos que descrevem antigos ritos dedicados a deuses(as) da fertilidade. O Cântico, portanto, teria sido adaptado ao culto a Javé, sem eliminar, porém, todos os resquícios dessa antiga liturgia. No entanto, essa interpretação não é segura, uma vez que, se tal ligame com antigos cultos pagãos fosse tão evidente, o judaísmo pós-exílico, em sua ânsia de purismo, teria rejeitado o Cântico (MORLA ASENSIO, 1997, p. 413-415). Centro Universitário Claretiano

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Interpretação política Segundo Stadelmann (1993), cada personagem ou situação do livro é uma alegoria política. O Cântico passa a ser um texto cifrado, pertencente à literatura apocalíptica, em que o poeta pretende incentivar a unidade entre os judeus autóctones e os repatriados, vindos do exílio, bem como a restauração da monarquia davídica. Todavia, ele usa poemas amorosos, para encobrir das autoridades persas o seu projeto de restauração davídica. Interpretação feminista Segundo essa interpretação, o Cântico faz uma reviravolta nos conceitos patriarcais sobre a mulher, pois é um protesto contra a estrutura que a discrimina. No Cântico, a mulher: • "não é subserviente ao homem (ela nunca é esposa nem mãe); • não é objeto sexual; • tem liberdade para desejar e buscar o amado" (LAFFEY, 1994, p. 269).

10. ESTRUTURA O Cântico apresenta uma estrutura clara e, por isso, há várias propostas de organização. Tomaremos por base o refrão: "Ó filhas de Jerusalém, conjuro-vos [...]" (1,5; 2,7; 3,5; 5,8; 8,4), que divide o livro todo em cinco poemas: • 1,1-4 – Introdução; • 1,5-2,7 – Primeiro poema: encontro dos amantes; • 2,8-3,5 – Segundo poema: desencontro dos amantes; • 3,6-5,8 – Terceiro poema: encontro e desencontro; • 5,9-8,4 – Quarto poema: encontro; • 8,5-14 – Quinto poema: conclusão (SCHWANTES, 1993, p. 39-49).

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11. GÊNEROS LITEÁRIOS O Cântico dos Cânticos é uma coletânea de cantos de amor, intercalando diálogos e monólogos. Ele exprime diferentes fases da experiência amorosa. Essa coletânea de cantos amorosos é formada por vários gêneros literários: Cânticos de admiração Cânticos que buscam o que há de mais belo para expressar o amor à amada, mesmo que esse belo seja a "égua do Faraó". São eles: 1,15-2,3; 4,9-5,1; 6,4-7. Cânticos de descrição da pessoa amada Cânticos que descrevem a pessoa amada, engrandecendo seus atributos físicos: os olhos, os cabelos etc. Esses poemas não seguem um esquema único, mas a descrição é gradativa: em 4,1-7, a descrição inicia pela cabeça e vai descendo; já em 7,1-10, iniciase nos pés e vai subindo. São eles: 4,1-7; 5,10-16; 7,1-10. Cânticos de comparação e alegorias A comparação aproxima e coteja duas ideias ou coisas que tenham similitude total ou parcial, para criar uma tensão poética visando à clareza. A alegoria é um tipo de comparação ampliada, isto é, "cada elemento perde seu significado original e torna-se simbólico". São elas: 1,13-14; 2,9. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– 1,13 – Saquinho de mirra: a mirra, que aparece muitas vezes na Bíblia, é uma resina usada para perfumar, anestesiar e embalsamar cadáveres. O "saquinho de mirra", segundo um costume antigo, era levado pela jovem, pendurado ao pescoço. Ao abraçar seu amado, ela o inebriava com seu perfume. Como esse saquinho, também o amado repousava sereno entre os seios da amada. 1,14 – Cacho de cipro florido: a planta do cipro produz flores em cacho, que possuem acentuado perfume. Esses cachos eram usados como enfeite feminino. 2,9 – Vinhas de Engadi: Engadi é um oásis (lugar no deserto com água e muito verde), situado ao longo do mar Morto, no deserto de Judá. Nesse lugar, eram cultivadas, particularmente, vinhas e plantas perfumadas.

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Cânticos de autodescrição A pessoa descreve a si mesma: "sou morena [...]". (Cf. 1,5-6; 2,1.) Cântico jactancioso Nesse estilo de Cântico, quem o entoa tem uma alta opinião sobre si mesmo. A amada apresenta-se como a perfeita, a insubstituível, a inesquecível: "Que sejam sessenta as rainhas, e oitenta as concubinas, e as donzelas sem conta: uma só é minha pomba sem defeito, uma só a preferida" (6,8-9). Cânticos de anseio Cantos que expressam o desejo intenso de ver, encontrar, tocar a amada ou o amado. Podem utilizar-se de comparações para demonstrar o prazer de estar juntos: 1,2-4; 2,14-15.

12. CONTEÚDO TEOLÓGICO A primeira questão a ser compreendida é a chamada "hermenêutica do duplo sentido": o Cântico fala da realidade humana (sentido literal) e, ao mesmo tempo, fala da realidade divina (sentido alegórico). É, portanto, necessário reconhecer a pluralidade dos significados para o mesmo texto: o mistério do amor humano é símbolo e também inseparável do mistério do amor divino. Em outras palavras, o Cântico apresenta uma teologia do amor humano. Para descobrir a mensagem teológica do Cântico, é necessário tomar como base a linguagem usada. Todos os seus elementos pertencem à linguagem sexual: amor, carícias, beijos, beleza física, desejo etc. Tudo isso, porém, com uma visão positiva (Gn 1-2: homem e mulher criados para viverem unidos na intimidade). Portanto, o Cântico corrige a visão negativa da sexualidade, do desejo, da paixão, da sedução e das carícias. A teologia do amor humano que emerge do Cântico se resume em quatro afirmações:

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1) O amor humano é uma realidade profunda e intrinsecamente bela e boa: os poemas exaltam o prazer de amar, que é natural na própria bondade da criação: Deus criou o homem para amar. 2) O amor humano permanece uma realidade terrena: o matrimônio e o sexo são duas realidades que fazem parte da existência humana. Para chegarem à maturidade, essas duas realidades requerem tempo, busca de sentido e liberdade. 3) A experiência amorosa baseia-se numa relação de igualdade e reciprocidade: igualdade e reciprocidade são dimensões queridas por Deus. A igualdade entre homem e mulher é a primeira e a última imagem do Cântico. O corpo e as belezas dos amantes são descritos sem preconceitos nem atitudes machistas/feministas. A mulher também tem desejos e ninguém a condena por isso. 4) O amor é fim em si mesmo e justifica a si mesmo: o Cântico nunca fala de matrimônio nem de filhos; fala simplesmente de dois amantes. Por que tal situação? Porque o amor permanece na realidade mais bela e merece, continuamente, ser redescoberto e reinventado. Podemos concluir, então, que o Cântico é uma parábola do amor divino. O amor humano é tão belo porque traz em si o mistério do amor divino. Em outras palavras, o amor humano descrito em Cântico dos Cânticos é o lugar teológico que revela o modo como Deus nos ama: com paixão, ansiedade e alegria.

13. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. 1) A poesia de amor continua viva em nossos dias. Leia a tradução do Soneto 130 de Shakespeare, compare com Ct 4,1-7 e identifique semelhanças e diferenças. Soneto 130 de Shakespeare Não tem olhos solares, meu amor;

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Mais rubro que seus lábios é o coral; Se neve é branca, é escura a sua cor; E a cabeleira ao arame é igual. Vermelha e branca é a rosa adamascada Mas tal rosa sua face não iguala; E há fragrância bem mais delicada Do que a do ar que minha amante exala. Muito gosto de ouvi-la, mesmo quando Na música há melhor diapasão; Nunca vi uma deusa deslizando, Mas minha amada caminha no chão. Mas juro que esse amor me é mais caro Que qualquer outra à qual eu a comparo. 2) A qual gênero literário pertence esse soneto? 3) Pense um pouco e encontre outros exemplos desse gênero literário (ainda que parciais) na música popular brasileira.

14. CONSIDERAÇÕES Ao longo da história da interpretação da Bíblia, o Cântico dos Cânticos foi um desafio para os estudiosos. Basta vermos as linhas de interpretações, tanto as que citamos neste estudo, quanto outras que podem ser encontradas na bibliografia citada. O Cântico trata do amor, tema pertinente e atualíssimo, uma vez que o amor entre o homem e a mulher está tão mal compreendido, usado, abusado e vilipendiado em nossa sociedade. É necessário, pois, redescobrirmos a mensagem do Cântico dos Cânticos, por meio de um estudo sério e livre de preconceitos e medos, para que possamos compreender um pouco do amor humano, que é fonte e meta para que consigamos chegar ao amor divino e viver como ele nos ensina.

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15. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRENNER, Athalya (Org.). Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. (A Bíblia: uma leitura de gênero). CRB. Sabedoria e poesia do povo de Deus. São Paulo: Loyola, 1993. (Tua Palavra é Vida, 4). DIAS DA SILVA, Cássio M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007. (Ferramentas bíblicas). GOITEIN. S. D. Cântico dos Cânticos: uma compilação feminina. In: BRENNER, Athalya (Org.). Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2000. (A Bíblia: uma leitura de gênero). LAFFEY, A. L. Introdução ao AT – perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas, 1994. (Nova Coleção Bíblica). MAZZAROLO, Isidoro. Cântico dos cânticos: uma leitura política de amor. Porto Alegre: Mazzarolo, 2000. PRÉVOST, J.-P. O Cântico dos Cânticos. In: MONLOUBOU, Louis et al. Os salmos e os outros escritos. São Paulo: Paulus, 1996, p. 180-192. MORLA ASENSIO, Víctor. Livros sapienciais e outros escritos. São Paulo: Ave Maria, 1997. (Introdução ao Estudo da Bíblia, 5). SCHWANTES, Milton. Debaixo da macieira – uma releitura, de Cantares, Estudos bíblicos, Petrópolis/São Leopoldo, n. 40, p. 39-49, 1993. STADELMANN, Luís. Cântico dos cânticos. São Paulo: Loyola, 1993. (Bíblica Loyola, 11). STORNIOLO, Ivo; BALANCIN, Euclides. Como ler Cântico dos cânticos. São Paulo: Paulinas, 1991. (Como ler).

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EAD Crítica Social

7 1. OBJETIVOS • Compreender a Literatura Sapiencial Bíblica como fruto das classes dominantes. • Interpretar e analisar os Livros: Provérbios, Jó e Qohélet.

2. CONTEÚDOS • A Literatura Sapiencial Bíblica como fruto das classes dominantes. • Livro dos Provérbios. • Livro de Jó. • Livro de Qohélet.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Observe, a seguir, algumas orientações para o estudo desta unidade:

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1) Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie e aprofunde seus horizontes teóricos. Esteja sempre com o material didático em mãos e discuta a unidade com seus colegas e com o tutor. 2) Faça anotações de todas as suas dúvidas, não deixando nenhuma para trás. Tente solucioná-las por meio do nosso sistema de interatividade ou diretamente com o seu tutor.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE À qual classe social pertenciam os "escritores sapienciais"? Eis aqui uma questão espinhosa, muito debatida e eivada de imensos problemas. Há uma grande variedade de opiniões, desde aquelas que defendem uma origem aristocrática dos escritos sapienciais bíblicos, até aquelas que advogam um berço totalmente popular para os mesmos textos. Tudo parece estar ligado a outros problemas: quem eram os "sábios"? Houve uma classe de indivíduos assim denominada? A "tradição sapiencial" foi contínua e ininterrupta, sobrevivendo, portanto, ao golpe do Exílio? Não temos nenhuma informação a esse respeito para o período que vai da queda de Jerusalém até o período helenístico. Se houve, no pré-exílio, uma classe de "sábios" cujas funções estavam ligadas à corte de Judá, nada sabemos de seu destino após o fim da monarquia do reino Sul. Bem mais tarde, ouvimos falar de "escribas", como Esdras. E ainda sabemos da existência de Qohélet, um "sábio" que passava sabedoria ao povo, e de Jesus Ben Sira, diplomata aposentado que fundou uma "escola". No novo testamento, encontraremos os "escribas da lei", os quais talvez já existissem desde os tempos de Jeremias. Em suma, não existe nenhuma documentação para ligar os sábios e escribas dos tempos posteriores aos escritores sapienciais pré-exílicos, de modo a justificar uma ininterrupta "tradição sapiencial". Aliás, as diferenças de Centro Universitário Claretiano

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teologia e de estilos refletem uma enorme diversidade de universos intelectuais e sociais. Para termos uma ideia da problemática, confrontemos as opiniões de dois autores "clássicos": Robert Gordis (1943-44) e Roger Norman Whybray (1995).

5. A LITERATURA SAPIENCIAL BÍBLICA COMO FRUTO DAS CLASSES DOMINANTES A discussão acerca da classe social à qual pertenciam os autores dos livros sapienciais bíblicos é antiga e parece não ter chegado a um consenso. A seguir, você pode conferir a opinião de dois debatedores. Opinião de Robert Gordis O estudioso judeu Robert Gordis advoga uma origem aristocrática para os escritos sapienciais. Em seu artigo The Social Background of Wisdom Literature, publicado em HUCA 18 (1943-44) 77118, Gordis adota a seguinte divisão para a literatura sapiencial: • (Proto-)Saduceia (não há ressurreição nem vida após morte; por isso, se houver retribuição, ela deve ser ainda no tempo e na história): Provérbios, Jó, Qohélet, Sirácida. • (Proto-)Farisaica (identifica Sabedoria e Torah): Salmos Sapienciais (1; 19,8; 34,12-23; 73; 94,8; 119; 127; 133; entre outros). • Helenista (forte influência da filosofia grega) — Sabedoria, Pseudo-Aristeias, 4Macabeus, Pseudo-Focílides e, talvez, 1Esdras 3,1-4,41. Gordis estuda o grupo (proto-)saduceu e é da seguinte opinião: a finalidade do ensinamento sapiencial é indicar caminhos melhores que o pecado para atingir o sucesso; em outras palavras, ensinar o caminho da fé e da moralidade. São escritos destinados

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aos filhos homens da classe alta, a fim de prepará-los para futuros encargos na administração pública. Ora, no período saduceu, os estudantes deviam passar o dia todo na escola (só os filhos dos ricos podiam fazer isso; os filhos dos pobres deviam trabalhar). Somente quando os fariseus abrirem suas escolas, é que haverá um sistema de meio período: uma parte do dia para aprender sabedoria, outra parte para aprender uma profissão (artesão ou escriba). Então, segundo Gordis (1943-44), mesmo os livros de Jó e Qohélet não são tão heterodoxos assim: são fruto das classes superiores hierosolimitanas, isto é, são conservadores. Gordis, portanto, toma como ponto de partida o ensinamento moral de Pr, Jó, Qo e Sir e classifica-o assim: "uma moral aristocrática". Vejamos alguns de seus argumentos. Uma moral aristocrática 1) Qual o fundamento do sucesso? A prudência, a capacidade de prever os resultados das próprias ações, a diligência (Pr 22,29). Portanto, evitar o laxismo (Pr 6,6-11). 2) Também é necessário ter prudência nas relações com os poderosos (Pr 23,1; Sir 13,2-20). 3) Igualmente recomendadas são a lealdade e a submissão ao rei (Pr 14,35). 4) As virtudes sociais são as aprovadas sob o ponto de vista dos ricos (Pr 22,22). Em Jó 31, temos uma confissão de inocência de alguém rico e influente (vv. 13.16-19). 5) Contra Dt 15 e Ex 22,24, aconselha-se não emprestar nem ser fiador (Pr 11,15; 6,1-5; 22,26-27a). Ao emprestar dinheiro, todo cuidado é pouco (Sir 8,12; 29,1-17). 6) Eis uma grande ironia: pobre que oprime pobre. (Pr 28,3). 7) No relacionamento com os inimigos, convém ajudá-los na dificuldade (Pr 25,21-22) e não alegrar-se com sua queda (Pr 24,17-18).

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8) Recomenda-se a justiça no julgamento e nada de corrupção (Pr 15,27; 17,15.23; Qo 7,7b; Sir 7,6; 20,29). 9) Riqueza e sabedoria: dois bens que são melhores se estiverem unidos (Sir 10,31), pois o sábio pobre nem é ouvido (Qo 9,16). 10) Qohélet questiona quem será seu herdeiro (2,18-21; 4,8; 5,12; 6,1-2): esta é a típica pergunta de rico, não de pobre. 11) Virtudes: enriquecimento honesto (Pr 1,13; 6,30-32; Sir 5,8; 13,24), honestidade nos negócios (Pr 22,28; 23,10; Jó 24,2a; 31,38) e caridade (Pr 14,31; 19,17; Sir 12,1; 18,18; 22,23). Dessa forma, essas virtudes todas devem ser seguidas para se ter a retribuição, pois a consequência delas é o sucesso, a riqueza. Ou seja, não se recomendam as virtudes pela justiça social, mas pela retribuição (Pr 3,13-18). De fato, a pobreza é vista como uma desgraça (Pr 13,18). Nada, portanto, de glorificação ascética da pobreza, e, sim, da alegria de viver bem (só para os ricos: Pr 27,9; Sir 14,14-15; 40,20 "à sabedoria" no grego; o hebraico diz somente "mas acima de tudo está o amor"; Qo 2,24; 10,19). Crítica à moral aristocrática? A Teologia da Retribuição começa a ser questionada com Jeremias e Ezequiel, após a queda do Primeiro Templo. Tratava-se ainda da retribuição coletiva (a fidelidade de um atrai a bênção para todos, bem como a infidelidade de um atrai o castigo para todos). Mas, no período do Segundo Templo, temos a passagem para a retribuição individual. A Teologia da Retribuição pode ser mantida só por uma elite que já obteve sucesso (e, portanto, a própria retribuição). A fé em Deus leva os pobres a questioná-la e duvidar dela: "como fica?". Por isso, o farisaísmo e o cristianismo vão acreditar na vida futura. Vida após a morte Os sábios relutam em aceitar uma vida após a morte, porque isso vai contra a Teologia da Retribuição. Além disso, reassume-se

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a Teologia da Retribuição coletiva e temporal. Pr parece desconhecer uma doutrina sobre vida após a morte. Sir (10,11; 7,17), por sua vez, conhece-a, mas a versão grega já terá uma reinterpretação farisaica (cf. 7,17). Jó e Qo rejeitam frontalmente a vida após a morte. Por serem tradicionais demais? Não! O motivo é bem outro: são céticos. Neste contexto, deve-se perguntar: qual tipo de ceticismo? O que caracteriza um cético? O primeiro tipo de cético é o sujeito incapaz de aceitar ideias convencionais só por causa da pressão da maioria (moda). Mas parece não ser esse o caso de Jó nem de Qohélet. O segundo tipo possui um ceticismo mais profundo: não habilidade psicológica (ou não vontade) para agir, de modo a mudar as situações. Ou seja, o ceticismo é um estado de espírito possível somente para quem observa e não aceita o mal. Mas, nesse caso, o cético não é uma vítima direta. De fato, os sofredores diretos ou agem para mudar o mal, ou fogem dele. Essa foi a postura dos profetas, dos fariseus, dos cristãos, dos místicos religiosos (refugiaram-se no espiritualismo), dos reformadores e dos revolucionários. E os sábios? Nada disso! Nem Jó, nem Qohélet, porque a vida deles era tolerável, porque não eram vítimas de injustiças. Então, Jó e Qo rejeitam a vida após a morte não porque são conservadores nas ideias, mas porque são conservadores na ação: a doutrina da vida após a morte ia contra seu status quo. Eles, no fundo, achavam que a sociedade era justa, ou, no máximo, tinham suas dúvidas. Isto é, injustos são os indivíduos, não a sociedade, não o sistema (discordando dos profetas). A ordem moral da sociedade reflete a harmonia do universo. Qohélet afirma não existir justiça, e diz que a verdade é inatingível, mas o homem deve alegrar-se nos seus bens (só os ricos: Qo 9,710). Quanto a Jó, final da história, ele torna a ser rico e com saúde (E viva a retribuição!). Centro Universitário Claretiano

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O livre arbítrio O livre arbítrio é uma questão importante, porque traz consigo o problema da predestinação. Livros (proto-)saduceus aceitam o livre arbítrio não tanto pela Teologia (embora seja difícil), mas pela necessidade psicológica de validar o status social e econômico das classes superiores: a riqueza e a pobreza são consequências do livre arbítrio (Sir 15,11-20). Outros livros sapienciais não questionam o livre arbítrio porque seu código moral se baseia nele. A mulher A atitude em relação à mulher é típica da aristocracia. Há três tipos de mulher: • a libertina (Pr 5,1-6; 6,24-32); • a briguenta (Pr 21,9.19; 27,15); • a esposa ideal e trabalhadeira (Pr 31). A esposa ideal e trabalhadeira (Pr 31) é o retrato típico da mulher da classe rica. Em toda a literatura (proto-)saduceia, a mulher pode ser fonte de bênção ou de desgraça para o marido (Sir 26,5-12; Jó 2,9; cf. Jó 1,5; Qo 7,26-28; 9,9). Pergunta-se afinal: o balanço é positivo ou negativo? Depende da mulher! Por isso, a piedade é a principal virtude da mulher (Pr 31,30; Sir 26,23). Outras considerações éticas e religiosas – a sinceridade, o amor, o respeito – faltam ou não são expressas. Concluindo a posição de Gordis Pr, Sir, Jó e Qo retratam o ponto de vista político, social, religioso e moral típico da classe alta. Não obstante algumas diferenças, o substrato é o mesmo e mais tarde será cristalizado no saduceísmo. Isso explica a ausência de certas concepções: presença de Deus na história; paixão pela justiça social; correspondência entre lealdade a Deus e paz internacional; insatisfação com atual situação do mundo.

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Mas também houve progressos. Em Pr e Sir: contra os gregos e romanos, exaltação do trabalho; valor da sagacidade, interesse pela felicidade "aqui e agora". Em Jó e Qo: crítica à razão prática, isto é, a incapacidade da razão em resolver o problema da vida. Para Gordis, portanto, dizer que a Literatura Sapiencial Bíblica é típica das elites não significa tirar seu valor, porque a experiência é universal e arquetípica. Opinião de Roger Norman Whybray É certo que as afirmações de Gordis não agradaram a todos. Vejamos, então, outra posição, mais crítica, segundo a qual o problema é bem mais complexo e sem uma solução satisfatória. Para tanto, seguiremos a apresentação feita por Whybray (1995) em seu artigo O Mundo social dos escritores sapienciais. Assim, Whybray recolhe a opinião de muitos estudiosos a esse respeito (incluindo o próprio Gordis). Basicamente, sua posição resume-se no seguinte: é difícil que os escribas da corte tenham ficado tão isolados da cultura de seu povo, a ponto de ignorar totalmente a sabedoria popular. Ou seja, estamos diante de um quebra-cabeça com muitas peças: a influência estrangeira, o profissionalismo dos sábios cortesãos (erudição e literalidade expressas em alguns aforismos de Provérbios), a formação do funcionalismo público, a sabedoria tribal e popular. Baseando nisso e passando em revista cada um dos livros sapienciais da Bíblia hebraica (Provérbios, Jó, Qohélet, acrescentando ainda os "Salmos Sapienciais"), ele apresenta um resumo das soluções até então propostas. Livro dos Provérbios Segundo Whybray, o professor Skladny, por meio da frequência dos temas abordados, estabeleceu quatro coleções distintas (10-15; 16,1-22,16; 25-27; 28-29), cada qual provindo de uma diferente classe social. Por exemplo: 16,1-22,16 teria sido composta

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para educar os filhos dos funcionários reais, ao passo que 25-27, por referir-se constantemente à agricultura e à vida doméstica, dirige-se à população pobre e mais rural da sociedade. Whybray vê, contudo, duas falhas na posição de Skladny: o primeiro problema é que há muitos temas sobrepostos; segundo, Skladny talvez seja rígido demais na distinção das classes no período primitivo, ao qual atribui essas secções. Outro estudioso, chamado McKane, preferiu ater-se à temática religiosa. Segundo ele, Pr 10-29 contém muitos ditos pertencentes ao que ele chamou de "velha sabedoria" (empírica, secular, praticada por estadistas sem suposições religiosas ou éticas), os quais foram transformados sob a influência dos profetas e amoldados conforme a fé javista. Na opinião de Whybray, porém, isso vai contra o atual consenso de que, no Antigo Oriente Próximo, a sabedoria está, desde seus inícios, permeada pelo espírito religioso. Com efeito, nesses capítulos de Pr, a função de Deus é a mesma das divindades na literatura sapiencial extrabíblica. Quanto aos capítulos 1-9 de Provérbios, vários pesquisadores (Whybray, Scott, Kayatz) estão de acordo que, exceto 1,20-33 e 8-9 (Sabedoria personificada), se trata de uma série de breves instruções muito semelhantes às encontradas na sabedoria egípcia. Mas há ainda questões abertas como: • Instrução institucional (escolas) ou instrução familiar? • Ambiente urbano, sim; mas quando? E qual a classe social dos alunos? Recentemente, outro estudioso, o professor Lang, interpretou os textos da Sabedoria personificada (1,20-33; 8-9) como tendo reminiscências de uma antiga deusa israelita da sabedoria, além de ver em 1,20-21 elementos nos quais é possível discernir as circunstâncias de ensino nas "escolas" do pré-exílio. Por meio desses e de outros argumentos, Whybray demonstra que há pouca unanimidade entre os estudiosos sobre os "mun-

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dos sociais" dos autores de Provérbios. Somente num ponto todos concordam: visto que em Provérbios jamais se identifica a Sabedoria com a Lei de Moisés, certamente esse livro não foi escrito nem influenciado pelos "escribas da Lei". Livro de Jó Antes de mais nada, devemos lembrar que ainda não está encerrada a discussão acerca da pertença ou não do Livro de Jó à Literatura Sapiencial do Antigo Testamento; não porque Jó questiona a visão simplista e otimista da Teologia da Retribuição (Qohélet também o faz), mas, sim, pelo fato de Jó situar os mesmos temas de Provérbios e Qohélet num ambiente religioso mais amplo: um contexto de fé pessoal e de luta por integridade pessoal. Enquanto Qohélet quer ensinar sabedoria ao povo (cf. Qo 12,9-10), o autor de Jó não quer ensinar doutrina alguma; antes, quer questionar seriamente a Teologia da Retribuição. Em outras palavras, Jó não veio para explicar, mas para confundir. Numa definição institucional muito estreita de "sabedoria", o livro de Jó fica de fora. Além disso, os estudiosos não questionam a unicidade do livro de Jó (composto por um único autor). Mas, por não ser um texto didático, isto é, destinado a ensinar sabedoria, é algo extremamente complexo determinar o ambiente sociocultural do autor. Note-se, por exemplo, que a desgraça do protagonista não é atribuída à injustiça social, mas à mão de Deus. Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– Convém lembrar que o tema do "justo sofredor" é um dado universal. Sabemos, ainda, que o livro de Jó mescla vários gêneros literários (disputa de sábios, tragédia, processo jurídico, lamentação dramatizada).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Quanto à data do livro e à nacionalidade do autor, tudo ainda é discussão. A narrativa em prosa (1-2; 42,7-17) é, na verdade, uma lenda antiga, usada como moldura para o poema principal. Dela nada podemos inferir a respeito do ambiente do autor. Mas é Centro Universitário Claretiano

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também a única parte do livro que pode ser datada. Satã aparece não como antagonista de Deus e acusador do homem (concepção pós-exílica, cf. Zc 3,1; 1Cr 21,1), e sim como um dos membros da corte celeste. No poema, as figuras dos amigos de Jó e as referências que o próprio Jó faz à sua condição anterior talvez possam indicar a classe social do autor. Os amigos não são apresentados como "sábios", mas simplesmente como amigos de Jó, pertencentes à mesma classe social que ele, isto é, ricos fazendeiros. Se o livro de Jó fosse uma disputa acadêmica relacionada a alguma escola sapiencial, seria necessário explicar porque os amigos dele são apresentados de forma "não profissional". Em outras palavras, o máximo que se pode dizer do status social do autor de Jó é o seguinte: se não era rico, era pobre. Whybray continua sintetizando a opinião de alguns estudiosos. Para Crüsemann, a trajetória de Jó é, na verdade, a mesma da antiga classe aristocrática israelita no período persa: empobrecimento provocado pelas sucessivas catástrofes do Estado judaico, isto é, o Exílio, suas consequentes revoluções econômicas e sociais e o império persa. Jó, então, não se queixa da doença, mas de sua decadência no status social, embora não chegue a questionar a justeza da diferenciação social. Diferentemente, Albertz identificou os "maus" do livro de Jó como magnatas que, sem escrúpulos, exploram os pobres, enquanto Jó representa os aristocratas de antigamente, tementes a Deus, e que agora são a minoria da sociedade. O principal objetivo do livro seria, segundo Albertz, não defender a própria classe, mas falar em favor dos pequenos fazendeiros endividados e escravizados. Antes de Albertz, Finkelstein considerou Jó como a obra de um plebeu desiludido por causa da injustiça e revoltado contra Deus e os ricos. Alguns acréscimos teriam transformado Jó numa "novela piedosa". Alguns textos que defendem a igualdade de classes (3,19; 31,15) jamais poderiam ter saído da boca de um rico. Finkelstein encontrou elementos "plebeus" também em Provérbios.

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Em vista dos argumentos apresentados, podemos concluir que o contexto social do autor do livro de Jó continua sendo um enigma. Livro de Qohélet O autor de Qohélet, embora desconhecido quanto à sua identidade (lembre-se: "Qohélet" é somente um apelido, cujo significado preciso ainda é motivo de discussões), é o único do Antigo Testamento a escrever em primeira pessoa, apresentando seus ensinamentos à maneira típica dos filósofos gregos: como reflexões pessoais. Seus conselhos a respeito de como desfrutar a vida (2,13.10; 5,17-19; 9,7-10), as riquezas (2,4-9), o relacionamento com os escravos (2,7), suas preocupações com seu herdeiro (2,1-19), tudo isso deixa evidente que Qohélet e seus leitores pertenciam à aristocracia. Além disso, é consenso que ele morasse em Jerusalém e que ensinasse sabedoria ao povo (cf. 12,9). Há, em contrapartida, várias questões em aberto. Qohélet, mestre de sabedoria? Mas sua argumentação e impostação do ensinamento tradicional é algo próprio, que relativiza dogmas ou dá a eles um novo significado. Embora vivesse numa sociedade fortemente influenciada pela filosofia grega (era ptolomaica), seus argumentos são nitidamente judaicos, e não helenistas. E, se comparado a Jesus Ben Sira, veremos dois ensinos alicerçados sob pilarem totalmente diferentes: a própria experiência, em Qohélet; a Torah, as tradições nacionais e o sacerdócio, em Sirácida. Sem falar que não temos notícias a respeito de discípulos ou continuadores de seus ensinamentos, nem mesmo das consequências por ele provocadas. Exerceu, então, Qohélet alguma influência na sociedade de seu tempo, ou não? Eis aí uma questão para a qual não temos elementos para responder. Contudo, seu livro dá-nos claras indicações a respeito de como era aquela sociedade: obcecada pela aquisição de riqueza e pelos lucros comerciais, tanto que ele pergunta constantemente: "qual o yitrôn (lucro, proveito, vantagem) Centro Universitário Claretiano

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para o homem?" (1,3; 2,11; 3,9; 5,8; 7,12). Outro termo importante para Qohélet, ligado a yitrôn é "amal" (trabalho, canseira, esforço; fruto do esforço: 1,3; 2,11.19-21; 5,15.17; 8,17). O livro reflete, pois, o efeito desintegrador que essa nova preocupação com o dinheiro trouxe para a sociedade judaica: a corrupção política (3,16; 8,10); as injustiças e as opressões pelos ricos e por um governo duro (4,1-2). Apesar disso, Qohélet parece ter-se mantido neutro: não defendeu nem condenou a estrutura social de seu tempo. Concluindo a posição de Whybray Whybray não estuda Sirácida e Sabedoria (para os anglicanos, tais livros não são canônicos); acrescenta, em contrapartida, um tópico sobre os "Salmos Sapienciais". Ao ler esse seu artigo, damo-nos conta da complexidade da questão: qualquer posição categórica é unilateral e simplista. Bastaria uma rápida consulta à ampla bibliografia apresentada ao final do artigo para notar como a questão tem atraído o interesse de estudiosos há muito tempo. Além disso, outro problema é a própria história de cada um daqueles livros: quem foram realmente seus autores? Como chegaram até nós? A quantas redações e redatores estiveram expostos? Conforme já afirmamos anteriormente, o artigo de Whybray quer mais é nos apresentar em que estágio se encontra a discussão, a que ponto chegamos na pesquisa e, ao mesmo tempo, os problemas provocados pelas respostas sugeridas.

6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. Comece lendo, com atenção, o excerto retirado da obra Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, de N. K. Gottwald (1988), nas páginas de 522 a 539.

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Depois, responda às seguintes questões: 1) A respeito do mundo social de Jó, Provérbios e Sirácida: o que dizer acerca da posição de Gottwald? Em que Whybray e Gottwald estão de acordo e em que divergem? A posição de Gottwald é unilateral ou se dá conta da complexidade da questão? Se for unilateral, quais os problemas que ele deixa de lado? Se reconhecer a complexidade da questão, quais os problemas que ele levanta? 2) Como aparece no capítulo de Gottwald o problema da retribuição?

Antes de passar para o gabarito, tente elaborar as suas respostas. Gabarito Confira, a seguir, as respostas para as questões autoavaliativas: 1) Sobre o mundo social dos autores bíblicos: Para responder à primeira questão, é necessário antes notar uma diferença fundamental entre os dois textos. Whybray apresenta a que ponto chegou a discussão: analisa as várias tentativas para responder à questão do mundo social dos autores sapienciais. Diferentemente, Gottwald baseia-se em uma teoria sociológica e analisa os livros bíblicos, e não a opinião dos comentadores. Em outras palavras, enquanto Whybray quer avaliar as diversas respostas dadas a esse problema intrincado – se autores sapienciais eram ricos ou pobres (note-se a grande quantidade de citações a outros autores e a enorme bibliografia ao final do capítulo) –, Gottwald detém-se em cada livro e aplica, vez por outra, algumas categorias sociológicas; por vezes, procura refazer as etapas de composição de cada livro e cita autores só quando necessário (comparado a Whybray, Gottwald apresenta pouquíssimas referências a outros comentadores e somente onze notas de rodapé). Embora por caminhos diferentes, ambos chegam a uma mesma conclusão: querer dar uma solução simples para a pergunta acerca do status social dos autores sapienciais é ingenuidade. A posição de Gottwald, portanto, não é unilateral, no sentido de, como faz Gordis, defender uma classe como berço da Literatura Sapiencial. Muito pelo contrário, reconhece a complexidade da questão. Tanto que, na página 527, ele apresenta o gráfico 10 com três ambientes sócio-históricos que deixaram suas marcas nos livros atuais: Família – Estado – Torah. Assim, Gottwald reconhece que todos esses foram ambientes nos quais a Literatura Sapiencial se desenvolveu; mas considera o Estado como o que acabou exercendo maior influência ou controle, porque tinha os meios para transmitir e propagandear tanto os gêneros literários, quanto as preocupações éticas e teológicas dos autores/redatores. Em contrapartida, Gordis recorda que os escribas tinham laços familiares e tribais, os quais não foram abandonados pelos "sábios"; Centro Universitário Claretiano

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antes, tais laços influenciaram a reflexão e a seleção do material. Nisso, Gordis e Whybray (p. 227) concordam. Outro ponto em que concordam: há diferença entre o sábio do pré-exílio e o sábio do pós-exílio. Após a volta da Babilônia, aconteceu uma institucionalização da tarefa sapiencial, bem como a influência das demais literaturas que estavam se completando ou já estavam completas: Obra Histórica Deuteronomista, tradição sacerdotal (P), profetas. O que ocorre é uma "domesticação" da sabedoria pela Torah. Isso implica dizer que, não tendo mais a pujança dos profetas pré-exílicos, a falta de uma corte local, bem como as novas experiências do Exílio, os círculos ao redor da Tora ocuparam um espaço deixado em aberto e provocaram um redirecionamento na maneira de ver e interpretar o mundo e a sociedade. Mas Gottwald ainda nota que tudo o que ficou atrás (profetas, sacerdotes e anciãos tribais) influenciaram na postura dos funcionários sábios (sabedoria estatal), não deixando que se acomodassem na própria posição, mas obrigandoos a questionar também situações sociais que não lhes atingiam diretamente. Gottwald considera ser essa uma "moldura interpretativa geral" para explicar porque a Literatura Sapiencial tem raízes na instituição, bem como fora dela. Ou seja, a Literatura Sapiencial não é só fruto do funcionalismo público, mas também recebeu uma carga da sabedoria tribal e familiar. Vejamos agora os problemas levantados nos livros de Provérbios, Jó e Qohélet: Provérbios Gottwald questiona a rigidez na classificação de coleções entre pré e pósexílicas. Questiona, também, a opinião segundo a qual Provérbios seria um manual de sobrevivência política e chama a atenção para o fato de que a maioria dos provérbios trata de assuntos familiares e econômicos. Além disso, afirma que os portadores da Sabedoria "são apanhados em contradição de classes": por um lado, a posição privilegiada daqueles mestres leva-os a aprovar a ordem socioeconômica como reflexo da ordem cósmica; por outro, não deixam de notar contradições sociais que violam essa mesma ordem cósmica, e equiparam desordem = insensatez = injustiça = pecado contra Deus. Jó Logo de início, Gottwald afirma que Jó não quer responder à questão acerca do porquê do sofrimento do inocente, mas apenas afirmar que ele existe e que qualquer explicação fácil nos leva a um não agir. Após isso, passa em revista o aspecto sociológico dos vários poemas e partes do livro. Mas não faz nenhuma afirmação concernente à posição social do autor. Sobre ele, Gottwald arrisca-se somente a dizer que talvez seu objetivo fosse chamar a atenção dos "guardiões da sabedoria" sobre a falta de seriedade e inconsequência de um apriorismo a respeito da lógica da vida. Qohélet Em Qohélet, Gottwald pode fazer afirmações mais seguras, porque situa o autor na Palestina ptolomaica. Ambos, o próprio autor e o redator final, deixaram indicações que permitem afirmar algo sobre a pessoa de Qohélet: um sábio a serviço dos governantes, mas que também pode ter ensinado sabedoria a quem não era funcionário público. Nada impede que ele tenha fundado uma escola como Jesus Ben Sira. Suas observações demonstram que conhecia o modelo ptolomaico de administração. Ben Sira solidariza-se

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com os pobres, mas só faz críticas indiretas a seus opressores. Gottwald vê nisso uma forma de não arriscar sua posição social privilegiada. 2) Sobre a Teologia da Retribuição: O raciocínio de Gottwald é bem simples: crítica à sociedade é igual à crítica à Teologia da Retribuição. Daí que, analisando cada livro, segundo a presença ou não desse tipo de consideração sobre a justiça ou a injustiça presente na sociedade, Gottwald avalia se Prorvérbios, Jó e Qohélet aceitam ou não a Teologia da Retribuição. Gottwald considera Provérbios um livro não monolítico em sua ideologia, uma vez que há opiniões diferentes: só 1/3 dos provérbios sustenta a Teologia da Retribuição, pois encontram-se várias críticas à opressão e injustiça. Então, a Teologia da Retribuição não é tão imperante assim. As últimas linhas do capítulo de Gottwald tratam da Teologia da Retribuição em Jó e Qohélet: Jó questiona a Teologia da Retribuição, baseado no sofrimento amoral; Qohélet faz o mesmo, baseado na experiência humana, e avalia o sucesso e o proveito dos esforços humanos. Tendo em vista os aspectos observados: quanto a Jó e Qohélet, Gottwald aceita que sejam críticos mordazes à Teologia da Retribuição. Mas é quanto à Teologia da Retribuição em Provérbios que Gottwald apresenta uma novidade em relação à opinião costumeira. Cumpre lembrar: Gottwald analisa os livros, não a opinião de outros comentadores. E sua conclusão pode ser assim apresentada: também Provérbios apresenta trechos críticos à situação social. Para Gottwald, isso significa criticar, também, a Teologia da Retribuição.

7. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, apresentamos a você uma série de características da Literatura Sapiencial Bíblica como fruto das classes dominantes, bem como os Livros: Provérbios, Jó e Qohélet. Na próxima unidade, apresentaremos a Criação, Libertação e Retribuição na Literatura Sapiencial. Até lá!

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GORDIS, R. The Social Background of Wisdom Literature, HUCA, n. 18, p. 77-118, 1943-44. GOTTWALD, N. K. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulus, 1988. WHYBRAY, R. N. O Mundo social dos escritores sapienciais. In: CLEMENTS, R. E. O Mundo do Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 1995.

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1. OBJETIVOS • • • • •

Compreender os conceitos de Mundo e cosmos. Interpretar a criação. Analisar a sabedoria criadora. Relacionar criação e História da Salvação. Compreender libertação histórica e messiânica; libertação social e libertação filosófico-teológica (ou retribuição).

2. CONTEÚDOS • • • • •

Mundo, cosmos: que é isso? Criação. Sabedoria criadora. Criação e história da salvação. Libertação histórica e messiânica.

EAD

Criação, Libertação e Retribuição na Literatura Sapiencial

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• Libertação social. • Libertação filosófico-teológica (ou retribuição).

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, leia as seguintes orientações: 1) Volte às unidades anteriores para entender e recordar os conceitos propostos. Consulte sempre o Glossário quando surgirem ideias que ainda não foram completamente assimiladas. 2) Utilize o Esquema de Conceitos-chave para o estudo de todas as unidades deste Caderno de referência de conteúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu desempenho.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Antes de mais nada, devemos lembrar: os livros da literatura sapiencial bíblica são obras de diferentes línguas, autores e épocas para responder às mesmas questões: • Quem é o homem? Qual o sentido da vida humana? • Como viver melhor? Como encontrar a felicidade? Ambas os pontos se implicam: o homem é criatura de Deus, do qual depende sua felicidade. Destino e origem do homem estão intimamente ligados. Entra em cena, então, outra questão: há no mundo uma ordem à qual o homem deve amoldar-se, renunciando à sua própria autonomia? Os egípcios responderam afirmativamente, por meio da noção de ma'at, isto é, a ordem justa na natureza e na sociedade, já estabelecida na criação. Essa ordem necessita ser sempre mantida ou restabelecida, seja nas pequenas, seja nas grandes questões. Não é somente uma ordem justa, mas também fruto da atividade humana; e é, ainda, o prêmio reservado ao homem que a constrói. Centro Universitário Claretiano

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Devemos, pois, perguntar: tudo isso a respeito da ma'at é válido também para compreender a Sabedoria em Israel? Ajuda, mas não resolve tudo. Com efeito, os sábios de Israel não estavam apenas interessados em encontrar uma ordem de fundo, um princípio inato, estático e imutável, cujo conhecimento tornaria a tarefa de viver mais fácil e benéfica. Para falar a verdade, tudo começa com a noção de mundo e criação que nossos pais na fé tinham. Esta unidade é uma adaptação da obra: CIMOSA, M. et al. Creazione e Liberazione nei libri dell’Antico Testamento. Torino: 1989, p. 55-72.

5. MUNDO, COSMOS: QUE É ISSO? Comparando o conceito hebraico 'olam com o grego kósmos, vemos que são duas noções completamente diferentes. • Kósmos (sem equivalente no hebraico): regularidade, estabilidade, ordem, beleza, algo separado e independente do homem, ou seja, o cosmo é como o "contenidor", e a humanidade é o "conteúdo"; tempo e espaço são receptáculos vazios, abstratos. Daí o eterno retorno. • 'Olam: definitivo, estável, contínuo, pleno; para sempre, perpetuamente, sem término, duradouro, desde antanho; vitalício, indefinido, interminável, inacabável. Notamos um termo de significados muito fluidos, por vezes contraditórios. Só tardiamente é que designa o "mundo". A ideia de "receptáculo vazio" não existe na Bíblia: o espaço e o tempo são sempre preenchidos por coisas e fatos. De outra forma, não existem. Para dar o sentido do grego kósmos, a Bíblia hebraica usa o termo "kôl" ("tudo") (Is 44,24; 1Cr 29,11) ou expressões polares do tipo "céuterra" (Gn 1,1), "céu-mar-terra" (Ez 38,20). Consequência:

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a história não está fechada, mas aberta, e nela o homem pode interferir. Claro que não se negam certas regularidades no mundo (fenômenos da natureza, estações do ano etc.), mas essas regularidades aceitas não são consideradas uma "ordem" à qual o homem deve adaptar-se, nem mesmo como objeto da pesquisa sapiencial. Como fica, então, a Teologia da retribuição? Para responder a tal pergunta, é necessário retornar à ideia de ordem expressa pelo termo egípcio ma'at, pois é a que melhor se equipara ao termo hebraico "tzedaqah" ("justiça"). A Teologia Sapiencial (e, portanto, da retribuição) é uma teologia da Criação, uma vez que, desde as origens, há um princípio unitário de ordem que abarca tudo: o cosmos, a política, a sociedade, a família etc. Esse princípio garante a continuidade entre o ato e sua consequência. Chegados a esse ponto, devemos perguntar: o que é Criação?

6. CRIAÇÃO O termo "criação" pode designar duas realidades: • ato de criar; • resultado desse ato. O ato de criar São raros os textos da sabedoria bíblica a respeito do ato de criar. Neles, faz-se presente a mentalidade semítica de cosmogonia: o poder de Deus combate o caos (Sab 11,17) ou os deuses e monstros que o simbolizam (Jó 3,8; 7,12; 9,13; 26,13) e obtém sobre eles uma clamorosa vitória. Deus aprisiona-os; em outras palavras, o caos não é jamais eliminado totalmente. Isso implica afirmar que basta libertá-lo e ele retorna: para Israel, a criação não é intrinsecamente irreversível. Centro Universitário Claretiano

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Em contrapartida, isso não contradiz o processo de demitização operado pela Sagrada Escritura: a luta de Deus contra o caos logo passou a ser somente uma figura retórica, e não o conteúdo da fé israelita. Por exemplo, Jó 38,8-11 enfatiza a transcendência de Deus e demitiza antigos mitos. A Sabedoria aparece como primícias da criação e artífice junto a Deus (Pr 8,22-31). A obra acabada (o resultado) Os textos relacionados à obra acabada são mais numerosos. Apresentam a beleza e a ordem a serem contempladas, levando o homem a louvar e a glorificar seu autor. Livro da Sabedoria 13,1-16 – é estulto quem não reconhece o autor, porque, pela razão, o homem pode chegar a conhecer Deus. Portanto, os adoradores dos elementos da natureza (filósofos estoicos) não têm desculpa: não foram capazes de reconhecer o senhorio de Deus. Sua pesquisa foi correta, mas perderam o rumo. Livro de Sirácida 16,24-17,9 – evocando Gênesis, sublinha a ordem e a precisão da obra criada e, também, a suprema dignidade e o destino do homem. A ele, Deus deu muitos dons para lhe facilitar conhecer e louvar seu Criador. 18,1-14 – o homem pode contemplar e experimentar a grandeza e a misericórdia de Deus. 39 – tudo na criação é perfeito e bem ordenado e está à disposição do homem. Contudo, a obra criada pode tornar-se instrumento da ira de Deus contra os ímpios. 40,1-17 – está em contraste com a beleza e a utilidade da criação a miséria do homem, sobretudo do pecador.

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42,15-43,33 – elogio da criação em três etapas: • 42,15-25 – doxologia entusiasmada pela criação: tudo foi feito por meio da palavra, que expressa Sua glória, onisciência e bondade; • 43,1-26 – descrição e função de cada coisa com explícitos convites a celebrar o Senhor; • 43,27-33 – Ben Sira louva a Deus, mas reconhece que suas palavras são inadequadas para exaltá-lo satisfatoriamente. Livro de Jó A finalidade dos textos do livro de Jó é mostrar a incapacidade do homem para compreender os planos de Deus. 9,2-13 – Deus é infinitamente maior que o homem: o Deus criador não se prende a leis e princípios humanos. 12,9; 25,5-14; 26,10-14 – o poder e a sabedoria de Deus estão presentes em tudo: a organização do mundo é um mistério, um pálido reflexo do projeto de Deus. Ele escapa a qualquer compreensão e reflexão dos homens. 38-41 – poema criacionista, em duas partes: • 38,2-39,30: descrição da criação. Obra artesanal, como a construção de um edifício só conhecido por Deus. No mundo animal, nenhuma das feras foge ao controle e à providência de Deus. O homem não pode dominar tal mundo: resta-lhe somente a contemplação; • 40,7-41,26: vitória de Deus sobre o caos. Behemot (hipopótamo) e Leviatã (crocodilo): "monstros" aquáticos que só Deus pode dominar. As obras da criação são um desafio para o homem, mas uma brincadeira para Deus. Jó toma consciência de sua incapacidade para julgar a Deus.

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7. SABEDORIA CRIADORA A personificação da Sabedoria cocriadora prepara a Teologia do Verbo Encarnado. Vejamos algumas passagens bíblicas: • Pr 8 – existe uma ordem primordial no mundo: é a Sabedoria. Ela fala ao homem e lhe revela a vontade de Deus. A sabedoria personificada é pré-existente e cocriadora. Ela é a plena realização da vontade de Deus, modelo e imagem de tudo: todas as criaturas têm uma marca da Sabedoria. Por isso, o homem tem sempre uma via aberta para chegar a Deus. • Sir 24,2-6 – origem da Sabedoria e sua inserção no mundo: palavra criadora e Espírito que voava sobre o caos primordial (Gn 1). Mas ela também habita no meio do povo de Deus. • Sb 8,1.5-6 – ação cósmica fortemente sublinhada: artífice dos seres.

8. CRIAÇÃO E HISTÓRIA DA SALVAÇÃO Por meio da Sabedoria, Deus não só cria, como também intervém na História, a qual, dessa forma, se transforma em "História da Salvação". Livro de Sirácida 24 – A Sabedoria de Deus habita em Israel (vv.7-11) e identifica-se à Lei Mosaica (vv.22-27). 42,15-50,24 – A História (44,1-50,24) é a criação (42,15-43,33) em desenvolvimento.

Livro da Sabedoria 10-19 – História da Humanidade exposta sob o ponto de vista da Sabedoria Divina, que guia os personagens (heróis) da História de Israel.

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A ordem da criação é garantia e, também, sinal da ação de Deus: o mesmo Deus que cria salva e conduz a história com Sabedoria.

9. LIBERTAÇÃO HISTÓRICA E MESSIÂNICA O termo "libertação" não aparece na Literatura Sapiencial bíblica. Também não é muito frequente no restante do Antigo Testamento. Mas a ideia, sim. Ela é expressa por meio dos vocábulos "redenção" e "salvação". O paradigma é a saída do Egito, o Êxodo. Livro da Sabedoria 10,15-19,22 – trata-se de um Midrash, um comentário com finalidade edificante. Sete antíteses nas quais a sorte e a salvação dos justos (Israel) são, ao mesmo tempo, infortúnio e castigo para os ímpios (Egito).

Livro de Sirácida 36,1-22 – libertação messiânica, mas sem citar o Messias! Jesus Ben Sira espera a libertação e a reunificação das tribos de Israel, ao mesmo tempo que os pagãos serão humilhados. O cumprimento das promessas messiânicas fará que todos os povos reconheçam quem é o verdadeiro Deus.

10. LIBERTAÇÃO SOCIAL Na Literatura Sapiencial, as desigualdades sociais são supostas e aceitas, porque se pensa que são fixadas por Deus já no nascimento. A riqueza é uma bênção. Quanto aos pobres, não formam uma classe em oposição aos ricos porque têm direitos, embora nem sempre respeitados. Ou seja, é necessário distinguir duas coisas: • situação dada; • dignidade humana. Visto que pobreza e riqueza são situações dadas, isto é, já derivadas da criação, não encontraremos críticas mordazes como

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nos profetas pré-exílicos. Há, porém, acusações referentes a certos abusos sociais (Sir 34,22; 11,14). Em contrapartida, é necessário lembrar que a dignidade humana deriva do fato de todo homem ser imagem de Deus, mesmo se há diferenças sociais (Jó 31,13-15). Assim, recomenda-se uma solidariedade concreta (Sir 4,10), pois o próprio Deus defende a causa do pobre (Pr 22,22-23; 14,31). Em coerência com a Teologia da retribuição, Pr 14,18 apresenta outras causas para a pobreza: a preguiça e a ignorância. Nessa mesma linha, a inteligência, a produtividade e a constância podem promover uma melhora de vida de um indivíduo (Pr 17,2; 22,29). Em suma, não se pode falar de reflexão sistemática sobre a libertação social, mas há intuições. Os princípios sapienciais, derivados da fé e da experiência humanas, podem reduzir os contrastes e as diferenças sociais excessivas.

11. LIBERTAÇÃO FILOSÓFICO!TEOLÓGICA "OU RETRIBUIÇÃO# Nos livros sapienciais, a "libertação" mais importante e incentivada é a que se liga ao significado da vida e da existência humana: a retribuição. Tanto quem a defende como quem a contesta não se pode furtar a falar dela. Antiga sabedoria: retribuição terrena Livro dos Provérbios A vida humana é apresentada de modo ideal e otimista. O homem colhe a retribuição por suas obras: riqueza, vida longa, saúde, felicidade para o justo (= piedoso e sábio – 13,21;1,33; 3,2.4.10.16). Esse princípio é aplicado radicalmente: foi escrito pelo próprio Deus; nunca falha porque é manifestação da justiça de Deus (16,4; 29,16). Mesmo que os ímpios prosperem, a punição chegará (11,8; 13,22; 14,19; 28,8).

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Livro de Sirácida No livro de Jesus Ben Sira, encontramos um humanismo religioso que parte do princípio da retribuição temporal. O prêmio ou o castigo realizam-se nesta vida ou no momento da morte. Obras premiadas: esmola aos pobres (3,29-30; 4,6-10), cuidado para com os pais anciãos (3,3-6.8), sacrifícios (35,6.9-10). Os prêmios: boa saúde (13,25-26; 30,14-25), um bom nome, o prestígio de uma família numerosa. Com infinita sabedoria, Deus governa o mundo com justiça: tudo tem seu tempo e sua razão. Os limites e as dificuldades da vida humana são superados com a fé em Deus. Quanto ao além ou Sheol, trata-se da habitação comum para justos e ímpios: uma vida vaga e penosa. Mas, na seção "Elogio dos Antepassados", fala-se de uma "eterna comunhão com Deus": Henoc ignorou a morte (44,16; 49,14); José personifica a sobrevivência de toda a nação (49,15); Elias é apenas um entre os arrebatados (48,11).

A grande contestação Livro de Jó Como fica o sofrimento do inocente? No prólogo e epílogo, Deus está colocando o justo à prova. Após todas as agruras da vida, a fidelidade trará a reintegração do justo fiel. Por sua fidelidade (seja lá o que isso signifique no livro), Jó terá a retribuição. Em outras palavras, a retribuição tem sua revanche. Com relação aos quatro amigos, o sofrimento é uma expiação pelo pecado, uma correção da parte de Deus, a qual o homem deve aceitar e converter-se. O autor de Jó não aceita tal solução: na prática, nem sempre é assim. É certo que o homem é limitado, mas só por isso não merece castigo (7,20; 9,2-4). Na verdade, falta justiça no mundo (9,22-24; 13,1-2; 31,2-3), e Deus trata o homem com sadismo (6,4; 9,13.17). Jó desafia o próprio Deus (capítulos 12-14). Deus responde a Jó: na obra criada, manifesta-se a generosidade de Deus para com todas as criaturas. É necessário abrir os olhos do homem: a Centro Universitário Claretiano

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mesma providência que cria também cuida dos sofrimentos humanos ( 38-42). Por que Jó sofre? Situação não explicável pela Teologia da retribuição. Deus assim o quis. O mal é, pois, um mistério: o sofrimento é um não senso para o homem, mas cheio de sentido para Deus. Por isso, é necessário ser humilde e resignado diante do mistério de Deus. A única solução é estar em comunhão com Ele, que é o bem supremo do homem. Livro de Qohélet Qohélet dá grande ênfase ao termo hebraico "hével", que significa "névoa, fumaça, vento". No grego, "hével" foi traduzido por "mataiótes" ("vaidade") e no latim por "vanitas" ("vaidade"). Convém, todavia, ater-nos ao termo hebraico. Qohélet afirma: "tudo é hével", "tudo é nada! Tudo é mentira! É tudo mentira!". A que Qohélet se refere? À retribuição e, portanto, ao princípio da retribuição: é tudo um grande engodo. A recompensa não é lá essas coisas. Isto é, mesmo que Teologia da retribuição funcione, o prêmio não é tão bom assim: é fugaz e passageiro para um esforço tão grande por uma vida justa. E nem mesmo a natureza progride: "nada de novo". A retribuição não funciona (3,16; 4,1; 7,15; 8,9; 9,11). E o maior absurdo é a morte: ela iguala sábios (justos) e estultos (ímpios) (2,16; 3,22; 9,4-10). Não há chance alguma de felicidade futura (2,15). Entretanto, há valores na vida humana: a sabedoria, por ser melhor que a estultícia (7,19; 9,18; 10,12); a riqueza (2,24); as coisas belas e boas (5,17-19; 11,8-10); o amor (9,9). Mas não se pode enganar-se: tudo é transitório; tudo é hével. Isso tudo e ainda pior: a experiência não confirma a retribuição. Qohélet não tem coragem de questionar Deus e pedir-lhe uma solução para o problema. A vida é, pois, um beco sem saída. Qohélet representa uma nova concepção de Deus e, portanto, um novo modo de relacionar-se com Ele.

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A feliz imortalidade Livro da Sabedoria Para qual destino o homem foi criado? Para a felicidade ultraterrena. Ou seja, o escopo da criação não é a morte, mas a vida (1,1; 3,1-9; 4,7; 6,17-21). Foi o demônio quem introduziu o pecado e a morte no mundo (2,23-24). Fala-se de imortalidade, mas não de ressurreição, nem se diz com precisão quando será a retribuição ultraterrena. Os termos usados são "visita" (3,7.13; 14,11; 19,1) e "juízo" (2,7-9.13-14; 5,15-16), sempre com os verbos no futuro. A existência terrena é apenas a preparação para a vida futura (3,2-6; 5,15-16). A abundância dos bens ou as tribulações não são consequências dos atos humanos. A morte é apenas uma passagem, mesmo que prematura (3,2-4; 5,15-16), do mundo do pecado ao mundo divino (4,7-14). A esterilidade não é uma desgraça, porque a vida na glória compensará a falta de filhos (3,14-4,6). A morte do justo é tida como libertação da perseguição (3,1) e dos males do pecado. Há, portanto, uma visão positiva da vida humana: o homem foi criado para a incorruptibilidade, e sua felicidade está em fazer a vontade de Deus. Deus age na história com sabedoria, carinho, clemência. Por duas vezes, Deus é chamado "Pai", com um acento pessoal, diferente do resto do Antigo Testamento (2,16; 14,3, mas cf. também 11,10; 12,19-22).

12. CONCLUSÃO: LITERATURA SAPIENCIAL E NOVO TESTAMENTO Neste tópico, serão estudadas algumas relações entre a Literatura Sapiencial do Antigo Testamento e o Novo Testamento sob dois aspectos: • literário; • teológico.

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Relações literárias Várias passagens do Novo Testamento utilizam os mesmos gêneros literários presentes nos livros sapienciais do Antigo Testamento. Não só isso; há, também, citações diretas, citações indiretas e alusões. Gêneros literários Nos evangelhos, vários ensinamentos de Jesus são formulados como ditos sapienciais em suas várias formas. Veja alguns exemplos: • Provérbios: "Porque a boca fala daquilo que o coração está cheio" (Lc 6,45b); "A cada dia basta seu mal" (Mt 6,34b). • Meshalim (plural de mashal): "Vós sois o sal da terra. Ora se o sal se tornar insosso, como que salgaremos? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens." (Mt 5,13-14; cf. também: Mt 5,25; 6,3; 7,1.3.6.8.13; 12,41.42; Jo 1,46; 3,8; 7,24; 20,29). • Macarismos (bem-aventuranças): Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bemaventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles encontrarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus. Bem-aventurados os que constroem a paz, porque eles serão chamados filhos de Deus (Mt 5,3-9).

• Parábolas: Qual, de vós, tendo cem ovelhas e perde uma, não abandona as noventa e nove no deserto e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? E achando-a, alegre a coloca sobre os ombros, e, de volta para casa, convoca os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: 'alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida!’ Eu vos digo que do mesmo modo haverá maior alegria no céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento (Lc 15,4-7.8-10).

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Seguindo forma de catalogar os conhecimentos daquela época (elencos de fenômenos, elementos naturais, atividades humanas etc.), o Novo Testamento apresenta, também, listas de vícios e de virtudes, principalmente no epistolário paulino. Observe alguns exemplos: • listas de virtudes: "[...] amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio" (Gl 5,22-23; cf. também: 2Cor 5,6-8; Col 3,12; Ef 4,2; 5,9; 1Tm 4,12; 6,11; 2Pd 1,57). • listas de vícios: [...] fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçarias, ódio, rixas, ciúmes, iras, discórdias, discussões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias e coisas semelhantes a estas (Gl 5,19-21; cf. também: Mc 7,21-22; Rm 1,29-32; Ef 5,3-5; Col 3,5. 8-9; Ap 21,8; 22,15).

Citações diretas, citações indiretas e alusões Tabela 1 Algumas estatísticas. Cântico

2 vezes

Qohélet

13 vezes



cerca de

100 vezes

Provérbios

cerca de

100 vezes

Sabedoria

cerca de

110 vezes

Sirácida

cerca de

130 vezes

Salmos

cerca de

540 vezes

Veja alguns exemplos: 1) Sl 22,2, citado em Mt 27,46 e Mc 15,34: "Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?". 2) Sl 31,6, citado em Lc 23,46: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito". 3) Sl 2,7, citado em Lc 3,22 e At 13,33: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei". 4) Pr 3,11-12, citado em Hb12,5-6: "Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não desanimes quando ele te corrige; pois o Senhor educa a quem ama, e castiga todo filho que acolhe".

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5) Pr 25,21-22, citado em Rm 12,20: "Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele". Relações teológicas Os livros sapienciais bíblicos ofereceram não somente formas de pensamento e de expressão, como também categorias teológicas para compreender Jesus e seu ensinamento sobre o reino de Deus. Cristologia Paulo fala de Jesus como "sabedoria de Deus". Ainda não se fala de personificação e identificação absoluta. Vejamos alguns exemplos: • 1Cor 1,23-24.30: Cristo como Sabedoria de Deus. Não é uma identificação metafísica, mas funcional: a ação de Jesus é análoga à ação da Sabedoria. Com efeito, em 1Cor 1-2, a palavra "sabedoria" não tem a mesma extensão que na literatura sapiencial, na qual é usada para designar a relação Deus – homem. Ao afirmar "Jesus tornou-se sabedoria de Deus" (1Cor 1,30), Paulo quer dizer que, em Jesus, se faz presente a ação salvífica de Deus. • Col 1,15-20: Jesus como "imagem" e "princípio". Esses termos são tipicamente sapienciais e atestam que Jesus exerce as mesmas funções que, na literatura sapiencial veterotestamentária, competem à Sabedoria. Mas Paulo vai mais além: Jesus é igual ao próprio Deus. Assim, nesse antigo hino cristológico que Paulo tomou emprestado da comunidade cristã, não ocorre uma mera identificação, uma vez que Jesus supera o conceito de Sabedoria do Antigo Testamento. Pode-se concluir que Paulo utiliza os conceitos da tradição sapiencial para exprimir a relação entre Jesus e o cosmo. Mas não se trata

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de uma entidade personificada, isto é, não há a identificação absoluta Jesus = Sabedoria, uma vez que Jesus supera a própria Sabedoria. No caso dos evangelhos sinóticos, Jesus é constantemente chamado de "mestre". Mestre de quê? O complemento oculto não pode ser outro: "mestre de sabedoria" ou, traduzindo para nosso modo de falar, "mestre sábio". Tudo o que Jesus ensina é palavra sábia, palavra de sabedoria: • Mc 6,1-2: em sua visita a Nazaré após iniciar sua vida pública, surge o questionamento no povo: "De onde lhe vem tudo isso? E que sabedoria é essa que lhe foi dada?" (v. 2). O povo conhece Jesus, mas agora quer saber da sua real identidade, isto é, qual a relação entre aquele que fala (Jesus) e as suas palavras (seu ensinamento). • Mt 12,38-42: ao ser rogado por um sinal, Jesus responde citando Jonas e Salomão. Sua última afirmação é: "Aqui está alguém maior do que Salomão" (v. 42b). Em outras palavras: "Eu sou mais sábio do que Salomão". Tanto quanto Paulo, os sinóticos não falam de Jesus como a Sabedoria personificada: Jesus é sábio, é o mestre de sabedoria, o maior deles. O evangelho de João dá um passo adiante: Jesus é o "Verbo/ Palavra de Deus". Para falar de Jesus como "Verbo/Palavra", o autor do quarto evangelho encontrou o vocabulário em Sb 7,22-23, texto que descreve a sabedoria de Deus com vinte e um atributos. Outros textos veterotestamentários que serviram a João são: Pr 8; Eclo 24; Sb 9,1-2. Esses textos oferecem a linguagem e os conceitos para apresentar Jesus como a plena expressão do relacionamento de comunhão entre Deus e o ser humano. Nem mesmo o prólogo do quarto evangelho (Jo 1,1-18) opera a identificação Jesus = Sabedoria. Nos escritos joaninos, os discípulos são chamados de "filhinhos": pelo próprio Jesus, no evangelho; pelo autor, na primeira Centro Universitário Claretiano

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carta. "Filho" é o termo carinhoso por meio do qual o mestre de sabedoria se dirige ao seu aprendiz. Em resumo, no Novo Testamento não ocorre a identificação mera e simples Jesus = Sabedoria. Isso acontecerá mais tarde, no período dos chamados "padres apostólicos", quando a Teologia atingirá seu maior desenvolvimento e proporcionará outra compreensão de Jesus, sua pessoa e sua missão. A razão disso é fácil de entender: os autores do Novo Testamento pensam Jesus com a categoria da "mediação" – Jesus é o mediador –, a mesma função exercida pela Sabedoria no Antigo Testamento: ela é a mediação entre Deus e o ser humano. Portanto, não há uma identificação absoluta e metafísica, e, sim, funcional: as funções que no Antigo Testamento eram atribuídas à Sabedoria, no Novo Testamento são atribuídas a Jesus. Em outras palavras, o Novo Testamento seguiu a mesma lógica do Antigo Testamento e deu mais um passo para a personificação que será categorizada no período patrístico. Mas isso não significa uma reflexão teológica inferior ou imperfeita, e, sim, uma ênfase diferente, pois valoriza o papel de Jesus como mediador da Sabedoria Divina. Ora, outros povos e outras culturas já haviam se deparado com o problema da mediação. Os antigos egípcios, por meio da mitologização, falavam de Ma'at, a divindade que personifica a ordem cósmica e social. Os antigos gregos, por sua vez, seguiram o caminho da alegorização e viam na coruja o símbolo da sabedoria. Separando-se desses esquemas, Paulo olhou a pessoa e as atitudes de Jesus: a Sabedoria Divina mostr-se ao mundo por meio (papel de mediação) de Cristo Crucificado (1Cor 1,23-24). Retribuição O problema da retribuição é também tratado no Novo Testamento. Além do próprio termo "retribuição" e do verbo "retribuir", há outros relacionados e sinônimos.

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No sinóticos, o prêmio por um comportamento fiel não é automático nem livre de sofrimentos e perseguições (Mc 10,2931). Além disso, não se completa neste mundo, mas atingirá sua plenitude na "vida eterna". Assim, "Reino de Deus", "tesouro no céu", "vida eterna" são diferente expressões para falar (e alargar o conceito) de retribuição: como já preconizado no livro da Sabedoria, a retribuição pode vir após a morte. Em contrapartida, o "Reino de Deus" é dom gratuito do Pai, pois não está condicionado às ações humanas, nem é recompensa estritamente proporcional a elas. Ao ser humano, cabe acolhê-lo ou refutá-lo. Por isso, os discípulos devem superar a mentalidade na qual as coisas boas são feitas para arrancar aplausos e elogios dos homens. Em Mt 6,2-6.16-18, é nítida a crítica ao mecanicismo a Teologia da retribuição: "[...] eles já têm a sua retribuição [...] teu Pai, que vê o que é secreto, te recompensará" (note o cuidado do evangelista em usar palavras diferentes: "retribuição" versus "recompensa"). Paulo insiste no termo "justificação". Essa palavra pode ter dois significados: "declarar justo" (isto é, reconhecer que alguém sempre foi inocente e correto) ou "fazer justo" (isto é, anular a culpabilidade de alguém e regenerá-lo como inocente). Paulo parece aproveitar-se dessa ambivalência para argumentar que as obras da Lei não trazem a salvação: o que salva é a fé em Jesus Cristo. O pano de fundo para as afirmações de Paulo é a contraposição gratuidade versus méritos. O apóstolo vincula a justificação à fé: a justificação não é fruto dos esforços humanos, mas é dom gratuito de Deus (1Cor 15,50). O evangelho de João utiliza um vocabulário bem mais concreto e existencial e fala de um "juízo" e uma "vida" que já estão presentes (Jo 3,16-18.36). Em contrapartida, a vontade salvífica de Deus não elimina a liberdade humana e, por isso, o evangelho é construído sobre contínuas oposições: aceitação – rejeição, luz – Centro Universitário Claretiano

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trevas, vida – morte. Ao afirmar "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham de sobra" (Jo 10,10b), Jesus apresenta-se como o mediador do Deus que, mais do que retribuir, quer salvar. Na discussão sobre quem pecou para que o rapaz nascesse cego (Jo 9,1-3), Jesus assume a mesma posição crítica de Jó e Qohelet: não dá para confiar na visão simplista e unilateral da Teologia da retribuição, a mesma em que seus discípulos parecem acreditar.

13. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade, que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo desta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta unidade. 1) Sempre que ocorrem catástrofes (sociais, ambientais, climáticas etc.), surgem várias explicações. Tome como exemplo alguma situação catastrófica (terremoto no Haiti, em 2010; enchentes no nordeste brasileiro, também em 2010; ou algo mais recente) e imagine um debate entre os autores de Jó, do Sirácida (Eclesiástico) e da Sabedoria. Como cada um deles explicaria tal acontecimento: a) Castigo? b) Pedagogia? c) Acaso? d) Impossível de compreender seu sentido?

14. CONSIDERAÇÕES Fala-se pouco sobre a libertação messiânica, histórica e social. O acento maior recai sobre o significado da vida e da existência humana, interligando os discursos sobre Deus, o homem e sua atividade. É o velho problema da retribuição. Tudo isso dentro de um desenvolvimento progressivo e antitético. Convém, portanto, repetir o esquema já apresentado anteriormente e que sintetiza as opiniões dos autores dos livros sa-

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pienciais bíblicos acerca da validade ou não do dogma da retribuição (cf. introdução): Tese: Há retribuição: Provérbios e Sirácida. — a vida humana tem sentido. Antítese: Não há retribuição: Jó e Qohélet — contestação: a vida humana não tem sentido.

Síntese: Há retribuição, mas na vida após a morte: Sabedoria. — o sentido da vida humana está na felicidade. Ultraterrena, só após a morte.

Nossa disciplina encerra-se aqui, mas não o nosso diálogo. Você, ao optar pela Educação a Distância, tem, além de todos os seus colegas de curso, o seu tutor para contar. Sempre que necessitar de nossa ajuda, não tenha receio em nos contatar. A reflexão, a manutenção e a atualização diária de seus conhecimentos sobre Salmos e Sapiências e seus desdobramentos devem ser preservadas por você. Foi um prazer conhecer, ensinar e aprender com você!

15. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CIMOSA, M. et al. Creazione e Liberazione nei libri dell’Antico Testamento. Torino: Elle Di Ci, 1989. MURPHY, Roland E. L’Albero della Vita. Brescia: Queriniana, 1993.

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