O que é a Filosofia Calvinista

O que é a filosofia calvinista? J. M. Spier Recomendo o pequeno e excelente livro de Spier como uma introdução muito ú

Views 33 Downloads 1 File size 608KB

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Recommend stories

Citation preview

O que é a filosofia calvinista? J. M. Spier

Recomendo o pequeno e excelente livro de Spier como uma introdução muito útil à filosofia calvinista ou reformacional. Há mais de cinquenta anos ele foi minha introdução a essa tradição filosófica, e tem moldado meu pensamento desde então. — Al Wolters Autor de Criação restaurada

Copyright © 1950, de J. M. Spier Publicado originalmente em holandês sob o título Wat Is Calvinistische Wijsbegeerte? por J. H. Kok, Kampen, Holanda.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620 www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2019

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto Revisão: Fabrício Tavares de Moraes Capa: Bárbara Lima Vasconcelos PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Spier, J. M. O que é a filosofia calvinista? / J. M. Spier, tradução Felipe Sabino de Araújo Neto — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. Título original: Wat Is Calvinistische Wijsbegeerte? 978-85-69980-96-4 1. Filosofia reformacional

2. Filosofia

3. Teologia

I. Título CDD 230

SUMÁRIO Sumário Apresentação à edição brasileira Prefácio 1. Antecedente histórico 2. O que é filosofia? 3. A filosofia calvinista 4. Filosofia e revelação 5. A grande fronteira 6. Os aspectos cósmicos 7. A esfera-lei 8. A soberania da esfera 9. A ordem da lei cósmica 10. A relação das esferas-lei 11. O tempo 12. Diagrama 13. O objeto 14. As coisas 15. A estrutura das coisas 16. A estrutura das relações sociais 17. A sociedade 18. As inter-relações 19. Corpo e alma 20. A estrutura do corpo 21. Os atos humanos 22. O pecado 23. Teoria do conhecimento 24. O horizonte da experiência Conclusão Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd Apêndice 2: O meio intelectual de Herman Dooyeweerd Bibliografia

Apresentação à edição brasileira Johannes Marinus Spier — mais conhecido como J. M. Spier — nasceu em 1902, sendo um pastor conhecido primariamente por ter popularizado a filosofia de Dooyeweerd. Este livro, traduzido para o inglês em 1953,[1] para o coreano na década de 1960[2] e para o japonês em 1967 foi um grande responsável pela introdução da filosofia cristã nos Estados Unidos, na Coreia, e no Japão. O livro que agora aparece em português foi chamado de “uma esplêndida introdução à filosofia de Dooyeweerd” por David Hugh Freeman e William Young, tradutores do monumental A New Critique of Theoretical Thought.[3] Já R. J. Rushdoony, em seu prefácio ao No crepúsculo do pensamento ocidental, afirma que este livreto oferece “uma análise valiosa do pensamento de Dooyeweerd”.[4] Spier faleceu em 8 de junho de 1971, mas seus livros continuam sendo utilizados para despertar o interesse de muitos para a filosofia de Dooyeweerd. Queira Deus abençoar esta tradução.

— Felipe Sabino de Araújo Neto Janeiro de 2019

Prefácio Os fatores que me moveram a escrever este livro são os seguintes: Nem todo cristão calvinista tem o desejo, oportunidade ou habilidade de fazer um estudo completo da filosofia calvinista que tem sido revelada nos escritos dos seus proponentes, Professor Dr. H. Dooyeweerd e Professor Dr. D. H. Th. Vollenhoven, e como ela foi resumida em meu livro “Inleiding in de Wijsbegeerte der Wetsidee”.[5] Todavia, muitos em nossos círculos desejam conhecer mais sobre essa filosofia que, nos últimos anos, tem-se tornado mais conhecida, parcialmente por causa do estabelecimento de cátedras especiais nas universidades públicas e escolas secundárias. Regozijo-me neste interesse crescente nas questões filosóficas — não somente porque o campo amplo da filosofia era explorado quase exclusivamente, até anos recentes, por homens da ciência que não reconheciam a Palavra de Deus como a norma suprema para a esfera científica, mas também porque a filosofia subjaz a todo o labor nas ciências particulares. Nosso povo calvinista sempre demonstrou interesse em teologia. Mas se esse interesse reside na ideia que a teologia está mais intimamente relacionada à fé e à igreja, exercendo portanto maior influência sobre a nossa fé do que as outras ciências particulares, ele está fundamentado sobre uma pressuposição equivocada. Teologia como ciência está no mesmo nível que outras ciências particulares neste respeito, pois toda ciência é controlada pela fé do investigador e está sujeita às Sagradas Escrituras como a norma suprema, e nenhuma das ciências tem uma influência que fortaleça a fé. Mas as questões mais profundas de toda ciência levam ao terreno da filosofia. Portanto, uma pessoa que tenha interesse popular nas questões científicas, mas não seja ela mesma um estudante de ciência, pode encontrar melhor seu caminho na filosofia que é a ciência do todo, ou em outras

palavras, no pensamento científico concernente a todo o cosmo. Por causa dessas considerações, escrevi este pequeno livro com a esperança que ele possa cumprir seu propósito e servir ad majorem gloriam Dei, para a maior glória daquele que deve ser louvado por todas as suas obras. — J. M. Spier Junho de 1950

1. Antecedente histórico Antes de apresentar um esboço das principais características do sistema de filosofia calvinista, é necessário lançar luz sobre seu antecedente histórico. Toda vida é historicamente orientada. E todo aquele que negligencia o aspecto histórico de um assunto, não pode entendê-lo nem avaliá-lo corretamente. Quando falamos aqui de filosofia calvinista, queremos dizer aquele sistema filosófico cristão que tem se tornado conhecido a nós durante os últimos vinte anos pelo nome “Wijsbegeerte der Wetsidee”.[6] O nascimento deste sistema é um evento de grande importância, embora não tenha recebido a atenção geral que obviamente mereça. A não familiaridade é com certeza a desculpa mais frequente para essa negligência. Quais são os fatos do caso? É geralmente sabido que por muitos séculos, mesmo antes do cristianismo adentrar no mundo, a filosofia foi cultivada por aquelas pessoas que tinham alcançado certo nível de cultura. Na Europa havia os antigos gregos e romanos — pense em Sócrates, Platão e Aristóteles. Mais tarde, durante a Idade Média e nos tempos modernos, houve especialmente as pessoas da Europa Ocidental. E durante os poucos últimos séculos, a filosofia tem sido estudada em todo o mundo civilizado. Durante esses séculos, pensadores de vários ramos têm concebido um grande número de sistemas filosóficos. Esses sistemas algumas vezes suplementam uns aos outros; às vezes ignoram uns aos outros; e outras eles são até mesmo diametralmente opostos uns aos outros. Tais sistemas ainda portam o nome de seus famosos proponentes — Tomás de Aquino, Descartes, Espinoza, Kant, Hegel, Nietzsche e muitos outros. A despeito dos muitos pontos acerca dos quais esses sistemas possam diferir um do outro, em um aspecto eles são todos semelhantes: são todos não cristãos. Eles não procedem da raiz da revelação divina. Eles não se sujeitam

à Palavra de Deus. Pelo contrário, todos começam a partir da soberania da razão humana, a autossuficiência do entendimento humano, que se julga capaz, à parte da luz da revelação, de descobrir a verdade com respeito às coisas criadas e mesmo do próprio Criador. Isso não significa que não foi desenvolvido nenhum sistema filosófico que tenha usado ideias cristãs em certa extensão e as acomodado a temas não cristãos. Aqui podemos mencionar a filosofia que foi originada e ainda é propagada pelos católicos romanos, a saber, o tomismo, que é uma síntese entre temas bíblicos e o tema clássico forma-matéria. Dessa combinação surgiu a filosofia do tema natureza-graça. Mesmo em círculos calvinistas tais sínteses foram realizadas quando homens como Kuyper, Bavinck, Woltjer e Geesink tomaram de empréstimo ideias de Platão e Aristóteles e as uniram com dados bíblicos a fim de formar um conceito de logos cristão. Mas a assim chamada filosofia de síntese nunca pode satisfazer ninguém que esteja convencido que a Palavra do Senhor deve ser a norma suprema na ciência; e que Cristo, que é soberano sobre todas as coisas, diz também sobre o domínio filosófico — “É meu!”. A grande reforma de Lutero e Calvino no século XVI não foi capaz de produzir sua própria filosofia cristã. Embora isso seja lamentável, é algo bem compreensível. O conflito não irrompeu na esfera científica, mas na eclesiástica, e os reformadores não tentaram estruturar suas ideias puramente bíblicas numa filosofia cristã. Contudo, eles lançaram o fundamento de uma teologia reformada. Mas a teologia, uma ciência particular, nunca toma o lugar de uma filosofia cristã, que é a ciência fundamental. Essa deficiência teve uma influência nociva sobre a herança cristã nos séculos subsequentes à Reforma, pois vários temas da filosofia não cristã predominante (o Iluminismo) se infiltraram nos círculos cristãos, e não se ofereceu nenhuma resistência apropriada. Sem dúvida, houve a resistência da fé baseada sobre a

Palavra de Deus. Lembre-se apenas no pietismo. Mas quando o inimigo ataca com armas proveniente do arsenal da ciência incrédula, o cristão deve contraatacar com armas oriundas do arsenal da ciência cristã. Infelizmente, essas não existem pois os filhos da Reforma retornaram ao cultivo fatal da filosofia da síntese. Todavia, o que nunca tinha ocorrido, agora aconteceu. O primeiro sistema filosófico cristão finalmente chegou, tendo brotado da raiz do calvinismo, do tema básico da criação, queda e redenção. Isso é um dom da graça divina e um dos primeiros frutos da Universidade Livre[7] — aquela universidade singular que em toda a sua obra científica continuamente se sujeita à Palavra de Deus. Como calvinistas não podemos falhar em observar esse fato significativo, prestando atenção à palavra do salmista: “Não te esqueças de nem um só de seus benefícios!”. Regozijamo-nos, portanto, que o interesse nesta filosofia esteja crescendo e que mesmo aqueles cujo trabalho diário não esteja no campo científico estejam fazendo a pergunta: o que é a filosofia calvinista?

2. O que é filosofia? Antes de poder dizer o que é a filosofia calvinista, precisamos primeiro assinalar o que é filosofia em geral. Com respeito a essa pergunta não há apenas completa ignorância por parte de muitos, mas também muita confusão da parte de outros. Talvez a concepção mais comum é que a tarefa da filosofia seja explicar os mistérios divinos e humanos e torná-los racionalmente claros. Já é hora de nos desfazermos dessa falsa noção. O que então é filosofia? Filosofia é um tipo específico de conhecimento científico. Todo mundo sabe, sem dúvida, que existe uma série inteira de ciências: matemática, ciência natural, ciência histórica, economia, filosofia do direito, teologia e outras. Em distinção da filosofia, todas essas ciências são chamadas ciências particulares. Com isso queremos dizer que uma ciência particular investiga, de uma forma científica ou sistemática, não criaturas específicas, mas um lado específico, ou aspecto das criaturas, como é geralmente chamado. A fim de examinar cientificamente uma coisa concreta completamente em todos os seus aspectos, uma pintura por exemplo, todas as ciências particulares devem ser empregadas. A matemática examina a pintura quanto ao número e tamanho. A ciência natural procura a composição química da pintura e da tela. De que meio histórico se origina, em qual período da cultura se encaixa, e que estilo demonstra são investigados pela ciência histórica. A estética avalia a beleza desse produto de arte. A ciência do direito está interessada com sua propriedade. A economia lida com as normas pelas quais seu valor monetário é determinado. E a teologia lida com a fé que vê até mesmo os produtos da cultura como criaturas de Deus. Há então uma tarefa restante para a filosofia? Certamente, a filosofia,

distinguindo-se das ciências particulares, tem a tarefa de examinar a pintura como um todo a fim de entender seu lugar em toda a ordem da criação, sua importância no grande mundo de Deus, e a característica única pela qual essa coisa como um produto de arte é distinta de todas as outras coisas. A filosofia é então a ciência que examina as totalidades; os homens e coisas, eventos e ações humanas, relacionamentos sociais e conexões da sociedade — e cada uma dessas em sua inteireza, em sua estrutura única, em sua distinção e inter-relações mútuas, em sua função e significado dentro da ordem mundial divina todo-inclusiva. Isso leva à conclusão que a filosofia, em distinção de todas as ciências particulares, é uma ciência fundamental. Ela não é a combinação de todas as ciências particulares, mas é fundacional para as ciências particulares. Nenhuma ciência particular pode existir sem filosofia. As questões básicas de cada ciência particular são de uma natureza filosófica e não podem ser respondidas por nenhuma ciência particular como tal. Qual é o campo de investigação para essa ciência particular específica? Que relação esse campo de pesquisa tem para com todos os outros campos de pesquisa? Qual é a estrutura desse campo de pesquisa? A filosofia deve responder essas questões. Isso demonstra a grande necessidade de uma filosofia verdadeiramente cristã. Tal filosofia não é simplesmente o hobby de alguém que por acaso tem um interesse filosófico, mas é a base necessária de toda ciência cristã particular. Enquanto não existir uma filosofia cristã, a ciência cristã particular deve buscar respostas para suas questões fundamentais tomando de empréstimo a partir de uma filosofia que não leva Deus e sua Palavra em consideração. As fatalidades, científicas bem como práticas, que disso resultam são uma legião. É difícil exagerar o valor de uma filosofia calvinista para todo o

sistema da ciência cristã.

3. A filosofia calvinista Agora que temos visto o que é filosofia, devemos responder a pergunta: o que então é filosofia calvinista? Essa questão seria supérflua se postulássemos a soberania da razão humana como a atual filosofia não cristã o faz. Pois então nossa fé cristã não teria nenhuma importância no domínio da ciência. A ciência então dependeria somente da razão autossuficiente que não permite nenhuma interferência por parte da fé. Mas esse não é o verdadeiro estado das coisas. Os numerosos sistemas filosóficos que têm sido desenvolvidos ao longo da história da nossa cultura, e que frequentemente contradizem uns aos outros, são uma clara demonstração do fato que a fé do pensador está sempre ativa por detrás do seu pensamento científico. O todo da vida do homem é religiosamente condicionado. Sua razão nunca é seu ponto de partida absoluto. Tudo o que o homem faz é determinado nas profundezas do seu coração. No coração sua relação com Deus é determinada. Ali ele é renovado pelo Espírito Santo e enxertado em Cristo, ou persevera em sua apostasia em relação a Deus. E como sua alma é, assim também são todas as funções da vida que procedem dessa alma ou coração. Isto é, o pensamento humano, sendo uma das muitas funções da vida, também é religiosamente condicionado; e ele se mostra a serviço de Deus ou em apostasia para com ele. E visto que todas as funções da vida do homem estão debaixo da direção de sua função principal, a fé, o pensamento científico portanto também está sob a direção de sua fé. O assim chamado pensamento científico “puro” (objetivo), absolutamente não influenciado pela fé do pensador, simplesmente não existe; é pura ficção. Significaria que o pensamento teria que ser livre tanto do coração como da orientação da fé, o que significaria sua abolição. Por detrás de todo fantasioso pensamento

científico “puro” se esconde a escolha religiosa do coração — uma escolha apóstata. Qualquer que declare que o pensamento humano é autossuficiente colocou seu coração sobre o ídolo da razão, na qual ele tem fé e sobre a qual todas as funções de sua vida estão agora baseadas. Esta é a filosofia da imanência, isto é, filosofia que se origina num coração que confia na criatura deificada e que, por causa da fé nesse ídolo, afasta o pensamento científico daquele cujo temor é o princípio da sabedoria. E quem quer que raciocine em apostasia nos fundamentos necessariamente será descarrilado no campo das ciências particulares, sendo engolido em falsos problemas e contradições. Ele nunca será capaz de ajustar os elementos da verdade que descobriu no contexto total da verdade, que é basicamente religiosa. De tudo isso é evidente que a antítese entre fé e incredulidade, entre aquilo que é de Cristo e aquilo que é contra ele toma expressão na ciência e certamente não ignora o domínio da filosofia. Visto que a fé do filósofo de fato influencia seu pensamento filosófico, faz sentido perguntar que caráter uma filosofia calvinista deve ter. A isso respondemos: filosofia calvinista é a filosofia que brota da raiz do cristianismo. Não é simplesmente certo sistema da assim chamada filosofia “neutra”, que em essência é não cristão, embora decorado ou suplementado ou corrigido por uns poucos pensamentos cristãos. Essa miserável filosofia-síntese tem impedido a ciência cristã por muito tempo de desenvolver plenamente seu próprio caráter. Em nenhum domínio da vida, e certamente não na ciência, pode o ferro e o barro serem combinados permanentemente. Não, a filosofia verdadeiramente cristã rompe com todas as outras filosofias que não procedem da fé no único Deus verdadeiro que se revelou a nós em sua Palavra e à parte de cuja luz não se pode encontrar sabedoria verdadeira na investigação de todas as suas obras. A filosofia calvinista tem tanto um caráter positivo como negativo. Ela

é negativa porque recusa honrar qualquer ídolo. Vimos antes que em sua proclamação da soberania do entendimento humano, a filosofia não cristã transforma a razão num ídolo autossuficiente. A tragédia da idolatria é que um ídolo chama outro, pois a idolatria sempre se desenvolve em politeísmo. Dessa forma, a filosofia atual tem produzido uma série de sistemas que podem ser caracterizados por termos como materialismo, psicologismo, historicismo, esteticismo, fideísmo etc. Ligado a cada um desses termos está a adoração de um ídolo específico. O materialista honra a matéria juntamente com a razão, declarando a física como onipotente e autossuficiente. Junto ao ídolo do pensamento puro, o psicologista honra a sensação como a força controladora na realidade, de forma que todos os fenômenos são reduzidos a sensações, e a vida humana está confinada a isso. E assim por diante. Depois da ciência ter servido a determinado ídolo por um tempo, embora sem encontrar nenhuma satisfação duradoura nele, erige-se um novo ídolo; e então o jogo começa mais uma vez. Esse ciclo é tão fatigante que ninguém é capaz de descrevê-lo adequadamente. A filosofia calvinista rompe com toda essa idolatria. Por causa do seu ponto de partida, ela não precisa de nenhum ídolo. Pela aceitação dos fatos da criação e da lei, ela não somente se reconhece no serviço daquele que através de Cristo Jesus criou e redimiu todas as coisas para a sua própria glória, mas também permite que todas as coisas criadas permaneçam em seu devido lugar e as aprecie por seu significado temporal dado por Deus. O caráter positivo da filosofia calvinista se manifesta em sua escolha do ponto de partida através da fé verdadeira na Palavra de Deus. Somente sua verdade pode nos libertar do serviço do pecado — inclusive na ciência.

4. Filosofia e revelação Filosofia calvinista é filosofia com a Bíblia. Sem dúvida alguns questionarão: o filósofo calvinista deriva seu sistema da Bíblia? A Palavra de Deus coloca um sistema de filosofia em nossas mãos? Não, não é isso o que queremos dizer. Filosofia é ciência, e a Bíblia não dá o material nem o conteúdo de qualquer ciência. Das Escrituras não podemos deduzir matemática, física, astronomia, psicologia, literatura, economia, estética ou ciência do direito. Nem mesmo a teologia é simplesmente retirada da Bíblia. Nem pode a filosofia ser extraída da Bíblia. Isso não é uma degradação das Sagradas Escrituras, mas simplesmente o reconhecimento de seu caráter único na vida. A Bíblia é o livro da salvação, a vontade revelada de Deus concernente ao caminho pelo qual os pecadores podem novamente se reconciliar com ele. A Bíblia não se dirige primariamente ao nosso entendimento, mas à nossa fé. Ela é a grande lei da fé. E visto que a fé desempenha o papel principal em toda a nossa vida, a Bíblia é a norma suprema para toda a existência humana. Assim, para a ciência também, a Bíblia é a norma final. Todo pensamento científico que nega ou conflita com a Palavra de Deus está condenado. A filosofia calvinista, então, não busca o conteúdo do seu sistema na Bíblia, mas em sujeição à norma da Escritura e em sua luz ela encontra seu conteúdo — assim como qualquer outra ciência — na investigação laboriosa das obras de Deus. O que Deus nos ensina em suas obras concernente à natureza, estrutura, diferenciação e relação das coisas é revelação geral. Essa revelação geral nas obras de Deus dá a razão básica pela qual o mundo ao nosso redor e a própria existência humana com todas as suas relações na sociedade não permanecem um enigma ou um mistério impenetrável; pois nele podemos vislumbrar a sabedoria pela qual o Criador fez todas as coisas.

E essa é a tarefa de toda ciência, incluindo a filosofia. As ciências particulares investigam os vários aspectos das coisas, enquanto a filosofia estuda as coisas em sua totalidade. Humanamente falando o curso da ciência é interminável. Isso não é assim apenas porque a ciência deve continuamente corrigir seus inúmeros erros, de forma que dá um passo difícil adiante apenas depois de vários passos para trás, mas principalmente por causa das riquezas inexauríveis da multiforme sabedoria de Deus revelada em suas obras. Contudo, essa revelação geral pode ser entendida corretamente somente à luz da revelação especial das Escrituras. A filosofia calvinista deseja fazer exatamente isso. Ela é a investigação científica da totalidade cósmica em submissão completa à Palavra de Deus.

5. A grande fronteira A filosofia calvinista demonstra seu ponto de partida absolutamente cristão ao manter a distinção bíblica básica entre Deus e o cosmos. Deus é o criador todo-poderoso e sustentador de todas as coisas. O cosmos é a totalidade da criação, absolutamente dependente do seu criador. Essa distinção básica não é resultado de nossa própria pesquisa, mas é biblicamente revelada. Qual é então a grande diferença entre o Criador e suas criaturas? Ela consiste nisto: que tudo o que Deus criou está sujeito à sua lei. Não há nada que tenha sido feito que não esteja debaixo de sua lei. Tal lei é a expressão da vontade de Deus para a existência, atividade e vida das criaturas. A criaturalidade, a subjetividade, a dependência e o dever de obediência da criatura são apresentados pela lei. E note bem, de todas as criaturas. Pois a lei não se aplica somente ao homem, mas também aos anjos, animais, plantas e coisas inanimadas. Leia os versículos iniciais de Eclesiastes 9 e você verá que a existência e atividade do sol, vento e água estão de acordo com a lei. Visto que tudo o que foi criado está sujeito à lei divina, toda criação, por conseguinte, está sujeita ou debaixo da autoridade de Deus e obrigada a obedecer àquele que fez todas as coisas. Como essa filosofia o expressa, toda criação é caracterizada pelo fato de que seu modo de existência é sentido. Isso significa que o sentido, propósito e destinação de toda criatura, grande e pequena, nunca reside dentre de si mesma. Nada que foi criado é autossuficiente. Fazer ídolos de coisas criadas é uma contradição interna, pois aquilo que é divino deve ser autossuficiente. Mas tão logo independência é atribuída a uma criatura, ela se torna sem sentido. Porque a criatura não é autossuficiente, seu verdadeiro sentido reside no serviço àquele que é o primeiro e o último e que deve ser louvado por tudo em todos.

Disso segue que a lei, incluindo todas as expressões da vontade divina, é a fronteira entre Deus e o cosmos. Naturalmente isso não significa que nosso Deus em seu ser seja limitado por algo, mas significa que Deus mesmo não está sujeito a qualquer lei. Ele é o legislador exaltado e supremo, o único que é verdadeiramente soberano, exercendo autoridade divina. Como o Deus fiel e verdadeiro, ele naturalmente respeita suas leis. Mas ele mesmo está exaltado acima de toda lei, pois a lei se aplica somente às suas criaturas. Dessa forma, as criaturas sempre e em todo lugar vivem sob a lei de Deus. Eles nunca podem ficar acima dela. A esfera na qual a lei se aplica é o elemento das criaturas. Na fronteira exterior do seu ser, eles são controlados pela lei, que não é uma cadeia pesada ou jugo inquebrantável, mas é a pressuposição necessária de sua vida. Dela se evidencia, claro como a luz do dia, sua criaturalidade, dependência, falta de autossuficiência e incapacidade de auto-determinação. Quem quer que negue essa subjetividade, isto é, o ser das criaturas estar debaixo da lei de Deus, deificou a criatura e se fez culpado de idolatria. O erro que é denominado subjetivismo é geralmente reconhecido. Mas não podemos definir esse erro como uma ênfase exagerada sobre o “estarsujeito”, mas como uma negação deste. Pois na prática e na teoria, o subjetivismo primeiro livra o sujeito de toda lei divina, e então exalta esse sujeito para se tornar seu próprio legislador. Dessa forma o sujeito, uma criatura dependente e limitada, é exaltada para se tornar Deus, que é independente e soberano. Como resultado vemos a necessidade de começar uma filosofia cristã com o reconhecimento da grande fronteira entre Deus, o legislador, e suas criaturas que estão sob a sua lei, sujeitas a ele, sob sua autoridade. A criatura nunca pode cruzar essa fronteira.

6. Os aspectos cósmicos Até agora temos falado de lei no singular. Não temos feito isso porque existe uma única lei, mas para resumir todas as leis divinas que o Criador, como expressões de sua santa vontade, colocou sobre suas criaturas. Há uma variedade de leis no cosmos, e essas muitas leis correspondem aos vários lados ou aspectos das criaturas aos quais já nos referimos. Agora surge a questão: quantos aspectos são manifestos nas coisas que Deus criou? Quantos lados podem ser observados na realidade cósmica, e quais são eles? Há quatorze. Eu os apresentarei em ordem, a partir do primeiro que é o menos complicado até o último que é o mais complexo. Primeiro há o aspecto do número. Se você abstrai todas as propriedades de uma coisa incluindo sua materialidade e espacialidade, então você retém como o atributo final e único o do número. Todas as coisas são numeráveis, isto é, a existência delas é passível de ser expressa em número. Mas o número nos diz pouco sobre uma coisa. Ele diz de certa coisa, por exemplo, que é uma criatura individual, e que é divisível em certo número de unidades. O segundo aspecto de toda criatura é sua espacialidade. Uma coisa é mensurável em comprimento, largura e altura. Ela ocupa espaço. Ela tem uma relação espacial portanto, estando a uma distância de outras coisas. É necessário notar que as chamadas “coisas abstratas” tais como beleza, amor, etc., não são realmente coisas. Elas são na verdade propriedades ou condições de pessoas e coisas. Não podemos distinguir quatorze aspectos em tais pessoas-coisas. Na maioria das vezes elas pertencem simplesmente a um aspecto. O terceiro aspecto é o físico. Cada coisa tem certo peso e em sua existência material é composta de certos elementos quimicamente analisáveis. Por causa dessa característica física uma coisa pode se mover ou ser movida. Isso é movimento mecânico em distinção do movimento de

criaturas vivas, no qual todavia outro aspecto está envolvido. Movimento é dessa forma a característica singular do aspecto físico. A seguir vem o quarto aspecto, o biológico, que tem a ver com a vida orgânica das criaturas. Uma planta, por exemplo, não é apenas numerável, encontra-se no espaço e é quimicamente analisável, mas, o que é singular aqui, é que a planta cresce, passa por um processo de metabolismo, floresce e produz semente. Esse é o lado biológico ou orgânico que se encontra também nos animais e no homem, mas que não aparece nas coisas inanimadas. Um animal, embora biologicamente relacionado à planta, tem em adição um quinto aspecto, a saber, o psicológico ou o aspecto da sensação. Se um animal é ferido, ele experimenta dor e dá expressão à dor. Ele vive e age de acordo com seus instintos. Ele vê, ouve e reage psicologicamente. Dessa forma, a característica distinta do lado psicológico da existência é a sensação. Isso não significa que tudo que seja psicológico tenha uma alma. A psicologia não é, portanto, a ciência da alma, mas a ciência da sensação. O homem, portanto, embora relacionado aos animais, plantas e coisas nos aspectos anteriores, está exaltado muito acima deles. Pois ele é criado à imagem de Deus. Em sexto lugar, portanto, a existência humana se exibe como um aspecto analítico. Isso implica que o homem é capaz de pensar analiticamente, e por meio do entendimento combinar os elementos analisados num conceito e de uma forma que conscientemente chegue a possuir conhecimento. Mas o aspecto racional no homem está longe de ser o mais alto e mais importante. Chamar um homem de criatura “racional” não é errado em si mesmo, mas é obviamente incompleto, pois a racionalidade certamente não é a caraterística distintiva do seu ser. O sétimo aspecto é o histórico, pelo que queremos dizer que o homem possui poder para moldar a cultura. O que isso significa? Isso pode ser mais

bem explicado por uma ilustração. Pássaros, que não possuem esse poder de formar cultura, ainda constroem seus ninhos como no princípio. Mas aquilo que um pássaro produz não é cultura. Ele faz o seu ninho de acordo com um instinto inconsciente. Tal criatura não possui controle sobre a natureza baseada numa percepção racional, e não busca dar um propósito à natureza que esta originalmente não possua. Esse produto criatural tem, assim, uma forma fixa. Ele não é suscetível a mudança ou aperfeiçoamento. Mas o homem constrói suas habitações na forma de cabanas, casas, castelos ou palácios. Ele tem poder para transformar os dados naturais de uma maneira racional e intencional a fim de transformá-los em outra coisa e dar-lhes um propósito maior, para que possam enriquecer a sua vida. Esse é o seu mandamento cultural histórico. Nesta luz devemos ver nosso trabalho diário como um chamado divino no qual devemos contribuir para moldar a cultura. O próximo aspecto da vida humana é o assim chamada lingual, isto é, o aspecto da significação simbólica. Isso envolve o uso de vários sinais e símbolos aos quais atribuímos um certo significado. Dessa forma, a escrita é formada a partir de caracteres e os idiomas a partir de símbolos fonéticos. Inclusos nesses símbolos estão estátuas, bandeiras, insígnia, sinais, luzes de farol, etc. Depois disso segue o nono aspecto, nomeadamente, o social. Esse aspecto é caracterizado por associação mútua, tratos e comércio entre pessoas. Há uma babel de confusão com respeito à palavra “social”. Ela é usada para muitas coisas que não têm nada a ver com o significado real da palavra “social”. Alguns a utilizam para referir-se a qualquer coisa relacionada ao movimento de sindicatos trabalhistas. Outros a aplicam a questões que dizem respeito a relações de trabalho ou organizações empresariais. Se quisermos escapar do labirinto de confusão, devemos enfatizar consistentemente que social refere-se simplesmente àquilo que diz

respeito a associações humanas. Medidas sociais verdadeiras são aquelas que promovem ou melhoram as relações entre pessoas tais como projetos habitacionais, construção de estradas, medidas sanitárias, etc. Questões salariais, por outro lado, são de natureza econômica. Associação é algo singularmente humano. Com isso queremos dizer que, como humanos, não estamos simplesmente próximos a outros seres humanos no mundo. Antes, temos contato e comunhão com os outros de diversas formas. A seguir vem o décimo aspecto da vida, o econômico. Com isso queremos dizer que o homem tem o poder de avaliar o valor das coisas e a partir desse ponto de vista viver parcimoniosamente, isto é, controlar seu dinheiro e sua propriedade cuidadosamente. O décimo primeiro aspecto da existência humana é o estético. O homem recebeu o dom de apreciar as coisas de acordo com sua beleza — julgá-las de acordo com um grau maior ou menor de harmonia. O aspecto jurídico vem a seguir. O homem tem um senso de certo e errado. Portanto, quando se comete um erro, ou onde certos direitos são negligenciados ou desnecessariamente negados, ele sente a compulsão de invocar a retribuição para restaurar o direito. O décimo terceiro aspecto a ser mencionado é o ético. Por isso entendemos que cada pessoa tem um senso de e sente a necessidade de amar, e experimentar esse amor em várias relações temporais — como no casamento e na família, e com amigos e vizinhos. E finalmente, o último ou mais alto aspecto da nossa existência é o aspecto da fé. Pois toda pessoa tenta pela fé — quer seja uma fé falsa ou verdadeira, fé na mentira ou na verdade — encontrar um fundamento firme para sua vida numa certeza que sobrepuje todas as coisas terrenas.

7. A esfera-lei Na seção anterior descrevi brevemente os diversos aspectos da realidade cósmica dentro da qual Deus criou os homens e as coisas. Visto que cada aspecto da vida é um aspecto criado e está, portanto, deste lado da grande fronteira (a lei), deve ser enfatizado que para cada um desses muitos aspectos da vida cósmica Deus instituiu tipos distintos de leis. Em outras palavras, para cada aspecto da vida há uma lei correspondente que é do mesmo tipo e natureza que o aspecto da realidade ao qual ela se aplica. Dessa forma, há leis para números, e.g., as leis da divisão, multiplicação, etc. Há também leis de espaço, e.g., a menor distância entre dois pontos numa linha reta. Há leis para o aspecto físico tais como a lei da gravitação, e as leis para a composição química. Há leis para o aspecto biológico que se aplicam ao metabolismo, reprodução, etc.; leis para sensação, pense na lei de associação; leis de pensamento, e.g., a lei de identidade e a lei da contradição. Há leis para o aspecto linguístico, e.g., leis gramaticais; leis para o histórico, ligando uma pessoa ao nível cultural alcançado, levando o passado em consideração; leis para a etiqueta apropriada, uma mulher precede o homem; leis para a economia, leis de oferta e procura; leis para a estética, excesso de harmonia rompida; leis para retribuição, como o código penal; leis para o amor, o dever da fidelidade no casamento; e finalmente, leis para a fé, isto é, toda a sagrada Escritura que devemos aceitar pela fé como revelação divina. Ora, todas as leis que se aplicam a um aspecto específico, juntamente com aquele lado subjetivo da própria realidade cósmica, designamos uma esfera-lei. Isso significa que em qualquer determinada esfera-lei podemos diferenciar duas fases, o lado lei e o lado sujeito. Essas nunca podem ser reduzidas ou confundidas entre si. O lado da lei está acima do lado do sujeito,

assim como Deus está acima de sua criação. A grande fronteira entre Deus e o cosmos perpassa cada esfera-lei horizontalmente. O que é um sujeito nunca pode se tornar lei, e o que é lei nunca pode se tornar sujeito. Isso é facilmente demonstrado na esfera-lei histórica. Alguns sustentam que a história nunca é normativa e jamais pode ser o padrão de ação; enquanto outros afirmam exatamente o oposto, contendendo que a história certamente é normativa. Qual das suas opiniões é verdadeira? O argumento segundo o qual a história é normativa é verdadeiro no sentido de que a ação histórica, em seu lado subjetivo, é determinado por normas históricas. Mas a história entendida como o processo subjetivo de desdobramento cultural não é normativa. Isto é, uma pessoa nunca pode usar os fatos históricos, que sempre são subjetivos, como uma norma de sua conduta. Em outras palavras, o sujeito histórico nunca se torna a lei histórica, pois cada sujeito histórico está sempre sujeito a uma lei histórica. Duas coisas ainda devem ser ditas concernente ao lado legal das esferas da lei. Primeiro, devemos observar que nas primeiras cinco esferas da lei, a aritmética, espacial, física, biológica e psicológica, a lei é dada diretamente por Deus, e não pode ser violada. Um animal sempre age de acordo com seus instintos psicológicos e não se desvia deles. Assim, plantas e coisas inanimadas também estão absolutamente ligadas à lei imposta sobre elas pelo Criador. Por outro lado, nas esferas mais altas, unicamente humanas, a lei tem o caráter de uma norma, isto é, uma regra para a conduta apropriada que pode ser violada por uma escolha livre. Em nosso pensamento podemos transgredir as leis do pensamento mediante raciocínio ilógico. Cometemos erros linguísticos. Violamos as leis sociais, e agimos sem amor, etc. Em tais formas o pecado humano toma expressão. Deve-se observar, além disso, que nas esferas da lei normativa, Deus deu ao homem uma tarefa em relação à lei. Pois nessas esferas da lei

normativa Deus concedeu as leis somente em princípio. Esses princípios do pensamento lógico, do desenvolvimento cultural, da linguagem, associação, ciência do direito, amor, etc. devem ser positivados, i.e., organizados e concretamente aplicados a situações e relações específicas. A lei do amor, por exemplo, se aplica à vida familiar. Mas a aplicação específica dessa lei no relacionamento dos pais com os filhos deve ser deduzido a partir do princípio geral pelos pais.

8. A soberania da esfera A palavra “soberania” implica a possessão de poder para falar, a capacidade de comandar, estando investido de autoridade. Deus é o supremo soberano, o comandante absoluto, o detentor exaltado de toda autoridade. Toda soberania e autoridade na terra procede dele, é instituída por ele, e é sempre responsável diante dele. E visto que a soberania absoluta repousa em Deus, suas leis que são a expressão de sua vontade também são soberanas. Essas leis exercem autoridade e estão revestidas de poder, mas somente dentro daquela esfera à qual se aplicam. A filosofia calvinista chama isso de soberania na sua própria esfera de lei, ou soberania de esfera. Essa soberania na própria esfera de lei significa na verdade que os vários aspectos cósmicos são mutuamente irredutíveis. Cada aspecto é um fase de sentido da lei original com sua própria ideia central (núcleo de sentido) única, com sua própria importância, não deduzida a partir de outros aspectos. Cada um desses aspectos tem recebido suas próprias leis de Deus, as quais não podem ser transferidas para uma ou outra esfera. As leis físicas não podem ser aplicadas ao aspecto psicológico da sensação. Uma sensação não pode ser medida ou pesada. Nem pode o dado histórico ser explicado como reações psicológicas. Ainda outro exemplo: a vida jurídica, ética ou pística (da fé) dos homens não pode ser reduzida ao fenômeno histórico. A realidade se opõe a essa redução de uma classe de coisas, caracterizada por um aspecto específico do qual ela deriva seu significado, a uma classe diferentemente qualificada de coisas. Quem quer que reduza a fé à razão mata a fé verdadeira e permite que a religião afunde em raciocínio estéril. As várias leis são soberanas somente naquela esfera da vida para a qual o Criador as instituiu. Quem não leva isso em conta, mas arbitrária e imprudentemente viola os limites das esferas da lei, enreda-se naquelas contradições insolúveis que são chamadas antinomias. Quando uma

antinomia aparece em nosso raciocínio é um sinal que nosso pensamento descarrilhou, que confundiu vários aspectos e que devemos portanto retroceder e encontrar o ponto onde o descarrilamento aconteceu. Há uma antinomia, por exemplo, no argumento irrefutável que um automóvel nunca pode ultrapassar um carrinho de bebê em movimento. Pois pode ser argumentado que o automóvel deve primeiro cobrir metade da distância. Mas enquanto isso o carrinho já se adiantou mais. A fim de cobrir essa distância novamente, o automóvel deve primeiro percorrer metade dela. E assim interminavelmente. Aqui o aspecto físico do movimento é confundido com o aspecto espacial.[8] Em distinção das antinomias reais, contudo, devemos observar que há coisas que excedem completamente nosso entendimento, de forma que nunca podemos torná-las logicamente penetráveis, por exemplo, os mistérios da revelação divina.

9. A ordem da lei cósmica Apresentamos acima um resumo das quatorze esferas de lei. Devemos agora fazer duas perguntas sobre esse assunto. A primeira é essa: como a filosofia chegou a essas quatorze esferas? Ela sabe com certeza que não haverá mais e que não pode haver menos? Pode ser mantido com certeza que não haverá mais. É possível que uma análise científica adicional mostre que uma área da vida que até agora tem sido subsumida a um dos aspectos reconhecidos seja um aspecto único da realidade com sua própria ideia central irredutível (núcleo de sentido). Chegaríamos a essa conclusão se, em nossa investigação dessa área, caíssemos continuamente em antinomias, o sinal de estarmos no trajeto errado. Por conta disso aparentemente a filosofia calvinista é avessa a sistemas fechados. Por causa de nosso discernimento humano limitado e a possibilidade de erro, o sistema sempre deve reter um caráter aberto. Mas o número de esferas da lei será, no mínimo, não menor que esses quatorze. A análise filosófica das várias áreas da realidade tem mostrado que essas esferas da lei são de fato aspectos originais do cosmos que não podem ser reduzidos a cada um dos demais. Eles têm suas próprias ideias centrais que não podem ser subordinadas a outro aspecto da realidade. A segunda questão agora diz respeito à ordem ou sucessão dessas esferas da lei. Essa ordem é constante ou muda em várias criaturas? A isso devemos responder que essa ordem das esferas da lei, em resumo, essa ordem da lei, é deveras constante. Trata-se de uma ordenança da criação. Nela é revelada a sabedoria daquele que instituiu decretos fixos para suas criaturas e não deixou a existência delas à arbitrariedade. Se esse é o fato da questão, surge então a pergunta: como podemos encontrar essa ordem da lei, que nos garante, por exemplo, que o psicológico sempre segue o biológico, que o histórico vem após o analítico, e vice-versa?

A investigação filosófica descobre essa ordem da lei pela regra da complexidade crescente. Isto é, os aspectos menos complexos devem preceder e serem fundacionais para os mais complexos. Cada aspecto sucessivo torna-se dessa forma complexo, pois pode existir somente sobre o fundamento do precedente. Portanto, cada aspecto precedente é sempre pressuposto no aspecto seguinte. O aspecto do número é, portanto, o primeiríssimo, porque ele é o menos complicado, já que, nele, não há mais nada pressuposto. Um número não pressupõe espaço, movimento ou vida. Podemos falar de forma significativa sobre os números em abstração de todos os outros aspectos do cosmos. Portanto, número é o aspecto mais geral. O oposto não é verdade. Ninguém pode falar de espaço em abstração de número. Pois qualquer um que fale sobre espaço refere-se a pontos e distâncias que são magnitudes que devem ser expressas em números. Ora, a mesma coisa pode ser demonstrada de todas as esferas da lei. Consideremos a esfera-lei histórica. O controle da natureza pelo homem para que molde a cultura a partir dos dados naturais reside não somente na análise racional, mas, ademais, só pode dar-se em liberdade. Essa liberdade racional da vontade é uma das características da nossa função analítica de pensamento. Todos os aspectos que se seguem ao histórico pressupõem o poder formativo humano. No aspecto linguístico do discurso, o homem forma palavras, expressões e sentenças. Na esfera-lei estética o pensamento econômico é pressuposto, pois o excesso torna uma coisa feia, e não bela. E no aspecto pístico todos os outros treze aspectos são pressupostos, vida e sentimento, conhecimento e símbolos, relacionamento social e amor.

10. A relação das esferas-lei As várias esferas-lei são até certo ponto distintas mesmo em nossa experiência comum do dia a dia, mas no pensamento científico rigoroso elas são ainda mais nitidamente diferenciadas. Essas várias esferas-lei não estão misturadas de forma caótica como árvores caídas, mas, por meio de interconexão e inter-relações, elas formam um todo arquitetural, cujo construtor e artista é Deus. Isso já ficou evidente acima quando, no tocante à ordem da lei cósmica, vimos que cada aspecto pressupõe todos os aspectos precedentes e não pode existir sem esse fundamento. Mas agora isso deve ser considerado em maior detalhe. Podemos expressar tal ideia dessa forma: cada esfera-lei é em sua própria construção interna um reflexo de toda a ordem cósmica. Em outras palavras, todos os aspectos da vida são de uma forma ou de outra representados em cada um dos aspetos. Num certo sentido cada esfera-lei é um espelho do mundo inteiro, mas cada espelho é único. Dessa forma, há uma profunda significância em falar do mundo de número, o mundo de sentimento ou o mundo de fé. Podemos chamar isso de universalidade de cada esfera. Algumas ilustrações esclarecerão esse ponto. Ora, existe uma diferença entre pensamento e entendimento. Pensamento refere-se somente ao ato de diferenciação lógica. Mas entendimento é mais amplo. Significa o controle de algo pelo pensamento, tê-lo intelectualmente em nosso poder. Entendimento significa controle lógico. Tal atividade é certamente racional e caracterizada pelo analítico. Mas nela há também uma antecipação do histórico — o poder do controle. Em outras palavras, o aspecto histórico parece estar representado dentro do analítico. Isto se dá não somente com o histórico, mas com os outros aspectos também. O pensamento econômico ou frugal, que não faz

desvios no raciocínio, é uma antecipação do aspecto econômico, que está dessa forma presente no analítico. A certeza lógica é uma antecipação do aspecto da fé cuja ideia central é a certeza. Ainda outro exemplo pode nos ajudar. Quem quer que fale sobre a alegria da fé, refere-se àquela fase em sua vida de fé que se relaciona ao sentimento, e esse aspecto refere-se ao psicológico. É diferente do sentimento estético. Aqui estamos na esfera psicológica e encontramos um aspecto que aponta para o estético. A conclusão a partir de tudo isso é que para cada ideia central há treze pontos ou momentos que são representações dos outros aspectos precedentes e sucessores dentro dessa esfera de lei. Dessa forma, nenhuma esfera de lei é idêntica a outra. Contudo, embora a soma da ideia central e dos vários pontos seja sempre quatorze, o arranjo é sempre diferente. O que é a ideia central numa esfera de lei é em todos os outros um ponto dependente, caracterizado pela ideia central dessa esfera de lei. Na soma total de todos os pontos ou momentos dentro de uma esfera de lei, pode-se distinguir dois grupos. O primeiro grupo contém aqueles momentos que apontam para os aspectos anteriores. Esses são portanto chamados retrocipações ou analogias. O segundo grupo contém aqueles momentos que apontam para os aspectos sucessores. Eles são chamados antecipações. Dessa forma, no conceito “entendimento”, há uma antecipação do histórico, enquanto na alegria da fé há uma analogia do psicológico. É óbvio que o número de antecipações e analogias em cada esfera varia, embora a soma seja sempre treze.[9] Há uma esfera de lei, a aritmética, que não tem nenhuma analogia; todos os momentos aqui são antecipações. Há também uma esfera de lei, aquela da fé, que não tem nenhuma antecipação, aqui todos os momentos são analogias. Chamamos essas duas de esferas fronteiriças.

Por causa dessa relação multilateral de analogias e antecipações entre as esferas de lei mútuas, cada aspecto em sua própria esfera é um espelho do mundo todo. E aí reside a possibilidade para aqueles erros e falsas teorias nos quais uma certa esfera de lei é absolutizada e sobre a base disso todo o cosmos é interpretado. Dessa forma, o psicologismo, a absolutização da função psicológica, reduz tudo à sensação. Isso pode ser feito porque todas as esferas de lei não psicológicas têm uma analogia ou uma antecipação no psicológico. Da mesma forma, o materialismo constrói uma cosmovisão ao reduzir tudo ao físico. A filosofia vitalista absolutiza a função biológica e o historicismo a função histórica, etc. Em contrapartida, a filosofia cristã permite que cada aspecto permaneça em seu lugar, reconhece o caráter individual de cada esfera, descobre a ordem, reconhece as relações e por causa de tudo isso exalta a sabedoria multiforme daquele que faz todas as coisas esplendidamente bem.

11. O tempo Se alguém seguiu cuidadosamente essa enumeração dos vários aspectos com suas leis, deve ter percebido a ausência do elemento do tempo. Na verdade, o tempo não é um aspecto específico da realidade, e portanto não pertence à lista das esferas de lei. Na atual filosofia não cristã, tempo e espaço são geralmente mencionados no mesmo fôlego como sendo magnitudes similares. Caso não se queira reduzir tempo e espaço às formas de intuição, como Kant o fez, de maneira que deixem de ser aspectos da realidade cósmica, mas sejam, antes, reduzidos a dois aspectos de nossa visão do cosmos; e caso não se queira reduzi-los a formas do pensamento que estão inerentemente em nosso pensamento acerca do cosmos, de modo que, por meio de nossa atividade analítica, imprimimos as formas do tempo e espaço sobre ele (o cosmo); segue-se, pois, que a única outra conclusão a partir dessa coordenação de tempo e espaço é que o tempo, como o espaço, é apenas certo aspecto da vida. Mas isso então levaria à conclusão lógica que, como existem muitas coisas na realidade que são supra-espaciais, pelo que queremos dizer que elas são mais complicadas que o espaço embora sejam baseadas nele, então também haveria muitas coisas que seriam de natureza supra-temporal e não seriam caracterizadas pelo tempo. E é exatamente isso que a filosofia calvinista, com base na Palavra de Deus, nega veementemente. Em quase toda a filosofia não cristã o tempo é subestimado — o que é natural, pois se alguém não tem nenhuma perspectiva para o Eterno, ele não pode entender corretamente o que é o tempo. Quando a ciência nega o Deus verdadeiro e nega a sua Palavra, ela busca pelo eterno e divino dentro do cosmos e assim exalta uma porção da criação acima do tempo.

As Escrituras ensinam diferentemente. Elas ensinam enfaticamente que toda a criação é temporal, transitória, fugaz. Isso não é simplesmente um resultado do pecado. Pois mesmo antes da queda, Deus deixou a vida eterna como um objetivo futuro para o homem, que seria realizado somente após uma dispensação temporal sem pecado. Se toda a existência sobre a terra é pois temporal, o tempo não pode simplesmente ser uma esfera de lei entre muitas coisas; mas deve, de acordo com a ordem divina da criação, ser tempo cósmico que permanece acima e atravessa cada aspecto. Se retratarmos as esferas de lei esquematicamente como quatorze linhas horizontais, então o tempo é uma linha vertical que perpassa todas as outras. Se a ideia central de cada esfera de lei é a trama, então o tempo é a urdidura de todas as esferas de lei. Ora, se tudo de determinada esfera de lei é caracterizado por sua ideia central e é capturado por essa imagem especial, então todo o tempo cósmico deve individualizar-se e expressar a si mesmo em cada esfera de lei de uma maneira única. Isso pode ser demonstrado em cada aspecto da vida. Na primeira esfera de lei, o tempo expressa a si mesmo como a sequência de números. Na espacial temos a concomitância. Na física há a hora mecânica do relógio. No biológico é o desenvolvimento orgânico. O tempo psicológico é duração de sentimento. Qualquer um que tenha esperado alguém sozinho e ficado impaciente sabe que o tempo em sua expressão psicológica não é idêntico à hora do relógio. Dessa forma, o tempo atravessa toda as esferas de lei e em cada uma delas tem uma forma única caracterizada pela ideia central desse aspecto. Também na fé — para não mencionar outras — o tempo cósmico tem sua expressão na ascensão e queda da vida de fé real dos filhos de Deus. Na vida humana, a jurisdição do tempo é excedida em apenas duas formas. Primeiro, por meio da fé, pois mediante a fé verdadeira no Deus triúno, o homem põe-se acima do temporal e alcança o Eterno em cujo

relacionamento ele encontra o firme fundamento para sua vida e em cujas premissas ele encontra a certeza para o seu futuro. Em segundo lugar, o homem transcende o tempo porque em seu coração ele tem um ponto de contato com aquelas coisas que são eternas. O coração ou a alma é, como ensina claramente a Palavra de Deus, o ponto de concentração mais profundo de todas as funções temporais do homem, ou a fonte espiritual de sua existência de onde procedem todas as funções temporais. A escolha religiosa em relação a Deus se dá no coração. Ali, no coração — porque foi enxertado, pela graça, em Cristo, e é recriado por meio da obra de recriação do Espírito Santo –, é que se encontra o amor por Deus, pelo qual o crente dirige todo o seu ser a serviço do Senhor. Ou, contrariamente, é também no coração que, ao se persistir no pecado, Deus é rejeitado em favor de um ídolo para o qual o homem, em sua totalidade, direciona as expressões de sua vida. Essa alma, com tudo que nela sucede, transcende em certo sentido o tempo. Nela, o homem se põe acima de todas as coisas transitórias. Ora, o crente é enxertado em Cristo, tornando-se portanto um membro de seu corpo, um templo do Espírito Santo, e é, pois, em princípio, um participante da vida eterna — nada disso são simples questões temporais. Antes, determinam o destino eterno do crente, assim como a escolha pecaminosa de um ídolo dentro do coração do incrédulo o separa no tempo e na eternidade de Deus, a fonte da vida.[10] À luz dessa concepção calvinista de tempo, vemos que, por conta da estrutura temporal da realidade, a totalidade da existência cósmica em seu desdobramento dentro do horizonte dos aspectos temporais é perpassa e atravessa incansavelmente tudo que é terreno, a fim de encontrar descanso, por fim, naquele que transcende tempo e em cujo amor e graça eternos os crentes têm sua segurança eterna.

12. Diagrama O diagrama a seguir pode ajudar a esclarecer a conexão entre as esferas de lei e a ordem temporal e ilustra como essas esferas de lei se concentram no coração do homem que transcende o tempo. Lei como a fronteira entre Deus e o cosmos Vida temporal funcional Fé (teologia) Amor (ética) Retribuição (ciência do direito) Harmonia (estética) Valores econômicos (economia) Associação (sociologia) Linguagem (linguística) Moldagem da cultura (história) Pensamento (lógica) Sensação (psicologia) Vida (biologia) Movimento (física) Espaço (geometria) Número (matemática) tempo cósmico Direcionado a Deus Coração ou alma

Direcionado a um ídolo

13. O objeto O ponto final a ser considerado no estudo das esferas de lei é o objeto que desempenha esse importante papel não somente nas ciências, mas especialmente em nossa experiência diária comum. Por objeto nos referimos a uma coisa concreta. Se olho para uma árvore, todo o meu ser subjetivo está ativamente engajado, embora o ato de ver seja caraterizado pela função-sujeito psicológico, a função de percepção sensorial. Mas eu vejo a árvore. A árvore em si não vê. Ela não é psicologicamente ativa. Ela não tem nenhuma função sensorial subjetiva. Contudo, a árvore está envolvida no psicológico, não como sujeito, mas como objeto. A verdade é o objeto da minha visão. A esse exemplo podem ser acrescentados muitos outros que estão relacionados com outras funções-sujeito dos homens e das coisas que têm objetos dispostos ao seu redor, de todas as esferas de lei. Esse é o primeiro ponto que devemos entender bem: um objeto sempre tem uma existência relativa. Ele tem existência somente, pelo menos nas funções-objeto abertas, na relação concreta com um sujeito. Se olho para uma árvore, a funçãoobjeto psicológica da árvore está aberta. Se não olho para a árvore, então a árvore naturalmente retém sua função-objeto psicológica, mas trata-se agora de uma situação fechada. Há apenas a possibilidade de ser vista, embora o ver efetivamente não ocorra. Apresentemos agora exemplos de outras esferas de lei. Se penso sobre um animal, em minha atividade analítica subjetiva esse animal torna-se um objeto analítico ou simplesmente o objeto do meu pensamento. Pois o animal, juntamente com toda a realidade temporal, tem uma função-objeto analítica. Quando um carpinteiro faz uma mesa a partir de tábuas, como sujeito ele está historicamente ativo com seu poder de formação de cultura. Nessa situação concreta as tábuas devem ser vistas numa função-objeto histórica

aberta. Se uma pessoa escreve uma carta, ela, enquanto sujeito, está linguisticamente comprometida em formar letras, palavras e sentenças. O papel sobre o qual ela escreve funciona nesta situação como o objeto linguístico. Objetos na esfera de lei social de associação são móveis, casas, meios de transporte, etc. Objetos econômicos são aquelas coisas às quais atribuímos um valor monetário e portanto compramos ou vendemos. Objetos estéticos são as coisas cuja beleza avaliamos. Eles têm uma função-objeto estética. Os objetos jurídicos são coisas relacionadas à lei. Se reivindico algo como minha propriedade privada, trata-se de um objeto jurídico nessa situação. Coisas que amamos são objetos éticos, enquanto os elementos dos sacramentos, um edifício eclesiástico, e a Bíblia enquanto livro são objetos na esfera de lei da fé. O conteúdo da Escritura, sem dúvida, não é o objeto mas a norma da fé. As ilustrações acima foram extraídas da vida humana em suas várias atividades subjetivas que são frequentemente realizadas em relação a objetos. Todavia, mesmo na existência não humana os objetos aparecem. Quando um pássaro constrói um ninho por instinto, o ninho é um objeto psicológico para esse pássaro. Quando uma planta é alimentada com água e outros elementos, tais elementos de nutrição são objetos biológicos. Se uma pedra meteórica cai sobre a terra à noite e deixa um rastro de luz nos céus, a pedra em si é um sujeito físico. Mas o rastro de luz, ao longo do qual se moveu, é o objeto físico. O rastro não se move, mas tem algo a ver com o movimento do meteoro. O que esses exemplos nos ensinam? Em primeiro lugar vimos, em nossa descrição das esferas de lei na seção sete acima, que somos conscientemente incompletos. Há diferenciações entre a lei e o sujeito em cada aspecto. A isso devemos agora acrescentar que o lado sujeito de cada

esfera de lei contém não apenas o sujeito mas também o objeto que está relacionado com o sujeito de tal forma que tanto o sujeito como o objeto estão sob a lei nessa esfera específica de lei. Além disso, esses exemplos nos ensinam que na experiência ingênua, isto é, na vida comum do dia a dia que é de natureza pré-teorética, podemos, por meio da relação sujeito-objeto, experimentar o cosmos em sua universalidade ou de acordo com todos os seus aspectos. Em nossa funçãosujeito psicológica sempre experimentamos o mundo todo em sua funçãoobjeto psicológica. Em nossa função-sujeito analítica experimentamos todo o mundo de acordo com sua função-objeto analítica, pois ao pensar formamos um conceito de tudo que chega ao alcance da nossa função-sujeito analítica. Dessa forma, a função-sujeito histórica do homem é direcionada à funçãoobjeto histórica daquilo que, na criação, pode ser transformado em cultura. Em terceiro lugar, esse acesso à onidimensionalidade da realidade cósmica na relação sujeito-objeto é possível não somente na totalidade da experiência ingênua, na qual todas as funções-sujeito interconectadas do homem estão inclusas, mas também em cada atividade individual caracterizada por uma função-sujeito específica. Na experiência ingênua total não olhamos para uma flor (uma ação humana qualificada pela função-sujeito psicológica), mas também pensamos sobre ela (uma ação analiticamente qualificada), falamos sobre ela (uma atividade linguisticamente qualificada), nos associamos com ela, apreciamos seu valor, respeitamo-la como a propriedade de nosso próximo, etc. Assim, experimentamos a realidade onidimensional da flor. Podemos também experimentar a universalidade dessa coisa numa ação específica. Na ação psicologicamente qualificada da visão, por exemplo, experimentamos sua onidimensionalidade porque na função-sujeito psicológica atual objetivamos psicologicamente todos os aspectos, i.e.,

fazemos deles os objetos de nossa percepção. O que vemos quando olhamos para uma flor? Nessa visão perceptual da flor caracterizada como o objeto psicológico, distinguimos não somente os aspectos pré-psicológicos — contabilidade (e.g., o número de pétalas); a espacialidade (e.g., seu tamanho); seu aspecto físico, isto é, o fato de que a flor, em sua forma não desenvolvida, carece de certos nutrientes necessários; seu aspecto biológico (e.g., que está a ponto de murchar) — mas também as qualidades psicológicas e prépsicológicas objetivas. Vemos também sua cor (uma propriedade psicológica objetiva); seus atributos lógicos objetivos, pelos quais podemos formar um conceito dela; sua função histórica objetiva (e.g., que é uma flor cultivada e não selvagem); suas qualidades estéticas objetivas; sua função econômica objetiva (e.g., que tem um certo valor no comércio); sua função jurídica objetiva (e.g., que é a propriedade de outro); sua função ética objetiva (e.g., que é estimada por ser uma flor própria para um buquê de noiva); e sua função pística objetiva, que é uma criatura de Deus a ser respeitada como tal. Dessa forma, vemos que na relação sujeito-objeto captamos a realidade das coisas em sua universalidade cósmica. Isso corrobora a declaração anterior de que cada esfera de lei é um espelho do mundo todo. Para finalizar o raciocínio, deve-se acrescentar que a existência humana pode ser objetivada somente na medida em que se expressa nos aspectos temporais. Podemos observar a estatura de um ser humano, seu sexo, cor, imagem e status no comércio, governo, família, etc. Mas o homem como tal em sua existência total não pode e não deve ser objetivado porque em sua alma, que é o cerne do seu ser, ele transcende os aspectos temporais desta vida. Dessa forma, o homem não pode ser tratado como mercadoria, nem considerado como extensão de uma máquina. Pois ele carrega dentro de si o mistério da redenção de Deus em Cristo por ser templo do Espírito Santo.

14. As coisas Até aqui temos falado dos vários aspectos, ou modalidades de coisas. Mas o que dizer das coisas em si? Como devemos vê-las filosoficamente? A filosofia é afinal a ciência do todo, certo? Devemos fazer as seguintes observações sobre este assunto. Em primeiro lugar, observemos coisas inanimadas como fragmentos de uma pedra natural. Sua existência é claramente caracterizada pelos três primeiros aspectos — número, espaço e movimento (físico). Em cada um desses três aspectos cada coisa inanimada funciona como sujeito. Nos aspectos sucessivos, contudo, essa coisa não tem funções de sujeito. Ela não vive, come, pensa, fala ou crê. Devemos portanto concluir que a realidade plena dessa coisa está contida dentro desses três aspectos? Que sua existência está encapsulada ali? Que ela não tem relação alguma com todos os outros aspectos? Não, pois embora não tenha uma função de sujeito, essa coisa tem, porém, em todas as modalidades subsequentes, uma função como objeto. A coisa que em si mesma não tem sensação e portanto não tem nenhuma função-sujeito psicológica, pode todavia ser percebida pelo animal ou homem, e, dessa forma, tem uma função-objeto psicológica. Podemos usar a coisa como o objeto de nosso poder formador de cultura e fazer um objeto decorativo a partir dele, por exemplo, por ele ter uma função-objeto histórica. Dessa forma, uma coisa tem uma função em todas as esferas de lei. Sua existência nunca é prematuramente fechada em um dos aspectos. Damos a ela um nome. Associamo-nos com ela ao tomá-la em nossas mãos. Avaliamos seu valor monetário. Achamo-la bela ou feia. Podemos respeitá-la como propriedade de outra pessoa. Gostamos dela ou a desprezamos. E finalmente devemos vê-la como parte da criação de Deus. Dessa forma o todo da realidade cósmica está resumido em cada coisa. Cada coisa está relacionada

com a totalidade da vida por inúmeros contatos e possibilidades. Uma planta difere de uma coisa inanimada ou de uma coisa física porque ela é caracterizada por sua função-sujeito mais sublime. Em adição a esses três primeiros aspectos, uma planta tem também uma função-sujeito no quarto aspecto, o aspecto biológico, e uma função-objeto nos dez outros que o sucedem. Uma planta é portanto uma coisa biológica. Um animal difere também. Essa criatura tem funções sujeito nas primeiras cinco esferas de lei, dessa forma também no psicológico. Um animal possui uma vida sensorial de sentimento pela qual ele age e reage instantaneamente. Em todos os aspectos subsequentes, o animal tem funçõesobjeto. Portanto um animal é um ser psicológico. O homem é exaltado acima de todas as outras criaturas, não somente porque todas as funções temporais focam-se em seu coração como a raiz de todo o seu ser, mas também no fato de que tem uma função-sujeito em cada uma das esferas de lei, enquanto também tem as máximas funções-objeto. Deus certamente adornou sua mais sublime criatura com muitos dons.

15. A estrutura das coisas Isso nos leva ao tema que na terminologia filosófica é chamado estrutura da individualidade (a “coisidade” da coisa), isto é, a estrutura de criaturas como unidades ou totalidades individuais. O que se quer dizer com isso? Uma coisa é mais que um punhado de funções-sujeito. Uma coisa não é simplesmente uma coleção de atributos, mas uma unidade ou todo. Como devemos entender isso filosoficamente? Para responder isso devemos primeiro distinguir entre coisas naturais e coisas culturais. Há uma diferença essencial entre um pedaço de pedra natural e um tijolo, entre uma pepita de ouro e um anel de casamento, e entre uma árvore e uma caixa de madeira feita a partir dela. Coisas naturais são aquelas que são dadas como tais na natureza, e que não passam por nenhuma ação de formação cultural por parte do homem. Há sem dúvida coisas naturais que devem sua existência à atividade animal, por exemplo, um ninho de passarinho, um buraco de coelho, uma casca de ovo, etc. Mas isso não faz deles objetos culturais, já que sua forma é constante e não é o resultado de uma atividade de formação e controle sobre a natureza, direcionada por um insight racional e determinada por um objetivo. Elas permanecem coisas naturais que são de uma estrutura objetiva, isto é, sua realidade é caracterizada pela função-objeto psicológica, que é regulada à vida animal. Por outro lado, tudo que deve sua existência a um poder humano livre e formativo é uma coisa cultural. Em primeiro lugar, com respeito às coisas naturais — não fazemos comentário adicional sobre coisas naturais como objetos — observamos acima que esses possuem um número igual de funções-sujeito nas três primeiras esferas de lei. Uma rocha tem três funções-sujeito, uma na esfera de lei matemática, uma na espacial, e uma na física. A função-sujeito mais alta

— neste caso, a física — desempenha um papel distintivo e controlador. Na estrutura da coisa, é a função diretiva ou qualitativa. Isto é, no meio de todas as funções-sujeito, ela serve para direcioná-las de uma maneira singular em direção a um objetivo específico. Por meio do processo interno de desvelamento de uma coisa, todas as suas funções recebem uma unidade estrutural interna de acordo com a lei. As funções unem-se para formar uma estrutura individual pela qual a coisa demostra uma unidade interna, e se tornam, portanto, uma coisa concreta que é singularmente distinguida de todas as outras espécies de coisas. Essa unidade de uma coisa não é determinada por um aspecto. Ela se encontra mais profundamente ancorada na ordem cósmica mundial que em um dos aspectos temporais. Pois ela coere e interliga os aspectos das coisas num todo individual e significativo. Mas porque essa totalidade da coisa é em si mesma de uma natureza transitória e não transcende o horizonte temporal do cosmos, concluímos que a unidade da coisa como um todo está ancorada no próprio tempo cósmico, que perpassa verticalmente todas as esferas de lei. Esse é o caso com as coisas naturais. Com as coisas culturais, a situação é um pouco diferente. É verdade, elas também têm uma função diretiva e qualificante que dá direção ao processo de desvelamento dentro da coisa, direcionando todas as funções em direção a um fim específico, expressando dessa forma a estrutura suprafuncional da coisa de uma maneira única em cada um de seus aspectos. A diferença, contudo, entre as coisas culturais e naturais, é que, nas primeiras, a função qualificante não é a função-sujeito superior da coisa, mas uma das funções-objeto. Qual? Depende. Ela é determinada pela natureza ou caráter da coisa. A função diretiva de um artigo assim chamado semimanufaturado, que serve

como material para a manufatura de vários produtos, é a função-objeto histórica. A destinação de uma tábua, por exemplo, reside na possibilidade dela ser transformada num produto finalizado. A função qualificante de uma pintura é sua função-objeto estética; a de uma casa é a sua função-objeto social em associação; a de um produto comercial, sua função-objeto econômica; num tribunal, a do punhal com o qual um assassinato foi cometido, sua função-objeto jurídico; a de um objeto herdado que temos em alta conta, sua função-objeto ética; e a do edifício da igreja e do pão do sacramento, a função-objeto de fé. Uma diferença adicional entre tais coisas culturais e naturais é que — embora a função guia desempenhe um papel importante no processo de desvelamento interno de ambos — na coisa cultural há ainda uma função secundária a observar que desempenha um papel muito especial em sua estrutura. Essa segunda função é sempre a função-objeto histórica — o poder formador de cultura. Chamamos isso de função fundante da coisa, pois esta coisa objetiva deve sua existência ao poder de formação cultural de um homem que age sobre a base da plasticidade objetiva do material que, por sua vez, se presta à produção da tal coisa chamada cultura. Ora, a “qualidade de coisa” desse objeto cultural consiste na unidade indissolúvel entre suas funções qualificante e fundante. Essa estrutura da coisa liga todas as suas funções na unidade individual supra-modal (unidadecoisa), que também está ancorada no tempo cósmico.

16. A estrutura das relações sociais Devemos dar atenção agora ao conceito filosófico das relações sociais. [11]

Não podemos senão apontar as principais características. As relações sociais constituem aquelas associações de pessoas que, sob a base de certa estrutura de autoridade, estão unidas numa vida comunal única, tais como casamento, família, Estado, igreja, escola ou clube. Clã e raça estão ambos unidos no sangue e assentam-se, desse modo, sobre um fundamento biológico. O clã é a comunhão entre pessoas consanguíneas contemporâneas; enquanto raça representa essa consanguinidade na linha sucessiva e histórica. Esses dois não são relacionamentos (verbanden), mas comunhões (agrupamento), pois carecem de uma estrutura de autoridade. Ambos estão, contudo, intimamente conectados com o relacionamento familial. A filosofia não cristã sempre deu uma explicação dupla para a estrutura organizacional da vida social humana. Por outro lado há a visão de universalismo e, contra esta, a visão de individualismo. Devemos discutir brevemente cada um desses pontos de vista que ainda estão em voga hoje. O universalismo é a visão que sustenta que, dentre todos os relacionamentos sociais, um é central, e, como o objetivo da vida, esse relacionamento superior toma todos os outros como meios e partes subservientes. Essa relação superior pode ser o Estado (socialismo estatal) ou a igreja (tomismo). Por outro lado, o individualismo procede da autossuficiência do indivíduo, do homem divorciado de todas as relações da vida. Uma relação não é nada senão uma união relativamente arbitrária de tais indivíduos soberanos que voluntariamente abandonam parte de sua soberania em prol de um propósito comum (humanismo liberal). Nenhum argumento detalhado é necessário para demonstrar que um calvinista não pode satisfazer-se com nenhuma dessas visões. Ele rejeita

inteiramente todo individualismo, já que este nega de fato a realidade das relações; e, ao divorciar-se a personalidade humana de sua raiz religiosa, ele o absolutiza em sua auto-determinação soberana. Mas ele também rejeita o universalismo, pois, a despeito de seu reconhecimento da realidade das relações sociais, ele falha em reconhecer suas diferenças, seus tipos estruturais, como fundamentadas na ordem cósmica divina, e porque busca explicar todas as associações humanas por meio da fórmula biologicamente derivada do todo e suas partes. Aqui a natureza única das relações sociais é ignorada e a relação superior é idolatrada. A visão filosófica calvinista das relações sociais da vida humana se resume a isso. Todo tipo de relação, família, Estado ou igreja, tem seu próprio caráter, seu próprio princípio estrutural. Esse princípio estrutural é de caráter supra-modal, isto é, ele não está confinado a um aspecto modal específico; antes, abordamo-lo por meio da conexão indissolúvel entre as funções qualificante e fundante. Esse princípio estrutural se expressa de maneira única nos vários aspectos da relação. Ele também carrega um caráter normativo. É necessário que se concretize (ou realize) universalmente nas relações sociais. Cada relação, enquanto sujeito, está ela mesma sujeita ao princípio estrutural normativo. Nenhuma relação terrena persiste eternamente. Portanto, a individualidade de cada relação enraíza-se dentro do horizonte do tempo cósmico. Cada tipo de relacionamento tem uma função qualificante que, dentro do processo de desvelamento interno, dirige todas as funções de uma forma única em direção a um objetivo específico por meio do qual todas as funções estão ligadas numa unidade estrutural interna. Cada relação social, em relação íntima com sua função qualificante, tem também uma função fundante da qual sua existência depende. Essas duas funções podem mudar de acordo com a necessidade dos vários princípios estruturais.

Assim, a função qualificante do casamento é o amor, uma função ética, embora o casamento em si esteja fundado no aspecto biológico do intercurso sexual. Na família essas funções são as mesmas. A família nasce do casamento. Ela é qualificada pelo amor e se assenta na relação sanguínea. É diferente com respeito ao Estado. A função qualificante é a jurídica, a da retribuição, ao passo que a função fundante deve ser buscada no [aspecto] histórico, no poder de formação cultural da espada. Por outro lado, a função qualificante da igreja é a fé — fé na revelação divina. Sua função fundante é o [aspecto] histórico, baseado no poder de formação cultural da Palavra divina. E novamente há uma diferença com respeito à escola. Suas funções qualificantes e fundantes residem ambas no histórico. Ela está fundada no poder formador do conhecimento, e seu objetivo é transformar, por meio do conhecimento, os alunos em adultos capazes de participar na tarefa cultural. Sociedades ou clubes (verenigingen) são todos fundados sobre o aspecto histórico. Elas têm origem no processo histórico do desenvolvimento da humanidade, e são variavelmente qualificadas de acordo com sua natureza e propósito. Um clube para o propósito de sociabilidade é caracterizado por uma diretiva social; um clube de negócios é economicamente qualificado, enquanto cada organização que une pessoas da mesma fé para um propósito especial — por exemplo, uma sociedade escolar cristã, uma associação política cristã, uma sociedade jovem cristã, ou um sindicato cristão — tem a fé como sua função qualificante. Os princípios estruturais de todas essas relações agora demonstram uma diferença dupla da estrutura de individualidade das coisas. A primeira diferença consiste no fato que as relações sociais têm uma função-sujeito em cada aspecto. Elas são completamente subjetivas e não tem nenhuma estrutura objetiva. Cada relação consiste de seres humanos, e os seres

humanos são sujeitos em todas as esferas de lei. Assim também os relacionamentos. Embora as próprias relações sociais não tenham funções-objeto, isso não significa que não estejam interconectadas com o “mundo externo” por meio da relação sujeito-objeto. Por exemplo, se uma família vive numa casa, a função-sujeito social das relações familiar está entremeada com a funçãoobjeto social da casa. O território de um Estado tem uma relação objeto espacial para com a função-sujeito espacial do Estado. A partir de sua estrutura subjetiva, segue-se que a relação social deve continuamente cumprir uma tarefa normativa. Os laços familiares entre os membros devem ser mantidos. Ao manter uma consciência na igreja, os membros da igreja devem manter a existência da igreja, e se conduzirem como membros eclesiásticos fiéis. Se essa tarefa é descumprida, então as relações sociais se degeneram e por fim se rompem mediante dissolução. A segunda diferença entre a estrutura das relações e aquela da coisas concretas é uma natureza diferente. Vimos que a unidade específica das coisas concretas estava sob controle de sua estrutura de lei conforme está enraizada no horizonte do tempo cósmico. Isso é verdade também, como já afirmado, com respeito às relações sociais. Pois cada relação é transitória no tempo, assim como coisas concretas são fugazes. O casamento, a família, a igreja e o Estado não são eternos. E, todavia, as relações sociais têm uma raiz mais profunda e religiosa porque o homem, em distinção das coisas, tem uma fonte religiosa de vida. Cada relação é uma expressão temporal de, e é finalmente determinada pela comunhão religiosa de seres humanos. Essa comunhão religiosa dos homens é uma renovação pactual que existia em Adão originalmente, tendo sido em seguida destruída pela queda, sendo, porém, restaurada, por fim, pela graça em Cristo. Por causa da queda, aliás, por causa da obra divina de recriação,

uma antítese surgiu nessa comunhão pactual profundamente religiosa dos homens. Uma parte permaneceu na apostasia de Adão, enquanto a outra parte é graciosamente restaurada, por Cristo, à relação de amor para com Deus. Eis aí a origem do conflito irreconciliável entre o reino das trevas e o reino de Deus. Essa comunhão religiosa de homens, seja em apostasia ou em regeneração, imprime uma marca sobre todas as relações sociais. Uma família que vive pela fé na Palavra de Deus é uma revelação temporal do corpo de Cristo, enquanto outra família, por conta de sua incredulidade, continua a carregar a marca da apostasia e é uma expressão temporal do reino das trevas. Assim se dá com todas as relações sociais. Aqui cada relação que se sujeita pela fé a Cristo e o serve tem um destino e influência que ultrapassa todos os fins temporais, ao passo que cada relação que é estranha a ele não verá uma aurora; pelo contrário, mantém seus membros em trevas eternas. Dessa forma, tudo de nossa vida, tanto pessoal como social, pertencendo a várias relações sociais, existe sub specie aeternitatis, sob o aspecto da eternidade.

17. A sociedade Igreja, Estado e sociedade — esses três são frequentemente mencionados seguida e conjuntamente, como se fossem três iguais. Todavia, eles não são, de modo algum, iguais no mesmo plano. Pois a igreja e o Estado são relações que carregam um caráter institucional. Isto é, elas não devem sua existência à iniciativa humana. Elas passaram a existir por ordenança divina, assim como o casamento e a família. A existência de cada pessoa é em certo sentido determinada por tais relações institucionais, independentemente de sua própria vontade. Cada uma, sem tê-lo desejado, nasceu de certo casamento, numa determinada família, e a partir do nascimento pertence a determinado Estado e igreja. Mas o que é a sociedade (maatschappij)? Em todo caso, ela não é institucional, embora se refira a associações humanas. Poderíamos chamá-la de a maior esfera da liberdade pessoal, na qual os homens podem se associar como iguais, e estabelecer conexões uns com os outros e se organizarem livremente, mas tudo isso fora da esfera dos relacionamentos institucionais. Na esfera da sociedade encontramos dois tipos principais que merecem nossa atenção: os contatos da sociedade (maatschappelijke betrekkingen) e as organizações da sociedade (maatschappelijke verbanden). Na sociedade devemos distinguir entre contatos pessoais entre homens como iguais e os contatos entre vários relacionamentos sociais (samenlevingsverbanden), cada um soberano em sua própria esfera. Aos contatos societários pessoais pertencem aqueles do comprador para com o vendedor; de um homem para com seu vizinho, conhecido ou colega; do médico para com seu paciente; de alguém caminhando junto a uma pessoa com quem se encontrou. Mesmo esses contratos societários livres têm seus próprios princípios estruturais, que são determinados pela conexão indissolúvel entre as funções

qualificadoras e fundacionais e que são expressos de uma maneira única em cada um dos aspectos. Todas essas relações descansam sobre um fundamento histórico, pois se originam no poder humano para formar cultura. Eles passam a se desenvolver na história somente em certo nível de cultura. Tais relações societárias livres não existiam ainda em povos primitivos. A função diretiva de um contato societário livre varia de acordo com sua natureza. A relação do comprador para com o vendedor é economicamente qualificada; aquela de um homem para com seu vizinho é socialmente qualificada; aquela entre dois colegas é caracterizada historicamente como de dois homens que se entregam à mesma tarefa cultural. Em todas essas formas individualistas de contatos sociais, os indivíduos não estão unidos permanentemente, mas retém sua liberdade pessoal um para com o outro. Eles têm apenas contato incidental um com o outro, um contato que não se assenta sobre a base de uma organização. Esse contato sempre consiste da relação sujeito-sujeito. Há também contatos societários livres entre vários relacionamentos sociais, tais como aquele entre duas ou mais famílias, entre Estado e igreja ou entre vários negócios. A natureza de tais contatos podem variar. Quando uma grande amizade existe entre duas famílias, seus contatos de sociedade mútua são determinados pelo aspecto ético de amor. Mas se essas famílias se associam simplesmente como vizinhos, então esses contatos são caracterizados pelo aspecto social. E quando há contato entre vários negócios, esse contato não precisa per se conter um caráter econômico, pois ele pode simplesmente ser socialmente qualificado. É possível também que os contatos societários entre esses relacionamentos sociais tenham uma forma organizada permanentemente, por exemplo, quando várias escolas se organizam numa união escolar. Então os contatos societários livres transformam-se num relacionamento societário.

Por essas organizações societárias entendemos aqueles relacionamentos que são caracterizados por uma estrutura de autoridade e que vieram à existência pela união livre de indivíduos ou relacionamentos em busca de um objetivo comum. Esse objetivo determina a natureza da organização que há de ser formada. Aqui estão todos os tipos de negócios e sociedades (verenigingen), que são sempre historicamente fundamentadas e são variavelmente qualificadas como vimos acima. O que é verdade dos relacionamentos sociais (família, igreja, Estado), aplica-se também a esses contatos societários (comprador e vendedor) e organizações societárias (união escolar). Seus princípios estruturais são normativos e supramodais; eles se expressam singularmente em cada aspecto; sua existência deve ser continuamente realizada de acordo com a norma do princípio estrutural; sua individualidade subjetiva está enraizada no tempo cósmico, por meio do qual sua identidade é determinada; eles têm uma raiz religiosa que ou está divorciada da Palavra de Deus e de seu culto, ou então é renovada para que busquem servir aquele que é exaltado como Rei do mundo.

18. As inter-relações A criação de Deus é uma unidade. Essa unidade pressupõe a existência de muitas criaturas individuais que estão em contato umas com as outras de várias formas e estão unidas em várias relações. A filosofia deve dar conta dessa unidade cósmica que está fundamentada na vontade do Criador. Mas, visto que a reflexão filosófica nunca pode ir além do horizonte temporal, a unidade religiosa mais profunda da criação se encontra além do seu alcance. Essa unidade básica é a relação pactual entre Deus e humanidade — primeiro em Adão e mais tarde em Cristo — em que o cosmos não-humano foi incluído como o campo mais amplo onde o homem, em seu tríplice ofício como sacerdote, profeta e rei, deveria executar o mandato dado por Deus para dominar o mundo. Já observamos algumas relações temporais entre as criaturas. Temos visto como o tempo cósmico interliga e coere os vários aspectos. Assinalamos também as conexões mútuas entre as esferas de lei na antecipação e na analogia, as relações entre sujeito e objeto, e também as relações entre sujeitos humanos tanto nos relacionamentos sociais como em seus contatos na sociedade. Contudo, devemos investigar ainda um tipo específico de relação entre estruturas individuais que é chamada interrelação ou encapse. O que se pretende dizer com isso? Interrelação significa uma conexão de estruturas em que estas retêm sua própria esfera de soberania. A interrelação, portanto, não denota a relação de uma parte para com o todo (por exemplo, de um fragmento de pedra para com a rocha da qual se desprendeu); ou de um negócio para com toda a indústria; ou de uma província para com o reino. Pois na relação de uma parte para com o todo, a parte tem a mesma qualificação que o todo ao qual ela pertence.

Mas onde a interrelação está presente, a independência única e intrínseca das estruturas que o compõe é inteiramente mantida. Encontramos tais interrelações entre várias coisas concretas, também entre relacionamentos sociais e coisas concretas; e finalmente há também interrelação entre estruturas mútuas de vida comunitária. Citemos primeiramente alguns exemplos de interrelação entre coisas concretas. Numa pintura a arte é trabalhada no material a partir do qual é feita — lona, tinta e tela. O material é de uma estrutura sujeito-física, enquanto a pintura é de uma estrutura objeto-estética. Porque a obra de arte está fundamentada no material físico e não vice-versa, falamos aqui de uma interrelação fundante unilateral. As interrelações entre plantas ou animais e os elementos físicos que são necessários para construir os organismos são do mesmo tipo. Outro exemplo de interrelação é aquele entre um pássaro e seu ninho, o caracol e sua morada, a tartaruga e seu casco. Um animal é um sujeito psicologicamente qualificado; enquanto o ninho, o casco do caracol e da tartaruga são objetos psicológicos. Aqui temos uma interrelação encáptica entre sujeito e objeto. A interrelação entre um relacionamento social e uma coisa concreta é vista na conexão entre um negócio diário e as vacas que são parte dele, ou a relação de uma congregação para com seu edifício, ou de uma família para com a casa na qual vivem. Esse tipo de interconexão é a relação sujeitoobjeto novamente. Na categoria final — interconexão entre as estruturas mútuas de vida comunitária — nosso primeiro exemplo é a conexão entre os relacionamentos sociais e os contatos societários. Aqui há reciprocidade ou uma assim chamada encapse correlativa. Isto é, os relacionamentos sociais e os contatos societários existem somente em reciprocidade um com o outro. A existência

humana nunca pode ser completamente absorvida nos relacionamentos sociais (igreja e Estado, por exemplo). Ela precisa da suplementação da atividade pessoal livre ao estabelecer comunicação com outros. Por outro lado, contudo, a liberdade do homem na sociedade deve ser limitada por sua atividade nos relacionamentos sociais. Outro exemplo é a interconexão entre os contatos e as organizações da sociedade. Aqui temos uma interrelação fundante unilateral, pois as organizações são possíveis somente sob a base dos contatos na sociedade. Um terceiro exemplo é a interrelação de um Estado e um negócio que o governo tomou a seu encargo (e.g., o sistema postal). Embora o Estado seja o empreendedor, todavia, o negócio retém suas características econômicas. Isso é um tipo de interrelação correlativa. Um exemplo final é a relação entre o Estado e todas as estruturas de vida corporativa encontradas dentro de seu território. Nesse caso falamos de uma interrelação territorial. Aqui o caráter singular de cada estrutura da vida corporativa é retido, enquanto o Estado tem o dever de zelar para que os interesses de um relacionamento não sejam danosos ao interesse geral.

19. Corpo e alma Um capítulo importante na filosofia é a antropologia, o estudo da estrutura do ser do homem. A questão da relação do corpo e alma dentro da unidade do nosso ser exige nossa atenção, de modo primordial. Não há podemos encontrar nenhuma verdade sobre esse tema à parte da luz das Sagradas Escrituras. Afora a Palavra de Deus, todo tipo de erro vem à tona, conduzindo a dificuldades insolúveis. O que a Bíblia diz sobre o ser do homem? Ela nos diz que nossa existência consiste do aspecto “dois-em-um” da alma e corpo. As Escritura Sagradas frequentemente designam a alma de coração. Trata-se do ponto de concentração religioso mais profundo de todas as nossas funções temporais, que, unificadamente, formam o corpo temporal. É impossível uma ciência ou filosofia da alma. O conhecimento científico da alma não existe. Pois toda ciência é limitada ao modo temporal do ser da criatura. O que reside além da ordem temporal cósmica dos aspectos está fora da esfera da reflexão científica. O que frequentemente tem sido chamado “ciência da alma” é em geral reflexão a respeito da estrutura das funções superiores do corpo. Seja qual for a verdade que possamos obter concernente à alma do homem, ela nos é dada na Palavra de Deus: tudo o que ultrapassa isso é especulação e fruto de fantasia orgulhosa. Qualquer conflito com a informação presente na Bíblia é falsidade. Na alma toda a nossa existência temporal está concentrada num ponto. Nela o homem experimenta sua comunhão religiosa mais profunda na unidade da raça humana. Também na alma está a raiz criatural da antítese entre a parte da humanidade que continua na apostasia de Adão e a outra parte que é renovada como o corpo de Cristo, o Salvador, enchido com o Espírito, e unido ao Pai. Aí no coração humano faz-se as escolhas em relação a Deus: uma escolha contra o Senhor em favor de um ídolo, ou então a

escolha amorosa de servi-lo de todo ser, guardando a aliança e cumprindo o ofício tríplice do homem. A vida da alma do homem se desdobra nas quatorze facetas das funções-sujeito temporais que são refratadas pelo prisma do tempo cósmico. Esse tessitura completa de funções é o corpo humano, que é uma totalidade complexa. Esses fundamentais da antropologia, que são basicamente bíblicos, são absolutamente irreconciliáveis com as visões antropológicas da filosofia não cristã e sua aliada, a filosofia da síntese. Essa filosofia geralmente advoga a visão de que as três ou quatro funções humanas mais baixas estão ligadas num composto que é chamado a substância do corpo humano, enquanto as funções temporais remanescentes formam pois a substância complexa da alma. Há inúmeras objeções a serem apresentadas contra essa concepção atual. Em primeiro lugar, não é biblicamente justificado falar de “substância”. “Substância” na verdade significa aquilo que existe por si só, e repousa em si mesmo — um pensamento que não pode ser harmonizado com a nossa fé no poder todo-poderoso e onipresente de Deus pela qual ele sustenta todas as coisas da criação. A filosofia calvinista não precisa desse conceito de substância. Pois à parte da objeção acima, a filosofia calvinista não dá conta da individualidade das criaturas por meio de uma filosofia da substância, na qual a diversidade da criatura é comprimida num padrão de duas substâncias (substância material e espiritual). A filosofia calvinista faz plena justiça à singularidade de ambas as coisas e aos relacionamentos em sua concepção da individualidade estrutural. Em segundo lugar é feito injustiça à universalidade do corpo humano ao reduzi-lo a um complexo das funções mais baixas, enquanto o restante das funções do corpo é elevado à alma. Frequentemente isso significa que a

função do pensamento lógico é declarada como sendo absoluta e como a função principal da alma, de forma que todas as outras “expressões da alma” são expressões dependentes do pensamento. Em terceiro lugar é difícil saber o que deve ser feito com a função biológica. Alguns a incluem no complexo “corpo” substancial, ao passo que outros a incluem no complexo “alma” substancial. Em quarto lugar a questão da relação do corpo e da alma torna-se irrespondível. E finalmente obstrui-se dessa forma o caminho para um entendimento do que a Palavra de Deus revela no tocante à estrutura básica do ser do homem, na qual o coração é o ponto de concentração religioso e supratemporal da vida.

20. A estrutura do corpo Devemos adicionar algo ao que já foi dito sobre o corpo humano. Já sabemos que o corpo não é uma substância nem o complexo das funções humanas mais baixas. Ele é a soma de todas as nossas funções que procedem do coração e são de natureza temporal. Mesmo a fé é uma função temporal que procede do coração. Pois a Escritura diz “com o coração se crê para a justiça” (Rm 10.10a). Ora, a estrutura total do corpo humano na coerência de todas as quatorze funções não é uma estrutura simples, mas complexa. Isso implica que na unidade do corpo humano várias estruturas estão interrelacionadas. Trata-se de uma interrelação unidirecional. Quais estruturas estão conectadas na unidade do corpo humano? 1. A estrutura corporal física, na qual as três primeiras funções-sujeito estão unidas numa estrutura individual. Essa é a estrutura dos elementos químicos físicos que são necessários para o desenvolvimento orgânico do corpo. 2. A estrutura corporal biológica do organismo vivo que se baseia na e não pode existir sem a estrutura física. O sistema nervoso autônomo, que não está sob o controle da vontade humana, desempenha um papel nessa estrutura biológica. 3. A estrutura corporal psicológica da vida sensorial do sentimento que está fundamentada nas duas estruturas acima. Aqui o sistema nervoso animal, que é obediente à nossa vontade, desempenha um papel importante no controle do processo emocional. 4. O assim chamado ato-estrutura do corpo pelo qual todas as funções póspsicológicas são unidas e dentro das quais as três formas básicas de atos humanos acontecem — as do conhecimento, da imaginação e da vontade. Esse ato-estrutura reside nas três estruturas acima e é exclusivamente humano, pois não é encontrado na vida animal. A estrutura total do corpo

humano na interrelação fundacional unidirecional das várias estruturas do corpo é caracterizada pelo ato-estrutura. Por essa razão o corpo animal não difere do corpo humano somente em partes, de maneira que o corpo animal não tem nenhum ato-estrutura como o tem o corpo humano, embora em outras partes eles sejam semelhantes. Eles diferem em todos os aspectos. A vida emocional dos humanos e dos animais é de uma natureza completamente diferente porque a vida emocional humana está aberta a, e é direcionada, pelas funções pós-psicológicas, que unificadamente formam o ato-estrutura. Visto que o corpo humano tem seu centro nas profundezas religiosas do coração, o corpo do homem que se tornou um membro do corpo de Cristo pela graça regeneradora pode tornar-se o templo do Espírito Santo: “Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo” (1Co 6.20).

21. Os atos humanos Acima vimos que o ato-estrutura do corpo humano é único. Devemos considerar agora a atividade que é determinada pelo ato-estrutura do corpo do homem. Em primeiro lugar, devemos responder à pergunta: O que devemos entender por atos humanos? Não seria correto afirmar que tudo o que o homem faz pode ser chamado um ato. Nas atividades do homem, devemos sempre distinguir atos de operações. Se entramos numa loja e compramos algo, isso é uma operação. Cada operação é um feito humano que tem resultados diretos na realidade objetiva de forma que alguma mudança ocorre. Dessa forma, quando compramos algo, o artigo comprado muda de dono, embora ao mesmo tempo uma quantidade razoável de dinheiro também muda de mãos na direção oposta. Se retivermos essa ilustração de uma compra, todas as operações humanas são resultado de atos prévios. Por que compramos algo? Pois desejamos esse artigo. Mas não o desejamos a menos que tenhamos conhecimento dele em algum grau e nossa imaginação tenha sido direcionada para ele. Em outras palavras, cada operação é preparada para e gerada pelos atos de conhecimento, vontade e imaginação. Por ato então entendemos aquela atividade interior do homem pela qual, de maneira imaginada, ele se lida, em suas funções pós-psicológicas, com a realidade,. Olhar para algo então é um ato. Pois ver não é pós-psicológico, mas psicologicamente qualificado. Mas os seguintes são atos: pensar sobre algo, falar sobre ele, trabalhar por ele, amá-lo, aferir o seu valor, julgar suas qualidades estéticas e orar por ele. Nesses atos estamos imaginativamente trabalhando com a realidade. Isto é, estamos engajados com ela em nosso espírito, que é direcionado para a realidade. Mas não fazemos nada com essa realidade. Ela não passa por nenhuma influência de nossos atos.

Tal ato-vida é normativo. Ele se passou sob a influência de nossa atividade pós-psicológica, que se exerce sob a validade de normas, nas quais a vontade de Deus para nossa vida é expressa. Dessa forma, um ato não é uma reação induzida pela natureza, mas uma atividade responsável que pode ser boa ou má, que deve ser promovida ou impedida. Dessa forma o provérbio “o pensamento é livre” é absolutamente errado. Atos são realizados pela estrutura corporal mais alta do homem. Mas em sua execução eles não estão limitados às funções sujeito pós-psicológicas. Não, eles funcionam em todos os aspectos de nossa existência temporal. Um ato de fé, por exemplo, tem tanto analogias psicológicas como prépsicológicas — pense na alegria da fé ou no fato de que a fé é possível somente sob o fundamento de nossa vida biológica. Qual é agora a fonte mais profunda do ato-vida do homem? Essa é a alma, o centro religioso de existência. O coração é o estímulo de nossos atos. Dele nossas orações, desejos e pensamentos se acumulam e sob a direção do ato-estrutura do corpo se expressam em todos os aspectos de nossa existência temporal. De tudo isso segue que um ato não tem nenhuma qualificação uniforme em uma das funções. Pois nosso espírito é completamente livre em seu atovida. Um ato de conhecer nem sempre precisa ser analiticamente qualificado. Pelo contrário, o conhecimento pode ser qualificado pela fé, vale dizer, o conhecimento espiritual; o conhecimento comercial é econômico; o conhecimento dos homens é socialmente qualificado. As características que um ato possui são determinadas pela estrutura da comunidade humana dentro da qual tal ato ocorre. Quando uma criança deseja agradecer aos seus pais com um presente, então esse ato da vontade é de natureza ética. Mas se essa mesma criança deseja fazer algo para Deus, então esse ato de vontade é qualificado pela fé.

Finalmente deve ser observado que os três tipos de atos — conhecer, desejar e imaginar — nunca são completamente isolados, mas sempre amalgamados entre si. Dessa forma Deus equipou o homem, a mais sublime criatura, com inumeráveis dons e poderes. Quando, com um novo coração, o homem usa esses dons para servir ao seu Criador, aquele que se tornou novamente filho de Deus por meio de Cristo demonstra algo das riquezas da imagem de Deus que somente chegará ao seu completo desvelamento na inteireza da nova humanidade, quando cada um, dos maior ao menor, conhecerá a Deus.

22. O pecado A filosofia calvinista será incompleta caso não dê conta do terrível fato do pecado que penetrou em todo o mundo e em toda a humanidade. Já discutimos os atos e operações do homem. Ambos os tipos de atividade são normativos, isto é, neles o homem pode se conformar à lei ou transgredi-la. Se do seu coração ele se conforma à lei, então é renovado de acordo com a imagem de Cristo, o que o Catecismo de Heidelberg chama a ressurreição do novo homem. Mas se continuamente transgride a lei, ele corrompe ainda mais a imagem de Deus na qual fora criado. O que dizer sobre o pecado? Em primeiro lugar devemos distinguir dois elementos no pecado. O pecado é de fato sempre a transgressão da lei de Deus, mas isso pode ocorrer em dois níveis. Primeiro há pecado no nível mais profundo. Nesse nível o pecador pode transgredir a lei religiosa fundamental de todo o seu ser, que demanda que ele ame e sirva ao Senhor com todo o seu coração. Essa é a apostasia radical, a defecção da nossa alma, nosso ser mais íntimo, e portanto uma deserção de toda a pessoa em relação ao Deus vivo. Não importa o que uma pessoa faça, não importa quão boas suas ações possam parecer exteriormente, ela não pode agradar a Deus. Pois no coração há idolatria, uma busca e culto a ídolos. Por causa da relação pactual com Adão, a vida de todo mundo é agora por natureza direcionada para a esquerda.[12] Somente por meio da graça renovadora de Deus em Cristo Jesus essa defecção pode ser curada e em princípio restaurada. Então aprendemos novamente a amar o Senhor com todo o nosso coração e em princípio a nova vida inteira é direcionada para a direita novamente. Então buscamos honrar a Deus e regozijar em suas leis. Mas há outro tipo de pecado, nomeadamente, a transgressão da lei temporal, modal. Tal pecado é uma ação anti-normativa nas esferas de lei pós-psicológicas. No lugar da fé na Palavra de Deus há incredulidade. Ódio

substitui o amor. Erramos. Estimamos o que é feio e produzimos o que não é harmônico. Cedemos à extravagância. Quebramos as regras de etiqueta. Pecamos contra leis linguísticas. Agimos a-historicamente por causa de um espírito reacionário ou revolucionário. Ao pensar cometemos erros. Há uma combinação estranha entre esses dois níveis de pecado. Quando a apostasia religiosa é unida com a desobediência modal, então a imagem de Deus no homem é depravada ao extremo, e a vida de uma pessoa é direcionada totalmente contra a vontade de Deus. As palavras da Escritura vêm à mente; “Continue o injusto fazendo injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo...” (Ap 22.11a). Aqui a vida humana assume uma profundidade satânica e uma tendência demoníaca. É nesse espírito que o “homem do pecado” aparecerá um dia. É uma sorte, contudo, que, por conta da bondade geral de Deus, uma obediência modal ainda é possível na vida apóstata que se afastou religiosamente dele. Nesse ponto as virtudes dos incrédulos reluzem. Aqui encontramos a bondade civil do ímpio. Dessa forma, a vida na terra numa sociedade apóstata é ainda suportável, e as bênçãos ainda são desfrutadas sob o rigor de um ideal de vida humanista. Por outro lado, na vida do regenerado cuja alma está ligada a Deus em Cristo, há tanto a possibilidade como a realidade da desobediência modal. É nesse ponto que nos deparamos com os pecados dos santos, à parte do fato de que, mesmo no mais profundo do coração, eles não são perfeitos, a despeito de neles habitarem o Espírito Santo. O pecado penetra mesmo nas esferas da vida pré-analíticas nãonormativas. É possível para o pecador usar os dados naturais de uma forma equivocada. Psicologicamente, por exemplo, ele pode encontrar prazer no mal e sexualmente empregar suas funções biológicas a serviço do pecado. De fato, o poder do pecado não está limitado à vida subjetiva dentro

das esferas de lei, mas também diz respeito ao lado-lei dos aspectos normativos sempre que o postular de princípios não é feito em obediência à Palavra de Deus, por exemplo, quando os pais exigem algo dos seus filhos que não seja para a glória de Deus. Mas um dia na nova terra, o poder da injustiça será totalmente erradicado da vida dos filhos de Deus. Então não apenas haverá perfeição religiosa a serviço de Deus de todo o coração, mas também obediência completa às leis modais — pelo menos na medida em que pudermos ainda tratar dessas coisas lá —, quando a lei em sua plenitude será novamente escrita no coração do redimido.

23. Teoria do conhecimento Um sistema filosófico é incompleto caso não inclua uma epistemologia. A ciência e a filosofia são elas mesmas o fruto do pensamento teórico, de forma que uma teoria filosófica do conhecimento é na verdade autoconsciência filosófica. O homem adquire conhecimento por meio dos atos intelectuais. O processo de conhecer tem o conhecimento como resultado, e, por conhecimento, queremos dizer a posse da verdade. Por meio do conhecimento obtemos tamanho insight da realidade que podemos considerálo como sólido e certo. No tocante ao conhecimento em si, isto é, a atividade do homem nos atos intelectuais, é necessário distinguir entre conhecimento pré-teórico (ou ingênuo) e conhecimento teorético. A filosofia não cristã em geral coloca uma barreira entre esses dois e forma uma teoria que desqualifica o conhecimento ingênuo em muitos respeitos como falso e imperfeito, enquanto o conhecimento teorético é idolatrado como a certeza final e mais sublime da vida. A filosofia cristã rejeita tudo isso e dá uma visão completamente diferente das relações mútuas desses dois tipos de conhecimento. Ela começa com o fato que as duas espécies de conhecimento são religiosamente orientadas, pois têm seu ponto de partida no coração humano. Isso significa que todo conhecimento parte de um pressuposto religioso e participa de uma direção religiosa para Deus ou para longe dele — direção esta que é determinada na alma. Em outras palavras, o conhecimento como tal nunca pode ser independente. Ele não nos oferece certeza absoluta para a nossa existência. O “conhecimento puro”, livre de determinações religiosas, simplesmente não existe. Trata-se de autoengano. É uma posição acrítica que

recusa penetrar nas raízes mais profundas de nossa vida-ato. Ela abriga uma atitude preconceituosa e incrédula que idolatra o conhecimento. Além disso ambos tipos de conhecimento concordam nisto: que eles visam a posse da verdade em relação à realidade. Mas eis agora a diferença. O conhecimento ingênuo é indizivelmente mais rico que o conhecimento teórico. Seu campo é tão amplo como a própria criação de Deus. Não importa quão longe o conhecimento teórico possa chegar, ele nunca pode alcançar a universalidade do conhecimento ingênuo. Por quê? Não apenas porque a aceitação das Escrituras divinas em fé capacita o conhecimento ingênuo a cruzar a fronteira do que é criado, algo impossível ao conhecimento teorético, mas também porque o conhecimento ingênuo se direciona para a realidade individual plena, enquanto o conhecimento teorético deve abstrair-se do individual e ocupar-se com a estrutura das coisas. Conhecer pessoas individuais em suas características pessoais singulares, por exemplo, jamais pode ser a tarefa de um empreendimento científico. Uma segunda diferença reside no método. O conhecimento teórico é de natureza abstrata. O conhecimento científico se direciona a um aspecto específico da vida em abstração a todos os demais aspectos. Por outro lado, essa abstração é estranha ao conhecimento ingênuo. Ele vive na plena realidade de todos os aspectos. Dessa forma, a terna união com a vida é mantida no conhecimento ingênuo. Outra diferença é que o ato-conhecimento teórico é sempre analiticamente qualificado, ao passo que o ato-conhecimento ingênuo pode assumir todas as qualificações pós-psicológicas possíveis; e, dentro dele, temos o conhecimento histórico, como o conhecimento que um trabalhador tem do seu ofício; o conhecimento linguístico que nos capacita a expressarnos em palavras; o conhecimento social que adquirimos em associação com

pessoas e coisas; o conhecimento estético, conhecimento da fé, etc. Eles diferem também nisto: que o conhecimento ingênuo está fortemente ligado e edificado sobre a percepção sensorial de coisas concretas, enquanto o pensamento científico abstrai-se disso e se desenvolve livremente sob a direção de aspectos pós-analíticos. Por causa disso o conhecimento teórico é um conhecimento aprofundado. Finalmente, o conhecimento ingênuo não é sistemático, enquanto a ciência continuamente busca sistematizar e completar o seu conhecimento. Mas essas diferenças entre os dois tipos de conhecimento não levantam uma barreira entre eles. Antes há uma afiliação, pois o conhecimento teorético repousa sobre o conhecimento ingênuo. Se o conhecimento ingênuo não tivesse nenhuma informação dos aspectos diferenciados da realidade, então o homem da ciência não poderia abstrair um aspecto a fim de investigálo sistematicamente. O conhecimento ingênuo jamais pode ser substituído pelo conhecimento científico. Todo homem da ciência prossegue em seu conhecimento pré-teorético quando fora dos limites de seu próprio campo, e dessa forma experimenta o íntimo relacionamento com a realidade. Nosso conhecimento, quer ingênuo ou teórico, deve ser reestruturado em conceitos, julgamentos e demonstrações.

24. O horizonte da experiência A palavra experiência resume a totalidade da atividade humana em atos e operações. Dessa forma, experiência não é simplesmente uma atividade epistemológica, mas manifesta todos os tipos possíveis. Um cristão como crente tem a experiência da fé. Como pai, tem a experiência do amor em suas relações com esposa e filhos. Como cidadão, tem experiência política. Como comprador, possui experiencia econômica. Como artesão, ele adquire experiência histórica de formação de cultura. Essa experiência é estruturalmente determinada pelo horizonte cósmico dentro de cujos limites Deus criou o mundo, e dentro do qual vivemos e nos movemos. Assim, o horizonte do cosmos tem uma estrutura de lei por um lado. Ele fornece os limites de nossa experiência. Nenhum homem pode ultrapassá-los. Mas esse horizonte de experiência tem um lado subjetivo também. Algumas vezes a experiência humana pode estar fechada para algumas estruturas da realidade que pertencem a um outro horizonte que não aquele que está aberto para ela naquele momento. Uma criança pequena vive com as coisas com as quais se tornou consciente por meio da sensação. Ela não conhece nada ainda de conceitos e distinções modais, como os sociais e econômicos; nem experimenta a unidade temporal dos vários aspectos das coisas; nem jamais ouviu da raiz religiosa de toda criação ou da unidade pactual de todas as criaturas. A maneira pela qual a realidade criada torna-se acessível à experiência de alguém é determinada por quatro dimensões que, em sua unidade indissolúvel, formam o horizonte cósmico. Essas quatro dimensões são as seguintes: 1. A dimensão religiosa Não somente nós mesmos, que somos os sujeitos de nossa experiência,

temos a raiz do nosso ser na profundidade religiosa do coração humano, pelo que todas as “comissões e omissões” são determinadas; mas todo o cosmos e cada coisa no cosmos é religiosamente determinado tanto em sua origem enquanto criatura relacionada ao Criador como também em seu ser. Pois ela está envolta pela relação pactual na qual, por causa de Cristo, Deus incluiu o mundo, juntamente com os crentes. 2. A dimensão cósmica do tempo Isso implica que experimentamos coisas e situações na unidade cósmica de seus aspectos temporais. Não somente observamos a cor de uma determinada árvore, mas também mencionamos o seu nome, falamos do seu valor, consideramo-la bela e gostamos dela. 3. A dimensão modal Mediante isso experimentamos a natureza única de cada criatura. Percebemos imediatamente que uma árvore é diferente de uma cabine de telefone. Distinguimos entre um artigo de comida e algum que é usado para ornamentação. Temos um insight intuitivo e uma experiência da distinção entre os aspectos modais. 4. A dimensão plástica Aqui lidamos com a estrutura de individualidade das coisas, relações, atos, operações e situações. Toda existência concreta tem uma plástica constante ou estrutura moldável. Uma casa e o edifício de uma igreja, por exemplo, são coisas tanto subjetivas como físicas. Todavia, nunca deveríamos confundir um com o outro porque a estrutura plástica de cada um é obviamente distinta. Um carro e uma mesa são coisas tanto objetivas como subjetivas. Mas cada um tem uma estrutura plástica distinta que intuitivamente experimentamos em nosso relacionamento imediato com a realidade. Toda experiência humana sobre essa terra está ligada a esse horizonte

com suas quatro dimensões. Quando a Palavra de Deus é rejeitada, então a dimensão religiosa de nosso horizonte de experiência é obscurecida, excluindo-se portanto o caminho para a verdade mais sublime concernente à criação em relação com o Criador e Redentor. Os incrédulos constroem sua própria dimensão religiosa apóstata de vida que é tolice e conduz ao erro e à falsidade. Isso é punido pelo obscurecimento de nossa experiência mesmo dentro das outras dimensões do nosso horizonte. Pois então as criaturas não são mais vistas em seu lugar apropriado ou nas relações nas quais Deus as colocou. Mas se em nosso coração aceitamos a Palavra de Deus, então nossa experiência é livre também desse obscurecimento do pecado. Assim, o verdadeiro significado da existência nos é revelado, bem como a importância da nossa posição e chamado no grande cosmos de Deus. Então as palavras da Escritura tornam-se verdadeiras para nós: “na tua luz vemos a luz”.

Conclusão O exposto acima foi um breve esboço das principais características da filosofia calvinista. Não hesito em dizer que essa filosofia é uma das grandes bênçãos que Deus em sua graça deu ao nosso povo cristão, nessa era de confusão e conflito mundiais. Neste ponto não deveríamos nos lançar numa elaboração sobre seu valor e importância na esfera científica, tanto no debate com os aderentes de outros sistemas filosóficos quanto no fundamento sólido para as ciências particulares. Mas há uma questão demanda uma resposta. Ora, essa filosofia tem importância para a multidão de crentes cujo trabalho diário não está na esfera da ciência? Devemos responder essa pergunta com uma resoluta afirmativa. Mas se alguém pensa que uma filosofia totalmente cristã será um meio de fortalecer sua fé, suas expectativas não são apenas altas demais, mas apresenta também uma concepção equivocada da relação da filosofia com a fé. Pois a filosofia não conduz à fé, mas procede da fé. A totalidade da vida cristã, incluindo a ciência, é dominada pela fé. A fé é a função guia no todo da existência humana e não pode nem deve ser excluída no estudo da ciência. Nem pode a filosofia ser apresentada como o substituto da religião. Isso é frequentemente feito no campo da filosofia não cristã. A religião é então considerada responsável pela miséria acientífica da massa da humanidade. O homem da ciência, por outro lado, encontra sua mais alta satisfação na adoração e consolo da filosofia. A elevação da filosofia a esse nível devocional é fruto da religião apóstata. A ciência nunca pode ser deificada. Ela não é a expressão mais alta da existência humana. Ela não é o caminho aberto para Deus, nem pode se tornar uma pedra de tropeço no caminho que conduz ao único nome debaixo do céu dado entre os homens pelo qual devemos ser salvos.

Somente um cristão atento irá, sob a base da fé que é iluminada pela Palavra de Deus, possuir uma visão correta da posição respectiva da ciência e da filosofia no grande sistema da criação de Deus. Ele vê o lugar modesto de todo conhecimento científico. Isso não leva a um desprezo da filosofia, mas à sua correta apreciação. A filosofia calvinista deve também servir à glória de Deus. De que forma? Em primeiro lugar, os crentes devem louvar a Deus por sua graça ao dar sabedoria para a reivindicação dessa esfera central da ciência à luz de sua Palavra. E devemos orar por mais luz, a fim de que a filosofia cristã possa manifestar mais clara e plenamente o significado das obras de Deus, e para que, no campo científico, seja capaz de resistir ao inimigo com maior sucesso. Além disso, as conclusões da filosofia calvinista precisarão ser absorvidas cada vez mais no mundo do pensamento cristão comum que chamamos de nossa biocosmovisão. É necessário que esta seja corrigida, ampliada e estimulada por esses resultados. Desse modo, com maior clareza e vivacidade os cristãos serão capazes de ver a sabedoria de Deus conforme demonstrada nas obras de suas mãos. E se eles portanto louvam aquele que é absolutamente glorioso, experimentarão esta resposta à sua oração: santificado seja o teu nome.

Apêndice 1: Um breve esboço da filosofia de Herman Dooyeweerd Roy Clouser Resumo: Este artigo apresenta um panorama da ontologia não reducionista de Dooyeweerd, além de abordar o papel da crença religiosa na formulação de teorias, sem, porém, deter-se na sua argumentação sobre a inevitabilidade desse papel. A ontologia de Dooyeweerd é uma teoria da natureza da realidade (criada) que pressupõe e é regulada pela crença no Deus do teísmo judaico-cristão. Admitindo-se que tudo na criação deve ser diretamente dependente de Deus, apresenta-se aqui uma descrição das naturezas tanto das coisas naturais quanto dos artefatos, a qual impede que se considere qualquer coisa no cosmos como aquilo do qual tudo o mais no cosmo depende. Palavras-chave: Crença religiosa; Experiência pré-teórica; Aspectos da experiência; Irredutibilidade dos aspectos; Funções ativa e passiva; Funções qualificadoras; Relações parte-todo; Totalidades encapsuladas; Leis típicas; Soberania de esfera. A fim de compreender as dificuldades que este artigo impõe, imaginese tentando escrever uma breve introdução à, digamos, filosofia de Aristóteles dirigida àqueles que jamais ouviram acerca dele. As decisões mais difíceis de se fazer dizem respeito aos pontos que se deixará de fora. Assim haveria escolhas com relação às dificuldades internas que deveriam ser abordadas. Por fim, também teríamos de proceder a seleções difíceis no tocante a quais das variações dessa filosofia seriam trabalhadas e quais seriam omitidas, já que estariam além do escopo de uma breve introdução. Ora, o mesmo se aplica à filosofia de Dooyeweerd, não obstante o fato de que sua obra não esteve circulando por cerca 2300 anos, como é o caso de Aristóteles. Pois a obra-prima de Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought [Nova crítica do pensamento teórico], é sem dúvida a contribuição mais original à filosofia desde Kant, sendo também uma das que mais se opõem às conclusões de Kant desde então, e apresenta uma teoria da realidade que — embora mais próximo das intenções de Aristóteles que qualquer outro filósofo desde Descartes — excede até mesmo a teoria da

realidade aristotélica em poder explanatório.[13] (E se isto não chama sua atenção, então não sei o que mais chamará!) O que torna minha tarefa um tanto mais fácil, por outro lado, é o fato de que os artigos que se seguem a este aplicarão o pensamento de Dooyeweerd a áreas específicas: teoria política, teoria econômica, matemática e física, e ética. Isso me permite omitir qualquer tratamento detalhado dessas áreas de seu pensamento, e limita meu esboço aos seguintes tópicos: (1) a natureza da crença religiosa, (2) seu papel na produção de teorias, e (3) sua teoria da realidade. Cada um desses tópicos exige comentários explicativos preliminares. Primeiramente, quando Dooyeweerd trata da “crença religiosa”, ele se refere a uma crença que adota algo como “a origem absoluta” de tudo o mais — não importa o modo como esse algo é concebido. O termo “religiosa”, portanto, não é primariamente uma referência ao culto, a um credo formal, ou participação numa organização religiosa. É, antes, uma referência à orientação individual no que diz respeito ao que o indivíduo entende ser aquilo do qual todas as coisas dependem.[14] Nisto ele reverbera seu contexto calvinista holandês, pois é Calvino que disse: “... é necessário que seja eterno e seja princípio de si mesmo o Ser que é origem e princípio de todas as coisas” (Instituição I, 5, 6)[15], e que assumia a perspectiva de que aquilo que se crê como sendo a origem de tudo o mais é, por isso mesmo, considerado divino. E isto é válido quer uma pessoa creia que essa origem divina seja ou não o Deus do teísmo tradicional. Desse modo, teorias que entendem que a matéria/energia, ou os dados do sentido, ou as leis matemáticas, etc. têm esse status estão tão comprometidas com as crenças numa divindade quanto aquelas que creem que a origem de todas as demais coisas é Deus, BrâmanAtman, Dharmakaya ou o Tao.[16] O segundo ponto relacionado é que essa ideia dooyeweerdiana sobre o cerne das crenças religiosas pode ser aplicada para se ressaltar como as teorias da realidade não podem deixar de incluir ou pressupor uma ou outra crença religiosa. Uma teoria pode desenvolver-se ou com base na premissa de que o Divino transcende o cosmos, ou com base na premissa de que uma parte (ou o todo) do próprio cosmo é divino. Mas, seja no primeiro ou no segundo caso, o conteúdo específico de uma ou outra crença religiosa tornase a chave para a maneira pela qual se constrói qualquer teoria da realidade. Em terceiro lugar, por “teoria da realidade” Dooyeweerd sempre se

refere a uma teoria daquilo que um teísta chamaria realidade criada; ele não busca incluir Deus no escopo dessa teoria. Uma vez que ele entende Deus como a origem de tudo “que se encontra na criação” (Calvino) — e as verdades matemáticas e lógicas não são exceção —, nada na criação existe independentemente do restante da criação ou de Deus. Assim, ele toma esta regra como sua diretriz para toda teorização: a crença em Deus exige que nada no cosmo seja considerado como a origem de todas as demais coisas no cosmo.[17] Este se torna então o ponto crucial para sua própria teoria da realidade: visto que, no cosmo, não há nada do qual tudo o mais dependa, toda forma de redução ontológica está portanto excluída.[18] Seu projeto era, pois, desenvolver uma teoria da realidade que fosse uma descrição sistematicamente não reducionista das naturezas das coisas e da ordem cósmica. Conforme a nota seis (adiante) talvez tenha deixado claro, Dooyeweerd não usa o termo “redução” simplesmente para referir-se à análise continuada de totalidades até que se alcance suas partes mais básicas, que se une à afirmação de que a natureza do todo é a mesma que a de suas partes. Esse sentido de “redução” é uma mixórdia: para certas inquirições trouxe à tona importantes insights, embora, em relação a outros, tenha-se tornado grande fonte de equívocos. Mas o que Dooyeweerd tem em vista não é apenas a redução do todo às partes, mas a longa lista de declarações ontológicas que afirmam que a realidade é — seja exclusivamente, seja essencialmente — caracterizada por um ou dois tipos selecionados de propriedades e leis que se apresentam à nossa experiência. Designarei apenas algumas delas, porém creio que serão suficientes para fornecer uma ideia geral. Eles incluem afirmações como: tudo são números (Pitágoras), ou é físico (Epicuro, Smart), ou é sensorial (Hume, Mach). Nem todas elas são monistas, entretanto; e incluem dualismos compósitos que afirmam que tudo é produto da combinação ou interação do físico e do matemático (Heisenberg), ou do lógico e do sensorial (Kant), dentre outros. 1. Aspectos da experiência Assim, para apresentar sua ontologia não reducionista, Dooyeweerd distingue um número de tipos exaustivos de propriedades e leis que, segundo seu entendimento, são incapazes de serem eliminados ou de explicarem uns ao outros. Ele chama esses tipos de “aspectos” ou modalidades da realidade

experienciada. E embora ele afirme que sua lista de aspectos é genuinamente irredutível, devo sem demora assinalar que a ontologia que ele desenvolve não depende de nenhuma lista particular desses aspectos. Outros pensadores divergiram em relação a ele no que diz respeito à lista correta de aspectos; no entanto, seguiram os contornos de sua teoria, de modo a fornecer uma descrição não reducionista de suas respectivas listas de aspectos. No que se segue, contudo, usarei a própria lista de Dooyeweerd, que é esta: Fiduciário Ético Jurídico Estético Econômico Social Linguístico Histórico Lógico Sensorial Biótico Físico Cinemático Espacial Quantitativo Busquei evitar o uso de substantivos nessa lista, a fim de não dar a impressão de que ela designa classes de coisas. Essa atitude, porém, resultou em alguns termos estranhos e significados excepcionais para alguns termos familiares, de modo que será necessário comentá-los, e o farei seguindo a ordem dos aspectos na lista, de baixo para cima. O termo “quantitativo” é usado para designar o “quanto” de coisas, e não deveria ser aqui tomado como referência a um domínio distinto dos

números ou a sistemas abstratos da matemática, concebidos para o cálculo de quantidades. Há evidência de que animais têm certo senso de quantidade, mesmo que não inventem símbolos para representar quantidades ou para descobrir e formular leis relacionadas a elas.[19] “Cinético” é usado para o movimento das coisas — seu deslocamento no espaço. Muitos cientistas incluem as leis cinéticas dentro da física, mas Galileu, e um grande número de cientistas contemporâneos, discordam.[20] O termo “sensorial” é usado para as qualidades tanto das percepções quanto dos sentimentos; designa as propriedades e leis da sensibilidade animal e humana. O termo “histórico” é familiar; de qualquer maneira, porém, é preciso explicá-lo. Não se refere a tudo que aconteceu no passado, porque não é nisso que os historiadores estão interessados. O que lhes interessa é tudo no passado que tem importância cultural. De modo que o termo especifica a atividade e transmissão do poder de formação de cultura. (Outros pensadores usaram os termos “cultural”, “formativo” ou técnico, para referirem-se a esse aspecto.) O foco aqui encontra-se na habilidade humana de formar artefatos a partir de materiais naturais. Isto inclui a formação de línguas, teorias, música e organizações sociais, também coisas como indumentárias e residências. De semelhante modo, o termo “ético” é familiar, mas exige maior esclarecimento. Na maioria das vezes, “ético” é usado indiscriminadamente para aquilo que, de fato, são sentidos diferentes de certo e errado. Neste caso, no entanto, não implicarão atos que são injustos, mas atos que são desamorosos. O termo “jurídico” é a designação para o tipo de propriedades e leis que se aplicam para coisas ou atos que se conformam ou violam a norma da equidade, ao passo que o “ético” referir-se-á às coisas ou atos que cumprem ou violem a norma da beneficência.[21] Por fim, fiduciário é meu termo para a confiabilidade ou fidedignidade que as pessoas, coisas, crenças, etc. possam ter. (O termo de Dooyeweerd era “pístico”, oriundo da palavra grega para “confiança”.) O impulso não reducionista da ontologia de Dooyeweerd parte da consideração de que as propriedades de cada tipo e as leis relacionadas a essas propriedades são correlatas: não há propriedades absolutamente desordenadas, nem há leis aspectuais que não ordenam propriedades desse tipo. (Há outras espécies de leis além das leis aspectuais, é claro, e explicálas-ei no devido momento.) Em acréscimo a essas leis enquanto correlatos do

que governam, Dooyeweerd propõe outra ideia concernente a todas as leis do cosmo — ideia que é a chave de sua ontologia, a saber, que a ordem-lei da realidade é um componente distinto do cosmo, não reduzível aos sujeitos ou objetos sobre os quais governa. Essas leis não são, portanto, simplesmente nossas generalizações acerca do modo como as coisas com naturezas fixas se comportam, como o objetivista afirmaria. Nem são a ordem que impomos sobre aquilo que experienciamos, como advoga o subjetivista. A ordem-lei é sui generis com relação tanto aos sujeitos cognoscentes quanto os objetos conhecidos; governa e liga ambos, mas não se reduz nem a um nem a outro. [22] Daí o nome para sua filosofia: a Filosofia da Idea de Lei (que eu abreviarei para Teoria da Estrutura de Lei). Desse modo, um dos primeiros benefícios relacionados às leis e àquilo que elas governam como correlatos é que somos libertos do antigo dilema de objetivismo versus subjetivismo. Nem o sujeito cognoscente nem os objetos conhecidos são a fonte de ordenamento do mundo que experienciamos. Esse status pertence somente a Deus. Ademais, de acordo com essa teoria todas as coisas concretas são governadas por todas as leis aspectuais simultaneamente, de modo que cada coisa concreta tem algumas propriedades de cada tipo aspectual, simultaneamente. Este ponto somente fica claro, no entanto, se distinguirmos duas formas nas quais uma coisa possui uma propriedade: ativa ou passivamente.[23] Assim, a teoria trata destes como sendo os dois modos nos quais uma coisa pode existir e operar sob as leis de um aspecto. A despeito de todas as diferenças entre eles, entretanto, esses dois modos não são mutuamente exclusivos. A teoria entende que todas as coisas funcionam passivamente em cada aspecto, a todo momento, de maneira que uma coisa pode carecer somente de funções ativas em certos aspectos. Com efeito, é pelo surgimento de funções ativas refletida na ordem da lista de aspectos apresentada acima, que uma coisa pode ter funções ativas em aspectos mais abaixo na lista, mas não tê-las nos aspectos superiores na lista. A ordem é portanto aquela em que funções ativas em aspectos inferiores são precondições para — mas não causas das — funções ativas nos aspectos superiores na lista. Tomemos o exemplo de uma rocha. De acordo com a distinção aqui proposta, a rocha opera ativamente nos aspectos quantitativo, espacial, cinemático e físico. Isto é, ela possui propriedades de cada um desses aspectos e está sujeita às leis de cada um deles de uma maneira que não

depende das relações da rocha para com as funções ativas de outras coisas. A rocha não opera ativamente nos aspectos superiores, contudo. Não é biologicamente viva, não tem percepção sensorial, nem pensa logicamente, nem faz uso de uma linguagem. Mas se a rocha não estivesse sujeita às leis da biologia, ela não poderia funcionar passivamente nos processos vitais das coisas vivas. (Não poderia ser sequer biologicamente segura ou nociva.) Mas as rochas claramente podem ter funções bióticas passivas, ainda que não estejam vivas. Podem ser deglutidas por um pássaro, tomando assim parte na maceração do alimento em sua moela; podem ser a parede na toca de um animal; podem ser a superfície dura na qual um pássaro lança um molusco a fim de quebrar sua concha. De igual modo, embora uma rocha não tenha função sensorial ativa, ela pode ser passivamente percebida por animais e homens que de fato têm essa função ativa. Mas, a menos que fosse passivamente governada por leis sensoriais e que possuísse propriedades sensoriais passivas, a rocha não poderia ser percebida. Não poderia, por exemplo, ser percebida como tendo determinada cor. Se não é percebida, não tem cor ativamente; mas a menos que possua o potencial passivo de demonstrar certa cor, esta cor não poderia ser atualizada em relação a um ser que tenha uma função sensorial ativa. O mesmo é válido para suas propriedades lógicas. Se a rocha não estivesse sujeita às leis da não contradição, identidade e do terceiro excluído, possuindo desse modo propriedades lógicas, não poderíamos distingui-la ou formar um conceito dela. (É preciso atentar-se para não confundir “ativo” com “atual” ou “concreto”, nessas questões. As propriedades passivas podem ser tanto potenciais quanto atuais, embora as propriedades ativas sejam sempre atuais.) [24] À vista disso, uma rocha tem propriedades passivas que são linguísticas (pode-se falar dela), econômicas (é possível aferir-lhe valor, comprá-la, vendê-la), jurídicas (pode ser a propriedade de um indivíduo ou a arma de um crime), e assim por diante. O gráfico seguinte pode ajudar-nos a esclarecer esses conceitos:

Fiduciário Ético Jurídico Estético Econômico Social Linguístico Histórico Lógico Sensorial Biótico Físico Cinemático Espacial Quantitativo Rocha

Árvore

Animal





Funções ativas

Funções passivas

Mesmo nesse estágio inicial da explicação, é possível perceber alguns dos benefícios dessa teoria. Considere-se apenas seus resultados para a percepção sensorial. Um graveto, diz-se, tem a propriedade disposicional passiva de parecer marrom à percepção normal sob uma luz normal. Quando essa potencialidade passiva é atualizada em relação ao observador, ele se mostra, em ato, marrom. Pelo mesmo raciocínio, contudo, o graveto tem as disposições sensoriais passivas de mostrar-se torto na água e menor à distância. Assim, não há necessidade de postular que aquilo que está torto ou que é menor é algo diferente do graveto. Em outras palavras, não é necessário deixar-se levar ao impasse de julgar que o que realmente experienciamos são

“dados sensoriais” internos, em vez do graveto real que nos é externo. Na teoria dos dados sensoriais, jamais conheceremos a existência e natureza do graveto real. Na Teoria da Estrutura da Lei, entretanto, não estamos isolados do mundo e encerrados em nós mesmos, segundo o argumento de que tudo que conhecemos são nossos próprios estados internos. Ao mesmo tempo, contudo, essa teoria nos permite apreciar o elemento de verdade tanto no objetivismo tanto no subjetivismo. Por exemplo, concordamos com o subjetivista que, caso não seja percebido, o graveto realmente não tem, em ato (manifestamente), a cor marrom. Mas negamos a hipótese de que essas qualidades são, por conseguinte, criadas indiscriminadamente por nós ou que existem apenas em nossas mentes. Assim, a teoria nos permite concordar que as qualidades sensoriais que não são efetivamente inerentes aos objetos, sem, no entanto, comprometer-nos com a totalidade da explicação subjetivista dessas qualidades. De semelhante modo, podemos concordar com a negação objetivista de que, digamos, “a beleza está nos olhos de quem vê”, ou de que o valor econômico é inteiramente criado por nós. Do ponto de vista da Estrutura de Lei, se as normas econômicas e estéticas não estivessem embutidas no lado-lei da realidade, e se os objetos não tivessem essas propriedades passivamente em correlação a essas normas, não poderíamos experienciar esses modos. Por exemplo, se uma rocha não estivesse sujeita às normas da oferta e demanda e à lei dos rendimentos decrescentes, não poderíamos atualizar um valor econômico para ela. É o potencial passivo da rocha que atualizamos quando lhe damos um valor. A proposta de um lado-lei distinto para com a realidade e da diferença entre funções ativas e passivas também demonstra a razão pela qual não é plausível a emergência ou sobrevinda desses aspectos, em sua totalidade; o elemento da verdade nessas perspectivas é que são as funções ativas das coisas que emergem nos aspectos superiores. Elas, porém, somente podem fazê-lo em relação às leis e propriedades passivas que já são próprias das coisas em determinado aspecto. Qual sentido teria, por exemplo, a afirmação de que o cosmo originalmente tivesse apenas propriedades e leis físicas, ao passo que somente depois emergiriam as propriedades sensoriais e lógicas? Se não houvesse leis sensoriais já governando os potenciais sensoriais passivos, não poderíamos descrever ou imaginar nada no cosmo original, já que nada poderia ter tido qualquer aparência. E se não fosse governado por leis lógicas desde o princípio, a emergência de novas funções ativas não teria sido logicamente possível! Tampouco poderia haver uma explicação

plausível de como os seres teriam surgido, caso não houvesse leis bióticas para possibilitar os potenciais bióticos passivos que posteriormente viriam a ser atualizados em coisas não vivas, que se combinariam para formar coisas vivas. Nesse sentido, a distinção ativo/passivo remove a tentação de negar que aspectos são todos igualmente reais em suas propriedades passivas e lados-lei, e pavimenta o caminho para uma teoria mais plausível daquilo que chamarei “emergência forte”: (1) funções ativas em aspectos inferiores na lista são precondições para que as coisas adquiram funções ativas nos aspectos superiores na lista; (2) a ordem de pré-condicionalidade não é uma ordem causal, de modo que não há postulação de causas carentes de toda homogeneidade de causa e efeito; (3) de fato, cada coisa concreta, evento, ou estado de coisas têm algumas propriedades de cada aspecto. Assim, quando a teoria nega que tudo é exclusivamente físico, por exemplo, não o faz sustentando que há coisas absolutamente não físicas. Pelo contrário, fá-lo ao afirmar que todas as coisas têm propriedades passivas em cada aspecto da realidade, e propriedades ativas em, ao menos, vários aspectos. 2. As naturezas das coisas A Teoria da Estrutura da Lei está bem consciente, entretanto, que, apenas por si própria, não nos levará longe na delineação das naturezas dos tipos específicos das coisas pela simples menção à diferença entre a possessão ativa e passiva de propriedades. Para isso, precisamos focar-nos na maneira que as propriedades e leis de um aspecto particular sempre caracterizam a natureza de uma coisa mais incisivamente do que os demais aspectos o fazem. Assim, a teoria fala que o aspecto central da natureza de uma coisa a “qualifica”. Por exemplo, no tocante ao quadro apresentado anteriormente, diz-se que uma rocha é fisicamente qualificada, uma planta é bioticamente qualificada, ao passo que um animal é sensorialmente qualificado. Um aspecto qualificante é pois aquele que: (1) é central à natureza de uma coisa, (2) aquele cujas leis governam a organização interna da coisa tomada como um todo, e (3) é o aspecto mais alto na lista no qual a coisa opera ativamente (este terceiro requisito é válido para as coisas naturais, mas não para os artefatos, conforme explicarei adiante). A ideia de uma função qualificante tem várias vantagens que a recomendam. Primeiramente, é uma teoria empírica aberta à confirmação,

refutação e revisão. Não é uma regra para ser seguida caso as coisas se encaixem nela ou não. Em segundo lugar, confirma e corresponde ao modo pelo qual começamos a classificar as coisas naturais na linguagem habitual, quando falamos delas como animais, vegetais ou minerais. Ao confirmar e dar conta dessa classificação, estamos no caminho para uma ontologia que reconhece níveis irredutíveis de realidade, níveis que são fortemente emergentes com relação uns aos outros. Também distingue entre os modos que a linguagem habitual trata das coisas como sendo “físicas”, em contraposição à maneira que muitas teorias reducionistas o fazem. A linguagem habitual refere-se a uma coisa como sendo física a fim de remeter ou àquilo que é real ao invés de imaginário, ou àquilo que tem propriedades físicas. Jamais significa uma coisa que é exclusivamente física, já que não experienciamos nada que seja assim. Assim, a Teoria da Estrutura de Lei enriquece a percepção da linguagem habitual ao apontar o caminho pelo qual uma coisa pode ser fisicamente qualificada. Em contrapartida, um ato de percepção pode ser sensorialmente qualificado. O ato tem outras funções ativas que não o qualificam, é claro. Possui ativamente quantidade, locação espacial, deslocamento, e inclui processos físicos e bióticos. E passivamente pode ser conceitualizado, praticado, nomeado, respeitado, ter valor monetário, ser justo, amável ou fidedigno. No entanto, é qualificado por propriedades sensoriais e internamente governado por leis sensoriais. De igual modo, outros atos de seres humanos podem ser qualificados economicamente (comprar e vender), bioticamente (comer), esteticamente (dançar) ou juridicamente (promulgar uma lei ou julgar um caso de tribunal). Contudo, dar-se-ão sob o governo das leis de cada aspecto e terão propriedades passivas em cada aspecto, que é a razão pela qual podem ser estudados da perspectiva de qualquer aspecto. Contudo, outra vantagem que recomenda a ideia de uma função qualificante é o modo que ela nos permite traçar a importante distinção entre totalidades compostas de partes e totalidades compostas de sub-totalidades (bem como de partes). Conforme se sabe, Aristóteles afirmava que algo deve ser considerado como parte de um todo, contanto que: (1) participe na organização interna do todo, e (2) seja ou incapaz de vir à existência ou de operar à parte do todo. Isto, embora seja verdadeiro em cada ponto, não é uma definição adequada. Os seres humanos certamente operam na organização interna das comunidades sociais e não pode vir à existência à parte da comunidade social de seus pais. Entretanto, os homens não são

simplesmente partes das famílias, escolas, negócios, estados ou clubes. O critério suplementar que precisamos acrescentar ao de Aristóteles é que uma parte deve compartilhar a mesma qualificação aspectual que o todo. Por exemplo, não seria exato designar uma pedra de parte de um jardim, já que a rocha não somente pode existir sem o jardim, mas também porque uma rocha é fisicamente qualificada, ao passo que um jardim é um todo esteticamente qualificado. A rocha é incluída na organização interna do jardim, é claro, mas, uma vez que tem uma qualificação aspectual diferente, é nela incluída como uma sub-totalidade dentro de um todo maior. 3. Todos capsulares Desse modo, a ideia de uma função qualificante permite-nos traçar a distinção entre as relações parte/todo e as relações sub-totalidade/todo. Assim, a Teoria da Estrutura de Lei afirma que o todo maior “encapsula” uma sub-totalidade, e que o todo maior é um “todo capsular”.[25] Essa distinção mostra-se muito útil, e além do mais recomenda a ideia de uma função qualificante. Tomemos o exemplo de uma escultura marmórea de um corpo humano. Como devemos entender a relação do mármore para com a estátua como um todo? Não é possível que seja uma parte do todo; as partes da estátua são seus braços, pernas, torso, etc. Mesmo na visão tradicional, o mármore não pode ser parte da estátua, já que pode existir à parte dela. Além disso, não faz sentido falar que o mármore atua na organização interna da estátua! Porém a ideia de um todo capsular é muito mais apropriada. Segundo esta ideia, o mármore é uma sub-totalidade fisicamente qualificada incluída no todo capsular que é a obra de arte esteticamente qualificada. Ademais, a relação entre o mármore e a obra de arte finalizada demonstra outro traço constante da relação de uma sub-totalidade para com um todo capsular: nenhuma quantidade de conhecimento de suas sub-totalidades é capaz de oferecer qualquer conhecimento do todo capsular. Segue-se alguns exemplos adicionais desse mesmo tópico. Ora, os átomos que estão incluídos numa planta não são partes da planta, mas subtotalidades nela encapsuladas. Eles podem existir e operar à parte da planta, mas são fisicamente qualificados, ao passo que a planta é bioticamente qualificada, e nenhum conjunto de conhecimentos sobre os átomos poderia fornecer-nos conhecimento acerca da natureza das plantas. (Esta é uma

confirmação adicional de um argumento que apresentei anteriormente, a saber, que a ideia de todos capsulares apoia a ideia mais ampla da emergência forte — de níveis irredutíveis de realidade.) Em contrapartida, as células incluídas nas plantas são partes dela. Têm a mesma qualificação biótica, e não podem vir à existência ou operar separadamente da planta. Por outro lado, a relação dos átomos com uma molécula seria uma relação capsular. Os átomos de hidrogênio e oxigênio que se combinam para formar a molécula de água são sub-totalidades dentro da molécula capsular, ainda que não tenham a mesma qualificação (física). Isto se dá porque os átomos podem existir e operar à parte da molécula, e porque nenhum conjunto de conhecimento dos átomos seria capaz de predizer que a água congelaria a 0° centígrado, que se expandiria quando congelada, ou que sentimos sua umidade. Outra característica das relações capsulares é que, sempre que nelas pensamos, uma sub-totalidade incluída num todo capsular maior tem sua função qualificante subsumida pela totalidade maior e contribui para o funcionamento desta totalidade mais ampla (pense aqui na pedra na moela, ou numa pedra no jardim). Ademais, embora cada todo capsular terá propriedades que nenhuma de suas sub-totalidades possui, alguns poderão ter uma função qualificante que falta a todas suas sub-totalidades. Esta é uma razão adicional por que as sub-totalidades não podem ser consideradas causas dos todos maiores que os encapsulam. São condições necessárias para os todos capsulares, mas jamais lhe são suficientes. 4. Leis típicas O último ponto mencionado na seção anterior leva-nos à questão sobre como as propriedades de diferentes tipos aspectuais, bem como as subtotalidades com diferentes funções qualificantes, combinam-se para formar coisas de um tipo particular. Posto de outra maneira: por que algumas combinações de propriedades, partes e sub-totalidades aparentemente não são possíveis, ao passo que outras o são? A resposta, diz a Teoria da Estrutura de Lei, é novamente outra espécie de leis, leis que perpassam os aspectos. Chamemo-las de “leis típicas”: leis que tornam possível combinar em uma coisa propriedades, partes e sub-totalidades, de modo a formar coisas de um tipo específico.[26] Essa ideia, além disso, delineia nosso foco sobre as naturezas das coisas. Não basta apontar para as qualificações que algo pode assumir, nem assinalar que algumas coisas são compostas de sub-totalidades,

bem como de partes. Devemos dar um passo à frente e diferenciar os tipos de coisas de acordo com suas leis típicas. Atente-se, por favor, para o fato de que, com a expressão “diferenciar de acordo com a lei típica”, não se pretende sugerir que podemos obter conhecimento dessa lei anteriormente à experiência com as coisas do tipo que as tornam possíveis. Pelo contrário, postulamos essas leis a fim de descrever as combinações de propriedades de diferentes tipos aspectuais, assim como das sub-totalidades com diferentes qualificações aspectuais, que encontramos dentro das coisas individuais do mesmo tipo. Nessa perspectiva, portanto, uma coisa concreta é uma reunião estrutural individual de propriedades, partes e talvez sub-totalidades, determinada por uma lei típica e qualificada pelas leis aspectuais que governam sua organização interna. Uma coisa concreta individual não é, pois, um agregado ou um pacote de partes e propriedades, ao mesmo tempo em que não é, no entanto, nada acima ou além de uma combinação estruturada por lei dessas partes e propriedades. Em relação à ideia de uma lei típica, vale a pena assinalar que nem todas as combinações que possamos conceber são de fato possíveis. Podemos pensar em combinações formando coisas que, embora não autocontraditórias, não são, todavia, possíveis: uma rocha falante, um cavalo voador, etc. A explicação é que não são possíveis porque não há lei típica para eles. Nessa perspectiva, portanto, há uma diferença entre “impossível” e “não possível”: embora possamos falar de coisas que são impossíveis, por conta do fato de que violariam uma lei (um círculo quadrado, uma pedra que ergue a si própria), há também outras que não violam nenhuma lei, mas não são possíveis, já que não há nenhuma lei típica para elas (uma árvore falante). Dever-se-ia também notar que, diferentemente de leis aspectuais, leis típicas existem anteriormente às coisas que a tornam possíveis e não lhe são estritamente correlatas. Com base nessa teoria, há leis típicas não apenas para cada tipo de coisas naturais, mas também para cada tipo de artefato.[27] 5. Artefatos Até aqui aplicamos os conceitos apresentados pela Teoria da Estrutura de Lei apenas às coisas naturais, pois as naturezas dos artefatos são mais complexas. Elas exigem mais do que a especificação da função qualificante de seu material natural e de sua lei típica, caso queiramos descrever aquilo no qual o material natural foi transformado. Por exemplo, as pedras usadas para

construir uma casa não teriam, por si mesmas, mais que uma qualificação física. Mas uma vez que passaram por um controle formativo humano e foram transformadas numa casa, a nova totalidade que as encapsula adquire uma qualificação social adicional, a despeito do fato de que todas suas partes e sub-totalidades têm apenas uma função passiva nesse aspecto. Contudo, a menos que reconheçamos que essa transformação de fato se deu, não reconheceríamos que as pedras formaram uma casa, e assim perderíamos de vista aquilo em que se tornaram.[28] Desse modo, dois novos componentes são acrescentados à teoria a fim de identificar a natureza de um artefato. Primeiramente, reconhece que um artefato, diferentemente de uma coisa natural, pode ser qualificado por um aspecto no qual tem apenas uma função passiva. Em segundo lugar, expande a ideia sobre aquilo que qualifica a natureza de um artefato a fim de incluir o aspecto que qualifica o processo de transformação pelo qual foi produzido, assim como o aspecto que qualifica o tipo de plano que guiou sua formação. O aspecto que qualifica o processo de formação de um artefato é chamado de função fundante do artefato, ao passo que o aspecto que qualifica o plano que guiou sua formação é chamado de função guia. Assim, no tocante ao exemplo das pedras que formaram uma casa, a teoria diz que a função fundacional da casa é histórica (ou cultural), porque esse processo é qualificado pela habilidade humana de transformar materiais naturais. Mas qual é então sua função guia? Uma resposta plausível seria a função biológica. E não há dúvida de que uma casa serve a necessidades biológicas. As casas teriam uma formação bastante diferente se nossos corpos fossem significativamente diferentes daquilo que são. Porém uma casa é mais do que um simples abrigo biológico — que é a razão pela qual difere de uma mera cobertura ou barraca. A casa fornece um lugar para o intercâmbio social e supre a necessidade de privacidade. E os tamanhos e formas variáveis de seus quartos usualmente refletem uma diferença no status social entre seus ocupantes. De fato, se faltasse a um edifício essas características, não o chamaríamos de uma casa. Por essas razões, a teoria diz que a função guia de uma casa é social.[29] Não há espaço aqui para dar muito mais exemplos de como esses conceitos servem para trazermos ao foco as naturezas dos artefatos; porém listo alguns: de um livro, dir-se-ia ter uma função fundante histórica e uma função guia linguística. A poesia cifrada no livro, por outro lado, teria uma

função fundante histórica e uma função guia estética.[30] De semelhante modo, uma pintura ou uma escultura teria uma função guia estética. Em contrapartida, um armazém, com suas plataformas de carregamentos e áreas de estoque, apresenta uma função fundante histórica e uma função guia econômica. É claro, um banco tem a mesma função guia. O que distingue um armazém de um banco é a lei típica de cada um; a lei que determina as relações internas das propriedades, partes e sub-totalidades e que as conforma a seu tipo. Essa é o motivo pelo qual a descrição completa da natureza de um artefato deve incluir sua lei típica, assim como sua qualificação por meio de suas funções fundante e guia. Nesse ponto, pode parecer que todos os artefatos teriam uma função guia histórica (cultural). Afinal de contas, são todos formados por seres humanos, não? Embora haja, em certo sentido, uma verdade nisso, há, no entanto, artefatos formados pelo homem que têm sua fundação num aspecto diferente do histórico. Para tornar esse ponto claro, contudo, devo, em primeiro lugar, repetir que a teoria também vê as comunidades sociais como artefatos, formados quando seres humanos dão uma organização específica a relações inter-humanas aspectualmente diferenciadas. Essas diferem de artefatos não sociais na medida em que seus “materiais naturais” são outros seres humanos. Dito isto, aparentemente há (pelo menos) duas comunidades que não deveriam ser consideradas como tendo uma função fundante cultural: o casamento e a família. A razão é que elas não são criações culturais espontâneas, pois estão enraizadas em nossa natureza biótica, sexual. Os homens atribuem formas específicas a essas comunidades, é claro. Mas é nossa composição biótica que conduz o processo de sua formação e assegura que essas instituições receberão uma ou outra forma. 6. Emergência social: Soberania de esfera Já vimos por que muitas totalidades não podem ser analisadas apenas pela distinção de suas partes, mas precisam ser vistas como todos capsulares que incluem sub-totalidades. Isto é especialmente válido para comunidades sociais, visto que incluem humanos que jamais são simples partes. De acordo com o teísmo subjacente a essa ontologia, a existência humana é vista como centrada no “coração” ou “espírito” de uma pessoa que opera em todos os aspectos igualmente, mas não pode ser identificado com nenhum deles. A natureza humana, portanto, não tem qualificação aspectual.[31] Assim,

humanos jamais são partes de uma família, escola, igreja ou que tais, mas são sub-totalidades encapsulados neles. Este último ponto também é válido para várias comunidades em sua relação umas com as outras: elas quase nunca são partes umas das outras, na medida em que têm funções guias diferentes e demonstram conformidade a diferentes leis típicas. Dessa forma, por exemplo, uma família não pode ser parte de um Estado, como demonstrado pelo fato de que seus membros podem ser cidadãos de diferentes Estados. Mas o que é ainda mais importante é que, de igual modo, nenhum dos grandes tipos de comunidades sociais pode ser encapsulado dentro de outro.[32] Lembre-se que quando uma subtotalidade é encapsulada num todo maior, a função guia do todo maior sobrepõe-se à função qualificante da sub-totalidade (pense na pedra na moela servindo a propósito biótico). No caso das grandes instituições sociais, subsumir uma a outra implicaria que a instituição subsumida serviria à função guia do todo capsular. Assim, subsumir um negócio, uma escola ou uma igreja ao Estado, por exemplo, consequentemente invalidaria as funções guias das comunidades subsumidas em prol da função guia do Estado: a justiça. Visto que essa situação certamente corromperia a função guia das famílias, negócios, escolas, igrejas, etc., é preciso rejeitá-la. E isso exige que adotemos uma visão não hierárquica da sociedade como um todo. Eis o mesmo ponto, porém de um ângulo diferente, o ângulo da autoridade na vida humana. Há uma fonte suprema de autoridade na vida social humana? Caso sim, que tipo de autoridade é? Já houve várias respostas reducionistas a essa questão. Há teorias que afirmam que a fonte da autoridade é o poder, a razão (a razão acrescida da virtude), riqueza ou a vontade superior. Mas uma visão genuinamente teísta deve rejeitar todas essas propostas. Da perspectiva teísta, toda autoridade tem origem em Deus, que a embutiu na vida humana de modo plural. Há a autoridade dos pais numa família, dos donos num negócio, de oficiais eleitos no Estado, do clero na igreja, templo ou mesquita, dos médicos num hospital, dos professores numa sala de aula, e assim por diante. Essas organizações são formadas para a promoção e preservação de facetas aspectualmente distintas da vida: amor ético (família), vida econômica (negócios), justiça pública (Estado), crença e prática religiosa (igreja, sinagoga ou mesquita), bem-estar biótico (hospital), crítica e aprendizagem de conceitos (escola), etc. Cada uma dessas comunidades tem suas próprias funções guias e fundacionais, suas próprias leis típicas e seu próprio tipo de autoridade.

Essa ideia de múltiplos tipos de autoridade, cada um com seu domínio ou “esfera” próprios, era chamado de “soberania de esfera” por seu grande promotor, Abraham Kuyper.[33] A ideia enfatiza que nenhum tipo de autoridade — e portanto nenhuma instituição isolada — é a fonte de toda autoridade na vida, nem é a autoridade suprema sobre todos os demais tipos de autoridade. Pelo contrário, as instituições sociais de cada tipo distinto têm uma esfera de competência que corresponde à sua função guia, de modo que cada uma tem uma imunidade relativa à interferência por parte das autoridades de tipos diferentes ou que se assoma em organizações com diferentes funções guias. Na prática significa, por exemplo, que os pais — e não o governo — estabelecem a hora de seus filhos irem para a cama; que as igrejas — e não as cortes — fixam os requisitos para que as pessoas se tornem seus membros; que as cortes — e não as igrejas — interpretam a lei criminal; que as escolas — e não os pais — determinam os requisitos educacionais; e que os negócios — e não as escolas — decidem que produtos ou serviços oferecidos, e assim se segue. Ademais, embora uma escola possa ser mantida por uma família, Estado, igreja ou negócios, é possível que não seja regida por eles. Se é isso que se entende por “escola estatal”, então a ideia é tão autocontraditória quanto “igreja estatal” ou “família estatal”.[34] Um dos resultados mais importantes dessa norma social é que a ideia de autoridades distintas, limitadas, é a que mais se mostra capaz de refrear o poder do governo, impedindo assim um Estado totalitário. A ideia de democracia por si só não é capaz disso. Pois sempre que o governo é visto como o controlador de todas as instâncias, o simples fato de dar a todo o mundo a capacidade de votar em quem fará as leis resultará apenas numa tirania da maioria. E repare que a ideia de soberania de esfera não apenas protege direitos individuais ao limitar a autoridade do governo, mas protege, de igual modo, os direitos das comunidades não governamentais. Além do mais, essas comunidades tornam-se então não apenas protegidas em relação ao Estado, mas também em relação umas às outras. A soberania de esfera é pois o princípio social que encarna uma visão fortemente emergente da vida social enquanto um nível distinto da realidade. E mais do que isso: ao opor-se a todas as tentativas reducionistas de subsumir todas as autoridades sob determinado tipo [de autoridade], também corrobora, novamente, a visão não hierárquica das instituições sociais que exercem diferentes tipos de autoridades.

7. Conclusão A ontologia de Dooyeweerd pode muito bem ser designada de “emergência forte” ou simplesmente “não reducionista”. Isto se dá porque insiste não apenas que nenhum tipo exaustivo de propriedades e leis é idêntico a outro, ou que possa ser eliminado em favor de outro, mas também porque afirma que nenhum aspecto pode ser a causa de qualquer outro dentre os demais. Primeiramente, em oposição a esse ponto de vista, a ontologia de Dooyeweerd assinala o fato de que a espécie de causalidade necessária para sustentar uma afirmação de que, por exemplo, entidade físicas combinam-se de modo a produzir propriedades ou coisas não físicas, traz consigo um sentido de “causa” ainda mais forte do que aquilo que se pode observar no universo. O que observamos é que uma causa fisicamente qualificada (aquecer um fio de cobre) pode resultar na mudança da cor sensorial (o fio torna-se verde). Mas, nesse caso, o aquecimento é simplesmente a ocasião para o brilho verde; não é razão pela qual existem coisas como brilhos verdes no cosmo. Mas é esse sentido de “causa” mencionado acima que as teorias reducionistas causais exigem. Evidentemente o reducionista pode dizer que as causas fortes necessárias para sua teoria podem ser postuladas como sendo leis intermediárias que não precisam ser observadas a fim de ter poder explanatório. A réplica da Estrutura de Lei a essa afirmação será apontar o fato de que relações causais são em si mesmas multiaspectuais e são qualificadas por cada aspecto a partir do aspecto físico para cima, conforme sua disposição na lista. Assim, indagamos: que tipo de lei uma lei intermediária deveria ser? Se é, em si mesma, uma lei física, então como ela relaciona o físico com seus produtos supostamente não físicos? E por que essa visão seria preferível a afirmar que uma relação dessas não é concebível? Ainda assim continuaria a deparar-se com a mesmo impasse de Descartes no tocante à relação mente/corpo: relações de causa/efeito sem qualquer homogeneidade não podem sequer ser concebidas. Em contrapartida, a Teoria da Estrutura de Lei percebe a homogeneidade multiaspectual de todas as coisas no cosmo com tudo o mais no cosmo. Em suma, a Teoria da Estrutura de Lei é capaz de demonstrar um impressionante poder explanatório ao desenvolver sua ideia de aspectos irredutíveis, igualmente existentes na realidade. Dessa ideia surge a

possibilidade de distinguir o aspecto qualificante de uma coisa, todos capsulares, leis típicas e funções fundantes e guias dos artefatos. Tudo isso converge para nossa recomendação de que se entenda que tantos são, no cosmo, os níveis distintos quanto são os níveis relacionados, o que nos impede de cair na armadilha de presumir, desde o início, que a explicação leva somente à redução ontológica.

Apêndice 2: O meio intelectual de Herman Dooyeweerd Albert M. Wolters Mais do que no caso da maioria dos filósofos de estatura internacional, ainda se faz necessário divulgar o pensamento de Herman Dooyeweerd fora de seu país natal, em razão do desconhecimento generalizado sobre o meio intelectual em que desenvolveu sua filosofia. Os dois fatores mais relevantes desse meio — o neocalvinismo holandês e a filosofia alemã a ele contemporânea — são ainda grandezas amplamente desconhecidas no mundo da filosofia anglo-americana. Ademais, as pessoas familiarizadas com um desses fatores, em geral, costumam conhecer pouco acerca do outro.[35] Contudo, Dooyeweerd não pode ser compreendido sem certa apreciação de ambas as tradições. Consequentemente, meu propósito neste ensaio é oferecer um esboço breve e formal de como, de um lado, os grandes temas do neocalvinismo holandês, e do neokantismo e fenomenologia alemães, de outro, exerceram influência sobre a formação intelectual de Dooyeweerd. Desse modo, espero tornar mais inteligíveis alguns dos problemas e categorias na filosofia de Dooyeweerd, os quais são frequentemente de difícil acesso. Muitos dos temas que aqui apresento serão trabalhados posteriormente pelos outros ensaios.[36] Pode parecer que o neocalvinismo holandês e a filosofia alemã são fatores bastante heterogêneos, não sendo, assim, possível compará-los efetivamente somente sob a rubrica de meio intelectual. Afinal, o primeiro não se refere a um movimento religioso e teológico, ao passo que o outro, a uma influência secular e mais estritamente acadêmica? Não há dúvida da validade dessa observação, mas é importante notar que, da perspectiva do próprio pensamento de Dooyeweerd, a oposição entre “religioso” e “secular”, ou entre “teológico” e “mais estritamente acadêmico”, é falsa. Antes, talvez seja mais apropriado tratar do neocalvinismo como a força intelectual dominante no nível da cosmovisão de Dooyeweerd, e a filosofia alemã como o catalisador intelectual primário[37] no nível da filosofia, estritamente falando, isto é, enquanto disciplina acadêmica técnica. Na própria visão de Dooyeweerd, ambos esses níveis são “religiosos” (no neerlandês: geestelijk), assim como “intelectuais”, embora somente o segundo seja intelectual no sentido preciso de “científico” (no neerlandês: wetenschappelijk). Além disso, os dois estão intimamente ligados entre si.

Neocalvinismo A própria concepção de uma ligação íntima entre cosmovisão e filosofia é um legado do reavivamento do calvinismo, que forma o contexto imediato da vida e obra de Dooyeweerd. Sob a liderança de Abraham Kuyper (1837-1920), o brilhante teólogo, jornalista e político que ascendeu ao posto de primeiro-ministro dos Países Baixos (19011905), um pequeno segmento de protestantes holandeses levou a cabo um extraordinário programa de re-cristianização dirigido a todas as áreas da cultura.[38] Dentre os feitos notáveis realizados por esses neocalvinistas — não mencionando aqui uma nova denominação eclesiástica, um novo partido político, um novo periódico e um novo sindicato –, estava o estabelecimento, em 1880, de uma nova universidade, a Universidade Livre de Amsterdã. O próprio Kuyper tornou-se o primeiro reitor e seu professor mais proeminente desde sua fundação até tornar-se primeiro-ministro em 1901. A influência de Kuyper permeou a vida de Dooyeweerd de todas as formas. Dooyeweerd foi criado em Amsterdã, num lar kuyperiano, frequentou um colégio (gymnasium) clássico neocalvinista nas localidades da Universidade Livre de Kuyper, estudou nesta universidade e recebeu seu doutorado em 1917, trabalhando em seguida, por alguns anos, como diretor do Instituto Kuyper em Haia, e finalmente, de 1926 a 1965, foi professor em sua alma mater. Nasceu e foi criado na subcultura do neocalvinismo e passou toda sua vida propagando e desenvolvendo sua cosmovisão essencial. Um conceito-chave nesse vigoroso movimento religioso-cultural, que dominou por algumas décadas a vida política e cultural dos Países Baixos, era a de uma “visão calvinista do mundo e da vida”. Foi apresentado por Kuyper como um estandarte sob o qual todas as fileiras das iniciativas culturais neocalvinista poder-se-iam reunir e que deveria pois ser distinguido da teologia calvinista ou reformada, que tinha uma relação mais específica com a igreja e com a vida de fé. De acordo com Kuyper, o calvinismo não era apenas uma teologia, mas uma visão global da totalidade da vida e do mundo, que tinha implicações diretas para todas as áreas das atividades humanas. Cabia, portanto, aos calvinistas desenvolver essas implicações não apenas em suas vidas eclesiásticas e pessoais,[39] mas também em todas as demais áreas da cultura, incluindo a da universidade e do trabalho acadêmico. Era o calvinismo enquanto uma visão do mundo e da vida que fornecia a visão transformadora que fundamentava, motivava e inspirava a ação cristã em cada fronte. Os críticos de Kuyper chamavam essa atitude de “neocalvinismo”, e o próprio Kuyper veio a

adotar o termo. Não surpreende, portanto, que quando Kuyper foi convidado para proferir as Palestras Stone de 1898, na Universidade de Princeton, ele as tenha reunido sob o título lapidar de Calvinismo. Ele explicou, em sua primeira palestra, que tinha em mente o calvinismo enquanto cosmovisão, e de fato, nas palestras seguintes, continuou esboçando as implicações do calvinismo para áreas como política, ciência e arte. Essas Lectures on Calvinism [Palestras sobre o Calvinismo], como vieram a ser conhecidas no mundo anglófono, ministradas em inglês perante uma audiência americana, e desde então frequentemente reeditas, constituem um tipo de manifesto daquilo que Kuyper queria dizer com “uma visão calvinista do mundo e da vida” e de todo o programa neocalvinista de renovação cultural cristã É preciso também assinalar que Kuyper usava a frase “visão do mundo e da vida” como um de uma série de sinônimos, dentre os quais se incluíam expressões como “biocosmovisão”, “sistema de vida” e “concepção de mundo”. É possível demonstrar que o uso que Kuyper faz do termo reflete um conjunto de expressões alemãs análogas (que encontramos frequentemente na obra do filósofo Wilhelm Dilthey, por exemplo), centradas em torno da palavra Weltanschauung, a fonte para o vocábulo inglês “worldview”, que Kuyper utiliza. Embora Kuyper e seus seguidores, incluindo Dooyeweerd, geralmente preferissem a expressão mais rebuscada “visão do mundo e da vida” ou suas variantes, neste ensaio valer-me-ei doravante do termo mais simples “cosmovisão”. Quais são os pontos principais da cosmovisão que Kuyper identificava ao calvinismo e como eles influenciaram a filosofia de Dooyeweerd? Segundo minha avaliação, o ponto fundamental de uma cosmovisão calvinista (como a teologia reformada) é sua insistência e coerência quanto a uma percepção central da relação entre criação e salvação, entre natureza e graça. Na fórmula amiúde citada pelo teólogo Herman Bavinck, sucessor de Kuyper na Universidade Livre e seu companheiro intelectual dentro do neocalvinismo, a “graça restaura a natureza”.[40] Isso significa que o cristianismo não é alheio à vida natural; antes, busca renová-la a partir de dentro, a fim de restabelecê-la a seus devidos lugar e função criacionais. “Natureza” e “vida natural” são aqui concebidas como criação num sentido amplo, um sentido efetivamente cósmico que abarca todo o leque dos assuntos humanos, incluindo a totalidade da vida cultural e social. Inclui especialmente a razão humana, a filosofia e todo o empreendimento científico. Tudo isto jaz sob a maldição do pecado, mas tudo isso também se encontra dentro do escopo redentor de Jesus Cristo.

O calvinismo, portanto, segundo Kuyper e Bavinck, não vê o evangelho como antitético à vida criada em suas muitas manifestações, nem como paralelo ou suplementar a ela; menos ainda como uma sua extensão evolucionária. Estas visões todas encontram seus expoentes nas demais tradições cristãs. A bem da verdade, o calvinismo entende o evangelho como sendo o poder curativo, restaurador, que redireciona e restabelece a criação de acordo com o propósito original do Criador. É essa intuição essencial que reaparece no trabalho de Dooyeweerd, quando ele propõe que o motivo básico cristão ecumênico pode ser formulado tematicamente como o da criação, queda e redenção. Dooyeweerd concebe essa como a alternativa bíblica aos motivos básicos pagão, sintético e humanista que, pela maior parte do tempo, dominaram a cultura ocidental. Essa formulação só pode ser compreendida à luz da relação natureza/graça, conforme concebida na cosmovisão calvinista promovida por Kuyper e Bavinck. A ligação é de certo modo obscurecida pela aversão de Dooyeweerd, em seus escritos maduros, a formulações teológicas e por seu hábito posterior de evitar a nomenclatura “calvinista” em favor de designações mais ecumênicas como “cristão” e “bíblico”. Um estudo de seus primeiros escritos deixa bastante claro, contudo, que a visão calvinista da relação natureza/graça — que ele descreve como allesbeheersend, isto é, “absolutamente importante”[41] — foi, desde o princípio, fundamental à obra de sua vida. Em minha opinião, não é exagero dizer que esse entendimento central da criação, queda e redenção é a chave para a filosofia de Dooyeweerd e para todo o projeto intelectual ao qual dedicou sua vida. Intimamente associada a esse ponto essencial na cosmovisão neocalvinista está a ênfase na lei criacional e na diversidade criacional. Se a salvação é realmente recriação, e se a recriação significa uma restauração de tudo a seus função e lugar criacionais devidos, então, pensava Kuyper, deve haver, para cada tipo de coisa, uma norma, um padrão, ao qual deve ser restaurado e pelo qual se distingue de todos os demais tipos de coisa. É nesse contexto que a questão calvinista da re-criação se une a outra questão dominante, a soberania de Deus. Deus é soberano; portanto, sua palavra é lei para todas as criaturas. Essa palavra-lei constitui a natureza normativa e identidade distintiva de todo tipo de coisa criada, seja os carvalhos, a racionalidade humana ou o corpo político. Kuyper muitas vezes utilizou o termo levenswet para expressar essa ideia; tudo tem sua própria “lei da vida”, o padrão ao qual se deve conformar, caso queira viver ou operar plena e autenticamente. Esta é a lei que é dada em virtude da criação; Kuyper também se refere a isso frequentemente como “ordenança criacional”.

Esse tópico da lei criacional também predomina no pensamento de Dooyeweerd, que o extraiu diretamente da cosmovisão calvinista, conforme elaborada por Kuyper. Para ele, assim como para Kuyper, a criação é definida por lei. Uma distinção categorial fundamental em Dooyeweerd é a correlação entre lei e “sujeito” (aquilo que está sujeito à lei). Juntos, constituem os parâmetros básicos da realidade. Com efeito, a “ideia de lei” (wetsidee) mostrou-se, desde o início, central no pensamento de Dooyeweerd. Ele próprio cunhou a designação “filosofia da wetsidee”, para descrever seu pensamento, tendo sido posteriormente traduzida para o inglês (por sugestão dele mesmo) como “filosofia da ideia cosmonômica”. O que talvez seja menos óbvio num primeiro momento é a continuidade entre Kuyper e Dooyeweerd na questão da diversidade criacional. A relação entre criação e diversidade ou pluriformidade é essencial ao pensamento de ambos os pensadores. As diferenças que nos são dadas em nossa experiência – seja a experiência da diferença entre pensamento e sentimento, entre um gerânio e um cacto, ou entre igreja e Estado – não são simplesmente produtos da evolução ou do processo histórico no sentido de que qualquer tipo de coisa possa transformar-se em outro tipo de coisa no curso do tempo; antes, estão enraizadas na criação. Coisas diferentes são definidas por “leis da vida” específicas e têm suas identidades garantidas por ordenanças criacionais. Isso não nega a evolução ou a história, mas fornece as estruturas ontológicas com base nas quais todos os processos podem ocorrer. Para Kuyper, essa ideia da diversidade criacional assumiu uma relevância prática diretamente no conceito de “esfera de soberania”. Com esta expressão ele se referia ao princípio sociológico de que tipos distintos de instituições sociais (e.g. Estado, família, escola, igreja) ou setores culturais (e.g., comércio, academia, arte) têm sua própria jurisdição limitada e definida pela natureza específica da “esfera” relacionada. Esse tornouse o princípio orientador para o partido político cristão que Kuyper conduziu, fornecendo uma base racional para limitar a autoridade do Estado e proteger os direitos e responsabilidades distintos de instituições como a igreja e a família. Ao passo que Groen van Prinsterer (1801-1876), predecessor de Kuyper na liderança do Partido Cristão Antirrevolucionário, defendera esse princípio com fundamentos históricos, argumentando que direitos e privilégios somaram-se às instituições sociais por direito consuetudinário e pelo uso, Kuyper deu o passo decisivo de fundamentar a diversidade sociológica e cultural na lei criacional. O objetivo central da ação cultural cristã era respeitar e reafirmar as fronteiras criadas. Foi essa a mensagem do discurso de Kuyper intitulado Souvereiniteit in

eigen kring (soberania de esfera), quando da abertura da Universidade Livre de Amsterdã em 1880 – uma universidade que deveria ter sua própria soberania, livre da jurisdição tanto da igreja quanto do Estado. Nisso, também, Dooyeweerd seguiu Kuyper. Não é exagero dizer que Dooyeweerd começou a elaborar sua filosofia sistemática numa tentativa de prover um fundamento ontológico mais amplo para o princípio kuyperiano de esfera de soberania. Desde o princípio, compartilhava com Kuyper da convicção, tão fundamental à cosmovisão neocalvinista, de que a diversidade básica estava enraizada na natureza da realidade criada, devendo portanto ser compreendida com base na lei criacional. Embora, para Kuyper, a esfera de soberania tenha sido um princípio sociológico que forneceu uma diretriz na política prática, Dooyeweerd, por sua vez, expandiu-a para um princípio geral da irredutibilidade ontológica, aplicável também a categorias como a vida e a matéria, a fé e a emoção. A despeito das diferenças, contudo, há uma unidade temática clara entre ambos os pensadores, nesse ponto. Todas as criaturas, não somente as plantas e animais, são criados “segundo sua espécie” (cf. Raízes da cultura ocidental). Há uma variedade maravilhosa, uma intricada pluriformidade, integrada na própria tessitura da ordem criada, uma variedade e pluriformidade que devemos respeitar e honrar, tanto na teoria quanto na prática. Fazemos violência à criação, caso ignoremos as distinções reais ou espezinhemos as diferenças genuínas. O princípio da diversidade criada faz-se sempre presente em Dooyeweerd, seja explicitamente ou não. Está ali, de modo inconfundível, quando o vemos aplaudir, em Raízes da cultura ocidental, o avanço de Kuyper em relação a Groen no entendimento da soberania de esferas. Mas pode passar-nos despercebido quando ele trata de permitir que o “motivo criação” bíblico tenha seu pleno efeito em nosso pensamento, conforme frequentemente afirma em Raízes da cultura ocidental. Para Dooyeweerd, o fruto teórico do “motivo criação” é uma percepção amplificada e uma apreciação para a diversidade dada dos tipos, especialmente em relação à ordem social. A menos que o interpretemos à luz desse motivo chave da cosmovisão calvinista, perderemos de vista o objetivo de suas muitas referências ao “motivo criação”. Há outro tema relacionado à cosmovisão neocalvinista que é particularmente significativo para o pensamento de Dooyeweerd. Trata-se da ideia de desenvolvimento cultural da criação. Uma avaliação positiva do avanço histórico da cultura e sociedade humanas constituía parte essencial de todo o programa de ação e visão de Kuyper. O

desenvolvimento da tecnologia, a construção de cidades, a diferenciação das instituições sociais, a ascensão da ciência, o avanço da industrialização são todos exemplos dos fenômenos que se tornaram possíveis, e que com efeito são evocados pelos potenciais da boa criação de Deus. A civilização humana, aliás todo o curso da história, é uma resposta ao chamado de Deus para a atualização, por parte do homem, das possibilidades e potências latentes na criação. Esse chamado divino é o que Kuyper entendia como sendo o sentido do mandamento paradigmático dado a Adão e Eva, em Gênesis, para dominar a terra – mandamento que o próprio Kuyper denominou “mandato cultural” e alguns de seus sucessores, “mandato criacional”. A terra, isto é, o domínio terreno da criação (todas as coisas fora o céu enquanto habitação de Deus), era para ser, desde o princípio, responsavelmente desenvolvido para a glória de Deus. E, a despeito de quão distorcidos os vários produtos culturais e sociais tenham sido por parte da apostasia e perversidade humanas, Kuyper acreditava que esses produtos possuíam uma validade intrínseca em virtude da criação. Os cristãos poderiam afirmar a bondade criacional e legitimidade da universidade, do Estado-nação, dos direitos humanos individuais e das estradas de ferro – todos desenvolvimentos relativamente recentes na história da cultura humana. Esses fenômenos, embora historicamente novos e em muitos aspectos associados às forças da secularização, não eram estranhos aos propósitos de Deus na criação, mas sim intrínsecos a eles. E mais, Kuyper acreditava que é dever dos cristãos não somente afirmá-los (embora opondo-se a suas distorções), mas efetivamente defender e promover seu avanço dentro do contexto da vinda do reino de Deus. A criação, portanto, na cosmovisão neocalvinista, era escatológica num sentido cultural abrangente, e tinha implicações para uma filosofia completa da história. É essa ideia que Dooyeweerd desenvolveu em sua concepção do “processo de abertura” (ontsluitingsproces) da criação e sua teoria do desenvolvimento histórico. Ligado à sua noção de diversidade criacional, especialmente quando aplicada à ordem social na doutrina da soberania da esfera, esse processo significa que a história envolve a diferenciação e o progressivo desdobramento da natureza criacional singular de cada instituição social e de cada setor cultural. Elaborado em termos de analogias e de posição fundamental do aspecto histórico, Dooyeweerd dá a esse traço essencial da cosmovisão neocalvinista uma articulação filosófica altamente sofisticada em sua filosofia técnica da história. Voltemo-nos, por fim, a outro ponto importante da cosmovisão defendida por Kuyper: a ideia de antítese. No uso de Kuyper, refere-se em primeiro lugar à oposição espiritual entre obediência e desobediência a Deus, entre o Espírito de Deus e os espíritos

deste mundo. Em termos práticos, significa uma grande divisão entre aqueles que reconhecem a realeza de Jesus e buscam honrá-la em cada área da vida e aqueles que negam essa realeza. A antítese, portanto, divide crentes de descrentes, embora num nível mais profundo também divida os corações de crentes, visto que o pecado se encontra igualmente naqueles que nasceram de novo pelo Espírito. Essa oposição espiritual, ou antítese, está também relacionada intimamente ao tema fundamental de que a graça restaura a natureza e deve ser compreendida com base nisso. A natureza, a boa criação de Deus, é a arena de duas forças opostas. Há a força do pecado e desobediência a Deus que perverte e distorce a totalidade, e há a força de restauração e renovação em Jesus Cristo que busca desfazer toda perversão e distorção a fim de restabelecer o propósito original de Deus para a criação. Essas duas forças se chocam; são diretamente antitéticas. Ademais, são ambas cósmicas em seu escopo: tanto o pecado quanto a salvação se estendem por toda criação. Para Kuyper isso significava que as forças da cristianização tinham de opor-se, em toda parte, às forças da secularização — na educação, na política, no jornalismo, na academia, nas relações industriais, e assim por diante. A antítese religiosa entre crença e descrença – uma vez que não se restringia a uma esfera acima ou paralela à intensa atividade da vida natural, sendo, pelo contrário, uma competição espiritual por essa vida [natural] mesma – expressou-se devidamente no meio dos afazeres “seculares” comuns da vida criada. Isso significava que uma universidade cristã deveria envolver-se no trabalho acadêmico sério, que buscaria forjar uma nova direção cristã nas várias disciplinas acadêmicas, incluindo a filosofia. A visão de Kuyper de uma vasta batalha espiritual sendo travada em meio aos assuntos humanos teve um profundo impacto na vida e pensamento de Dooyeweerd. Ele não apenas se dedicou ao ideal de erudição cristã, mas compreendeu que seu trabalho filosófico tomava parte na antítese religiosa. Ele repetidas vezes enfatiza a inevitabilidade dessa concepção, embora também regularmente nos alerte a fim de não concebermos a antítese como simplesmente uma oposição entre diferentes grupos de pessoas. A antítese, em última instância o conflito entre o reino de Deus e o reino das trevas, encontra-se até mesmo em nossos corações. Há muitos outros temas da cosmovisão neocalvinista que moldaram o pensamento de Dooyeweerd. Por exemplo, quando ele recorrentemente trata, em sua maior obra, A New Critique of Theoretical Thought [Nova crítica do pensamento teórico], da “realidade terrena”, podemos compreendê-lo somente se soubermos que o neocalvinismo dividia a

criação em céu e terra, e que a investigação científica (incluindo a filosofia) se limita ao reino terreno. De fato, toda a infraestrutura da filosofia de Dooyeweerd, os pressupostos em operação que frequentemente não são explicitamente discutidos, procede diretamente da cosmovisão comumente aceita do neocalvinismo. Mas já tratamos o suficiente para que seja possível corroborar esta conclusão de Karel Kuyper, um antigo aluno de Dooyeweerd e atualmente um reconhecido filósofo neerlandês, que escreveu na ocasião da morte de Dooyeweerd em 1977: “De modo sumário, devemos enfatizar que, na obra [de Dooyeweerd], as ideias essenciais do Dr. Abraham Kuyper, que levaram à fundação da Universidade Livre, receberam pela primeira vez uma elaboração fundamental na filosofia e na teoria da ciência”.[42] Neokantianismo e fenomenologia Voltamo-nos agora para outro grande componente do meio intelectual de Dooyeweerd, o fato que é importantíssimo para o entendimento de alguns dos traços mais técnicos e estritamente filosóficos de seu pensamento. Após esboçar essa dimensão de seu contexto, retornaremos à questão de como ele se relaciona com a influência do neocalvinismo em Dooyeweerd. Não há como se duvidar que a orientação estritamente filosófica de Dooyeweerd esteve, desde o início, voltada para a Alemanha. De modo geral, é fato que, no princípio do século XX, a vida intelectual neerlandesa, por conta de seu cosmopolitismo, estava muito mais atrelada ao pensamento do mundo germanófono do que às áreas francófonas ou anglófonas. Os intelectuais neerlandeses tinham fácil acesso a essas três influências – os calouros de todas as universidades eram capazes de ler as três línguas —, mas havia um laço especialmente próximo com seus primos germânicos a leste, principalmente em teologia e filosofia. Talvez não seja exagero dizer que a Holanda, intelectualmente falando, era, naquela época, uma província cultural da Alemanha. Em fins do século XIX e princípios do XX, o cenário filosófico alemão fora dominado pelo neokantismo, um revigoramento da filosofia de Immanuel Kant (17241804).[43] O novo movimento era uma reação profunda ao materialismo e positivismo reinantes de meados do século XIX. Os neokantianos, assim como os positivistas, postulavam a autonomia da ciência e da razão, mas, diferentemente destes últimos, enfatizavam a autonomia das ciências humanas face às ciências naturais e a importância das questões metafísicas ao se lidar com a ampla extensão da Wissenschaft (a ciência em

geral). Acima de tudo, as próprias ciências, bem como os diferentes setores da natureza e experiência humanas que investigam, estavam fundamentados na e são possibilitados pela estrutura da subjetividade humana. As palavras-chave eram transzendental, a priori e begrüden (fundamentar-se). Responder à questão transcendental (“Como é possível que x exista ou seja válido? O que torna x possível?) é fundamentar x num a priori da experiência humana, num ego lógico transcendental, em algo que constitui x mesmo antes que x adentre nossa experiência. Em última análise, uma vez que o mundo é o mundo da experiência humana, o sujeito “constitui” o mundo. Na época posterior à sua graduação, esse kantismo ressurgente havia tomado cada uma das cátedras de filosofia das quatro maiores universidades neerlandesas, sem contar a minúscula Universidade Livre de Amsterdã. O neokantismo, ou Kritizismus, como era habitualmente denominado, era tão difundido quanto o é hoje a filosofia analítica no mundo anglo-saxão. Além disso, os professores na Universidade Livre de Amsterdã estavam inclinados a ser prudentemente simpáticos a esse movimento; afinal de contas, o neokantismo também travava guerra contra o arqui-inimigo, o positivismo, e em níveis variados deixava certo espaço legítimo para a religião e fé. O teólogo W. Geesink, da Universidade Livre de Amsterdã, que estava também encarregado do ensino de filosofia, passou gradativamente de uma posição aristotélica para outro mais simpática à “filosofia crítica” de Kant e de seus sucessores. Para aqueles interessados nas questões fundacionais da metodologia e da metafísica, especialmente nas humanidades e nas ciências sociais — devemos lembrar que Dooyeweerd era, por profissão, um teórico do Direito — era então o neokantismo que abria novas sendas. Sabemos, pelo próprio testemunho de Dooyeweerd, que ele passou por uma fase neokantiana. No prefácio de seu New Critique escreve: “Originalmente estive sob forte influência, primeiramente, da filosofia neokantiana, posteriormente da fenomenologia de Husserl” (NC I, v). Isto se confirma pelas suas primeiras publicações, em que abundam referências aos neokantianos. Dizer que Dooyeweerd passou por uma fase neokantiana não equivale a dizer que ele fora sempre um neokantiano consumado. A racionalidade autônoma do neokantismo, em especial, era incompatível com a visão kuyperiana da natureza religiosa de toda ciência. De igual modo, Dooyeweerd não era um idealista epistemológico. Contudo, havia certas tendências e abordagens neokantianas que se tornaram parte de seu pensamento e assim permaneceram ao longo de sua vida. O mais importante desses elementos é o método transcendental. Dooyeweerd, de forma autoconsciente, se refere à sua própria filosofia

como filosofia transcendental e, repetidas vezes, afirma que a chave para seu pensamento se encontra em sua “crítica transcendental do pensamento teórico”, uma frase que claramente remete à Crítica da razão pura (1781) e que ecoa no título em inglês da magnum opus dooyeweerdiana. Nesta, o “pensamento teórico” (em vez de “razão pura”) está sujeito a uma nova (i.e., pós-kantiana) crítica, e o sujeito no qual se fundamenta revela-se não um ego transcendental lógico, mas um ego transcendental religioso, que é equivalente ao “coração” bíblico. Kant é severamente criticado por sua visão limitada da experiência humana, mas o método pelo qual Dooyeweerd descreve filosoficamente a experiência é claramente inspirado (e é paralelo) ao procedimento kantiano. Dooyeweerd detém-se um pouco antes de sugerir que nossa experiência é “constituída” pelo sujeito humano, mas ele de fato trata de “a prioris” subjetivos que tornam a experiência possível. É o que leva um crítico simpático ao pensamento de Dooyeweerd, o filósofo sul-africano H.G. Stoker (1899-1993), a falar de um tipo de “idealismo de sentido” em Dooyeweerd e a censurá-lo por ter dado um peso indevido ao método transcendental na filosofia. Outros elementos neokantianos se fazem abundantemente presentes na obra de Dooyeweerd. A distinção entre “conceito” e “ideia”, por exemplo, é tomada do kantismo, especialmente do teórico neokantiano do direito Rudolph Stammler (1856-1938). A ideia de filosofia como um tipo de superciência enciclopédica é neokantiana em sua origem. Dooyeweerd demonstra afinidades particularmente com o neokantismo da chamada Escola de Heidelberg ou Escola do Sul da Alemanha, liderada por Wilhelm Windelband (18481915) e Heinrich Rickert (1863-1936). Isso transparece em sua interpretação de Kant, a qual sublinha o significado da dialética transcendental e a legitimidade suprema da metafísica, assim como em muitos detalhes de terminologia, por exemplo a distinção entre “normas” e “leis da natureza”, que ecoa o ensaio seminal de Windelband, “Normen und Naturgesetze”, de 1882.[44] Dooyeweerd também mencionou que esteve por um tempo sob a influência da fenomenologia. Esta é a segunda grande escola da filosofia alemã que devemos ter em conta, caso queiramos um retrato do contexto intelectual de Dooyeweerd. A fenomenologia, enquanto escola de filosofia fundada por Edmund Husserl (18591938), é caracterizada por uma virada ao objeto, uma insistência na realidade independente dos dados objetivos de nossa experiência. Ademais, interpretava-se amplamente o termo “objeto”, de modo que também veio a interpretar-se a “experiência” num sentido muito mais amplo do que se permitia no modelo sentido-dados do empirismo. Estados de espírito, sonhos e valores tornaram-se componentes da experiência humana com status ontológicos

próprios, que a filosofia deveria descrever e catalogar. Por definição, a experiência se torna inerentemente “intencional”, isto é, direcionada ao objeto. É preciso, porém, muito cuidado para não reduzir um tipo de experiência a outro, mas sim permitir que a natureza singular de cada fenômeno se mostre em sua própria integridade. Parte dessa atitude geral de antirreducionismo devia-se à luta de Husserl contra aquilo que chamava de psicologismo, isto é, a tentativa de reduzir o pensamento e o raciocínio a mecanismos psicológicos como a associação. Em oposição a isso, Husserl defendia a irredutibilidade do pensamento analítico, sua própria autonomia frente aos processos psíquicos. Do início ao fim, o espírito da fenomenologia era um espírito de respeito para com a variedade dada da experiência, um desejo de honrar o mundo dos objetos, tal como verdadeiramente se apresenta em nossa experiência. Ligada a essa atitude geral, estava a doutrina do método fenomenológico, um procedimento que permitiria o fenomenologista abstrair-se (“colocar entre parênteses”) da realidade ou existência de um objeto, e chegar a uma intuição da essência de uma coisa (o famoso Wesensschau de Husserl). Desse modo, a natureza essencial das coisas tornar-se-ia genuinamente apreensível. Em Dooyeweerd, um número considerável desses pontos (ou pontos análogos) parecem estar presentes. A meu ver, o mais importante deles é provavelmente a ênfase na realidade do objeto. Ao passo que Husserl, na redução transcendental, aparentemente fez com que o objeto da experiência dependesse, em última instância, de um ego lógico constituinte,[45] Dooyeweerd, por sua vez, dá ao objeto, ou, antes, à função-objeto das coisas, o tipo de status ontológico real que Husserl, inicialmente, parecia pressupor. Para Dooyeweerd, não apenas a “verdidade” é um traço ontológico real da grama, mas também o é sua “conceitualidade”, suas qualidades estéticas e seu valor econômico. O que Dooyeweerd chama de relação sujeito/objeto, a relação básica da experiência ingênua (i.e., a experiência pré-científica do dia a dia), parece ser uma forma radicalizada de “intencionalidade” no sentido husserliano, uma relação inerentemente direcionada ao objeto, que é definida pela realidade dada à qual se remete. Relacionado a isso, tem-se a respeitosa atitude fenomenológica de Dooyeweerd para com o dado em toda sua variedade e nuances, com sua concomitante aversão a todo tipo de reducionismo. Este é um ponto no qual o motivo da criação, no contexto de sua própria cosmovisão original, é reforçado pelas ênfases da filosofia fenomenológica, e é difícil delimitar onde uma influência termina e a outra começa. É tentador, também, enxergar, na visão dooyeweerdiana da abstração científica, um

legado da fenomenologia husserliana. É verdade que ele usa o termo de Husserl, epoché (“colocar entre parênteses”)[46], para descrever o processo de abstração modal que define a atitude científica ou teórica do pensamento, além de usar também o termo “intencional” em oposição a “ôntico”, a fim de descrever a resultante relação Gegenstand (NC, 1:39); contudo, não é claro como isso se relaciona com o “colocar entre parênteses” e o Wesensschau de Husserl. O próprio Dooyeweerd, ao menos, insiste que não há paralelo material (NC, 2:73). Quer se aplique ou não à relação Gegenstand, não resta dúvida de que a noção de uma apreensão imediata — reminiscência da Wesensschau — é um importante elemento na ideia dooyeweerdiana de intuição. Na filosofia de Dooyeweerd, os momentos nucleares das esferas modais, por exemplo, são diretamente conhecidos pela intuição — um ato que ele descreveu em alguns de seus escritos iniciais usando o verbo neerlandês arcaico schouwen, um óbvio cognato do Schau de Husserl. Seria necessária uma análise mais detida para determinar se a afinidade com a concepção de Husserl nesse ponto é mais do que simplesmente verbal. Para completar nosso esboço acerca das filosofias alemães que se mostraram relevantes no meio intelectual de Dooyeweerd, devemos mencionar dois pensadores que, como ele, passaram tanto pelo estágio neokantiano quanto pelo fenomenológico. Os nomes que tenho em mente são Nicolai Hartmann (1882-1950) e Martin Heidegger (1889-1976), ambos os quais produziram obras seminais durante a década de 1920, quando Dooyeweerd estava em seus intensos anos de formação intelectual, e que aparentemente deixaram uma profunda marca sobre ele. Hartmann foi o sucessor de Paul Natorp (1854-1924) na neokantiana Escola de Marburgo, fundada por Herman Cohen (1842-1918). Em 1921, após alguns anos de silêncio, Hartmann publicou uma obra com o título provocativo de Metaphysik der Erkenntnis (metafísica do conhecimento) — provocativo porque a Escola de Marburgo interpretava Kant como o inimigo de toda metafísica. O que era ainda mais revolucionário era que Hartmann, sob a influência da fenomenologia, deu adeus ao idealismo do neokantismo nessa sua obra, e defendeu, antes, um realismo epistemológico bastante resoluto, revertendo, assim, a revolução copernicana de Kant. Isso foi água para o moinho de homens como Dooyeweerd, que estavam fazendo uma peregrinação filosófica análoga – pode-se demonstrar que ele leu e citou extensivamente a obra, logo após ter sido publicada. A relevância dessa informação reside não tanto em seu interesse epistemológico quanto no fato de que Hartmann, em seus primeiros trabalhos, também desenvolveu os primórdios

daquilo que posteriormente chamaria de sua Schichtentheorie (teoria dos níveis) e que seria uma pedra angular de sua futura ontologia, especialmente conforme sua elaboração num grande trabalho publicado em 1935. Ora, sua teoria, que propunha um número de “níveis” ontológicos ou “estratos” (Schichten) sobrepostos uns sobre os outros, de modo que o estrato superior e seguinte se assentava, em cada caso, sobre o estrato anterior, embora não se reduzindo a este, é, de modo surpreendente, análoga à escala modal de Dooyeweerd. Ora, Dooyeweerd sempre rejeitou a sugestão de que tivera alguma dependência de Hartmann, argumentando que a Schichtentheorie só fora publicada muito depois de ter divulgado sua teoria em livro (NC 2:51); porém, um exame do Metaphysik der Erkenntnis (1921) deixa espaço para dúvidas sobre a negação de Dooyeweerd.[47] Qualquer que seja o caso, é inquestionável que Dooyeweerd elaborou sua própria versão dessa ideia de uma maneira independente. A obra de Heidegger que Dooyeweerd estudou intensivamente nos anos de 1920 foi O ser e o tempo (1927). Reza a lenda que Dooyeweerd o leu treze vezes antes de declarar que o havia compreendido. Em todo caso, seu exemplar pessoal da obra,[48] por seus grifos e comentários de margem, fornecem evidência de uma leitura cerrada e de uma interação com essa obra fundamental. Há também pouca documentação, conforme percebo, para permitir-nos especular sobre as possíveis ligações entre o existencialismo e o pensamento de Dooyeweerd, mas há um ponto que pode estabelecer uma conexão entre Heidegger e Dooyeweerd: a ideia do tempo cósmico. Vincent Brümmer demonstrou que Dooyeweerd apresentou seu conceito de tempo em fins da década de 1920, por volta da época em que leu Heidegger.[49] Dooyeweerd entendia o tempo como um tipo de princípio ontológico de continuidade intermodal, guardando pouquíssima relação àquilo que chamamos tempo na linguagem comum. Há muitas outras figuras na filosofia alemã que poderiam ser destacadas como importantes para o desenvolvimento de Dooyeweerd — os nomes de Wilhem Dilthey (1833-1911) e Oswald Spengler (1880-1936) foram mencionados nessa questão —, mas deixaremos nosso breve esboço tal como se encontra. Há, contudo, um outro nome, embora seja um filósofo neocalvinista neerlandês e não alemão, que deveria ser mencionado quando estamos tratando do contexto filosófico do pensamento de Dooyeweerd. Trata-se de D.H.T. Vollenhoven (1892-1978) — um nome que esteve bastante associado com o de Dooyeweerd e também bastante ofuscado por ele. É extraordinário quão intimamente entrelaçadas e semelhantes as vidas desses dois homens

foram.[50] Contudo, havia também diferenças significativas. A mais importantes delas para nossos presentes propósitos é que Vollenhoven recebeu um doutorado em filosofia na Universidade Livre em 1918, e publicou sua tese doutoral, intitulado De wijsbegeerte der wiskunde van theistisch standpunt (A filosofia da matemática de uma perspectiva teísta), vários anos antes de Dooyeweerd — mais novo que ele — ter desenvolvido interesse pela filosofia. Nos primórdios dos anos 1920, quando ambos viviam em Haia e estudavam juntos Hartmann, e também quando Dooyeweerd, em constante interação com Vollehoven, estava começando a familiarizar-se com as questões filosóficas em sua própria disciplina da ciência do direito, Vollenhoven já havia publicado um livro substancial em filosofia, assim como um número considerável de artigos bastante profundos no qual as sementes de sua filosofia sistemática posterior faziam-se já claramente evidentes. Seria um grande equívoco descrever Vollenhoven como um coadjuvante em relação ao gênio de Dooyeweerd. Com base nas primeiras publicações de Vollenhoven, poder-se-ia fundamentar a tese de que, de maneiras significativas, ele moldou a filosofia sistemática então em desenvolvimento de Dooyeweerd, especialmente em relação aos pontos da cosmovisão neocalvinista. Os primórdios da noção de conceitos analógicos, por exemplo, ou da centralidade do coração podem ser documentadas em Vollenhoven, antes mesmo que Dooyeweerd começasse a atuar na filosofia. Por outro lado, Vollenhoven jamais aceitou alguns dos conceitos-chave de Dooyeweerd, notadamente a crítica transcendental, o ser como sentido, o tempo cósmico e a análise dos motivos básicos da cultura ocidental; nestes pontos, ele atuou, pelo contrário, como um importante e contínuo crítico filosófico do pensamento de Dooyeweerd. Neocalvinismo e filosofia alemã Retornamos agora à questão do relacionamento entre os dois amplos movimentos que sugeri, num primeiro momento, terem influenciado Dooyeweerd: o neocalvinismo e a filosofia alemã nos primórdios do século XX. É claro que as principais ideias de ambos os movimentos estão entrelaçadas de várias maneiras em seu pensamento maduro. No entanto, pode-se formular uma generalização como a seguinte: a cosmovisão subjacente ao pensamento de Dooyeweerd mantém-se em continuidade essencial com a visão do neocalvinismo, embora a elaboração filosófica dessa visão seja construída basicamente com as ferramentas conceituais oriundas da filosofia alemã — principalmente o neokantismo, e em segundo lugar, a fenomenologia.

Se isso é verdade, um número de implicações faz-se presentes aqui. Uma delas é que a relevância de Dooyeweerd e seu legado residem mais no impacto da cosmovisão que compõe sua filosofia do que nas categorias sistemáticas que dependem do neokantismo e da fenomenologia. A singularidade de Dooyeweerd em meio aos filósofos do século XX se encontra no vigor e perseverança com que conduziu o programa neocalvinista na filosofia. Dentro do mundo da filosofia, considerado panoramicamente, que por muito tempo se definiu com base na autonomia do pensamento teórico, essa singularidade é também um escândalo, de modo que o pensamento de Dooyeweerd frequentemente evoca a acusação de ser teologia, e de modo nenhum filosofia. Dentro do mundo dos filósofos cristãos, contudo, a singularidade de Dooyeweerd é precisamente o que constitui sua relevância para a filosofia. Se se admite a premissa básica de que a religião é necessariamente um fator central em toda a atividade filosófica, então Dooyeweerd é um pioneiro de proporções heroicas na filosofia do século XX. Visto sob essa luz, ele pode provar-se um seguidor moderno digno de gigantes cristãos como Agostinho, no século V, cuja inspiração religiosa essencial continua a cativar as mentes contemporâneas, mesmo quando as particularidades de suas categorias filosóficas neoplatônicas têm pouca relevância, contemporaneamente. Dizemos isso não com o propósito de afirmar que a filosofia sistemática de Dooyeweerd é simplesmente uma curiosidade histórica, um exemplo interessante de como uma visão protestante e definida da vida estruturou-se segundo os aparatos filosóficos de sua época. O objetivo é, antes, mostrar que Dooyeweerd (como Agostinho) é filosoficamente mais interessante e relevante nesses pontos precisos de seu pensamento em que sua cosmovisão cristã forja novas categorias que, embora desenvolvidas com base e em contato com o meio filosófico de sua época, opõem-se e transformam os elementos em seu interior. A meu ver, um dos exemplos mais significativos desse tipo de reforma filosófica cristã se encontra na concepção de Dooyeweerd da correlação lei-sujeito, especialmente conforme é desenvolvida em sua teoria das estruturas de individualidade. Neste ponto, a cosmovisão neocalvinista, ou (como Dooyeweerd preferia dizer em seus escritos maduros) o motivo básico das Escrituras cristãs, produz novos e importantes frutos filosóficos, apontando um caminho que pode superar dilemas como lei natural versus historicismo, e substância versus função. Em relação a isso, os conceitos de Dooyeweerd de princípio normativo, estrutura normativa e positivação histórica, trabalhadas detalhadamente em sua especialidade (a ciência do direito), permanecem promissores para aplicações frutíferas em outras disciplinas.

Desse modo, de maneira geral, creio que a relevância filosófica de Dooyeweerd é estritamente proporcional a seu sucesso com a condução do programa de Kuyper de uma reforma cristã do trabalho acadêmico. Nesse sentido, o reconhecimento dos pontos e categorias neokantianos e fenomenológicos em seu pensamento, embora nos alerte quanto a percepções genuínas presentes nesses movimentos filosóficos, pode também levar-nos ao reconhecimento daquilo que é genuinamente novo e significativo nesse filósofo inteiramente cristão.

Bibliografia Hebden Taylor, A nova ordem legal à luz da filosofia cristã do direito. Brasília: Monergismo, 2019. Herman Dooyeweerd, Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São Paulo: Vida Nova, 2014. Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Brasília: Monergismo, 2018. Herman Dooyeweerd, Raízes da cultura ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. Josué K. Reichow, Reformai a vossa mente: a filosofia cristã de Herman Dooyeweerd. Brasília: Monergismo, 2019. L. Kalsbeek, Contornos da filosofia cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015. Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa. Brasília: Monergismo, 2019.

[1]

Por Fred H. Klooster (1922-2003), autor de diversos livros e professor de Teologia Sistemática durante 35 anos no Calvin Theological Seminary. Esta edição em português foi traduzida a partir da edição inglesa. [2]

Pelo Rev. Hak-Soo Han.

[3]

Herman Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought, volume 1 (Paidea Press, 1984). Prefácio do tradutor, p. XII. [4]

Herman Dooyeweerd, No crepúsculo do pensamento ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico (Brasília: Monergismo, 2018), p. 15. [5]

Kampen, 4ª edição, 1950.

[6]

“Filosofia da Ideia da Lei”, ou “Filosofia do Conceito de Lei”. O título enfatiza que esse sistema de filosofia cristão reconhece a lei que Deus instituiu como a grande fronteira entre o Criador e a criação, e a concebe como fundamental para entender o mundo. Cf. especialmente as seções 5, 7, 9 e 10 abaixo e também Dr. H. Dooyeweerd, Transcendental Problems of Philosophic Thought (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1948), p. 15 ss. [7]

A Universidade Livre, localizada em Amsterdã, Holanda, foi fundada em 1880 pelo Dr. Abraham Kuyper. Hoje ela é uma universidade cristã de pleno direito, conhecida mundialmente, com faculdades de teologia, direito, ciências naturais, filosofia, literatura, economia e medicina. Ela publica a revista acadêmica, principalmente em inglês, chamada “The Free University Quarterly”. [8]

Spier faz, aqui, referência a um dos paradoxos de Zenão, mais especificamente aquele popularmente conhecido como “Aquiles e a tartaruga”, embora, como é óbvio, atualizando os agentes (i.e., o automóvel e o carrinho de bebê) na sua exemplificação. [N. do T.]

[9]

Lembrando, conforme dito acima, que quatorze é o número obtido pela soma da ideia central (núcleo de sentido) mais os momentos que são representações dos demais aspectos, precedentes e posteriores (isto é, retrocipações e antecipações), dentro de cada esfera de lei. [N. do T.] [10]

Após consideração posterior, o autor deste livreto não mais sustenta a visão do Prof. Dooyeweerd de que o coração humano é supra-temporal. Em distinção às manifestações de tempo nas esferas de lei, Spier agora fala do tempo religioso da alma. A esse tempo religioso e as formas de tempo dentro dos aspectos, ele chama de as duas dimensões do tempo cósmico. Spier explica essa visão num novo livro, Time and Eternity, publicado por J. H. Kok de Kampen. [11]

Nas páginas seguintes três frases usadas são difíceis de verter exatamente para o inglês (português). A dificuldade surge de distinções entre social (samenleving) e sociedade (maatschappij). A primeira é “samenlevingsverbanden” (relações sociais) que incluem aqueles de uma natureza institucional (família, igreja e Estado), bem como outros estabelecidos pela livre agência humana (escolas, negócios, clubes) para os quais o segundo termo é usado, a saber, “maatschappelijke verbanden” (organizações societárias). O terceiro termo é intimamente relacionado. É “maatschappelijke betrekkingen” (contratos societários) e refere-se àqueles livres contratos que não são baseados sobre organização e autoridade. [12]

A referência aqui e mais adiante não diz respeito, por óbvio, a posicionamentos ideológicos modernos, mas sim à metonímia bíblica que entende a “esquerda” como o caminho ou comportamento pecaminoso e iníquo, e a “direita” ou “destra” como o estilo de vida em obediência ao Senhor. Cf. Eclesiastes 10.2: “O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o da esquerda”. [N. do T.] [13]

A edição original de New Critique (doravante NC) foi publicada pela Presbyterian & Reformed Publishing Co., Philadelphia, em 1953. Foi reeditada pela Mellen Press, Lewiston, NY, em 1997. Ao dizer que a ontologia de Dooyeweerd tem um poder explanatório maior que a de Aristóteles, não pretendo dizer que é mais detalhada, mas que evita vários impasses que a ontologia de Aristóteles não pôde evitar, como a relação entre forma e matéria e se os artefatos representam novas formas. [14]

A crença em algo enquanto a realidade incondicional da qual tudo o mais depende é central a todas as religiões e é a única característica que todas têm em comum. Para Dooyeweerd, tais crenças são um produto antes da experiência de uma pessoa que de provas ou argumentos — embora seja preciso ter em mente que tais crenças podem ser suposições inconscientes, assim como compromissos sinceros. Ademais, as experiências que dão origem a essas crenças podem variar em seu conteúdo. Por exemplo, enquanto Calvino diz: “Rogam que se lhes responda como seremos persuadidos de que a Escritura procede de Deus sem nos abrigarmos no decreto da Igreja? Assim como distinguimos a luz das trevas, o branco do negro, o doce do amargo” (Instituição I, 7, 2), Paul Ziff disse: “Se você me perguntar por que sou um materialista... não é por conta dos argumentos. Acho que teria de dizer que a realidade me parece irresistivelmente física”. [15]

Instituição da religião cristã, Tomo I (São Paulo: Editora UNESP, 2008), p 57.

[16]

Dooyeweerd jamais empreendeu uma defesa dessa definição de crença religiosa ou da declaração de que as crenças em algo como sendo autoexistente são igualmente religiosas, quer ocorram nas teorias, quer se deem nas tradições religiosas. Argumento extensivamente a favor desses dois pontos no capítulo 2 de meu O mito da neutralidade religiosa (Brasília: Monergismo, 2019). [17]

Nesse ponto, a posição de Dooyeweerd é a mesma da teologia ortodoxa oriental. Como São Gregório Palamas observa: “Os cristãos não podem tolerar qualquer substância intermediária entre o Criador e as criaturas...” (citado em John Meyendorff, A Study of Gregory Palamas, Londres: Faith Press, 1964, p. 130). Por essa mesma razão Dooyeweerd também rejeita qualquer tentativa de provar a existência de Deus, afirmando, pelo contrário, que “aquilo que se provaria não seria, por conta disso, Deus”. A razão é que, uma vez que o ser de Deus é a origem criativa de tudo, incluindo as leis da

prova, ele não está, por conseguinte, sujeito a essas leis. Assim, tentativas de provar sua existência inadvertidamente o rebaixam ao status de criatura. [18]

Nem todo uso do termo “redução” se refere a um sentido ontológico. Por exemplo, não há objeção à substituição da teoria do calórico pela teoria da vibração molecular. Os tipos maiores de teorias que são objetáveis podem ser, grosso modo, descritos da seguinte maneira: A. Substituição de sentido. A natureza de toda a realidade deve possuir apenas propriedades do tipo X, e ser governado somente por leis X. Defende-se isso por meio da afirmação de que todos os termos com sentido supostamente não-X podem ser substituídos por termos X sem nenhuma perda de sentido, embora nem todos os termos X possam ser substituídos por termos não-X (Berkeley, Hume e Ayer defendiam o fenomenalismo desse modo). B. Identidade factual. Embora os termos de vocabulários não-X não possam ser inteiramente substituídos por termos X, os termos não-X, entretanto, referem-se apenas a propriedades ou leis X. Defende-se a seleção de X com base no fato de que a única ou melhor explicação para qualquer coisa tem invariavelmente os termos X como seus termos primários e as leis X como suas leis básicas (J. J. C. Smart defendia o materialismo dessa forma). C. Dependência causal metafísica. A natureza da realidade é basicamente (não exclusivamente) constituída do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) das coisas. Defende-se essa posição afirmando que há uma dependência de via única das propriedades e leis dos tipos não-X sobre entidades cuja natureza é exclusivamente do(s) tipo(s) X (ou de X mais Y) (Aristóteles e Descartes defenderam sua ideia de “substância” dessa maneira). D. Epifenomenalismo. Esta posição é semelhante à da causalidade metafísica, com a exceção, porém, de que os tipos de propriedades dependentes, causados, são menos reais, já que não há leis dentro desses tipos, de modo que não se pode oferecer nenhuma explicação genuína com base em propriedades epifenomênicas (Huxley e Skinner defendiam que estados da consciência são simples epifenômenos em corpos ou comportamentos puramente físicos).

[19]

Veja Tobias Dantzig, Number: The Language of Science (Garden City, NY: Doubleday, 1954), p.

2-3. [20]

Planck e Einstein, por exemplo. Veja as observações de Einstein em ‘‘Autobiographical Notes’’ in: Albert Einstein, Philosopher-Scientist, ed. P.A. Schlipp (New York: Harper Torchbooks), p. 43. [21]

A ordem dentro dos aspectos inferiores na lista é considerada como leis rígidas, embora a ordem dentro dos aspectos mais intimamente associados com a vida social humana é considerada normas. Diferentemente das leis rígidas como a da gravidade, as normas da linguagem, polidez, economia, estética, justiça e ética constituem uma ordem que humanos tem capacidade de violar. [22]

Pois para que haja objetos com naturezas fixas, teria de haver anteriormente (ao menos) leis aspectuais governando o modo pelo qual as propriedades de cada aspecto se relacionam umas com as outras. E para que as regularidades de lei fossem impostas pelos sujeitos cognoscentes em sua experiência, teria de haver, antes disso, regularidades do tipo lei regendo o processo cognitivo. Por essas razões, o objetivismo e o subjetivismo apontam ambos — a despeito de suas intenções — para um lado-lei distinto da realidade, que não tem sua origem nem no objeto nem no sujeito. [23]

Os termos de Dooyeweerd para esses modos são “funções-sujeito” e “funções-objeto”, o que gerou confusões em demasia, já que “sujeito” e “objeto” são usados aqui equivocadamente. [24]

Veja NC, III, p. 78.

[25]

Os termos próprios de Dooyeweerd para essa ideia eram “encapse” e “totalidade encáptica”. Em minha versão, simplesmente anglicizei os termos. [26]

O termo de Dooyeweerd para isso era “estrutura de individualidade” (veja NC, III). Antes,

confundia-se tão frequentemente o termo, interpretando-o como se implicasse a organização interna de um individual concreto em vez da lei que possibilita seu tipo, que cunhei a expressão “lei típica” para substituí-lo. Há, é claro, aquelas que são chamadas “leis causais” na realidade, assim como as leis aspectuais e leis típicas. A Teoria da Estrutura da Lei, no entanto, prefere chamá-las “relações causais” porque, embora sejam parte da ordem da realidade, são multiaspectuais e têm qualificações aspectuais. Além disso, não há relações causais nos três aspectos inferiores; elas surgem pela primeira vez no aspecto físico. Porém, embora fundadas no aspecto físico, há relações causais qualificadas por cada um dos aspectos a ele superiores. Por exemplo, a reprodução é uma causa bioticamente qualificada; a conclusão de certas premissas é uma causa logicamente qualificada; e a escassez de uma mercadoria é uma causa economicamente qualificada. [27]

NC, III, p. 106.

[28]

Animais também forma artefatos, e a descrição destes é um tanto diferente. Em prol da concisão, porém, tratarei apenas dos artefatos humanos. Para um tratamento completo da questão, veja NC, III, capítulos 2 e 3. [29]

Visto que o aspecto que qualifica a função guia de um artefato é aquele que qualifica o plano que orientou sua formação, a ideia de uma função guia não pode ser separada da ideia de propósito. A intenção, contudo, não é um propósito subjetivo que uma pessoa possa ter para com um artefato, mas o propósito integrado em seu plano. Assim, embora alguém possa usar uma cadeira como uma escada ou casar-se por dinheiro, os propósitos integrados nesses artefatos permanecem sendo social e ético, respectivamente, a despeito de terem sido pervertidos por um propósito subjetivo. Veja NC, III, p. 143, 574. [30]

Mais precisamente, as palavras do poema são linguisticamente qualificadas, ao passo que o evento da leitura do poema é esteticamente qualificado. Veja NC, III, p. 110, 111. [31]

No discurso habitual, o termo comum é “alma”. Mas os redatores bíblicos jamais usaram “alma” para referir-se ao centro da existência humana, mas sim para a vida do corpo — daí é precisamente a alma que morre. Mais frequentemente usam o termo “coração” para a identidade de uma pessoa; a sede e fonte do intelecto, vontade, talento, disposições, etc. humanas. Na perspectiva bíblica, portanto, a natureza humana não deve ser identificada com nenhuma de suas funções aspectuais. O coração humano subjaz a todas elas como o agente em operação nelas. Dessa forma, embora somente os seres humanos tenham funções ativas em todos os aspectos, eles não têm função qualificante. [32]

Há exemplos de comunidades que são sub-totalidades dentro de um todo capsular maior, mas isso jamais se aplica às grandes instituições da sociedade. Os exemplos são todos de organizações auxiliares formadas para servir a outra comunidade, tal como uma associação de pais e mestres para servir a uma escola, ou um grupo organizado para angariação de fundos para apoio de uma instituição de caridade ou de um hospital. [33]

Uma das exposições mais claras dessa ideia foi apresentada em seu livro Calvinismo, que são suas palestras Stone ministrada no Seminário de Princeton em 1898. [34]

Por outro lado, apontar para esferas de autoridade distintas significa que é possível ter as esferas permeando todas as instituições e práticas. Não é o mesmo que a distinção público-versus-privado, por exemplo. Um crime praticado em privado, numa igreja ou numa escola ainda assim se enquadra na esfera da justiça, sendo portanto responsabilidade do governo, assim como a permuta ou a venda que se dá dentro de uma família ou governo é o lado econômico dessas instituições. [35]

Foi-me possível realizar a pesquisa no tema deste ensaio durante meu ano sabático nos Países Baixos em 1981-1982, em razão de uma Bezoekersbeurs (Bolsa de Pesquisa), oferecida pela Organização Neerlandesa de Pesquisa Científica (ZWO).

[36]

O presente ensaio é o primeiro da série que compõe a obra The Legacy of Herman Dooyeweerd, editada por C. T. McIntire, e na qual diferentes especialistas e continuadores da tradição da filosofia cosmonômica apresentam uma dimensão distinta e complementar da obra de Dooyeweerd. [N. do T.] [37] Sobre Kuyper, veja P. Kasteel, Abraham Kuyper (Kampen: J.H. Kok, 1938) e McKendree R. Langley, The Practice of Spirituality: Episodes in the Public Career of Abraham Kuyper (St. Catharines: Paideia, 1984). [38] Praticamente não há literatura em inglês sobre o contexto de origem de Dooyeweerd. Uma exceção é William Young, Towards a Reformed Philosophy: The Development of a Protestant Philosophy in Dutch Calvinistic Thought Since the Time of Abraham Kuyper (Franeker: Weyer, 1952). Para mais sobre Dooyeweerd e seus colaboradores, veja Bernard Zylstra, “Introdução” em Contornos da filosofia cristã (São Paulo, Cultura Cristã: 2015). Veja W.F. de Gaay Fortman et al., Philosophy and Christianity: Philosophical Essays Dedicated to Professor Dr. Herman Dooyeweerd (Amsterdam: North: Holland, 1965). [39] Abraham Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã, 2008). [40] Veja Jan Veenhof, Nature and Grace in Bavinck, trad. Albert Wolters (Mimeo, n.d.). [41] Herman Dooyeweerd, “The Problem of the Relationship of Nature and Grace in the Calvinistic Law-Idea”, Anakainosis 1 (1979, no. 4): 13-15. Esta é a tradução de um excursus presente num artigo escrito por Dooyeweerd em 1928. [42] Karel Kuypers, “Herman Dooyeweerd” (7 de outubro de 1894 – 12 de fevereiro de 1977)”, in: Jaarboek da Academia Real de Artes e Ciências dos Países Baixos (1977), p. 3. [43] Ver Thomas E. Willey, Back to Kant: The Revival of Kantianism in German Social and Historical Thought, 1860-1914 (Detroit: Wayne State University Press, 1978). [44] Willey, Back to Kant, p. 135. [45] T. De Boer, The Development of Husserl’s Thought, trad. Theodore Plantinga (The Hague: Martinus Nijhoff, 1978). [46] Ou, como habitualmente traduzido, “suspensão de juízo”. [N. do T.] [47] Willey, Back to Kant, p. 102 ss. [48] Este exemplar consta presentemente na Dooyeweerd Collection, no Institute for Christian Studies em Toronto. [49] Vincent Briimmer, Transcendental Criticism and Christian Philosophy: A Presentation and Evaluation of Herman Dooyeweerd’s “Philosophy of the Cosmonomic Idea” (Franeker: Weyer, 1961), p. 150-151. [50] Com relação a suas semelhanças: ambos nasceram em Amsterdã nos anos iniciais de 1890, frequentaram o mesmo colégio secundário clássico e a mesma universidade, residiram por um tempo em Haia, estiveram em outras áreas de estudo antes de se voltarem para a filosofia (direito, no caso de Dooyeweerd; teologia, no caso de Vollenhoven), aceitaram as designações para sua alma mater em 1926, eram membros fundadores da Sociedade pela Filosofia Calvinista em 1935, aposentaram-se nos anos de 1960, e morreram em sua Amsterdã natal, em fins da década de 70. Para coroar tudo isso,

Vollenhoven era casado com a irmã de Dooyeweerd. Sobre Vollenhoven, veja The Idea of a Christian Philosophy: Essays in Honour of D. H. Th. Vollenhoven (Toronto: Wedge, 1973), que contém um ensaio escrito por Dooyeweerd acerca de Vollenhoven.