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Carta aos Romanos de Karl Bart por Koller Anders Carta aos Romanos de Karl Bart por Koller Anders Segundo a Quinta Edi

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Carta aos Romanos de Karl Bart por Koller Anders

Carta aos Romanos de Karl Bart por Koller Anders Segundo a Quinta Edição Alemã (impressão de 1967)

1ª Parte CAPÍTULOS DE I À VII

São Paulo 2008

Copyright Fonte Editorial Comércio de Livros Religiosos Ltda 5a Edição - 2008 - formato 14x21 cm - 854 páginas Traduzido da 5a Edição Alemã de 1967 de título Original “Der Römerbrief”

Capa Eduardo de Proença Tradução Lindolfo Anders Diagramação Alpha Design

ISBN: 85-86671-03-7 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora. (Lei nº 9.610 de 19.02.1998)

Todos os direitos reservados à Fonte Editorial Com.Liv.Rel.Ltda R. Barão de Itapetininga 140 lj4 Centro - São Paulo - SP Cep 01042-000 (11) 3151-4252 3237-4760 www.fonteeditorial.com.br email [email protected]

EXPLICAÇÕES PRELIMINARES Querida Eline: Você sugeriu que eu escrevesse alguma coisa, por exemplo, algo sobre teologia. Eu respondi-lhe que não valeria a pena e expliquei porque. Porém, assim como as palavras são frutos de pensamento, elas são sementes de futuras ações e, quiçá, de novas idéias. E as suas palavras de filha amiga, levaram-me a enfrentar a tarefa de registrar ruminações minhas sobre o estudo da Epístola aos Romanos, de Karl Barth. Por que a carta aos Romanos, e logo de Karl Barth? Novamente o fruto das palavras: Você me disse que achava difícil “deglutir” Paulo; e Barth disse que ficou radioso quando descobriu o grande apóstolo dos gentios na Epístola. Preciso contar-lhe primeiramente como conheci Barth: foi nos idos quando Jorge Cesar Mota era meu pastor; ele gostava de citar Barth em seus sermões, e era grande a celeuma! E este seu pai, ingênuo ancião da Igreja, nem sabia quem era o tal Barth. Não me foi difícil descobrir que os outros também não sabiam. Alguns nem lhe soletravam certo o nome e os outros diziam que era um ecumenista. Já os doutores citavam passagens mas, inquiridos mais de perto — não para investigação mas para minha instrução — deixaram patente que falavam de oitiva ou, quando muito, haviam lido comentários de segunda mão ou até da enésima. Fui a Livraria Ederle — que é especializada em obras teológicas católicas sem fechar as prateleiras a obras dos “Irmãos Separados”, e encontrei referências a Barth: Uma brochura (talvez umas cinqüenta páginas) intitulada, se não me engano, “CARTA A UM PASTOR DA ALEMANHA ORIENTAL”. Que adorável bilhete como diria, talvez, Otoniel Mota. Pareceu-me tão penetrante, divinamente inspirada e inspiradora, tão bíblica que, no meu entender, poderia ser o (67 livro da Bíblia, a ser inserido entre a carta aos Hebreus e a epístola de Tiago...

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Explicações Preliminares

(A propósito, não encontro o livrinho em minha estante; acaso o terei emprestado a alguém que dele cuida melhor que eu?) Depois foi o Catecismo de Heidelberg. Depois, mandei vir a grande dogmática. São 12 alentados volumes (quatro livros - 7731 págs.). Quantas revelações! O evangelho passou a ser de fato boa nova, e não “disangelho”. Tornou-se, para mim, clara e cristã a doutrina da predestinação; ficou irrelevante a teoria da evolução; racionalizou-se a explicação da origem do mal. A Bíblia lida e relida de capa a capa deixou muitas interrogações em minha mente; não dúvidas que abalassem a fé, porque esta, a graça de Deus supriu. Mas como compreender com o intelecto, que é também uma dádiva do céu? — Foi aí que Barth se agigantou como mensageiro do Evangelho de Deus. Inspirado, culto, corajoso, leal, fiel! Ora, a primeira obra de Barth foi o seu comentário à Epístola aos Romanos — “DER ROEMER BRIEF” — que levantou um mundo de admiradores e detratores. Alguns o combatem e outros o enaltecem. (Li algures que os mais eminentes pensadores católicos consideram Barth o Tomás de Aquino, protestante). A revista Times de New York, em seu necrológio a Barth, o classificou como o mais significativo pensador religioso do século. Outros há que, apoiando-o, o aviltam, do que o próprio Barth se queixava. Quis conhecer sua primeira obra; encontrei-a em alemão e inglês e eis que esta veio como 6ª edição, em 7ª impressão feita em 1965 e aquela como a 10ª impressão da “nova revisão”, datada de 1967. Parecem dois livros diferentes, apenas com as mesmas idéias gerais. Essa diferença verifica-se até nas traduções dos prefácios do Autor às várias edições (1ª à 5ª). No meu entender falta à tradução inglesa o vigor da análise, a explosão do argumento, a semântica quase onomatopaica das expressões alemãs; em inglês, o livro ficou mais polido, mais diplomático, mais suave; desapareceu a angulosidade germânica mas as estruturas ficaram menos encaixadas; os planos de apoio e as arestas de engaste foram convertidos em suaves pontos de tangência e a muralha quase monolítica da estrutura original parece, traduzida, estar em equilíbrio precário, sujeita a ruir se alguma força externa, não prevista, a solicitar... O próprio Barth talvez tenha tido uma impressão algo duvidosa da obra traduzida, quando no prefácio à edição inglesa diz “... partly owing to my insufficient familiarity with the English language”... “I have, unfortunately not been able to go through the whole of the translation in detail. Sir Edwyn (o tradutor senhor) has, however, led before me a fairly long section of his work and, after comparing it with the original German I am persuaded that he has

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Explicações Preliminares

performed his task with great skill. He has combined fidelity to the text with a considerable freedom of presentation and that is surely the mark of a good translator. Though a translation, however skillfully made, must be in some degree a transformation of the original, yet I feel certain that those who think and speak in English will have before them what I wished to say”. E assim fica explicado porque não mandei a você simplesmente, a tradução inglesa. Barth publicou a lª edição em 1918; a 2ª edição, totalmente revista, saiu em 1920. A terceira foi, praticamente, cópia da segunda e saiu a lume em 1922. O mesmo aconteceu com a 4ª edição (1924) mas no seu prefácio dessa edição o Autor confessa que muita coisa deveria ser re-escrita e pontos obscuros deveriam ser esclarecidos; “mas não vejo, ainda, como resolver essas passagens mais difíceis, por isso, mais uma vez, preciso mandar o livro sem modificá-lo”. Finalmente, em 1926, saiu a 5ª edição, revista, que foi repetida pela 6ª e última em 1928, todavia com reimpressões posteriores. Para melhor caracterizar o Autor vou tentar traduzir os seus prefácios à 1ª , 5ª e 6ª, edições, esta última da versão inglesa. Dos outros prefácios, para compreender melhor o Autor, valeria a pena ler o da 2ª edição, onde Barth explica aos leitores porque refundiu totalmente a primeira edição e, em seguida, entra em acres e irônicas críticas de caráter polêmico com os adversários e até com os que lhe batem palmas. Revela-se um pugnador agressivo em plena exuberância; tinha então 35 anos; diz que ele é um teólogo, escrevendo para teólogos... Eu disse mais atrás que “tentaria” traduzir. E por que somente TENTAR? Em primeiro lugar por que não sou teólogo; nunca fui nem pretendo vir a ser! Em segundo lugar porque o original é em alemão; e em terceiro porque Barth é quase intraduzível. Faz jogos de palavras e de idéias que não teriam sentido em português e cria expressões simples com significados sutis que exigem circunlóquios extensos para serem explicados. Como traduzir, por exemplo, “das Da-sem und Wie-sein”, ou então, como atribuir significação precisa, correta, ao título que o Autor dá à exegese de todo o capitulo XIV e metade do capítulo XV, da Epístola: “Die Krisis des freien Lebensversuchs”? O prefácio da tradução inglesa aponta algumas das dificuldades típicas encontradas por aquele “colegiado de tradutores” que, além de sua natural competência, contava com a possibilidade de recorrer diretamente ao Autor, sempre que tivesse dúvidas. Isto é, por si só, bastante para confirmar que sequer poderia pretender apresentar uma tradução. Todavia, o que você vai ler é a expressão mais fiel do que entendi; onde me pareceu que a exposição talvez ficasse mais compreensível com observa-

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Explicações Preliminares

ções adicionais, eu as acrescentei colocando-as entre colchetes, ou sob a forma de comentários no começo e fim das diferentes seções. Ainda algumas observações: 1. Barth cita, por vezes, trechos em latim e grego. Transcreverei as expressões e trechos em latim; omitirei o grego fazendo, porém, as referências que forem cabíveis. 2. Para as passagens bíblicas Barth usa sua própria tradução, junto com a “Bíblia de Lutero”. O Autor usa nas suas citações as palavras que lhe parecem mais adequadas ao sentido original e, não raro, constrói a sua exposição sobre elas. Por isso procurarei traduzi-las o mais fielmente que me for possível ainda que os versículos se tornem um pouco estranhos aos ouvidos habituados com a tradução de Almeida. 3. Nas referências a passagens sem citação expressa, por extenso, completarei o texto repetindo a passagem, neste caso usando a tradução de Almeida, revista e atualizada pela Sociedade Bíblica do Brasil em 1959 (antes das versões modernas ecumênicas...). Mãos à obra, pois! Vamos à tradução dos prefácios referidos. Maio,1977

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PREFÁCIO - KARL BARTH E SUA “CARTA” Dentre os livros que compõem a Bíblia, a Carta de Paulo aos Romanos é singular por ter sido, em toda a história das idéias cristãs, mas de forma ainda mais enfática na história do protestantismo, um constante veículo de reavaliação teológica. Como exemplo, basta lembrar a importância que teve o estudo da referida carta no processo de transformação do pensamento de Lutero. A ênfase dada à chamada teologia paulina na teologia protestante foi tanta que alguns teólogos humoristas chegaram a sugerir que, enquanto a teologia católica romana fundamenta-se nos evangelhos, a teologia protestante fundamenta-se no corpus paulino. De fato, os teólogos protestantes acabaram por produzir uma riquíssima seqüência de volumes de comentários à referida carta.1 Alguns poderiam até indagar a razão desta obsessão, que na verdade não se limita à Carta aos Romanos, mas acaba por caracterizar o output regular da teologia exegética como um todo. Como sugere Eugene Peterson, há cristãos que amam e curtem a Bíblia como os aficcionados por futebol. Assim como estes podem discutir acaloradamente por horas um único lance de uma antiga partida, os amantes da Bíblia podem sentar por horas a fio conversando, lendo e pensando a respeito de um único versículo. Assim como os amantes do futebol não se cansam de analisar o lance sob todas as perspectivas, e querem saber as opiniões de todos os especialistas, os aficcionados pela Bíblia têm o desejo de analisar um texto bíblico sob todas as perspectivas, e querem saber a opinião dos melhores especialistas.2 Entretanto, a Carta aos Romanos (Rdnzerbrief; 1919; 2ª ed. 1922) de Karl Barth não é somente “mais um comentário”. Trata-se de um dos mais influentes livros de teologia do século XX, o título que marca uma ruptura com 1

Veja, além dos comentários de Barth e Lutero, os de João Calvino, J. A. Bengel, Charles Hodge, Robert Haldane, D. G. Barnhouse, C. H. Dodd, E. Kaseman, M.Lloyd-Jones, C. E. B. Cranfield, Douglas Moo, entre outros que marcaram e/ou têm tido uma longa influência de determinados círculos.

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Cf. Eugene F. Peterson, Take and Read (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996), 79. 5

Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

a teologia oitocentista antecedente e o princípio de uma nova fase na história da teologia protestante. Curiosamente, foi a 2ª edição da obra que causou maior impacto. Ao ser publicada, causou espanto e indignação devido ao tratamento duro e crítico que dá às convicções liberais dominantes. O teólogo católico Karl Adam afirmou que a publicação do livro “foi como uma bomba lançada no playground dos teólogos”.3 Quando escreveu o Romerbrief pela primeira vez (ca. 1916-19), Barth era meramente o pastor socialista da igreja de uma pequena cidade Suíça, Safenwil. A primeira edição do Romerbrief dava claro testemunho do marxismo entusiasmado do jovem Barth.4 Da quieta Safenwil Barth acompanhou a 1ª grande guerra, e assistiu horrorizado seus antigos professores apoiarem a política bélica do governo alemão.5 Barth percebeu a fragilidade e a inadequação de suas otimistas convicções liberais ensinadas por estes mesmos professores, bem como a esterilidade de seus próprios sermões baseados nesta escola de pensamento. Barth já não conseguia mais aceitar aspectos essenciais da exegese, da antropologia, da ética e da filosofia da história liberais. Junto com Eduard Thurneysen, inseparável amigo, Barth passou a buscar uma nova teologia, iniciando um movimento ad fontes, voltando-se primeiramente para o estudo dos reformadores e da Escritura, e sendo simultaneamente influenciado por pensadores de vanguarda do seu tempo como, por exemplo, Soren Kierkegaard (1813 - 1855), cuja obra estava sendo publicada em alemão nesta época,6 Albert Cf. Clifford Green, “Karl Barth’s Life and Theology” em Karl Barth: Theologian of Freedom, ed. Clifford Green (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1991), 16. 4 Barth afirma, por exemplo, que um tempo virá em que “os dogmas marxistas agora em decadência irão se reavivar como verdades, no tempo em que a igreja socialista se levantará em um mundo tornado socialista”. A frase foi eliminada pelo próprio Barth das edições subseqüentes. Veja o comentário de Eberhard Jüngel sobre essa frase em Karl Barih: A Theological Legacy (Philadelphia, PA: Westminster, 1986), 96ss. No tempo em que trabalhou como pastor em Safenwil, Barth foi responsável pela organização de três sindicatos de trabalhadores e dava palestras sobre direitos trabalhistas. Minha opinião é, no entanto, que o Rõmerbrief demonstra que Barth já percebia, naqueles tempos da revolução russa, os inevitáveis futuros descaminhos do marxismo. 5 O documento em questão ficou conhecido como o “manifesto dos intelectuais alemães” e foi assinado por vários professores de Barth, como Adolf von Harnack, Wilhelm Herrmann, Hermann Gunkel e até mesmo Adolf Schlatter. 6 É importante notar que o próprio Barth afirmou posteriormente ter-se distanciado cada vez mais de Kïerkegaard. Cf. Karl Barth, “A Thank You and a Bow: Kierkegaard’s Reveilie” in Canadian Journal of Theology XI (1965), 4ss.; e Karl Barth. “Kierkegaard and the Theologians” in Canadian Journal of Theology, XIII (1967), 64-65. 3

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Schweitzer (XX)7 e sua ferrenha crítica à busca do Jesus Histórico(Von Reimarus zur Vrede; 190?) empreendida pelos teólogos do século XIX8 e Rudolf Otto (1869-1937), autor do célebre O Sagrado (Das Heilige; 1917). Destes autores Barth assimilou idéias importantes, como a impossibilidade de dissociar a mensagem do Novo Testamento de seus aspectos escatológicos, transcendentes e sobrenaturais, a infinita diferença qualitativa entre Deus e a criação, a absoluta alteridade divina e a inevitável confrontação inerente ao encontro entre Deus e o ser humano. A 2ª edição do Romerbrief é o documento histórico que marca o início desta nova teologia a que Barth chegou. Ela foi apelidada de “teologia da crise”, em parte por causa da crise sócio-econômica e cultural, fruto da guerra, que punha um fim no otimismo romântico do progressismo oitocentista, e em parte porque Barth insistia em falar na Palavra de Deus como juízo (gr. Krinein) divino contra toda tentativa humana de atingir algum sucesso espiritual por suas próprias forças (como, por exemplo, a instauração do Reino de Deus por meio de atos sócio-políticos). Genialmente, Barth percebeu e comunicou aos leitores estupefatos que toda e qualquer religião ou religiosidade é trabalho humano, o mais anti-divino de todas as obras humanas: o esforço para atingir a auto-justificação. A teologia gerada pela pena de Barth foi também apelidada de “teologia dialética” justamente por negar qualquer continuidade ou pontode-contato (Anknüpfungspunkt) entre Deus e a criação, entre o evangelho e a cultura humana. Qualquer possível contato teria de ser uma iniciativa exclusiva de Deus. Desta forma, Barth rejeitava todos os diferentes pontos-de-contato sugeridos pelas correntes teológicas pós-iluministas: o senso moral humano, auto-consciência do espírito, o sentimento humano de dependência absoluta de Deus, a racionalidade humana e a civilização, tanto quanto pontos-de-contato católico-romanos e mais conservadores como piedade e espiritualidade ou confiança e participação na igreja institucional. Karl Barth (1886 - 1968) foi, por isso mesmo, o mais importante teólogo do século XX, a mais importante figura na teologia desde Friedrich Schleiermacher (1768 -1834), teólogo que Barth procurou superar mas a quem,

Sobre Schweitzer veja, por exemplo, Charles R. Joy, “A Modern Man’s Quest for the HoIy Graal” in Albert Schwitzer: An Anrhology, ed. Charles R. Joy (New York, NY: Harper & Brothers, 1947), xix-xxviii; e Frederick Franck, Days with Albert Schweitzer (New York, NY: Henry Holt & Co., 1959). 8 Sobre a busca do Jesus histórico, confira, por exemplo, Harvey K. McArthur, In Search of the Historical Jesus (New York, NY: Clarles Scribner’s Sons. 1969); e Ben Witherington III, The Jesus Quest (Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 1995). 7

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no entanto, permaneceu conectado por diversas razões, e possivelmente a mais importante figura na história da teologia desde João Calvino. Barth, bem como seus colegas de movimento e seus discípulos, buscaram superar o imanentismo, o experiencialismo, o moralismo, o humanismo e o religionismo que consideravam características do pensamento teológico dominante do século XIX que Barth acusou de ternos provido com uma teologia do homem em vez de uma teologia de Deus. É preciso que o leitor mantenha em mente que a Carta aos Romanos representa a primeira fase da vasta obra de Barth. Sendo assim, este livro representa o pensamento ainda não completamente amadurecido do teólogo da Basiléia (agora professor em Gottingen e depois em Munster). Não é justo, portanto, fazer uma avaliação da teologia de Barth somente a partir desta obra. E preciso conhecer suas outras obras, notadamente a Dogmática Eclesiástica (Kirchliche Dogmatik; 1932 - 68), obra de proporções colossais deixada inconclusa após doze tornos. É preciso compreender, enfim, que Karl Barth expressou-se diferentemente em diferentes épocas. Nota-se nesta segunda fase do pensamento de Barth exemplificada pelo Romerbrief (considerando-se heuristicamente que a primeira fase, a fase liberal-socialista, teve fim com o Romerbrief) que Barth ainda está bastante dependente de outros autores que o antecederam e outros seus contemporâneos. Nesta segunda fase nota-se um caminhar paulatino em direção a uma teologia Heideggeriana, à semelhança do que aconteceu com seu colega de movimento, Rudolf Bultmann (1884 - 1976), também influenciado pela filosofia do grande Martin Heidegger (1889 - 1976). A teologia desta fase culminou com a publicação da Dogmática Cristã (Christliche Dogmatik; 1927), obra incompleta, abandonada por Barth quando este percebeu, em seguida, que esta não era a direção que deveria seguir. A produção e publicação subseqüente da obra Anselmo: Fides Quaerens Intellectum (1931) marca o início de uma nova fase, a terceira, no pensamento de Barth. Agora Barth propõe-se a abandonar quaisquer influências filosóficas, condena o racionalismo e a dependência filosófica da teologia que o antecedeu (bem como da sua segunda fase), e sugere que a razão deve estar a serviço da fé e a fé acima da razão. Para Barth, a teologia não tem que se justificar por meio de critérios não-teológicos, pois possui sua própria lógica e coerência interna. Barth recusa-se a aceitar qualquer estrutura, fundamento ou aparato conceptual que se sobreponha à forma e à linguagem do evangelho de Jesus Cristo. Desta forma, Barth foi-se distanciando dos seus aliados, notadamente de Bultmann que aos poucos dava origem a uma teologia existencialista. Barth descarta a chamada teologia natural e passa a afirmar o conhecimento positivo de Deus a partir da auto-revelação de Deus em Jesus Cristo, conforme nos atestam as Escrituras. Foi nesta época que Barth

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Prefácio - Karl Barth e sua “Carta”

entra em firme divergência com Emil Brunner. Esta terceira fase do pensamento barthiano foi marcada também pelo confronto com o nazismo que levaria Barth a perder sua cátedra e a ser expulso da Alemanha em 1935, e a fixar-se para o resto de seus dias em Basiléia, sua cidade natal. Barth opôs-se à neutralidade suíça e deu seu apoio às forças aliadas. Acima de tudo, Barth opunha-se à associação do Fuhrer, do destino glorioso da Alemanha e da raça e da cultura teutônicas com os propósitos e a revelação divinas. Em Basiléia, após o término da 2ª grande guerra, teve início a quarta e mais importante fase da teologia de Barth. E nesta época que Barth escreveu a maior parte da Dogmática Eclesiástica, além de vários títulos menores de grande popularidade. À medida em que trabalhava nesta sua obra-prima, a Dogmática Eclesiástica, Barth acentuava de modo implícito a descontinuidade de sua produção com seu trabalho da segunda fase, da teologia da crise, da Carta aos Romanos. Muitos críticos têm sugerido que o tipo de teologia que Barth desenvolveu na Eclesiástica não é consistente com a Carta aos Romanos e sua insistência na absoluta alteridade divina, e não teria sido legitimada pelo autor do Rõmerbrief. Barth, todavia, nunca aceitou que tivesse havido uma total ruptura em seu pensamento, e via a Eclesiástica em grande parte como o desenvolvimento natural da teologia apresentada no Romerbrief em que o único ponto-de-contato entre o Criador e suas criaturas é Jesus Cristo. Percebe-se que a intenção de Barth passou a ser um trabalho de reconstrução da tradição protestante reformada conservadora, um empreendimento que recebeu o epíteto de “neo-ortodoxia”, ainda que o termo tenha sido sempre rechaçado pelo próprio Barth. É possível destacar ainda uma quinta e última fase do pensamento barthiano, fase esta que marca o final da caminhada progressiva de Barth em direção de uma posição cada vez mais evangelical e que teve início após sua aposentadoria, tempo em que viajou a diversos países, inclusive os Estados Unidos, aumentando consideravelmente sua influência nos círculos teológicos mais conservadores, precisamente quando sua influência nos círculos mais progressistas e neo-liberais gradualmente desaparecia. Evidentemente, muitas idéias barthianas são ambíguas e questionáveis. Como acontece com toda mente genial, Barth cometeu alguns excessos e deuse o direito de fomentar algumas “heresias”. Ainda que alguns se esforcem, parece-me quase impossível duvidar, por exemplo, do universalismo de Barth.9

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O universalismo de Barth não se restringe ao aspecto soteriológico, isto é, a rejeição do chamado “terceiro ponto” do calvinismo do século XVII e a adoção da doutrina arminiana correlata, mas abrange o aspecto escatológico, trazendo Barth para a companhia de muitos liberais e de defensores da apocatástase sugerida por Orígenes (ca. 185-254) ainda no terceiro século da era cristã. 9

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Ao restringir todo possível conhecimento de Deus à sua auto-revelação em Jesus Cristo, Barth parece ter rejeitado qualquer forma de revelação geral de Deus, mesmo uma que se limitasse a servir de justificativa para a condenação da humanidade por Deus. As palavras de Barth sobre Rm 1:1 8ss no Romerbrief já davam alguma evidência disso. Alguns vêem na doutrina barthiana da eleição, que centra na pessoa de Jesus Cristo tanto a rejeição quanto a eleição divinas, mais uma indicação desse universalismo. Além disso, sugere-se com freqüência que a rejeição da teologia natural em Barth aponta para uma forma de fideísmo. Outras acusações ao pensamento de Barth têm sido feitas e tornaram-se populares, por exemplo, que o trinitarianismo de Barth é de caráter modalista (o Revelador, a Revelação, e a Revelacionalidade), apesar de Barth explicitamente condenar o modalismo e afirmar a distinção irredutível entre Pai, Filho e Espírito Santo na Dogmática Eclesiástica. Diz-se também que sua arquitetura triádica da Palavra de Deus (Jesus Cristo, o Logos Theou; a Escritura, a Palavra de Deus escrita; e o Evangelho proclamado pela igreja, a Palavra de Deus pregada) implica em uma atitude de menosprezo para com a Bíblia, que a aceitação do método histórico-crítico sugere a rejeição da doutrina da inspiração e da infalibilidade da Bíblia (ainda que Barth, em toda a Dogmática Eclesiástica, trate a Bíblia como verbalmente inspirada e doutrinariamente infalível, e tenha insistido que a utilização do método histórico-crítico não implica necessariamente na rejeição das doutrinas da inspiração e infalibilidade da Bíblia). Muitas das posições polêmicas de Barth podem ser explicadas, sugere G. C. Berkouwer (n. l903),10 por seu insistente cristocentrismo (que para alguns chega a ser um cristomonismo) e pela arquitetura trinitariana (para alguns, forçada) que Barth imprime nas suas exposições doutrinárias. Nem por isso deixou Berkouwer de sugerir que o absoluto triunfo da graça na teologia de Karl Barth torna vaga a seriedade da decisão humana na mesma medida em que o kerygma corre o risco de tornar-se um mero aviso feito pela igreja ao mundo, despido da admoestação vital de reconciliação com Deus e vida em santidade que sempre o caracterizou. A esta altura já está claro ao leitor que este prefácio não visa dar-lhe uma síntese do pensamento de Barth,11 nem visa oferecer extenso tratamento

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G C. Berkouwer é um dos mais influentes teólogos reformados do século XX. Professor da Free University de Amsterdam, Berkouwer produziu uma coleção de estudos dogmáticos de 18 volumes. Além de ocupar-se com outros temas, era também um especialista em Karl Barth, sobre quem escreveu três livros, dois deles tendo-se tornado clássicos dos estudos barthianos, a saber, Karl Barth (1936) e The Triumph of Grace in the Theology of Karl Barth (1954).

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biográfico,12 nem avaliação crítica demorada, O objetivo deste texto é tão somente estimular o leitor ao estudo da obra que tem agora em suas mãos, mostrando a sua importância na história da teologia, apontando para as controvérsias que o livro gerou e continua gerando, bem como para o caráter singular e a importância de seu autor para o estudo teológico. Para o leitor ávido de mais informações sobre Karl Barth, recomendamos que aguarde os futuros lançamentos desta editora, pois entre eles serão oferecidas obras críticas sobre o sistemata do amor livre divino, bem como outros títulos do teólogo da Basiléia. Ricardo Quadros Gouvêa

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Para este fim, sugiro a leitura de David Mueller, Karl Barth (Peabody, MA: Hendrickson, 1972); ou Colin Brown, Karl Barth and the Cristian Message (Chicago, IL: Intervarsity Press, 1969); ou ainda Hans Urs von Balthazar, The Theology of Karl Barth, trans. John Drury (New York, NY: Holt, Rinehart and Winston, 1971)

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A melhor biografia de Karl Barth é a de Eberhard Busch, Karl Barth: His Life from Letters and Autobiographical Texts, trans. John Bowden (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1994). 11

PREFÁCIO DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO Paulo falou aos seus contemporâneos como filho de sua época. Porém, a verdade muito mais importante é que como profeta e apóstolo do reino de Deus, ele fala a todos os homens de todos os tempos. As diferenças entre outrora e hoje, lá e aqui, devem ser observadas com o único objetivo de constatar que essas diferenças não têm o mínimo significado na essência das coisas. O método histórico-crítico aplicado ao estudo da Bíblia, prepara a mente o que é sempre útil; porém, se eu fora constrangido a optar entre esse método e a arcaica doutrina da inspiração eu, decididamente, escolheria por esta, pois ela é, de direito, maior, mais profunda e mais importante; porque a inspiração visa ao próprio processo do entendimento sem o que toda e qualquer estruturação do raciocínio se torna vã. Sinto-me feliz por não precisar escolher entre essas duas formas. No entanto apliquei toda a minha atenção para observar os fatos através da história, no espírito da Bíblia, que é o Espírito Eterno. O que outrora foi sério, ainda hoje o é. E o que modernamente é sério e não mero acaso ou extravagância, está, também, diretamente integrado com o que, em tempos remotos, foi importante. Nossas perguntas, se é que nos entendemos bem, são as perguntas de Paulo e, as suas respostas — se a sua luz nos brilhar, são as nossas respostas. “Sim, a verdade, de há muito, se achou; Espíritos nobres ela agasalhou. A antiga verdade. Segure-a”. A compreensão da história é um diálogo continuado entre a sabedoria de ontem e a de amanhã e que é sempre a única e a mesma. Respeitoso e grato, lembro-me aqui do meu pai — professor Fritz Barth, que foi sempre expressão viva dessa maneira de ver. É certo que todos que sofriam fome e sede de justiça nos tempos sequiosos de Paulo colocaram-se objetivamente a seu lado, e não

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Prefácio do Autor à 1ª Edição

ficaram à distância, meros espectadores. Talvez estejamos entrando em tempos igualmente estéreis. Se eu não estiver enganado, então é possível que já agora possa este livro prestar o seu modesto serviço. Há de se sentir, ao lê-lo, que ele foi escrito com o júbilo de descobridor. A poderosa voz de Paulo foi novidade para mim e quer parecer-me que ela também o será para outros. Porém, ao chegar ao fim da obra ficou claro para mim que muito resta por dizer e por descobrir. Portanto, trata-se de trabalho iniciador que pede a cooperação de outros. Oxalá muitos, melhor preparados, se apresentem para também cavarem poços. Mas, se acaso me engano na jucunda esperança do surgimento de movimento intenso e geral de indagação e pesquisa da mensagem bíblica, então este livro tem tempo para esperar. A própria Epístola aos Romanos, espera! Safenwil, agosto, 1918

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PREFÁCIO DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO O continuado sucesso do livro, tanto do ponto de vista literário quanto às idéias expostas, dá-me o que pensar, como autor, e pareceu-me que seria útil ao leitor colocá-lo a par das minhas ponderações. Vejo-me postado entre duas questões: Teria eu, ao escrever o livro, dito tanto a ponto de fazer arder as orelhas das gentes? Ou teria eu dito aquilo que depois da guerra e especialmente na Alemanha estava, por assim dizer, no ar, e que foi agradável a certos senhores do mundo de nossos dias, para que eu fosse castigado, a ponto de ser erigido em moda bastante em voga e, ainda mais, fosse punido com o surgimento de um verdadeiro “Barthianismo” qual o “Ritchlianismo” no tempo de Bismark? Parece até que tudo o que escrevi contra a presunção humana — e por demais humana — sobretudo sobre a vanglória religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito, aplica-se agora a mim mesmo, quando na realidade, ao escrever o livro, tencionei nadar contra a correnteza; bater contra portas cerradas; não fazer favor a quem quer que fosse, ou a muito poucos. Será que me enganei? Quem conhece os seus contemporâneos e quem conhece bem a si mesmo? Não é para ficar ressabiado ao ver quais os livros teológicos que têm, junto com o nosso, repercussão semelhante? Acaso me equivoquei a respeito do mundo e de mim mesmo, tendo sido o servo do público como mau teólogo, NOLENS VOLENS e engana-se porventura o leitor amigo que toma por espiritual aquilo que para Paulo, Lutero e Calvino seria apenas um produto dos tempos e para Nietzsche, Kirkegaard e Cohen, seria apenas decocção? Se este for o caso, não me resta senão reconhecer o juízo que de mim se faz pelo próprio sucesso da obra, que é de conhecimento público. E por que não seria esta a interpretação verdadeira? Mas se não for assim, então nem eu nem o livro a merecemos.

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Prefácio do Autor à 5ª Edição

No prefácio à primeira edição eu escrevi que este livro poderia esperar e isto me foi atribuído por vanglória; então agora, talvez, tire-se vingança dessa prosápia no fato de que o livro, cm contraste com muitos outros melhores, não precisou esperar antes foi julgado com os aplausos que lhe foram dados junto com outros, (o que também é vaidade). No mundo toda a carne é como a erva; esta é uma verdade mais evidente nos sucessos estrondosos que nos casos de relativo insucesso. Aí ficou exposta a primeira questão do meu dilema e eu bem gostaria que meus leitores mais generosos, juntamente comigo, tomassem consciência dela e participassem de sua carga; quando mais não seja, para que eles, como também eu, não se admirem se, algum dia, ficar evidente que a erva murchou e a flor caiu. A segunda questão é ainda mais séria. Poderia dar-se o caso de que todas as objeções levantadas na primeira questão fossem procedentes e ainda assim, a despeito de todos os erros e vaidades do mundo que lhe fossem inerentes, por força de JUSTIFICATIO FORENSIS, o livro, pelo que nele foi visto e dito (por mim e simultaneamente de forma diferente por outros, independentemente), tivesse trazido à luz algo que a teologia e a Igreja de nosso tempo precisassem ouvir e por que devessem orientar-se, o que de fato aconteceu amplamente. Em que posição fico, então? E comigo, outra vez, como fica o leitor amigo? Ou que hei de dizer se acaso agora, sem mim e até contra mim houver surgido algo de verdadeiro, justo, necessário por cujo avanço, aprofundamento e efetivação sou tido como responsável segundo (para minha consternação, confesso) parece ser o caso? Quando escrevi o livro, na longínqua paz da minha casa paroquial no rincão do Aar, estava animado apenas das intenções de todo escritor zeloso: apresentar um trabalho correto e de valor; não tinha idéia de que a coisa fosse tão longe; que a voz do Apóstolo Paulo, como a ouvi, fosse levantar tão grande eco; que, com este livro, eu fosse dar a tanta gente séria o direito de me apertar no canto com suas perguntas pelas implicações, conseqüências, aplicações e até pela simples reiteração do que aqui foi exposto à luz. Como se, para isto, fora eu o homem! O almirante Tirpitz escreve em suas memórias que é fácil içar uma bandeirinha no topo de um mastro mas difícil é mantê-la depois com honra. Eu juntaria: é ainda mais difícil mantê-la honrada no alto da haste — mesmo que não se cogite de trazê-la para baixo.

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Prefácio do Autor à 5ª Edição

Este é o meu caso; muitas vezes, quando volto a me compenetrar que tendo escrito o livro, preciso elaborá-lo mais, chego a pensar que talvez fosse melhor que nunca o tivesse escrito, especialmente agora quando, da noite para o dia, o livro me trouxe, mal armado que estou, a responsabilidade da cátedra universitária onde é muito concreto o desafio diário de levar o arado cuidadosamente para frente, mas onde, também, de dia para dia, e de forma igualmente concreta, é nos lembrado quão infinitamente pesado é arar sozinho para cultivar no campo do ensino cristão a necessária amarga “inovação”. Se for lícito ver o “sucesso” da minha “Carta aos Romanos” deste lado mais favorável e se apesar de tudo quanto, com razão, se disser contra o livro, o êxito significar que uma brecha, ainda que muito modesta, foi aberta na muralha da aflição interna e externa do protestantismo moderno, quão vergonhoso e opressivo é para mim e para meu leitor, especialmente o leitor amigo, compreensivo, companheiro, que não sejamos, neste instante, gente completamente diferente para dizer e agir conforme agora deveria ser dito e feito, com golpe contra golpe, para fazer jus à necessidade e à esperança da Igreja, a menos que tudo tenha sido uma Fata Morgana. Acabo de ler os versos que um pároco de Hessen — a quem não conheço — dedicou a mim: (Igreja e Mundo, janeiro 1926) “Deus precisa de homens, — não gente com frases altissonantes mas cães, bons farejantes, que farejem no presente o odor da eternidade, que inda que muito escondida, seja caçada, seguida, sem cansaço, à saciedade!” Sim, Deus precisa ...! E um tal DOMINI CANIS gostaria de ser; oxalá pudesse eu conquistar para a “ordem” todos os meus leitores! Crítica mais perfeita do que esta não posso imaginar para meus livros. Mas também nenhuma outra mais crítica! Pois quem pode acrescentar um côvado à sua estatura? E assim, também visto deste lado, o “sucesso” é de fato um julgamento ao qual estamos sujeitos. É preciso ter em mente esses dois significados da problemática realidade. Eu desejo que justamente o meu leitor perceba comigo o rigor e a bondade que nos levam, juntos, a considerar que temos um Senhor.

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Prefácio do Autor à 5ª Edição

Para aqueles que não querem deixar de ser a Igreja Militante do século 20, não será possível contornar qualquer ameaça ou aflição semelhante à que pesou sobre os cristãos protestantes e teólogos do século 16. Quanto a mim, é bastante lembrar-me da dialética do conceito de “sucesso” para sentir uma forma dessa aflição. MONITI DISCAMUS! Era o que eu queria dizer antes de soltar o livro desta vez. Munster, Westphalia fevereiro, 1926

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PREFÁCIO DO AUTOR À 6ª EDIÇÃO (Traduzido da versão inglesa) Os dois anos e meio que transcorreram desde a publicação da 5ª edição deste livro, aumentaram a distância que me separa do que escrevi originalmente. Não que ao expor as Epístolas Paulinas, ou qualquer outra parte da Escritura Sagrada eu quisesse agora dizer algo diferente do que escrevi então. Eu ainda reteria o que então causou um trauma tão severo. Enquanto ainda não for reconhecido que a ofensa precisava ser feita e que era justificável, ou enquanto eu não estiver convencido de que errei, não vejo razão para deixar de ofender e, neste caso, porque não hei de fazê-lo na forma original? Todavia não quero que o livro seja publicado mais uma vez sem dizer que se eu tivesse que expor novamente a Epístola e estivesse eu resolvido a fazer a mesma coisa, eu haveria de expressá-la de forma bem diferente. Eu descobri no decorrer do tempo, que existe em Paulo, de um lado, muito maior variedade e de outro muito maior monotonia do que lhe atribuí então. Por isso muito teria que ser drasticamente reduzido e muito teria que ser expandido. Muito teria que ser dito com mais cuidado e mais reserva; contudo, muito deveria ser expresso com maior clareza e maior ênfase. Grande parte da estruturação do livro se deveu à minha situação particular e também à situação geral da época. Isto teria que ser removido. Por outro lado, muitos meandros da Epístola, que então eu não notara, deveriam ser trazidos à luz. Os que lerem o livro devem lembrar-se também do fato simples que hoje estou sete anos mais velho, e todos nossos cadernos de exercício precisam, obviamente, ser corrigidos. Ainda mais; depois que saiu a 5ª edição embarquei na publicação dos meus “Prolegomena da Dogmática Cristã”. Isto significa que se aliviou a responsabilidade que pesava sobre o primeiro livro e também que uma crítica séria do primeiro deve ter em conta o que está dito no segundo, um livro mais completo, ao qual tentei dar um tratamento mais amplo e maior precisão. Semelhantemente, aqueles que tendo lido o primeiro livro, ainda tenham confiança em mim, se desejarem maior análise das questões aqui levantadas

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Prefácio do Autor à 6ª Edição

queiram notar que a segunda obra, bem como os outros livros meus, são aditamento ao primeiro trabalho. Outro dia apareceu a seguinte nota, em Neuendettelsau: “De Karl Barth, pode-se dizer que ele está deslizando para a posição de um homem de ontem”. (Die Freimund* de 8 de novembro de 1928). Sim, sem dúvida! Os mortos andam depressa, mas os teólogos bem sucedidos, ainda mais depressa. (Ver prefácio da 5ª edição). Como poderia eu ter escrito este livro se eu não fosse, tanto em teoria como em prática, um homem “pré-parado” antes de ser um “homem de hoje”? Será que eu trato (conforme me acusam) o “tempo” e a “história” tão levianamente a ponto de magoar-me quando me dizem que meu dia tem um entardecer e que se tornará ontem, transato? Assim avisado tenho, contudo, a alegria de ainda fazer algumas correções e ajuntar algumas explicações; contente por poder rogar aos meus leitores amigos, ainda que achem (e talvez com razão) que fora melhor que eu não fizesse correções, que não escrevam o meu obituário antes de que se prove que aquilo que escrevi está esgotado e que o ontem existente SUB-SPECIE AETERNI também se manifestou no tempo devido. Munster, Westfalia 1º Domingo do Advento, 1928 * “Boca-livre”

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AB EXTRA, AD REM Chegou às minhas mãos um opúsculo, excerto da revista “Hora Presente”, divulgação de um artigo sobre a infiltração do comunismo na Igreja Católica Romana. O autor é um sacerdote católico, natural da Polônia, e professor universitário no Chile. Logo de início tenta mostrar a vasta extensão da efetiva (ou pretendida) infiltração do Marxismo no clero Romano e diz que ela se deu através dos pastores protestantes, estes, por sua vez, fortemente influenciados por Barth que, segundo o articulista, teria sido membro do “partido” e cujo pensamento seria paralelo, ou muito semelhante ao de Marx, em detalhes, citando como notório, este: Marx prevê a extinção da instituição do Governo na Sociedade marxista e Barth prevê a extinção da Igreja mediante o advento do “Reino dos Céus”. Ora, não tenho a mínima intenção de fazer a defesa de Barth como não tenho qualquer inclinação para o comunismo; (você o sabe muito bem.). Todavia, a acusação que, assim, é assacada a Barth vem de homem culto; teólogo como Barth o foi; fez altos estudos não só em Varsóvia como também em Roma; é professor universitário e, fora de dúvida, revela erudição, cultura teológica e muita familiarização com os pensadores modernos, notadamente os europeus. Por isto, e com as devidas reservas, quero aqui registrar o fato para dizer o que penso a respeito. Não se pode julgar a crítica sem saber de onde ela procede, e isto vale tanto para o louvor como para a detração, (foi, aliás o que Barth escreveu em um de seus prefácios). Miguel Poradowski, o autor do artigo, é católico tradicionalista e polonês; são duas qualidades quase redundantes. Houve tempos em que me parecia que, “embora todo católico não fosse polonês, todo polonês era católico”; e católico extremado, intransigente, indo às raias do fanatismo. Esta foi a minha impressão na juventude e hoje me parece que, embora essa maneira de dizer seja caricata ela serve para acentuar verdade incontestável: O catolicismo está profundamente arraigado nas tradições do povo polonês.

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Ab Extra, Ad Rem

As tribos polonesas, reunidas durante a dinastia Piasta, emergiram dos povos pagãos, seus vizinhos, por volta do ano 1000, no reinado de Miesko I que, entre as influências orientais e da civilização ocidental optou por esta, colocando seu novel Estado sob a proteção direta da Santa Sé. A Polônia conservou-se por longos séculos uma fiel seguidora da Igreja Romana e sob o reinado de Wladislaw II (Jaciello) no ano de 1400 obteve o feito glorioso da “conversão pacífica” da última grande massa de pagãos remanescentes na Europa. Por ocasião da reforma protestante, sob Segismundo I, o país experimentou forte influxo protestante que deu origem a exuberante renascimento de idéias que, todavia, entravam em choque com a longa tradição católica e contrariavam o espírito feudal da cavalaria nobre, consagrada pela Igreja. Este surto protestante foi extremamente vigoroso e sob sua influência a Polônia gozou do seu primeiro apogeu poético (Apud Enciclopédia Britânica). Todavia, a aceitação do protestantismo teve cunho popular e raros foram os membros da nobreza e da “alta” sociedade que a ele aderiram. Quando Segismundo II subiu ao trono, homem culto e profundamente nacionalista (foi o primeiro rei polonês que deixou de usar o latim como língua oficial), tentou criar uma “Igreja da Polônia”, semelhantemente à “Igreja da Inglaterra”; por conveniência política aliou-se ao clero, afastando o protestantismo (Édito de 1550), sem, todavia, eliminá-lo. Em 1565, com o advento dos Jesuítas, a Polônia foi reconduzida à Santa Sé. O rei aceitou os postulados do Concílio de Trento; os “hereges” mais extremados foram banidos; o protestantismo como poderoso fator criativo intelectual e literário foi exterminado; e o declínio da Polônia começou (ainda Apud Enciclopédia Britânica), muito lento, mas inexorável, deixando por herança um glorioso passado, um povo indômito, absolutamente intransigente em seu orgulho nacional e em seus princípios de fé. Só o futuro dirá como essa nação heróica há de se livrar do jugo moscovita e como guardará a fé. O que, porém, hoje se vê, é que os caracteres forjados antes da hecatombe da segunda guerra mundial são irredutíveis inimigos do protestantismo por convicção e tradição; do comunismo que lhes roubou a soberania nacional; do ecumenismo, quiçá, por verem nele um convite ao afrouxamento dos princípios de ortodoxia católica aos quais se afizeram durante 10 longos séculos. É pois natural que Miguel Poradowski combata o comunismo e o relacione com o protestantismo, o que no passado não por demais remoto, esteve muito em voga entre o clero católico do Brasil, conforme bem o comprova uma

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pastoral de setembro de 1955, do então Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos, na qual afirma que “tanto o comunismo como o protestantismo são agentes” de imperialismos estrangeiros, etc. É também compreensível que o articulista atribua aos protestantes a instrumentalidade do mal, apresentando os seus pastores como os batedores que abrem o caminho do “desencaminhamento” do virtuoso clero católico. Todavia, é aí que começa a surgir a falácia do argumento; pois, se o marxismo é materialista e ateu, os protestantes, ainda que considerados mais modernamente “irmãos separados”, são para os católicos, tradicionais hereges e apóstatas. Seria, pois, de esperar que o pensamento do clero protestante tivesse entre o clero católico, menor acolhida que a filosofia dos seguidores de Marx. Seriam, acaso, os sacerdotes católicos tão simples que, amolecidos pelo “espírito ecumênico” do Vaticano II, confundindo alhos com bugalhos, abrissem as portas, justamente aos maus protestantes, aqueles que pregam a humanização do cristianismo em vez de pregarem a cristianização da humanidade? E por que atribuir a Barth a origem de todo esse mal? Parece-me que há boas explicações para isso. O sacerdote articulista, em manobra hábil, ataca simultaneamente todas as frentes. Denuncia, por insinuação, o ecumenismo como demolidor da firmeza do caráter católico e, por associação, o Concílio Vaticano II como seu pai adotivo e seu comparsa, introduzindo na Santa Madre Igreja costumes e liturgias que não coincidem com a tradição bem firmada; denuncia os protestantes como solapadores da boa ortodoxia eclesiástica e social e Barth, como fonte inspiradora, mentor desse trabalho de sapa. Eis aí o sucesso da estratégia: Quatro inimigos envolvidos e atingidos na mesma escaramuça. Obra igualmente digna de um bom e tradicional clérigo católico e de um intransigente cidadão polonês. É Barth o mais atacado: Também isto é explicável; o autor da exegese da Carta de Paulo aos Romanos é o mais vigoroso acusador da Igreja Romana; desmascara a idolatria dessa Igreja sem a paixão do iconoclasta e com a extraordinária autoridade que lhe advém pela sinceridade com que ataca o mesmo mal nos arraiais protestantes; é, pois, novamente uma questão de estratégia desacreditá-lo; colocá-lo ao lado do materialismo ateu; esta política beneficia Roma pois visa a desviar a atenção dos próprios correligionários do atacado, das grandes verdades que proclama; em suma: tenta esvaziar o mais excelente teólogo que o protestantismo já produziu. Diz o articulista que Barth, é verdade, permanece em nível teológico e que os outros marxistizantes descem ao nível político. E não estaria, justamente aí, a pequena e grande diferença? Afinal, o próprio Cristo ensinou o amor

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fraternal entre os homens e, com tal empenho, que os apóstolos e primeiros discípulos passaram a ter seus bens em comum... Convém, ainda, notar que os paladinos da marxistização gostam de desfraldar boas bandeiras para, abrigados por elas, promoverem sua causa. Ora, que melhor bandeira haveria do que a profligação do endeusamento das coisas do mundo para camuflar um mistificador (consciente ou inconsciente) do mito moscovita ou cubano? É a própria honestidade expositiva de Barth que anima a tais oportunistas, pois podem nele escolher o que mais convier, ignorando intencionalmente o contexto. Não teria sido justamente a esses tais que Barth se referia quando escreveu que sua obra teria, talvez, agradado a “certos senhores do mundo”, especialmente na Alemanha de após a primeira guerra? Nenhuma marxistização encontrei até agora, nem na Dogmática nem na “Carta aos Romanos” até o versículo 10 do 4º capítulo, ponto onde me encontro, nesta data. Poder-se-ia entender como sendo tendência ao marxismo a “carta a um Pastor da Alemanha Oriental” onde Barth recomenda a convivência, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, mas instando sempre na fidelidade do servo de Deus; conforme já mencionei, não tenho essa obra em minha biblioteca e, confesso, só pretendo voltar a ela depois que completar a interpretação da “Carta aos Romanos” a que me propus. Tenho para mim que aquilo que Barth escreveu vale em si mesmo, qualquer que seja a posição que haja tomado ulteriormente, ou qualquer que tenha sido a sua tendência política; todavia, essa posição, ainda que futura com relação a obra, pode ter as suas raízes lançadas já, na obra que a antecedeu e a sua inclinação política há de ter influência na obra ou vice-versa, a obra pode ter levado a ela. Portanto, tomando ciência da acusação que seriamente se faz a Barth (ainda que a pureza de origem dessa acusação possa ser posta em dúvida) convém que a leitura de sua obra e a sua interpretação sejam feitas com a sensibilidade aguçada para esse aspecto, a fim de que não nos tornemos inocentes úteis, nem mesmo inúteis, eventualmente promovendo ou favorecendo uma causa que não é nossa. Todavia, ao nos precatarmos, sejamos, também prudentes. Ninguém pode evitar que se tirem conclusões viciosas ou maldosas, calcadas em predisposições, inclinações ou interesses pessoais. Nisso convém que recordemos o que Cristo ensinou como bendição e lamento: “bem-aventurados sois vós quando vos injuriarem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa; exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mat. 5, 1112); e também em outro lugar: “ai de vós quando todos os homens, de vós, disserem bem”. (Luc. 6,26). Continuemos pois, a tarefa... novembro, 1977.

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APRESENTAÇÃO Barth analisa o texto subdividindo cada capítulo em seções, comentando os versículos isoladamente ou em grupos. A identificação das passagens bíblicas é feita pela numeração dos capítulos e versículos na forma usual. Referências e passagens da própria carta aos Romanos, dão apenas capítulo e versículo.

— Capítulo I —

O primeiro capítulo foi dividido em duas partes: “INTRODUÇÃO” e “A NOITE”. • Introdução - Vs. 1 a 17 - Abrange o “prefácio” de Paulo aos leitores da Epístola (1 - 7); trata de assuntos de caráter pessoal (8 - 15); fala do tema da carta - (16 - 17). • A Noite - Vs. 18 a 32 - O A. subdivide esta parte em: “Origem” (18 - 21) e “Operação” (27 - 32).

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Capítulo I

Introdução (1 - 17) Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7) Vs. 1 - 7 Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para Apóstolo e escolhido para o evangelho de Deus, o qual há muito fez anunciar através de seus profetas, nas Escrituras Sagradas, tratando de seu Filho, nascido da estirpe de Davi segundo a carne, poderosamente estabelecido como Filho de Deus, segundo o Santo Espírito, pela sua ressurreição de entre os mortos — Jesus Cristo, nosso Senhor por intermédio de quem recebemos graça e apostolado, para criar obediência à fidelidade de Deus, confirmada no evangelho, entre todos os povos, entre os quais estais, como chamados de Jesus Cristo, para honra e glória de seu nome — a todos amados de Deus, chamados para a santidade, sobre vós, a graça e a paz de Deus, nosso pai, e o Senhor Jesus Cristo. “Paulo, servo de Cristo Jesus chamado para apóstolo”. Quem fala aqui “não é um gênio entusiasmado consigo mesmo” (Zuendel) porém um mensageiro cativo da missão que recebeu. Não é senhor mas servo, ministro de seu rei. Seja Paulo quem ou o que for: não interessa. O conteúdo de sua mensagem não está nele mas vem de lugares estranhos, longínquos, inconquistáveis, inatingíveis. Paulo não pode considerar a sua vocação para o Apostolado como uma ocorrência casual, momentânea, de sua vida; ela é fato paradoxal que o acompanha desde o primeiro momento de sua existência e permanecerá com ele até o fim, à parte de sua identidade pessoal (Kierkegaard). Todavia, Paulo é e continua o mesmo. Todos os homens lhe são, em essência, próximos; porém, em contradição consigo mesmo, e diferentemente de todos os homens, ele é também aquele que foi chamado, e enviado por Deus. Portanto, fariseu? [Fariseu envolve, originalmente, a idéia de separação — os fariseus consideravam-se separados dos demais membros da comunidade judaica, por sua santidade].

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— Sim, fariseu, ainda que de ordem superior; especial, separado, individualizado [particularizado], diferente. Em carne e osso, conforme todos; pedra entre pedras. Mas em sua relação com Deus é caso SUI GENERIS. Visto como apóstolo, ele não tem relação estruturada com a comunidade humana nem com a realidade histórica, e portanto ele é apenas possível como exceção, ou melhor, ele é uma exceção impossível. O direito a esta posição e a credibilidade de suas palavras apoiam-se em Deus e são, [o direito e a credibilidade] por isso, tão pouco compreensíveis como o próprio Deus. Esta é a razão pela qual o apóstolo tem bastante ânimo para exigir que lhe ouçam e a coragem de abordar os outros, sem receio de se enaltecer ou de se aproximar demais deles. A sua autoridade vem do fato que ele não quer e não pode apoiar-se senão na autoridade de Deus. O recado que Paulo tem para entregar é o “Evangelho de Deus”; é transmitir aos homens a inaudita, boa e alegre verdade de Deus! Justamente de Deus! Não se trata de mensagem religiosa, ou de notícia ou instrução sobre a divindade ou a divinização do homem, mas da mensagem de um Deus totalmente diferente do qual o homem, como tal, nunca virá a ter conhecimento, ou ter parte, mas de quem, por isso mesmo, vem a salvação; não é algo a ser entendido diretamente, uma coisa a ser compreendida, de uma vez, entre as demais coisas, mas é a Palavra sempre nova que precisa ser percebida sempre de novo, com temor e tremor; é a Palavra sempre reiterada, da origem de todas as coisas. Não se trata de vivência, experiência ou descoberta; porém, ainda que fosse algo disso, seria então simples conhecimento objetivo daquilo que nenhum olho viu e ouvido algum jamais ouviu. Trata-se de comunicação que não demanda, apenas, que dela se tome conhecimento, mas impõe que dela se participe; ela não requer mero entendimento, mas compreensão; não somente compaixão mas cooperação; é comunicação que pressupõe a existência da fé da qual é também geratriz. E a mensagem de Deus “de há muito anunciada” e não uma idéia repentina de agora; essa mensagem é o sentido, o pomo amadurecido, da própria história; é o fruto dos tempos e qual semente da eternidade é o cumprimento da profecia. É a palavra pronunciada pelos profetas de antigamente que agora se torna perceptível e percebida. Esta é a essência da mensagem confiada ao apóstolo; ela é a garantia do seu discurso e a sua crítica. Falam, agora, as palavras dos profetas, que há muito estavam fechadas sob chave: ouve-se hoje o que foi anunciado há séculos por Jeremias, por Jó, pelo pregador Salomão; pode-se pois ver e entender o que está escrito. Temos agora “um acesso a todo Antigo Testamento”. (Lutero).

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É sobre o rastro da história, assim revelada e esclarecida, que está postado aquele que fala na Epístola, e “logo de início ele se nega a honra da originalidade.” (Schlatter). “Jesus Cristo, nosso Senhor”: este é o evangelho e o sentido da história; neste nome encontram-se e separam-se dois mundos; interceptam-se dois planos. Um conhecido e outro desconhecido. O plano conhecido é o mundo da carne, dos homens, do tempo e da matéria, o nosso mundo que foi, originalmente, criado por Deus, mas perdeu a sua unidade com ele e, havendo decaído, necessita de redenção. Este plano conhecido é cortado por outro, desconhecido dos homens, que é o mundo do Pai, o mundo da criação original e da redenção final. A relação entre nós e Deus, entre o nosso mundo e o mundo de Deus, entre os dois planos que se interceptam, não é evidente por si só, porém se revela no ponto de destaque da linha de interseção: Jesus! [É Jesus que torna visível a relação entre nós e Deus; é apenas em Jesus que esse relacionamento pode ser visto]. É o Jesus de Nazaré; o Jesus “histórico” que nasceu da linhagem de Davi, segundo a carne, e que, em sua função histórica, significa o ponto de divisão [o ponto de tangência] entre um mundo nosso conhecido e outro, nosso desconhecido. O tempo, as coisas, os homens, de nosso mundo sobressaem acima dos demais tempos, coisas e homens, não por si mesmos, mas na medida em que se aproximam daquele ponto peculiar que traz à luz a linha oculta da interseção entre a temporalidade e a eternidade, entre a matéria e a origem, entre a humanidade e Deus. Os anos 1 a 30 da nossa era, são de revelação e descobrimento. Estes são os anos durante os quais, volvendo a vista para Davi, vemos uma nova era, diferente; vemos a finalidade, a razão de ser, de todos os tempos conforme os desígnios de Deus. Todavia o destaque, o privilégio desse tão pequeno período da história temporal, sobre todos os tempos, épocas e eras da história, desaparece porquanto ele mesmo proporciona aos demais períodos, épocas e eras a possibilidade de se transformarem também em tempos de revelação e descoberta. [Pela universalidade e “extra-temporalidade” da graça revelada por Emanuel. — Deus conosco]. O ponto central da linha de interseção dos dois planos, semelhantemente ao plano desconhecido que ele anuncia [e ao qual, também ele pertence] não se expande sobre o plano do nosso mundo; [antes é um ponto de absorção, que absorve a nossa história como o vórtice de um sumidouro]. O efeito de irradiação, ou melhor, de sorvedouro, de vacuidade, que se nota na história do nosso mundo quando ocorre o contato com o mundo desco-

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nhecido de Deus, não deve ser confundido com esse mundo desconhecido, ainda que seja identificado ou identificável com a vida de Jesus. À medida que o nosso mundo [temporal] for tocado pelo outro mundo [de Deus] através de Jesus, deixa ele de ser histórico, temporal, material, diretamente perceptível: Jesus é “poderosamente estabelecido como Filho de Deus, pelo Espírito Santo, através da sua ressurreição de entre os mortos”. Este estabelecimento de Jesus é o seu verdadeiro significado e como tal não pode ser verificado historicamente. Jesus, como o Cristo, o Messias, é o final dos tempos. Ele só pode ser entendido [compreendido], como paradoxo— (Kierkegaard), como vencedor — (Blunhardt), como pré-história. (Overbeck). Jesus, como Cristo, é o plano desconhecido que corta o nosso, perpendicularmente, vindo do alto. Do ponto de vista histórico, Cristo só pode ser entendido como problema, um mito; ele traz o universo do Pai, do qual nada conhecemos, nem podemos vir a conhecer, através da história. A ressurreição de entre os mortos, porém, é o ponto de inflexão, de mudança de rumo. É o ponto estabelecido de cima e visível de baixo. A ressurreição é a revelação, o descobrimento de Jesus, como Cristo, e nele o aparecimento e o conhecimento de Deus; a origem da necessidade de dar a honra a Deus e de contar com o desconhecido e invisível em Jesus, dando-lhe as credenciais de Consumador dos tempos, Paradoxal, Pré-histórico, Vencedor. Na ressurreição o novo mundo do Espírito Santo toca o velho mundo carnal qual tangente roçando o círculo, não o tocando mas tangenciando apenas; chega ao ponto de tangência como o limite entre os dois mundos. A ressurreição é o acontecimento fundamental que ocorreu ante as portas de Jerusalém, no ano 30, conquanto aí teve lugar, foi descoberta e ficou conhecida; neste sentido, é pois fato histórico. Todavia, como essa ocorrência, o seu desconhecimento, o seu reconhecimento, a sua necessidade, não foram os seus elementos determinantes, mas estes elementos estavam [e estão] na ressurreição, em si mesma; ela já não pode mais ser considerada qual mera ocorrência histórica, porém, à medida que Jesus se revela e é reconhecido como o Messias, ele é “investido como Filho de Deus”, ainda antes da Páscoa, tão certamente quanto depois dela. Esta é a significação de Jesus: a investidura do Filho do Homem como Filho de Deus. O que Jesus é afora desta investidura tem apenas a importância ou a irrelevância de todas as coisas temporais, materiais e humanas, em si mesmas.

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“Embora tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos assim”. Naquilo que ele foi, ele é; mas naquilo que ele é, está subjacente o que ele foi. Não há, aqui, enlace entre Deus e o homem — [O Filho do Homem e o Filho de Deus]. O homem não é guindado à divindade nem esta se derrama no ser humano. Mas, o que nos tangencia sem tocar-nos [sem se confundir conosco] em Jesus — o Cristo, é o Reino de Deus, — [Deus] o Criador e Redentor. O Reino de Deus tornou-se atual; ele chegou próximo. (Cap. 3 vs. 21 e 22). Este Jesus Cristo é “Nosso Senhor”. Por sua presença neste mundo e em nossa vida, somos anulados como homens e alicerçados em Deus. Com os olhos postos nele, somos retidos e impelidos; os nossos passos são retardados e apressados. E porque ele, como Senhor, está acima de Paulo e dos Romanos, Deus, na Epístola, não é uma palavra vazia. De Jesus Cristo Paulo recebeu a “Graça e o Apostolado”. Graça é o fato real, embora incompreensível, que Deus se agrada do ser humano e que este pode alegrar-se em Deus. Mas a graça somente é graça quando ela for reconhecida como inexplicável [sem razão de ser], incompreensível. E por isso que só há graça sob o reflexo da ressurreição, como dádiva de Cristo, que eliminou a distância entre Deus e os homens, tirando-a violentamente [quiçá, vencendo o afastamento que a morte implicitamente encerra, com o rompimento violento do túmulo para o surgimento triunfante da vida]. Deus conhece o homem desde longe e o homem pode reconhecê-lo em sua inescrutável altura; [porém] o homem se achega a seu semelhante, inevitavelmente, na condição de mensageiro. (Esta é a condição que pesa sobre os ombros de Paulo). “Uma coação está sobre mim: Ai de mim se eu não pregar o Evangelho”. (1 Cor. 9,16). A diferença entre a situação de Paulo e a dos demais cristãos é apenas questão de intensidade: De menos ou mais. Onde houver a graça de Cristo o homem toma parte na proclamação da ressurreição, que é o ponto de retorno [quiçá de conversão] para onde convergem todas as coisas e todos os tempos, ainda que sob a maior relutância ou sob o mais absoluto ceticismo. O homem que houver encontrado a graça de Deus porá em dúvida a legitimidade do modo de ser do mundo, e tanto lutará contra a conduta mundana quanto pugnará pela esperança ofertada em Deus. Não se trata da imposição e propagação de sua convicção, porém do testemunho da fidelidade de Deus, que ele encontrou em Cristo, e da qual ficou devedor desde o instante que a conheceu.

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1, 6-7

Paulo a seus Leitores

A fidelidade assim despertada no ser humano, a fé que aceita a graça, levao à obediência, obediência que impõe a si e que se estende também aos outros. O mesmo Deus que fez de Paulo o Apóstolo dos Gentios, pensou também nos cristãos de Roma para trazê-los ao seu reino, próximo a vir. Assim, chamados para a santidade, não pertencem mais a si mesmos nem ao velho mundo que passa mas a quem os chamou. Também para os romanos foi o Filho do Homem estabelecido, investido, como Filho de Deus, por força da ressurreição. Também eles estão agora cativos da grande carência que têm e da grande esperança que sentem. Também eles foram escolhidos e particularizados por Deus, de alguma maneira. Também para eles existe uma nova condição “na graça e paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” [desta forma irmanando os Cristãos Romanos ao Senhor Jesus — este e eles, filhos do mesmo pai]. Oxalá essa condição se renovasse constantemente! Fosse a sua paz, a [causa de] sua falta de paz — a sua paz! Este é o começo e o fim da Epístola aos Romanos. Comentários: 1, 1-7 Aí ficou o que eu entendi estar escrito no original sobre os versos 1 a 7 do Capítulo1. As expressões entre colchetes são inserções minhas; usarei essa indicação através do trabalho todo. Parece-me que cabem aqui algumas poucas considerações: 1. Sobre a forma. a) O autor faz uso abundante do jogo de contrastes: ...“Deus conhece o homem desde longe”, porém o homem se aproxima de seu semelhante, “inevitavelmente na condição de seu mensageiro”. ...O “mundo conhecido” e o “mundo desconhecido”. ...ele (Paulo) é apenas “possível como exceção, ou melhor, ele é uma exceção impossível.” b) Gosta de matemática. c) Usa de vocabulário farto, quase redundante, para melhor vestir suas imagens. 2. Por falar em imagens o autor parece estar, logo no início, preocupado com o combate à idolatria. Esta me parece ser a tecla mais sonora de sua introdução. Paulo não é santo, nem gênio; apenas servo, ministro de seu rei; mensageiro.

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Paulo a seus Leitores

Engana-se quem quiser ver em Paulo o herói, o vencedor, o grande. o valoroso, o santo. — Santo, valoroso, grande, vencedor, herói, só Cristo, portanto Deus. Não há privilégio na escolha do homem por Deus; é dever a cumprir que cabe a todos, ainda que o mensageiro tenha o mérito de ser o escolhido do Senhor. Não há lugar para a idolatria da vanglória. Ninguém pode dizer que conhece a Deus ou que Deus lhe concedeu favores especiais: uma só é a graça e essa está na ressurreição de Cristo e não na vontade dos crentes. Combate a idolatria da auto-suficiência e do privilégio religioso: ninguém tem condições para achegar-se a Deus por ciência própria. É sempre e de novo o alcance da paz pelo conhecimento da sua existência, que a ressurreição proporciona, sem fórmulas e agremiações, quiçá questionáveis. Combate a idolatria do materialismo intelectual. Aceitar a graça da redenção por análise histórica e percepção técnica não tem cabimento; é necessário que se forme o vácuo humano para receber a plenitude da graça do Espírito Santo. Combate a idolatria do misticismo. De nada vale o louvor à vida de Jesus se não houver genuína cooperação, testemunho, proclamação. A fé, porém, vale pela capacidade que tiver em aceitar, e numa espécie de poder regenerativo, vale pela fé que ela mesma criar, através da cabal aceitação. É nestas condições de servo humilde, porém cioso da grandeza de sua missão; temente e trêmulo perante Deus e os homens, mas corajoso e forte perante os homens sob a égide de Deus; coato para servir a Deus e ao próximo todavia livre para cumprir a ordem de Deus, que Paulo se apresenta aos romanos, segundo Barth o ouve falar, voz que procura fazer ressoar aos ouvidos dos seus leitores. 3. Da apresentação do texto: a) A tradução dos versículos da Epístola aos Romanos, conforme redigidos por Barth, foi impressa em caracteres de tipo itálico. b) A ‘interpretação’ propriamente dita foi inserida no texto da tradução geral, na forma de considerações identificáveis no próprio texto, geralmente no começo ou fim de assuntos específicos, na apresentação dos Capítulos, e em comentários gerais sobre os mesmos no respectivo final. Semelhantemente, foram incluídos expletivos na forma de palavras, frases, ou mesmo parágrafos, que foram destacados entre colchetes.

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1, 8-10

Questões de Fôro Pessoal (8 a 15)

Questões de Fôro Pessoal (1, 8-15) V. 8 Antes de tudo dou graças a meu Deus, através de Jesus Cristo, pois em todo o mundo fala-se da vossa fé. A ressurreição provou o seu poder: também em Roma há cristãos! Eles o são sem a obra de Paulo; não importa quem lhes tenha levado o apelo de Cristo; (1,6) eles foram chamados, e isto é razão suficiente para dar graças. A pedra foi rolada descerrando a porta do túmulo; a palavra corre livremente; Jesus está vivo; ele está também na capital do mundo! Os cristãos, por toda parte, escutaram, estiveram atentos à notícia. (16, 19). Ainda que seja apenas parábola, é pelo menos parábola. Paulo não agradece a seu Deus pela devoção ou outra vantagem que se pudesse notar nos cristãos da grande cidade, porém pela existência deles como cristãos. Características peculiares e obras especiais são menos importantes que o fato auspicioso de ter sido levantada a bandeira [do evangelho], de ter sido mencionado e ser conhecido o nome do Senhor, de estar sendo anunciado e esperado o Reino de Deus. [Neste fato auspicioso] subsiste a fé; a fidelidade dos homens suscitada pela fidelidade de Deus; e sempre onde isto ocorrer estará em curso a crise que a ressurreição de Jesus traz. E dentro desta crise que se proclama a investidura de Jesus, como Filho de Deus (1, 4) e conseqüentemente o servo tem razão sobeja para dar graças. [Essa crise é o esvaziamento do Ego; e o desaparecimento da auto-suficiência, da ciência, do mérito pessoal; a crise e a invalidação das credenciais de classe ou estirpe, das garantias que a filiação religiosa, ou mesmo o conhecimento das Escrituras, ainda que na mais severa ortodoxia e na mais perfeita interpretação, possa parecer justificar. A crise precipita no caos todas as prerrogativas humanas, ainda que estribadas na própria cruz de Cristo; ela reduz o homem a nada, esvaziando-o completamente, perante o Cristo ressurrecto que, então, preenche o coração contrito e humilhado, criando a nova criatura. E somente nesta condição de crise total que se abrem as portas do coração, da Igreja e da Cidade — para entrar o Rei da Glória]. E porque as portas de Roma estão abertas ao Senhor, estão também abertas a Paulo seu mensageiro. Há muito, existe entre os cristãos de Roma e Paulo um relacionamento não meramente fortuito ou superficial. Vs. 9 e 10 Pois o Deus a quem eu honro em meu espírito, visto que anuncio o evangelho de seu filho, é minha testemunha como sem cessar intercedo

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Questões de Fôro Pessoal

1, 9-10

por vós em minha adoração, não sem rogar que, enfim, me seja concedido, pela vontade de Deus, ir ter convosco. O mensageiro pertence a eles (e também a muitos!) (1,14), tão certo quanto pertence a Deus. O espírito do escolhido de Deus, da testemunha que se sente consumida pelo zelo em honrar ao seu Senhor, (1, 5) não pode ficar alheado nem distante dos espíritos daqueles que foram movidos pela mesma proclamação e pela mesma descoberta. A adoração que o mensageiro oferece a Deus é, por isso, feita tanto por eles quanto por si mesmo. Quando Paulo ora, fá-lo pois, também por eles, os cristãos de Roma, enquanto estes, ao orarem, intercedem também pelo Apóstolo (15, 30). A obediência ao evangelho, também estabelece a solidariedade entre aqueles cujos caminhos, neste mundo, nunca se cruzaram e que não tiveram o privilégio de conhecer-se face a face [mas sentem-se irmanados no Senhor Jesus, ainda que sendo de raças, povos, tribos e nações estranhas e até mesmo adversas]. Desta comunhão no objeto da fé é lícito surgir também o anseio por um encontro pessoal. É compreensível que aqueles que se conhecem em Deus queiram conhecer-se, também, face a face [neste mundo], se Deus assim for servido. Mas será um tal encontro possível? Será necessário? Realmente, não será imprescindível. Tal desejo nada tem a ver, diretamente com o Reino de Deus. A vontade de Deus tem a primazia; a realização do desejo humano tanto pode ser como deixar de ser concedida. O que deverá acontecer em conformidade com a vontade de Deus virá quando essa vontade for cumprida. E enquanto ou se Deus não conceder segundo o desejo dos corações de seus servos, a estes compete cultivar a confiança mútua e buscar a vontade de Deus com singeleza de coração; quando a situação interna e a externa coincidirem genuinamente com a visão cristã do que seja reto; então o cristão compreenderá qual seja a vontade de Deus. (12. 2). [Se a situação interna for auferida e aferida pela comunhão do Crente com Deus, por intermédio de Jesus Cristo, e a situação externa for aquela que o Reino dos Céus propicia à medida e na medida que seja estabelecido entre os homens, então a visão do que seja reto será alcançada pela renovação da mente para que cada cristão possa compreender qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus]. O reconhecimento do instante da coincidência é o único caminho que se pode imaginar para a realização do desejo humano.

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1, 11-13

Questões de Fôro Pessoal

Vs. 11 e 12 Eu anseio por ver-vos, porquanto eu gostaria de repartir convosco algo da misericórdia do Espírito para vosso fortalecimento, ou melhor: para que no meio de vós, pela fé, gozemos o consolo conum que encontraremos em nós, mutuamente. (O consolo que eu encontrarei em vós e vós em mim). Esse anseio tem sua razão de ser. Peregrinos que se encontram na estrada que leva a Deus, têm sobre o que trocar idéias. Um pode significar algo para o outro, não porque assim o queira; não, exatamente, por sua riqueza interior, não pelo que seja, mas por aquilo que não é; por sua pobreza, por seu suspirar e por sua esperança; por sua vagarosidade e por sua pressa; por tudo que, em seu ser, aponta para outro ser que esta além do horizonte e acima de suas forças. Um apóstolo não é um homem positivo, mas negativo. Em torno dele vê-se a vacuidade. [A pobreza de espírito, a fome e sede de justiça, a ânsia pela paz, o anseio pelo consolo, a fraqueza na fé, o reconhecimento de que só Cristo pode redimir e salvar]. É na vacuidade de seu próprio ser que o Apóstolo significa algo aos outros e reparte misericórdia. É assim que ele fortalece os demais na obediência, na perseverança e na adoração. O Espírito distribui graça por ele, justamente porque ele nada tem de si, de positivo, que possa ter algum valor. E neste processo o distribuidor se transforma em receptáculo; quanto mais dá, mais recebe e quanto mais for recebendo mais terá para dar. Entre cristãos não é apropriado perguntar se “vem de ti ou vem de mim”, pois não vem nem de ti nem de mim, porque nada temos. É bastante que acima de nós, atrás de nós, além de nós, exista a fé, a mensagem da fé, o conteúdo da fé, a fidelidade de Deus, que consola o superior e o principiante nas suas tentações e fraquezas, tanto externas como internas. O desejo que os cristãos acaso tenham de, em uníssono, baterem às portas do Reino dos Céus a fim de iniciarem um movimento comum sob a direção do Santo Espírito é legítimo, conquanto também seja certo que essa conformidade seja vazia e irrelevante. V. 1 3 Deveis porém saber irmãos, que já muitas vezes tencionei chegar até vós para que também entre vós, como entre os demais gentios, eu produza frutos, mas até aqui fui impedido de fazê-lo. Muitas vezes teve Paulo o propósito de visitar Roma satisfazendo o seu próprio desejo e, evidentemente, o dos cristãos que lá se achavam. Mas é dema-

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Questões de Fôro Pessoal

1, 13-15

siado grande o número de localidades que não tiveram ainda o início da pregação que Roma já recebeu. Conseqüentemente o trabalho a que o Apóstolo foi destinado — o trabalho de sua vida — (de semear em terra virgem) (15, 20-22) o levou sempre a outras paragens. Permanecia, porém, o veemente desejo e a viva intenção de colher também onde não semeara e de trabalhar onde outros já haviam trabalhado. Até agora, pela vontade de Deus (1, 10) o desejo ainda não pôde ser satisfeito. Vs. 14 e 15 Eu, eu mesmo, sou devedor a gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, por isso o meu grande desejo é anunciar o evangelho da salvação também a vós, em Roma. Paulo foi tomado em cativeiro (1, 1) o que significa um cerceamento a seus desejos pessoais porém, também uma possibilidade de os satisfazer. Certamente nem divisas territoriais nem barreiras culturais poderão retêlo e, quando tiver de ser, ele se desempenhará de sua missão tão desassombradamente quanto entre os néscios de Icônio e Listra. Também é certo que o preceito de pregar apenas onde o evangelho ainda não foi anunciado não é nenhuma lei dos Medas e Persas pois, em última análise, quem pode dizer que já ouviu o evangelho? Também os romanos pertencem ao rebanho de povos pelos quais Paulo sabe que é responsável como o escolhido por Deus para levar-lhes o evangelho. Ele quer falar-lhes das coisas antigas e novas. O que é conhecido, neste caso, para todos e sempre, é o não conhecido, do qual nunca se será lembrado em demasia. (15, 15) [“Porque tudo quanto outrora foi escrito, o foi para nosso ensino, a fim de que pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança”]. Contudo, por enquanto, faça-se a tentativa de, por meio da palavra escrita, reunir os cristãos da comunidade romana para, em uníssono, baterem à porta com o fim de produzirem o movimento. Comentários: 1, 8-15 1. O que aqui foi apresentado como questões de fôro pessoal é designado apenas como “pessoal”, pelo autor. Paulo, depois de haver dado aos romanos a razão (ou as razões) de ser de sua carta, conta-lhes de seus problemas íntimos; por que ainda não foi visitá-los e como se sente feliz porque os romanos tomaram conhecimento do nome de Jesus Cristo, e o aceitaram na sinceridade de sua fé.

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1, 15-16

O Tema da Epístola (16 e 17)

Escreveu-lhes do seu interesse por eles e invocou para isto o próprio testemunho de Deus, Pai! 2. Barth insiste na afirmação de que a presunção humana, ainda que mui piedosamente fundamentada, não alcança o beneplácito de Deus, antes é uma forma de idolatria que impede a participação na graça e da graça Divina. 3. Somente pode ser testemunha e mensageiro de Deus, quem recebe a graça que vem do alto e, para recebê-la, é preciso que o homem se esvazie, que renuncie a si mesmo. No entanto, se é certo que Paulo foi separado para o Evangelho, é igualmente certo que toda pessoa que houver sentido o apelo que vem da cruz e a autoridade que vem da ressurreição, não pode deixar de testificar e proclamar a mensagem da boa nova para a salvação de todo aquele que crer. A diferença entre um e os outros será quantitativa porém jamais qualitativa que a qualidade é constante e eterna; a qualidade é Jesus, poderosamente estabelecido como Filho de Deus, pela ressurreição de entre os mortos.

O Tema da Epístola (1, 16-17) Vs. 16 e 17 Porque eu não me envergonho do evangelho, pois ele é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, do Judeu primeiro e também do grego. Porque a justiça de Deus se revela nele; da fidelidade à fé, como está escrito: “O justo viverá de minha fidelidade”. [A tradução de Lutero escreve: “O justo viverá de sua fé”; a versão sinodal da Sociedade Bíblica Francesa registra: “Aquele que é justificado viverá pela sua fé”. A Revised Standard Version (1953), americana, traz: “Aquele que é reto, pela fé viverá”; a edição da Biblioteca de autores cristãos de Madri, (1950), versão católica, diz: “O justo viverá pela fé”, portanto APUD nossa versão de Almeida; a nossa (hoje já quase esquecida) versão de Figueiredo diz: “O justo viverá da fé”. Acha o Autor que a sua tradução se harmoniza melhor com o texto original e por ela orienta a sua análise, entendendo-se porém que em Hab. 2,4, é Deus quem fala. O possessivo refere-se a Deus; parafraseando, poderíamos dizer, segundo o Autor, “o justo viverá pela fidelidade de Deus”] “Eu não me envergonho”, O evangelho não precisa ir em busca de polêmica com as religiões e filosofias do mundo, nem tão pouco precisa temê-las ou fugir delas. O evangelho persiste e subsiste por si, como a mensagem que vem da linha de interseção do plano deste mundo como plano do mundo do

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O Tema da Epístola

1, 16

além, desconhecido para nós. O evangelho não entra em concorrência com quaisquer teorias ou pesquisas ou outras elucubrações e deduções que a ciência, a sabedoria ou cultura possam haver encontrado ou ainda venham a encontrar mesmo que sejam transcendentais e oriundas do mais elevado círculo do saber humano pois o evangelho não é uma verdade ao lado de outras verdades mas é a verdade que questiona, [afere], todas as demais verdades. O evangelho é dobradiça e não folha de porta. Quem aceita o evangelho, embora possa sentir-se perplexo [ante as condições do mundo em seu século], está livre [e acima] de toda e qualquer contenda; não há apologética nem preocupação com a vitória do evangelho, pois ele é a própria base de todas as coisas; o seu sustentáculo é também a sua consumação, o seu fim; e assim sendo, o evangelho é a vitória que vence o mundo. O evangelho não precisa ser defendido nem suportado ou carregado: É ele que defende e suporta aos que o proclamam. É certo que Paulo poderá chegar e de fato chegará a Roma para aí consolar e ser consolado sem envergonhar-se do evangelho; mas é igualmente certo que esta visita tão ansiosamente esperada por todos não é necessária para que o evangelho subsista. Deus não necessita de nós, e teria mesmo que se envergonhar de nós, não fora ele Deus e precisasse de nossos préstimos. Antes, somos nós que dele carecemos. O evangelho da ressurreição é o “Poder de Deus”; é a sua virtude (VULGATA); é a revelação e o conhecimento desse Poder; é a sua excelente supremacia confirmada por obras perante todos os deuses; é o milagre dos milagres pelo qual Deus dá-se a conhecer como aquele “que é o que é” [Ex. 3, 14] isto é, o Deus desconhecido que habita em auréola de luz, em páramos inacessíveis ao homem — o Santo, o Cristo, o Redentor. “Aquele que, sem o conhecerdes, tendes honrado, este vos anuncio”. (Atos 17.23). Todas as divindades que ficam aquém da ressurreição; que moram em templos, que são feitura de mãos humanas e delas necessitam para serem servidas; divindades que carecem dos próprios homens [que as reconhecem por deuses] (Atos 17,24-25); essas divindades não são Deus; essas, o homem conhece! Deus é o Deus desconhecido e como tal dá vida, alento e tudo, a todos. E assim é o seu Poder, a sua força: não a força da natureza, nem da alma, nem outra força qualquer, mais alta ou uma super-força que acaso conheçamos ou alguma outra que pudéssemos vir a conhecer. O Poder, ou a força de Deus não pode ser considerado, nem mesmo, como a força suprema do mundo, ou a somatória de todas as forças ou ainda a origem delas, mas é a crise de todas e de

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O Tema da Epístola

qualquer delas, porquanto esta força é algo totalmente diverso, em comparação com a qual as demais forças tanto podem ter alguma significação corno podem ser absolutamente nulas; sim, algo e nada; [a crise gerada pelo eventual confronto de força humana com o Poder divino] tanto pode representar o impulso inicial, como o fator de estagnação final e definitiva dessa força terrena. O Poder de Deus é a força que pode trazer o cancelamento, a supressão da própria origem de todas as forças e também a sustentação, a preservação, do objetivo delas. O Poder de Deus permanece, meridianamente claro, acima de tudo. Não de lado [paralelamente como se ombreasse com as demais forças] e não superior [sobrenatural, como se fosse comparável, ainda que em grau superlativo, com as outras forças] porém, além de todas elas, [e diferente delas]. As forças que o mundo possui, ou que imagina que tenha ou que possa vir a ter, são necessariamente condicionadas [limitadas]. Ora, o Poder de Deus não pode ser intercambiado ou alinhado com tais forças, nem podem estas ser comparadas com ele, senão com o mais absoluto cuidado e a máxima prudência. O Poder de Deus é a investidura de Jesus, como o Cristo (1,4) e isto, no seu sentido mais restrito, é pressuposição destituída de qualquer significado tangível. Acontece em Espírito e somente pode ser reconhecida espiritualmente. Essa investidura é absolutamente auto-suficiente, e verdadeira em si mesma; ela é o fator decisivo, se assim nos pudermos expressar; o ponto crítico que ocorre na mente humana [no seu sentimento] e que leva o homem a Deus. É justamente desta mensagem — de sua proclamação e sua percepção, — que se trata entre Paulo e seus leitores e ouvintes de Roma. Com esta mensagem da investidura de Jesus, como o Cristo, relacionase todo o ensino, toda a moral e todo o culto da comunidade cristã, uma vez que tudo isso tem apenas a função de [preparar o terreno destacando a inutilidade do esforço humano para a salvação, a enormidade do afastamento de Deus que o pecado acarreta, a nenhuma valia que o homem pode atribuir aos humanamente mais excelentes méritos que tivesse; esse conjunto de perspectivas tão negativas contribui para] formar uma espécie de funil de escoamento, de sorvedouro, de vazio, onde se dá [a inserção], a implantação da mensagem. A comunidade [cristã] não conhece palavras, obras, ou coisas que sejam santas em si mesmas; conhece apenas palavras, obras e coisas que, como negações, [isto é como sinais e evidência de tudo quanto o homem não é, ou melhor, de tudo quanto ele é em oposição a Deus] apontam ao que é Santo. Se a atitude cristã e o modo de ser dos cristãos não fossem referendados ao evangelho, seriam qual acessório ou subproduto humano, perigoso restolho religioso, lamentável mal entendido conquanto, ao invés da vacuidade [do

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O Tema da Epístola

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homem que se nega a si mesmo, que se anula em sua soberba pretensão e sua vontade egoísta e vaidosa, para dar lugar a Deus], teria conteúdo [ainda que fátuo]; em vez de côncavo seria convexo [isto é, em vez de fazer convergir e concentrar a mensagem recebida a dispersaria]; em vez de negativo, seria positivo; em vez de ser a expressão da sua própria insuficiência, toda voltada para a esperança na promessa do evangelho, teria a pretensão da auto-suficiência, de mostrar-se intrinsecamente rico em qualidades. Nestas condições deixariam os cristãos de ser uma comunidade cristã para serem uma cristandade compromissada com a oscilante realidade mundial, de aquém ressurreição [portanto sem o Cristo vivo, ressurrecto]. Tal cristandade, praticando com o mundo um pacífico e cômodo MODUS-VIVENDI, não pode ter parte com o Poder de Deus. Semelhante evangelho de maneira nenhuma estaria livre da concorrência com o mundo e, competindo, não estaria em posição vantajosa, antes estaria em grande embaraço e aperto pois as filosofias e religiões do mundo, forjadas, urdidas ou criadas aquém ressurreição, foram desenvolvidas a gosto do homem [de forma semelhante à confecção das imagens e o culto idólatra] deturpando o evangelho com o objetivo de acomodá-lo ao gosto do presente século [criando ilusões e desvirtuando a imagem do próprio Deus que deixa de ser espiritual para ter a imagem e a semelhança do homem e o evangelho deixa de ser Poder, para ser movimento; e os cristãos deixam de ser sal e luz, e portanto a minoria do caminho estreito, para serem massa num pseudo evangelho chamado social, ecumênico, tolerante e, sobretudo, tolerável e tolerado pelo mundo]. Haveria, então, razões suficientes para ter vergonha do evangelho! Paulo, porém, refere-se ao “Poder” do Deus desconhecido: “O que olho algum viu, nenhum ouvido ouviu, o que jamais chegou ao coração humano”. E por isso que ele não se envergonha do evangelho. O “poder de Deus” é poder “para a salvação”. O homem, neste mundo, está em cativeiro. Nenhuma luz adicional encontraremos se nos aprofundarmos na conscientização de nossas limitações humanas, antes, sentir-nos-emos cada vez mais distantes de Deus; ficaremos mais compenetrados da enormidade de nossa queda (1, 18; 5, 12) e as suas seqüelas serão cada vez maiores (1, 24; 5, 12) do que, sequer nos permitiremos sonhar. É que o homem é agora [após a queda e aquém da ressurreição] o seu próprio senhor. A sua unidade com Deus foi tão profundamente destruída, dilacerada, que o reatamento dessa união é absolutamente inimaginável para o homem. A sua condição de criatura é o seu grilhão; seu pecado, a sua culpa; sua morte, o seu destino. Seu mundo é um caos disforme que flutua ao léu sob a ação de forças naturais, anímicas e algumas outras. Sua vida é uma aparência.

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Esta é a nossa situação. — “Existe um Deus”? Uma pergunta muito boa. Pretender entender este mundo em sua unidade com Deus será, ou condenável arrogância religiosa ou, a última [a mais profunda] visão [ou perspectiva] da verdade que existe para além do berço e do túmulo: uma visão vinda do lado de Deus. A arrogância terá que desaparecer quando a perspectiva do lado de Deus tiver lugar. [Todavia] enquanto existirem moedas falsas em circulação as verdadeiras são postas em dúvida. O evangelho proporciona a visão pela última perspectiva, partindo do lado de Deus [isto é pela ressurreição que mostra o Poder de Deus, com a investidura de Jesus como o Cristo]; todavia, para a sua eficácia, [para que pelo Poder de Deus se restabeleça o vínculo da união do homem com o Criador] é necessário que as outras perspectivas, as penúltimas [as arrogantes pretensões que ganham curso e circulação na categoria de moedas falsas] sejam banidas. O evangelho fala-nos de Deus, como ele é; refere-se a ele, e a ele só! Fala do Criador que se torna nosso Redentor e do Redentor que é nosso Criador. O evangelho tem o intuito de nos virar completa e absolutamente. Anuncia-nos a transformação de nossa condição de criaturas livres; oferece o perdão de nossos pecados. A vitória da vida sobre a morte; a devolução de tudo quanto perdemos. O evangelho é o toque de alarme, é o sinal de fogo, de um mundo novo que está chegando. — O que quer dizer isso tudo? Agora e aqui, atados ao “isso” e “aquilo”, não o sabemos, Apenas podemos perceber o que acontece e captamos esta percepção pelos sentidos voltados a Deus, depois que foram devidamente despertados pelo evangelho. O mundo, porém, não deixa de ser mundo e o ser humano continua sendo um ser humano; cabe-lhe suportar toda a carga do pecado e arcar com a total maldição da morte, [a despeito de haver percebido os sinais da graça de Deus]. Que não haja qualquer auto-ilusão sobre o estado de fato da nossa existência e de nosso modo de ser. A ressurreição, que é a nossa saída, é também o nosso cerceamento: mas o cerceamento é também saída! O não que veio a nosso encontro, o NÃO de Deus: o que nos falta é também o que nos socorre; o que nos cerceia [o que barra a nossa saída] é a nova terra [a porta que nos enclausura é também o umbral que nos leva ao reino dos céus].

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O que destrói todas as verdades do mundo, é também o que as alicerça. E, exatamente porque o NÃO de Deus é total, ele é também o divino SIM! É assim que temos no Poder de Deus a perspectiva do portal da esperança e, com essa visão ante os olhos, a possibilidade de avançar o passo seguinte, ainda que vacilante, na senda estreita deste mundo, prosseguindo em “consolado desespero” (Lutero). O prisioneiro é transformado em atalaia que, confinado ao seu posto de vigia, qual enclausurado em sua cela, anseia pelo raiar da aurora: “Aqui estou eu, de atalaia, e subo ao alto da fortaleza para perscrutar atentamente o horizonte, para ver o que ele acaso tem para dizer-me e o que responderá à minha queixa. Então respondeu-me o Senhor e disse: escreve a revelação; registra-a sobre uma lousa para que seja claramente legível. A revelação espera ainda por seu tempo próprio, mas se aproxima rapidamente do fim, e não enganara. Se ela demorar, aguarda-a com perseverança porque ela se cumprirá com certeza”. (Hab. 2, 1-3). O evangelho requer fé. Somente para os crentes é ele o “Poder de Deus para a Salvação”. Portanto, a sua verdade não pode ser comunicada diretamente, [não é palpável]. Cristo foi estabelecido o Filho de Deus, “pelo Espírito”, (1, 4). Ora, “o espírito é a negação do que é reconhecível diretamente, [que é a matéria]. Se Cristo for verdadeiro Deus, então ele será necessariamente irreconhecível. O conhecimento direto é uma característica inerente aos ídolos”. (Kierkegaard). O “Poder de Deus para a Salvação” é algo tão novo, tão inaudito, tão inesperado, neste mundo, que só pode surgir, ser percebido e ser aceito como contradição. É assim que o evangelho não porfia por esclarecer-se nem procura tornar-se conveniente [cômodo e agradável aos interesses terrenos]; não solicita e não transige; não ameaça e não promete. Ele se retrai por toda parte onde não for ouvido pela própria força de sua proclamação. “A fé orienta-se às coisas invisíveis; para dar oportunidade à fé, é necessário que tudo o que se há de crer esteja oculto, e esse ocultamento é tanto mais profundo quando o objeto da fé fica em franca oposição ao sentido da vista, da sensação dos sentidos, do senso, e da experiência. Quando Deus, pois, vivifica faz morrer; quando justifica ele o faz, inculpando-nos; quando nos conduz ao céu, fá-lo conduzindo-nos ao inferno.” (Lutero). O evangelho é, apenas, digno de fé. [O evangelho não pode ser assimilado, apropriado, pela análise intelectual, por deduções lógicas ou por elucubrações indutivas ou ainda, por convicção intuitiva; nem por sugestão, por exposição, por ensino ou exemplo, mas unicamente pela fé. O evangelho é totalmente estranho à natureza das coisas deste mundo nosso conhecido, por

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isso não pode ser apreendido senão pela fé e, portanto, para ser aceito é preciso que se creia nele. A única alternativa à sua aceitação pela fé. é a sua rejeição]. O evangelho manifesta a seriedade de sua presença em nossa vida impondo a opção entre o caminho da fé e a escandalização. [Ou a pessoa aceita o evangelho, crendo nele, ou se escandaliza com a verdade que apresenta, considerando-o absoluta loucura em sua pretensão de ser o único caminho para a redenção, situando-o, quando muito, como uma possibilidade, uma interpretação e quiçá, até uma verdade entre muitas outras alternativas, filosofias, crenças e religiões]. Aquele que não estiver à altura da contradição, que não se conformar com ela, [que não estiver pronto a perseverar na esperança da boa nova qual o evangelho a apresenta, não quiser esvaziar-se a si mesmo para dar lugar à plenitude de Deus] para esse, o evangelho será motivo de escândalo. Todavia, a todos os que não fugirem da evidência da contradição [antes perseverarem na aceitação da graça paradoxal e inaudita, e estiverem prontos para morrer para a vida material (a fim de ganharem a vida espiritual), de se esvaziarem completamente (para se encherem dos dons do espírito), que nada pretenderem, nem mesmo ousarem desejar herdar a vida eterna ou se locupletar de dons celestiais, que não imaginarem uma transação de vacuidade calculada para dar lugar ao preenchimento que viria qual recompensa, os que voltarem suas vistas, sinceramente, para a Cruz e a Ressurreição] para esses tais abrir-se-á o caminho da fé. A fé é o respeito ante o incógnito divino, e o amor a Deus, com plena consciência da diferença qualitativa entre Deus e os homens; Deus, e o mundo. Fé é a confirmação da ressurreição como ponto de retorno do mundo [ao consentimento], ao SIM contido dentro do NÃO divino. A fé é a estacada arrasadora perante Deus, em Cristo Jesus. Todo aquele que reconhece que os limites do mundo estão demarcados por uma verdade que o contradiz; todo aquele que vê a sua própria limitação marcada pela vontade divina que contraria sua própria vontade; quem acaricia o espinho que esse cerceamento representa em seu ser e seu modo de ser, ainda que isto lhe seja extremamente difícil, por conhecer demasiadamente bem a extensão dessa contradição e que, embora por essas razões todas tenha anseios de escapar dela, obriga-se a viver com ela (Overbeck) e que, em resumo, se confessa sujeito a essa contradição, vencendo a si mesmo ao ponto de nela [e por dai apoiar e orientar a sua vida, — esse tal crê! Quem confia em Deus — em Deus mesmo e somente em Deus isto é, quem reconhecer a fidelidade de Deus na própria contradição que essa fidelidade impõe e pela qual somos deslocados [somos feitos estrangeiros] da existência e do modo de ser deste mundo, quem corresponder a essa fidelidade divina com

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a sua própria fidelidade, quem ficar com Deus, a despeito de todos os “ainda que” e “apesar de” [que as contingências da vida possam trazer], este CRÊ! E o crente encontra no Evangelho o “Poder de Deus” para a salvação, os raios precursores da eterna bem-aventurança, e o ânimo de colocar-se em guarda, de sentinela! Mas o encontro, a descoberta, do Poder de Deus, exige a escolha (a opção) livre e contínua, de cada instante, entre o escândalo e a fé. Todavia, no que concerne à fé, o calor da descoberta, a pujança da convicção, o grau de entendimento e a cultura alcançada são mera roupagem [de ocorrências] deste lado [de aquém ressurreição] e por isso marcos irrelevantes do fenômeno. Sendo marcos do acontecimento da fé não são grandezas positivas, porém, grandezas negativas com relação a outras positivas, quais etapas de trabalho de desentulho pelo qual desocupamos a praça “deste lado” para receber o “além”. É por isso que a fé não é, jamais, idêntica à “religiosidade” ainda que esta seja a mais fina, a mais pura, pois a religiosidade é um marco da fé, e como tal anula outras realidades do mundo e junto com estas, notoriamente, a si mesma. A fé, porém, vive por si própria, porque vive de Deus! Este e o CENTRUM PAULINUM. (Bengel). Todo indivíduo pode e deve crer. Com o direito de opção [a crer e a escandalizar-se] estão “o judeu e o grego”. O evangelho questiona a existência e o modo de ser do mundo e, conseqüentemente, de cada ser humano; tão certo quanto a profunda problemática de nossa vida é uma condição geral, assim, também a contradição divina em Cristo faz-se sentir individualmente, em cada pessoa. O “judeu”, o homem religioso, o homem de igreja, é o primeiro a ser chamado a fazer a opção pois ele está na linha divisória, lá onde deveria ser vislumbrada a linha de interseção (1. 4) do plano deste mundo com o da nova dimensão [e nessa interseção, o seu ponto de destaque — a ressurreição de Jesus], (2, 17-20; 3, 1-2; 9,4-5; 10, 14-15). O fato de ser o judeu o primeiro a escolher [a decidir] não representa primazia ou superioridade. [O judeu deveria ser o primeiro a reconhecer o Salvador, o Cristo, em Jesus, por lhe terem sido confiados os oráculos divinos a fim de que se desempenhasse da incumbência de nação sacerdotal, isto é, de povo escolhido para servir a Deus endireitando as veredas para o advento de Emanuel, que é Deus conosco; foi às portas de Jerusalém que ocorreram os marcos materiais da ressurreição que é a investidura espiritual de Jesus como Filho Unigênito de Deus, O “judeu” (ou o crente que conhece a Bíblia, que assiste aos cultos, que trabalha na Igreja) foi devidamente instruído na lei, teve conhecimento da sã doutrina, sabe qual a vontade de Deus, a ponto de arvorar-se em mestre, guia de

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cegos e luz nas trevas; tem pois obrigação de achegar-se primeiro a seu Senhor e Redentor. Os judeus tiveram a voz de seus profetas e os crentes de hoje têm a graça de Jesus revelada nas Escrituras Sagradas. Esta é a vantagem de uns e outros. Os judeus tiveram o testemunho dos patriarcas e profetas e da própria linhagem de Cristo, segundo a carne; os crentes de hoje, herdando as mesmas provas antigas, receberam o dom maior de serem o novo Israel de Deus, nação eleita pela adoção através de Jesus Cristo. Os ‘judeus” que não confessam a Cristo como seu Salvador por não aceitarem a ressurreição, por nela não crerem, e os gentios que ouvindo o convite de Jesus não o aceitarem por não se conformarem com a renúncia que impõe, pela contradição que representa, ao renegarem a opção da fé, optam pelo escândalo, não com maior degradação, porém primeiramente!]. A pergunta “se é religioso, ou não”, já não tem mais razão de ser, e da outra interrogação: “Se é eclesiástico ou mundano”, nem se fala. [Se é clérigo ou leigo]. A possibilidade de ouvir o evangelho é igual para todos e assim também a responsabilidade de anunciá-lo para que seja efetivamente ouvido e se cumpra a promessa feita aos que em o ouvindo, o aceitarem. O que se revela no evangelho é o grande, o universal mistério da justiça de Deus, que pesa sobre todo homem seja qual for sua categoria, posição ou nível. A harmonia de Deus em si mesmo [do seu amor e da sua justiça tão insistentemente procurada por judeus e gregos, por todo mundo, vem à luz e é exaltada em Cristo Jesus. O que o homem entende por Deus aquém da ressurreição, é caracteristicamente a negação de Deus. E um Deus que não redime a sua criatura; que permite o livre curso da injustiça humana; que não se confessa ser nosso Deus. [Ora] um Deus que seja a confirmação máxima do que o mundo é e de como o mundo é, — é simplesmente insuportável; é “NÃO — DEUS”, a despeito dos mais altos atributos com que o adornemos. O clamor revoltoso dos que se insurgem contra tal Deus está mais perto da verdade do que as artificialidades levantadas pelos que o querem justificar. É somente pela carência de coisa melhor e pela falta de coragem de ir até o desespero, que o ateísmo não se generalizado lado de cada ressurreição. Porém, em Cristo, Deus fala; fustiga o NÃO-DEUS das mentiras deste mundo e confirma a si mesmo ao negar-nos quais somos e ao rejeitar o mundo, qual é. Ele dá-se a conhecer como Deus, Deus além da nossa queda, além do tempo, da matéria e dos homens: como libertador dos cativos e assim, em seu conjunto, como Criador.

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Ele se declara nosso Deus enquanto cria e resguarda a distância que vai de nós a ele; ele se compadece de nós convidando [provocando] a nossa crise e trazendo-nos a juízo. Ele garante a nossa salvação querendo ser Deus e ser reconhecido como Deus, em Cristo. Ele nos justifica, justificando-se a si mesmo. [Submetendo-se, ele mesmo, à sua justiça]. “Pela fidelidade” revela-se a nós a justiça de Deus: pela sua fidelidade para conosco. O verdadeiro Deus não se esqueceu do homem. O criador não abandonou a criatura. Tenha o mistério sido “silenciado” desde os tempos “remotos”, e que ainda continue oculto (16, 26); que sempre, de novo, o homem considere o NÃO-DEUS mais suportável que a contradição divina [em Cristo]; que nos pareça impossível a revelação do irrevelável ante o qual só a irreflexão não recua assustada [desalentada]; permanece, todavia, a fidelidade de Deus para com o homem. Permanece a mais profunda coincidência [a congruência] entre a vontade de Deus e o anseio que o homem, depois de liberto, aninha no mais recôndito de seu ser: Esperamos um novo céu e uma nova terra onde habite a Justiça! A este nosso anseio é dada a resposta divina quando a última interrogação humana acorda em nós. [Quando ouvimos a boa nova, vinda do lado de Deus; quando estiverem fora de circulação todas as moedas falsas, cunhadas pela nossa pretensão, nosso egoísmo, nossa auto-suficiência, nossa arrogância]. E porque estamos empenhados nesta esperança, nisto reconhecemos a fidelidade de Deus. À fé revela-se o que Deus revela por sua fidelidade. Aqueles que prescindiram da comunicação direta, recebem-na; àqueles que ousam arriscar-se com Deus [que entregam a própria sorte em suas mãos, sem indagar sobre a natureza de Deus] fala Deus como ele é; aos que tomam sobre si o fardo do divino NÃO, ele suporta com o divino SIM, que é infinitamente maior. Os que sofrem a contradição, sem dela fugir, são sobrecarregados, mas aliviados; aqueles que perseveram na esperança, nela mesmo reconhecem que estão autorizados a tê-la: que podem e devem esperar pela fidelidade de Deus. Neles cumpre-se a profecia: “O justo viverá pela fidelidade”. (Hab. 2, 4). O “justo” é o cativo que se transformou em sentinela. E o atalaia no umbral da realidade divina. Não há outra justiça que a do homem atemorizado e esperançoso que se submete à justiça de Deus. Ele viverá: ele traz em si a candidatura à vida verdadeira, desde o momento quando reconheceu a futilidade desta vida, e passou a ter nela, sempre presente, o reflexo da outra, da verdadeira; dentro do efêmero passou a ter a vista voltada para o eterno! A grande impossibilidade anunciou-lhe o objetivo e o término dos pequenos impossíveis. Ele viverá da fidelidade de Deus.

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Dizer-se da fidelidade de Deus ou pela fé humana é o mesmo. A forma pela qual as palavras do profeta vieram a nós, aponta às duas direções. É pela sua fidelidade que Deus, como o total outro, o Santo, com seu inevitável NÃO, veio ao nosso encontro, em nosso encalço. A fé, pela parte do homem, é a adoração que este NÃO divino aceita [pois sem fé é impossível agradar a Deus]; a fé é a fonte que promove no homem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência na negação, [expressa pelo NÃO divino e, conseqüentemente na total negação a si mesmo, como está escrito: “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.”] (Marc. 8, 34). Onde a fidelidade de Deus encontra essa fé, aí se revela a sua Justiça. E o justo viverá! Este é o tema em torno do qual gira a Epístola aos Romanos. Comentários: 1, 16-17 Da análise do que o Autor classifica como a introdução da Epístola, destaco os seguintes pontos como fundamentais: 1. Paulo fala como servo e arauto. Submisso e sem diretriz própria, mas altaneiro, firmemente decidido a cumprir o mandado (mas não mandato) que recebera. Igual aos demais homens e até abaixo deles, pois vem servi-los, e também, pela investidura que recebeu de seu Rei e Senhor, superior a eles todos pois vem revestido de munus mais excelente que outro qualquer, o de anunciar-lhes as boas novas de salvação, isto é, do restabelecimento do vínculo entre Deus e os homens, trazendo-os de volta à sua posição original e que lhes foi concedida desde antes dos tempos por eleição divina: a de Filhos de Deus. 2. Paulo, como homem e conservo de seus semelhantes, tem anseios e esperanças pessoais que submete ao escrutínio e à vontade de Deus. Se Deus “quiser” e o consentir, irá visitar os romanos entre os quais gostaria de produzir frutos também. Mas é absolutamente fiel, até mesmo na gratidão. (Era de têmpera bem diferente da de Jonas...). “Incessantemente dou graças a Deus, por vós, pois em todo mundo fala-se de vossa fé”. Era a alegria de ver o evangelho que ele pregava, já anunciado e crido em Roma.

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3. Barth destaca a excelência do evangelho que fica acima de tudo quanto pertence ao mundo ou diz respeito a ele; não é sequer compatível a todos superlativos que se possam imaginar. Está tão distante dos homens quanto o próprio Deus. Assim como o encontro do homem com Deus, vem do alto, é promovido por Deus SPONTE SUA, assim o evangelho, que é o Poder de Deus para a salvação de todo o que crê, vem de além da ressurreição, do lado de Deus, e ao homem é facultada, apenas, a opção entre a fé e o escândalo. E por isso que Paulo não se envergonha do evangelho! 4. O Autor destaca a justificação pela fé, como o tema central da Epístola. Estabelece dois movimentos coincidentes, como Causa e Efeito. A Causa: A fidelidade de Deus. O Efeito: A fé, gerada pela própria fidelidade divina. 5. Persiste em todo comentário o intenso destaque do combate às formas mui sutis da idolatria; desde a valorização das obras, do mérito humano, até a elevação desmedida das atividades para-espirituais, como a religiosidade e até mesmo a fé, pois ninguém dela se glorie; Deus é o seu autor e consumador; ela vem de Deus e vive de Deus. Todavia, ao homem criado à imagem e semelhança (espiritual) de Deus, por força da própria semelhança, foi lhe dado, ainda no Éden, o privilégio da opção que haveria de diferenciá-lo, por toda existência, das alimárias do campo; este privilégio Deus reiterou ao homem proporcionando-lhe o direito de optar entre a aceitação e a rejeição do evangelho; entre crer e escandalizar-se; entre o caminho da fé para a reunião com Deus ou o da lógica do mundo, quiçá mais cômoda e agradável, porém para o definitivo afastamento de Deus. O Autor chama “NOITE” a escuridão em que se encontra o homem quando a luz do alto fica toldada pela ira de Deus e analisa as causas dessa ira e o seu MODUS OPERANDI, ou melhor, através de que processo a ausência de luz se efetiva — opera entre os homens.

A NOITE A Origem (1, 18 - 21) V. 18 Pois a ira de Deus revela-se do céu sobre toda a impiedade e insubordinação dos homens, que detêm a verdade presa nos grilhões de sua insubordinação.

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Deus! Ao dizermos Deus, não sabemos o que dizemos e quem verdadeiramente crê, compreende essa afirmação pois, quem crê ama, como Jó, ao Deus que em sua inacessível altura só pode ser temido [mas não pode ser observado, apalpado ou visto se não pela fé]; quem crê ama, como Lutero, ao Deus ABSCONDITUS; a quem assim crê, revela-se a justiça de Deus: este, somente este, é salvo. “Só o preso é liberto, só o fraco é robustecido, só o humilde é exaltado; só o que está vazio se farta; apenas o nada se torna algo”. (Lutero). Porém, sobre a impiedade e a insubordinação revela-se a ira de Deus. A ira de Deus é o julgamento sob o qual estamos enquanto não amamos o juiz. [E a sentença que pesa sobre nós enquanto não aceitamos a graça de Deus em Jesus Cristo, que nos leva a amá-lo; enquanto não afastamos a ira de Deus submetendo-nos ao seu Poder]. A ira divina é o NÃO que permanece diante de nós enquanto não o aceitamos [isto é, enquanto não nos colocarmos também do lado do NÃO, vale dizer, do lado de Deus]. A ira de Deus é o protesto contra a existência e o modo de ser do mundo, e está inscrita em toda parte e acima de tudo e persiste contra nós enquanto esse protesto não for também nosso próprio protesto. Essa ira é a problemática de nossa vida enquanto não a entendermos [à luz da revelação divina manifesta na ressurreição de Cristo], e é a nossa limitação e transitoriedade [do berço ao túmulo] enquanto não reconhecermos a necessidade [ou a graça] dessa condição. O julgamento sob o qual estamos é inteiramente independente da atitude que tomarmos ou tivermos com relação a ele, e constitui o fato mais marcante da nossa vida; sua penetração em nossa existência trazendo-nos a luz do mundo vindouro e da salvação, [ou trazendo condenação] é questão que depende da resposta que dermos ao problema da fé. [Ou rejeitamos a fé, considerando-a um escândalo, ou aceitamos o dom de Deus, abrindo o caminho para a própria fé]. Todavia, o fato permanece o mesmo qualquer que tenha sido a nossa opção. (1, 16). Mesmo que a porta que nos encerra na prisão não se transforme em portal de saída, o nosso tempo material continua sendo nada quando comparado (e medido) em termos da eternidade; as coisas materiais são meras semelhanças quando postas em termos de sua origem e fim; continuamos sendo pecadores destinados à morte. Tudo isso prevalece. A vida continua o seu curso com todas suas incertezas mesmo que não percebamos o grande ponto de interrogação que está posto diante de nós. O homem está perdido ainda que nada saiba da salvação; e a porta que cena o vão continua fechada: não se transforma em atalaia; a espera [ansiosa pelo alvorecer] deixa de ser jubilosa, radiosa, para ser uma acre-doce capitulação ante o inevitável. A reação não é mais de esperança porém de penosa obstinação. O frutífero paradoxo de nossa existência

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torna-se o seu caruncho secreto, e a negação [de si mesmo] passa a ser exatamente o que se entende por ela [segundo o mundo]. No lugar do Deus Santo entroniza-se o Destino, a matéria, o universo, o acaso, “ANANKE” [a personificação do destino, ou fado]. É então, um sinal de bom senso quando evitamos chamar de Deus ao NÃO-DEUS da incredulidade, (1, 17). Mas a última conseqüência da ira divina é aquilo que identificamos como sendo Deus sem crer na ressurreição. O Deus que, em contradição a seu nome, confirma a existência e o modo de ser do mundo, também é Deus: Deus em sua ira; Deus que nos traz sofrimento; Deus que já não pode deixar de se afastar de nós; que só pode dizer NÃO e, por isso é, por todos os retos, chamado Deus, sob reservas, pois a ira de Deus não pode ser a sua última palavra, sua verdadeira revelação final. O NÃO-DEUS não pode ser chamado, verdadeiramente Deus mas na verdade, é sempre com Deus que nos deparamos. [É Deus que diz NÃO ao pecador, e ao manifestar o seu NÃO, ele é verdadeiramente DEUS; este Deus que diz NÃO, e ao dizer o seu NÃO confirma a existência da abominação do mundo é, todavia, diferente do deus criado pelo homem, à sua própria imagem e semelhança e que confirma a existência e o modo de ser do mundo com o seu consentimento, a permissividade complacente, o livre curso dado a abominação, (sem levantar-lhe o sinal do NÃO DIVINO). Todavia, o Deus que diz NÃO e que manifesta a sua ira sobre os homens que procedem segundo os ditames de seu próprio coração (e seu deus), é também o Deus de Amor que mandou o seu filho unigênito ao mundo para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Contudo, seja qual for a nossa posição pessoal, na problemática de nossa existência, deparamo-nos sempre com Deus, ainda que nossos caminhos não sejam os seus caminhos e nossos pensamentos sejam rasteiros]. Também a incredulidade depara-se com Deus, porém a incredulidade não penetra na verdade de Deus que lhe é oculta [pois não crê, e a verdade, que não é material, somente pode ser vista com os olhos da fé] e se despedaça em Deus como Faraó. (9, 15-18). Segundo Zuendel: “Todo o impedimento e dano à vida criada por Deus, a história conjunta da queda e do cerceamento da vida das criaturas, inclusive a punição com a morte, é uma reação de Deus”. Entretanto precisamos acrescentar que somente pereceremos dessa reação se não tomarmos conhecimento dela para dela nos apropriarmos. O mundo todo é vestígio de Deus; entretanto, se em vez de optarmos pela fé preferirmos “o escândalo” acharemos unicamente o rastro da ira de Deus. A ira de Deus é a justiça de Deus revelada ao incréu. De Deus não se zomba: a sua ira é a justiça fora de Cristo e sem Cristo.

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O que quer dizer “fora de Cristo” e “sem Cristo”? “A ira de Deus revelase contra toda a impiedade e insubordinação dos homens”. Estas são as marcas características de nossa relação com Deus aquém da ressurreição. É desrespeitoso! [O nosso procedimento]. Pretendemos saber o que dizemos quando enunciamos a palavra “Deus”! Atribuímos-lhe a posição mais alta de nosso mundo e, em assim fazendo, colocamo-lo, fundamentalmente, na mesma linha em que estamos, nós e as coisas materiais; achamos que ele “precisa de alguém” e que podemos ordenar as nossas relações com ele como arranjamos qualquer outro relacionamento. Enfiamo-nos para junto dele sem maiores reservas [o Autor usa expressão equivalente a “insolentemente” ou “atrevidamente”, e penso que “sem maiores reservas” fica em melhor harmonia com o contexto] e, assim procedendo, o projetamos para nosso nível (o Autor diz “para nossa proximidade”). Permitimo-nos uma espécie de familiarização com ele e habituamo-nos a contar com ele [para todas as coisas] como se o relacionamento com Deus fosse coisa vulgar [e não especialíssima, da criatura com o Criador, relacionamento que só Jesus Cristo tornou possível, como nosso mediador, intercessor e advogado, em nome de quem nós nos aproximamos de Deus]. Levamos o nosso atrevimento ao ponto de nos arvorarmos em seus familiares. seus benfeitores, seus administradores [mordomos fiéis], seus corretores. Confundimos a eternidade com a temporalidade. Esta é a nossa falta de respeito no relacionamento com Deus. Secretamente, nesse nosso modo de proceder, somos nós os Senhores. Para nós não se trata de Deus porém das nossas necessidades [de nossos desejos e conveniências] pelas quais queremos que Deus se oriente. Além de tudo isso, a nossa petulância pede ainda que nos seja dado a conhecer um “super-mundo” e que tenhamos acesso a ele. Pedimos uma motivação profunda, um louvor ou uma recompensa, vinda do além. Porfiamos por colocar Deus sobre o trono do mundo quando na realidade estamos entronizando a nós mesmos. “Crendo” nele, estamos apenas preocupados com a nossa justificação, honrando-nos a nós mesmos e tirando proveito próprio. Nossa religiosidade consiste na solene confirmação que fazemos a nós mesmos e ao mundo de que, piedosamente, nos poupamos da contradição. [Arvoramo-nos em servos fiéis; procuramos promover o reino de Deus sobre a terra, não por amor ao reino mas para ganharmos a recompensa de Deus. Ou então queremos Deus do nosso lado para abençoar e fazer prosperar o nosso negócio ainda que seja a ruína de nosso concorrente; gostamos de religião cômoda, tolerante para com o mundo e tolerável para ele, e classificamos o nosso comodismo como piedade religiosa]. Sob todos os sinais de piedade e enternecimento, na realidade, rebelamo-nos contra Deus, confundindo o nosso tempo finito com a eternidade de Deus. [Por querermos

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ser iguais a Deus embalamo-nos em nossas pretensões e ilusões, esquecendo que nossa vida é qual a erva que foi num instante e já não é; todavia, para o verdadeiro Deus, não há fim como não houve princípio]. Esta é a nossa rebeldia. E o nosso relacionamento com Deus, estabelecido sem Cristo e fora de Cristo; aquém da ressurreição; antes de sermos chamados à ordem; e o relacionamento no qual, verdadeiramente, não reconhecemos a Deus como Deus, e o que chamamos Deus é, na realidade, o próprio homem. Servimos a este NÃO-DEUS para vivermos segundo nossos desejos [abafando a consciência com o deus-ídolo, criado à nossa própria imagem]. Os quais “detêm a verdade, presa nos grilhões de sua insubordinação”. Esta é a segunda característica [daqueles sobre os quais paira a ira de Deus; a primeira, (assim chamada porque o Autor tratou primeiramente dela) é a troca entre a temporalidade e a eternidade, ou vice-versa]. Todavia essa segunda característica é cronologicamente mais antiga pois surgiu com o pecador original [quando o homem quis ser igual a Deus. O ser humano perde-se primeiro em si mesmo, presa de sua própria conduta, [retendo a verdade] e depois pela criação (e adoração) do NÃO DEUS. Ouvimos, primeiro, a profecia: “Sereis como Deus!” Depois perdemos o senso do eterno. Primeiramente sobre-elevamos o homem e, em seguida, menosprezamos a distância que nos separa de Deus. O ponto nevrálgico do nosso relacionamento com Deus, fora de Cristo e sem Cristo. é a revolta do escravo. [Revoltamo-nos contra Deus e, nessa rebeldia] atribuímos a nós o que só pode ser atribuído a Deus e, conseqüentemente, nada temos acima de nós para atribuirmos a ele, pois somos para nós mesmos o que Deus deveria ser. Quando [em nosso íntimo], secretamente, nos fazemos iguais a Deus, nós nos isolamos dele. O pequeno Deus que criamos, dispensa, necessariamente, o grande Deus. [Por isso] os homens aprisionam, encapsulam, a verdade, que é a santidade de Deus que procuram vestir em si mesmos e assim despojam a seriedade e o alcance dessa santidade, tornando-a vulgar, inócua, inútil; transformam-na em inverdade. Este desfecho vem à luz [se revela] pela impiedade dos homens o que [em círculo vicioso] gera novas e constantes rebeldias. Quando o homem se torna o seu próprio Deus, precisa criar o ídolo [para representar a sua criação] pois, elevando o ídolo em honra, honrar-se-á a si mesmo como o criador da [tão honrada] imagem [e portanto digno de honra ainda mais alta]. Esta é a resistência que nos torna impossível olhar a planície da nova dimensão e nela ver a limitação de nosso mundo e a nossa salvação. A situação é esta:

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Vs. 19-21 A idéia de Deus lhes é conhecida, Deus a deu ao conhecimento deles pois as coisas invisíveis estão manifestas, desde a criação do mundo, nas suas obras, se forem observadas sensatamente, (e este é Justamente o seu Poder Eterno, a sua divindade!) que não haja desculpa, porém, a despeito do conhecimento que tiveram de Deus eles não lhe tributaram honra nem lhe renderam gratidão, antes, esvaziou-se o seu pensamento e obscureceuse-lhes o coração insensato. “A idéia de Deus lhes é conhecida”. Esta é a tragédia na história da paixão da verdade [a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo]. A verdade da limitação e anulação do homem pelo Deus desconhecido, a qual surge, e se torna conhecida, com a ressurreição. Ao deparar com a nossa limitação e com o fato de que quem nos cerceia é também quem suprime esse cerceamento, o raciocínio humano, desde a sua forma mais primitiva até a sua forma mais elaborada, cairá, repetidamente, em “desesperadora humildade” e na “ironização da inteligência”. (H. Cohen). Sabemos que Deus é o Deus que não conhecemos, e que esta ignorância é, simultaneamente, o nosso problema e a origem de nosso conhecimento. Sabemos que Deus é a personalidade que não somos e que justamente este NÃO-SER anula e também estabelece nossa personalidade. Esta idéia de Deus, a introspecção na absoluta heteronomia sob a qual nos achamos, é autonomia: quando resistimos a ela, não reagimos contra algo estranho mas contra o que nos pertence, que está ao nosso alcance, junto de nós, e não contra coisa distante, remota. Essa idéia acompanha-nos constantemente como problema e advertência; é o abismo oculto mas também o lar secreto — origem e destino de todas nossas caminhadas. Se formos infiéis a ela, se-lo-emos a nós mesmos. “Porque a invisibilidade (de Deus) pode tornar-se visível”. Esquecemonos disto e é preciso que no-lo seja dito novamente: a naturalidade de nossa presunção, nossa irreflexão e o nosso destemor, que manifestamos em nosso relacionamento com Deus, não é característica inerente ao processo. A sabedoria de Platão, há muito, reconheceu o desconhecido como sendo a origem do conhecido. Olhos perquiridores e incorruptos como os de Jó e do Pregador Salomão, também há muito, encontraram o modelo ideal, o invisível, a inatingível altura de Deus, no espelho das coisas visíveis. A voz de Deus é sempre perceptível [até nas vulgares características da atmosfera], no tempo, e leva-nos a reconhecer que falamos tolamente, e das coisas que estão por demais elevadas acima de nós, sobre o que nada entendemos, quando falamos fazendo o panegírico de Deus ou quando nos apresenta-

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mos ante a sua face quer como acusadores, quer como queixosos, arrazoando com ele conforme o fazemos com nossos semelhantes. A problemática de nossa existência e de nosso ser, a vaidade e a incerteza de tudo o que é e o que somos, está sempre diante de nós como um livro didático, aberto. O que são as obras de Deus em suas formas as mais enigmáticas (um jardim zoológico, por exemplo) se não perguntas que não têm respostas diretas e das quais só Deus, Deus mesmo, é a resposta? O NÃO divino que aponta à nossa limitação e, nela, para a nossa saída dela, pode ser percebido e compreendido pela contemplação sensata, calma, objetiva e sem religiosidade preconcebida, das obras de Deus, desde a criação do mundo. Nada e ninguém, senão nós mesmos, pode impedir que a idéia de Deus nos faça entrar na mais salutar das crises que, na realidade, começa a manifestar-se desde o momento quando nos dispomos a ver sensatamente. A invisibilidade de Deus foi sempre fato inquestionável para todos observadores sábios e está em absoluta correspondência [congruência] com o evangelho da ressurreição, o eterno Poder e a Divindade de Deus. Exatamente isto: nada podemos saber a respeito de Deus; não somos Deus; o Senhor deve ser temido. Esta é a sua preeminência sobre todas as divindades e é isto que o aponta como Deus, Redentor e Criador. (1, 16). A linha divisória entre a temporalidade e a eternidade, entre o mundo presente e o futuro, corta, efetivamente, toda a história; ela foi anunciada há muito (1, 2); ela sempre poderia ter sido vista, [que sempre esteve patente aos olhos que quiseram ver]. A ira de Deus não se revela irremediavelmente sobre os homens que estão sob seu julgamento, pois eles podem reconhecer e amar seu Juiz, “Para que não tenham desculpas” quando não vêem e não ouvem, pois acontece com olhos que podem ver e ouvidos que podem ouvir. Indesculpável é sua impiedade porquanto as obras de Deus, “sensatamente contempladas”, falam do seu Poder Eterno e protestam, de antemão, contra a submissão ao conhecido NÃODEUS, ao qual o Deus verdadeiro é equiparado pelas forças espirituais, materiais e outras deste mundo. Também a sua rebeldia é indesculpável pois a realidade “sensatamente observada” testemunha a “eterna divindade” de Deus e protesta, também de antemão, contra a arrogância religiosa que, no torvelinho de sua aventura, fala em Deus e pensa em si mesma. Se tivermos encapsulado a verdade de Deus e, assim, atraído sobre nós a sua ira, não foi porque não tivemos outra alternativa pois “Deus, em quem

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vivemos, nos movemos e existimos não está longe de cada um de nós” (Atos 17, 27-28). Portanto, no que concerne a Deus, a situação poderia ser diferente. Porém, “a despeito de seu conhecimento de Deus”... O conhecimento de Deus que nos é dado com um simples relance de olhos sobre a inexplicabilidade, a imperfeição e a insignificância de nossa vida, não foi levado a proveito. A invisibilidade de Deus parece-nos menos suportável que a tão duvidosa visibilidade daquilo que gostamos de designar por Deus. Da pressuposição eterna e fundamental do Criador faz-se uma “coisa” em si, acima e ao lado das demais coisas; da viva abstração de toda materialidade, criamos uma coisa concreta, ainda que seja a coisa mais sublime entre todas. Do Espírito, criamos um espírito; do Não Aproximável (e por isso tão próximo de nós) fazemos o objeto eternamente incerto de nossas experiências. Em vez de vermos a luz na sua luz que é a luz eterna que ninguém pode apagar, fazemo-la apenas uma luz entre outras ainda que a reputemos a maior, a mais fantástica, sobrenatural; achamos lógico acender a nossa luz nessa luz sobrenatural e, com a mesma lógica procuramos a luz nas coisas concretas que nos cercam. Onde fica, pois, a tributação da honra que lhe devemos quando Deus já não é mais o Desconhecido? Onde a gratidão que lhe pertence quando, para nós, ele já não é mais do que aquilo que nós mesmos somos? Prometeu tem o direito de insurgir-se contra Zeus, o “NÃO-DEUS” que usurpa o lugar de Deus. Conseqüentemente, a luz que há em nós são trevas e a ira de Deus sobre nós é inevitável. “Esvaziou-se o seu pensamento e obscureceu-se o seu coração insensato”, e a nossa limitação é verdadeiro emprisionamento e o NÃO divino significa realmente NÃO, para nós. Insensatamente senta-se o homem sobre si mesmo e enfrenta as absurdas e ativas forças do mundo [absurdas porque não têm sentido, são nulas e vãs] pois a nossa vida só tem sentido e é sensata quando voltada, orientada para o Deus verdadeiro. Esta orientação para Deus, este relacionamento, precisa ser estabelecido para que a nossa mente e nosso coração, contemplando com sensatez, sejam quebrantados com a lembrança da eternidade — [ou, em outras palavras, para que a lembrança da eternidade de Deus, proclamada por suas obras, seja percebida por nós, invada nossa mente e nosso coração, e nos oriente, nos aproxime do Deus eterno, em Cristo Jesus.] Outra relação com Deus que não aquela do caminho de Jó, não existe. Se não houver o rompimento [da casca externa, criada pela nossa resistência

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1, 18-21

pessoal] então o pensamento continua vazio, formal, analista e crítico, infrutífero, inadequado para perceber a abundância das manifestações [do Poder de Deus]; incapaz de compreender as coisas particulares no contexto do conjunto. A mente não convenientemente aberta orienta-se, naturalmente, para as coisas materiais e o coração não contrito, não sentindo nas obras manifestas a visão final da natureza espiritual de Deus, entrega-se ao domínio do pensamento materializado: tenebroso, cego, sem poder de crítica, erige o acaso em valor real e cria um “ser especial” para si. Fica a alma estrangeira no mundo e o mundo sem alma quando o mundo e a alma não se encontrarem no reconhecimento do Deus desconhecido. O homem foge do verdadeiro Deus, a cujo encontro deveria ir para renunciar a si mesmo e também ao mundo e, assim, reencontrar a ambos. Esta [relutância do homem em perder-se, em entregar-se a Deus] é a causa, a origem da NOITE na qual peregrinamos: a origem da ira de Deus, sobre nós revelada. Comentários: 1, 18-21 Sim, esta é, segundo o Autor, a origem da ira de Deus e das trevas espirituais que sob a dispensação dessa ira nos envolvem. 1. Sob o pálio desta ira divina, há uma noite sem esperança, sem aurora, sem novo dia, sem nova vida. É a própria morte, sem a ressurreição, que “o salário do pecado é a morte”. E como é provocada essa ira divina? Qual a sua origem? Ela advém sobre aqueles que obstruem a verdade. Ela se origina pela negação e sonegação da verdade por parte de homens ímpios e rebeldes a Deus. Ímpios porque agem desrespeitosamente para com Deus e rebeldes porque, cedendo à primitiva e milenar tentação que ruge em torno da raça humana desde os dias edênicos, rejeitam o temor e optam pela promessa da profecia satânica: “Sereis iguais a Deus”. 2. Para alcandorar-se na aparência dessa igualdade precisam os rebeldes criar um mundo à sua feição, um mundo que negue o NÃO divino transformando-o num conveniente “SIM” a todos os caminhos largos e cômodos da vida; opções que não exijam luta, renúncia e negação aos interesses imediatistas; que sob o manto da piedade religiosa tolerem o erro; que sob o disfarce do amor ao próximo, releguem o amor a Deus que deve ser acima de todas as coisas, e possam os homens amar-se a si mesmos e receber a honra (e as vezes até os proventos materiais) que os seus próximos julgam por justificável conferir-lhes.

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1, 18-21

Origem da Noite

3. Cria-se assim um círculo apertado de reações em cadeia: o homem rebela-se contra Deus e cai na impiedade que o leva a novas rebeliões e, nessa sucessão trágica, não percebe, na linha do horizonte, lá onde os planos deste mundo e do mundo de além se cruzam, o ponto alto de onde emana o Poder de Deus — a boa nova da ressurreição que, esta sim, só ela, pode reconduzir o homem à situação nobre da imagem e semelhança de Deus. 4. Então por que e como é a verdade detida? — Porque a verdade desmascara a pretensa igualdade do homem a Deus, ela liberta o mundo do círculo vicioso e aponta ao poder de Deus. Para impedir que a sua glória transitória cesse de pronto, os rebeldes entronizam o seu próprio deus, um ídolo. Não necessariamente imagem de barro ou pedra, de refinado ouro ou prata, ou de tosca madeira graciosamente lavrada, mas imagens criadas com sua filosofia social, política, humanizante; com sua cultura e sua ciência; filosofias e teologias que trazem Deus ao nível das coisas humanas, materiais e finitas; tornam-no um ser, um ente, inda que sobrenatural, fantástico, acima de todos e de tudo, porém comparável a nós mesmos (pois o homem quer ser igual a Deus) e em vez de apontarem ao verdadeiro Poder de Deus, contemplável nas obras de suas mãos e na ressurreição de Jesus Cristo, apontam a outros poderes, criados ora pela mistificação humana, ora pelo seu gênio, pela sua sagacidade e até pelo seu sério e bem intencionado desejo de servir, de defender, de proclamar a esse deus do mundo que julgam, em seus corações obscurecidos e suas mentes vazias, ser o Verdadeiro Deus. Apontam ao “poder de cura”, ao “poder do que entendem ser o Espírito Santo de Deus”; ao poder do louvor ainda que seja um louvor enlameado pela sujidade e baixeza dos homens, como se Deus, o verdadeiro Deus, fora subornável por semelhantes processos ou outros quaisquer que se pudessem imaginar ou vir a imaginar. 5. Os ídolos ideados e manipulados pelo homem, obscurecem e toldam a visão dos que os servem com tão densas trevas a ponto de fazerem desaparecer de vista a exuberante luz que brilha, não ao lado, nem acima, nem mais fulgurante, mas única, absoluta, incomparável — a Santa Luz de Deus. Todavia, agimos nesciamente. Fazemos de Deus a nossa luz, não exclusivamente por amarmos essa luz, mas na ânsia de que essa luz, ou luz igual, brilhe em nós, e brilhe não para que também por essa obra os homens louvem a Deus, mas para que sejamos gloriados nela; fazemos

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A Atuação da Noite (1, 22-32)

1, 22

de Deus o nosso protetor e guia não porque, genuinamente, queiramos honrá-lo mas porque desejamos ser guiados e protegidos para nosso benefício; ousamos dirigir a ele as nossas súplicas que, na melhor das hipóteses, são bem intencionadas quando não são fúteis, vãs, irrelevantes, egoístas; acercamo-nos do trono de graça, não para adorar mas para suplicar: suplicar pela recompensa, pelo bem estar, pelo privilégio, por “tudo isto e o céu também” — enquanto de passagem, como por desobrigação, balbuciamos umas poucas palavras de gratidão. 6. Quem, porém, pode achegar-se a Deus? O grande Deus desconhecido, o Criador do Universo e dos milhares incontáveis mundos e de tudo o que neles habita? Quem sabe o que pedir e como pedir? E por isso que o Espírito, em brados inexprimíveis, intercede por nós (8, 26). Quem há perfeito? Quem Santo? Quem puro? Quem digno de comparecer perante Deus? Mas, glória das glórias! Temos a graça de Deus que nos é mais que suficiente e nos repõe na posição que teve Adão antes de pecar: esta graça é o Poder de Deus, testificado, comprovado, publicado e proclamado pela ressurreição de Cristo. Neguese pois o homem a si mesmo, tome a sua cruz e siga-o, e a salvação raiará em seu coração enchendo-o de luz e sua mente haurirá a sabedoria divina e ele será qual árvore plantada na orla das águas e a seu tempo produzirá os frutos de um espírito reto.

A Atuação da Noite (1, 22 - 32) V. 22 Imaginaram que eram sábios e tornaram-se néscios. É fora de dúvida que o panorama do mundo sem o paradoxo [que se sintetiza no fato de ser preciso perder a vida para ganhá-la e) que se manifesta pela vida que brota pela morte (para o mundo); pela justificação que vem após a condenação; ou, conforme o dizer pitoresco de Lutero, pela condução ao céu mediante o lançamento no inferno, (isto é, somente após o homem reconhecer o seu absoluto afastamento de Deus, é que se lhe abre a porta estreita do caminho apertado que conduza à salvação); sem o paradoxo de que é preciso sentir o cativeiro para alcançar a liberdade, ser pobre para ficar rico, ser humilde para merecer a exaltação, ser fraco para tornar-se forte, ser servo, para ser senhor!’ Sem o paradoxo de ser uma só a fonte de onde emanam o eterno NÃO e o eterno SIM de Deus] sim, o panorama do mundo sem esse paradoxo, e sem as implicações da Eternidade; sem o pano de fundo do “Não” conhecido que acompanha o conhecimento; com religião [ou religiões] sem referência ao Deus

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1, 22

A Atuação da Noite

Desconhecido; com existência tranqüila sem a confrontação constante corri o NÃO divino, tal mundo teria muito a seu favor. A simplicidade, a retilineidade, a fluência desobstruída e, sobre tudo, a relativa segurança, o equilíbrio espiritual e a notável coincidência das experiências pessoais com as exigências da vida prática, a benfazeja falta de clareza e a elasticidade dos conceitos e das escalas, o campo liberal das infindáveis possibilidades que se apresentam, tudo isto, [conseqüência do mundo “libertado” da presença de Deus] torna a terra sobre a qual vivemos [aparentemente], cada vez mais digna de confiança. Depois de havermos desistido de “observar sensatamente” (1. 20) [e perceber a existência de Deus na voz do universo] podemos bem ser sábios nesta terra. A NOITE tem, também, a sua sabedoria, mas nem por isso deixa de ser real o esvaziamento do entendimento e o obscurecimento do coração. O brilho da sabedoria do mundo não fará parar a marcha das coisas, nem impedirá a manifestação da ira de Deus, pois o não reconhecimento de Deus. como Deus, não significa somente erro intrínseco, ou teórico, mas atitude fundamentalmente errada com relação à vida. De mente vazia e de coração obscurecido brota, certa e necessariamente. um procedimento errado e, quanto mais seguro se sentir o homem insubmisso em seu caminho, [pelas ilusões que sua rebeldia lhe traz], mais se transformará ele em seu próprio palhaço, [pois engana-se a si mesmo]. Também são mentirosas a moral e a conduta que tiverem por fundamento a supressão do abismo, o esquecimento do lar. (Isto é, não será sadia a moral das pessoas que se esquecem de onde vieram, originariamente, e que não se lembrarem (intencionalmente ou não) que existe uma separação profunda, um abismo, entre Deus e o homem o qual este deve transpor (pela fé) para reconciliar-se com Deus. Quando ignoramos (ou pretendemos ignorar) a separação que existe entre nós e Deus, é porque, ou não temos compreensão de nosso estado por absoluta insensibilidade espiritual e moral, ou é porque fazemos de Deus nosso igual, quer trazendo-o ao nosso nível ou fazendo-nos iguais a ele; embora estas duas alternativas levem ao mesmo fim prático há certa diferença teórica no processamento do fenômeno, pois o primeiro se origina de desrespeito direto a Deus e no segundo, que visa em primeiro lugar à elevação do homem, o desrespeito a Deus é conseqüência; porém ambos são desrespeitosos. [Ambos são formas da efetivação da mais velha tentação da raça humana: a igualdade com Deus; e quando o homem entra neste estado deixa de ser reta a sua conduta e os seus costumes já não são morigerados, pois para o homem deixou de existir o padrão de aferição, o ponto de referência que fica acima dele, imutável distante e, sendo o seu deus igual a ele, o padrão é a sua imagem

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A Atuação da Noite

1, 22-24

vista no espelho, porém ainda menos perfeita — ou melhor, inferior a ele mesmo, pelas distorções que o espelho naturalmente produz, desencadeando uma degenerescência progressiva entre a imagem e a inspiração]. Vs. 23 e 24 E eles trocaram a glória do Deus incorruptível [eterno] pela imagem da aparência dos homens corruptíveis [efêmeros, passageiros] e de aves: e de quadrúpedes e de vermes. Por isso Deus os entregou para serem presa da impureza, segundo a cobiça de seus corações, para que seus corpos fossem desonrados neles mesmos. “Eles trocaram a glória do incorruptível” [eterno] pela imagem do corruptível [efêmero] isto é, perdeu-se o sentido do que há de específico em Deus. Foi esquecida a fenda na geleira, a região polar, a zona árida, que o homem deverá transpor, quando e se quiser, de fato, dar o grande passo que vai da temporalidade para a eternidade. [Ante tal esquecimento] a distância entre Deus e o homem não tem mais a significação marcante, fundamental, aguda. dissolvente, a ser reparada, observada atentamente, uma vez por todas. Desapareceu a diferença entre a eternidade de Deus, a sua existência desde antes de todas as coisas, a sua superioridade de um lado e, do outro, a temporalidade, a relatividade, a condicionalidade da existência e modo de ser da raça humana. Os olhos que deveriam ver [a glória de Deus] estão embaciados. Levanta-se a meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente outro, a neblina a opacidade religiosa [quando essa religiosidade tem por centro a imagem do próprio homem, assentada sobre o trono divino] na qual, com os mais variados processos de identificação e mistura e com coloridos sexuais menos ou mais carregados, ora se erigem acontecimentos humanos e animalescos em experiência divina, ora a existência e a ação de Deus são experimentadas como vivências humanas e de animais. O centro, o miolo desta neblina é formado pela loucura (pela alucinação) segundo a qual seria possível existir qualquer unidade [qualquer coisa em comum] ou, ao menos, qualquer possibilidade de ligação entre Deus e os homens [aquém ressurreição], sem que se anulasse toda a realidade conhecida e sem que desaparecesse a verdade que existe para antes do berço e além do túmulo. [Esta ligação], todavia, faz-se pelo milagre que vem perpendicularmente do alto, [O milagre da entronização de Jesus, como o Cristo]. Toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que um vazio, que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus, qualquer que seja o nível em que se situe, é uma desavergonhada e, já de antemão,

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1, 24

A Atuação da Noite

fracassada pretensão de antecipação do que sempre foi e só pode ser verdade quando procede do Deus desconhecido. Semelhante procedimento é histórica, material e concretamente — e sempre — uma traição a Deus. E o nascedouro do “NÃO DEUS”, o surgimento dos ídolos pois, no meio da neblina que tolda a sua visão, esquece-se o homem de que tudo o que é passageiro, embora seja em semelhança, é apenas semelhança. A glória eterna de Deus é trocada pela imagem de seres perecíveis (Sal. 106. 20). Problemas diversos, tais como os temores e os anseios, os meios de subsistência, alguma justificação adequada, determinado modo de pensar ou agir, ou talvez algum aspecto impressionante da natureza ou da história tornam-se, por vezes, tão extremamente sérios para uma pessoa [a ponto de obliterarem a idéia de Deus ou de se constituírem em verdadeiras imagens, na mente obcecada] todavia o fim de tais problemas [devidamente observados com mente sensata], leva também ao Criador, ao Desconhecido, cuja glória não pode ser confundida com a de uma imagem, por mais fina e pura que esta o seja, pois ela não e sua igual. Há um pretenso encontro direto do homem com Deus [e dizemos], pretenso porque só seria verdadeiro, real, o encontro que não se condensasse em “experiência” [em acontecimento]: o encontro que [desmentisse qualquer pretensão a coisas palpáveis, concretas] e realçasse o vazio, o vácuo, o espaço aberto; que fosse indicação de falta, carência ou motivação [para algo a ser feito]. [São assim os encontros de que a Bíblia nos fala: Jacó temeu aterrorizado (Ge. 28, 17); Moisés, temeu, escondeu o seu rosto, pois nada tinha de si: “Quem sou eu?” disse (Ex. 3, 6 e 11); Isaías, só viu a vacuidade, a parte negativa, extremamente negativa de sua situação: “Ai de mim, que vou perecendo, porque sou homem de lábios impuros e habito no meio de povo de impuros lábios”. (Is. 6, 5); Paulo caiu por terra, cego e, atônito e trêmulo, esvaziou-se completamente, deixou de dirigir para ser dirigido, para perguntar, “quem és?”, “que queres que eu faça?” (At. 9, 5 e 6). No encontro verdadeiro do homem com Deus, desaparecem a pretensão e a arrogância, a auto-suficiência, a piedade, a religiosidade, a ortodoxia, a fé jactanciosa, a alegada retidão, o valor próprio; tudo que a alma aufere para seu eventual conforto, transforma-se em mera indicação do muito que falta, em origem de nova compreensão, novos deveres e novos ideais; a “experiência do encontro” é, em si mesma, um valor negativo que aponta para o lado direito da escala, em cuja direção os valores são menos negativos e hão de chegar gradativamente ao ZERO, para só então começarem a ser positivos; é assim que a experiência do encontro verdadeiro é de esvaziamento, de vacuidade, que de certa forma se anula na própria dádiva, realçando

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A Atuação da Noite

1, 24

o mais, o muito mais que existe. Mas não é assim o falso encontro com Deus, ou o encontro com o NÃO-DEUS; deste encontro sai o homem cheio de convencimento, pleno de gozo, repleto, satisfeito, jactancloso. Será preciso exemplificar os encontros desse teor, que por aí polulam sob os mais variados nomes, protestantes, católicos, espíritas e “espiritualistas”, macumbeiros e quejandos, “curadores” e “curandeiros”, recebedores de “Espírito Santo” e de espíritos, milagreiros, videntes, iogas...?]. Desse suposto encontro com Deus brotam por deduções mediatas e por ilações, divindades imaginárias, poderes, principados, potestades (8, 38) que mudam o colorido e obscurecem a luz do Deus verdadeiro. (Em nenhuma parte do mundo existe maior número de “comunicações indiretas” que no romântico reino da “comunicação direta” India!). É sempre onde a distância qualitativa entre o homem e [o grande] fim [a tradução inglesa diz “entre o homem e o ômega], é negligenciada — (essa distância que fundamenta [que solidariza] o homem) — é aí que se instala o fetichismo, com o endeusamento de “aves, quadrúpedes e vermes”, acabando e começando com a “figura do homem corruptível” (“a pessoa”, “a criança”, “a mulher”) e nas respectivas criações “materiais espirituais”. (Família, Povo, Estado, Igreja, Pátria, etc.) Aí vive o deus [deste mundo] e o Deus que habita além de tudo “isso” e “aquilo” é abandonado. É assim que se criam os ídolos e o “NÃO-DEUS”. “É por isso que Deus os abandonou”. Essa troca do Deus verdadeiro pelo NÃO-DEUS cria o seu próprio castigo pois o esquecimento do Deus verdadeiro dá lugar à sua ira contra os que o esqueceram (1, 18). A empreitada da criação do NÃO-DEUS tira vingança de Si mesma, com o seu próprio êxito. As forças naturais e anímicas [ou espirituais] que foram idolatradas são, agora, deuses, e reinam em nosso ambiente como Júpiter e Marte, Isis e Osiris, Cibele e Atis. A nossa atividade e nosso procedimento passam a ser regulados por aquilo que queremos; portanto, forçosamente alcançaremos o alvo que nos propusemos, a saber: que todas as imagens e semelhanças, cujos significados ignoramos, se transformem em objetivo, conteúdo e fim. E o homem torna-se escravo e joguete das coisas [da matéria], de toda natureza e cultura ciência] pois ele ignorou que Deus é o Senhor de todas as coisas e tem o poder de sustentá-las e suprimi-las. Já agora não tem o homem alguém superior que o proteja das coisas e criaturas que ele mesmo elevou ao ponto mais alto acima dele, e a impureza de seu relacionamento com Deus, lança a sua vida na imundície. Se Deus foi destituído de sua glória pelo homem, [por força maior] perde o homem a sua. Junto com o interior envergonha-se o exterior; com a alma, também o corpo, pois o homem é uma unidade.

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1, 24-25

A Atuação da Noite

A parte material de seu ser, como criatura, torna-se-lhe em desonra. [Isto é, o corpo do homem, criado em unidade com o espírito, passa a ser aviltado e aviltante]. Líbido, a sexualidade em seu sentido mais restrito e também mais lato, passa a ser a motivação de toda sua conduta e seu lidar, força perigosa e suspeita no mais alto grau. Eis, agora, o homem obrigado a suportar toda a ignomínia do mundo como humilhação e desonra; há de lamentá-la e amaldiçoá-la e, no seu afastamento de Deus, há de testemunhar, sempre de novo, que ele quis dar vida ao Deus conhecido deste mundo. E pois, este Deus conhecido que ele vive [ou que vive nele]. Vs. 25 e 27 Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e tomaram o mundo criado, por santo e digno de honra, em lugar do Criador que é bendito para todo o sempre, amém! Por isso Deus os abandonou a paixões aviltantes; suas mulheres abandonaram o uso natural do sexo pelo uso antinatural e, semelhantemente, seus homens deixaram as relações naturais com as mulheres e abrasaram-se com seus desejos, entre si; homem com homem, fazem vergonha e colhem em seu próprio corpo a esperada recompensa de seu erro. “Trocaram a verdade pela mentira”. A queda, o afastamento de Deus, [ainda que de início, à primeira vista, tenha a aparência de uma atitude simples, superficial,] toma logo proporções graves. [Supor] a existência direta de Deus na criatura poderia ser ocasionalmente e por assim dizer, uma simples leviandade, [ou uma pilhéria, trocando a divindade de Deus pela materialidade], um erro de caráter superficial; uma espécie de diluição da verdade divina na soma de todas as verdades. Todavia, quando a possibilidade da substituição da verdade divina pelo mundo material surge, a troca séria, real, profunda, da verdade pela mentira não se faz esperar. A pequena neblina que se forma entre Deus e os homens, lá onde as distâncias desaparecem, transforma-se célere em mar de nuvens, no qual os pólos opostos — (a posição do homem com relação a Deus) — desaparecem e o antagonismo ao Deus desconhecido, até então semi-consciente, revela-se plenamente. A vista embaciada adoece. As potestades e os principados que foram levados até o trono, entronizam-se definitivamente, lançando mão da coroa radiante da divindade e poder eternos, (1. 20); e o Criador, a fonte eterna, é relegado a posições cada vez mais abstratas, mais teóricas, menos queridas e menos significativas.

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A Atuação da Noite

1, 25-27

O NÃO-DEUS, o super-concreto, vence, embora possa restar um vestígio, um vislumbre do Deus desconhecido, acaso perceptível dentro da importância e glória do mundo, para além daquilo que, com o coração corrompido [e obscurecido] dizemos ser nosso Deus. O Deus desconhecido que é a única realidade, passa a ser considerado como aéreo, problemático, vago, irreal, enquanto o mundo, este sim, absolutamente aéreo, problemático, vago e irreal, junto com o homem separado de Deus e sem dele guardar memória, rebelde, julga estar envolvido em santa auréola de segurança, necessidade e realidade. [Auréola, sim, porque não tendo percepção do grande e permanente NÃO de Deus a todos que, em sua rebeldia, provocam e atraem sobre si a sua ira e que, talvez, nem sequer tenham noção que estão em rebeldia, sentem-se em segurança absoluta; suas necessidades são atendidas porque são as exigências fúteis e triviais que eles mesmos criam no mundo como sendo o supra-sumo das benesses, as quais o mundo está em condições de dar, e se acaso se achegam ao deus por eles criado, para pedir-lhe alguma coisa, fazem-no do alto para baixo; pedem a quem pode menos; por isso hão de bastar-se a si mesmos; se crença e esperança houver, será superstição e não fé; ainda que a chamem por fé. Tentarão conquistar o seu deus, subornando-o com promessas ou comprando-o com dádivas, porém subconsciente e conscientemente convictos do mero acaso do atendimento eventual. Sentir-se-ão realistas e vangloriar-se-ão de seu realismo, pois as coisas transcendentais de suas vidas passaram a ser dominadas por eles mesmos. Criaram para si uma ambiência um MODUS VIVENDI e um MODUS OPERANDI, em função do conceito de Deus e do mundo que os envolve numa auréola que no final, conduz ao desengano, à frustração, ao desespero, à desonra e à morte]. O mundo passa a ser santo e venerável, e em casos de aflição e necessidade, prescinde do Criador. Neste particular os cultores das ciências físicas e naturais e da história universal, estão mais de acordo com as religiões do mundo do que se possa supor. O mundo, porém, não fica apenas em posição de igualdade com Deus, mas toma-lhe o lugar; e usurpando o lugar divino passa a exigir para si a mesma piedade [o mesmo fervor e o mesmo louvor] que o devoto do estilo antigo tributava a seu Deus. (D. Fr. Strauss). Os contrastes dentro do mundo erigido em deus não são muito acentuados. Natureza e Civilização (ou cultura), Materialismo e Socialismo, Mundanismo e Igreja, Imperialismo e Democracia, são contrastes para os quais não há paradoxo; para ales não existe o NÃO divino, nem há Eternidade. “Por isso Deus os abandonou”.

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1, 27-28

A Atuação da Noite

A natureza não quebrantada [não sujeita, não submissa a Deus] não é pura. Nada lhe adianta ser transfigurada [sublimada] religiosamente [sem entregar-se verdadeiramente a Deus, e sem aceitar o NÃO divino e o paradoxo da fé]. Nela está sempre jacente, [oculto, espreitando a oportunidade para se impor] o antinatural que despontará na primeira ocasião que tiver a menos que seja dominado pelo Poder de Deus]. A troca de Deus pelo mundo significa dar livre curso à natureza, e isso acarreta a inevitável, a fatalmente necessária substituição de Deus pela sua caricatura demoníaca, [pois se Deus foi tirado do trono divino para nele se entronizar outro deus, este só pode ser o príncipe das trevas que tentará imitar Deus, em caricatura]. É a caricatura que visa a estar na mesma linha, à altura de Deus. O que já é, de per si, duvidoso, corre ao encontro do absurdo. Líbido passa a ser tudo; a vida erótica deixa de ter freios, pois a muralha entre o “normal” e o perverso rui por terra quando deixa de haver entre o homem e Deus, uma barreira fechada, um cerceamento final, uma limitação. [Quando uma caricatura demoníaca de Deus passa a ser o deus que rege os destinos humanos a lamentável situação chega depressa às raias do absurdo. O homem que perdeu o respeito a Deus logo perde o respeito a si mesmo e aquelas partes de sua natureza corporal que parecem menos dignas, passam a receber maior honra (I Cor. 12, 23); acompanhando de pronto a inversão absoluta de valores, instituída com a substituição de Deus pela sua caricatura demoníaca, tais partes passam a parecer quais as mais dignas e dão ao homem maior desonra. A troca do Deus verdadeiro pela caricatura demoníaca leva o homem a proceder licenciosamente e a considerar os reclamos naturais do vício, que nunca diz basta, como próprios atributos normais da natureza, criados por Deus nessa sua forma aberrante, e daí prontamente são transferidos ao deus criado pelo homem; acaso não é vulgar, citando apenas a título de exemplificação, justificar-se o amor sensual, libertino, mediante um paralelo com o amor divino? Não é corriqueiro no mundo “Hippy” e em outros ambientes mais tradicionais, classicamente, tomar por incentivo à paixão, a afirmação bíblica de que “Deus é amor”?] Vs. 28-31 Há ainda um detalhe importante, real e final dessa situação, que precisa ser analisado: até mesmo no relacionamento errado com Deus, existe um “resto” de “observação sensata” uma última sensação de advertência, mostrando o mistério de Deus que se opõe à arrogância religiosa. [Atrás, e para além do procedimento desarvorado do homem que modela sua conduta no deus que erigiu para si e ao qual atribui grosseira ou subrepticiamente suas qualidades e seus vícios e os recopia diluindo uns e ampliando os

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A Atuação da Noite

1, 28-32

outros, existe ainda para o homem uma certa percepção da glória do Deus verdadeiro que lhe diz NÃO!]. Um reflexo desse mistério cai também sobre as endeusadas forças mundanas e sobre o universo idolatrado: este escasso vestígio do Deus desconhecido sobre o deus deste mundo, sobre o “NÃO-DEUS”, será sentido como um pressentimento, um calafrio de repreensão. Ora, isto também poderá cessar. O olho doente pode cegar; a falta de conhecimento pode levar à ignorância total do homem com relação a Deus, à agnosia (1 Cor. 15, 34). ”Como perderam o juízo necessário para o conhecimento de Deus, Deus os abandonou a sua mente réproba para praticarem apenas coisas inconvenientes, cheios de toda rebeldia, imprestabilidade, ganância, malícia, inveja, sanguinolência, (criminalidade), rixa, velhacaria; cochichadores, caluniadores, sem misericórdia, desavergonhados, ostentadores e jactanclosos, inventores de vilezas, respondões aos pais, insensatos e sem caráter sem afeição natural e impiedosos”. “Como perderam o juízo necessário para o conhecimento de Deus”. Eles não estão mais em condições de, serenamente, se admirarem ou se atemorizarem e a considerar qualquer outra coisa além de descobertas, experiências, ocorrências; na realidade, raciocinam, agora, apenas por sofismas mais ou menos espiritualizados, sem luz do alto e sem fundamento. Assim veio o esvaziamento total, a destruição total. O caos se desfez em seus elementos e tudo se torna possível. [Este não é o vácuo negativo com relação a Deus, que abre o caminho, que limpa o coração para entrar o sol da verdade mas é o vazio absoluto, final e fatal, do coração e da mente, que persiste em desprezar o Deus e Criador, substituindo-O pelo deus de sua criação]. Surge um mundo cheio de caprichos pessoais e injustiças sociais que não é uma característica restrita à Roma dos Césares. O que se levanta [nesse mundo do “NÃO-DEUS”] é a verdadeira natureza de nossa existência insubmissa; e nosso desrespeito, a nossa rebeldia, estão sob a ira de Deus. V. 32 Não deveria ser difícil compreender o inter-relacionamento [do homem com o deus por ele criado e a ira de Deus a que está sujeito].: “Mas eles, conhecendo a ordenação de Deus de que aqueles que tais coisas praticam são dignos de morte, não só as praticam eles mesmos, como facilitam o caminho [aos outros].”

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A Atuação da Noite

Esta é a sabedoria da noite que a si mesma faz néscia. (1. 22). Louca é ela porquanto se coloca firmemente num ponto de vista superficial das coisas humanas, que os fatos continuada e reiteradamente desdizem e negam. Todavia esta sabedoria vê aonde leva o caminho da insubmissão do homem, e seu alvo não lhe está oculto. Ela conhece a origem de sua noite e a sua ação, todavia não ousa gritar-lhe: PARE! A surpreendente queixa da fraqueza da existência terrena e a quase incompreensível queixa da pecaminosidade da raça acompanham sempre o caminho do homem que esqueceu o seu Criador. [Mas os que assim se queixam e lamentam] continuam com os olhos voltados para baixo, para o chão, e amam, desejam promovem, confirmam, acham bom o que aí edificaram, e defendem essa obra, acirradamente, contra todo o protesto justo que se lhe oponha. Por que será tão difícil lembrar-se o homem do que esqueceu, quando o resultado desse esquecimento e tão claro, quando é tão evidente que a nossa perambulação pela “Noite” leva a morte?! Comentários: 1, 22-32 1. Aquilo que me pareceu ser a nota mais sonora da introdução, o combate à idolatria, foi a dominante de todo lº capítulo. Se esse 1º capítulo evidencia que a fé vive por si própria porque vive de Deus (o “CENTRUM PAULINUM” segundo Bengel) e, ainda, se o tema da carta gira em torno da tese de que do encontro da fidelidade de Deus com a fé (que é do homem) surge a justiça de Deus, para que o justo viva, é também patente que, ao analisar este capítulo, Barth destaca e fustiga com extraordinário vigor todos os modelos de ídolos principalmente os de forma mental, intelectual e espiritual — isto é: — a criação de um Deus, não apenas para mitigar temores e carências mas também para justificar condutas, critérios e idéias. E diz Barth que “pelo obscurecimento de seus corações e esvaziamento de suas mentes”, Deus os abandonou a tal ponto de já nem sequer poderem raciocinar com clareza, apegando-se a sofismas. 2. Seria por mero acaso que Barth escolheu a Epístola aos “Romanos”, os tradicionais forjadores de uma nova verdade estruturada sobre os sofismas confirmados pela “tradição”, incapazes de perceber, por exemplo, que a salvação é pela graça sem qualquer mérito das obras; ou então, que o único intermediário entre Deus e os homens é Cristo,

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que só ele é Salvador, que não existe a mínima corroboração bíblica para atribuir à Virgem Mãe o munus de Corredentora, etc. etc.? Barth diz apenas que se impressionou profundamente com a voz de Paulo e que, talvez houvesse nela mensagem para a igreja de nossos dias. 3. Estariam os cristãos romanos do tempo de Paulo exibindo os primeiros sintomas de idolatria que se constituiu em fundamento da, agora, quase bi-milenar tradição? Haveria na Igreja da Capital do Mundo alguma inclinação para julgar-se depositária dos méritos excedentes conquistados pelos santos mártires e pelo próprio Senhor Jesus, para poder transacioná-los com os que a ela recorressem, em permuta com bens materiais em operação bancária SUI GENERIS, em que se trocam riquezas espirituais eternas, porém remotas e distantes, por valores pecuniários que, embora efêmeros e vis, são bem palpáveis? Ou haveria, já então, naquela igreja, alguma tendência para elevar o monasticismo e o celibato à categoria de santidade mediante a profligação do sexo, com a criação da imagem de virgem mãe a quem se veio a negar o privilégio de ter vivido vida regrada e santa com seu marido José, santificando o lar e a família com a bênção de muitos filhos? Nada nos autoriza a pensar que assim fosse mas a análise de Barth aponta com muita firmeza para a privação do raciocínio que, adotando sofismas, redunda na criação de imagens satanicamente caricatas que conduzem a execrandas abominações. 4. Todavia, não há necessidade de que nos detenhamos com a idolatria (aliás sobejamente conhecida) dos “irmãos” de que nos separamos há mais de 4 séculos. A idolatria criada pela imaginação não é privilégio de cidade, povo, igreja ou época. Olhemos para as comunidades que pretendem ser ou são tidas como sendo do ramo protestante: Aí há os que entendem, por exemplo, ser essencial a guarda do sábado (o dia em que sucede à sexta-feira) para a salvação; há os que julgam imprescindível que seja por imersão, o batismo; e há os que pregam como condição SINE QUANON, que ocorram reiteradas descidas do Espírito Santo, com o conseqüente balbuciar de sons ininteligíveis, sem perceber que os que o receberam no Pentecostes, falavam em “línguas estranhas” a fim de que cada um dos muitos estrangeiros então presentes na cidade ouvisse a boa nova “em sua própria língua”. (Atos 2, 6)

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E não estão laborando em sofisma idêntico os calvinistas que querem ver na predestinação bíblica a eleição para a perdição, sem se darem conta de que um tal evangelho seria concomitantemente, um “disangelho”, que traria a boa mensagem para os felizardos que forçosamente haveriam de crer e a má notícia da irrecorrível danação aos miseráveis destinados a não crer, os quais, ainda que porfiassem por entrar pela porta estreita não acertariam com ela; inda que tivessem fome e sede de justiça, não seriam satisfeitos; ainda que estivessem com os olhos bem abertos para ver e entender as maravilhosas obras de Deus e que estivessem com os ouvidos atentos para ouvir a mensagem e abençoar os pés dos que pregam o evangelho, nada entenderiam e nada ouviriam por estarem predestinados à perdição eterna; todavia seriam responsabilizados por nem sequer se esforçarem em ganhar o caminho apertado, não terem interesse em ver a glória de Deus proclamada pelos céus, não darem atenção à voz do evangelho, se escandalizarem com o sinal da cruz, pois o Deus de justiça e amor os teria eleito para esse fim? Que eleição! E homens piedosos, cultos, devotos, confiantes — absolutamente seguros de sua salvação, que se achegam a Deus com grande intimidade, que o proclamam e defendem com ardor, lêem e não entendem que Deus amou o mundo de tal maneira que lhe enviou o seu filho unigênito para que todo o que nele crer não pereça mas tenha a vida eterna (João 3, 16) e manda que os seus discípulos saiam pelo mundo e preguem o evangelho a toda criatura para que todo o que nele crer e confessar sua fé em Deus, seja salvo (Marc. 16, 15). É sempre a velha e reiterada prática de o homem trazer Deus para junto de si, para fazer-se igual a Deus e pontificar; para decidir sobre as coisas deste mundo e do mundo de além túmulo, arranjando-as como ele mesmo entende que devem ser. Para uns, fora de uma “Santa Igreja” não há salvação porque a igreja foi erigida em seu deus. Para outros, só o punhado de eleitos será aquinhoado com a vida eterna, por que tal deus confirma suãs elucubrações. Que diferença há perante Deus’! “Retêm a verdade presa aos grilhões de sua própria rebeldia” ou, para usar a versão que nos é tão familiar: “Detêm a verdade pela injustiça”. 5. Cabe então a pergunta, segundo Barth: Teria Deus abandonado aos que assim escondem a verdade? E. ainda segundo o Autor, vem a resposta: não totalmente, pois mesmo na rebeldia arbitrária da verdade presa aos grilhões do NÃO-

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DEUS, a despeito de apresentarem aos homens o simulacro de Deus, a sua contrafacção, uma caricatura demoníaca do Deus Criador do Céu e da Terra, a verdade ainda resplende e pode ser alcançada e aceita; o NÃO divino pode ser assimilado pelo rebelde e arrogante que então deixa de ser insubmisso para transformar-se em servo crente e fiel. Esta transformação, este milagre, dá-se apenas após a opção livre que, desde a criação do homem no paraíso edênico, o distingue dos demais animais e o eleva à posição de criatura criada à imagem e semelhança de Deus, se a opção for pela fé! Se for pelo escândalo, será para sua perdição. A opção é inevitável e todo homem terá de fazê-la; esta é a condição de sua predestinação ao ser criado à imagem e semelhança de Deus. Escolher, optar, decidir-se livremente a seguir para a direita ou para a esquerda; a retroceder ou avançar; a subir ou descer, a entrar pela porta estreita, ou preferir a larga; a decidir-se pela fé ou pela rejeição do paradoxo. Deverá o homem escolher entre perder a sua vida, morrer, para ganhá-la e reviver, ou viver para gozá-la e morrer. Este renascimento, esta justificação, dá-se, ainda no dizer do Autor, quando a fé genuína, pura e simples, sem quaisquer pretensões, se encontra com a fidelidade eterna de Deus. E o justo viverá!

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Capítulo II

A RETIDÃO HUMANA

O Autor dá ao 2º capítulo o título de “Menschengerechtigkeit” — Justiça Humana e, ao 3º, o título “Gottesgerechtigkeit” — Justiça de Deus. A tradução inglesa usa a palavra — Rightcousness para o título dos dois capítulos. Parece-me que, de acordo com o texto, seria mais próprio intitular o capítulo II com “RETIDÃO HUMANA” e o capítulo III com “JUSTIÇA DIVINA”. Este capítulo tem duas partes: •O Juiz - Vs. 1 a 13 •O Julgamento - Vs. 14 a 29 Na primeira parte o A. analisa as diferentes condições do homem em seu modo de proceder perante o único e eterno juiz, Jesus Cristo. Na segunda, ele estuda a condição humana em termos de julgamento divino e mostra quais os princípios que regem esse julgamento, para concluir que ele se processa segundo o que houver no íntimo mais reservado, mais secreto, de cada um. Deus vê em secreto e habita em secreto; responde em secreto às nossas orações secretas; e em secreto, e segundo os nossos corações, afasta de nós o seu rosto, deixando-nos na noite da ira, ou dá-nos a luz da sua graça. — “CRIA, Ó DEUS, EM MIM, UM CORAÇÃO PURO”. (Sal. 51, l0).

O JUIZ (2, 1-13) Quem está na situação de desencadear a ira de Deus? Quem tem por seu Deus o NÃO-DEUS, conhecido deste mundo? Quem é irreverente [ímpio] e rebelde [perverso] e foi, por isso, abandonado por Deus?

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Trata-se aqui dos homens, em geral, ou de cada um em particular? Acaso trazemos, todos, o estigma desse falso relacionamento com Deus, esquecendo-nos de nossa própria limitação, obnubilando e esvaziando nossa vida? Será que insistimos, todos, nesse falso relacionamento, prolongando, confirmando, reforçando e adensando as trevas da ira divina? Ou esta situação calamitosa diz respeito, somente, a algumas determinadas pessoas, ainda que estas constituam a maioria da humanidade? Seria a “Ira Divina” apenas uma possibilidade histórica [entendendo-se como “históricas” as realidades que se referem apenas a certa época, fase ou período da humanidade, quando se concretizam, agindo sobre a conduta humana, no seu procedimento e pensamento por algum tempo para, depois, deixarem de exercer tal influência e desaparecerem da conjuntura filosófica, social e econômica do mundo?]. Sim, seria a ira divina apenas uma possibilidade histórica e psicológica [ou espiritual] ao lado de outras muitas? Não existem, dentro da noite da ira de Deus, batalhadores do exército da luz que, como tais, já não estão mais em trevas? Não existirá, ao lado dos ímpios e insubmissos, também uma retidão humana? [Isto é, uma eqüidade, uma expressão das qualidades que o mundo considere como sublimes e elevadas, dignas de serem aceitas por Deus?] Não se pode imaginar a existência de uma grande dose de humildade e temor, (qualidades que fossem tão desenvolvidas) que algumas pessoas pudessem atingir um degrau mais alto na escada da existência onde ficassem a salvo da condenação (1, 32)? [Acaso não existirão, entre aqueles que sabem que são passíveis de morte os que “tais coisas praticam” alguns, ainda que poucos, que batalhem com denodo no exército da luz e que estejam, aos olhos do mundo, acima dos demais homens pela vida de profundo temor e da mais submissa humildade perante Deus, e que por isso possam escapar das trevas da ira?] Acaso não estará a própria fé na categoria das coisas “históricas” e das “psicológicas” [ao lado, e no mesmo nível das coisas sujeitas a essa ira divina?]. [Ou então] não se achará o crente na situação de libertar-se, por força da fé, daquilo que nos ata a todos, e assim alijar a carga originada no alheamento a Deus e que [tão opressivamente] pesa sobre o mundo? E desvencilhando-se desse fardo, não poderá um crente fiel galgar uma base no areal movediço que o circunda donde possa, e lhe seja consentido, lançar um olhar sobre OS que ficaram para traz, aqueles que ainda não perceberam como poderão também, pela força da fé, [ganhar um ponto de apoio, seguro]? Seria, talvez, um olhar comovido e pesaroso, mas já não seria o relance de um companheiro, um coparticipante das trevas da ira!

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[Não seria ilícito esperar que] pelo poder do evangelho já há tanto tempo anunciado e pregado, se houvesse reunido um grupo, ainda que minúsculo, que fosse qual ilha de bem-aventurados no meio de um mar de desdita? Não existe a possibilidade plausível de alguém tributar honra ao Deus desconhecido de Abraão, Isac e Jacó, sendo, conseqüentemente, admissível que aquele [que assim proceder] seja forçosamente subtraído do jugo da ira de Deus? Não se abriria uma exceção possível, para urna pessoa que se inserisse sinceramente na crise divina de nossa existência e de nosso modo de ser e que, dessa maneira, tomasse posição ao lado de Deus na crítica ao mundo e que, por isso, lhe fosse concedido o privilégio de sair das trevas para a luz? Ou será que o círculo “causa-e-efeito” do afastamento [de Deus] e queda, distintivo característico do homem e do mundo, como tais, deverá permanecer fechado para sempre? Vs. 1-2 Por isso não tens desculpa, ó homem, quem quer que sejas, quando julgas. Porquanto, enquanto julgas aos outros, julgas a ti mesmo, pois procedes de maneira idêntica aos que julgas naquilo que julgas. Sabemos, porém, que o juízo de Deus é verdadeiro, contra os que assim procedem. [Ou, para usar a tradução de Almeida: “Porquanto és indesculpável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas; pois no que julgas a outro a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. Bem sabemos que o juízo de Deus é segundo a verdade contra os que praticam tais coisas”]. Não há desculpa; não há razão nem possibilidade de alguém isentar-se: Nem para os que não conhecem o Deus desconhecido, nem para os que o conhecem. (1, 18 e seguintes). Também os que o conhecem pertencem ao tempo [ao presente século, ao mundo]; eles também são criaturas humanas e não há retidão humana que afaste a ira de Deus. Não há grandeza material nem preeminência local [ou qualquer outra] que justifique o homem perante Deus. Nenhuma Carta Magna [ou de alforria] ou [boa] disposição de espírito, nem a compreensão e o entendimento — [nada disso tudo] em si, tornará o homem aceitável a Deus — [nada consegue desviar ou abrandar a ira de Deus]. O ser humano é humano, e está no mundo dos homens. O que nasceu da carne é carne e todas as coisas têm o seu tempo. Os fatos e feitos gerados pela atividade humana [ainda que alcancem destacada notoriedade] em sua existên-

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2, 1

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cia, posição e expansão, são sempre oriundos do homem e. como tais, estão eivados de irreverência [impiedade] e insubmissão [perversão]. O reino do mundo nunca é [ou será] o reino de Deus e ninguém se excetua; ninguém é dispensado e ninguém é desculpado: não existem “felizes aquinhoados”. “Enquanto julgas aos outros julgas a ti mesmo”. Quando tu te colocas em um ponto de vista, tu te pões, a ti mesmo, em erro. Enquanto dizes “eu”, ou “nós” ou “é isto”, estás trocando a glória do incorruptível pela imagem do corruptível (1, 23). [Quando o homem se encastela em seu próprio “eu” e afirma em seu nome e no de seus semelhantes, ser “isto” ou “aquilo” o certo ou o que Deus aprova, quando o homem se arvora, quer jactanciosamente, quer em estudada (quiçá obediente) humildade, a ser juiz de seus iguais para, distanciando-se deles, ser mais perfeito, mais puro, mais sábio perante Deus, do que os outros, coloca-se em erro e sob as trevas da ira e indignação de Deus, pois serve o NÃO-DEUS deste mundo erigindo a sua própria pessoa em imagem de Deus; tal homem não vai a Deus, mas o traz para junto de si, para seu nível, para sua perecibilidade, sua corruptibilidade, que trocou pela incorruptibilidade de Deus]. Enquanto tu te dispões a tributar honra ao Deus desconhecido, como se estivesses realizando algo possível, enclausuras novamente a verdade. Reivindicas temor e humildade como propriedades tuas [para teu benefício] e te tornaste, por isso, — irreverente e insubmisso. Tu te desembaraças do peso do mundo sob o anteparo [o biombo] de teus pontos de vista e dos teus modos de ver e, por isso mesmo, o mundo passa a pesar mais sobre ti que sobre os outros. [Quando o homem cria para si uma capa religiosa alardeando a sua religiosidade, sua espiritualidade, sua fé, longe de encontrar a paz de Deus, que é diferente daquela que o mundo oferece (João, 14, 27), detém-se semi-anestesiado com suas próprias esperanças, enquanto, em torno dele e sobre ele, se avolumam os desenganos, as incertezas, as atemorizações sem fim; e sobre tal homem o mundo pesa mais que sobre os que pecam sem lei.] Tu te separas dos teus irmãos como conhecedor dos mistérios de Deus; talvez [até o faças] com a melhor das intenções de os ajudar depois de os haveres ultrapassado [ou de assim pensares]; por isso mesmo nada sabes dos mistérios de Deus [pois se soubesses não seguirias esse caminho] antes, és o menos indicado para auxiliar o teu próximo. Tu vês a alheia estultícia como estultícia alheia, enquanto a tua própria clama aos céus [sem que o percebas. (Mat. 7, 35)]. Também o dizer-se “NÃO” [às coisas do mundo]. à penetração no paradoxo da vida, à submissão ao juízo de Deus, tudo isto nada é enquanto for

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2, 1

apenas conduta, ponto de vista, método, sistema ou objeto; enquanto o homem por meio dessas atitudes pretender destacar-se entre os demais. Mesmo a fé, enquanto de qualquer forma e em qualquer sentido, pretender ser mais que espaço vazio, não é fé: é descrença, pois nessas condições ela volta ao paradigma da rebelião do escravo que tenta abafar a aurora da verdade de Deus, o alvorecer por excelência. [O A. faz distinção entre o que habitualmente chamamos de “servo” do Senhor, com o sentido de seguidor fiel, e “escravo”, o que cumpre apenas. pela coação, o dever que lhe é imposto; que não tem outra alternativa se não a de executar a sua tarefa, “capinar o seu eito”; não tem outra motivação se não esquivar-se do látego que está ameaçadoramente suspenso no ar e, quiçá, alcançar efêmera recompensa que valerá, quando muito, por algumas horas: uma crosta de pão, um copo de água, um prato de lentilhas. É nas trevas da noite que o escravo se sente livre e essa alforria ilusória o leva a revoltar-se contra o sol que desponta no horizonte, pois vem tirá-lo da doce ilusão de segurança e enquadrá-lo em mais um dia de frustrações. É similar à situação do homem que abrigando-se nas trevas criadas pelo obumbramento de seu coração e esvaziamento de sua mente, passa a raciocinar por sofismas, bloqueia os raios de luz que vêm do alto com a obstrução que criou em si e para si e, por isso, teme a luz e se revolta com a aurora da verdade. É o desempenho do escravo do pecado, do servo do “NÃO-DEUS” que busca o esconderijo da enganosa paz]. Aí manifesta-se, outra vez, a arrogância, a hibridez, que ignora a distância que existe entre Deus e o homem e que, inevitavelmente, entroniza o “NÃODEUS”. Eis aí, novamente, a identificação do homem com Deus que acarreta seu próprio isolamento de Deus. É o sonho [da materialização de Deus em símbolo], das coisas diretas, com o seu clamor: “Eis aqui o Templo do Senhor!” — (Jer. 7, 4). (É a imaginação “romântica” (por ser aí), no dizer do Autor, que pretende ver, sentir, a verdade espiritual consubstanciada materializada (e porque não a hóstia?) em símbolos concretos, palpáveis, visíveis, semelhantemente aos israelitas do tempo de Jeremias, esperando fazer jus à proteção de Jeová, pela exaltação e louvor do templo: Templo do Senhor! Templo do Senhor!]. Justamente agora, ó homem, praticas a resistência humana que suscita a ira de Deus; “enquanto julgas os outros, a ti mesmo julgas, pois praticas as próprias coisas que condenas”. Ora, o que se pode dizer dos homens em geral, pode-se dizer também dos “homens de Deus” em particular. Como homens, são iguais a todos (1, 1). Não há partículas, porções especiais, da história divina na história geral. Todas as histórias eclesiásticas e

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2, 1

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das religiões transcorrem [isto é, têm seu começo e seu fim] neste mundo. A chamada “história da redenção” é, apenas, a contínua crise de toda a história e não uma história especial ao lado da História [ou paralela a ela]. Também não há santos entre os ímpios [não são santos, os homens de Deus], pois é exatamente quando alguém quer ser santo que o deixa de ser. São exatamente os protestos, a crítica, a acusação que os pretensos santos lançam contra o mundo, em vez de se enquadrarem em suas próprias verberações, que os colocam, inevitavelmente, na mesma fila dos ímpios. As acusações [que os pretensos homens de Deus fazem contra o mundo], vêm do próprio mundo; do perigo, e não do socorro. Estas falam da vida, mas não são a vida; elas são qual luz artificial nas trevas, mas não o amanhecer, o raiar do sol! Essas considerações aplicam-se [a qualquer homem de Deus], também a Paulo, o profeta e apóstolo do reino de Deus; valem tanto para Jeremias, como para Lutero, Kierkegaard e Blumhardt [e por que não mencionar também Barth e seu “pretenso” interpretador?]. Vale para São Francisco [e por mais justa razão] que de longe ultrapassou a Jesus em “amor”, “infantilidade” [inocência] e “austeridade” e que portanto subsiste, essencialmente como acusador; e isto para nada dizer da aniquilante santidade de Tolstoi. [O A. quer destacar o fato extremamente sério que o homem que pretende elevar-se para ser santo, ainda que fosse um Paulo ou um Jeremias (que foi o profeta consagrado às nações desde o ventre de sua mãe (Jer. 1, 5), ou seja um vulto histórico como Lutero, ou contemporâneo do autor como Kierkegaard ou Blumhardt, tal homem deixará de ser santo e separado para Deus desde o momento quando em seu coração se aninhar a idéia de ser perfeito, santo, pois no mais profundo do ser, tal idéia viceja com intenção da preeminência entre os demais homens, seus próximos. E isto é tão mais vigoroso num santo da categoria de São Francisco que a tradição orna com qualidades sobremaneira excelentes, “superiores” às do próprio Senhor Jesus, realçando o “amor” todo peculiar e lendário que nimba o Santo, (amor que se estende até mesmo aos animais), a sua inocência que atinge as raias da ingenuidade pueril, e que é também descrito como senhor de uma austeridade que, no romantismo imaginativo, excederia à do próprio Salvador. Com tantos atributos será tanto maior juiz e, conseqüentemente, maior escravo do pecado! Todavia, assim como essa imaginada santidade beata, fanática, pouco esclarecida, é seguida e adotada para quebrar, anular, ignorar a distância que separa o homem do verdadeiro Deus, assim também (e talvez mais ainda, segundo o Autor,) o é a santidade de elite a que se arrogam os intelectuais e teóricos do status de Tolstoi].

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2, 1-2

O que é humano é levado de roldão e, arrastado pela correnteza, resvala [numa descida louca para o precipício] ora flutuando sobre a torrente das águas ora dando até mesmo a impressão de querer opor-se [à imensa caudal]. Cristo de forma alguma habita entre os justos, pois justo só é Deus, e a tragédia de todos os homens de Deus é terem de assentar-se na injustiça para lutar pela justiça de Deus. [Têm que tomar posição de dianteira, de relevo, de destaque, para pregar, ensinar e entregar a mensagem que Deus lhes confiou]. E tem de ser assim, pois os homens de Deus não podem ocupar o lugar do próprio Deus, [posição que assumiriam se em justiça incorruptível ministrassem e se desincumbissem da missão para a qual foram vocacionados. Todavia, humanamente e no que concerne ao relacionamento do homem com Deus, o distanciamento do “homem de Deus”, dos seus semelhantes, é inevitável aos olhos do mundo, mesmo que não seja nos termos de um lendário São Francisco ou de um intelectual como Tolstoi; um Lutero, um Paulo, um Jeremias terá que fazê-lo inda que, ao olhar para si, veja somente e genuinamente sua pequenez. “Ai Senhor,... não passo de uma criança”. (Jer. 1,6)]. Sabemo-lo: o juízo de Deus é segundo o paradigma da verdade e os verdadeiros homens de Deus conhecem sua situação trágica e paradoxal. Sabem o que fazem quando se colocam cm determinado ponto de vista; sabem que não há desculpas e não se consideram desculpados por força de sua vocação. Eles sabem que a fé somente vale por fé enquanto e quando não reivindica qualquer realidade histórica, psicológica [ou mesmo espiritual] mas é [e pretende ser] somente a “expressão inexprimível” da realidade divina. Eles sabem que a “observação sensata” (1, 20) não é um método, um achado [ou uma descoberta] mas a base eterna do conhecimento. Eles sabem que a fé, em si mesma, não faz mais jus à legitimidade que qualquer outra [atividade ou] propriedade humana. Eles não se esquivarão do paradoxo [o paradoxo que, para os homens de Deus, toma a forma de uma contradição humanamente evidente; põem-se sob o escuro manto da ira de Deus para anunciar o novo dia que desponta!] e não tentarão transformá-lo em nova realidade qualquer, em alguma coisa [que explique, suavize ou até transforme sua situação paradoxal]. Eles não enfraquecerão o NÃO divino trazendo-o para perto, [para junto] do NÃO humano. Eles não amolecerão a têmpera do gume do julgamento divino, encarando a flexão [a submissão] que ele produz [a crise e a problemática que ele origina] como sendo uma etapa (uma estação) no caminho da salvação (ORDO SALUTIS) que foi ultrapassada, que ficou para trás. De maneira nenhuma tais homens, se verdadeiramente forem de Deus, farão da justiça de Deus que raia no evangelho, um esconderijo, um abrigo para si, e uma fortaleza contra os outros. [Estes homens não usarão o Evangelho

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2, 2-3

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para se justificarem, para nele e com ele se protegerem perante Deus, e também não se servirão dele para bombardear os outros com suas acusações]. Eles sabem que a Justiça de Deus é segundo a verdade e quem há que possa resistir quando aferido com a escala da verdade divina? Quando, como e onde seria possível que alguém. alguma [idéia] ou coisa permanecesse de pé, sob tal julgamento? Vs. 3-5 Acaso entendes, ó homem, que tu com o teu julgamento, praticando as mesmas coisas, fosses, logo tu, livrar-te do julgamento de Deus? Ou não entendes a riqueza de sua bondade, a sua contenção e a sua paciência? Não percebes que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento? Porém, com tua dureza e teu coração impenitente amontoas para ti uni tesouro de ira, para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus. “Julgas tu, justamente tu, que escaparás do julgamento de Deus? Semelhante suposição é um erro humano; é algo parecido com uma escrituração falsificada, inscrevendo no ativo próprio o que deve ser registrado no “Haver” de Deus. É a transformação da dádiva divina em possibilidade e realidade humana. [Quando o homem julga toma para si, e como sua, uma atribuição que só a Deus pertence; transforma a graça da redenção em dispensação humana, pois o julgamento implica em condenação e em perdão: quem julga, ou condena ou justifica ou perdoa; e inda que o faça em nome de Deus está, na realidade, assentando-se sobre o trono divino e amesquinhando a dádiva que vem desde a cruz; ignora a pergunta que desde a cruz lhe é posta diante dos olhos, sobre a opção que há de fazer entre o paradoxo da fé e o escândalo; e ao ignorar a pergunta, ao não querer ouvi-la, senti-la, respondê-la, opta, implicitamente, pelo escândalo e erige a si mesmo e, consigo, o mundo em seu Deus. É um Deus visível, palpável, facilmente conhecido, que perdoa e que excomunga; que impõe penitências e aceita intenções; que promete bênçãos celestiais em permuta de dádivas materiais; que aceita sinais externos, efêmeros e perecíveis, como penhor e garantia das coisas eternas, incorruptíveis. É um Deus bem presente que não traz o paradoxo da fé; antes assegura a paz, sossego e ilusão; é um Deus lógico e, não raro, bastante vistoso — o NÃODEUS, conhecido e “velho amigo” dos homens]. A suposição que o homem possa ter de que, ao julgar, escapará ele próprio do julgamento de Deus, esquece que a história do mundo não é o seu próprio tribunal. [Não é a história do mundo que julgará os seus próprios atos pois o julgamento final é de Deus (Apoc. 20, 11 e seguintes)].

80

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2, 3-4

E enquanto o homem [que assim julga] procura agarrar estultamente o que é visível, efêmero, deixa passar o invisível, o eterno. Quando a fé se sobrepõe e sobressai como atividade humana, desaparece o seu conteúdo divino e fica sujeita à lei da imprestabilidade, da perecibilidade, da corruptibilidade das coisas terrenas. — Quanto mais tentares fugir do julgamento verdadeiro de Deus, menos escaparás dele. “Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?” Como pode acontecer que nas hostes da luz existam, ainda, batalhadores com visão e percepção, homens quais eram os judeus contemporâneos de Jesus que perceberam alguma coisa do final dos tempos, homens que estão afeitos a perseverarem Deus, e só nele? [Ante a inevitabilidade do julgamento divino, ante a posição trágica do homem de Deus no seu relacionamento com Deus, como se explica que pessoas com visão suficiente para compreender ou, ao menos, pressentir a inexorabilidade escatológica do juízo divino formem os inumeráveis exércitos da luz, deles participando?] Tais homens por isso [por pertencerem às hostes da luz] não deixam de ser homens, e o mundo no qual vivem continua sendo mundo. Mas a respeito deles, sobre eles e por traz deles aconteceu a maravilha: receberam a graça! Ocorreu o inacreditável: Deus falou-lhes de um torvelinho, como a Jó! (Jó 40, 6). Assustaram-se em sua impiedade e insubmissão; foram arrancados de seu sonho [acordando] para Deus (aquele a quem [com propriedade] assim designamos). O véu da nebulosidade religiosa e da ira divina rompeu-se e eles viram o inescrutável e ouviram o seu NÃO! Sentiram a limitação, o julgamento, o paradoxo da sua existência; pressentiram, entre ansiosos e esperançosos, do que se trata na vida humana e, com temor e tremor, chegaram à compreensão, ao respeito, à “observação sensata”. Tiveram que parar perante Deus. [Parar no caminho pelo qual vinham para decidir ante a pergunta solene, e optar pela conversão; escolher a peregrinação pelo novo rumo que leva à porta estreita da vereda apertada]. Mas o que é tudo isso? Acaso é misticismo? Intuição, êxtase, milagre concedido a pessoas especiais (ou privilegiadas) dirigidas ou orientadas especialmente [por agremiações religiosas, interpretação da bíblia, retiros, cursilhos, ou por determinados avivalistas e líderes?] Trata-se, acaso, de alguma experiência de almas puras, ou da descoberta feita por cérebros privilegiados, ou deve-se isto a conquistas da “força de vontade”, ou quem sabe, seria a resposta a orações secretas?

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NÃO! Pois outros há mais puros, mais inteligentes, mais enérgicos e mais profundos em suas orações e Deus jamais lhes falou. Há místicos e outras pessoas que entram em êxtase, e que jamais souberam ver com sensatez. É que a dádiva não está no que o homem faz e traz, pois isto é como nada perante Deus. O despertar e o temor perante Deus, como tais, não pertencem ao homem. Onde se ouve e se reconhece a voz de Deus, não há lugar para o “ser” ou o “ter” ou o “provar” do homem. Quem foi eleito por Deus nunca poderá dizer que ele escolheu a Deus. [Nenhuma coisa pode o homem fazer, pretender ou alegar para a sua salvação]. A realidade é que a reverência [o temor] e a humildade perante Deus, a possibilidade da fé, no âmbito humano, só podem ser consideradas como impossibilidades; como sendo incompreensíveis “riquezas de sua bondade”: “Como mereci ver, eu que era cego?”. E uma inexplicável contenção de sua ira: “Por que sou, justamente eu, uma exceção entre milhares?” E uma incompreensível paciência de Deus para comigo: “Pois o que pode Deus esperar de mim ao dar-me tão inaudita oportunidade”? NADA! Absolutamente nada justifica e esclarece este “eu” e “para mim”, que está totalmente no ar [sem aparente fundamento]; é puro e absoluto milagre, vindo de cima. Toda palavra que a respeito desse milagre se pronunciar [ou escrever para explicá-lo ou relatá-lo] como se se tratasse de experiência humana, mesmo que seja a sua simples confirmação, é imprópria [por supérflua, desnecessária, imprecisa, excessiva e ao mesmo tempo insuficiente]. Estamos novamente na linha de interseção [do reino do mundo e do reino de Deus], que não pode ser esticada, distendida. Mas isto se pode dizer da dialética do milagre: “A bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento”. O que se torna verdade para o homem, vindo de Deus, jamais pode vir a ser outra coisa se não um novo chamamento a Deus. Um apelo para o retorno; para a reverência (o temor) e para a humildade; é a renovação do convite para abandonar a segurança que o mundo dá; é um apelo para desprezar a honra e a glória do mundo e tributar glória e honra ao Deus desconhecido como se, de nossa parte, nunca houvesse existido a mínima contradição a esse louvor [pois com o novo nascimento em Cristo, volta o homem à posição que usufruiu no Éden, antes da queda; antes de, pela vez primeira, ter querido ser igual a Deus. Tudo se faz novo e o homem espiritual recupera a imagem e semelhança de Deus].

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Toda e qualquer pretensão a vantagens e honras, todo o direito que alguém queira ou possa querer derivar da revelação de Deus, é clara evidência da incompreensão dessa eleição, da vocação; revela a nossa incompreensão de Deus [e é, por isso, a anulação do próprio milagre da revelação]. Toda asserção a favor próprio que alguém, que tiver [pela graça] observado algo de Deus, fizer com fundamento nessa visão, torna-o, IPSO-FACTO, novamente igual ao que nada recebeu. “Não notas que a bondade de Deus quer levar-te ao arrependimento?” Não sabes que esta é a única observação, realmente possível? Se não o percebes, “então com tua obstinação e teu coração impenitente amontoas para ti um tesouro de ira”. A incompreensão [a não percepção do desideratum de Deus], quando ocorre, depressa se avoluma, se condensa, se compacta; solidifica-se em um aglomerado obtuso no qual esbarram todos os pensamentos, todas as palavras e todos os atos da pessoa; dessa obstrução nasce o religioso SUI-GENERIS típico, que se conduz e se caracteriza como pessoa melhor que as demais. É uma religiosidade fátua [presumida, petulante, e sem nada de sólido em que se apoiar], torna-se vulnerável à chacota dos que a menosprezam. [Tais religiosos criam a legião dos legalistas espirituais, dos fundamentalistas, dos adoradores da Bíblia, que retêm a verdade divina presa aos grilhões de sua intransigente defesa do terreno conquistado]. Da retidão divina dos profetas nasce a retidão humana dos fariseus que é a irreverência a Deus, a impiedade, a rebelião. A incompreensão da bondade de Deus esconde uma ameaçadora acumulação da ira de Deus, pela conduta muito objetiva, presente, que ela impõe ao Profeta transmudado em Fariseu no seu relacionamento com Deus, [que deixa de ser o verdadeiro Deus para ser] na realidade, o NÃO-DEUS sob cujo domínio já está. A escrituração falsificada [deste Profeta-Fariseu, deste religioso típico] esconde a sua situação real. Ele pode prosseguir na construção de sua Torre de Babel, cada vez mais para o alto, enchendo-a com reclamos e clamores divinos, segurança espiritual, usufruto de Deus; porém, por traz da fachada de seus dias, já está à espreita o eterno dia da ira e do tribunal imparcial. [Aparentando estar] em pé, sobre um píncaro, ele já está tombado, caído. Ele, o “amigo de Deus” [o original está sem aspas] e o seu mais amargo e odiado inimigo. [A tradução inglesa diz “o amigo de Deus e seu declarado e mais amargo inimigo”. No meu entender, o A. quis dizer que o homem, não percebendo que a bondade de Deus quer levá-lo ao arrependimento, é incapaz de arrepender-se genuinamente; todavia, ansioso por criar para si um relacionamento pretensamente válido com Deus, assume um status de religiosidade que,

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por isso mesmo, é fingido, hipócrita e “farisaico” isto é. estribado em leis, preceitos, doutrinas e dogmas; orientado pelo que há de comer e beber, pela guarda de dias, por encaixes eclesiásticos, por uma série de “pode” e “não pode”. Esta classe de gente é para o A., sempre no meu entender, a classe que mais retém a verdade com a injustiça e por isso, mais forte, maior, é a ira de Deus contra ela; portanto, mais extremado, mais odiado é este inimigo]. Ele é o justo [segundo o seu próprio critério], já condenado, e ele não se deve surpreender se subitamente for tornado público o que ele de fato é. [Luc. 12,2-31]. Vs. 6-11 Porque a medida com que os homens são medidos, não é deste mundo. É a medida eterna como eterno é Deus: a medida é o próprio Deus! Deus reiteradamente procura sinceridade [fidelidade] no homem. Fidelidade a si, somente. Para nos edificar, ele nos anula primeiro; dá-nos a vida, nô-la tirando e nos redime, transformando-nos, ao som da última trombeta. [Parece-me que são dois os sentidos que o A. quer dar: para que o crente seja edificado em Deus, é necessário que lhe seja fiel e sinta pessoalmente a absoluta nulidade humana; para ser firmado em Cristo, é necessário que se negue a si mesmo; para ganhar a vida precisa perdê-la primeiro. É preciso que a pessoa se esvazie de todos os atributos que tenha ou que pense ter, mesmo os mais sublimes e apurados, aqueles que a sociedade, a igreja, a família mais enaltecem e admiram. E nesta aproximação a Deus, é preciso que o crente seja genuíno, sincero. E a sinceridade que Deus busca! O segundo sentido é escatológico. A redenção vem com o encontro paradoxal com Deus, mas a transformação vem no final dos tempos. Será quando soar a última trombeta. O homem destruído será restabelecido; o morto viverá; o remido transformar-se-á]. É disto que se trata. Perante este Deus comparecerá também o justo; o crente. Comparecerão perante o Deus que retribuirá a cada um segundo as suas obras; com glória, honra, incorruptibilidade e vida eterna aos que com perseverança buscam a Deus conforme o testemunharem suas boas obras. Porém, com ira e indignação aos que com mente servil e desobedientes à verdade, seguem a rebeldia. [Há aqui urna consideração a fazer, e que está implícita em todo o contexto do que até aqui foi apresentado: a salvação — o que chamamos a “vida eterna”, é pela graça de Deus e somente pela graça. Nada pode o homem fazer para alcançá-la ou ganhá-la, se não crer. (Atos 16, 31). No entanto, o Senhor, justo juiz recompensará (II Tim. 4. 8) a cada um segundo as suas obras com maior ou menor galardão. Está porém implícito que, para receber o galardão, terá o crente fiel recebido, primeiramente, a graça da vida eterna].

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A opressão e a perplexidade estarão sobre toda a alma que pratica o mal: sobre o judeu primeiro, e também o grego; porém, a glória, a honra e a paz estarão sobre todo aquele que pratica o bem: sobre o judeu primeiro e também o grego pois, para Deus, não há acepção de pessoas. “Ele retribuirá a cada um segundo as suas obras”. Ele quem? Ele, perante quem todos os homens são fúteis (nulos), mentirosos. Ele a quem o homem, no meio de suas riquezas ilicitamente adquiridas, nunca deveria ter esquecido. Ele que, uma vez por todas, disse ser seu o Poder e a Misericórdia. (Sal. 62, 10-13). Ele, a quem o homem não conhece, porém, precisa reconhecer este fato, para saber, em seguida, que ele é conhecido de Deus. (Prov. 24, 12). [Reconhecer que de Deus é o poder e a misericórdia]. [Observar também a afirmação curiosa do A. de que “o homem, no meio de suas riquezas ilicitamente adquiridas, nunca deveria ter esquecido (a Deus). Que riquezas são essas? As do mundo? E são estas (ou outras quaisquer) sempre ilícitas, isto é, ilícitas A PRIORI por característica intrínseca? Tratar-se-ia, no caso, de um enunciado Marxista ou de um pensamento Marxistizante de Barth? Ou estaria Barth a referir-se a certos e determinados homens que pondo seus corações nas riquezas, por isso mesmo as adquiriram de formas inconfessáveis e portanto deveriam lembrar-se SIC TRANSIT GLORIA MUNDI? Parece-me que, a esta altura, o assunto deve ficar em aberto para eventual consideração posterior]. Ele é o Deus que “paga” aos homens as obras nas quais lhes permite participar; é ele quem estabelece o respectivo valor ou a desvalia segundo o seu próprio critério de avaliação. É nele que se decide o que é bom e o que não o é; é nele que descobrimos a nossa sensatez ou a nossa loucura; nosso céu ou o nosso inferno! Nossas obras, procedimento e conduta, nossa atitude e nossa disposição mental, em seu aspecto histórico e psicológico, têm apenas a significação daquilo que são: História e Psicologia; por mais alta que seja essa significação, não podemos superestimá-las atribuindo-lhes qualidades eternas. O eterno adquirente — [o comprador, o tomador] o único que, eventualmente, as pode pagar em moeda eterna é Deus. Sempre e de novo Deus! Pode, pois, ocorrer o milagre de ele pagar aos que buscam sua glória, honra e incorruptibilidade com a “vida eterna”; e assim, o que na limitação humana tem a forma de temor e humildade perante Deus e que se realiza na procura, na busca de Deus, e Deus somente, corresponda a um encontro com Deus. Pode acontecer que o recipiente da fé, por menos que o aparente, contenha em seu bojo a vida eterna. Pode acontecer que a perseverança humana na

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paciência e na ansiedade seja característica das “boas obras” realizadas pela pessoa ou através dela. Pode ainda acontecer que aquilo que alguém esteja fazendo na total fraqueza da carne e em alto grau de incerteza seja o bom e traga, já em si, a glória, a honra e a paz do mundo do além. Tais possibilidades, porém, não podem ser concretizadas humanamente nem seu acontecimento pode ser considerado como coisa pacífica, fato consumado; coisa de ocorrência normal. Quando algo semelhante se dá, vem da parte de Deus. Na linha que vem ao encontro dessa possibilidade [aquém do lado do evento] agitam-se judeus e gregos; homens da igreja e do mundo. Uns e outros são participantes da promessa, porém, somente da promessa. [Todavia, embora apenas uns poucos gozem do cumprimento da promessa] nunca essa concretização poderá ser considerada como o resultado da retidão humana em destaque entre outras retidões (ou falta de retidão) humanas, [qual fora, por exemplo, a recompensa ou o resultado de vida reta, religião verdadeira, de fé “vigorosa”, segundo o juízo dos homens]. Jamais o crente, o praticante das boas obras, as exibirá como sendo mérito seu, em confronto com a falta de mérito ou o merecimento menor de outrem. Ele nunca dirá: “Eu faço” ou “Deus retribuiu”, mas “Deus faz” e “Deus retribuirá!” (2, 13; 3, 30 e 5, 17-19). Jamais o seu temor e sua humildade perante Deus pretenderão ser outra coisa que espaço vazio, vácuo; carência e esperança, pois a Deus pertence a glória que o homem, neste mundo busca e honra. Todavia, também pode dar-se o oposto: que aconteça o milagre terrível; que aos seguidores da rebeldia esteja reservada a ira e a indignação. Pode acontecer que algumas formas de temor e humildade, embora estejam acima de qualquer dúvida aos olhos humanos, não sejam consideradas como tais pelo Deus verdadeiro, porém sejam manifestações de humildade e temor perante o NÃO-DEUS (1, 23; 2, 1-2) e, portanto, são qual candidatura ao desagrado de Deus (2, 5). Pode acontecer que Deus “pague” a obra humana com ira e indignação. Que aquilo que pretende ser revelação profética seja “conceituação servil”: a atitude de um assalariado diarista que visse no soldo da etapa toda a recompensa, e a única recompensa a receber, fazendo do salário o objetivo de seu trabalho (Zahn). [O A. citando Zahn compara certo tipo de religiosidade com a ausência de motivação mais elevada que caracterizaria um assalariado que trabalhasse sem outro objetivo que o soldo que houvesse de receber]. Abundante e retumbante obediência à verdade pode ser a mais alta expressão de desobediência; humildade desmedida pode não ser mais que

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rebeldia. O que o homem faz com “boa intenção” pode ser um ato profundamente reprovável perante Deus. Esta segunda alternativa, (a do “milagre terrível”) [também] não é “diretamente” perceptível aos homens; ela vem de Deus, e só de Deus e ninguém está livre de incorrer nesse erro. Novamente estão na mesma linha, judeus e gregos; homens do mundo e homens da igreja: estão todos sujeitos ao mesmo risco. Nunca, e de forma alguma, está a justiça humana segura do valor de seus feitos e empreendimentos, aos olhos elo “comprador” divino. [Deus vê os corações e julga segundo a verdade; as obras humanas, feitas “para o bem” podem, eventualmente, ter motivação maligna, egoísmo, ou qualquer outro objetivo pessoal; por isso está a retidão humana sempre sob a ameaça de ser invalidada pela justiça divina; ainda que ou, quiçá, especialmente quando o objetivo haja sido, justamente, a obtenção dessa aceitação]. A rebeldia e o destemor a Deus serão sempre exatamente o que são, mesmo que tomem formas altamente sofisticadas e refinadas ou se acobertem naquilo que, material e psicologicamente, chamamos “fé”. O juiz [supremo] não abrirá mão de julgar também o “justo”: ele julga; ele próprio e só ele! “Porque Deus não faz acepção de pessoas”. As coisas que historicamente ou espiritualmente aparentam realçar ou favorecer uma pessoa com relação ao restante da humanidade, são somente a atitude, a máscara, o papel assumido por essa pessoa no teatro da vida. É a máscara que faz alguém parecer importante entre seus semelhantes. Não há dúvida de que isso tem certo valor, em si, mas não significa preeminência eterna; não é nada que transponha a crise das coisas perecíveis (corruptíveis) e que alcance a incorruptibilidade. A medida (a escala) com que Deus mede não é deste mundo; ele não atenta à máscara; para Ele o justo não está, [só por ser assim considerado], no rol dos justos, pois Deus o vê qual ele realmente é. Quiçá como abençoado [servo perdoado] em busca do imperecível ou, também pode acontecer, como amaldiçoado rebelde, examinado e exposto [à condenação]. Homem é homem; Deus é Deus! O que resta, pois, da atraente segurança do farisaísmo? Vs. 12 e 13 Os que pecaram sem lei, também perecerão sem lei. E aqueles que pecaram à face da lei serão julgados segundo a lei. Porque perante Deus não são justos os ouvintes da lei mas os que a praticam.

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Ainda uma vez a pergunta: (2, 4) — Como se efetiva, pois, a retidão humana? [Isto é, o arrependimento a que o homem é levado pela bondade de Deus.] — Pela revelação, pela proclamação e comunicação da lei divina — pela proximidade e eleição de Deus, que aqui, e acolá, dispõe pessoas à fé, à obediência e ao temor de Deus. (2, 14). O que vem de Deus e é maravilha [é milagre] perante nossos olhos, não dá aos homens que perceberem este milagre [que se apropriarem da graça que ele traz] qualquer preeminência, vantagem, ou segurança: pecador é pecador e queda é queda. Quem há que não peque? Quem não caiu? Ainda que o desnível entre aqueles que pecam longe da lei que lhes é desconhecida e os que pecam no ambiente da lei que conhecem, seja superficialmente visível; ainda que possamos distinguir os degraus em que estão os incrédulos e aqueles dos crentes, e que possamos diferençar entre o que designamos por “alma” [espírito] e história [os fatos concretos do mundo] todavia, [ainda que tudo isso seja visível e que a diferença entre “uns” e “outros” seja até gritante aos nossos olhos] a decisão do destino de cada pessoa, se para a “salvação” e vida eterna ou se para a “danação”; se a pessoa permanecerá sob a ira de Deus ou se alcançará a graça da salvação, não é tomada pela medida de grandeza da eventual diferença entre as posições de cada um. [Se deste e daquele lado há pessoas que se salvam], também daquele lado e deste há pessoas que se perdem. O que faz a diferença entre os que se perdem e os que se salvam é o cumprimento da lei, isto é, a realização da possibilidade oferecida por Deus — [o arrependimento a que Deus quer levar o homem, pela sua bondade]. A diferença é o conteúdo, o significado, o sentido da conduta que o homem assume. É o sentido desse conjunto que é aceito ou deixa de ser aceito favoravelmente por Deus. A conclusão de que o homem vive dentro ou fora da lei depende do critério divino e não do juízo humano; nem se obtém a resposta favorável por “ouvir a lei”, por notá-la; entendê-la; em suma, ter experiência [pessoal] da revelação, ainda que seja a mais alta revelação. O que vem do homem [o que é humano], não pode salvá-lo; as coisas humanas não são justas perante Deus! Cumpridores da lei são os ouvintes que “realmente a ouvem”. — “os judeus que o são em secreto” (2, 29): porém, a sua retidão consiste no fato de que “serão declarados justos”; para ser bem entendido: eles não “são justos”; nem mesmo” são declarados” justos. Para que não fique o menor vestígio da

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idéia de que o homem tenha algum direito [algum mérito para a salvação] para que desapareça o último sinal [mesmo o mais remoto] de uma realidade humana, ou de uma contribuição material, “eles SERAO DECLARADOS justos” (2, 6). Eles acolheram, neste mundo de injustiça, a candidatura da justiça do mundo vindouro; no tempo do entrechoque, do escândalo, optaram pela busca da eternidade. A sua justiça consiste no fato de que sempre, e reiteradamente, entregam a sua retidão humana a Deus, a quem ela pertence: a retidão destes tais consiste, portanto, na renuncia fundamental [e total] da retidão própria. Onde a lei encontra tais praticantes, onde a revelação encontra semelhante fé, aí está Cristo, “o fim da lei, para a justificação de todo aquele que crê” (10,4-5). Então vem ao nosso conhecimento aquele que nos conheceu primeiro. O juiz, porém, permanece como juiz, até que venham o novo céu e a nova terra. Comentários: 2, 1-13 1. O Autor revela na primeira parte deste capítulo um método expositivo que o caracteriza marcadamente na sua “Dogmática”; parece-me, por isso, que seria interessante comentá-lo mais demoradamente. Todavia, por se tratar de um traço de caráter geral e não unicamente do assunto tratado nesta primeira parte, voltaremos a essa análise nos comentários do fim do capítulo. 2. Barth não poupa argumentos para enfatizar a nulidade da retidão humana (ou sua justiça) que, quando ocorre, tem o condão de suscitar a ira e a indignação de Deus, pela tendência de nivelar o homem com Deus; por isso traz ela em seu bojo uma falsa religiosidade, uma afetada santidade, e o caminho para o obscurecimento do coração e o esvaziamento da mente. 3. E notável a extensão que o A. faz, do risco de auto-endeusamento, aos que ensinam e pregam o evangelho, mencionando mesmo apóstolos e profetas. Barth — ele próprio — deveria saber bem o que isto significa e, talvez, seja esta a explicação para seus comentários em um dos prefácios quando manifesta sua contrariedade pela aceitação que teve a sua primeira obra, a ponto de se fundarem “Escolas Barthianas” e o Barthianismo. 4. Depois da exaustiva exegese que o A. faz dos primeiros 13 versículos do capítulo segundo, o que resta a acrescentar senão que “justificados pela fé temos paz com Deus?” (5, 1).

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O JULGAMENTO (2, 14-29) Vs. 14-16 Porém, se acontecer que gentios, que não têm a lei em seu estado natural, fizerem o que manda a lei, por não terem a lei, para si mesmos são lei. Estes tais apresentam as obras da lei inseridas em seus corações (do que as suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de desculpa, são testemunhas) no dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho. Esta é uma comunicação altamente chocante, obscura e estranha, e mostra quais os pontos de vista que são válidos (ou serão válidos) quando Deus é (ou for) o Juiz. Gente que não recebeu a revelação comparece perante Deus, como se a houvesse recebido. Os que dormem são vistos como se houvessem velado atentamente; incréus são julgados como crentes e os injustos, como justos. Este é um fato surpreendente; é como se apresentássemos “aço feito de madeira”, e esta realidade precisa ser, agora, exposta aos olhos da justiça humana. “Gentios [ou pagãos — ou homens de fora da Igreja] procedem segundo a lei.” A lei é a revelação que foi dada por Deus e logo retirada e definitivamente trancada. E a impressão remanescente da revelação divina deixada no tempo, na história e na vida das gentes. E a “escória” sagrada do milagre havido; cratera extinta da fala divina; a recordação séria da atitude timorata e humilde que certas pessoas foram constrangidas a tomar. A lei é o canal vazio por onde, em outros tempos, em outras circunstâncias e para outros povos, fluía a água viva da fé e da observação sensata; canal todo feito de conceitos, pontos de vista e mandamentos que, em seu sentido geral, fazem lembrar de certa gente diferente que nos convida (nos intima) a guardar, a preservar esses conceitos. Aqueles que têm a lei, moram na orla desse canal. Eles têm a impressão do Deus verdadeiro, do Deus desconhecido, quer seja na forma de religião herdada ou apropriada de outrem, ou segundo alguma experiência própria vivida no passado. Eles têm, de uma forma ou outra, referência a Deus e à crise de nossa existência, e têm noção do mundo do além, um mundo limítrofe ao nosso. [O reino dos céus é limítrofe ao reino deste mundo e não é, necessariamente. o reino de além túmulo]. E porque tais pessoas têm essa referência [a Deus] e porque a lembrança da revelação havida os impressiona, esforçam-se por conservá-la indelével. Aos “gentios que não têm a lei”, falta, de alguma maneira, a referência [a Deus] em sua vida pessoal e em sua experiência histórica; não têm a impressão da

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revelação e, por isso, não guardam memória dela e, [logicamente], não fazem qualquer esforço por conservá-la. Pode-se até considerá-los adormecidos pois não mostram qualquer inquietação ou intranqüilidade [com relação à sua situação] por força de algum cismar próprio, alguma recordação ou alguma observação de terceiros. Poderíamos, [com propriedade], considerá-los como incrédulos porquanto não manifestam qualquer assombro, [qualquer interesse], qualquer respeito ou confrangimento para com o que está acima deles. Poderíamos, até, considerálos injustos, pois aprovam e acompanham o procedimento normal do mundo. De fato, de maneira alguma poderíamos dirigir-nos a eles como aos habitantes das margens do canal da revelação. Porém, pode acontecer que gentios, que não têm a lei, “pratiquem o que a lei ordena”. Ora, sendo Deus o juiz, “praticar a lei” é algo diferente de “ter” ou “ouvir” alei(2, 13). Praticar a lei, quer dizer “estar diante de Deus”. [Na prática da lei] tem lugar a revelação; Deus fala; e a conseqüência da revelação são o temor e a humildade, aliás, resultantes naturais da posição em que o homem se encontra. Então, dá-se a justiça (ou a retidão) que vem de Deus. Todavia, a revelação vem de Deus. Ela não fluirá, necessariamente, no leito do canal [que pode estar] vazio. Ela pode correr por ele mas pode, também, buscar outro traçado, rasgar novo caminho. A revelação não está atada, não está condicionada às impressões antigas que acaso tenham sido deixadas outrora; ela é livre; portanto é erro supor que os gentios [que não tiveram acesso às bordas do canal ou que não o buscam] estejam adormecidos, ou são incrédulos e injustos. Também eles podem ser tementes a Deus e por ele escolhidos sem que os outros [os que habitam junto ao canal] o percebam. [Aliás], a fé, como tal, está sempre envolta em mistério. [Em discrição]. Os gentios sentem [ou podem sentir] desassossego, estremecimento, o temor que os habitantes do canal não vêm nem entendem. Porém, Deus vê, e os compreende. A justiça de Deus, há muito, abriu-lhes [o caminho] mas a retidão humana ainda os observa de soslaio, desconfiada. Eles praticam a lei em “seu estado natural”. Na sua natural jovialidade e no seu risonho mundanismo, na singela e despretenciosa objetividade de seus afazeres. Deus os conhece, e eles, [os gentios, os homens afastados da igreja], por sua vez, também o reconhecem; e [conseqüentemente] não ficam sem a visão da corruptibilidade de tudo quanto é humano; e também não deixam de

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divisar o contorno argênteo [reflexo da luzi da redenção e do perdão que emoldura a nuvem negra de nossa existência; permanecem no respeito pelo NÃO que separa a criatura do Criador, e pelo SIM que os faz criaturas do Criador. Também para os gentios a vida é apenas parábola, porém, talvez, uma parábola tão completa que, por isso, já tenha a justificação [de Deus]. [É a vida no contexto de um] mundo imperfeito, é claro; mundo tão despedaçado, já tão desfeito, solapado, que parece [mais necessitado] mais próximo da misericórdia de Deus, [do que o mundo daqueles] onde o “Reino de Deus” está em plena floração. [Esse mundo dos gentios, assim destruído, minado, exibindo] o mais extremado ceticismo, é totalmente incapaz de penetrar no que seja mais elevado, mais puro, mais sublime. [Esse mundo está, de tal maneira] insensibilizado, a ponto de não mais empolgar-se por coisa alguma; todavia pode [justamente por estar em estado tão lastimável] ter um espírito realmente quebrantado [pronto] para receber a Deus. Talvez seja um mundo cheio de murmurações amargas, sem paz, [saturado] de protestos, de críticas e de insatisfações íntimas, mas por isso mesmo, e dentro disso [talvez] ele aponte ao próprio Deus da Paz, que está acima de todo o entendimento. O que oferece a lei? E o que quer a lei trazer à lembrança daqueles que a têm? Justamente isto, que nos parece tão notável nos filhos do mundo: [a lembrança do Deus verdadeiro, a referência a ele]. Será que eles [os gentios] praticam a lei? Será que eles estão ao pé da fonte [donde brota o rio da vida]? E por que não estariam? Quem porá limites à riqueza da bondade de Deus? (2, 4) [Por acaso seria justamente] o homem que realmente conhece esta riqueza, que descobriu que a dádiva da revelação é inteiramente gratuita, que é uma dádiva imerecida, totalmente inexplicável (do ponto de vista humano)? [Seria, acaso, o morador ribeirinho do canal quem pensaria na limitação da riqueza da graça de Deus?] “Eles são lei para si mesmos”. Existem pessoas que praticam a lei sem a possuírem e, ao praticá-la, efetivamente a recebem, e passam a ser lei para si mesmos. A água viva cavou para si um leito diferente e a vantagem aparente dos moradores da beira do canal, desapareceu. Surge um leito novo de um rio indômito; uma impressão diversa, incomum, da revelação; uma forma estranha da fé.

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Quem poderá contestar essa manifestação? Quem poderia contestá-la, senão só Deus? A religião e a experiência dos personagens de Dostoiewski podem ser estendidas e aplicadas a muitas “religiões” e “experiências religiosas” [que andam por aí Religiões de “elites” espirituais, religiões e experiências de pessoas superiores que olham aos de fora lá do alto de seus encastelamentos. Olham aos outros, lá embaixo, sem eira nem beira, para, por misericórdia ou porque “noblesse oblige”, apresentar-lhes o seu Deus]. [Dostoiewski imaginou um cristianismo “democrático” e estatal que salvaria o seu país do caos: suas idéias podem, talvez, ser resumidas na essência da pregação do Monge Zossima (Livro VI de “Os Irmãos Karamazov”). É uma religiosidade untuosa e chocante onde a ação nasce, permanece e acaba com o praticante que a desenvolve como se fora para compensar perante os menos aquinhoados da sorte, as vantagens que o destino lhe reservou ou lhe proporcionou por direito de nascimento, inteligência e pelos demais dons que acaso tenha. Nesta compensação até estende a sua retribuição à natureza em geral, para assim remir o seu pecado contra tudo e contra todos, diferindo, portanto, da religiosidade intelectual de Tolstoi citado mais atrás, que foi desenvolvida em forma de racionalização do ensinamento cristão. Tolstoi tomou como centro de sua doutrina a resistência passiva: “Não resistais ao mal” (Mat. 5,39) e eliminou dela todos os conceitos metafísicos ou que não fossem estritamente éticos. Assim, negou a divindade de Cristo, a ressurreição e a imortalidade da alma: ensinava que a felicidade somente poderia ser atingida pela prática do bem. Para Dostoiewski, porém, a felicidade consistia no reconhecimento da participação individual no pecado, no mal geral do mundo, e na humilhação pessoal perante todas as pessoas, animais e coisas para a diminuição, a atenuação do mal causado, involuntariamente ou não]. Que motivo poderiam ter as pessoas “que possuem a lei” para dispensar aos que não a possuem, outra atenção que a de simples “objetos” de seus esforços missionários? [A religião formal, o preconceito de “povo eleito e salvo”, a presunção de que conhecemos a Bíblia, podem levar-nos a posições paralelas às dos personagens piedosos de Dostoiewski]. [Por que haveriam de, aqueles que receberam a lei, tratar aos que não a receberam, se não como principiantes religiosos, neófitos que nada entendem das coisas transcendentais do espírito?] No entanto, é possível que, de há muito, tenha essa gente recebido e percebido manifestações de Deus que nós [que conhecemos a leu talvez nunca recebemos nem receberemos.

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O Julgamento

“Eles são lei para si mesmos”. Se essa lei se expressa ou não em termos da religiosidade e experiências espirituais, não vem ao caso, pois Deus pode conceder e de fato concede, também isto aos gentios. ”Estes tais apresentam as obras exigidas pela lei gravadas em seus corações”. Eles comparecem ao tribunal divino; entram em julgamento; e o que justifica o homem perante Deus “encontra-se neles”. De que forma? Toda resposta positiva: “Assim,” [desta ou daquela maneira] seria inadequada [para explicar] a obra que o gentio justificado apresenta a Deus e com a qual encontra o beneplácito divino. Tivera a justiça humana que pronunciar-se, e o gentio seria, indubitavelmente, condenado. Aquilo que a justiça humana acaso encontrasse a favor dele não seria (nem foi) o que o justificou perante Deus. É no fim, na extremidade [desesperada] da justiça humana que se encontra, possivelmente, a justificação do homem perante Deus; é quando o homem se sente completamente perdido; quando ruíram por terra todas as suas ilusões morais e religiosas; quando ele abandona todas as esperanças depositadas nesta terra e neste céu; [quando, para ele, sua retidão não tem qualquer mérito]. Além, para além de toda intuição, de toda objetividade; para além de tudo aquilo que os possuidores da lei acaso ainda lhe concedam (um “bom cerne” [bom nome, boa família] um “certo idealismo”, “bases religiosas”) além de tudo que o europeu médio preza (posição, maturidade, raça, personalidade, agudeza de espírito, caráter), (além de tudo isso) está o que o gentio tem para apresentar a Deus e que Deus pagará com a vida eterna (2, 6). Na realidade, talvez não [haja no gentio assim justificado] mais do que resquício de religiosidade, (algo inconsciente, extra-eclesiástico). Quiçá exista nele o homem desnudo (Dostoiewski) no seu último estádio; pode ser que ele tenha apenas uma derradeira e grande carência, perplexidade, pobreza. Talvez na hora extrema [quando a morte se apresentar] ele manifeste apenas espanto ante o mistério, ou indignada revolta contra a condição de nossa existência, ou, ainda, o amargo silêncio do ator que, contra seu querer, é forçado a abandonar o palco. Pode também acontecer que o gentio [em julgamento] tenha coisas mais agradáveis, mais bonitas: não vem ao caso. [O que importa] é que no céu há regozijo, há alegria por um pecador que se arrepende, — [que faz penitência, segundo o original]. É um regozijo maior do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento. O que é arrependimento? [“Penitência” escreve o Autor].

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O Julgamento

2, 16

Não é o ato final, mais elevado, mais sublime, mais fino, da justiça (retidão) humana, para Deus, porém é o primeiro ato da justiça divina, por parte do homem: é o ato básico! É a obra inserida em seus corações [corações dos gentios], por Deus. E por ser de Deus, e não dos homens, é vista com alegria nos céus: é o homem lançando seus olhos para Deus e para Deus somente: olhar que, também, somente Deus vê. “Pelo que suas consciências e seus pensamentos mútuos de acusação e de desculpa são testemunhas”. Quem há [entre os gentios] que ouça a voz da consciência? Como falaria ela aos que estão sem lei e sem Deus? Quem, [entre eles] poderia perceber o significado da dialética que fala de Deus e da fatalidade, [da história da redenção e da escatologia,] da fatalidade e da culpa, de culpa e expiação, de expiação e Deus? Mas Deus vê; ele ouve também a voz que foi silenciada [no instante extremo]; ele entende [avalia e aceita] aquilo que foi apenas vislumbrado; “ele considera o destino [o fado]. em seu conjunto” (Gellert). Para ele testemunham todos os fatos que não podem testemunhar, humanamente, para os juízes deste mundo. Ele sabe aquilo que não sabemos; daí a, [para nós], incrível e incompreensível possibilidade de aqueles que estão sem lei, comparecerem no tribunal, sem lei, e serem justificados. Porque, “no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo” os gentios apresentarão suas obras e serão aceitos. Donde vem a possibilidade de serem acolhidos por Deus aqueles que estão sem ele? Como desconsiderar o critério [aparentemente lógico e válido] de separar os homens entre religiosos e irreligiosos; morais e imorais; como substituir essa classificação dos homens, feita segundo um corte transversal da lei, pela aplicação de um critério segundo uma seção longitudinal, descobrindo-se ao longo dela — e nas maiores profundezas [onde estão submersos os homens sem lei, afastados de Deus] possibilidades inúmeras [para o acesso ao rio da vida]? Isto se dá “de acordo com o meu evangelho”. É a luz que raia no dia novo da raça humana, na hora da ressurreição; é o dia de Jesus Cristo que traz essa luz. É esse dia que traz a metamorfose do temporal [efêmero, passageiro] em eterno [incorruptível, imperecível], e o dia em que se revela o que está escondido e se anuncia que somos vistos por Deus. Isto significa crise: confirmação e negação; morte e vida; um começo e um fim; um término e um início; consumação e renovação!

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A confrontação entre essas oposições atinge a todos os homens, a todo o mundo, pois o Redentor que é Cristo Jesus é também o Criador de todas as coisas e nada há que ele deixe para traz. Assim, os que estão em eminência e os pequeninos, os justos e os injustos têm, em Cristo, o mesmo acesso ao Pai, pois uns e outros receberam a mesma ordem de “parar” perante o Deus desconhecido. Toda carne é como a erva e Deus quer que todos sejam socorridos. (1, 16; 3, 29; 10, 2), [O evangelho é “salvação” para todo aquele que crê pois Deus, é Deus de judeus — de religiosos que conhecem a lei, e de gentios — de pagãos que não conhecem a lei, pois entre uns e outros há zelo por Deus]. É por isto que Deus julga pelo que “os homens mantêm em segredo”. A condenação sob a qual estamos, e também a misericórdia e a força do perdão que nos retém e nos sustém, são regidos por aquilo que temos no âmbito mais secreto de nossos corações; não são intuitivas; [não são decididas sem real fundamento]: tanto a condenação como a graça são função das coisas ocultas dos homens. E isto diz respeito a nós todos. Somente então (quando for revelado o que está em segredo) é que [a condenação e a misericórdia] se tornam reais. Esta resolução ainda não é realidade [não é fato público e notório] enquanto, aparentemente, uns se situam do lado da luz e outros na face da sombra, mas essa oposição [ou esse posicionamento] torna-se irrelevante quando soa a meia-noite, ou ao meio-dia quando ambos lados estão, ou envoltos de trevas ou imersos na luz. Cristo é “Meia-Noite” e “Meio-Dia”. Deus abrange [domina] tudo o que separa os homens. Ele formula a pergunta e ele mesmo a responde. Deus propõe a todos os homens, qualquer que seja o degrau em que estejam ou o tempo em que vivam, a mesma advertência e a mesma promessa. Deus está acima de todas as posições humanas; Cristo revela as densas trevas da ira e indignação de Deus àqueles que detêm a verdade com sua arrogância e justiça humana e é a luz do raiar de um novo dia àqueles que perseveram na fé; envolve nas mesmas trevas “judeus e gregos” quando, no mais íntimo de seus corações, não derem lugar a Deus, e banha na mesma luz abundante, também “judeus e gregos” que no intimo de seus corações, — com lei ou sem lei, acolherem e praticarem as obras da lei. A todos é posto o mesmo problema eterno: a opção entre o escândalo e a fé; entre a aceitação e a rejeição; entre a fácil glorificação segundo os padrões do mundo e a difícil renúncia de si mesmo. (Mar. 8, 34). Esta decisão entre os dois caminhos é a crise que toda pessoa tem de enfrentar; ela representa a linha de interseção que foi posta por Deus, e não pode ser fletida, deslocada, pelo homem; é uma reta que não pode

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ser substituída por segmentos descontínuos, sinuosidades e curvas. Ninguém se engane, pois. [(Gal. 6, 7-8)]. A linha traçada por Deus é inescrutável, inaproximável, eternamente intransponível e não ultrapassável; e permanentemente inquietante: Ela nos remete sempre de novo ao “secreto” onde Deus mesmo julga. Mas justamente esta dureza do evangelho de Cristo é a sua bondade cordial e liberadora. O Deus, que é desconhecido de nós todos, pode e quer dar-se a conhecer, a todos nós. O Deus que ninguém entende, também a ninguém deixou sem testemunho. O Deus desconhecido não está longe do secreto dos homens, e é no secreto de Deus e dos homens que as diferenças desaparecem; e tanto mais próximo estará Deus quanto mais compenetrado dessa verdade estiver o homem. [É pela revelação da noite — (do pecado e do afastamento de Deus), que se destaca, como por contraste, o inexaurível amor divino e a grandeza da boa nova contida no objetivo da vinda do filho unigênito de Deus, ao mundo. (João 3, 16) O homem cavou o fosso profundo do abismo em que se encontra e onde se esforça para igualar-se a Deus. No entanto, Deus em Cristo faz novas todas as coisas — e também ao homem, proporcionando-lhe a oportunidade de reassumir perante Deus a posição que teve antes da primeira queda, como se jamais caíra. É na comunhão íntima, quando o homem expõe os escaninhos do seu coração à luz da verdade, que Cristo passa a habitar nele e este novo relacionamento é também um novo segredo do seu coração. Ninguém mais tem consciência dele. O fato é simplesmente confessado com temor e tremor; se for anunciado, propalado, alardeado, já não é um encontro real com Deus, mas um simulacro; é a entronização do NÃO DEUS através do ego. Porém se for um encontro real, se for resultante da crise, com opção pela fé, então este novo segredo supera e apaga os demais segredos, e por ele, Deus julgará]. Este Deus, o próprio Deus, que não se deixa levar e influenciar pelas impressões que dele tenhamos, é a esperança dos gentios no dia do juízo. Toda retidão humana, porém, por ser Deus o juiz, deve ser, e está, sujeita à máxima reserva. A sua zelosa crítica aos que não têm Deus, poderá ser totalmente imprópria — [destituída de razão]; seu empenho para convertê-los pode ser fora de propósito. [Segundo a tradução inglesa tal empenho pode ser trivial]. Todavia, a mão de Deus está além [do nosso conceito] do que é bom e certo ou mau e errado por isso andaria bem, a retidão humana, se não ousasse ir longe demais.

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2, 17

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Vs. 17 a 25 Se porém acontecer que tu que te intitulas judeu, e te fias na posse da lei, e te ufanas de Deus; conheces a sua vontade e tens compreensão do que se trata, como pessoa instruída pela lei, que és, e te atreves, também tu, a ser guia dos cegos, luz para os que estão tias trevas, educador de ignorantes, professor de crianças, porque tens, perante ti, na lei, a exposição completa do conhecimento e da verdade, — tu, que ensinas aos outros, não ensinas a ti mesmo? Proclamas que não se deve roubar; e furtas? Falas que não se deve quebrar os laços do matrimônio e adulteras? Abominas os ídolos mas despojas o santuário? Glorias-te na lei mas desonras a Deus, transgredindo-a? Pois, conto está escrito, o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por vossa causa. A circuncisão tem mérito se cumpri mios a lei; porém, se fores transgressor da lei, então tua circuncisão será como incircuncisão. Esta é uma comunicação [uma exposição] chocante, inescrutável e estranha, feita aos que estão do outro lado [do lado oposto ao dos gentios]. Agora trata-se [não de adormecidos] mas, [aparentemente] de pessoas vigilantes, acordadas, porém que, segundo o juízo de Deus, estão adormecidas. São homens que, [segundo o testemunho do mundo] têm fé; no entanto Deus os considera incrédulos. São justos, tidos como injustos no conceito divino. Aqui está o partido [o grupo] de homens que têm a revelação impressa em suas mentes e que, assim mesmo, em nada diferem do restante do mundo. A retidão humana precisa, pois, tomar conhecimento também desta possibilidade, no julgamento divino. “Tu, que te intitulas judeu”! Não és o primeiro dos bons. Tens um passado atrás de ti e um correspondente futuro adiante de ti. Tua vida faz parte de uma conjuntura que te leva a pensar que és uma exceção no mundo carnal. Tens o nome de que estás vivo, em contraposição aos muitos que, na realidade, não podem receber esse nome. “Fias-te na lei”. Estás rodeado de sinais deixados pelo Deus vivo; esforças-te por conservar tais sinais sempre bem claros para ti. Alegras-te pela autoridade que sobre ti tem, aquilo que sabes de Deus; [alegras-te porque tens aceito piedosamente a autoridade das coisas divinas, segundo as aprendeste na lei] e te comprazes pela autoridade que essa ciência [esse conhecimento] te confere [sobre os outros, sobre os teus semelhantes]. Comparas [a segurança e a disciplina] que te proporcionam as coisas que sabes e conheces, com o caos que reina entre as opiniões e os padrões, lá fora, no mundo. “Ufanas-te [e te glorias] de Deus”. E como não te ufanarias tu. que tens, de fato, uma impressão, uma recordação dele, pois tens os olhos voltados cons-

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2, 18

tantemente, em oração, lá para onde Deus, realmente, deveria estar, enquanto os demais, os incrédulos, não só duvidam [que tenhas os olhos voltados para Deus] como afirmam que olhas para um lugar vazio [que Deus nem existe]? “Conheces a vontade de Deus”. Sabes também que a lembrança de Deus requer obediência. Sabes que de lá, para onde olhas, deveria partir uma intervenção em tua vida e um ataque ao mundo e sabes ainda que direção essa intervenção e esse ataque deveriam tomar. Estás intranqüilo porque estás convencido de que algo deve ser feito e por isto estás tomado de zelo para fazer tudo. [O A. põe a proposição em forma negativa, dizendo que o homem devoto — e que se intitula “judeu” não deixa de se sentir intranqüilo por algo a fazer nem deixa de ter zelo por (de fato) — fazer de tudo], enquanto os outros [os gentios], os irresponsáveis, [indiferentes, apáticos] deixam-se levar pela “força do destino”. “Tens compreensão do que se trata”. — Herdaste e adquiriste [desenvolveste] um sentido [para a compreensão] daquilo que realmente conta, para as nuanças psicológicas e históricas que caracterizam o que é genuíno, verdadeiro; [tens uma percepção pronta] para detectar o que é significativo, importante, essencial e, mui especialmente, [tens o dom de perceber o que deve ser rejeitado], o que é suspeitoso e perigoso. Tens sempre, quando opinas, uma observação pertinente, inteligente, fundada em considerações espirituais. Sabes delimitar [e fundamentar] tua posição entre os outros, com excelente argumentação. Em resumo: vês com profundidade porque és profundo, em contraposição aos milhares de superficiais, meros diletantes da vida. Tens muito! O que mais querias? O que mais poderia alguém querer que tu já não tenhas? Grande é a oportunidade que se te oferece. Grande é o sentido da bondade de Deus, a teu respeito. Grande é a sua paciência. Grande é a contenção de sua ira [no trato contigo] (2, 4; 3, 2: 4, 11:9., 4 - 5). Declaradamente grande é o que se espera de ti. “E agora te atreves a ser guia de cegos”. Sentes, e com razão, que tens uma missão. Comparas-te, dada a impressão [e noção 1 que tens da revelação, com os muitos que não a têm e, nessa confrontação, encontras a tua vocação. Adivinhas a existência de um plano divino, de uma “teologia” na qual tens um papel decisivo a desempenhar. Aceitas o papel (já o aceitaste, [aliás]) confiante e consciente de [estares cumprindo] um dever sagrado. Gostarias de transmitir a impressão da revelação que tão séria e entusiasticamente recebeste (a verdade e o conhecimento plenamente estampados na

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2, 19-21

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lei), também aos outros: aos cegos que perambulam nas trevas, aos ignorantes e aos pequeninos. Gostarias de promover a lei; propagá-la, espalhá-la estendêla para que muitos tivessem posse dela. Por força do que és e tens, sentes-te pressionado para agir, instalado como cooperador de Deus. Mas “tu, que aos outros ensinas, não ensinas a ti mesmo?” Para que alguém tenha uma missão a cumprir é necessário haver alguém que lha tenha confiado. Quem quiser ensinar, precisa estar preparado para isso. Para distribuir é preciso ter o que repartir. O que significa ter a lei, se ela não for posta em prática, e quando Deus não se revela a tais possuidores? O que significa a impressão [a noção] da revelação, se ela não prossegue, [se permanece apenas na forma remota de primeira impressão]? O que significa ter o olhar voltado para onde Deus estaria, se ele já não mais está ali? Que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter morado à beira do leito do rio [onde fluiria a água da vida] se o canal está seco? (Não se poderia ter dado o caso de as águas terem sido cortadas?) [Pessoas piedosas, crentes, devotas, podem atribuir-se prerrogativas de detentoras do conhecimento da lei divina, da graça de Deus, do entendimento da revelação de Deus em Cristo Jesus, segundo seus próprios conceitos ou preconceitos, sem na realidade se abeberarem da água da vida; o rio da vida, para estes, já não flui no canal que eles elegeram; talvez um dia lá estivesse o rio de águas fulgentes, mas o seu leito foi assoreado com os detritos das presunções humanas; as águas estagnaram e o baixio do canal é leito árido ou várzea apenas úmida, quiçá umedecida pelos resquícios, pela lembrança, pela memória das águas que, um dia, ali fluíram. O curso d’água foi bloqueado, não pelo Deus invisível, mas pelo homem que reteve a verdade divina com a sua presunção, pela qual ainda fala em conhecimento e revelação.] Quem és tu? O que tens? Donde vens? O que espalhas e derramas, pois, em torno de ti e por todos os lados? O que é este “espírito novo” que queres implantar em todos? A tua impressão da revelação, a invasão que sentiste [em tua alma], teu entusiasmo, tudo isto é carnal, é deste mundo. Acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de Deus do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da verdade, a permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu caso [na qualidade de judeu] de maneira idêntica à do outro [do gentio]?

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2, 22-33

O que és tu, se Deus não for por ti? O que és, se ele não encontrar em ti, no recôndito do teu coração, a [boa] obra? (A oração do Coletor de Impostos, a súplica do Filho Pródigo, o clamor da viúva perante o juiz iníquo?) Então o teu “fazer” será o que ele é: tua legalidade, um furto (quem não furta?); tua pureza, um adultério (quando teria a sexualidade sido pura?), tua religiosidade, vã presunção (pois qual o religioso que não se aproxima [presunçosamente] de Deus?). Adiantaria diferençar entre os degraus mais altos e mais baixos da vida, no tribunal de Deus? Se à tua vida faltar a justificação que só Deus mesmo pode dar, então falta-te toda e qualquer justificação. Se não tiveres mais que a tua impressão de revelação, para apresentar a Deus, então nada tens para apresentar-lhe. Se evocas para ti, apenas a tua fé, então nada tens a evocar. “Glorias-te da lei, e desonras a Deus, transgredindo-a”. Se Deus não for por ti, tudo será contra ti. Se Deus não for por ti, também não podes ser por ele; o mundo tem vista penetrante e não deixará valer a tua pretensa superioridade; ele logo te reconhecerá como carne de sua carne e osso de seus ossos. Se tu mesmo fores reprovável não podes agir, trabalhar, instruir em nome de Deus. A tua posição se inverte e não podes achar que isto seja uma injustiça: Querendo ser missionário, se não houveres sido enviado, fazes o contrário, pois onde se fala de lei, o mundo espera que a lei seja cumprida; onde houver menção de revelação o mundo a procura [e quer vê-la efetivada]. O mundo crê com longânima paciência em todas as exigências novas e mais altas que os “filhos de Deus” [o original não tem as aspas] em seu meio, levantarem e, de maneira nenhuma seria indiferente a realidades [que se lhe apresentassem] mas, será insensível a coisas ilusórias e vãs. Se o mundo sentir-se ludibriado, iludido pelos “vocacionados” e “iluminados”, se lhe parecer que, ainda uma vez, apenas lhe exibiram aldeias e povoados de Potenquim, se nada houver [nessa pretensa revelação] que seja novo, diferente, convincente [real], então, após uma curta admiração, ele se afasta do estranho elenco teatral, pois não são [esses tais filhos de Deus] a verdadeira igreja do verdadeiro Deus; e então o mundo sente-se refortalecido e justificado. [A expressão “Aldeia de Potenquim” refere-se à farsa praticada pelo príncipe russo Potenkin (1787) favorito de Catarina II; para impressionar uma comitiva de embaixadores austríacos, franceses e ingleses, com o pretenso grande progresso que o país estaria tendo naquele reinado, levou-os em excursão pelo sul havendo, porém, previamente, mandado embelezar as aldeias do percurso,

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2, 23-25

O Julgamento

enchendo-as com gente especialmente contratada para passear pelas ruas aparentando bem estar e satisfação. Mandou, também, montar painéis e armações pintadas, à distância, para fingir novas vilas e povoados que brotavam como cogumelos, por toda região. (Apud nota semelhante na tradução inglesa)]. O mundo sente a verdade por instinto natural, e não se deixa levar por engodos; é por isso que se recusa a seguir o Deus dos “religiosos”. Deus é apenas uma ideologia quando os homens tomam emprestado os pontos de vista divinos, porém sem Deus, quando Deus deixa de ser, ele, a única fonte de todo bem e o homem passa a ser ou fazer algo com Deus [ser seu representante e cooperador] ainda que [esta co-participação] seja motivada pelas mais finas e mais nobres intenções. A objeção [do mundo] a Deus, o seu protesto contra ele, é plenamente justificável quando todos canais estiverem vazios. — [Quando as fontes da vida, a pregação, a proclamação, o testemunho, forem formais ou pessoais, ainda que coerentes, eloqüentes, altissonantes, porém rasteiros em espiritualidade, destituídos da unção divina]. Onde estão, porém, os cooperadores de Deus? “Por causa de vós o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”. (Isaías 52, 5)... “e o meu nome é blasfemado incessantemente”. São, pois os eleitos, os “filhos de Deus”, [as aspas não estão no original] que retêm o reino de Deus [fazendo-se eles mesmos cooperadores de Deus. Não deveria de essa possibilidade [de nos transformarmos em filhos da ira] deixar-nos profundamente preocupados, toda vez que formos tentados a fazer da profecia [da redenção], destinada aos que esperam [no Senhor] e se apressam [a ir ao seu encontro], a quintessência da retidão humana? “Se fores um transgressor da lei, a tua circuncisão será como incircuncisão”. Então, inapelavelmente, entrará o relativismo e a noção de revelação que têm os “filhos de Deus” [e transgressores da lei] transforma-se em valor humano, mundano; um valor ao lado de outros valores. A pretensão a ter vantagem absoluta [pela sua condição de filhos de Deus] com relação às demais pessoas, desaparece. A religiosidade [a devoção], a sua moralidade e a sua posição com relação ao mundo são grandezas que vão e que vêm. [São valores espirituais e morais que flutuam por falta de um seguro padrão de referência]. A sua história eclesiástica torna-se profana e cabe no refrão: “O genuíno anel provavelmente foi...perdido”. [Parece-me que o A. faz alusão à expressão folclórica ou lendáriaépica alemã, onde um anel de grande valor foi, inexplicavelmente, perdido]. Pois, onde Deus que julga e “paga” (2, 6) não encontra valor real, os pretensos valores humanos não podem significar muita coisa.

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O Julgamento

2, 25

A impureza e a falta de santidade que Deus achar no íntimo dos corações, desvalorizam a noção de revelação [de inspiração divina] que as pessoas julgam ter ou que os outros pensam ver nelas. Os combatentes de Deus [os seus soldados], sem Deus, são quais um andarilho que estacionasse junto às setas da beira da estrada, indicadoras da direção a seguir e aí permanecesse sem tomar o sentido indicado. [E o pretenso servo de Deus que vê o que deve fazer mas não faz; é semelhante ao “moço rico” que se achegou a Cristo, percebeu o que deveria fazer, mas não trilhou o caminho indicado. (Marc. 10, 17-22)] (Para esses tais [os soldados de Deus, sem Deus,] o sacramento da circuncisão entre os judeus e todos os demais sacramentos [entre os outros — entre os gentios] já não são mais comunhão com Deus, mas apenas se referem a essa comunhão; são memória dela. (Zwinglio e o liberalismo têm razão, sob a ira de Deus). [Parece-me obscura a maneira de dizer do A. com respeito a Zwinglio. A versão inglesa diz: “O sacramento judeu da circuncisão — verdade que se estende aos demais sacramentos, já não é mais comunhão com Deus mas continua indicando essa comunhão e, aqui, sob a ira de Deus, Zwinglio e os liberais estão certos.” Ora, um dos pontos de divergência entre Zwinglio e Lutero foi o da significação do sacramento particularmente no que diz respeito à eucaristia. Para Zwinglio (e os chamados liberais que o acompanhavam) a eucaristia não é a repetição do sacrifício de Cristo mas a LEMBRANÇA fiel de que esse sacrifício foi feito uma só vez, para sempre. Para os protestantes o sacramento é um sinal visível de uma graça invisível. A “Santa Ceia” é comunhão com Deus, porém não material, física, mediante a ingestão do corpo e do sangue de Jesus Cristo transmudados nos elementos eucarísticos (pão (ou hóstia) e vinho) mas é a verdadeira comunhão espiritual; não é mera lembrança; é participação. O sacrifício foi feito uma vez por todas, e não se repete. Cristo não está morrendo constantemente mas morreu uma única vez; e os seus seguidores comungam em memória dele. (“Fazei isto em memória de mim”). Ao comungarem, lembrando do sacrifício, participam da graça quando, examinando-se a si mesmos, reconhecem a sua nulidade e, sem nada terem, se apresentam a Jesus: (“Senhor, eu creio”; “Eu sei que tu és o Cristo, o filho do Deus vivo!”; “Toma-me como estou!”) Ficarão também sob a ira de Deus se, ao se lembrarem do sacrifício de Cristo, participarem indignamente dessa comemoração. Se a considerarem um fato histórico, ocorrido uma vez, às portas de Jerusalém; ou se examinando-se a si mesmos, julgarem que têm condições para participar da mesa do Senhor

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por terem vida limpa, conduta reta, serem piedosos, crentes professos, freqüentadores regulares da igreja, cooperadores do seu sustento e manutenção. A eucaristia — a Santa Ceia — é pois um sacramento. Fonte de graça para quem, dela participando, discernir o alcance do sacrifício de Cristo; e fonte de condenação para quem transformar em efêmero o que é eterno, em humano o que é divino. Se Zwinglio e os seus companheiros liberais viram, ou viam, no sacramento, apenas a lembrança material, embora fidelíssima, do sacrifício da cruz, então parece evidente à luz da exposição do Autor (e do ensino bíblico (1 Cor. II, 23-29) ) que eles a esse respeito, retêm ou retiveram a verdade com a sua justiça e estão ou estavam sob a ira de Deus]. A cratera em torno da qual estão assentados os santos [segundo seu próprio juízo], está extinta. A forma sagrada, de sagrado, só guarda a formalidade e nenhum esforço de espiritualização poderá impedir o progressivo esvaziamento dessa santidade. A circuncisão fica, de fato, igual à incircuncisão; a fé se iguala à descrença; bem-aventurança se iguala à impiedade. Desta maneira, a retidão humana é atacada em sua própria casa, [pois são os legalistas, os defensores da lei e promotores de sua própria justificação, que são recusados, como transgressores da lei, no tribunal de Cristo, que julga segundo o que está oculto nos corações]; esta justiça (retidão) está sujeita a enganar-se [corre esse risco], não somente em relação aos gentios que estão de fora (2, 14-16) mas também em relação a eles próprios [os que conhecem a lei, os crentes, os de dentro da casa dos justos]. Semelhante retidão humana entra trôpega (cambaleante) no tribunal divino, pois não há reivindicação ou direito humano por cuja força aquilo que seja humano deixe de ser deste mundo. [E o que é humano não subsiste perante Deus]. Vs. 26-29 Quando, porém, um incircunciso cumpre a lei, a sua incircuncisão não passa a vale de fato, como circuncisão? Então, aquele que em seu estado natural é considerado incircunciso, mas é obediente à lei, não julgará a ti que, a despeito da letra e da circuncisão, a transgrides? Judeu não é aquele que o é naturalmente, nem é circuncisão a que se pratica na carne, porém, “judeu” é aquele que o é em seu íntimo e a sua circuncisão é a que acontece no seu coração: em Espírito, e não segundo a letra, e cuja recompensa não procede dos homens, mas de Deus! Surge, portanto, uma derradeira possibilidade: embora o círculo “causae-efeito”, inerente ao afastamento e queda, seja inescapavelmente fechado [fatal]

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ele poderá ser rompido, o seu efeito inexorável poderá ser suspenso, anulado, junto com a própria causa, pela incompreensível comiseração divina. E claro que a justiça humana, em si mesma, é presunção e não produz qualquer justificação no mundo; porém, poderá haver uma justiça de Deus, para Deus. Não há círculos [agremiações, grupos, associações, irmandades visíveis de Santos, de privilegiados, de heróis, super-homens, favorecidos e justos, criados e estabelecidos em conseqüência da posse da lei ou de impressão ou noção da revelação; nem como resultado de boas intenções, conduta moral e participação de sacramento. Todavia, (embora não existam privilegiados) dentro do ambiente materialista [do mundo poderá existir um “homem novo” criado por Deus e na conformidade da sua vontade. [Diremos então que a incircuncisão conta como circuncisão? Concluiremos que a impiedade é [na realidade “paga” por Deus com a vida eterna como sendo piedade? A irreverência e a rebeldia são escrituradas nos livros divinos como sendo reverência e humildade? O mundo perdido é declarado livre e salvo no tribunal divino? Dar-se-á o caso de que a fé seja reconhecida por Deus como a verdadeira fé, mas seja por ele enfeixada junto com a incredulidade para que ele possa ter misericórdia de todos? (11, 32). Trata-se de uma incompreensível irrupção do próprio Deus, do Deus desconhecido, no conjunto das coisas do mundo nosso conhecido. É a impossível possibilidade do mundo novo que vem, sem que qualquer mérito a justifique, sem qualquer base aparente, sem que, do lado humano, possa ser feita a mínima coisa a favor ou contra o seu advento. É a hipótese impossível para os homens, porém possível para Deus. Deus ajusta as contas pela sua própria escala. Ele conduz os que, aqui, são incrédulos, à meta da lei [à justifição]; fá-lo à luz da sua comunidade, e deixa no mundo [sem justificação], os crentes desleixados. Deus passa por sobre as coisas conhecidas, visíveis e materiais, para julgar em secreto, de acordo com a sua justiça. Deus é o espírito que habita ou deixa de habitar nos corações, independentemente do que se haveria (ou se haverá) de esperar pelo que estiver ou não estiver soletrado nas lousas humanas. [Nas tábuas das leis humanas. Deus recompensa o que quer. Ele próprio, e só ele. O que diremos a favor ou contra isso? Acaso Deus, não tem razão? Acaso conhecemos algum juízo melhor que pudéssemos contrapor ao dele? Não é Deus a verdade eterna de nossa vida, trazendo-a à crise da decisão? O que queremos, com as “nossas” verdades? A honra de Deus luzirá [e iluminará os corações e a justiça de Deus revelar-se-á; por isso é que a pragmática de sua ação é tão inescrutável e inau-

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dita. [Porque Deus julga segundo os corações; a mente dos que verdadeiramente honram a Deus será aclarada e Deus os julgará pelo que guardarem no mais íntimo de seu ser]. Deus não subsiste, [não depende] da razão que lhe atribuímos; ele é Deus em seu próprio direito. Deus não é uma base ao lado de outras, nem é a resposta que nós mesmos seríamos capazes de dar; daí o seu irrompimento inesperado e sem razão aparente, e o seu julgamento segundo seus próprios juízos. Há uma possibilidade [uma ocasião] para o homem salvar-se da ira de Deus: é quando toda pretensão humana é anulada, abatida, por Deus; quando Deus dá o seu NÃO, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna inevitável; [isto é:] quando Deus é reconhecido [e aceito] como Deus! E lá, onde e quando começa a história entre Deus e o ser humano. É lá, onde e quando o homem se atreve a erguer-se do pó, [unicamente] para amar esse Deus imperscrutável. (Isto não é uma receita para a bem-aventurança, mas é a eterna base para sua constatação). E por isto — [por estar a possibilidade de escapar o homem da ira de Deus, lá onde e quando o mortal se levanta para amar a Deus], que se trata de Jesus Cristo, [que foi Emanuel, Deus conosco]. Comentários: 2, 14-29 1. Neste capítulo, ao tratar dos atributos de São Francisco, o A. ensaia um método expositivo que é uma sua característica notável na “Dogmática” e que me parece ser uma das causas (ou origem) das acerbas críticas que lhe são feitas por homens cultos e estudiosos do ambiente evangélico brasileiro. Trata-se de uma certa dose de humor, mediante afirmações absurdas que o A. faz na expectativa evidente de que o leitor perceba o sentido real das afirmações. (E claro que somente imaginação doentia poderia criar para alguém qualidades morais e espirituais que parecessem superiores às de Cristo). Na “Dogmática”, não raro, Barth registra conceitos, interpretações e pontos de vista de terceiros como se os aceitasse, AD INITIUM; todavia os toma como válidos apenas para discuti-los, analisá-los, disseca-los e, de dedução em dedução destrói e rejeita o que julgar inadequado ou absurdo e, no processo, leva o leitor a antecipar-se à sua conclusão; não são poucos os casos que, na “Dogmática”, são analisados dessa forma, alguns deles ocupando parágrafos e páginas seguidas.

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Ora, sendo a “Dogmática” uma obra muito extensa, e sendo o A. prolixo, por índole e estilo, muitos são os leitores que consultam a obra; a manuseiam, mas não a lêem detidamente, e passam a atribuir a Barth interpretações e afirmações que foram registradas em sua obra, apenas para serem refutadas de forma cabal. E quando o absurdo dos conceitos ou preconceitos é, no critério de Barth, por demais evidente ou grotesco, ele apenas os menciona e deixa o leitor tirar suas próprias conclusões. E se algum leitor apressado viesse a concluir que Barth foi de opinião que São Francisco superou a Cristo? Parece que o A. não considera ser importante responder ou esclarecer tal tipo de leitores. Afinal, ele não disse que é um teólogo escrevendo para colegas? 2. Parece-me curiosa a interpretação que o A. dá a certo tipo de esforço missionário, evangelístico ou de catequese: é o mensageiro, o pregador, a testemunha de Cristo que vê no ateu, no pagão, no incrédulo, no adepto de outra religião, não o irmão, o companheiro, o conservo, mas o objeto de seu zelo, e procura cumprir para com ele, a sua parte no plano de redenção; procura desincumbir-se de seu papel. Barth afirma categoricamente que ninguém tem o direito de arvorar-se em missionário se não houver sido incumbido por Deus para isso. Na “Dogmática” Barth é, ainda mais veemente, afirmando que, quem não houver sido vocacionado para pregar, que se abstenha totalmente de fazê-lo, pois não será pequeno o mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido escolhido para isso por Deus. Parece-me difícil chegar à conclusão pronta e segura: quem deve ir e pregar o evangelho a toda criatura? (Mat. 28, 19 e referências). A ordem foi dada por Jesus aos onze apóstolos remanescentes. Seria só para eles? Temos a inclinação de generalizar a ordem para até os nossos dias pois Cristo prometeu que estaria com seus enviados até a consumação dos séculos. Será o caso que somente os especialmente chamados, alguns até separados desde antes do berço, devem e podem anunciar o evangelho, ensinar e profetizar, como o próprio Paulo, Isaías, Jeremias, Moisés, Abraão para citar alguns só? A Bíblia ensina-nos à saciedade que Deus não confia a propagação do evangelho e a apresentação da sua mensagem a homens melhores que os outros, a homens perfeitos, pois nesta hipótese teria que confiar a mensagem aos anjos ou suscitar mensageiros das pedras.

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Também é igualmente certo que o poder da mensagem independe do mensageiro pois, de outra forma, como se explicaria o arrependimento de toda a cidade de Nínive, ante um pregador tão destituído de predicados nobres, qual foi Jonas? E como haveremos de saber se somos, ou quem é, verdadeiramente vocacionado? Não foi Paulo que escreveu que o importante é que o evangelho seja anunciado, mesmo que seja por fingimento, inveja ou porfia? (Filip. 1, 15-18). Será, então, que aqueles que se esforçam por ajuntar, pensando que receberam uma mensagem a entregar, estejam, na realidade, espalhando e não ajuntando, com Cristo? (Mat. 12, 30). Este versículo parece ser o ponto central do pensamento do A. sobre o assunto. Todos os argumentos desenvolvidos até aqui mostram o sentido mais profundo do julgamento de Deus, segundo o que está oculto no recôndito da mente, ou, para usar a expressão usual, de acordo como que está escondido em segredo no coração; segredo que o seu guardador, muitas vezes, sequer ousa confessar a si mesmo. Nem todos pregadores, sacerdotes, ministros, missionários, pastores, foram separados desde antes de nascerem, ou de outra forma miraculosa, como alguns dos grandes vultos bíblicos. Nem todos, também, terão por objeto de sua missão levar as migalhas que caem da mesa para alimentar os cachorrinhos. Nem sempre podemos perceber claramente quais os motivos humanos — ou se existe vocação divina, entre os obreiros da seara santa; e a nós não compete o juízo. Mas examine-se cada um a si mesmo e veja o que faz: está, acaso, aproveitando o pretexto para acomodar-se ao “dolce fare niente”? Ou será o caso que se esforça e agita para ter maiores recompensas, como diz aquele hino americano: “I’m thinking, today... Those bright stars might be mine In my crown they may shine If I work like a winner of souls”... Ou então, será para pagar uma suposta dívida de gratidão, retribuindo a graça divina com a dedicação pessoal? E não existirão outros motivos, menos sofisticados e menos nobres, alguns até sórdidos? (Prestígio eclesiástico, carreirismo e até bolsas de estudo!).

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Sim. Há de haver um motivo em cada coração. Este motivo é julgado pelo juiz que vê o que há de mais secreto em nós. Ele sabe se fugimos e recalcitramos contra o aguilhão ou se, totalmente, nos autosugestionamos para o cumprimento de pretensa missão ou ainda se simulamos a vocação para realizarmos nossos intentos. Verá também a sinceridade. Os homens julgarão segundo os critérios perecíveis da justiça humana. Deus julgará em definitivo segundo seus pesos, sua medida e sua escala, dispensando sua graça ou sua ira segundo a retidão de seus juízos. “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco. Sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu Senhor”. (Luc. 25,21 e 23)

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Capítulo III

A JUSTIÇA DIVINA (A RETIDÃO DE DEUS) Conforme mencionado no Cap. II o A. dá àquele Capítulo e ao III os títulos de Justiça dos homens e Justiça de Deus. Havendo “traduzido” o título do 2º Capítulo como Retidão Humana, por coerência, deveríamos intitular o 3º com “Retidão Divina”. Aparentemente qualquer dessas formas poderia ser empregada todavia, parece ser mais adequado o título Justiça Divina usando no texto, e em cada caso, a expressão que se afigurar como a mais própria. O A. subdivide o capítulo em três partes: • A lei - Vs. 1 a 20 • Jesus - Vs. 21 a 26 • Somente pela fé - Vs. 27 a 30 A primeira parte consiste de uma exposição impressionante da situação desesperadora do homem perante a lei. Essa lei divina é incomparavelmente mais dura que a DURA LEX, SED LEX romana porquanto esta, embora pudesse, por vezes, ter sido feita para servir aos desígnios de déspotas e tiranos, reis e senhores de um estado totalitário, era, todavia, susceptível de ser cumprida pelos súditos de todas as camadas sociais, ainda que fosse por servilismo, por submissão, por pavor ou por fingimento, para salvar aparências, o que era, na realidade o objetivo da lei, como sói acontecer com toda lei cívica: resguardar e fazer respeitar o que a sociedade em cada época e em cada lugar, considera ser “o bom costume”. Ora, não é assim com a lei divina, pois o homem é julgado não pela aparente prática da lei mas pelo que está aninhado no recesso mais íntimo de seu coração. E esta lei exige tudo; não se contenta com setores ou parcelas: “Amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o teu entendimento (ou força) (Mat. 22, 37 e Deut. 6, 5). Ninguém tem desculpa, e nada serve como pretexto; a relatividade humana está inserida no critério absoluto da exigência total: todo o teu coração; toda a tua alma; todo o teu entendimento, ou a tua força. Se o coração for grande ou pequeno, se a força

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3, 1-30

A Justiça Divina

que houver for fraqueza, se o entendimento for minúsculo, se a alma for tímida, tristonha, que importa? Não é a grandeza do amor em relação ao que outros, de coração mais nobre, de alma corajosa, de entendimento superior e de forças hercúleas, acaso tenham ou possam ter; mas é o máximo que cada um, dentro de suas condições, pode dar. E, o supremo juiz firma a sua sentença, segundo a lei, pelo que houver no íntimo de cada um de nós. Não há subterfúgio, porque Deus vê em secreto. (Mat. 6, 6) Quem há que possa satisfazer a exigência dessa lei? — Sempre nos faltará alguma coisa e haveremos de nos retirar tristes pois a simples idéia de, por nossas qualidades, a podermos cumprir, já é incriminativa pois envolve ou implica o conceito do nosso valor, e endeusamento do “não-Deus”, como sendo digno do verdadeiro Deus, e ocupante do seu trono. Não há esperanças, pois! Segundo a lei o homem está perdido. Na segunda parte o A. apresenta o Jesus de Nazaré. O filho do homem, O Homem Jesus; o nosso irmão mais velho. O Jesus que é o Cristo; o Messias prometido; que é Emanuel, Deus conosco! O Homem que cumpriu a lei; que sofreu o nosso castigo, expiando-o com seu sangue. O Cristo que, em si, nos reconcilia com Deus. O Cristo que nos liberta da ação da lei, mediante a opção pela fé. * * * Fé — somente pela fé, é a terceira parte da exegese que Barth faz do 3º Capítulo. A reconciliação em Cristo não é certeza visível, mensurável, palpável. E do mundo de além; do lado de lá; pertence ao reino dos céus, que está bem próximo de nós (em Jesus); todavia, não é visível porque não é deste mundo e só o podemos pressentir, apropriar, receber, gozar, pela fé, e somente pela fé. Esta é a terceira parte do Capítulo: Deus é fiel; porém só usufruiremos dessa fidelidade em nosso benefício, para nossa redenção e ressurreição, se o aceitarmos pela fé. * * *

A LEI (3, 1-20) A história do mundo é constituída pelo entrechoque das supostas vantagens do espírito e da força (ou do poder) que uma parte [ou fração] da huma-

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A Lei

3, 1-20

nidade goza ou pretende gozar [em detrimento ou superiormente] à posição da outra parte. É a luta pela existência, hipocritamente dissimulada nos ideais de justiça e liberdade. É o subir e descer das ondas de antigas e novas formas de justiça humana que se sobrepujam mutuamente em solenidades (ou pompa), e em futilidades. Esta História termina, encerra, o seu ciclo com o juízo de Deus. Uma só gotícula de eternidade tem mais peso que todo um mar de coisas temporais. Medidas pelo padrão de Deus, as vantagens humanas perdem sua altura, sua seriedade [sua dignidade] e seu alcance; tornam-se relativas. Até mesmo os mais acentuados antagonismos humanos [os extremos, por exemplo], as polarizações mais justas, do mais profundo cunho espiritual, aparecem quais realmente são, [quando submetidas ao juízo de Deus]: revelam sua significação meramente natural, profana “materialista”, parte integrante deste mundo. Quando este juízo (de Deus) se der [ou se dá], os vales se erguem e as colinas se abaixam. A “guerra” entre os bons e maus chega ao fim. Os homens deixam de estar em campos opostos, para se colocarem todos na mesma linha [ou na mesma trincheira]. Os seus segredos estão [agora, na hora do juízo] (2, 16) em julgamento perante Deus, mas perante Deus somente. O juízo divino é o fim da história [de forma cabal]; não é o princípio de nova História. A História está consumada, liquidada, e jamais será continuada, prolongada, estendida. O que existe para além do julgamento divino não guarda, sequer, relatividade com as coisas do lado de cá, [anteriores a ele], pois é absolutamente diferente, e está totalmente separado destas. Deus fala: Deus é reconhecido como juiz. É necessário conservar em mente que quando Deus fala, e é reconhecido como o Juiz, a mudança é tão radical a ponto de entrelaçar inextricavelmente, a temporalidade com a eternidade; retidão humana com a retidão (ou justiça) divina; o reino que existe aquém da linha de interseção com o que existe além dela. O fim da História, o seu término, é também o seu alvo. O Redentor, é também o Criador. Aquele que julga, é também o Restaurador de todas as coisas. O descerramento do contra-senso [da loucura humana] é também a revelação do bom-senso [do juízo, da sensatez]. Aquilo que é novo, é também a mais profunda verdade da antiguidade.

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Deus significa para os homens, para o mundo, para a temporalidade, a mais radical liquidação da História, O “NÃO’ que sujeita toda carne e a crise absoluta [o julgamento] que Deus destina ao mundo, são também o fio carmesim estendido através de toda a existência e por todo o mundo — [o fio que guia o caminheiro sem rumo, ao destino certo]. É assim que as coisas passageiras, efêmeras, se transformam em imagens das que são eternas. A última genuflexão [o último ato de submissão] sob a ira de Deus e a crença na sua retidão (ou justiça), pois ele é então reconhecido como o “Deus Desconhecido”. Como tal, ele não é “uma coisa” em si mesmo; não é um ser metafísico ao lado de outros seres. Não é um segundo, um outro, um estranho, ao lado dos [seres] que poderiam mesmo existir sem ele; porém é o Deus eterno. E a fonte pura de tudo quanto de fato é; [de tudo o que realmente existe]. Ele é a realidade de todas as coisas, mesmo ao anulá-las. Deus é fiel. [Esta análise de Barth parece, à primeira vista, conflitar com a tese geral, esposada pelo A. e perfeitamente bíblica, do nenhum valor da retidão humana, em si, para a salvação do homem: A tese, segundo a qual, nada que seja humano, temporal, prevalece perante Deus. No entanto, diz agora o A. que, quando Deus fala, mesclam-se inextricavelmente a temporalidade com a eternidade e a retidão humana com a justiça divina; portanto o material corruptível com o incorruptível. Como assim? Quer parecer-me que a resposta está na tese fundamental que o A. apresenta na exegese do Cap. II e que, sem dúvida alguma, é perfeitamente bíblica: DEUS JULGA PELO QUE ESTÁ EM SECRETO NO CORAÇÃO. Deus não quer o homem indolente (Vide a parábola dos talentos) — (Mat. 25, 14-30). Portanto o homem tem em seu acervo as obras que pratica, as palavras que fala, os pensamentos que abriga; são seu acervo — bom ou mau — os anseios de seu coração que aspira a pureza, e o desejo de sua alma de praticar o bem que muito quer embora nem sempre consiga realizar o seu intento (Sal. 51 e Rom. 7, 19). Porém Deus vê em secreto e apura, segundo os seus retos juízos (e sua misericórdia) o que há de divinamente aproveitável na retidão humana. É assim, (mediante o julgamento segundo a medida, a escala, de Deus, e que ele — só ele — aplica ao que existe no recesso de nosso coração, nas profundezas de nosso pensamento), que se fundem, que se mesclam a justiça divina e a retidão humana, porque a primeira, independentemente de nosso querer, acrisola, purifica, transforma a segunda. E assim que o material, o efêmero, o

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perecível e, portanto, parte integrante da retidão humana, sendo aceito por Deus, se mistura inextricavelmente com a justiça divina, O que Deus aceita por válido, deixa de ser humano para ser divino]. [E porque Deus é fiel] a impressão da revelação deixada na história não é tirada, não é apagada, não é anulada pelo julgamento [divino] por menos que dela se glorie a retidão humana, por menos que dela possa a retidão humana tirar para si segurança e descanso; antes é ela (a impressão da revelação) confirmada e fortalecida pois, na supressão radical de todas as realidades históricas e psíquicas, na relatividade geral dos seus degraus e suas antinomias, permanece e sobressai a sua significação verdadeira, eterna. Vs. 1 a 4 O que tem, pois, o judeu, ainda de especial, e qual o mérito da circuncisão? Um valor muito grande, em todo sentido: primeiramente porque lhe foram confiados os oráculos de Deus. Então, como seria de outra maneira? Porque alguns traíram a confiança, acaso a infidelidade destes suspenderia a fidelidade de Deus? impossível! Porém, é preciso ficar evidente que Deus é verdadeiro, e todo o homem mentiroso, como está escrito: “afim de que tenhas razão em tuas palavras e venças quando fores julgado”. ”O que tem pois o judeu, ainda, de especial?” [quais são as suas vantagens, se é que tem alguma? Em seriedade, existiria algo de especial [alguém poderia ter vantagens] se tudo [e todos] estão sob a ira de Deus, e se não existe salvação e paz preparada [e reservada] para este ou aquele, em particular? (E, mais ainda), se não há qualquer exceção? Existem acaso, na história, pontos altos que sejam mais que grandes vagas, em mar transitório, de sombras apenas mais densas que outras? Existe alguma relação entre o que é perceptível, histórica e psicologicamente, como sendo a impressão da revelação, e a revelação do próprio “Deus Desconhecido”? Acaso existe alguma relação entre os varões ilustres que passaram [ou passam] pelo mundo com a perseverança dos vocacionados e iluminados, que se sobressaem como heróis e profetas [que se agigantam] como homens de boa vontade, sim, existe alguma relação entre toda essa gente e o Reino de Deus que está por vir e no qual tudo se fará de novo? Por trás dessas perguntas está a outra, de ordem geral, que indaga da relação existente entre o que sabemos ser verdadeiro (por experiência própria ou de terceiros) e o conteúdo eterno de todos os eventos.

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Ou então, qual a relação que há entre a existência e o modo de ser de todas as coisas e do seu sentido real, [seu ser] verdadeiro? Que relação há entre o anseio e o conhecimento? Voltando o olhar a Deus, o Juiz, não ficam, acaso, desmentidas todas as referências, todas as comparações e todas as relações entre o aqui e o além? Será que a separação, a distância em que nos achamos, de Deus, e que percebemos quando analisamos mais detidamente a nossa situação, é o afastamento total entre Deus e o mundo? Que valor tem a circuncisão? [Se não há qualquer relação entre os aparentes “valores” do mundo e os valores eternos; se a separação entre o homem e Deus é definitiva, então, de que vale o sacramento que confessa que a ele pertencemos?] Respondemos: “Um grande valor em todo sentido!” Desmesuradamente fortes são a relação e a conexão entre Deus e o mundo, entre o “aqui” e o “lá”. Justamente depois de haver sido esclarecido (compreendido e aceito) que a materialização e a humanização do que é divino, em história religiosa ou sagrada, não tem qualquer relação com Deus porque ele, dessa forma, é apreçado, pode-se afirmar que tudo o que acontece no mundo nosso conhecido tem conteúdo e significado para Deus; que toda “impressão de revelação” aponta à própria revelação; que toda a experiência da vida traz conhecimento para a crise individual do ser humano; que todo o tempo transitório, na sua própria transitoriedade, aponta à eternidade. Julgamento não e destruição, porém restauração. Purificação não e esvaziamento, mas preenchimento. Deus não abandona a humanidade, mas é fiel (3, 3). [É por isso que o Sacramento, que dá testemunho da graça de Deus, tem um grande valor, em todo o sentido!] “Foram-lhes confiados os oráculos de Deus”. Quanto mais ambígua e duvidosa for a posição do homem justo que busca e espera por Deus, tanto mais clara e necessária é ela como sintoma do que Deus quer e faz. (2, 19-25) [Porque sendo ambígua e duvidosa, para o homem. a posição em que se encontra, não se entregará, ou não será tão prontamente induzido a arvorar-se na posição de superior, de líder, de guia, de mestre; não se fiará, nem se gloriará na sua própria retidão, antes estará atento à voz de Deus, e estará mais pronto a entregar-se à sua justiça]. O fato de tais pessoas [as que sentem a insegurança do seu valor humano] serem o que são, no meio do mundo, é prova de sua confiança em Deus. Elas o são porque o reino de Deus foi prometido. Enquanto elas, por experiência própria

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3, 2-3

ou alheia, são constrangidas a se calarem ante o que não conhecem, são testemunhas que este “não-conhecimento” pode, como tal, tornar-se objeto de seu conhecimento. Enquanto se lembrarem do impossível, testificam que Deus é a possibilidade impossível [aos homens]; que Deus é a possibilidade ao seu alcance, não como uma possibilidade entre outras, porém como [a grande, a única] possibilidade do que é [humanamente] impossível. Pela manifestação de Deus que [tais homens] têm e guardam, eles são as testemunhas palpáveis do impalpável: eles atestam que para este mundo incapaz de receber a salvação, há salvação. Não faz diferença se o que eles têm e guardam é Moisés ou João Batista; Platão ou o socialismo; ou ainda, a mera prática diária de vida morigerada: é vocação. Esse “possuir” e “guardar” é promessa, é parábola; é porta aberta e é oferta para conhecimentos mais profundos. A posição especial que reivindicam, sua demanda para serem ouvidos especialmente, não são necessariamente uma arrogância enquanto lhes forem confiadas, de fato, manifestações de Deus. [O A. refere-se, algumas vezes, à vida como parábola e à sua capacidade de, por vezes assumir determinados aspectos de paralelismo e semelhanças; nas Sagradas Escrituras as parábolas não são apenas analogias de raciocínio mas também um provérbio, um dito notável e, ainda, emblema e protótipo visível. Parece-me que o A. quer dizer que há justos que esperam em Deus, quer sejam judeus, que se orientam pela lei de Moisés, gentios filósofos, materialistas modernos ou simples plebeus (ou “burgueses”) que apenas entendem ser de seu dever guardar a devida decência na vida cotidiana. Tais praticantes estão na direção certa para fazerem de suas vidas (e talvez façam) semelhança viva, uma parábola do fato de que Deus não abandona a humanidade, porém é-lhe fiel. (Uma parábola da fidelidade de Deus). É de notar que o A. põe no mesmo redil, judeus e gregos; socialistas e simples homens do povo, implicando o que está dito mais atrás sobre os que, não tendo a lei, a praticam segundo as suas próprias luzes]. “Ainda que alguns hajam traído essa confiança, acaso a sua infidelidade suprimirá a fidelidade de Deus?” Soterrado e escondido está, pois, o sentido verdadeiro de nossa vida. [O reconhecimento da fidelidade de Deus e a nossa fidelidade a ele só] Continua irreconhecido dos homens o Deus desconhecido; infrutíferas as pegadas de sua fidelidade, — [os sinais que testemunham sua glória e seu poder]; permanecem inaproveitadas a sua promessa e a sua oferta. [Oferta de reconciliação e promessa de redenção]. Mas a constatação desse fato ainda não vem ao caso, [para Deus]. Para Ele, o desvirtuamento da confiança

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3, 3-4

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depositada é uma verdade apenas casual, acidental; a ação de alguns (ainda que os “alguns” fossem todos!) não é refutação nem estorvo para o que Deus quer e faz. A fidelidade de Deus pode ser esquecida, traída, ignorada, porém não pode ser suprimida. A oferta de Deus pode encontrar a ingratidão, mas não será retirada. A bondade de Deus levará o recalcitrante ajuízo mas nem por isso deixará de ser bondade. As oposições a Deus que se manifestam no correr da história não alteram as oportunidades por ele oferecidas, nem obliteram as indicações [constantes] à revelação divina, nem suprimem as singularidades divinas que a história contém. Não se fecham as portas, nem cessa o apelo de Deus pelo qual ele se faz conhecer, — [pelo qual ele conduz os homens ao “Deus desconhecido”]. Onde quer que existam pessoas que perseverem em Deus, existe também a mensagem, em CHARACTER INDELEBELIS. E ainda que esta mensagem fique completamente oculta aos que assim perseveram, ou mesmo aos olhos de todos, ou que adviessem as mais terríveis catástrofes psíquicas e históricas, a mensagem subsistiria, [e subsistirá]. Deus nunca, e em nenhum lugar, se revelou em vão. Onde houver lei (2, 14) inda que sejam cinzas apagadas, aí existe também uma palavra [ao menos] da fidelidade de Deus. [Deus não se deixa levar pela ação humana; ele não age desta ou daquela maneira porque (ou se) alguns de nós procedemos de uma ou de outra forma. As portas de acesso a Deus não se fecham e, ainda que existam tempos, épocas e regiões onde os homens, mesmo esperando nele, não sintam a graça de Deus em suas vidas materiais, a palavra do Eterno não voltará vazia (Isaías 55, li). Deus fala e, de alguma forma, quiçá no recesso mais íntimo de seus corações, os seus servos ouvem]. “É preciso ficar evidente que Deus é verdadeiro, e todo homem, mentiroso”. O que consegue, pois, a infidelidade do homem perdoado? — Consegue, apenas, comprovar a premissa de toda filosofia cristã (Calvino): Deus é verdadeiro; Deus é a resposta, o socorro, o juiz, o Redentor. Nenhum ser humano pode sê-lo; nem o oriental, nem o ocidental, nem o homem germânico, nem o homem bíblico; nem o piedoso, nem o herói, nem o sábio, nem o que espera, nem o que trabalha, nem mesmo o super-homem. — Só Deus, o próprio Deus! Se esquecermos desse fato, então é preciso que sejamos lembrados da insuficiência de todos os mensageiros de Deus e da distância que vai deles até

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3, 4

a mensagem que proclamam. Precisamos colocar-nos novamente na origem, no começo. O próprio mensageiro vive no reconhecimento de que é em sua insuficiência que ele anuncia a Deus: Deus é Deus! “Eu cri, por isso falei, mas fui profundamente humilhado” (Salmos 116, 10-14) e depois: “Falei em minha aflição” (em meu êxtase, LXX): “Todo homem é mentiroso!” Todo homem!! É da perspectiva deste antagonismo geral entre o homem e Deus, e somente dela, que surge o conhecimento de Deus. É dela que o homem chega a uma nova forma de culto e de comunhão com Deus. “Como retribuirei a Deus todas as suas dádivas? Tomarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor perante todo povo”. (Sal. 116, 13-14). “Para que sejas justificado em tuas palavras e possas prevalecer quando entrares em juízo” (Sal. 51, 4-6). [O Autor dá ênfase à absoluta pureza de Deus; à sua justiça reta e inabalável, de tal forma que nenhum argumento resta ao homem para argüir a Deus ou disputar com ele, conforme o reconheceu Davi no Salmo 51 quando, no extremo de sua angústia, exclamou: “Contra ti, e só contra ti pequei; tu amas a verdade no íntimo, e no oculto me fazes conhecer a sabedoria” (para que eu saiba) que és justo e puro quando julgas]. Não é próprio que duvidemos da mensagem por serem fracos e falíveis os mensageiros que a trazem e, muito menos, que critiquemos a Deus por isso. Antes, a própria fraqueza dos arautos atesta a origem divina daquilo que anunciam. [Pois sendo pequenos os pregoeiros, como poderiam anunciar coisas grandiosas e santas que viessem deles mesmos ou de seus iguais?]. O valor da testificação de Deus independe das circunstâncias históricas que cercam [envolvem e caracterizam] os anunciadores da mensagem e é justamente no reconhecimento de seu desvalor, de seu despreparo, de sua fraqueza [de sua desesperada falta de dignidade para tão grande missão] que o homem dá azo à entrada vitoriosa de Deus. Quando o homem se encontra na situação descrita no Salmo 51; quando ele nada encontra em si mesmo senão a sua impureza ante a luz divina; quando o homem já não pensa em outro sacrifício a oferecer senão o seu próprio espírito atemorizado e o seu coração despedaçado, então vem Deus como vencedor triunfal. [Então, “qual eco afastado nas quebradas a rolar, ao aflito e contristado” (a voz de Deus) “vem consolar”]. A mensagem [a voz] de Deus permanece acima do subir e descer das vagas da história a despeito da infidelidade humana, por entre a qual subsiste a fidelidade de Deus qual farol.

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3, 5-8

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Permanece, pois, a vantagem, o especial (3, 1) que o judeu [já] não tem mas recebeu: [O sacramento do pacto com Deus — “Eu vos serei por Deus, e vós me sereis por povo” (Lev. 26, 12 e II Cor. 6, 16) como sinal sacramental, visível, dessa graça. (Gal. 6, 15]. Vs. 5 a 8 Mas o que diremos se a nossa rebeldia [nossa injustiça] traz a lume a justiça de Deus? Não é, [não seria] então, Deus injusto ao aplicar a sua ira? (Falo segundo a lógica humana). Impossível! Como então, julga ele o mundo? Se eu pudesse justificar-me porque, para a glória de Deus, a sua verdade teria sido engrandecida pela minha mentira, como se justificaria o fato de eu ser julgado como pecador? Verdadeiramente, não acontece segundo as palavras que alguns aleivosamente nos atribuem: “pratiquemos o mal para que daí venha o bem!” Os que assim falam, reforçam a sua condenação. [O Autor, citando as palavras do original grego, em nota de rodapé da página 55 explica porque prefere o tempo presente (como, então, JULGA ele o mundo) acompanhando Bengel e conforme está (segundo o Autor) em 1 Cor. 6, 2. A tradução de Almeida usa o verbo no futuro JULGARÁ e para 1 Cor. 6, 2 diz... “os santos julgarão”, etc. A Revised Standard Version diz, no primeiro caso, “como poderia Deus julgar o mundo (admitindo, portanto, um tempo presente e, no segundo, “os santos julgarão”. A versão sinodal (francesa) acompanha a tradução de Almeida nos dois casos. A Bíblia “de Lutero” dá, em Romanos 3, 6, o tempo presente e em 1 Cor. 6, 2, fala no julgamento que “Será feito”, pelos santos. A versão católica de 1953, da Biblioteca de Autores Cristãos de Madri, diz como a R.S.V., “como poderia Deus julgar”, para Rom. 3, 6, e conforme as demais versões citadas, para 1 Cor. 6, 2]. “Se a nossa rebeldia traz a lume a justiça de Deus, não é então, Deus, injusto, ao aplicar a sua ira?” (Ou, para usar a tradução de Almeida, “Se a nossa injustiça traz a lume a justiça de Deus, que ditemos? Porventura será Deus injusto ao aplicar a sua ira?” Sim, segundo a lógica humana, parece que se nossa mentira enaltece a glória de Deus, ele será injusto se fizer cair sobre nós os efeitos de sua própria ira, suscitada pelo mesmo pecado que o enalteceu]. O que acabamos de ver dos versos 3, 1-4, parece lançar uma luz toda peculiar sobre este Deus que se declara Deus justamente no ato de negar, recusar [condenar] seus eleitos.

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3, 5-6

A rebeldia e o egotismo despótico e altivo dos homens (1, 18) são os males que, também nos eleitos, retêm presa a verdade e são a causa de sua condenação. Ora, se a rebeldia humana atesta a justiça [a retidão] de Deus, que retidão é esta? Não passa ela, também, a ser rebeldia? [a ser injustiça?]. Não passa Deus então, a ser, em seu soberano despotismo, uma terrível expressão do mais exaltado EGO, em toda sua monstruosidade? Nestas condições, a ira de Deus suscitada pela nossa rendição ao NÃODEUS (1, 22-32) não testemunha contra ele mesmo, contra o próprio Deus? Não resulta disso que a situação do mundo e dos homens, é apenas expressão fiel dos mais íntimos sentimentos do [próprio] Deus: uma tirania caprichosa e impenetrável? Se o contra-senso [a loucura, o disparate] da história testificar sua própria coerência, então esta coerência não passa a ser, necessariamente, um contra-senso? [uma loucura, um disparate?]. “Segundo a lógica humana”, quer dizer: um raciocínio muito bem concatenado, porém, na verdade, destituído de senso crítico, por demais simplista, bisonho; em se tratando das coisas divinas um raciocínio embrutecido, [materializado]. Semelhante lógica raciocina [e tira suas conclusões] pela justaposição de todos os dados porém não inclui o dado desconhecido que é a premissa, a origem, de todos os outros, a despeito de todo o ensinamento que a humanidade tem recebido sobre tal modo de raciocinar; raciocínio no qual se ignora, de maneira tipicamente humana, com quem se tem de tratar, toda vez que o assunto for Deus. O raciocínio segundo à lógica humana ignora que, com referência a Deus, quando ele for a causa, a relação de Causa e Efeito não subsiste, pois ele não é “uma coisa conhecida” entre as coisas. “Como, então, julga ele o mundo”? Se mediante essa objeção, [a objeção à retidão divina,J pudermos colocar Deus como a causa original encabeçando as demais causas que existem no mundo e daí tirar conclusões, como fica, então, o fato de que todo o presente mundo está, evidentemente, declaradamente, sujeito a uma crise, uma problemática final? Não há objeto [ou circunstância] sem que nele [ou nela] se pense. Não há distintivo que fixemos algures sem que tenhamos, pelo menos, uma idéia do que o distintivo representa. Ora, fôra Deus uma parte deste mundo, não haveria expressão a seu respeito (“prepotência”, “tirania”) que não tivesse sido originada por esse conhecimento prévio.

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3, 6-7

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Se, no sentido da objeção 3,5 Deus fosse um objeto [ou circunstância] entre outros objetos [ou circunstâncias], então ele próprio estaria sujeito à crise geral e já não seria mais Deus e o verdadeiro Deus teria de ser procurado na origem dessa crise. É, declaradamente, este o caso. A objeção 3, 5 não se refere a Deus, mas ao NÃO-DEUS, que é o Deus conhecido deste mundo. O verdadeiro Deus, é o supressor de toda materialidade e a origem da crise desta materialidade; ele é o Juiz; ele é a negação do mundo (inclusive da lógica humana) [que levantou a objeção à retidão divina]. É deste Deus verdadeiro, o juiz do mundo, que nele não tem partido [nem dele faz parte], é deste Deus que falamos. A conclusão que apressadamente tiramos a respeito da retidão divina, não alcança seu alvo; ela é de fôlego muito curto, ou antes: é um curto circuito [que anula em si mesmo toda potencialidade nele envolvida]. Ao contrário daquilo que a objeção à retidão de Deus insinua, é justamente em Deus, mediante seu julgamento, que toda rebeldia, toda tirania, toda prepotência encontra a sua antítese. [É no tribunal divino que o personalismo, o egoísmo, a arbitrariedade, a violência dos homens se confronta com a justiça, a equanimidade e a retidão de Deus; é então que esta tirania se desmascara; é de Deus que o homem recebe a inspiração, o ideal, a noção de liberdade e justiça]. Sem o verdadeiro Deus [sem dele termos recebido o conhecimento, a visão da liberdade e, em contraposição, o horror ao despotismo], nem sequer teríamos condições de formular a mal endereçada objeção. [Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. (João 8. 32)]. “Se eu puder justificar-me por haver a verdade de Deus sido engrandecida com a minha mentira, o que significa, pois, que eu seja julgado como pecador?” Essa objeção [é paralela à primeira, porém nela é mais] evidente o desejo de fuga, a busca de pretexto [ou de justificativa] para diminuir a responsabilidade do homem perante Deus ou, pelo menos, para protegê-lo ante essa responsabilidade. [É como se disséssemos]: tenhamos ânimo! Eis que a fidelidade divina triunfa até mesmo na infidelidade dos eleitos, e todos podemos consolar-nos com a idéia de que em nossa mentira, engrandece-se a verdade de Deus!” [Todavia] trata-se de conclusão falsa. Deus não é o mundo e ante tão forte razão, nem por sua obediência, nem por sua mentira pode o homem acrescentar ou retirar o que quer que seja [o mínimo que fosse] da verdade e da glória de Deus. Deus mesmo confirma e atesta a sua verdade e se glorifica. [Ele não precisa da colaboração do homem, nem positiva nem negativa].

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3, 7-8

É em Deus que se decide se o nosso procedimento é obediente ou mentiroso; é ele quem paga a cada um segundo as suas obras (2, 6). Ele triunfa, quer seja aceitando, quer seja rejeitando; quando perdoa e quando condena; não tenho justificação [ou desculpa] nem em um nem em outro caso; perdoado ou condenado só me resta curvar-me ante a sua sentença e tributar-lhe honra. qualquer que seja a circunstância. Esta é a posição sincera [e retal do homem perante Deus em contraste com o sofisma da indagação de “Por que Deus é Deus”! Quem temer a soberania divina ou desejar que ela cancele, suprima, dispense [ou atenuei a responsabilidade humana, deve lembrar-se que [todo homem] é pecador e, como tal, julgado por Deus. — Não é esta a verdade? Na resposta sincera a esta pergunta e no temor do Senhor que da resposta surgir, está a responsabilidade humana. Quem se sentir sob o julgamento divino sabe que o que Deus fizer, seja pró ou contra, é para a honra de Deus e não da criatura, tão certo quanto, quem reconhecer a Deus, como juiz, sabe que a desonra do mundo não é atribuível a Deus.(3,5-7) Supor que Deus aceitará o servilismo humano [que Deus seja por ele “amolecido”, agradado] é pensamento sem fundamento e o anseio secreto que acaso esteja ligado a tal desejo, é mau. Todavia, é no reconhecimento da glória incondicional de Deus [seja na rejeição seja na aprovação] sim, é até mesmo na condenação que o homem encontra o caminho para a sua sujeição livre e jucunda perante Deus, e também a força necessária para rejeitar todos os artifícios duvidosos da filosofia humana. “Na verdade, não é segundo o dito: Façamos o mal que daí virá o bem! Os que assim dizem, reforçam a sua condenação”. As considerações e os argumentos em torno de Deus e dos homens, como se estivéssemos tratando de duas grandezas iguais, como se Deus e os homens estivessem em um mesmo nível [ou, pelo menos, em níveis comparáveis entre si], como se se cogitasse de parceiros pares entre si, são a mais séria distorção da verdade [especialmente porque as deduções parecem lógicas e convincentes. Apresenta-se a afirmação justa, certa e coerente: “Deus faz o bem”. Daí é fácil estender a verdade e dizer]: “Deus faz surgir o bem, mesmo quando praticamos o mal” e daí, com lógica gramatical, a oração principal é seguida pela sua subordinada: “Portanto pratiquemos o mal, pois o bem virá sempre”. Parece ser de clareza meridiana porém, não passa de densa treva: “os que assim dizem reforçam a sua condenação”. Deus e os homens não são a mesma coisa: não podemos escriturar o mal [que praticamos] na conta de Deus nem, tampouco, lançar o bem que do mal possa vir, a nosso crédito.

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3, 7-8

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O que fazemos jamais [foi] é [ou será] obra divina, e o bem que de nossas obras houver, acaso, sido obtido, nunca veio de nós. Se nos enganamos a respeito disto então é porque, por nossa aparente penetração [invasão] na soberania divina, perdemos a noção da distância que medeia entre nós e Deus. [entre o que é humano e o que é divino]. Não somos Deus, nem soberanos. O mal é o mal a despeito do bem que Deus pode fazer surgir [mesmo que seja através desse mal ou apesar dele]. A loucura da história humana é loucura, a despeito da sabedoria que Deus puser nela [para benefício dos homens, segundo a graça divina]. A infidelidade é infidelidade, a despeito da fidelidade de Deus, que não se deixa influenciar pela conduta humana. Também o mundo continua sendo mundo, a despeito da misericórdia com que Deus o envolve e suporta. Quando toleramos a nossa conduta, quando achamos valor nela, e a apoiamos, [quando achamos que nosso procedimento está certo e que merece a aprovação de Deus], estamos aprovando o mundo como ele é; não estamos honrando a Deus, Todo-Poderoso, porém reforçamos a nossa condenação, já por demais evidente, e confirmamos a Justiça da ira de Deus. A arrogância com a qual, então, nos colocamos ao lado de Deus, pensando [ou pretendendo] até que fazemos [ou podemos fazer] alguma coisa por ele, rouba-nos a única oportunidade de nos lançarmos nos braços de Deus, seja para a graça, seja para o castigo: esta entrega é a única possibilidade de salvação que nos resta. Se pretendermos fugir do julgamento com a desculpa da fatalidade, essa própria desculpa nos levará a juízo, pois a apelação a Deus [mediante pretextos humanos] a favor do nosso passado, presente e futuro, é idolatria e ateísmo; nada mais é que rebeldia e impiedade (1, 18) que tornam inevitável a ira divina. Vs. 9-18 O que se conclui? Temos alguma vantagem? De modo nenhum, antes prevalece a acusação que fizemos; judeus e gregos estão sob pecado, conforme está escrito: “Não há justo, nem sequer um; não há quem entenda; não há quem busque a Deus! Todos se extraviaram e se tornaram inúteis. Não há quem faça o bem, não há um sequer. A garganta deles é um sepulcro aberto; com as línguas tecem engano, peçonha de víboras há em seus lábios; a sua boca está cheia de maldição e amargura.

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3, 9-10

Os seus pés são velozes para derramar sangue e nos seus caminhos há destruição e miséria; e não conheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos “Temos alguma vantagem?” Considerando o fato de que Deus se conserva fiel até para aqueles que caem, [que se afastam de Deus, que o negam], qual a nossa vantagem? Já vimos a resposta (3, 5-8). — Não! [Não há qualquer vantagem]. [Assim como a compreensão da soberania de Deus destrói a segurança que o homem possa sentir ante sua suposta retidão — assim também ela não gera novas formas, novos meios de consolação. As duas conseqüências são correlatas e têm a mesma origem; a visão da soberania divina faz com que o homem compreenda a sua distância do Deus eterno; a sua incapacidade de produzir o que é bom; e assim como desaparece o falso sossego que sua retidão justificava, assim falecem também quaisquer novas consolações que seriam mero bálsamo superficial para, toldando a visão do Deus verdadeiro, conservar o homem no cativeiro do NÃO-DEUS]. O homem não é suspenso no ar (levado à crise perante Deus) para, ato contínuo ser reposto no solo, [reconduzido aos seus problemas rotineiros, abandonado à pseudo-segurança de seu materialismo e de suas pretensões]. Ninguém pode esconder-se por traz da vitoriosa vontade de Deus; antes pelo contrário, quem se defronta com essa vontade (quem a percebe, quem a sente) entra em julgamento. Estremece perante Deus e não sai mais desse estremecimento [porque passa a viver em presença do Deus eterno]. “Prevalece a acusação de que todos estão sob pecado”. [Não há regalias especiais]. Continua de pé a constatação (1, 18 e 2, 19) de que a humanidade — judeus e gregos, filhos de Deus e do mundo, por natureza’ estão, sem exceção e sem escapatória, entregues, como filhos da ira, ao domínio estranho [espúrio] do pecado (5,12-14). Deus é e continua sendo desconhecido para nós; continuamos sem pátria e sem lar no mundo. Somos e não deixamos de ser pecadores. Quem fala em humanidade, fala de humanidade perdida, [não salva]. Quem cita a história, refere-se à limitação, à temporalidade. Quem diz “eu”, diz “julgamento”. No desfiladeiro em que se encontram os homens não há desvios ou alternativas, nem para frente, nem para traz; sob a acusação do pecado nada podemos fazer senão persistir, sem subterfúgios e sem sofismas (3,5-8) da lógica

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3, 9-10

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humana. Somente aos que assim perseverarem [aceitando o veredito divino] poderá Deus louvar em sua fidelidade (3,1-4). “Conforme está escrito”. Acaso é [esta absoluta anulação das supostas vantagens que vida aparentemente bem estruturada em sua atitude religiosa e social possa ter perante Deus,] alguma novidade? Trata-se de algo nunca dantes ouvido? É recente, é nova, a verdade de que todos estamos sob pecado, [que não há um sequer que pratique o bem?]. Trata-se, acaso, de resignação em conseqüência de desilusões? Ou de algum entusiasmo brotado do pessimismo? Ou seria alguma violência às riquezas da vida humana? Quiçá algum rompimento com a história? Ou atrevido radicalismo gnóstico? [Seria a idéia, a noção, de que todos pecaram, coisa engendrada pela mente humana para justificar próprios fracassos, ou expressão do zelo humano, desanimado perante a maldade do mundo, ou então a manifestação de fanatismo religioso?] Nada disso! Esta acusação, que não gostamos de ouvir, está escrita. Ela foi publicada há muito (1, 2). Ela é proclamada e anunciada pela própria história. Como pretende a humanidade ter critério histórico, e por ele orientar-se se, sistematicamente, ela insiste em ignorar a pecaminosidade [a maldade, a perversidade, o desvio do homem no caminho que leva a Deus] que a história mesma, tão eloqüentemente comprova? Existe, acaso, entre os vultos que dignificam a humanidade [e que se sobressaíram dos seus pares nos diversos ramos da atividade e do saber humanos] um sequer que ateste ser o homem bom? Profetas, salmistas, filósofos, anciãos da Igreja, reformadores, poetas, artistas, acaso um único deles, se perguntado, afirmaria ser o homem bom ou, ao menos, apto, capaz de fazer o bem? Acaso a lição que nos deixou a “herança do pecado”, é um ensinamento trivial, junto e a par de todos os demais ensinamentos de vida, ou trata-se de verdade fundamental, de ensino básico que se refere a todos os demais fatos da história [e em cujo contexto precisam ser analisados,] se a quisermos estudar consciente e honestamente? (Ver o seu sentido fundamental conforme 5, 12). Poderia alguém, neste assunto, ter opiniões diversas das exaradas na Bíblia [ou mesmo] daquelas de Agostinho e dos reformadores? O que é, pois, que mostra e ensina a história, (tanto ativa como passiva)? [Acaso sugere ela que] existem, ao menos, umas poucas pessoas [em toda história da humanidade] que se pareçam [ou tenham parecido] com Deus? Não! Antes mostra e ensina que: não há nenhum justo; nem um sequer. [Parece-me que aqui o Autor faz pensar, não só na pretensa retidão humana, tão generalizada entre a chamada cristandade, mas também e de forma

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muito objetiva, na infalibilidade papal; para Agostinho, a humanidade era massa perdida, falida; para os reformadores não havia infalibilidade. Para a Bíblia não há, ninguém, perfeito, em nenhuma circunstância ou condição. E a história o confirma de maneira categórica e absoluta]. Acaso ensina-nos a história que a humanidade tem compreensão profunda das coisas [primordiais] da vida, que sabe, substancialmente, qual o seu significado real? Também não. Antes revela que “não há quem entenda”. Ou, quem sabe, apresenta-nos a história as magníficas irredutíveis e serenas testemunhas da verdade como protótipos da piedade, ou de incendido zelo na busca de Deus, como, por exemplo, na prece? Ainda uma vez, NÃO! “Não há quem busque a Deus”. [Para acompanhar o pensamento do Autor, talvez seja útil examinar, ainda que de passagem, qual foi a conduta dos heróis (ou de alguns heróis) que a Bíblia registra, (para nossa edificação). Vejamos Abraão. Teve ele algum conhecimento de Deus? Aparentemente não, pois, se o tivesse tido, já não seria o herói da fé, que é o único fundamento das coisas que não conhecemos, que não entendemos. — A simples existência da fé pressupõe a aceitação sem conhecimento, sem entender senão a graça, pela própria fé. Mas teria Abraão buscado a Deus? Também parece que não! Deus o chamou primeiro e reiteradamente. Pelo registro bíblico, só uma vez, Abraão invocou a Deus; foi em Betel (Gen. 13, 4). Na sublime intercessão pela gente de Sodoma e Gomorra Abraão não buscou, realmente, moto-próprio, a Deus, porém havendo Deus se dirigido a ele, usou da oportunidade para interceder eloqüentemente pela cidade. Foi nobre, sim. Mostrou confiança em Deus, mas não o buscou por iniciativa sua. E José? E Moisés? Josué, Elias, Daniel, ou o próprio apóstolo dos gentios? Lendo suas histórias vemos que o entendimento de todos foi obumbrado pelas contingências do século em que viveram e, quando buscaram a Deus, não o fizeram sempre de todo o seu entendimento, de toda sua alma, de todo o seu coração, antes, não raras vezes, foram inibidos de fazê-lo, como Paulo tão confortadoramente (para nós) o confessa: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero” (7, 19). E quem teve conhecimento? E quem buscou a Deus? A Bíblia registra “Enoque” que “andou com Deus”, porém pela fé. (Heb. 11, 5). Estaria, acaso, a busca de Deus na oração de Jonas? ou na de Davi? Não são tais orações confissão de culpa e suplica e só ocasionalmente gratidão?

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Onde está quem busca verdadeiramente a Deus? quem o invoca senão na hora da angústia? Parece que isto nos conta a história: “Não há quem busque a Deus e não há quem entenda”! Há, porém, que destacar a aceitação da graça, que é coisa diversa da busca de Deus. Adão, desde que pecou, foge de Deus, mas pela graça, o homem renascido do espírito é, mediante a fé, reconduzido a Deus. É a graça que salva, a despeito de nosso desconhecimento e de nosso desinteresse, e mais que desinteresse, nossa absoluta incapacidade de, genuinamente, buscar a Deus. Qualquer que seja o angulo ou o ponto de vista em que nos colocarmos, a questão se resolve pelo que, de secreto, houver em nosso coração...] Pode-se, porventura, considerar alguém como tendo “entendimento de Deus” como sendo pessoa que busque a Deus, pelas qualidades pessoais de seu caráter, quando essas qualidades forem as mais dignas de consideração e as mais respeitáveis, como por exemplo, uma conduta naturalmente sadia, autêntica, original, agradável, idealista, de vontade forte, amorável, espiritual, singela, inteligente, nobre? [Será que alguém que tenha personalidade e obras as mais dignas que pudermos imaginar, não tenha, também, entendimento de Deus e o busque?] Não! “Todos se desviaram; à uma se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem.Não há um sequer.” Quem sabe existiria alguém (ou alguns) com qualidades ainda mais notáveis, mais dignas, [que talvez nem nos ocorresse mencionar ou que ignorássemos], qualidades e aptidões espirituais ou carnais, íntimas ou exteriores, conscientes ou inconscientes, atuantes ou passivas. teóricas ou práticas que garantissem ao seu possível portador (ou seus portadores) o entendimento de Deus, e a motivação para buscá-lo? Ainda uma vez não: pois, “a garganta deles é sepulcro aberto; com a língua urdem engano, veneno de víbora está em seus lábios; têm a boca cheia de maldição e de amargura”. — Isto é o que, afinal, se pode esperar dos pensamentos e das palavras humanas. “Os seus pés são velozes para derramar sangue. nos seus caminhos há destruição e miséria; não conheceram o caminho da paz”. —É o que se pode dizer dos feitos e das obras dos homens. “Não há temor de Deus diante da história”: —É o que a história nos mostra e ensina. O verdadeiro temor do Senhor, como tal, neste mundo, jamais será visível, palpável, nunca será “materialmente”, objetivamente real.

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Histórica e psicologicamente o temor de Deus não é perceptível. O que é perceptível, decididamente, (diga-se de uma vez por todas) não é o temor do Senhor. [E isto], conforme está escrito. (Ver Jó, 14, 4; Sal. 14, 13; 5, 10; 140, 4 e 10, 7; Isaías, 59, 7-8 e ainda Sal. 36, 2). Dar-se-ia o caso de que os homens que tudo isso escreveram e o número incontável de pessoas que acompanharam o pensamento deles, aprovando-o, não tivessem olhos para ver as grandezas positivas da humanidade? Sem dúvida, que tinham. Eles não negam a existência dessas qualidades, [desses valores positivos]. Poderiam até louvá-las com gratidão se se tratasse de julgar a religião, a moral e a cultura em seu valor natural e sua significação no mundo. Porém o tema, o verdadeiro tema da história, não é a contestação ou a confirmação do homem, em si, mas o reconhecimento da situação problemática em que se acha o gênero humano segundo o que o homem deixa de ser para com Deus, sua eterna origem. É dessa posição que procede o radicalismo que as passagens citadas expressam. [Ao citar Jó, os Salmos e Isaías o Autor reitera aquilo que Paulo escreveu nos versículos 10 a 18 do Capítulo 3 de sua carta aos fiéis de Roma: a pequenez e o desvalor do homem para argüir e argumentar perante Deus (Jó); a característica perversa da humanidade: não há quem entenda; não há quem busque a Deus; não há um sequer que faça o bem (Salmos); seus pés correm velozes para derramar sangue, são venenosos quais serpentes, desconheceram os caminhos da Paz (Isaías).... Donde este radicalismo?] Ele nada tem a ver com a crítica relativa, aplicável a todas religiões, todas as formas de moral [ou ética] e a todas culturas e, por isso mesmo, esse radicalismo não pode [suavizar-se, moderar-se] limitar-se e se satisfazer com a aprovação relativa que é devida a todas as realizações humanas quando situadas em sua própria conjuntura. O desassossego que esse ataque radical revela, origina-se de uma profundidade que vai muito além do desassossego rotineiro da humanidade e, também por isso, busca uma paz que a vida normal não oferece. [A paz de Deus, que o mundo não pode dar. (João 14, 27)]. O “NÃO” divino (que gera a posição radical) é universal porque ele jorra de um “SIM”, também universal. Por isso, a essência do pensamento dos extraordinários vultos que com tanto radicalismo se expressaram, não é o pessimismo, a autoflagelação. não é uma alegria, quiçá doentia, de negativismo, mas é feroz aversão às ilusões; decidida recusa a curvar-se perante “tabernáculos vazios”.

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3, 12-18

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É posição que resulta da firme repulsa à tentação de fazer apreciação unilateral do relacionamento da humanidade com Deus, mediante a qual o homem renuncia, essencial e totalmente, a toda pesquisa, toda análise, para fugir. para esquivar-se do conhecimento de sua verdadeira situação perante Deus. [E a tentação de substituir o Deus verdadeiro, que é também o Deus do “NÃO” total, da ira, por um Deus “amigo” complacente, tolerante, o “NÃO-DEUS” conhecido deste mundo, criação humana, que é]. O ataque radical provém de homens que, declaradamente, não se conformam em se deixar enganar por penúltimas e antepenúltimas verdades a respeito da verdade com a qual cessam todas as considerações humanas sobre a vida, e também com a qual se iniciam todas as novas cogitações. Os críticos, assim radicais, dão ao mundo materialista, profano e cético, a razão que nessa posição lhe assiste e, com essa concessão, abrem para si a avenida que leva ao conhecimento do próprio Deus e, assim, ao sentido eterno do mundo e da história. Sem ser na negação da criatura, jamais se conhece a posição do Criador e o sentido eterno do ser humano. É isto o que nos diz a história. [Esta conclusão está muito clara no livro de Jó. Suportou as adversidades materiais e afetivas; quando sua própria carne se apodrecia, levantou o lamento sobre sua desgraça. Seus amigos (?) “piedosamente”, e com sua retidão muito humana, lhe apontam a Deus a quem tentam defender e justificar. E Jó se defende; há réplica e tréplica e contra-tréplicas. Jó, corajosamente, integramente, mostra a impossibilidade de sua posição e a de todo o homem, perante Deus; mostra a distância que há entre Deus e o homem. Mostra que são palavras ao vento as dos “amigos” retos que se arvoram em advogados do Altíssimo; todavia, é o Altíssimo o seu advogado e o seu juiz, “para que ele mantenha o direito do homem contra o próprio Deus”. (Deus é fiel...) Jó admite e confirma que Deus não contenderia com ele pela própria grandeza de seu poder (Cap. 23) e, embora Jó não pudesse vê-lo, confessa: “Ele sabe o meu caminho”. Jó reconhece que a sabedoria do homem consiste no temor do Senhor, todavia dentro desse temor, declara a sua integridade, e faz a sua defesa (Cap. 31) e conclui: “Oxalá eu tivesse quem me ouvisse. Eis aqui a minha defesa assinada! Que o Todo-Poderoso responda! Que o meu adversário escreva a sua acusação!” Jó se considera justo, perante Deus. Seu coração é o de homem amargurado, sofredor e vencido, mas ainda não é submisso; quebrado, mas não quebrantado; arrasado, mas não humilhado. Trata com Deus, com a intimidade — e a ousadia — com que trataria com um juiz, originário de entre pares seus.

130

A Lei

3, 18-19

Eis que o mais jovem de seus visitantes, Eliu, toma-se de ira sagrada: repreende a Jó; acusa-o de falta de entendimento. Defende e justifica a Deus dizendo que ele faz sofrer para produzir o bem. Lembra o quão majestoso é Deus. Eliu fala em linguagem humana, porém fala do Deus Desconhecido deste mundo e acusa seus três amigos idosos cujas palavras considera rasteiras, humanas e, portanto, não chegam aos céus. (Retêm a verdade com a sua própria retidão, por isso suscitam a ira de Deus (42, 7)). Com seu discurso Eliu prepara o caminho para que Jó entenda e, só então Deus intervém e interpela Jó: o que sabia, ele Jó? “Acaso quem usa de censuras, contenderá com o Todo-Poderoso?” (Cap. 38). “Quem assim argüi a Deus, que responda”. (Cap. 40). E Jó respondeu humilde: “Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na minha boca. Uma vez falei, e não replicarei; aliás, duas vezes, porém não prosseguirei”. Mas Deus não aceitou o súdito servil; não aceitou o escravo: “Cinge agora os teus lombos como HOMEM; eu te perguntarei e tu me responderás” (40, 7)... E Jó respondeu: “Eu te conhecia, só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem. Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza”. ...E o Senhor aceitou a oração de Jó; oração de intercessão pelos seus três “amigos retos”! Não seria o livro de Jó uma parábola de retidão humana e da justiça divina conforme a lei, segundo a exegese que até aqui acompanhamos (e interpretamos?)] Vs. 19 e 20 Porém sabemos que: o que a Lei diz, para os que seguem a Lei o diz. Para que toda boca seja silenciada e todos sejam culpáveis perante Deus; pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da Lei, pelo que é carnal, pois a Lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento do pecado. “O que a lei diz, ela o diz para os que têm a lei”. Os que têm a lei são os idealistas, os preferidos, os que tiveram alguma “experiência” de Deus ou os que guardam a memória de algo parecido com a revelação (2,14 e 3,2). Os que têm a lei, anunciam a Deus e dão testemunho dele e da impressão que têm da revelação. Falam da sua religião e da sua piedade; são orientados para Deus e por isso julgados por ele. [O Autor faz jogo de palavras e diz, eles se “julgam” orientados para Deus e, por isso, são “julgados” por ele].

131

3, 19

A Lei

São eles, [os que têm a lei], que menos que qualquer outra pessoa podem ignorar qual a situação entre Deus e os homens e são os que menos podem incorrer no engano de supor segundo alguns (eles próprios, por exemplo) que, à vista de suas vantagens “espirituais” [ou psicológicas] estejam garantidos e sejam desculpáveis perante Deus (2, 1); são estes tais os que menos podem negar, “pela lógica humana”, que Deus é Deus. (3, 5). São eles os que menos podem fugir da tensão e da inquietude, da falta de paz, da constante incerteza e infirmeza de suas bases, da dúvida [a que está sujeito o homem quando colocado na presença de Deus, ou, no dizer literal do Autor] cm que Deus coloca o homem. Pois é justamente a fé, quando for genuína fé no verdadeiro Deus, que é vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos de ser, ou haveremos de ter ou que poderemos fazer; que se curva [e se humilha] perante quem jamais será mundo ou homem, [a quem jamais será parte do mundo ou igual ao homem], a não ser que o fosse na supressão do mundo que ora conhecemos, na redenção, na ressurreição de tudo quanto aqui e agora conhecemos por humanidade e mundo. Acabamos de ouvir a voz da lei, da religião e da piedade (3, 10-18). O canal vazio fala da água que não o percorre; a seta direcional da estrada aponta para o local que não é aquele onde a seta está fincada. A gravação (a “cunhagem”, 2, 20) fala de um sinete que não está onde a cunhagem foi feita, mas aí deixou apenas a sua forma negativa em baixo relevo. É a própria história — não a crônica escandalosa do mundo, porém o registro dos pontos altos da história humana que se acusa. [São os próprios pontos altos, as ações sublimes, que a história registra que mostram como a seqüência dos pensamentos, palavras e obras do homem estão abaixo do padrão divino não só abaixo mas fora dele e até contra ele; é por isso que a própria história se acusa; os que falam da lei, já não têm a mensagem e por isso são qual o canal seco, qual o molde vazio, negativo do sinete que deixou o decalque mas que aí não está; são qual o marco da estrada que se refere a uma localização que não é a dele]. “Para que toda boca se cale, e todos sejam culpáveis perante Deus”. O judeu (o homem de igreja) goza de uma posição especial (3, 1). Ele pode “saber” que “nada sabemos” de Deus. Ele pode “fazer alto” [pode parar] perante o que nenhum olho viu, nenhum ouvido ouviu; perante o que não entrou em qualquer coração humano. Ele pode temer a Deus. [Esta é a vantagem da religião, do homem que pertence à igreja, que conhece a Palavra de Deus, que sabe qual a posição, qual a situação do homem perante Deus; ele sabe a distância que o separa de Deus; ele pode temer a Deus].

132

A Lei

3, 19-20

Religião traz em si a possibilidade de que sendo retirada do homem a sua última, a sua derradeira certeza, [de caráter humano] lhe reste ainda a certeza [a confiança absoluta], depositada em Deus. [Todavia], piedade, devoção, trazem em si a possibilidade de que o último apoio imaginável [sobre o qual nos equilibramos] nos seja retirado de sob os pés, [porque piedade, devoção, são valores que se estribam, se alicerçam na suposta retidão humana]. [Finalmente], o veredito da história dirige-se aos que a ela se atêm e pode levá-los a se calarem perante Deus, em [uma espécie de] renúncia extrema, [pois são justamente os que buscam a história que ouvirão e perceberão o julgamento que ela faz do mundo e da própria história: se forem conscienciosos, se estiverem realmente atentos à voz das crônicas, ficarão perplexos e emudecerão perante Deus, renunciando ao direito ou ao desejo de dar o seu testemunho ou de levantar a sua voz, conforme silenciou Jó. (Jó 40, 4)] Quando isto acontecer, quando os que se ativerem à lei ouvirem o que a lei diz; quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão [que só Deus é justo]; quando a sua religião suprimir esta mesma religião; quando a sua piedade revelar a inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria psicológica [ou espiritual] e intelectual descer ao nível a que são rebaixadas todas as preeminências humanas [quando essa sobranceria estiver totalmente anulada]; quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da glória e reputação humanas] perceberem que todos, [eles também] são culpáveis [e culpados] perante Deus, — então se manifestará o sentido eterno da história; só então, se confirmará, comprovar-se-á e se reforçará a posição especial, [a vantagem particular do judeu ou do homem de igreja]. — Só então Deus confirmará sua fidelidade ao homem que não se deixou iludir, [que não foi induzido ao erro] pela infidelidade humana. “Pois ninguém será justificado perante ele pelas obras da lei, pelo que é carnal”. “Não entres em juízo com teu servo pois perante ti não há nenhum vivente justo”. (Sal. 143, 2). [É o Salmista rogando a Deus que não entre em juízo com ele — Davi] [ou então], “Na verdade sei que é assim [eu conheço a situação]: como pode o mortal ser justo perante Deus? Se quiser entrar em juízo com ele, não pode subsistir, pois em mil questões nem sequer uma poderá responder-lhe” (Jó 9, 2-3). “Há muito anunciado” (1, 2) refere-se também ao que expressaram contra a história as testemunhas históricas que acabamos de lembrar (3, 10-18); são afirmações categóricas que têm a significação fundamental que lhe atribuímos.

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3, 20

A Lei

O vivente do Salmista (Sal. 143) pode ser também o mortal de Jó (Jó, 9); é o ser humano entre o nascimento e a morte, preso na luta pela existência, comendo, bebendo e, acima de tudo, dormindo; ora libertando (aos outros) ora libertando-se, é o homem temporal, o homem histórico, o homem carnal. Este homem não é justo perante Deus. A carne significa a mais radical insuficiência [do homem] da criatura perante o criador. Carnal, quer dizer impureza; significa progredir em círculo fechado; significa apenas humanidade. Carnal significa, por si mesmo, desqualificação e o que é carnal é inqualificável mundanismo até mesmo quando medido por padrões humanos. Nada que seja carne ou se chame carnal, encontra justificação perante Deus, pois as obras da lei que Deus inscreve no coração dos homens (2, 15) falam contra e não a favor do homem carnal. Tais obras não proporcionam nem segurança, nem paz, nem desculpa. Elas são o desmantelamento, não a edificação da justiça humana. Observadas do nosso ponto de vista na esfera carnal, humana, tais obras são negação e não [asseguram qualquer] posição. [Se algum valor tiverem, este ser-lhes-á atribuído por Deus]. Somente vistas por Deus (e só por ele julgadas) podem nossas obras conter algo de apreciável, de útil, de notável. Ao ser humano, segundo o conhecemos, não resta nenhum amparo, nenhum abrigo, nenhum repouso, nem nas mais recônditas profundezas ou na mais rasa superfície de seu ser, pois Deus certamente julga o secreto dos homens (2, 16) a saber, aquilo que só dele é e pode ser conhecido. Nada há, em todas [e na totalidade das] obras humanas, que possa ser propício a Deus que retribui a cada um “segundo as suas obras” (2, 6). O que o homem considera “reto” (ou justo) “e “de valor”, se-lo-á [para o mundo], segundo a carne, mas será “sem mérito” e “injustiça” perante Deus. Porém o que Deus considera “justo” [e reto], e paga segundo a sua avaliação, como tal, não é carnal; portanto já não é nossa propriedade [foi apreçado e pago por Deus] e não pode ser considerado como grandeza e peso válidos [para nós ou em nosso benefício] neste mundo. Só Deus é a resposta. Ele é o auxilio na aflição que nos acomete [e que nos está preparada] pela distância que nos separa de Deus. Tem razão o lamento: “Meu espírito está atribulado em mim; meu coração está abalado. Rememoro os dias passados e medito sobre todas as tuas palavras; estendi a ti as minhas mãos e meu coração anseia por ti qual terra árida pela chuva” (Sal. 143, 4-6); e também perfeitamente compreensível é a

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A Lei

3, 20

queixa: “Quando ele passa por mim, não o vejo; quando ele se metamorfoseia, quem o trará de volta à sua forma primitiva? Ou quem lhe dirá: O que fizeste? Perante ele são humilhados os poderosos sobre a terra. Quem pois sou eu para que me escute e perceba as minhas palavras? Ainda que eu esteja certo, mesmo assim ele não me ouvirá e só posso dirigir-lhe súplicas como a um juiz que me julga. E ainda que o invoque e ele me ouça, não posso crer que ele tenha escutado a minha voz. Não me aniquilará ele nas trevas’? Repetidas vezes feriu-me com chagas; quem sabe a razão? Não me deixa tomar fôlego; enche-me de amargura; é mais forte que minha força. Quem resistirá ao seu julgamento? Pois quando, para mim, sou reto, então a minha boca me condenará como um “sem Deus”. Quando eu me considero irrepreensível, revelo-me falso; ainda que eu me julgue piedoso, minha alma o ignora e sabe apenas que a minha vida será ceifada. (Jó, 9, 11-21 (apud) LXX). É no mais profundo suspirar e gemer, e no lamento mais sentido, que precisa tomar posição quem se ativer à lei e encarar a religião e a piedade com seriedade, pois saberá que aquilo que o homem fez verdadeiramente em Deus, a obra da lei, aquilo mesmo é o seu tribunal permanente. “Pois a lei, em si, serve apenas para trazer o conhecimento do pecado”. Perguntávamos: “Qual pois a vantagem do judeu?” (3, 1). Aí está a resposta: ele tem a lei; a impressão da revelação; vivência; religião; piedade; visão, perspectiva; postura bíblica. [Entre esses dons] é a dádiva da lei que deveria arrancar, os que a possuem, de todo e qualquer sentimentalismo, do romantismo, para colocá-los ante a brecha aberta que existe entre a criatura e o Criador; entre o que é carnal e o que é espiritual. É a lei que os acusa e os declara pecadores; é a lei [que os esvazia] que lhes tira tudo o que possuem e os entrega, [quais são em si mesmos, sem máscaras, sem disfarces, sem desculpas e sem justificações, sem roupagens que os enfeitem], a Deus, para receberem ou a condenação, ou misericórdia. Se isto acontece (se o praticante da lei, assim se entrega ao arbítrio divino) e se o homem ouve a voz da lei, se também entende a si mesmo nas suas peculiaridades [suas “vantagens”], nas suas experiências e em sua piedade, então, tendo ouvido e entendido o pronunciamento (o veredito) da história, ele ouve também a verdade final, a verdade que redime e reconcilia, a verdade de além da morte. É com vistas a tal “ouvir” e “entender” que podemos dizer: há pontos altos na história que podem ser encontrados onde ela testemunha contra si mesma com espanto e horror. [Parece-me que o Autor quer dizer que a história só é realmente sublime quando dá lugar a que venha o reino de Deus e isto só ocorre quando (e toda

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3, 20

A Lei

vez que) abstraindo da sua jactância e pretensão, se expõe à luz que vem de Deus, revelando a hediondez da crônica dos feitos humanos. Quando isto acontece, a história sobrepuja a si mesma]. A revelação só é verdade eterna quando é testemunha da revelação, e não Impressão por ela causada. [Ainda uma vez, parece-me, quer o Autor deixar bem patente que toda valorização própria que o homem queira dar às coisas espirituais, toda conotação de aptidão, valor pessoal, atributos e dons, mesmo as graças e bênçãos recebidas, desqualificam a “retidão” humana perante Deus. Se alguém crê que recebeu a revelação, atribui a si vantagens que Deus considera ilícitas. São retenções da verdade pela mentira. O homem que teme a Deus não se gloria da revelação. Não diz “Estou Salvo”. Não proclama “DEUS ME ACEITOU”. Antes, aceita o testemunho da graça, pela fé, e confia na redenção que Cristo pode dar; é ele (Cristo) que guarda a fé; e pela fé, podemos confiar em Deus e então, sim, dizer: “Eu sei em quem tenho crido, que é poderoso para guardar o meu tesouro, até o dia final” (II Tim. 1, 12). Ele é Poderoso, não eu!]. Os fiéis que perseveram em Deus, perseveram no Reino de Deus somente se, e enquanto, perseverarem [em sua fé e sua esperança] sem preocupação da religiosidade, [isto é, sem pretenderem atribuir a sua perseverança à sua religiosidade e piedade ou, vice-versa, achando que são crentes fiéis porque perseveram]. Esta perseverança contém, de fato, o teor da eternidade, se ela for um testemunho radical da incerteza do crente (em si mesmo). [Sempre a insistência do Autor no combate à jactância pessoal fonte do cancelamento de todo dom espiritual]. Toda a existência e modo de ser [dos homens e do mundo] participa realmente da existência verdadeira quando reconhece [a sua posição negativa], o seu “NÃO-SER”. O único possível relacionamento positivo entre o “aqui” e o “além” se dá olhando-se para Deus — o Juiz e se evidencia no reconhecimento da distância que medeia entre nós e Deus, o que traduz a única possibilidade da presença de Deus no mundo pois é à luz desta crise geral e básica que se compreende a Deus, em toda sua majestade. Aí estão a vantagem do judeu e o valor da circuncisão, [ou, parafraseando, a vantagem do crente e o valor do batismo ...]. Deus é, então, reconhecido como o Deus Desconhecido. Como aquele que declara justificados os que estão sem Deus, (4, 5); como aquele que acorda os que estão mortos e se dirige aos que não são como se fossem (4, 17); como aquele em quem podemos crer esperando contra a esperança (4, 18).

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Jesus

3, 21

Quando o “judeu” se compenetrar desta possibilidade especial, quando ele reconhecer a linha divisória entre os dois mundos, sobre a qual está colocado, então poderá regozijar-se por sua vantagem. Todavia, esta compenetração, este reconhecimento, já está além da capacidade humana. É a possibilidade impossível, [que ocorre somente pela graça de Deus, para que não nos gloriemos...].

JESUS (3, 21-26) Vs. 21-22 Agora porém, independentemente da Lei, revela-se a justiça de Deus, da qual testemunharam os profetas e a Lei, a saber: a justiça de Deus, através da sua fidelidade em Jesus Cristo, para todos os que crêem. ”Agora porém”. Estamos perante uma abrangente supressão do mundo, da temporalidade, das coisas, [da matéria] e dos homens. Estamos perante uma crise que tudo permeia, tudo atravessa, invade e vai ao extremo, envolvendo tudo “o que é” pela supremacia “daquilo” “que não é”. O mundo é mundo, e sabemos o que isso significa. (1, 18; 3, 20). [Um mundo idólatra, depravado e pleno de sentimentos vis, (homens do mundo e homens de igreja, todos igualmente reprováveis), retendo a verdade divina com a sua pretensa retidão; um mundo onde não há sequer um justo, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; um mundo que não conhece o caminho da paz]. Mas de onde procede, de onde vem a crise que envolve tudo e todos? De onde nos vem a consciência dela, a viabilidade de a termos em mira? De onde nos vem a possibilidade [a noção] de chamarmos o mundo como tal e de o diferençarmos de um outro mundo, nosso desconhecido, contrapondo-o a ele? De onde nos vem a sugestão [ou o conhecimento] para classificarmos a temporalidade, a matéria, a espécie humana como tais e ainda de as qualificarmos com um inevitável [e depreciativo] “apenas”? [Apenas temporalidade; apenas matéria, apenas espécie humana?] Donde procede a possibilidade de julgarmos e avaliarmos tudo o que é e tudo o que acontece, (a história do mundo), com a noção de materialidade, da condicionalidade, e da relatividade das coisas? De que alturas superiores nos vêm essas idéias criticas? E de que profundidades abismais tiramos o nosso conhecimento das coisas que acontecerão [no final dos tempos] e pelas quais medimos tudo? Donde nos vem o conhecimento (que tanto nos abala), de nosso juiz, a quem não vemos e que nos julga?

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3, 21

Jesus

Todas essas perguntas “de onde” apontam claramente a um só centro, como os raios do círculo, centro esse do qual procedemos; apontam a uma origem da qual saímos. É desse ponto que viemos e é dele que o mundo e nós somos contemplados [e observados], delimitados, suprimidos, desenvolvidos e julgados. Esse ponto não é um qualquer entre outros, nem essa origem (ou essa pressuposição), idêntica às origens de outras coisas. Essa origem [quiçá a pressuposição de nossas análise e nossas críticas] traz-nos a recordação do lar junto ao Senhor dos céus e da terra e, quando isso acontece, rompem-se os céus e abrem-se os túmulos; o sol interrompe o seu curso em Gibeon, e a lua para no vale de Aijalon [Jos. 10, 12]. [Essa origem] esse ponto, para onde nos levam as indagações sobre a procedência do critério de nossa avaliação e de nosso julgamento do mundo e sua história, que fundamenta, por si só, o “tempo extemporâneo”, o local sem espaço, [o ponto sem lugar geométrico], é a impossível possibilidade. É esse ponto que fundamenta a luminosidade da luz não gerada [não produzida por processos científicos, materiais ou humanos, nem cósmicos, nem criativos]. É essa origem que alicerça o “porém agora”; a mudança de rumo [da história]; a proximidade do Reino de Deus; o “SIM” de Deus contido em o “NÃO” divino; o livramento no julgamento. É esse ponto que nos fala da vida, na morte. “Eu vi um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram” [Apoc. 21, 1]. Deus fala: “Independentemente da lei” — o fato de que Deus fala, que somos conhecidos por ele, e que vemos a nós e ao mundo à sua luz, é algo especial, diferente, novo, peculiar, ao lado de todas as religiões, e dentro delas; [e não só nas religiões do mundo] mas também em nossa vivência e em todas as atitudes dos homens para com Deus. O fato de que “Deus fala” é um acontecimento que vai além [de toda expectativa] de todo o “ter”, ou “ter em parte” ou mesmo “não ter”, que se possa considerar no mundo. Isto é a verdade de toda a religião, mas, por isso mesmo, não é, jamais, a sua realidade. [O fato de que Deus fala coloca-nos sob sua própria luz, e nela passamos a contemplar o mundo; essa luz atravessa todo nosso ser, o nosso sentimento de suficiência, ou de pouca suficiência, e até da nossa nenhuma suficiência; é ela que dá sentido a toda noção de religião mas, por ser a luz divina, ela jamais é idêntica a essa ou àquela religião.

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Jesus

3, 21

A religião é uma expressão humana, corruptível, efêmera, passageira. Deus fala, e a sua palavra (que é a luz para o nosso caminho), é eterna, divina imutável]. A palavra de Deus (porque Deus fala) é o sentido da história eclesiástica e de todas as religiões; e, na verdade, de toda a história mas, por isso mesmo, este fato não é uma parte, um setor [um ramo] da história, nem uma história dentro da história. (Todavia se quisermos dar-lhe o sentido de uma história dentro da história, não estará ela isenta das dúvidas [e indagações] que acompanham e a que submetemos toda a história humana). A palavra de Deus, [o fato de que Deus fala] é o fundamento de tudo quanto for perceptível histórica e espiritual mente, como sendo revelação, adoração e fé, (no mais amplo sentido). Este fundamento, porém, não pode ser confundido com as coisas que fundamenta; ele não se torna materialmente perceptível, visível. Ele apenas é perceptível como o que não é. [Ele constitui o firme fundamento espiritual, invisível, que em realidade nos aponta os sinais perceptíveis, materiais, histórica e psicologicamente visíveis, e que são marcos de nossa vida espiritual, a saber: A revelação de Deus; a nossa comunhão com ele; é a fé que nele depositamos]. Esse fundamento jamais se torna visível ao lado de outras realidades materiais, mas é apenas perceptível como o invisível. A voz de Deus que é o seu poder (1, 16) (o evangelho é, e permanece sendo, a sua voz. Se assim não fosse e não permanecesse para além de todo clamor humano, não seria a voz de Deus. Deus fala onde “há lei”, porém fala também onde “não há lei”. Ele fala “onde há lei” [ou “onde não há”] não porque aí exista a lei [ou não exista] mas porque ele quer. Deus é livre. “A retidão de Deus”. Deus diz que ele é o que é... [Ex. 3, 14]. Ele se justifica a si mesmo, dando-se a conhecer aos homens e ao mundo; e se justifica não deixando de receber os seus. [Porém, recebendo-os]. Também na ira de Deus manifesta-se a sua retidão (1, 18), revelando-se ao incrédulo que precisa ouvir o NÃO divino com o NÃO definitivo. [O não da rejeição]. Porém, enquanto Deus manifesta a sua ira contra a incredulidade; enquanto o homem, desnorteado, se lança de encontro às muralhas com que Deus o cercou; enquanto a humanidade corre após o “NÃO-DEUS” deste mundo abandonando o Deus Verdadeiro... (1, 22 e seguintes), Deus continua sendo “Aquele que é”; o criador do mundo; o Senhor de todas as coisas; o SIM e [jamais] NÃO. [Deus é o SIM da reconciliação da promessa e da redenção].

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3, 21-22

Jesus

Este é o SIM que Deus anuncia. [É o SIM que sua palavra — “o verbo que se fez carne”, traz aos homens]. É o “SIM” que Deus convalida na reivindicação: [Não terás outros Deuses diante de mim; eu sou o Senhor teu Deus...]. Esta é a reivindicação duradoura; a que é válida para sempre, a derradeira; a reivindicação decisiva apresentada ao mundo. Para além das limitações da muralha que nos encerra e perante a qual nos achamos, é sempre ele — [a sua palavra] o conteúdo de sua sentença. Quanto mais conscientes estivermos da agudeza e da insuperabilidade da Palavra de Deus, tanto mais clara e vigorosamente falará Deus conosco de sua justiça e do seu reino. Quanto mais as coisas humanas, tudo o que for nosso tanto nosso bem quanto nosso mal, nossa fé e nossa incredulidade — se tornarem transparentes como o cristal, tão mais certamente somos vistos e reconhecidos por Deus, quais somos; então estamos mais ao alcance de seu domínio, e mais sob a ação do seu poder. [CRISTO é a verdadeira “Palavra de Deus” que jamais passará e que permanecerá para além dos céus e da terra (Mat. 24, 35; 1 Ped. 1, 25 etc.). CRISTO é o “Verbo” a palavra de Deus. Quanto melhor compreendermos esta palavra, mais claramente entenderemos a Deus e mais fortemente nos falará ele; é certo que também mais expostos estaremos à sua lei e à sua justiça; todavia, não obstante essa exposição, esse desnudamento de nosso ser, quiçá por isso mesmo mais fortemente ressoará em nossos corações o SIM da aceitação divina, que anula os efeitos do NÃO inapelável dado ao pecado. Deus, através de Cristo Jesus, proclama o seu SIM, não obstante o NÃO que nos falava, outrora, tão fortemente através da lei]. A justiça de Deus, [a sua retidão e fidelidade ao homem], é esse “NÃO OBSTANTE”, pelo qual [a despeito de nossa injustiça e precária retidão humana] Deus se declara nosso Deus e nos conta entre os seus. É um “NÃO OBSTANTE” incompreensível, sem fundamento, que subsiste apenas por si mesmo porque é fundamentado por Deus (e somente por Deus), expurgado de todos os “Por Quês” pois a vontade de Deus não conhece o “Porque”. Deus quer porque quer. Justiça de Deus é perdão. E este fato constitui alteração fundamental no relacionamento entre Deus e o homem; significa que a irreverência e a impiedade aos homens, e a conseqüente situação do mundo, não são levadas em conta por Deus, antes são tidas por ele como fatos irrelevantes que não lhe impedem de chamar-nos propriedade dele para que, de fato, lhe pertençamos.

140

Jesus

3, 21-22

A justiça de Deus é JUSTITIA FORENSIS, JUSTITIA ALIENA. [É a justiça que Deus, como juiz, exerce por força de sua própria retidão e não em função de leis ou códigos]. É o juiz que julga exclusivamente pela sua própria justiça. As coisas são como ele diz que são e não como, acaso, poderiam ser. Ele se dirige a nós, seus inimigos, como sendo [ou como se fôssemos] seus amigos. “É por isto que se trata de mui alta pregação e de sabedoria divina, para que creiamos que a nossa justificação, nossa salvação e nosso consolo, estão fora de nosso alcance; que vêm de fora; que [embora] justificados, aceitos, santificados e tornados sábios perante Deus, em nós habita o pecado vil, a injustiça e a loucura”. (Lutero). A justiça de Deus é a autolibertação da verdade que mantínhamos retida (1, 18), sem tomar em consideração o que quer que seja que, de nossa parte, pudesse ser útil, eficaz ou fosse possível ou, pelo menos, fosse imaginável. para contribuir para essa libertação [ou para justificá-la]. Em outras palavras, e de forma mais exata: [A justiça de Deus] é o rico e poderoso desdobramento do Poder de Deus, maravilha [milagre], ressurreição. A justiça de Deus é a suspensão do homem em pleno ar onde, de nossa parte, é absolutamente impossível alguém manter-se em pé. A justiça de Deus leva-nos aonde somente podemos estar se sustentados por Deus; e acharmo-nos lá onde ficamos em suas mãos, seja para dele recebermos a misericórdia, seja para ouvirmos a condenação. Esta é a justiça de Deus: o relacionamento positivo de Deus, com os homens e “neste artigo não se pode ceder, nem podemos dele nos desviar, ainda que desabem os céus e se desmorone a terra ou... o que bem se quiser”. (Lutero). Ante os 150.000 anos de incerteza humana que já transcorreram podese, acaso, tomar em consideração alguma outra condição positiva, quiçá algum relacionamento psicológico, histórico ou espiritual, que seja direto, visível, [palpável]? Encontra-se, acaso, na história da Ásia, da África ou da América (para já nem falar da Europa) alguma resposta [além de Deus ou] que não seja Deus mesmo, somente Deus e a misericórdia divina? [O Autor parece atribuir ao homem histórico a idade que situa a sua origem na última quinta parte do pleistoceno, na era glacial, antes ainda do homem de “Cro-Magnon”, talvez nas origens do homem de Neandertal, o que poderia (ou poderá) ser justificável com referência à busca consciente de Deus que o homem tem praticado desde as mais remotas eras, mesmo antes do chamado “Homo-sapiens”, pois os remanescentes fósseis do homem de Neandertal parecem indicar que ele cria numa existência além-túmulo].

141

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Que Deus é reto [e justo] “está manifesto”. E esse fato é o nosso “de onde” e “de lá” e “agora porém”. Triunfa a misericórdia divina que nos foi dada. Subsiste o paradoxo absoluto que é a relação positiva entre o homem e Deus, e este é o teor, o conteúdo, do evangelho (1, 1 e 16) que aqui se anuncia com temor e tremor sob o mais inescapável sentimento de absoluta necessidade. (Sob o sentimento do cumprimento de um dever do qual não podemos escapar). Sob o impulso da mais indisfarçável pressão, [anunciamos] o eterno, como evento. [É a fidelidade de Deus revelando-se aos homens que é a origem, o “de onde” da nossa noção de altos valores morais e éticos — superiores aos do mundo — e que nos leva, por renovação constante, a jamais nos conformarmos com o que convencionamos identificar como o “presente século”. É “de lá”, da revelação divina, que nos vem a “saudade” do lar eterno; o anseio por paz, por equidade, por justiça, por segurança; é “de lá” que fios advém a perspectiva de pureza, da verdade, da vida. Também é “de lá” que chega ao nosso conhecimento o “NÃO” divino à fatuidade humana e o anúncio da ira de Deus sobre os que retêm a verdade de Deus com a injustiça de sua pretensa retidão; todavia, também é através dessa mesma revelação da justiça de Deus, em Jesus Cristo, que sabemos que “agora” é a hora aceitável; vemos que nossos pecados podem ser e são, vermelhos como escarlate, “porém”, purificados pelo sangue expiatório e propiciatório de Jesus, o Cristo — poderão tornar-se e se tornam, mais alvos que a branca lã. (Is. 1, 18) — E o eterno “convite da graça”; é “de lá” que nos provém não só a vida abundante mas também o entendimento dos fatos que hão de sobrevir na consumação dos séculos]. Anunciamos o Deus desconhecido, o Senhor do céu e da terra, que não habita em templos erguidos por mãos humanas, que de ninguém tem mister, pois é ele quem a todos dá a vida, a respiração, e tudo o mais. Anunciamos o que por ele é dado aos homens, e lhes é concedido para que o busquem, pois não está longe de cada um de nós; é nele, em quem vivemos, nos movemos e existimos e [ainda mais do que isso,] é ele que está também para além de nossa vida, nossa agitação, nossa existência de modo que ele permanece fiel a despeito [de nossa decrepitude], de nossa degenerescência (de nossa morte]. É justamente por isso, porque permanece imutável e fiel para sempre, que proclamamos que ele não pode ser representado por qualquer semelhança humana, nem comparado a figuras (representações) e descobertas da arte [e ciência] dos homens; que “agora” Deus, já não mais considera os tempos de

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nossa ignorância, “porém” manda pregar aos homens de toda e qualquer condição que se arrependam [e pratiquem obras dignas desse arrependimento]. Anunciamos a aurora do dia em que Deus julgará o mundo dos homens, com justiça — com a sua justiça! (Atos 17, 23-3 1). [Agora] se manifesta a justiça de Deus. Já não podemos raciocinar sem ela. Aquilo que nos foi dado não pode ser analisado fora da luz dessa premissa. Não podemos mais partir de qualquer outro lugar. (Essa premissa, [a manifestação da justiça de Deus] é o ponto de partida). Já não podemos ouvir o ressoar do “NÃO” divino, se não como contido [subjugado e dominado] pelo divino “SIM”. Agora ouvimos através da voz da impiedade e rebeldia humanas, o eco mais profundo do perdão que vem do alto; e o clamor da teimosia humana torna-se apenas audível, atenuado que está pela serena harmonia do “porém”, do “não obstante”, de Deus. Não mais? — Sim; não mais, se, pela fé, aceitarmos o que nos foi manifesto! Se crermos, veremos o homem anulado por Deus. [Isto é, o homem deste mundo suprimido em sua arrogância, sua pretensão, para dar lugar à nova criatura, nascida em Jesus Cristo] e por isso restabelecida com Deus. Vemos o homem [deste século] rodeado, limitado, cercado, mas esse cerceamento, esta limitação é também, para o homem, o princípio e o fim, [o “alfa” e o “ômega”; é nele que se inicia a história da queda e termina a realidade da redenção]. Vemos o homem julgado, mas também justificado; vemos o contra-senso e também o senso da história; vemos a verdade despedaçar os grilhões que a retiam; além do “carnal” humano, vemos o violento advento da salvação. Mediante o colapso das mais altas expectativas e esperanças humanas — [e nesse colapso] — vemos a persistente fidelidade de Deus. É desta revelação, deste aparecimento, dessa manifestação [de Deus] que viemos, da qual tomamos conhecimento, e da qual procedemos. E dela que falamos e é para ela que queremos chamar a atenção, onde quer que existam olhos e ouvidos para ver e ouvir. Esta revelação da justiça de Deus é “testemunhada pela lei e pelos profetas”. Ela foi anunciada “há muito” (1, 2). Abraão viu o dia quando Deus julgará o mundo; também Moisés e os profetas; também Jó e os Salmistas. Temos ao redor de nós uma nuvem de testemunhas que estiveram todas elas sob a luz desse dia, pois o sentido de todos os tempos leras e épocas] está voltado diretamente a Deus, [e, portanto, ao grande dia do Senhor]. A justiça de Deus é o cumprimento de toda a profecia. E o sentido da religião, das esperanças, anseios, lutas e da perseverança dos homens; e este

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sentido será tanto mais certo quanto mais genuína for a expectativa, [mais confiante a esperança, mais humilde a luta e mais firme a perseverança]. A justiça de Deus é o fundamento, o conteúdo de todo ser, de toda existência, e isto se torna mais claro, mais perceptível, quando o homem entra cm julgamento perante Deus; [quando o ser humano percebe a sua atitude e posição] perante o “NÃO” divino. A justiça de Deus (por ele revelada) dá sentido à história, especialmente observável quando a história faz apreciação crítica dela mesma. [Quando a história relata e registra a sua escravização trágica à corrupção humana, justamente por serem atos da humanidade o seu assunto)]. A justiça divina é a redenção de toda criação e mui especialmente daquelas criaturas que, cientes da sua própria limitação, lançam o olhar para além de si mesmas [sonhando com os páramos celestiais do reino de Deus]. Onde houver a noção da revelação de Deus — (e onde não existe essa noção?) — aí haverá sempre testemunho, referência ao Deus desconhecido, ainda que essa noção se oculte ou se revista com práticas [de todo abomináveis, vindas de desvairada superstição] ditadas pelo mais perigoso respeito à ignorância (Atos 17, 22-23). Já não o disseram, também “alguns dos vossos poetas”? (Atos 17, 28). Onde há experiência, há também o testemunho de possível conhecimento, de entendimento. Não anunciamos novidades mas a verdade essencial [que existe] desde toda a antiguidade; o incorruptível do qual as coisas corruptíveis são [meras semelhanças]; quais parábolas. Agora, porém, trata-se daquilo que as parábolas falam; do que as testemunhas testificam; do que os olhos vêem, do que já está perante eles e os ouvidos ouvem; do que já se fala; do que verdadeiramente, se crê. Trata-se daquilo que, na Igreja de Deus, sempre foi crido por todos e em toda parte. A justiça de Deus declara-se “por sua fidelidade em Jesus Cristo”. Fidelidade de Deus é aquela perseverança divina por fora da qual surgem sempre de novo,[em toda parte e em todos os tempos,] em inúmeros pontos da história, as oportunidades do aparecimento de testemunhas da justiça divina. Jesus de Nazaré é, entre todos esses muitos pontos, aquele no qual todos os demais, no seu sentido conjunto, são reconhecidos como o “fio carmesim” da história. [A “tão grande nuvem de testemunhas que nos rodeia” entre os meandros intricados da história do mundo, falando-nos do sangue remissor]. Cristo é o conteúdo desse entendimento. [Ele é o caminho]. Ele é a própria justiça de Deus. Jesus Cristo e a fidelidade de Deus, dão testemunho, um do outro.

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A fidelidade de Deus se comprova quando, em Jesus, nos confrontamos com o Cristo. É por isso que podemos perceber a possibilidade de chegar a Deus nas múltiplas e esparsas manifestações da história, a despeito da nossa insuficiência. [Por isso, quer dizer, pela fidelidade de Deus que reconhecemos quando encontramos o Cristo, o Messias prometido, o Redentor, na pessoa de Jesus de Nazaré]. É por isso que podemos encontrar mais que mero acaso [mais que coincidência apenas] nos vestígios terrenos [e universais] da revelação de Deus: Encontramos a verdade para nosso consolo no tempo que é o nosso e no lugar onde estamos, como a verdade que foi revelada em outro tempo e em outro local — tempo e local de transparente luminosidade, e que veio a nosso encontro como a sublime realidade, como a suprema resposta de Deus, a eterna verdade [Cristo é a verdade]. Veio-nos a verdade de uma nova ordem. O dia de Jesus, como o Cristo, é o dia por excelência; o DIA de todos os dias. A luz revelada e vista em Jesus, como o Cristo, é a luz invisível de toda parte. O conhecimento de outrora da justiça de Deus, é agora a “esperança da Justiça” (Gal. 5, 5), para sempre e acima de tudo. Jesus, reconhecido como o Cristo, confirma, testifica e fortalece toda a perseverança humana. Ele é a comunicação de que não é o homem quem persevera, mas sim, Deus em sua fidelidade. — Que de fato encontramos o Cristo na pessoa de Jesus de Nazaré, confirma-se e se comprova por encontrarmos nele tudo aquilo a que se referem as profecias: tudo quanto apontam e quanto testificam todas as revelações da fidelidade de Deus: O poder oculto da lei e dos profetas, é o Cristo que vem até nós, na pessoa de Jesus. O sentido de toda religião é a redenção, a mudança dos tempos, a ressurreição, o Deus invisível que, em Jesus, nos constrange a parar em silêncio. O valor intrínseco de todos acontecimentos humanos está no perdão, sob cuja égide tais acontecimentos se encontram, conforme foi anunciado e materializado por Jesus. — Que o poder oculto da lei e dos profetas encerrado na pessoa de Jesus; que o sentido de toda a religião, conforme Jesus o consubstancia; e que o valor intrínseco dos acontecimentos humanos conforme resumido no perdão que Jesus anuncia e materializa, possam ser encontrados algures, sem ser em

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Jesus, sabemos que é impossível, e não é necessário que essa impossibilidade nos seja demonstrada, pois ela é ardente. E só cm Jesus [e por meio de Jesus] que se entende e se descobre que Deus pode ser encontrado em toda parte e que Deus veio ao encontro dos homens tanto antes, como depois de Cristo. É em Jesus que se encontra o padrão de referência pelo qual se determina, reconhece e entende o que significa achar a Deus ou ser por ele encontrado. É em Jesus que se compreende a possibilidade deste “achar” e “ser achado” como verdades de ordem eterna. [Ele é a vida]. Muitos há que peregrinam à luz da redenção, do perdão e da ressurreição. Que nós os vejamos seguir nessa trilha, que tenhamos olhos para ver, devemolo a um só! E em sua luz, que vemos a luz: [Ele é a luz do mundo]. Que é realmente o Cristo, que encontramos em Jesus, comprova-se nisto: Jesus é a última, a mais aguda, (a mais definida) expressão da fidelidade de Deus [conforme foi] testemunhada pela lei e pelos profetas. Ele é a PALAVRA que aclara todas as demais. A penetração [de Jesus, sua presença] e sua morada na ambigüidade humana e nas mais densas trevas são [expressão absoluta da] fidelidade de Deus. (E apesar dessa penetração, a sua vida é de integral obediência ao Deus fiel). Ele se põe como pecador perante os pecadores; submete-se inteiramente ao juízo a que o mundo está sujeito. Ele se situa lá onde só Deus pode estar presente: na indagação que se faça a respeito de sua existência. Toma a forma de servo. Na morte, vai até a cruz. No apogeu, no píncaro de sua trajetória terrena é ele uma grandeza puramente negativa; de forma nenhuma é genial; de maneira nenhuma é portador de forças psíquicas, quer manifestas, quer ocultas. Não é nem herói, nem líder, nem poeta, nem pensador, e nesta absoluta negação (meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?) ele apresenta o impossível “mais”. Ele sacrifica a outro, invisível, todas as qualidades e possibilidades humanas que sejam imagináveis: genialidade, forças psíquicas, heroísmo, estética, filosofia. [Tudo quanto o engenho, a arte e o poder humano possam criar ou imaginar de notório, belo, grandioso]. É exatamente por isto, [por esta renúncia], que se cumprem nele as mais altas possibilidades do desenvolvimento humano, conforme a seu respeito está escrito na Lei e nos Profetas.

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É por isto que Deus o exaltou; nisto reconhece-se nele o Cristo; ele se torna a luz das coisas derradeiras, que brilha sobre todos e sobre tudo. Nele — [em Jesus, o Cristo], vemos a fidelidade de Deus, até nas profundezas do inferno. O Messias é o fim do homem, e é justamente aí que Deus é fiel. O novo dia da justiça de Deus, raiará com o dia da supressão do homem, “para todos os que crêem”. Este é o frutífero “porém”: a visão do “novo dia” é e permanece indireta; a revelação em Jesus Cristo é um fato paradoxal, por mais geral que seja a validade do seu conteúdo. Que as promessas da fidelidade de Deus se realizam em Cristo; que Jesus é o Cristo a quem se referem todas as profecias e que, justamente por isso, Jesus é o Cristo, pois nele aparece [nele se revela] a fidelidade de Deus em sua forma a mais recôndita, a mais secreta — tudo isso não é, e jamais será, evidente. Não se trata de um fato psicológico, histórico, cósmico ou natural, nem mesmo no seu mais absoluto superlativo. Trata-se de uma verdade, de uma realidade, que não é perceptível diretamente, nem pelo desvendamento do desconhecido, nem imergindo em oração, nem pelo desenvolvimento de ocultas forças espirituais; com semelhantes processos, esta realidade torna-se ainda menos acessível. Ela não pode ser transferida [de uma pessoa a outra], aprendida ou alcançada pelo trabalho. Não fora assim, ela já não teria validade universal; não seria a justiça de Deus para o mundo, nem a salvação para todos. [Esta realidade é perceptível pela fé, e somente pela fé]. [Ter fé e crer]; fé é a própria fidelidade de Deus, ainda e sempre reiteradamente escondida por traz e por sobre todas as afirmações, intenções e conquistas humanas perante Deus. Por isso a fé jamais é integral, completa, pronta; nunca é dada, assegurada, garantida. Do ponto de vista psicológico a fé é um salto no incerto, no escuro, no espaço vazio. Não é a carne nem o sangue quem nô-la revela. (Mat. 16, 17). Nenhuma pessoa pode dizê-lo a outra pessoa, nem a si mesma, O que ouvi ontem, preciso ouvir de novo hoje, e terei que ouvi-lo novamente amanhã. O revelador é sempre o Pai de Jesus que está no céu. Somente ele! [A fé vem pela pregação (ou pelo ouvir) (Rom. 10, 17) e tem sua origem, inspiração e sustentáculo em Jesus Cristo que é o autor e consumador da fé (Heb. 12, 2). Todavia, CRISTO nos é revelado única e exclusivamente por Deus Pai, que nô-lo enviou (João 3, 16). Cristo só é “apropriado” pelos homens, mediante fé, pois ele é a personificação da fidelidade de Deus e como tal, não é perceptível por deduções, demonstrações, filosofia, dialética, ou qualquer outro recurso humano, nem

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mesmo árvore genealógica. Não é a carne e o sangue, que nô-lo revelam, antes, é ele conhecido e reconhecível, nos termos do evangelho de João: “No princípio era o verbo... todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez... e o verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade e vimos a sua glória, glória como a do unigênito do Pai”!] A revelação de Deus, em Jesus, por ser a revelação da justiça de Deus, é também o obscurecimento e o desfiguramento mais completo de Deus. Em Jesus, Deus torna-se verdadeiramente um mistério; ele se apresenta como o desconhecido; fala como o que silencia eternamente. Em Jesus, Deus afasta de si toda a intimidade importuna, toda religiosa falta de compostura. Conforme revelado em Jesus, Deus é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos. Em Jesus, a revelação de Deus se inicia com uma repulsa; com o rasgar de hiante abismo; com a consciente apresentação do maior dos escândalos. “Retire-se a possibilidade de escândalo, conforme se o fez na cristandade. e o cristianismo passa a ser uma mensagem direta e fica abolido, abrogado; então o cristianismo fica transformado em algo superficial, leve, que nem fere fundo demais, nem cura; a descoberta de mera e inverídica comiseração humana que se esquece da infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem” (Kierkegaard). A fé em Jesus é a expressão do mais radical “porém”, assim como o seu conteúdo (a “justiça de Deus”) é um radical “apesar de”. Ter fé em Jesus é chegar ao absurdo de encontrar amor e compreender esse amor num Deus totalmente desapiedado; é fazer a vontade sempre contundente e irascível de Deus; é chamar Deus, por Deus, em sua total obscuridade, em seu absoluto retraimento. Crer em Cristo é a ousadia das ousadias: é o maior de todos os riscos. Este “apesar de”, este [absurdo] inaudito, este risco, é o caminho que apontamos. Exigimos fé: nada mais, nada menos. Exigimos fé, não em nosso nome, mas em nome de Jesus em quem, também nós, sentimos a inescapável exigência de crer. Não exigimos fé em nossa fé pois sabemos que aquilo que existir de nosso, em nossa fé, é indigno de fé. Não buscamos nossa fé, não a firmamos, tirando-a ou a baseando em outras pessoas, em terceiros, pois naquilo que outros crerem, fazem-no como nós, com seu próprio risco e fiados na promessa.

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Pugnamos pela fé em Jesus, que demandamos de todos, aqui e agora, na posição (na situação) em que cada um se achar [neste momento], na vida. Não há exigência humana, qualquer que seja, (pedagógica, intelectual, econômica, psicológica, ou outra qualquer) que precise ser preenchida para que o homem receba o dom da fé. Não há um “corredor de acesso” ou um “caminho da salvação” ou uma escada de degraus, que nos conduza à fé que encontraríamos depois de percorrido o acesso [ou seguido o caminho]. E a fé que vem na frente. Ela é a primeira: é o fundamento. A fé pode ser exercida, praticada, por todos, sejam judeus ou gregos, crianças ou anciãos, cultos ou incultos, homens simples ou complexos; ela pode ser praticada na tormenta e na calmaria, em qualquer situação que o homem esteja ou imagine que possa estar. A demanda da fé pervade e atravessa todas as diferenças [e nuanças] da religião e da moral, da vida que experimentamos e das experiências que vivemos, da nossa posição social e da posição da sociedade. A fé é igualmente leve e pesada para todos. A fé é sempre a mesma objeção, a mesma novidade inaudita, a mesma ousadia. A fé significa perturbação igual e promessa idêntica, a todos. A fé é, para todos, o mesmo salto no vazio. A fé é possível para todos, porque, para todos, é igualmente impossível. Vs. 22-24 Porque não há distinção, pois todos pecaram e carentes estão da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus. — “Observe: esta é a peça principal, e o ponto central, desta epístola e de toda a escritura” (Lutero). [Este é o ponto chave da diferença entre o cristianismo praticado pelas igrejas “evangélicas” e pelas igrejas do ramo “católico” — Romana, ortodoxa, brasileira livre, tradicionalista, etc. Para os evangélicos, apud Paulo e Jesus, e com rodo o Novo Testamento— e ainda na conformidade das promessas do Antigo Testamento, de graça somos salvos mediante a fé; a fé sem obras é morta mas, existindo a fé (em Cristo) há salvação. (Ver Hab. 2, 4; Gen. 15, 6; João 1, 12; 3, 16; 3, 36; 6, 47; Apoc. 22, 17, etc.). Para os “católicos”, são instrumentos de salvação, os votos, as intercessões, as obras piedosas, os óbulos, a missa os sacramentos, notadamente os da

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confissão e da extrema unção, o batismo e a incorporação à própria igreja, segundo o aforismo “Fora da Santa Igreja Católica não há salvação”...]. “Não há distinção”. A realidade da justiça é declarada, atestada, confirmada, pela sua universalidade. Não é por mero acaso que justamente Paulo. tendo recebido de Jesus o ânimo de confiar na graça, somente, também tenha visto em Jesus a eliminação de toda e qualquer diferença entre os homens [perante Deus]. Paulo tem [em Jesus], o ânimo [de confiar na graça] porque, [entre os homens], ele vê [a eliminação das diferenças]. Ele é o profeta do Reino de Deus, porque é o Apóstolo dos gentios; e nisto ele difere do que mais tarde, quando essa correlação [entre profecia e apostolado] se torna confusa, passa a ser designado por missão. [Parece-me que o Autor quer dar ênfase ao fato de que Paulo considera os gentios seus iguais; não há nem judeu nem grego; todos estão destituídos da glória de Deus, cuja posse Paulo lhes prega e anuncia no Evangelho “que é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crer”. Todavia, ainda segundo o Autor, essa qualidade de nivelamento entre crentes e não crentes; cristãos e bárbaros; (judeus e gregos), foi transformada (por missionários e pregadores), em privilégio de “agraciados” pela salvação, que então, generosa e condescendentemente, levam a mensagem aos menos afortunados através de movimentos missionários de catequese e de proselitismo, movimentos esses que, não raro, e não para poucos, são apresentados de cima para baixo, e não com temor e tremor e também com ousadia, em Cristo, na qualidade de proclamação feita por um servo a seus conservos, um e outros, carentes da mesma graça. Para o verdadeiro “missionário” a mensagem não é dele pregador, mas de Deus, de Cristo]. A missão de Paulo não cria diferenciação, antes, destrói as diferenças que acaso existam. Somente quando as pessoas nos mais variados níveis de vida se considerarem igualadas no mesmo degrau; somente quando, mesmo os que “habitarem nos páramos mais elevados [segundo o critério do Mundo], não pretenderem senão “como expressão mais alta do vigor da força humana ajudar a levar as cargas dos seus contemporâneos” (S. Preiswerk); somente quando estes [“privilegiados”] não cogitarem de suas “riquezas espirituais”, (nem mesmo como riquezas a distribuir e repartir!) porém se tornarem (verdadeiramente, genuinamente) irmãos pobres dos pobres (sem reterem em suas mentes e em seus corações a lembrança de que se despojaram de seus dons, de seus privilégios, de seus próprios bens materiais, sociais, intelectuais, morais, espirituais, ou de

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outros quaisquer), somente então será Deus reconhecido na [“missão”]. (O verdadeiro missionário não pode ser farisáico, inda que ore). Somente na mais profunda e na real irmanação se torna verdadeira a supressora e suportante graça de Deus. [Que suprime privilégios e suporta a todos]. É na invulgar ligação (entre o homem e seus semelhantes) que se reconhece a separação invulgar e salutar (existente entre Deus e os homens) e que revela a justiça de Deus. [Porque Deus não e igual aos homens, antes é infinita a distância que medeia entre “os céus” e a “terra”; por isso desaparece a separação infinitamente pequenina, desprezível, que possa. aparentemente, existir entre os homens]. É necessário que o paradoxo absoluto [da revelação de Deus] seja sentido; que o abismo existente entre Deus e o homem seja totalmente aberto; que o “escândalo” seja evidente; que o cristianismo seja exposto exatamente qual ele o é: como “um problema fundamental, de natureza misteriosa, que põe em dúvida [a legitimidade, a honestidade. o mérito real de] todos os latos da história”. (Overbeck). Todavia, não haverá (ou não haveria) alguma forma de contornar o paradoxo? Será que seres [pessoas]. de alguma forma privilegiados por Deus [povo eleito, predestinados, missionários, mestres, pregadores.. membros e correligionários desta ou daquela religião ou seita] não poderiam considerar como justa, como válida, como real, a idéia (ou aparente ilusão) de que os dons que receberam, [ou as qualidades que possuem] poderão influir ou contribuir para a sua salvação? Ou que a salvação possa resultar desses dons, quiçá por alguma prática puramente religiosa, [ioga, jejum, penitência, oração] alguma experiência pessoal, na vida, [algum testemunho], algo imaterial, ou então, pela elevação moral, ou pelos dotes intelectuais, por exemplo? É preciso que se diga e repita sempre: “NÃO HÁ DIFERENÇA”! Fé, e somente fé, é a exigência imposta a todos. A fé é o caminho que todos podem seguir — (contudo não podem...) É preciso que toda a carne se cale ante o Deus invisível, para que toda carne possa ver a salvação de Deus. “Todos pecaram, e estão destituídos da glória de Deus” É sob esta verdade que desaparece toda e qualquer diferença: esta correlação, este relacionamento entre as criaturas, “esta ligação invulgar” [entre os homens que esquecem as diferenças que, no mundo, os separariam, e separam

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de fato], é garantida, e induzida, e efetivada pela “separação também invulgar” [que existe de fato entre os homens e Deus, pois todos pecaram.] Não se trata de alguma ação positiva do ponto de vista humano, pela qual nossa solidariedade se estabeleça de um para outro em reação mútua, pois qualquer que seja a ação de iniciativa humana — ação positiva, nela existem sempre os germens da separação social; [isto se verifica em qualquer atividade ou posição, seja situação religiosa, consciência ética, humanitarismo, etc.]. O que há, ou o que possa ser considerado de positivo, nestas coisas positivas, é a diferenciação [de grandezas, qualidades ou valores] que de per si fundamenta as diferenças humanas e está na origem delas. [É por isso que] a comunhão real entre os homens se realiza no negativo, naquilo que lhes falta (e não naquilo que alguns acaso tenham (ou pensem ter) a mais para dar ou repartir, ou ensinar]. Reconhecemo-nos como irmãos ao reconhecermos que somos pecadores. Nossa solidariedade [com nossos semelhantes] somente pisará terreno firme quando com eles (ou sem eles, pois não devemos esperar pelos outros) percebermos a nossa radical incerteza, a despeito de tudo quanto acaso tenhamos ou sejamos. “Estão destituídos da glória de Deus”. A glória de Deus é a evidência de Deus. (GLORIA DIVINITAS CONSPICUA) (Bengel). Esta evidência [esta conspicuidade] nos falta, e é isto que nos iguala. É por isso que os que estão em evidência precisam descer [eclipsar-se]; são bemaventurados os que já estão muito embaixo pois onde não houver a evidência de Deus, aí tem lugar a fé. (“Não ver, mas crer”.) [João 20, 29 — seg. parte]. Então tem sentido o perdão, a única salvação com que se pode contar. O reconhecimento da destituição da glória de Deus nada tem a ver com pessimismo, com contrição e lamentação; nem com a “pesada depressão” do “pregador da morte” — (Nietzche), ou então com a autoflagelação oriental em contraposição ao júbilo [à festa, à bacanal ou ao regozijo] grego. A destituição da glória de Deus poderia ser comparada com o entusiasmo Dionisiano, se este não fosse coisa tão completamente diversa. [A destituição da glória de Deus e o “NÃO” divino, e o seu “NÃO” é negação tanto para a mais alta rejeição da vida como para a sua mais cabal aceitação. É um “NÃO” que submete judeus e gregos a um mesmo julgamento. Este “NÃO”, traz ao nosso conhecimento a nossa mais extrema rejeição; (a nossa destituição do “NÃO” e do “SIM” divinos). Todavia, é também nesta negação que se revela a verdadeira humanidade; aquela qualidade original do ser humano de além [queda]. É nesta carac-

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terística pura do ser humano, que o homem é posto nas mãos misericordiosas de Deus. “Sendo justificados gratuitamente pela sua graça”. Que estamos na presença de Deus nos é comprovado quando nada mais podemos ouvir além da palavra do JUIZ com a qual ele confirma a si mesmo (Heb. 1, 3) e com a qual ele sustenta todas as coisas; quando o nosso ouvir nada mais pode ser que fé em Deus; fé que ele é, porque é. Enquanto existirem outras razões, outros motivos [outras vozes e outras palavras] que não a fé, então não estamos [verdadeiramente] perante Deus. É justamente por isso que temos que voltar até às origens, para antes [do tempo quando começaram a surgir as nossas] diferenças humanas. Deus “declara”. Ele declara sua justiça como sendo a verdade [que de fato é] por trás e por sobre toda a justiça e injustiça humanas. Ele declara que nos aceita e que lhe pertencemos. Ele declara que nós, seus inimigos, somos seus filhos amados. [As diferenças entre os homens são irrelevantes para Deus: — “Se nos separam coisas humanas, Tu nos irmanas em tua cruz”. (J. C. Mota) e ficam para trás ou, no dizer do Autor conforme registrado pela tradução inglesa, “é como se tais diferenças nunca houvessem existido”, pois Deus declara que a sua justiça é a verdade, aquém e além da justiça e da injustiça humanas]. Deus declara a sua deliberação de exigir a sua justiça mediante a completa renovação dos céus e da terra. Esta declaração é forense: sem causa e sem sentido [aparentes]; é uma declaração fundamentada exclusivamente em Deus mesmo; ela é CREATIO EX NIHILO. [É uma afirmação que em nada se estriba e que não é nem justificada nem compreensível, pois foi originada exclusivamente pela vontade do Criador]. É criação do nada, todavia é criação. É a criação de uma justiça verdadeiramente divina em nós, neste mundo, pois quando Deus fala, acontece! Esta criação é uma criação nova: (“Um novo céu e uma nova terra”). Não é apenas um rebento novo da velha evolução criativa na qual estamos e permaneceremos até o fim de nossos dias, [e que existirá até o fim do mundo]. Não se trata de novo derrame ou de desdobramento da antiga criação.

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Entre esta criação nova e a antiga, está o término de nossos dias, o fim desta humanidade e desta terra. Este “algo” novo, [criado do nada por Deus], pertence a outra ordem; uma ordem nova que não é a das coisas que conhecemos, pois não sai delas mas é (e foi) criada por Deus. Esta criação nova [um novo céu e uma nova terra] não se alinha [nem se compara] com a criação [o céu e a terra] que conhecemos e se comparássemos esta criação nova com a existente, a nova nada seria pois a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus; [para o advento do Reino de Deus] é preciso que o mortal se revista da imortalidade e o corruptível da incorruptibilidade. O revestimento de que tratamos acima é obra divina e não de homens; por isso o mortal e o corruptível estão e permanecem no aguardo dessa mudança radical de suas propriedades que virá na transformação divinal que se processará no dia da ressurreição dos mortos. (1 Cor. 15, 50-57). “Esperamos por um novo céu e uma nova terra”. É por isso que a justiça de Deus, em nós e no mundo, não é justiça humana nem entra em concorrência com esta justiça, pois “a vossa vida está oculta com Cristo, em Deus” (Col. 3, 3). Se não estiver oculta não é vida! O Reino de Deus ainda não despontou na terra nem mesmo uma mínima parcela dele. Anunciado, sim! Mas não “chegado” nem mesmo do modo o mais sublime; porém, “vindo próximo”. O Reino de Deus precisa ser aceito pela fé, conforme revelado por Jesus. Anunciado e próximo, [o Reino de Deus] é a nova terra e não a extensão [o prolongamento] da velha. A “nossa” justiça somente pode ser real e permanente na medida que for a justiça de Deus. Nova terra é e permanece sendo somente a eterna, em cujo reflexo agora e aqui estamos. [Pelo contexto geral, concluo que o Autor quer dizer que a nossa justiça só pode ser genuína, duradoura, válida, se abrirmos mão dela para nos entregarmos inteiramente a Deus; isto é, se de nossa parte não nos arvorarmos a fazer justiça e a julgar mas, sem qualquer pretensão, preconceito ou pré-julgamento, nos apresentarmos quais somos perante Deus, o Deus desconhecido do qual nos acercamos somente quando o fazemos em nome de Jesus, pois de outra forma seria (ou será) sacrílega a nossa pretensão; será néscia e, se tentarmos fazê-la, teremos que reconhecer semelhantemente a Jó, que falávamos do que não entendíamos, abominando-nos então a nós mesmos, e arrependendonos da nossa estultícia no pó e na cinza. (Jó, 42, 3 e 6). Esta justiça de Deus só e perceptível pela fé, pois ela pertence ao Reino de Deus, que está próximo mas ainda não é!].

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Jesus

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Verdadeira é a misericórdia de Deus para conosco, qual milagre (vindo “verticalmente de cima”); todavia, o aspecto histórico, [e até mesmo a sua manifestação chamada] espiritual [sendo perceptível, visível,] é sempre falaz. Estamos realmente, verdadeiramente, perante Deus quando aguardamos a realização de suas palavras, mediante a fé; quando e enquanto percebemos a verdade de que a nossa justificação perante ele [e por ele] é graciosa; que é uma “dádiva de sua misericórdia”; [que somos justificados por Deus] somente pela graça. Graça é a boa e livre vontade de Deus em aceitar-nos, e a necessidade [a razão] de assim agir procede somente dele, conforme promete aos que de coração limpo anseiam por sua glória: eles me verão face a face! A verdade mantida em cativeiro rompe os seus grilhões e é por ela que a fidelidade de Deus se mantém firme para conosco sem que de nossa parte demos o mínimo motivo para tanto. Isto se dá, somente porque Deus é Deus. A misericórdia divina não é uma força psíquica no homem, nem uma força física na natureza, nem uma força cósmica no mundo: ela é e permanece sendo o Poder de Deus (1, 16), a proclamação do Homem novo, da nova natureza, da nova terra, do Reino de Deus. Deste lado, [do nosso, daquele em que estamos] a misericórdia [divina]é e permanece sendo uma grandeza negativa, invisível, oculta, e age como a proclamação do desaparecimento deste mundo, como o fim de todas as coisas; [tem uma ação] desalentadora, inquietante, solapadora de tudo o que aqui existe. Porém, naquele grande Dia entre todos os dias, pela palavra do Deus Criador [a misericórdia de Deus] será retumbante SIM! Será consolo, [serenidade], edificação, e salvação. Pela destruição do homem exterior, o homem interior se renova, dia a dia. Isto se deve crer pela palavra do Deus Criador, com os olhos voltados para o dia do cumprimento, anunciado por Jesus. [A palavra do Deus, Criador, é a palavra da redenção; a palavra que cria o novo homem, a nova terra, a nova ordem de coisas. A palavra que “tudo faz novo”. A palavra que é a negação das coisas presentes e atuais, que termina e extermina o presente século — é a grande afirmação da restauração do homem perante Deus]. Esta palavra do Deus — Criador, foi enunciada pela redenção que há em Cristo Jesus. O que há em Cristo Jesus? Há [o que escandaliza]; o que gera [espanto] e horror. Há, para a história a supressão da própria história. Há um rompimento na interrelação das coisas que conhecemos; há no tempo uma parada do tempo;

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Jesus

“Santificado seja o teu nome! Venha o teu reino! Tua vontade seja feita na terra. como no céu!” O Filho do Homem, anuncia a morte do homem; proclama a Deus como o primeiro e o último. E o eco responde como inambígua testemunha daquilo que é proclamado: “Ele fala com Poder” [“Nunca homem algum falou como este Homem”]...“Está fora de si”; “Desencaminha o povo”; “É companheiro de publicanos e pecadores”... [Em Cristo Jesus há o horror da confrontação pessoal do homem com Deus. Há o escândalo da anulação de todas as vantagens humanas tão engenhosamente arquitetadas e tão duramente defendidas até que alcançássemos o escalão dos homens justos e retos; há o escândalo da nivelação rasa de todos os homens (nem há, ao menos, inversão de valores para que alguns, ainda que fossem os outros, pudessem galgar posições perante Deus e os homens); o que há é tábua rasa: todos pecaram! Há também redenção, restauração, salvação. Há dia novo e novo nome. Há nova luz, não consumível, eterna e divina. Em Jesus de Nazaré há o homem; o filho do homem, que traz espanto e horror; que revoluciona os costumes, desencaminha o povo, faz amizade e concede honra a gente desprezível: “Louco”! É assim que o vêem os homens “de bem”, justos aos seus próprios olhos; os homens instruídos na lei, que a anunciam e que nela se gloriam; os “sábios” e favorecidos que interpretam os oráculos divinos que um dia foram confiados a seus ancestrais, (e que não percebem que o canal secou; que nele já não flui a água da vida). Para todos esses, o Jesus de Nazaré é loucura, escárnio e escândalo. Mas nesse Jesus há também o Cristo! O unigênito de Deus; o cordeiro pascoal que tira o pecado do mundo. Há o ungido do Pai Celeste. E para aqueles que o vêem com temor e tremor, que o aceitam pela fé, com coração contrito e humilhado, a despeito do escândalo, a despeito da imposição do “NÃO”, para esses, “Nunca homem algum falou assim como este homem”; para esses ele “é o Cristo, o filho do Deus vivo!] Jesus de Nazaré é uma possibilidade entre outras, mas é uma possibilidade que traz em si todos os sintomas do impossível. Este é o Cristo, segundo a carne: uma história dentro da história; um fato material dentro do mundo da matéria; uma expressão transitória dentro da temporalidade; uma vida humana, dentro da espécie humana. Mas é uma história cheia de significado [transcendental]; é “matéria” que revela o princípio e o fim; é vida transitória plena de revelações da eternidade; é vida humana em que Deus fala exuberantemente. Na mundanalidade desse fragmento de mundo destaca-se [desprendese] (para olhos que vejam e ouvidos que ouçam!) algo deste mundo, que lhe dá

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novo esplendor, que resplende nas trevas da noite: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!” É o próprio Deus que quer atrair o mundo a si; que quer criar um novo céu e uma nova terra. Agora vemos a figura monstruosa deste nosso mundo: estátua forjada em ouro e prata, bronze, ferro e argila, mui luzente, alta e forte; de aspecto terrificante. Porém, na vida oculta de Jesus podemos divisar a pedra que se desprende e que rolará para despedaçar os pés de barro e pulverizar a estátua sem interferência de mão humana e o vento espalhará a poeira como a moinha, na eira. “Mas a pedra que feriu a estátua transformou-se em grande montanha que encheu a terra”. (Dan. 2, 24-35). Satanás caiu dos céus como relâmpago; seu reino terminou. O reino de Deus vem, tão certo quanto seus prenúncios já aí estão: “Os cegos vêem; os cochos andam; os leprosos são limpos; os surdos ouvem; os mortos ressuscitam; aos pobres anuncia-se-lhes o evangelho”! “Bem-aventurado aquele que não se escandalizar em mim”. [Bem-aventurado] aquele que através da mundanalidade deste fragmento de mundo, através da “vida de Jesus”, vislumbra a redenção que vem, e ouve a voz criadora de Deus, [bem-aventurado] quem, a partir de então, não espera senão por esta redenção e por esta voz. (Mat. 11, 1-4 (e 5-6)]. Bem-aventurado aquele que crê nisto que só pela fé pode ser apropriado; pela fé que há em Cristo Jesus. Vs. 25 e 26 A este destinou Deus por cobertura de reconciliação, pela sua fidelidade em seu sangue, para prova de sua Justiça no perdão dos pecados cometidos anteriormente, no tempo de sua contenção, e para prova de sua justiça no presente momento: para que seja ele, o justo, e quem declara justo a quem se apoiar na fidelidade que se comprova em Jesus. A tradução de Almeida escreve assim os Vs. 25 e 26:... “a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação de sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus”. A maneira de traduzir do Autor parece deixar mais clara a idéia de que Deus destinou a Jesus para, por meio da fidelidade deste, levada ao ponto de derramamento de seu próprio sangue, provar que foi justo ao perdoar os peca-

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3, 24-25 (e 26)

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dos cometidos no passado, antes da dispensação da graça, como para provar também a sua retidão (a sua justiça) agora, depois da propiciação feita por Jesus, agindo Deus com igual justiça (perdoando os pecados dos que esperaram, pela fé, e também os dos que aceitam pela fé) neste um só e mesmo fato: a reconciliação dos homens com Deus, em Jesus, o Cristo. As várias traduções da Bíblia que têm sido citadas mais atrás parecem oscilar entre as duas formas de dizer: (a do Autor e a de Almeida). Todavia pendem mais para esta. Talvez a tradução que conserva uma exposição de aparência mais coerente seja a versão sinodal francesa, que diz: Vs. 24... “São justificados gratuitamente, por sua graça por intermédio da redenção realizada em Jesus — Cristo”. Vs. 25 e 26 “Ao qual Deus estabeleceu por vítima expiatória, pela fé em seu sangue. Assim, Deus manifestou a sua justiça porque ele havia deixado impunes os pecados cometidos antigamente, durante o tempo de sua paciência. Ele manifestou, digo eu, a sua justiça no tempo presente, fazendo ver que ele é justo, e que justifica aquele que crê em Jesus”. Há ainda um outro ponto a que o Autor chama a atenção, logo a seguir, referente à “propiciação”. Ele diz que Deus destinou a Jesus como “cobertura de reconciliação”. Conforme vemos na transcrição da tradução de Almeida, este diz simplesmente por propiciação”. O Autor justifica a forma dele baseado na palavra “Kapporeth”. Esta figura tem papel relevante no culto do Antigo Testamento. Nesse ritual o “Kapporeth” designava o local da arca onde estavam depositadas as tábuas da lei; era uma abertura ladeada por duas figuras de querubins que simbolizavam a guarda do local e indicavam a sua posição com as faces voltadas para o lugar; todavia, velavam e escondiam-no também, estendendo sobre ele suas asas]. No culto do antigo testamento, a “reconciliação” e o “Kapporeth”, (na versão LXX o “Hilasterion”) a placa de ouro que duas figuras de anjo (querubins) sombreavam com suas asas e assim, concomitantemente, indicavam e escondiam a mensagem de Deus guardada na arca da Aliança. (Ex. 25. 17-21 [e 22]). Este é (no culto do Antigo Testamento) o local sobre o qual o próprio Deus habita (I Sam. 4, 4; II Sam. 6, 2; Sal. 80, 1 [e 2]); é o lugar de onde Deus fala com Moisés (Ex, 25, 22; Num. 7, 89); porém, acima de tudo, este é o lugar onde, no grande dia da reconciliação, se dá a reconciliação do povo com seu Deus mediante a aspersão de sangue (Lev. 16, 14-15). Por se tratar de lugar com conotação imaterial e não mais um local restrito físico-topográfico, é que ele é sobremaneira comparável a Jesus.

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Jesus

3, 25

Jesus, desde a eternidade, foi destinado pela deliberação de Deus, como o lugar sobre o qual Deus habita; de onde ele fala; o lugar da expiação [e da reconciliação]; e agora, no cumprimento dos tempos, [este local-Jesus] foi fixado, instalado, na história e perante os homens. [A título de curiosidade e, quiçá, para melhor acompanhar a analogia que o Autor faz entre o “Propiciatório” da arca e Jesus Cristo, que é a revelação da graça de Deus, é de notar que: A REVISED STANDARD VERSION (RSV) diz “Mercy Seat”, e anota ao pé da página a opção “cover”. A tradução de Lutero antecede a RSV dizendo “Gnadenstuhl”. A Versão Sinodal Francesa (VSF) é semelhante à de Almeida (que é a forma usada pelas traduções católicas, em geral), dizendo “Propitiatoire”. Ora, parece-me quer seja a lâmina de ouro que cobria o tabernáculo, o “propiciatório”, ou a cobertura da reconciliação, é fora de dúvida, pelo ensino bíblico, que Cristo, em si, reconcilia o homem com Deus e que com sua morte, ele propicia essa graça, mediante a fé]. A vida de Jesus é o lugar qualificado por Deus para a reconciliação; é o lugar da história que foi, por assim dizer, minado, municiado por Deus, para a reconciliação. [Segundo os tradutores ingleses, é o lugar estuante em eternidade]. [E o lugar onde a reconciliação está fervilhante, pronta a brotar, a explodir]. “Deus estava agindo, em Cristo, para reconciliar consigo o mundo” (II Cor. 5, 19). Neste lugar, [a vida de Jesus], o Reino de Deus está tão próximo, tão junto, que o seu advento, sua força redentora e sua significação, são notadas justamente aqui; está tão próximo que seria impossível não reconhecer a presença de Deus entre os homens, [Cristo é Emanuel, que quer dizer Deus conosco]. Seria impossível que não ouvíssemos a voz de Deus; [Cristo é o verbo, que se fez carne]. Seria impossível que os homens não percebessem a vontade de Deus chamando-os de volta para o lar, para a paz: [“Vinde a mim, e achareis descanso para as vossas almas” e “a minha paz vos deixo, a minha paz vos dou”.] Sim, tão perto chegou o Reino de Deus dos homens que, nesse lugar, a fé se impõe como imperiosa necessidade. Todavia, assim como na “cobertura” do tabernáculo as testemunhas de Deus eram indicadas pela orientação das faces dos anjos e simultaneamente escondidas pelas suas asas, também a reconciliação com Deus, em Cristo, a aurora do dia da redenção, está anunciada e oculta nele. (3, 24). Está anunciada porque é fato evidente e não pode ser ignorada. A realidade de que Jesus é o Cristo se impõe poderosamente. Todavia, aqui está o mais agudo paradoxo: essa realidade somente pode ser absorvida, assimilada,

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3, 25-26

Jesus

apropriada pelos homens, mediante a fé! [É nesta característica que se esconde a realidade da reconciliação]. [Na antiga dispensação] a reconciliação do povo tem lugar mediante a aspersão de sangue, em solene advertência de que Deus vivifica [ao pecador], pela morte. Também em Jesus, a reconciliação ocorre somente mediante a “fidelidade de Deus em seu sangue”. “Em seu sangue” quer dizer: no inferno que representou [e representa] a mais plena solidariedade com todo o pecado; [ele tomou sobre si o nosso pecado]; toda a fraqueza e todos os ais da carne; [levou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores]; no sofrimento secreto de todas as privações; no obscurecimento e na extinção de todas as luzes que mitigam a dureza da existência humana (herói, profeta, poderoso em obras e feitos) — grandezas e bênçãos que iluminam a vida dos homens e que também luziram para ele enquanto foi homem entre os homens; e no fim, no absoluto escândalo da morte vergonhosa na cruz. [É nesta forma] em seu sangue, que Jesus comprova ser o Cristo; comprova ser a primeira e a última expressão da fidelidade de Deus à espécie humana; comprova ser a revelação da “impossível possibilidade” da nossa salvação; ele comprova ser [a verdadeira luz do mundo] a luz não criada; ele comprova ser o arauto do “Reino de Deus”. “Sangue é a cor de fundo do quadro do Redentor” (Ph. Fr. Hiller), pois foi no caminho para a cruz, na dádiva de sua vida, na sua morte, que veio a luz pela vez primeira a radicalidade da redenção que ele traz ao nosso alcance, e a novidade da nova terra que ele anuncia. Traz a luz dizemos ou, talvez, devêssemos dizer que ele traz sombra, se não estivermos à altura dessa radicalidade, dessa nova terra e novo céu, do novo homem. “Porque este foi colocado tanto para a queda como para o levantamento de muitos em Israel e para um sinal de contradição — e uma espada atravessará tua alma para que se manifestem os pensamentos secretos de muitos corações”. (Luc. 2, 34-35). O segredo da reconciliação no sangue de Jesus, é e permanece sendo, um segredo de Deus; é a sua revelação, a visão do invisível, é sempre obra de Deus. Obra de sua fidelidade ou, (o que é o mesmo), obra da fé. Porém, enquanto se realiza essa obra divina, enquanto a fidelidade de Deus persiste, enquanto se põe nas conchas da balança a ousadia da fé, mostrase-nos o raiar do dia do novo mundo de Deus; a realidade da sua misericórdia e da nossa salvação. Mostram-se-nos as novas vestes com que nos revestiremos, e a habitação não feita por mãos, eterna, nos céus. (II Cor. 5, 1 e seguintes). Vestes e habitação prometidas, garantidas, seguras.

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Jesus

3, 25-26

Estamos pois, aqui, já sob o reflexo das coisas do porvir. Não sem perplexidade, mas também não desesperançados; feridos de Deus; contudo, durante a crise, sob o seu poder restaurador. “É por isso que temos que abrigar-nos sob as asas da galinha, não saindo a voar atrevidamente, confiados em nossa própria fé, pois certamente o gavião depressa nos devoraria”. (Lutero). “Para a prova de sua justiça.” Perdão dos pecados houve sempre e por toda a parte; também por toda parte e sempre foram usufruídas as riquezas da bondade divina, de sua paciência e da contenção da ira de Deus. (2, 4). Sempre e por toda parte os feridos por Deus foram, também, por ele curados. Todavia, foi através de Jesus que nossos olhos se abriram para que víssemos que assim é. Foi nele que a justiça de Deus tornou-se patente aos nossos olhos. É através de Jesus que ficamos em situação de ver a história (“os pecados de antigamente”) sob o ponto de vista divino, isto é, à luz de sua misericórdia que tudo suprime e dissolve. É através de Jesus que ficamos sabendo o que é essa misericórdia: o fim [do homem velho] e o novo começo de todas as coisas. [Para o gênero humano é a volta ao “status” de Adão, antes de pecar; é a volta ao Edén, a volta ao lar; porém, também como para o primeiro Adão, é o novo homem chamado a optar constantemente, que é a característica distintiva de sua imagem e semelhança com Deus]. Esta misericórdia quer levar-nos ao arrependimento: sabemo-lo! (2, 4; 6, 2 e seguintes). Somente através de Jesus pode-se compreender a justiça de Deus e é através dele que se vê claramente que essa justiça exerce o seu domínio e impõe a sua ordem sobre os homens e a história. Pela premissa que recebemos de Jesus já não vemos, por toda parte e sempre, somente o homem carnal, o pecado (com a lei, 3, 20), porém, além e acima, vemos o juiz que julga e absolve, porquanto ele encontra no secreto dos homens (2, 16) a motivação da fé. Ele é justo e é o justificador dos que ousam dar o salto [da fé], para o vazio. Se crermos em Jesus, então cremos na realidade e na universalidade da fidelidade de Deus. Se crermos em Jesus, manifesta-se para nós a “impossível possibilidade” da justiça de Deus e da nossa justificação por ele. É desta pressuposição que vemos a nós mesmos e nos aproximamos das pessoas. É por esta pressuposição que ousamos confiar (e crer) em nós e nos outros, enquanto que, sem ela, (sem a crença em Jesus), em ninguém podemos confiar ou crer; nem em nós mesmos.

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3, 27-28

Somente pela Fé

É porque cremos em Jesus, que temos a coragem de demandar a fé junto aos outros (3, 22); e demandamos justamente a fé nesse Jesus, em quem cremos. Porque Deus é justo e é quem justifica, temos paz com Deus! (5, 1).

SOMENTE PELA FÉ (3, 27-30) Vs. 27 e 28 — Onde pois a jactância? Foi excluída! — Por qual lei? Pelas obras? — Não, porém pela lei da fidelidade de Deus! Consideramos, pois que o homem é justificado pela fidelidade de Deus, independentemente das obras da Lei. [A nossa tradução de Almeida, diz “pela fé”, onde, Barth traduz “pela fidelidade de Deus”] “Onde pois a jactância? Foi excluída”! Em Jesus fala-nos a verdade de além da morte: Deus é justo e Deus justifica. Somente Deus. De novo, e sempre, somente existe retidão humana se vier da parte de Deus e isto é verdade na atitude crítica que tivermos com relação à lei, à religião, à experiência humana, na apreciação da história, no juízo que formularmos do mundo; em resumo, em nossa posição com respeito a todas as realidades [objetivas ou subjetivas] da vida. Tudo o que acontece ou existe originado pelo homem, (ou oriundo dele), é medido em Jesus, por Deus, que atribui mérito ou demérito a esses acontecimentos ou eventos, na conformidade de seu agrado. Tudo o que é, tudo o que existe, está sujeito a esse “desconforto”, [a essa condição de insegurança]; precisa ser colocado no prato da balança e precisa resistir à prova. Esta atitude crítica com relação ao mundo, significa a compreensão da situação profana e relativa do próprio mundo, o entendimento desta condição aplicada à humanidade, e a apreciação da história sob esse mesmo prisma. Dentro dessa atitude, porém, também há a compreensão do sentido da mundanalidade como parábola, qual testemunha (3, 21) ou memento do mundo totalmente diverso, do ser humano inteiramente diferente, de uma outra história em nada comparável com esta. Este memento. esta lembrança, é uma semelhança, é uma parábola, é testemunha e memória de Deus. Todavia, há uma coisa que essa atitude [assim inspirada pela retidão divina] veda, impossibilita; há uma coisa que é incompatível com essa posição: é a autoimportância, auto-suficiência ou o valor próprio; é a presunção que alguém possa ter, de se arvorar em grande e importante perante Deus, não se curvando à sua justiça e, portanto, sem esperar pela sua justificação. E pretender alguém exibir, de alguma forma, qualidades que sejam (ou pudessem ser) aceitáveis para Deus.

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3, 27

Isto essa posição crítica não admite e, partindo dela, não se pode entender, ou aceitar, que coisas, acontecimentos e até seres humanos possam receber ou pretender ter atribuições e méritos divinos ou divinais; que se confundam coisas temporais com a eternidade; que se alcandorem eventos materiais, irrompendo, emergindo neste mundo como partes do mundo celestial; (e o mundo no qual irrompem essas pretensões é o mundo ao qual pertencemos segundo a nossa esfera e ao qual pertencem todos os homens em todas as camadas da sociedade, desde as sociedades mais primitivas, atrasadas e incultas, até às do mais alto coturno). Esta visão crítica, vinda da retidão de Deus, não aceita a pretensão de quem quer que seja, de estar “além”, porquanto os que assim se situam nada mais são, (se forem alguma coisa), que uma porção apenas ligeiramente melhorada dos que estão “aquém”. O que essa visão crítica não considera válido são as ilegítimas imanências de toda espécie que pretendem tomar a posição de transcendentais e radicais. Essa visão crítica não compartilha do estabelecimento do relativismo entre os homens e Deus: divindades que, de alguma forma, surgem com características humanas no seu modo de ser e agir, e humanitarismos que se apresentam com características divinas! Toda essa gama de atitudes [que vai de um a outro extremo] precisa tirar a máscara e consentir na revelação de sua verdadeira natureza, pois quem não se situar nem sob o “NÃO” nem sob o “SIM” de Deus, quem não estiver no caminho que leva da reconciliação (pelo sangue” 3, 25) para a redenção, da cruz para a ressurreição, isto é, quem não tiver coração contrito e tomar o divino, o próprio, o eterno como sendo material, imaginário, passageiro, esse tal, precisa morrer em Cristo. Precisa morrer em Cristo o homem que escolhe para si o materialismo, lendas e fábulas ou a transitoriedade do mundo; o homem que se esquece que nada tem que não tivesse recebido e precisasse de receber novamente de Deus; o homem que quer safar-se do paradoxo da fé; o homem que já não quer, ou que ainda não quer, abrir mão de sua confiança na sabedoria, na ciência, nas coisas certas e palpáveis do mundo, e do conforto que este oferece, para depender exclusivamente da graça de Deus. Precisa morrer em Cristo o homem que tenha qualquer outro pretexto para se apoiar, que não seja “esperança” (4, 18; 5, 2; 15, 17). Não existe qualquer possibilidade de se fazerem valer perante Deus, grandezas humanas, como não podemos alegar a posse de grandezas divinas perante os homens. Não é possível projetar o eterno na temporalidade e vice-versa. Não é possível transferir grandezas justificadoras do homem, segundo a conjuntura humana, para a justiça divina, como não é possível transferir a justificação do homem por Deus, em benefício do homem na conjuntura do mundo.

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[Essa simbiose entre os homens e Deus, esse intercâmbio de valores e qualidades, essa troca de atributos, não existe; a simples hipótese da existência de tal possibilidade está definitivamente excluída]. Essa absoluta impossibilidade da justiça divina [ser satisfeita com a justiça humana]é que estabelece o impedimento peremptório dessa possibilidade aparentemente tão fácil, de alcançarem os homens, perante Deus, sua justificação a priori ou a posteriori. [(A priori, pelas obras piedosas, a posteriori, pelas orações e missas por intenção de pessoas falecidas e também “a priori” pela predisposição favorável de Deus e “a posteriori” pela resposta de Deus e “mudança” de seus desígnios)]. Essa impossibilidade não pode ser esquecida. É totalmente impossível valer-se o homem de qualquer coisa material [ou de seu engenho, sua arte, sua imaginação] que exista antes ou de que [seus sobreviventes] se socorram após o instante— (que não é um instante no tempo), em que soar a última trombeta, quando o homem, em sua nudez espiritual, estiver na presença de Deus e for revestido da justificação divina. Em Jesus, nada do que o ser humano seja, possua, ou faça, tem algum valor se não houver sido submetido, subordinado, ao “NÃO” divino, como também não tem valor o que não estiver aguardando o “SIM” divino, ainda pela esperança em Cristo. [Isto é, perde o valor tudo o que se apresentar (e quem se apresentar) na pressuposição de já estar aprovado por Deus e não precisar mais da purificação e da redenção que há em Cristo]. Nenhuma retidão humana que não tenha deixado de ser humana pela condenação e absolvição de Deus, representa qualquer fator real, tanto perante Deus quanto perante os homens. “Por que lei? Pela lei das obras? — Não; porém pela lei da fidelidade de Deus!” Em que se baseia esta negação [à lei das obras]? Por que se faz essa afirmação e por que é ela verdadeira? Como se explica essa eliminação [de qualquer mérito] da retidão humana? Como se explica o perecimento do homem, que ainda tem algo de que valer-se, ou que ainda procura por essa coisa, que o salvasse? Que “lei” é essa, ou que religião, piedade ou vivência conduzem a tal situação? Quem diz “religião”, “piedade”, “vivência” diz experiência, conhecimento, sentimento, ação do mundo, “obra” do ser humano. Existe alguma outra lei, além da “lei das obras”? O que conhecemos nós da ação e das obras de Deus? Aqui ameaça-nos o maior dos mal-entendidos: Corremos o risco de tomar determinadas impressões, atitudes [ou até ensinos bíblicos] como o suprasumo da sabedoria humana ou a expressão máxima da nossa inteligência. Por exemplo, o conhecimento das coisas que ocorrerão nos últimos tempos, a

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escatologia; ou então, o emudecimento perante o próprio Deus, como se (V. G.) as máximas de Angelus Silesius ∗ fossem tidas ou devessem ser lidas como receitas psicológicas! Ou que se tomasse como sendo o mais ousado impulso da piedade humana permanecer na contemplação, na visualização (ou imaginando) como seria sua própria experiência no instante derradeiro da vida, (o que aliás já não seria “um instante”, se o agente “permanecer” na contemplação...); ou ainda, para alguns, poderia a “sabedoria da morte” (Overbeck) ser tomada como a mais recente [e mais engrandecida expressão] da “sabedoria de viver”. Tomar semelhante atitude, [fixando pontos ou interpretações como sendo a mais alta expressão da inteligência humana] seria o triunfo, a vitória do farisaísmo; seria um neo-farisaísmo surgindo mais terrível do que o antigo, pois não só estaria a justificar-se em sua retidão, como seria atrevido! A retidão humana presta-se para tudo, até mesmo para a auto-supressão e o aniquilamento próprio. (Budismo, misticismo, pietismo). É preciso que nos precatemos desse “mal-entendido”, mais que de outro qualquer: — não poucos ficaram, por causa dele, de fora, quando já estavam frente às portas da justificação de Deus; foram “excluídos” no último momento. Porquanto a submissão ao “NÃO” de Deus, e a firme esperança pelo “SIM” divino, verdadeiramente, não são um golpe atrevido, titânico, fatal, do homem que anseia pela imanência e transcendência de Deus. [Penso que o Autor quer dizer que a submissão ao “NÃO” divino e a esperança ao “SIM” que há em Jesus (e que poderiam externar-se numa expressão de excelência perante Deus), quando adotadas por astúcia, expediente, ou com o fim de alcançar a justificação de Deus, não são o meio de alcançar essa justificação]. Sob a égide da “lei das obras” não cessa a jactância humana, nem se processa a justiça divina. Quem quiser gloriar-se e quiser ter, como ser humano, razão perante os homens e perante Deus, este gloriar-se-á até mesmo da mais profunda negação de si mesmo e na mais sofrida auto-renúncia; (se possível, jactar-se-á de sua insegurança e sua consternação); e será justificado e considerado reto, como homem (e somente como homem). É preciso que o alicerce da “lei das obras” se esfacele sob nossos pés. Nenhuma “obra” pode ser tomada em consideração: nem a mais sublime ou a mais espiritual; também não a que for negativa. *

Poeta alemão, nascido em lar Luterano e convertido ao Catolicismo nos seus últimos anos de vida; escreveu muitos hinos e as máximas ou provérbios místicos a que o Autor se refere. 165

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Nossa experiência é a que não é; nossa religião subsiste na sua supressão; nossa lei consiste na anulação, [na desvalorização, na “despotencialização”] de toda experiência, posse, ação e conhecimento humanos. Nada que seja mais do que vacuidade, carência, indicação, mera possibilidade, permanece [perante o “NÃO” divino]; [o que o ser humano tem ou é] não passa de cinza ou pó perante Deus, como todas as coisas deste mundo. A própria fé apenas subsiste como fé se ela for destituída de valor próprio, (até isenta do valor da negação de si mesma); persiste se ela for indene à pressuposição de “Poder”, (inclusive do poder de humildade). A fé permanece enquanto ela não pretender ser uma grandeza nem perante Deus nem perante os homens. Essa atitude humana é o alicerce, [é a rocha], a ordem, a luz, onde deixa de existir a “jactância” e onde e se inicia a verdadeira justificação de Deus. Todavia, não nos podemos estabelecer e firmar nessa rocha, nesse alicerce: [já seria uma forma de “obra” humana]. Não podemos seguir essa ordem [não nos podemos guiar nessa luz] nem podemos respirar esse ar. O que se chama religião, convicção, lei, do ponto de vista humano, é antes o caos, a anarquia, o abismo. [Mas a atitude humana que abre mão de tudo o que o homem, segundo o mundo, possui ou possa ter, sendo genuína, (sem intenções egoístas, mesmo as mais “santas”)] é o lugar onde só Deus nos pode manter; é o lugar onde tudo mais, que não seja Deus, perde o valor; é o lugar que sobremaneira, não é lugar. E a “Lei da fidelidade de Deus” ou, o que é a mesma coisa, é a “Lei da fé”! Esta lei da fé é o momento [quiçá o binário] do movimento do homem acionado e movido por Deus, o Deus fiel, que é o Criador e é tudo do ser humano; é o seu Redentor. É aí, (no firme fundamento dessa atitude de submissão integral a Deus e firme esperança em Cristo] que o homem se entrega a Deus, juntamente com tudo quanto diz respeito ao mundo em que vivemos. Este “momento” da movimentação do ser humano, por Deus, está além das possibilidades humanas e não pode, de forma alguma, ser erigido em ‘caminho”. “método” ou “sistema”. Ele repousa, exclusivamente na vontade, no beneplácito, no aprazimento de Deus, cuja razão deve ser buscada e só pode ser encontrada no próprio Deus. Esta é a “Lei do espírito da vida” (8, 2) e nela fundamentamos o critério (que não é um ponto de vista!) pelo qual consideramos totalmente “excluída” toda e qualquer jactância humana. “Consideramos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”.

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Somente pela Fé

3, 27-28

[Usei o verbo “considerar” para traduzir o verbo “rechnen” empregado pelo Autor. A tradução de Almeida diz: “Concluímos” pois; Lutero escreveu “temos” pois. (So halten wir...) A VSF diz “consideramos” (nous estimons); a RSV escreveu “For we hold”]. A passagem [a mudança] do “ponto de vista” das religiões para o “critério” de Jesus significa o abandono de uma escrituração por outra inteiramente nova, de que ainda não se ouviu falar, na contabilidade do relacionamento entre Deus e os homens. Toda religião conta com uma destas duas modalidades de interrelacionamento com Deus: ou praticar-se-ão obras que sejam agradáveis a Deus, ou Deus retribuirá aos homens, de alguma forma notória, no procedimento [quiçá na conversão] de uma pessoa, [grupo de pessoas] e do mundo, como resposta ou em resposta a essas obras. [Orações, promessas, etc.]. Na primeira modalidade, pretende-se que o “crente” tenha a atitude, o procedimento que, de alguma maneira, possa justificar a reivindicação [ou a pretensão de provocar,] de produzir o beneplácito divino e assim, merecer a retribuição de Deus. [“Pois Deus retribuirá a cada um segundo o seu merecimento”...].(2,6). Na segunda alternativa, o “crente” espera que Deus “pagará”. [Deus retribuirá e responderá] às obras, provocando uma modificação na conduta, no procedimento, na atitude, das pessoas e da sociedade, resultados esses visíveis e reconhecíveis pelo mundo. [Conseqüentemente, podemos dizer que:] A religião considera que Deus agiu “Antes” [e] ou agirá “Depois” do instante em que o pecador se apresenta descoberto, desnudo, perante Deus, para dele receber novas vestes, como que prescindindo desse momento supremo, quando o pecador se encontra com o seu remidor, quando Deus movimenta [e conduzi o homem. Para a religião, esse período anterior ou posterior é tão importante ou quase tão importante quanto o instante crítico, assemelhando-se a ele em dignidade e significação. Desta forma, o encontro do homem com Deus perde as suas características de total incomensurabilidade e de absoluta incomparabilidade para dar lugar à possibilidade de o homem gloriar-se divinamente daquilo que ele é, ou possui, ou faz. Essa possibilidade está [pois] latente em todas religiões e, por isso, em todas elas existe a possibilidade de os fiéis fugirem do paradoxo da fé, de o contornarem ou, quiçá, de novamente o evitarem. Essa é a condição da “escrita” antiga, em qualquer das suas duas modalidades.

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3, 28

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Em a nova contabilidade, escriturada segundo o critério de Jesus, a situação muda-se radicalmente: não existem obras humanas que possam gerar o beneplácito divino ou que possam desencadear a ação de Deus para modificar a conjuntura do mundo. Tudo o que no mundo ocorre está sujeito ao “NÃO” divino expresso [por Deus] em Jesus, e o mundo é convidado a esperar no “SIM” de Deus, também em Jesus. [Conseqüentemente, segundo o novo critério, o “ANTES” e o “APÓS” ficam completamente ofuscados (pois a “preparação” anterior e o “ensino” (ou a prece) posterior são, necessariamente, “obra humana” e, como tal, não têm qualquer valor ou mérito perante Deus)]. Segundo o critério de Jesus, faz-se a omissão, justamente, de todo o “ANTES” e “APÓS” no instante do encontro do homem com Deus. O “ANTES” e o “APÓS” não podem ser medidos em termos do “momento central” nem podem ser comparados a ele. Uma coisa é e será “o que Deus é e faz” e outra coisa [completamente diversa à primeira e em nada comparável a ela] é e será “o que o homem é e faz” (ou houve no íntimo de seu coração). A linha divisória que existe entre o que aqui está e o além, é intransponível: é a linha da morte que, na verdade, é a linha da vida; é a linha do término (desta vida e deste mundo] que, na realidade é a linha do início [da nova vida, do reino dos céus]; é a linha do “NÃO” que verdadeiramente é o “SIM”. Deus esclarece; Deus fala; Deus retribui; o beneplácito de Deus escolhe e valoriza. Sim: este esclarecimento é uma palavra Criadora; por ela a realidade se estabelece. Só existe valor onde Deus o encontra [onde Deus atribui valor]. Ora, a obra de Deus é a sua criatura e, portanto, esta é uma nova criatura. Aquilo pelo que Deus pagou o preço, pertence a ele e não mais ao homem; para Deus, tem valor o que ele valoriza e, por isto essa valorização não se firma neste mundo. A sua fidelidade é glorificada pela justificação dos homens: o homem novo se ergue surge a nova terra; rompe o dia novo [e glorioso] sob o poder da fidelidade de Deus; mas o homem do presente século, neste mundo, não é glorificado na luz desse dia. Primeiramente a atual mortalidade precisa ser revestida de imortalidade e a presente corruptibilidade, por incorruptibilidade. Quando, pela palavra criadora de Deus, este revestimento acontece, então suprime-se a mortalidade do mortal: o corruptível da corruptibilidade; ficam eliminadas a temporalidade, a materialidade e a corruptibilidade do mundo. Todavia, nem por isso fica enobrecida a mortalidade ou a corruptibilidade, ou o mundo, o mínimo que seja; [a matéria, a mundanalidade] não ficam confirmadas ou transfiguradas.

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3, 28

O “momento” [pelo qual Deus move o homem para sua apresentação ao tribunal divino, quando o ser humano se apresenta qual é, perante o seu Criador] é e permanece sendo peculiar [a Deus]; é algo diferente e estranho a tudo o que possa acontecer “ANTES” e “DEPOIS”. O “momento” crucial não viceja no “APÓS” nem tem suas raízes no “ANTES”: não está em qualquer conjuntura temporal, original ou lógica; esse “momento” é sempre e simplesmente “novo”; é sempre o “ser”, o “possuir”, o “fazer” de Deus, que só ele possui a imortalidade, CREDO QUIA ABSURDUM! [Esse “momento” é o produto do Poder de Deus pela graça da fé]. [Talvez convenha notar aqui, mais uma vez, o acirrado combate que o Autor faz a toda forma de idolatria, aliás, bem fundamentado na carta de Paulo aos romanos, e na Bíblia em geral. Todavia, a exegese que Barth faz, da epístola, insiste nas formas mais requintadas de idolatria; entre estas, a idolatração da própria lei — (da Bíblia entre o ambiente evangélico particularmente do brasileiro) e das instituições; (da igreja entre os católicos). O Autor cita a “RELIGIÃO” que, segundo ele, ou veria na prédica (na catequese) um valor importante para a conversão, ou consideraria a conversão como uma conseqüência dessa prédica, desse esforço missionário. No entanto qualquer das duas posições está pejada de pretensão e arrogância, visando a, explícita ou implicitamente, enaltecer a obra humana perante Deus. Essa é a deturpação do verdadeiro espírito missionário, (devedor a judeus e gregos) que transforma o mensageiro de Deus, ou melhor, que apresenta o mensageiro de uma “sociedade bemaventurada”, superior, esclarecida, enviado aos primitivos, “nativos”, hereges, pagãos e idólatras, como se fora mensageiro de Deus, anunciando o evangelho e, em vez de o anunciar prega — ou menos do que isso, “apregoa”, a sua sociedade, sua seita, sua religião. Há de haver arautos do evangelho (10, 15) mas do evangelho anunciado com temor e tremor e com ousadia e humildade; é um conservo entre os demais servos que fala em nome de quem o enviou: “Ide e pregai” — disse Jesus. Mas não é a pregação nem o mensageiro, que promove a conversão, ou que para ela contribui; nem é o pregador que abre as torneiras dos céus para que fluam as bênçãos celestiais da conversão. Esta é, esta se dá, exclusivamente pela graça de Deus]. O homem só é absolvido se for julgado por Deus; a vida vem sempre da morte, o princípio chega apenas no fim; o “SIM” vem pelo “NÃO”! A justificação pelo sangue de Jesus (3, 25) é sempre justificação, independentemente das “obras da lei”, e independentemente de tudo que da parte do homem (perante Deus e os homens) pudesse ser considerado como justificação [ou justificativo] para que o homem nunca se possa gloriar se não “por esperança, isto é, em Deus”.

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3, 29

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Entre nós e Deus estará sempre o “Dia da Cruz”, é o dia que une mas também estabelece a separação; é o dia cheio de promessas e pleno de advertências. O paradoxo da fé nunca pode ser contornado e jamais suprimido, SOLA FIDE. somente pela fé. comparece o homem perante Deus e é por ele movimentado: a fidelidade de Deus, justamente por ser essa fidelidade, somente pode ser aceita pela fé; [somente pode ser crida]. Mais que isso, seria menos! Esta é a nova contabilidade, segundo o critério de Jesus. Vs. 29 e 30 Acaso Deus o é somente dos judeus? Não, mas é também o Deus dos gentios! Verdadeiramente também dos gentios! Tão certo quanto existe um só Deus, ele justificará o circunciso pela fidelidade e o incircunciso mediante a fidelidade. “É Deus, somente o Deus dos judeus? Não o é também dos gentios? Verdadeiramente também dos gentios!” Maior certeza, mais segurança, maior garantia para a verdade das palavras divinas seria, de fato, menos convincente. A evidência humana obnubilaria o que aqui se pode contemplar. A certeza humana não conheceria o que aqui se pode conhecer. Deus só pode ser compreendido através de Deus; a sua fidelidade, somente pela fé. Toda a asserção ou afirmação de que (Deus) é, tem, ou age de alguma forma humana, todo pretenso relacionamento direto com ele, “rouba-lhe” (as aspas não são do Autor) sua divindade; arranca-a para situá-la no nível da temporalidade, das coisas [materiais] e dos homens; marginaliza a sua posição real. A realidade divina manifesta-se em forma universal [não é delimitada em posses de qualquer natureza ou em quaisquer atos ou obras]; e porque Deus é universal, toda a boca se calará perante ele e todo mundo é culpado perante Deus, (3, 19). É pela universalidade divina que se verifica que todos carecem da glória de Deus (3, 23). Se no mundo existissem [pessoas, grupos, agremiações. igrejas] que fossem ou tivessem alguma coisa a seu favor junto a Deus, ou com ele transacionassem de alguma forma, em contraposição a outras que fossem ou tivessem menos ou nada para alegar a seu favor, ou para transacionar com ele, então Deus, evidentemente, seria uma grandeza psíquica ou histórica ao lado de outras grandezas, sendo apenas relativamente diferente [ainda que fosse muito maior]; seria uma luz ou uma força [comparável às demais, mesmo que fosse muitíssimo mais intensa e mais poderosa].

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3, 29-30

Deus poderia, então, ser o “Deus dos judeus”, apenas; ou o Deus de gente conduzida desta ou daquela maneira; Deus seria, qual a religião: uma especialidade de determinados círculos sociais, épocas e disposições de espírito ou de ambiente. Se assim fora, [se Deus fizesse acepção de pessoas], Deus seria alcançável por preço relativamente baixo e também seria dispensável [descartável], com relativa facilidade. Talvez, então, a palavra “Deus” significasse muito para o mundo, porém, jamais [sequer lembraria] justificação e ressurreição. Não seria a “última palavra”; não seria tudo, não seria o eterno. É por isto que no “menos” [que a Bíblia diz, quando afirma que Deus o é de judeus e gentios] — [3, 30] ela diz, realmente, muito mais [e se mais dissera seria redundante e explicaria menos, ...]. “DEUS” é a palavra eterna, final, quando com ela, exclusivamente pela fé, indicamos a impossível possibilidade de sua fidelidade. No paradoxo da fé basta-nos a fidelidade de Deus, pois com ela pisaremos terreno firme e trilharemos caminho seguro; nesse fato esbarra toda (pretensa) união [identificação] com Deus neste mundo. [Ante a possibilidade, ou melhor, na certeza de sua fidelidade, quando pela fé, e somente mediante a fé, vemos essa fidelidade,] não é possível abrigar a idéia de que sejamos “um” com ele, ou de que tenhamos parte com ele, como se a divindade fosse, ao menos parcialmente, imanente em nós. [Já não poderemos supor que de alguma forma transcendental, quem sabe se por aproximações sucessivas, ainda que nela agregássemos feitos infinitamente pequenos numa espécie de integração matemática, pudéssemos identificar-nos com ele, tornando-nos “Santos” e “sem pecado”]. O reconhecimento deste fato. [o reconhecimento de que, por obras deste mundo ninguém se achegará a Deus], torna meridianamente claro que Deus é Deus de todos os homens — gentios e judeus [ateus e crentes]. Também se torna evidente que Deus não é alguma grandeza psíquica nem histórica, porém, é a essência e a origem de todas as grandezas, absolutamente diferente de tudo mais que, para nós, seja luz, poder e bem e, nessa evidência, ficam absolutamente claros o poder eterno e a divindade de Deus. (1, 20). Entendida assim, a palavra “Deus” não significa “alguma coisa”, porém “tudo”; não se trata de alguma coisa “penúltima” mas do que é “final”, “definitivo”. É a palavra do julgamento, da exigência e da esperança que é dirigida a todos, que para todos tem significação, e significação decisiva. “Tão certo quanto ele é um só Deus, e que justificará os circuncisos pela fidelidade e os incircuncisos mediante a fidelidade”.

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3, 30

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[A tradução de Almeida, e todas as demais versões que aqui citamos, usam a palavra “FE” onde o Autor usa “FIDELIDADE”]. A multiplicidade das coisas que pretendem ter valor em si mesmas [ou às quais pretendamos atribuir tal valor] e toda divindade que neste mundo se pretender derivar de Deus ou usurpar dele, ressaltam a manifestação da unidade de Jesus com Deus que, na justiça de Deus, somente é reconhecível mediante a fé que se fundamenta na realidade do “Deus vivo” e na personalidade do único Criador e Redentor, [Jesus Cristo]. Em Jesus estão as coordenadas da verdade eterna. Nele se ligam as forças que ordinariamente se repelem: um ser humano com outro ser humano. Nele se afasta e se separa o que habitualmente tendemos a misturar: o Ser humano e Deus! É à luz dessa crise que o homem reconhece a Deus e passa a honrá-lo e a amá-lo. E aqui como acolá [na separação entre os homens e Deus, na distinção entre o que é humano e o que é divino, e na irmanação da humanidade], se repete em Jesus o que a religião quer dizer com o seu “atar” e “desatar”. [Parece-me que o Autor se refere a expressão “o que ligardes na terra será ligado nos céus e o que desligardes na terra será desligado nos céus” (Mat. 16, 19). Se esta interpretação for lícita, então surge (ou surgirá) uma visão inteiramente nova, (talvez mais racional) da afirmação que Jesus fez após a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”! Então já não é um poder especial que Pedro recebeu (e que seria transferido (e transferível) aos papas (segundo a I. Católica), mas seria a ligação geral dos homens entre si, e a distinção entre os caminhos dos homens dos caminhos de Deus, separada na resposta de Pedro em confronto com as demais respostas: “Uns dizem que és João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou algum dos profetas” (Aliás, sobre a extensão da qualidade de “ligar” e “desligar” a todos os verdadeiros cristãos e não só ao “Santo Padre” ou aos apóstolos, ou sacerdotes) ver Mat. 18, 18]. A maior distinção entre o ser humano e Deus (a sua mais alta “separação”) é a sua verdadeira união, a sua unidade. Enquanto a temporalidade e a eternidade, retidão humana e Justiça divina, o “aquém” e o “além”, são definitiva e indubitavelmente separados entre si, em Jesus, também nele são eles unidos e unificados, em Deus, de forma igualmente definitiva e indubitável. Indicação, referência, semelhança ou parábola, possibilidade, esperança, tudo é “lei”; também são “lei” todo o ser, o possuir e o agir dos homens, bem como toda a existência e o modo de ser do mundo; e, como lei, trazem em

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3, 30

seu bojo os sentimentos [e as sensações] de vacuidade, de carência, de insuficiência, de ansiedade e de anseio. Todavia, se essas características “negativas” forem inteiramente genuínas, se nelas não houver sido (ou não for) enxertado qualquer “mérito” humano, então sobre elas [e por trás delas] raiará a luz da fidelidade de Deus que absolve quando julga, e vivifica quando faz morrer. Sim, Deus se torna o Deus reconhecível em Jesus. Outrossim, a mais profunda irmanação entre os seres humanos nada mais é que a verdade intrínseca, histórica e pessoal de cada indivíduo; a sua verdadeira vantagem, (3,1). As possíveis vantagens de cada pessoa não são anuladas, porém, realizadas conforme o respectivo conteúdo; é o impossível [que acontece]. A personalidade individual não é esmagada, porém alicerçada pelo grande e avassalador desassossego que representa (ou representou) o “ainda não” e o “não mais”. É justamente a demanda (a exigência) de fé, imposta a todos, que é a palavra criadora que tira o indivíduo do caos do isolamento da individualização, para que ele “seja”; [para que se realize, para que tenha vida abundante]. “Quem, por amor de mim, perder a sua alma, acha-la-á”. Aquele que tira toda a vanglória tanto do “circunciso” como do “incircunciso”, que chama o pecador das profundezas e que apeia o “justo” de suas alturas, este é quem, também, a ambos declarará justificados (pois o seu presente ainda não é o seu futuro, que nele descansa), porquanto eles estão perante ele somente mediante a fé. Onde estiver a fé, aí estará a fidelidade de Deus. Onde cessa a “glória” [a fama, a celebridade, a vanglória], aí começa a “vantagem” (3, 1): isto é, o perdão, a redenção, a criação da “nova criatura”. Mas quando assim falamos, sabemos que nos referimos à possibilidade desconhecida que, ela própria, só pode ser assimilada pela fé. Comentários: 3, 1-30 1. Considero inteiramente fundamentadas na doutrina bíblica as análise e as conclusões que o Autor apresenta sobre a inexorabilidade da lei que a todos irmana na condenação, igualização essa que é superada somente na cruz de Cristo, que põe à disposição de todos, sem nenhuma exceção, a redenção pela graça de Deus, mediante a fé, conforme foi exposto na parte final do capítulo.

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3, 1-30

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São também, evidentes as conclusões de que Jesus é o Cristo, o Messias prometido. Todavia, para prová-las, Barth faz (ou procura fazer) uma demonstração racional servindo-se de argumentos que pretende sejam convincentes. Muitos Cristãos piedosos e cultos não só em passado distante mas também mais recentemente, têm tentado demonstrar e provar que Jesus é efetivamente o Cristo, o ungido de Deus, o “Cordeiro Pascal” que foi imolado para expiar o pecado do mundo, e do qual profetizaram e testificaram os antigos, segundo as escrituras. Todavia, a Bíblia não procura “provar” o fato, embora reiteradamente o afirme, anunciando Jesus o homem de Nazaré, que nasceu numa manjedoura, foi apresentado no templo, foi batizado, teve glórias e tristezas e estas foram tantas, que se transformou no “varão de dores”; foi traído, condenado, morto e sepultado. Apresenta também Jesus, o Filho de Deus Vivo, o Cristo, o ressurrecto, o próprio Deus. (João 1, 1-5, e 5, 18-27; Filip. 2, 5-11; Heb. 1, e Apoc. 5, 11-13 e mais Mat. 17,5 e 26, 63-68; João 10, 2439; Rom. 1, 1-7; 1 João 5, 13-20). (Citações conforme “Guia Bíblico na edição da V.S. Francesa). A Bíblia diz o estritamente necessário, tal e qual Barth observa e preceitua quando escreve que dizer mais seria na realidade menos. Mais do que isso, Barth enfatiza vigorosamente que o paradoxo da fé, a revelação do Deus “desconhecido”, só podem ser percebidos, assimilados, pela fé. Não são fatos palpáveis, racionalizáveis; são fatos que precisam ser cridos. Parece-me, pois, mais coerente aceitar que Jesus seja o Cristo, pela fé: fé que toma alento na historicidade de Jesus; que se compraz em ver que nele se cumpriram desde as mais antigas até as mais recentes profecias; fé que se sente esclarecida com o relato inspirado que encontramos nas Sagradas Escrituras; porém, o germe, a raiz, a origem primeira dessa fé, não resultou de experiências empíricas, nem de aprendizado, nem de elucubrações intelectuais. 2. Ao mencionar os milênios já vividos pelo homem sobre a terra, numa perene busca de Deus, Barth permite supor que admite ou admitiria a criação do HOMO-SAPIENS dentro de um processo evolutivo da espécie. Este aspecto será, sem dúvida, chocante para uns e até inteiramente inaceitável para outros. Sobre este assunto ocorre-me a seguinte ponderação:

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3, 1-30

O que exige maior fé; e o que revela melhor compreensão do infinito poder divino: a idéia de que Deus modelou um boneco em barro, e a seguir assoprou vida pelas suas narinas (etc.) —ou esta outra idéia de que Deus, pela sua eterna e incomensurável sabedoria, dotou o mundo (e o universo imenso) de leis, estabelecidas e firmadas por seu decreto — (leis que os homens desde os milênios intermináveis do passado têm procurado apreender, captar, e utilizar para o seu próprio bem estar, embora algumas vezes tenham construído “Torres de Babel...“ e consoante estas suas leis, do pó criou todos os seres vivos e a um deles, ao nosso “Adão” no tempo que lhe aprouve, (tempo no calendário dos homens) deu o dom supremo de “sua imagem” e “semelhança” — o homem espiritual, porquanto Deus é Espírito (e não barro, costela ou pó...). Qual destas duas interpretações está mais próxima de honrar e reverenciar o “Deus desconhecido” de que Paulo fala aos Atenienses? Qual das duas maneiras de ver transforma Deus, mais grosseiramente em imagem e semelhança do homem? Qual delas enfeita a Deus com atributos humanos e qual atribui mais glória ao Criador? 3. Barth fala da “memória do lar” como inspiradora de nossos anseios mais altos; nossa sede de justiça; nosso anelo por paz; diz que essa “memória” é a fonte donde provém nosso conceito do que seja justo, puro, elevado, santo e agradável a Deus. Este conceito de “memória” traz à lembrança a “reminiscência da alma” canhestramente demonstrada (?) por Sócrates, segundo Platão, e levada às suas conseqüências finais, meio milênio mais tarde, por Plotino — já na era Cristã. Essa reminiscência Platônica leva ao absurdo de a alma “ignorar” as ocorrências mais próximas, pelas quais é castigada em reincarnações sucessivas (à moda espírita), enquanto guarda a memória remotíssima das virtudes que aprendeu em tempos há muito perdidos, junto à alma superior, perfeita, (Deus), nos páramos celestiais. O contexto das obras de Barth parece não autorizar que se lhe atribuam concepções platônicas sobre a origem da alma ou dos sentimentos nobres que a alma pudesse abrigar. Todavia, quando o Autor se refere às manifestações religiosas ainda que de natureza retorcida, reprovável, das sociedades primitivas, parece estar acolhendo que existe no ser humano o que, talvez, se possa chamar, em psicologia, um “subconsciente universal” da idéia de Deus. Prefiro pensar que o ideal divino que viceja nas almas se origina da inspiração divina e da contemplação da infinita grandeza de Deus

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3, 1-30

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revelada tanto nas tormentas como nas calmarias; à luz do sol, à luz da lua, ao brilho das estrelas e na escuridão da noite. Na regularidade das estações e na harmonia universal; na planta que brota e no relâmpago que estilhaça e fulmina. A voz de Deus! Para os “homens que sabem ver” Deus fala “claramente desde o princípio do mundo”. Esta verdade também foi vista por Sócrates, registrada por Platão, e foi outrora, meio milênio antes, proclamada com mais graça, mais sabedoria e mais unção pelo Salmista bíblico: “Os céus proclamam a glória de Deus, E o firmamento anuncia a obra de suas mãos. “Um dia faz declaração a outro dia, e Uma noite mostra sabedoria, a outra noite. “Sem linguagem, sem fala ouvem-se as suas vozes Em toda extensão da terra. “E as suas palavras, até aos confins do mundo”. (Sal. 19, 1-4)

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Capítulo IV

A VOZ DA HISTÓRIA Este capítulo foi subdividido pelo A. em quatro partes: • Fé é Milagre, que inclui o último versículo do capítulo anterior e vai até o versículo 8 do novo capítulo. • Começo - Vs. 9 a 12 • Fé é Criação - Vs. 13 a 17 • Da Utilidade da História - Vs. 17 a 25 O A. analisa a situação dos chamados “Filhos de Abraão”, tanto segundo a carne, a raça, a descendência material, quanto ao que diz respeito à herança espiritual, para concluir que o caminho para a posse dessa herança começa pela fé, que é milagre divino e contém o germe regenerador, quiçá criativo, pelo qual tudo se faz novo; e termina a exegese do capítulo expondo que o valor duradouro da história consiste em destacar, revelar, apontar as realidades espirituais que a dominam, quer aprovando, quer rejeitando os fenômenos materiais, passageiros, transitórios; assim é que Abraão — o herói da fé — entra para a história, dando-lhe sentido duradouro e eterno, trazendo a nós — a todas gerações que lhe seguiram — a promessa e o ulterior cumprimento: a formação de uma geração de verdadeiros filhos de Abraão — pela graça, em Cristo Jesus.



É

MILAGRE (3,31

A

4,8)

V. 31 Anulamos, pois, a lei pela fé? Impossível! Antes confirmamos a lei. Se pretendermos inserir a ressurreição no correr da história mundana; se tentarmos situar a pressuposição que há em Jesus [que ele é Emanuel, Deus conosco] na ambiência e conjuntura existente no mundo, se tentarmos entretecer o paradoxo da fé no contexto da experiência espiritual da humanidade, confrontar-nos-emos com uma [situação equívoca, ilógica], espécie de espectro devorador de todas coisas vivas.

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3, 31

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O mundo desaparece perante Deus; a criatura perante a redenção; a experiência ante o conhecimento, o conteúdo ante a forma. A lei desaparece perante a única realidade: a fidelidade de Deus. Esta, todavia, só é perceptível pela fé. Como haveremos de defender-nos deste quadro e da censura de um dualismo gnóstico que nele se baseia? Sem dúvida, não nos poderemos defender, se a radicalidade da verdade aqui emergente não for absolutamente, totalmente, radical. Uma negativa que subsistisse a par do postulado que pretendesse negar [sem, todavia, anulá-lo] não seria uma negativa genuína, legítima, de caráter “crítico” [isto é, representando uma “crise” decisiva para a interpretação do teor do postulado negado]. Antes, seria uma negativa que logo exigiria a sua própria negação [ou supressão]; [assim também] a Ressurreição, [encarada] como acontecimento excepcional [anormal] em paralelo com outras ocorrências históricas, não seria ressurreição, pois, o que haveria, então, de ressurgir? [Entendo que o A. sugere que se a Ressurreição fosse um fenômeno especial, para-histórico”, a ser inserido no contexto histórico, nenhum valor teria senão o da aparência de ocorrência material ou, vice-versa, o de ocorrência material com aparência de transcendentalidade. Verdadeiramente seria uma ilusão, e nada ressurgiria. No entanto, o fato é absolutamente radical: ocorreu e se impõe, não como fato histórico de ocorrência possível, mas em realidade, de forma absolutamente decisiva contrastando violentamente com a experiência histórica da humanidade. Parece ser isto, o que o A. chama de “absoluta radicalidade”.] Uma pressuposição que não se convalidasse, e não se verificasse em todas as coisas, não teria caráter final, decisivo, e o paradoxo que estivesse relacionado aos acontecimentos espirituais (ou psíquicos) habituais como sendo coisa especial, diferente, (ainda que tivesse significado todo especial ou que fosse, até mesmo, algo “demoníaco”), não seria paradoxo. O inteiramente “outro” do qual procedemos, de maneira alguma seria realmente “outro” se em seu total modo de ser, desde a sua mais primitiva origem, durante o seu desenvolvimento, e na confirmação final de sua significação, não fosse total e inteiramente diferente da existência humana conhecida, tanto material como temporalmente e com cuja estrutura a fé — (que é, verdadeiramente, milagre) — contrasta [de forma absolutamente radical]. Se “anularmos a lei pela fé”, estaremos situando a fé ao lado da lei; estaremos situando Cristo ao lado de Moisés e não Moisés em Cristo. Ao lado da lei a fé seria apenas uma segunda grandeza, diferente, diversa da lei, e não enquadraremos a lei na fé.

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Se não reconhecermos, no julgamento de todos os caminhos do homem por Deus, também a direção que Deus dá aos homens; se não reconhecermos na supressão que Deus faz de toda a agitação humana, de suas obras e de seus anseios, também a supressão concomitante dessas aflições e cuidados; ou, em outras palavras, se a última, a derradeira questão levantada pela fé não trouxer também, implícita, a resposta a todas as perguntas, então a fé não é FÉ. Teríamos, então, fechado um curto-circuito. Teríamos consumado, apenas, uma reação; teríamos dado expressão a um “ressentimento”; teríamos conseguido uma “ação contrária” que, por sua vez, teria de ser reduzida a uma expressão unitária, mais simples, mediante novo tratamento dialético. (O objetivo do A. é mostrar que a lei não pode ser ab-rogada pela fé. Para tanto, mostra, a priori, que os fatos transcendentais observados em Jesus, a saber: a sua ressurreição, a pressuposição fundamental que Jesus é o Cristo, o próprio Deus; o paradoxo (o enigma) da salvação mediante a fé, somente; todas essas realidades, expostas ao mundo quais aparentemente são em sua forma final, transcendental, anulam completamente a pressuposição e, portanto levam ao absurdo que o dualismo do gnosticismo pretende contornar. Todavia, as verdades transcendentais que emergem da vida de Jesus, não podem ser consideradas como verdades parciais ou relativas. A ressurreição não daria vida nova se fora apenas uma ocorrência anormal do mundo, (ou várias ocorrências que fossem), mas a possibilidade da vitória sobre a morte é (em Cristo) uma possibilidade universal. (“Eu sou a ressurreição e a vida; quem crer em mim, ainda que esteja morto, viverá”!). É também peremptória a verdade de que Jesus é o Cristo, e que a fidelidade de Deus revela-se nele pela fé. Ora, fosse a lei anulada, já não haveria conceituação do pecado e nem da morte que é o seu produto natural. Seria então de esperar que pelo menos algumas pessoas (não sujeitas ao pecado nem à morte), estivessem providas da glória de Deus. Para que, então, a ressurreição? Desapareceria a necessidade da revelação de Cristo e com ela desapareceria o paradoxo da fé. Desapareceria, portanto a fé a qual, em princípio, admitíramos que anularia a lei: fechar-se-ia o circuito. O curto-circuito teria acontecido se a fé anulasse a lei... [Poderemos, talvez, melhor apreciar a figura física que o A. oferece, lembrando que em um curto-circuito anula-se o potencial e escoa-se a corrente em total defasagem com esse potencial. não produzindo energia, quiçá simbolizando a anulação da graça de Deus e o desperdício da fé)]. Acontece, porém, que não se afirma que a lei é anulada pela fé. “antes confirmamos a lei”.

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Suprimimos o acaso da história, das coisas existentes, e dos acontecimentos “espirituais”. Anunciamos a Deus como Senhor do céu e da terra quando o designamos como o “Deus desconhecido”; ao pregarmos a redenção, testificamos a obra do Criador na “Criação”. Ressaltamos o sentido de toda a experiência humana quando a expomos à luz do conhecimento [que vem do alto]; confirmamos a verdade eterna da lei quando apresentamos o paradoxo da fé, mediante o NÃO eterno aposto à própria lei. Anunciamos justamente o direito do indivíduo, o inextinguível valor do particular (Kierkegaard!), ao anunciarmos que sua alma está perdida perante Deus e em Deus, mas, também, guardada e salva nele. É por isso que exigimos que todo ser humano, tudo o que possui e toda sua obra, se curvem ante o tribunal divino; é por isso que demandamos que sempre, e em tudo, se espere pela justificação divina, pois, (visto por Deus e para Deus) nada está perdido. É por isso que não consideramos existir (que suprimimos) qualquer semelhança entre o que há antes de soar a última trombeta e o que houver nesse instante e também o que houver depois dele. Proclamamos a simultaneidade de todos os tempos, de tudo quanto existe “antes” ou existirá “após” o ressoar da trombeta, pois tanto o “passado” como o “futuro” completamente transformados, [diferentes do que agora são ou nos pareçam ser] estarão sob a luz desse instante supremo, e participarão de sua dignidade e sua significação. A justiça de Deus e a sua justificação garantem-nos, na real transcendência divina, a mais genuína imanência de Deus. Quem está em Cristo, também nele esteve e estará. A revelação em Jesus, da qual procedemos [e que é o nosso ponto de partida], é a exposição do desassossego, da carência, da realidade, num corte longitudinal através dos tempos. A própria história testifica a ressurreição, e as coisas que são, testificam as que não são. Os feitos humanos testificam o paradoxo da fé, apontando-o como o seu inalienável fundamento. A lei, sabiamente compreendida é, de fora a fora, a prova a justificação e a revelação da fidelidade de Deus. Não abrogamos a lei, antes deixamo-la falar, junto com a Bíblia, com a religião em sua realidade, e com a história, testemunhando (3, 21) por seu próprio sentido e sua percepção, que a fé é o sentido da lei; é um milagre radical (4, 1-8); é o verdadeiro início (4, 9-12); a fé é a criação fundamental (4, 13-17a). [Portanto], “antes confirmamos a lei”.

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Vs. 1 e 2 Que diremos de Abraão, nosso antepassado, segundo a carne? Se Abraão, pelas suas obras, foi declarado justo, então basta-lhe isto para gloriar-se; porém, não perante Deus! [O A., em nota de rodapé, diz ter omitido intencionalmente a expressão constante no original grego, que se traduziria por “ter ganho” ou “ter alcançado”, conforme escrevem nossas Bíblias em geral: “Que diremos, pois, “TER ALCANÇADO” Abraão, etc. por considerar essa expressão uma evidente interpolação (um enxerto espúrio) no texto, “embora conste em muitos manuscritos”. A RSV também a omite, observando apenas que outras autoridades antigas “houvessem lido” “TER GANHO”]. — “Que diremos, pois, de Abraão?” Para paradigma da tese de que “a fé é o sentido da lei” escolhemos o vulto que é, possivelmente, a personalidade, mais remota e mais clássica do domínio da lei. Ninguém poderá dizer que, com essa opção, facilitamos a nossa tarefa. A situação histórica de Abraão é tão diversa daquela em que estamos que, logo de saída, fica completamente excluída a possibilidade de traçar uma linha reta dos acontecimentos psico-históricos, desde Abraão até nós. Se a justiça de Deus, em Jesus Cristo, for a supressão da lei e não o seu cumprimento; se essa justiça for somente um renovo [uma reforma], uma reação, alguma coisa apenas “diferente” na série de ocorrências bíblicas (e não bíblicas) da história da religião; se não tiver o total sentido e conteúdo do “além”; se a ocasião histórica [da manifestação da graça de Deus, em Jesus] não for mais que uma ocasião ao lado de outras muitas [ou mesmo de uma só outra]; se a própria historicidade de Jesus for um capítulo da história geral qual outro segmento [ou instantâneo] dela; ou se for “uma religião” ao lado de outras religiões, então a sua significação meramente relativa, casual, ocasional, ficará claramente evidenciada pelo confronto com a história, a religião e os tempos tão vastamente remotos, quais os de Abraão. Nestas circunstâncias, se o “fio carmesim” — que. em Jesus, pensamos ver atravessando toda a história, unindo a conjuntura material do mundo e estabelecendo a unidade entre o passado longínquo e o presente, entre o “LÁ” e o “AQUI”, — sim — se este fio não for absolutamente puro, absolutamente suficiente e forte, ele se romperá em nossas mãos quando contrastarmos Abraão com Jesus. [Abraão foi homem sobremaneira valoroso; seu pai saíra de Ur em busca de Canaã e se deteve em Harã, onde passou a habitar; foi aí que Abraão

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recebeu o chamado divino: “Sai de tua terra e da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei”. E Abraão foi; levou consigo a mulher jovem e bela e o sobrinho ambicioso. Homem decidido, corajoso e confiante em Deus, entrou para a história do mundo como o pai dos povos semíticos e, para a história da redenção, como o herói da fé. Homem extraordinário no mundo, e perante Deus; nobre no trato com os homens, generoso com os amigos, leal à humanidade, fiel a Deus, tornou-se o protótipo do homem reto e justo segundo o mundo e, mais do que isto, justificado por Deus, mediante a fé, — a sua personalidade entrou para a história e venceu os séculos sem que a traça e a ferrugem corroessem sua reputação. É com este homem de invulgar estrutura que o A. confronta Jesus, o carpinteiro de Nazaré. Homem para homem; igual por igual, para ver o que subsiste de um ou de outro lado. Qual dos dois será engrandecido e qual diminuído? Humanamente, historicamente, a posição de Abraão está definitivamente formada e servirá de pedra de toque para a avaliação de Jesus. E o que resulta? Resulta a evidência do Cristo ressurrecto; do Cristo, Emanuel, Deus conosco; do Cristo autor e consumador da fé. Resulta na evidência do Cristo, o cumprimento da promessa feita a Abraão. Sem o Cristo que o confronto evidencia, a ressurreição seria bruxaria; a história da redenção seria fábula; a promessa feita a Abraão seria uma farsa; Abraã? não seria o herói da fé, mas o otário da fé! É este confronto que destaca com nitidez a divindade de Cristo, a sua mensagem que vem desde a cruz, e o seu Poder que vem pela ressurreição]. Se neste confronto com Cristo prevalecesse o classicismo de Abraão, seu indubitável peso, calibre e valor; subsistisse a positividade de “nosso pai” segundo a carne, que foi primus inter-pares no mundo carnal, então, a negação [que Cristo impõe — ...“negue-se o homem a si mesmo” ...]; a depreciação e a supressão dos pretensos valores humanos [apresentados na existência, nas posses e nas obras peculiares ao mundo], seriam apenas relativas, sem valor decisivo, crítico; [A mensagem que vem da cruz e da ressurreição] não teria poder resolutivo. Jesus não seria o Cristo se vultos como Abraão, Jeremias, Sócrates, Gruenewald, Lutero, Kierkegaard, Dostoiewski, confrontados com Jesus, prevalecessem definitivamente como figuras da longínqua história, e não fossem, antes, unificados nele mediante a supressão de suas posições individuais pela proclamação da negação da cruz que, ao suprimí-las, também as alicerça e fundamenta.

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É disto que se trata: Jesus revela-se o Cristo por meio da luz que dele irradia; por essa luz ser a mesma, no Antigo Testamento, na história da religião e na revelação da verdade; ser a mesma luz que brilha no milagre do Natal. Ele é a luz para a qual se volvem os olhares de toda a natureza e de toda a história; a luz para a qual se dirigem todas as criaturas, visíveis e invisíveis, na esperança do cumprimento dos dias de sua espera. “O Antigo Testamento — no sentido comum desse qualificativo, não precedeu a Cristo porém, Cristo viveu nele, ou melhor, o Antigo Testamento foi sua vida pré-histórica; foi, por assim dizer, a testemunha, a imagem direta que acompanhou essa vida”. (Overbeck). (...“Antes de Abraão ter sido, eu sou!”) É isto o que dizemos de Abraão, e agora temos que o demonstrar; [temos que prová-lo]. Se Abraão foi justificado pelas obras, então basta-lhe isso para que se glorie. As “obras” de Abraão são manifestas; as suas palavras e seus atos mostram-nos a conduta, a orientação e a consciência de um homem justo. Esse seu modo de proceder está muito além e muito acima da escuridão em que está imerso o mundo pagão que o rodeia; ele exibe uma religiosidade mais consciente, moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica. Como haveremos de interpretar esses fatos que, assim, chegam a nosso conhecimento? Podemos ser levados a concluir da impressão de “retidão” que temos de Abraão e de pessoas semelhantes a ele, que Deus também as julgará de maneira análoga à nossa, uma conclusão que de maneira nenhuma parece ser desarrazoada. Todavia, se isto acontecer, se as obras de Abraão, de que temos notícia, forem declaradas como justificadas, então estaremos diante de obras humanas, do “ter” e do “possuir” do mundo, devidamente justificadas e que, portanto, já não precisam de justificação futura; ora, isto contraria as nossas verificações anteriores (3, 29 e 27-31), sobre a incerteza e a dúvida a que ficam sujeitas as obras e tudo quanto tiver conteúdo humano, ante a revelação divina. Todavia, a voz da história proclama a fama de Abraão como homem de caráter, herói e personalidade brilhante. Portanto, [se por tais feitos e características foi justificado por Deus], nos pontos que o celebrizaram [e foram suficientes para granjear-lhe a justificação divina], a justiça de Deus é idêntica à justiça humana. Logo, se existirem alguns casos em que as duas justiças se equivalem, [se igualem], por que não haveria muitos outros que admitissem essa congruência?

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Se isto se der então a crise geral da humanidade já não é mais incontornável; não é mais inexoravelmente necessário seguir o caminho que passa pela morte para chegar à vida: já não é indispensável o paradoxo da fé, que pensamos encontrar em Jesus. Se existisse um único, um só, ponto [uma só coisa, ou atitude ou o que quer que seja] que, pelas suas características “humano-divinas” ou “divinohumanas” tivesse por si próprio, valor tal que um homem pudesse gloriar-se dele, (e porque não haveria de alguém gloriar-se se tal ponto [ou situação] existisse?) — então é claro que existiriam outros caminhos para o homem achegar-se a Deus além daquele [apertado e estreito] que passa pela morte, e que foi indicado por Jesus; e quem, então, não preferiria estes caminhos mais simples, [mais largos e mais folgados]? O que dizemos a isto? Ora, dizemos: sim, a justiça de Abraão basta-lhe para sua glória, “porém não perante Deus”. O que significa, pois, quando a conduta, o procedimento, de uma pessoa nos impressiona pela sua grandeza, quando mais se parece como sendo desempenhadora de uma missão, de embaixada, de provimento e desempenho divinos, dando-se à expressão “divino” o sentido sério (de algo que vem dos céus)? Significa isto: que nessa pessoa o invisível tornou-se visível; que naquilo que essa pessoa é, ela nos lembra o que ela não é, que por trás e acima de seu procedimento existe um mistério [um segredo] que a sua conduta tanto esconde quanto ilustra e que, todavia, não é idêntico a ela. Assim como não chamamos de “luz” a sombra nítida de algum objeto, projetada por forte raio luminoso, também não é a justiça de Deus algo humanamente divino, ou divinamente luminoso, que vemos nas obras de um homem nas quais se patenteia a justiça divina; porém tais obras são testemunhas dessa Justiça, e tanto mais vigorosas quanto mais perceptíveis forem. Assim como não são as algemas que conduzem o homem, de pés e mãos atados, para onde ele não quer ir, assim também, a sua obra, achada agradável por Deus, e por isso, por ele justificada, não é a mesma coisa que a obra executada em sua vida e registrada na história [ou nas crônicas da vida]. Tal obra, porém, é recordação visível do invisível; e a impressão que tivermos da personalidade que tais obras apresentam é tanto mais estranhável quanto mais forte ela for. A proclamada “retidão” de Abraão, (sua religiosidade, genialidade e importância), a sua conduta, a orientação que deu à sua vida e a sua consciência podem justificar a sua glória (e fama) perante os homens, no fórum da história universal (e uma “história” mal orientada pode ater-se à fama e à glória de tal

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personalidade e de seus pares) “mas não perante Deus”, pois o que lhe serve para “gloriar-se perante Deus” será: o arrependimento sincero de seu coração penitente (2, 4); a sua obra conforme for aceita e “paga”, [retribuída], por Deus (2, 6); o “judeu que o é em secreto” e a “circuncisão que está no coração” — (2, 29). Isto está [escriturado] em livro diferente; isto é impossível ao homem em si e por isso está oculto aos olhos humanos; para os homens, isto somente é possível se vier de Deus e, por isso, somente pode ser visto por Deus. [O arrependimento não vem por iniciativa ou obra humana; é graça divina, e só Deus o pode ver e julgar]. E ainda mais: quanto mais claramente as coisas humanas, possíveis e visíveis testificarem as coisas [divinas], impossíveis e invisíveis, maior é a evidência de que são apenas coisas humanas. O classicismo do homem clássico não resulta de sua natureza criativa, nem é produto de seu humanismo, mas se baseia no julgamento sob qual está, e na limitação dessa criatividade, visível em cada um. O classicismo está no fato de que o homem tem consciência da precariedade de sua criatividade, sua relatividade, e sua supressividade; por isso, não se gloria nele. A sua grandeza real, positiva, e absoluta, deixa de ser ambígua, somente quando vista por Deus, pois é somente nele que ela se fundamenta. Porém, se aquilo que se proclamar de um homem como Abraão, não for a justificação divina ou, se a justificação divina de tal homem não for manifesta, então ele também está sob crise: a crise que todo homem enfrenta no caminho que leva da morte [e pela morte], para a vida; e o valor desse homem (a possibilidade de firmar este valor na presente vida) repousa no paradoxo, no milagre, da fé. Não se contornará o “caminho” — “a senda da morte” — [que leva à vida] apontado por Jesus. [Resumindo, talvez pudéssemos dizer que: o caráter e as obras de Abraão (e de todos os verdadeiros servos de Deus) são tanto mais humanos quanto mais poderosamente testificam a justificação divina; todavia, por serem humanos, lançam Abraão e todos os verdadeiros servos, na crise que é de todo ser humano: precisa morrer, para nascer de novo (João 3, 3-5)]. Vs. 3 a 5 O que diz, pois, a Escritura? Abraão creu em Deus, e isto lhe foi atribuído por justiça. Ora, a Abraão, varão de obras, aquilo que seria legítima retribuição não lhe pode ser atribuído como graça, porém como pagamento devido; todavia, a Abraão, varão sem obras, que apenas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada por justiça.

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“Abraão creu em Deus”. As qualidades características de Abraão e que seriam dignos motivos de glória para ele e para todos que lhe forem iguais; a vida e as atividades heróicas que teve; sua personalidade e sua piedade, quer tenham ou não tenham sido praticadas conscientemente, nada significam para justificação divina. Tudo o que estiver baseado em qualquer outra coisa [que não a fé], diz respeito ao mundo que está aquém da linha divisória que nos separa do além; nesta condição está o efeito de qualquer causa, e a conseqüência [ou as conseqüências] de acontecimentos que se encadeiam em ações e reações sucessivas; está nessa categoria de coisas materiais tudo quanto for perecível [palpável, sondável, racionalmente dedutível e emocionalmente experimentável]. Tudo isso está aquém da linha da morte que destaca o temporal da eternidade; está aquém da linha que separa o homem de Deus, ainda que represente [isoladamente, em partes, ou em sua totalidade] o mais forte testemunho das coisas que são do além. Do outro lado da linha da morte está Deus: sustentáculo, sem ser sustentado; substancial, mas completamente isento de substância; conhecido como o desconhecido; fala em silêncio; misericordioso [tolerante] em sua inacessível santidade; impõe responsabilidade e tudo suporta; exige obediência e só ele é eficaz; clemente em seu julgamento; não sendo homem e, todavia, o seu mais puro protótipo. Ele é o lar “imperdível”, a primeira e a derradeira verdade, o Criador, o Senhor, o Redentor do ser humano. Deus está sempre além do homem; sempre novo, distante, estranho, superior. Nunca está ao alcance do homem; não é possessão sua. Quem diz “Deus” diz “milagre”. Deus impõe sempre a opção e o homem há de, necessariamente, exercer essa opção: ou o aceitará ou o rejeitará; dir-lhe-á “SIM” ou “NÃO”; despertará ou adormecerá; há de tomar conhecimento de Deus para entendê-lo ou há de ignorá-lo para desconhecê-lo. [Para nós, como seres humanos que somos] apenas é possível, verossímil, visível, compreensível, a rejeição; [para nós é natural] a negação, o adormecimento, o desconhecimento de Deus; não é de nossa natureza material procurar discernir o incompreensível, nem ver o invisível; falta-nos o “sentido”, o “órgão” do milagre; a nossa compreensão natural fica dentro dos cinco sentidos com que a natureza nos dotou e toda a experiência e compreensão humana acaba onde começa “Deus”. O impossível, o milagre, o paradoxo, acontece quando o homem chega ao ponto de compreender a Deus e dizer-lhe “Sim”; quando a experiência espi-

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ritual se orienta para Deus e, recebendo dele certeza e segurança, toma a forma de fé. A convicção que Abraão teve de que a palavra de Deus tem poder operante, representa o impossível. [O absurdo do ponto de vista humano]. A certeza de que Deus se dirige às coisas que não são como se já fossem, (4, 21) é o milagre. A convicção de que a Deus cabe a honra (“Doxa”) (4, 20) contraria a nossa opinião (“doxa”) e constitui o paradoxo. Esta convicção é a fé. [O A. usa as palavras gregas “Doxa” louvor, e “doxa” opinião, fazendo calembures com “paradoxo”, o que está além da nossa opinião, o que ultrapassa o “bom senso”]. “Abraão creu”. Este é o fato pelo qual ele é o que é; este fato é a fonte oculta de onde emanam as suas propaladas “obras” (4, 2). Todavia ele é o que é como crente no poder daquilo que ele não é pois, naquilo que ele é — (o religioso esclarecido, o herói ético, espiritual, etc.) — desponta vigorosamente a revelação de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é: [mostra] o milagre; a nova terra; Deus! — Se afastares a linha da morte da fé que Abraão revelou (isto é, se ignorares a supressão do ser humano mediante sua fundamentação em Deus), certamente a esvaziarás de todo seu conteúdo e ela submergirá, como simples atributo humano, na subjetividade, relatividade e dubiedade de todos os atos (ações e atitudes) dos homens. Se a vida de Abraão não estiver fundamentada em sua morte então ele deixa de ser Abraão. [Parece que o A. quer referir-se ao novo Abraão, pai de muitas nações, conforme ele foi “crismado” por Deus (Gen.l7, 5)]. Abraão não creu apenas. Ele creu em Deus! (Gen. 15, 6). É isto o que diz a Escritura. “E isto lhe foi atribuído por justiça”. Portanto, já na narrativa do Gênesis, encontra-se o conceito marcante de uma atribuição, de uma escrituração divina a favor do homem (3, 28). [Evidentemente, trata-se do lançamento no “Haver” da conta “do homem”, de uma parcela que este não ganhou (nem ganha com a “obra de suas mãos”, com o “suor de seu rosto” ou com seus dotes intelectuais, morais e espirituais, porém, é uma grandeza que lhe é creditada única e exclusivamente pela graça de Deus, que se revela por sua fidelidade mediante a fé que, ainda esta, é dom divino...]. Aquilo que, como empreendimento humano, seria impossível ou seria uma adulteração (2,3), é possível e é justificado, como obra de Deus, a saber:

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estorna-se (do livro da vida) um lançamento feito no “Haver” divino para o escriturar no “Haver” do homem. O evento do milagre da fé, manifesto em Abraão, é escriturado a seu favor por Deus, como justificação divina. Trata-se de ação divina inteiramente livre, totalmente desvinculada do homem, daquilo que o homem seja, faça ou possua; é uma ação que se origina da vontade soberana, real e poderosa de Deus. O ser humano participa do divino através daquilo que ele não é; em sua morte, brilha para ele a luz eterna de Deus, poderosa, real; porém, sempre naquilo que o homem não é; sempre e somente no seu morrer. No entanto, se essa fé for uma atitude humana; a expressão ou a decorrência de uma mentalidade, de um caráter, de uma determinada orientação na vida, então ela será um produto do homem e como todas as obras humanas, não alcançará a justificação de Deus. Por outro lado, se a fé representar, no homem, uma delimitação, um cerceamento, uma vacuidade, então ela [possivelmente] inclui, abrange o milagre, o impossível, o paradoxo e, com tal conteúdo invisível, ela poderá estar qualificada para a “justificação” divina. O “caminho da morte” de Jesus é, manifestamente, o “caminho da vida” para Abraão. A Abraão, o varão de obras, não é atribuída a recompensa de suas obras”. A retribuição estabelece a separação entre a justiça de Deus, que Abraão merece pela fé, e sua (também notável) retidão humana. Se a fé que Abraão teve não foi um milagre mas apenas a expressão de surpreendente capacidade de crer, de heroísmo irracional, de força espiritual, então, para essa forma de fé lhe ser atribuída como justiça, por Deus, precisaria ter sido objeto de ato especial da misericórdia divina, o que o Gênesis não registra. [Ou, em outras palavras, tal ato especial não existiu]. Todavia Abrão o varão de obras, embora não tendo as suas obras contabilizadas a seu favor no “Livro da Vida” tem-nas registradas no “Livro da História da Religião”; no “Livro” dos grandes homens e das almas nobres. Portanto, é lícito e é útil que se proclame tudo o que se puder dizer de verdadeiro, de bom, de glorioso, a respeito de Abraão e de vultos iguais a ele, porquanto a honra e a gratidão com que a humanidade homenageia Abraão e seus pares, não é favor mas retribuição justa; é o pagamento de uma dívida que a humanidade contrai com um e com outros, em diferentes graus, no correr da história. É certo que o valor histórico e espiritual de uma pessoa não lhe granjeia credenciais para sua justificação perante Deus porém merece o reconhecimento, a justificação do mundo, em pagamento da dívida que a humanidade houver contraído com ela [pela legação que lhe faz de altos dotes de caráter].

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Porém, se nesta retribuição [nesse pagamento, nesse reconhecimento de valores], Deus for inserido, já não o será como o Deus Criador, Senhor e Redentor, que pratica a misericórdia e atribui justiça; será um Deus “pagador” que, qual contratante ou empreiteiro, paga a seu jornaleiro o que este faz jus. Paga porque é a isso obrigado [por contrato, por consenso social ou, para atender a ética], em retribuição ao serviço prestado; liquida, simplesmente, a dívida contraída. É pois evidente que nestas condições não se trata do verdadeiro Deus, mas do espírito deificado do próprio homem. Há porém outra forma de avaliar os homens: esta forma está indicada no Gênesis e foi ensaiada por Dostoiewski. Esta maneira [de apreciar os feitos humanos] não se limita a atribuir honra a quem for digno dela; a sua maior preocupação não consiste na demonstração [ou comprovação] da retidão humana; não marginaliza, não esquece a questão final [o julgamento por Deus], antes a põe em primeiro lugar, e parte dela. Essa forma de julgar não pensa, apenas, na escrituração dos ganhos humanos, mas lembra-se que existe também um “Livro da Vida” de cujo teor as coisas para nós invisíveis podem tornar-se visíveis; esse método interessa-se menos pelo que pode advir ao homem pela sua culpa, [em conseqüência de seus pecados]; antes interessa-se pelo que lhe pode ser atribuído por misericórdia. A este método é mais difícil cair na tentação de arvorar-se em juiz do mundo, pois ele procede justamente desse juiz e de seu tribunal. Esta forma alternativa de avaliar o homem vê as suas obras contra o pano de fundo de sua carência de obras; vê sua vida à luz de seu desfalecimento, (sua morte); vê sua ocasional grandeza humana medida [aferida] pela majestade de Deus; vê a sua condição de criatura, como testemunha do Criador; vê o que nele for visível, como carência, esperança, anseio pelo invisível; vê a sua fé, à luz da fé; ela pode alegrar-se com tranqüila brandura, por toda legítima grandeza humana, pela fé confiante, pelo heroísmo, por toda beleza espiritual e pela projeção histórica de uma pessoa. Essa alegria pode não estar isenta de certa dose de melancolia, pois jamais julgará o homem por seus feitos [ou por sua boa fama]. O julgamento, em última instância, será sempre pela sua fé, visível nos seus feitos, contra toda a aparência (ou paradoxo), atribuindo-lhe melhor justificação que lhe é concedida por aqueles que o consideram “por demais” justificado segundo o louvor deles. Também pode acontecer que, com a mesma tranqüila brandura, esta avaliação se entristeça ante a lamentável situação em que o homem se encontra — morto em seus pecados —, sua gentilidade, sua dureza, seu ateísmo, sua queda animalesca [brutal]. Essa tristeza pode ser acompanhada de um leve sorriso,

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por quanto, jamais será o homem julgado pela hediondez de seu pecado [ou por suas más qualidades]. O julgamento, em última instância, será mesmo, e sempre, pela fé que, novamente contra toda aparência, é visível em tudo e por tudo, ainda uma vez lhe atribuindo melhor justificação do que lhe é concedida por aqueles que o consideram “por demais” justificado [ou condenado] segundo a censura deles. Em ambos os casos a avaliação tem sempre presente o fato de que a justiça de Deus é imputada segundo o seu juízo e seu beneplácito (2, 6) e que Deus não faz distinção de pessoas nem olha para as suas máscaras (2, 11), porém, julga pelo que o homem abriga, em secreto, no seu coração (2, 16). Este modo de julgar considera a fé porque vê com olhos crentes e sabe o que a fé significa: O impossível donde procede toda possibilidade; O milagre, gerador de todos acontecimentos histórico-espirituais; O paradoxo que cerca toda a existência, toda a posse, e toda a ação visível humana; A crítica que primeiramente questiona o modo de agir, pondo-o sob dúvida para somente depois [de haver examinado o que, de secreto, houver por trás e por cima dele.] confirmá-lo e fundamentá-lo. Esta avaliação está familiarizada com a fé, porque ela também crê, e crendo sabe distinguir a fé que há nas pessoas e que as leva para além do que efetivamente são; é nesta região [do invisível] que a avaliação procura ver o que cada crente é por aquilo que ele não é; esta é a razão pela qual, quem tem fé — [fé real, viva, genuína, pura] se surpreende ao tomar conhecimento [ou ciência] de que a sua fé lhe foi imputada por justiça, e isto em sua forma a mais severa, acompanhado sempre de um “apesar de” e, jamais de um “por isso”; sempre como ato de perdão e nunca confirmação daquilo que ele é. [Um julgamento feito por aquilo que a pessoa não é, à luz do raciocínio humano, apenas é compreensível se aquilo que o réu não for, constituir sua culpa, ou em se tratando de eufemismo, expressar o que ele realmente é, por antítese. Mas Deus julga por aquilo que o homem efetivamente não é; pelo invisível; para o mundo isto é um paradoxo, um escândalo, uma loucura. Só a fidelidade de Deus e a sua misericórdia poderiam explicar tal procedimento se necessário fosse explicar um ato divino. Deus vê no pecador o filho adotivo, remido em Jesus Cristo, filiação a que ele, pecador, está livre a candidatar — se segundo os decretos eternos do próprio Deus].

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“Ele crê naquele que justifica o ímpio”. Esta sentença é a inequívoca perífrase desta outra: “Ele crê em Deus”. Esta é a justificação divina de Abraão. Abraão, tem Deus? — Não, nunca! Mas Deus o possui. E o possui na qualidade de varão sem obras (4, 5), e “independentemente de suas obras” (3, 28). E em Deus, e não em Abraão, que se fundamenta o fato de que Abraão é posse de Deus; que Deus o “declara justificado”. Todas as coisas que se basearem em Abraão constituem motivo para ira de Deus. Com sua retidão humana e sua falta de retidão perante Deus, Abraão é apenas “ímpio” (1, 18); apenas pode enquadrar-se como toda a humanidade, em o NAO divino. Porém, pela sua fé, ele toma conhecimento [toma consciência] de sua situação e desperta para a crise que, [ainda pela fé], ele sabe que vem de Deus. Dentro desta crise [sempre levado pela fé] Abraão opta pelo temor do Senhor e, dentro do “NÃO” passa a ver e a ouvir o [eterno] “SIM” de Deus. Esta, é a sua fé! Esta fé é, em si mesma, um fato, uma realidade, invisível: é um milagre! É no contexto desse milagre que Abraão toma consciência de sua situação, da crise com que se defronta, e da procedência dela; e por isso não pode gloriar-se da opção que faz, pois também ele, [o venerando Abraão], o vulto clássico da “História da Verdade”, pode gloriar-se, unicamente, na justificação que ele alcança “pelo sangue de Jesus” (3, 25) e que, manifestamente, foi vertido para o benefício de todos os homens. Não se pode entender qualquer coisa de afirmativo, de positivo, no caráter de Abraão sem ser sob a perspectiva do momento em que soar a trombeta final, com o seu grande NÃO [às coisas do mundo]. A positividade que há em Abraão está na justificação que lhe é prometida no Gênesis como figura representativa da vida de Cristo, e ele poderá gloriar-se disto: da prova da seriedade, da pureza e da suficiência daquele instante, que está acima de tudo o que houve [e haverá após]: o testemunho da ressurreição. A fé [porém] é o mesmo milagre em todos os tempos. [A tradução inglesa dá, a esse trecho, uma interpretação que não me parece estar de acordo com o que o A. diz, e tampouco me parece ser fiel ao texto bíblico, conforme comentarei mais adiante. Interpretando os dois últimos parágrafos acima, segundo a 5ª Edição alemã, parece-me que, em outras palavras, o Autor diz no texto original que Abraão poderia gloriar-se, como homem, unicamente do privilégio de ser, na História da Redenção, o primeiro marco que aponta a Jesus. E a primeira confirmação clara, precisa, definida, do “pequeno Evangelho” a boa nova con-

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tida na declaração que Deus fez à antiga serpente: “A semente da mulher ferirá a tua cabeça” — (Gên. 3, 15). A raça desenvolveu-se, e a corrupção foi geral; vieram as águas do dilúvio, houve a confusão de línguas e houve a vocação de Abraão, “Tu serás uma benção” e “em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gên. 12, 2 e 3). — Em que consiste essa benção, que as famílias todas da terra poderão usufruir? — É a purificação redentora pelo sangue do Cordeiro, que, segundo a carne, foi o renovo nascido do tronco de Jessé, que foi pai de Davi que veio da linhagem direta de Isaque filho de Abraão. Que mérito haveria sem Cristo? Que benção para as famílias da terra, sem ressurreição? É por isto que Abraão, se quisera gloriar-se, haveria de fazêlo no sangue de Jesus Cristo, de cujo advento é o primeiro marco que, todavia, não ficou imóvel a beira da estrada, onde foi implantado mas, pela fé, transportou-se ao longo da mui longa “fita carmesim” que atravessa a história, testificando a fidelidade de Deus, pela sua fé: esta fé “lhe foi imputada por justiça” e a lição que sobressai é esta: quem tiver de gloriar-se, glorie-se no Senhor” (Jer. 9, 23-24; I Cor. I,31; II Cor. 10-17). Textualmente, o original diz o seguinte: “Seu SIM, sua positividade não podem ser entendidos por si mesmos, se fizermos abstração do grande NÃO do instante da última trombeta; antes pelo contrário: a justificação de que ele pode gloriar-se, e que lhe foi atribuída no Gênesis, é “testemunha como um retrato” (uma imagem) da vida de Cristo etc. (Das “abbildende Zeugnis” des Lebens des Christus — as aspas estão no original — (pág. 99, IN FINE)). A versão inglesa diz: “Esta grande afirmação positiva não pode ser entendida isoladamente, mas somente no contexto da negação da última trombeta. Quando se afirma no livro do Gênesis que Abraão tem uma justificação de que pode gloriar-se, isto deve ser entendido como o modelo que aponta à vida de Cristo”, etc. Ora, o A. não diz que Abraão tem do que gloriar-se (antes diz o contrário) e o Gênesis também não diz isso que, segundo me parece, a versão inglesa sustenta. Vs. 6 a 8 Assim, também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa justiça sem as obras, dizendo: Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas; cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado é o homem a quem o Senhor não imputa pecado.

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“Assim, também ‘Davi’ declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa justiça”. As biografias apresentadas historicamente no Antigo Testamento são comentadas nos Salmos. O método bíblico, a maneira indireta de observar o ser humano, que se nota ali [no Antigo Testamento], não pode ser ocultado aqui [na Carta aos Romanos]. — Quem é o bem-aventurado? Acaso é quem ganha o céu e o traz consigo? Alguém que tenha merecido o céu, pelas suas obras e, nelas, o exibe? — Evidentemente não! A bem-aventurança que existe no ser humano (ou na sua obra) ou como resultado de sua ação, não é a bemaventurança a que “Davi” se refere. Também “Davi” vê a bemaventurança, o valor, a grandeza, a espiritualidade, a salvação do homem, de forma indireta. Também ele vê para além das vantagens e das carências do indivíduo psicológico, “abstraindo de suas obras” — a sua invisível inclinação para Deus a sua firme certeza através de Deus [sua segurança em Deus]. Também “Davi” vê, onde sob o aspecto psicológico só pode existir vacuidade, o preenchimento adequado, o poder e o significado da individualidade, a justiça divina que lhe é “imputada”. Também “Davi” vê a linha da morte como sendo a linha da vida. E esta vida que vem da morte, este [valor] invisível, isto que lhe é imputado, que vale a sua bem-aventurança. “Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas e cujos pecados forem cobertos. Bem-aventurado o varão a quem o Senhor não imputa pecado e em cuja boca não há engano. Enquanto calei enfraqueciam-se as minhas pernas de velhice, pelo meu clamor durante o dia todo. Pois a tua mão pesava sobre mim dia e noite, e entrei em tal miséria que a minha espinha se endureceu. Então reconheci a minha iniqüidade e não [mais] ocultei os meus pecados, e disse: a minha transgressão confessarei, por mim mesmo, ao Senhor. Então tu perdoaste a impiedade do meu coração”. (Salmo 32, 1-5 — LXX), [isto é. conforme a versão grega do Antigo Testamento — chamada Septuaginta, referindo-se aos 70 sábios (que, aliás, foram 72), enviados de Jerusalém para Alexandria, pelos meados do século III A.C., a pedido de Ptolomeu II, “Philadelphus” e que fizeram essa tradução]. Observe-se o soberbo encadeamento da narrativa! O que é da vida e da retidão do homem piedoso do Antigo Testamento? — Na realidade visível, humana, ele não encontra nem vida nem justificação, antes, a presunção de que

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ele possa gozar (das bênçãos) da vida e justificação, é o engano que deve desaparecer de seus lábios. Ele quer e tenta abafar seus pecados, sua iniqüidade e sua transgressão, que são justamente o contraste [o oposto, a antítese] de sua piedade e de tudo o que esta piedade testifica. Ele quer fazer calar a impiedade [gritante] de seu coração (que é a inevitável resultante de toda divinização do homem, [do culto que o homem presta a si mesmo] ). [Com seu lamento constante] ele quer apagar o pecado; quer perdoar-se a si mesmo [quer merecer o perdão e quer justificar-se]; na plenitude de sua experiência [e na sua vida amplamente piedosa] ele mesmo quer perdoar o seu pecado. [Quer ser Deus e Senhor; quer tomar o seu julgamento em suas próprias mãos; flagelando-se, quer justificar-se; em se acusando, quer merecer perdão; quer fazer valer a sua conduta geral de “servo bom e fiel” para com ela, agora, pagar e apagar o pecado que lhe pesa com o peso da própria mão divina e lhe angustia o coração]. É nessa tentativa que [ele sente que] precisa morrer. [Somente morrendo, somente abdicando de si mesmo, somente reconhecendo o seu nenhum valor, é que poderá renascer, viver, ter paz com Deus, com o próximo e consigo mesmo!]. Comprimido entre a verdade divina e a fraude de seu coração clama, em dores corporais, por todo o dia. (Clama ele mesmo, de seu sofrimento pessoal sob o peso da mão de Deus que já não lhe permite viver mais; clama e geme a sua alma, criada por Deus [para ser pura e livrei e que já não pode subsistir sob o guante da sua mentira. Ele [o Salmista] geme na angústia do emudecido Zacarias e do cegado Saulo. E esse aiar se prolonga e persiste até que ele se apresente ao cativeiro e, como cativo de Deus, abra mão de toda pretensa glória. [Até que abdique de todos os seus supostos méritos]. Sofre e geme até se convencer que a justiça divina da qual queria apoderar-se, é impossível aos homens; que essa justiça é um inexorável NÃO a toda retidão humana, [que o homem nada é e nada tem perante Deus], que a justiça divina é o julgamento a que inevitavelmente estará sujeito todo o erro, [todo o engano, todo o ludíbrio, todo o engodo] de caráter religioso. [O pecador que assim suspira e chora percebe, com tremor e temor, a linha da extinção de sua vida, em Deus; ele reconhece e já não esconde o seu pecado; e confessa: “... então tu me perdoaste”!]. — Então respondeu-lhe o Senhor desde um redemoinho. E qual é esta resposta? Acaso aponta ela a um degrau mais elevado no caminho da vida inteira?

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— Não; mas é a quebra; a interrupção, o obstáculo intransponível, o cessamento abrupto do caminho que vinha sendo seguido. É o começo de uma senda inteiramente nova; é o caminho que se abre para o pecador angustiado, ao lado de Deus. Não se trata de um incidente psicológico, mas do instante da vida que encerra, em sua nova qualificação [o passado e o futuro], o anterior e o posterior. Não que os ais do justo tivessem passado mas, agora, revela-se que ele sofre por amor a Deus a quem clama; todavia, o seu clamor, o seu gemer, o seu aiar, são agora os brados de dor de um justo. Não é mais o clamor da iniqüidade e do pecado, pois estes estão perdoados, estão cobertos, não foram imputados mas suportados [sofridos, carregados] por Deus, são (agora) esperança. [Esperança de perdão, esperança de renovo, esperança de graça, de paz de filiação, de restauração plena perante Deus]. Há, aqui, novamente o milagre que, na qualidade de fé, torna-se visível, apenas, além da realidade visível do mundo; É a afirmação do SIM divino, contido no seu NÃO. Este relacionamento do homem com Deus não pode ser objeto [nem corre o risco] de novo erro, novo engano, ou nova ilusão. Ele está definitivamente protegido contra o risco de ser humanizado (materializado e atribuído ao valor alcançável pelos esforços e méritos humanos) porque a vida que ele cria é a que procede da morte; (da renúncia, da anulação, do desaparecimento do homem material]; sempre [é unicamente] pela morte. [E por ser fundamentado exclusivamente em Jesus e na sua ressurreição, — para onde leva a cabal renúncia humana — este novo relacionamento entre o homem e Deus elimina qualquer possibilidade de nova jactância ou de alegações de retidão humana]. Quem foi considerado “bem-aventurado” pelo “Salmista”, não é, na verdade, o presente homem, sua vida e sua justiça. Não é o que nele se vê [ou se poderia ver], mas trata-se do homem interior; do homem invisível, do homem que foi chamado à existência [tirado da morte de seu pecado] pela palavra criadora de Deus [pelo seu “verbo”, que é Jesus, o Cristo]. Trata-se do homem que nada é e que, no seu constante morrer, se renova de dia a dia. O milagre da imputação da justiça divina e da não imputação da transgressão humana que somente se torna visível na visibilidade da morte, é o paradoxo da fé pelo qual o pecador piedoso é considerado “bem-aventurado”. Portanto, o que subsiste, o que vale, com respeito a Abraão vale também para o vulto anônimo figurado no Salmo 32: ele vive da ressurreição; ele é sua

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testemunha. [Entendemos, e me parece com boas razões, que o Salmista falava de sua experiência pessoal, pelo crime de haver feito matar Urias para encobrir o seu próprio erro; todavia o A. parece não atribuir o Salmo 32 a Davi, cujo nome põe entre aspas quando se refere a ele como o personagem do drama. Seja, pois, anônimo, o vulto: a lição permanece a mesma.]. O Salmista clama e proclama o seu perecimento sob a pesada mão de Deus e, somente depois de sucumbir, de renunciar, e de confessar, anuncia, redivivo, o perdão que sentiu e do qual goza depois de haver confessado a sua culpa sem mais tentar justificar-se pelo “crédito” que humanamente lhe poderia ser atribuído pela vida pregressa [notavelmente reta, em se tratando de Davi]. Esse vulto [semelhantemente ao de Abraão] com toda sua religiosidade, sem Cristo, sequer poderia ser entendido. Todavia, ele é o retrato da vida de Cristo [de sua vinda ao mundo e sua obra de redenção] que rompe ao longo dos tempos. Comentários: 4, 1-8 1. Na longa comparação que o A. faz entre Abraão e Cristo, ele demonstra que o verdadeiro valor de Abraão está em Cristo Jesus, que sustenta a sua fé e confirma a sua glória mundana. É pela realidade da ressurreição de Jesus que Abraão foi levantado qual marco na história do mundo, balizando a pista que leva à redenção. 2. Cristo não anula o vulto de Abraão, mas o fixa e situa em sua verdadeira grandeza, contra o pano de fundo da história; semelhantemente, nenhum outro vulto da história sacra e secular é eclipsado por Cristo pois ele não é uma grandeza comparável às grandezas humanas, antes são elas analisadas à luz da luz que vem da cruz, e nessa luz são reduzidas a um denominador comum que a todos irmana, homogeniza, e revela a medida real das respectivas grandezas perante Deus e perante o mundo. 3. Assim como só um milagre pode explicar a “parada do sol” em Gibeão, a separação das águas no mar Vermelho, a saída de Lázaro do túmulo, assim também só um milagre explica a fé. No entanto “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das que não se vêem” e o seu poder criador é confirmado dia a dia pelas obras de nossas mãos. Este é o milagre que acompanha o homem em todos os tempos de sua história terrena. O justo viverá pela fé!

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4. O A. destaca um traço da unidade da Bíblia, de capa a capa, nem sempre lembrado pelos crentes: a uniformidade de critério bíblico no julgamento do homem; este julgamento é sempre indireto; é feito e baseado, naquilo que o homem não é, mas pelo que anseia ser; por sua esperança, seu temor e seu tremor e... novamente, sua fé. A fidelidade de Deus acolhe a fé que habita no homem por que Deus se agrada dela, que é obra divina! - A FÉ É MILAGRE -



É

COMEÇO (4, 9-12)

V. 9 (primeira parte) Vem, pois, esta bem-aventurança, exclusivamente entre os circuncisos, ou também sobre os incircuncisos? É na origem divina da fé que encontramos a justificação que ela proporciona e a explicação de sua peculiaridade: ser ela algo novo, diferente, que se contrapõe a toda realidade religiosa. Descobrimos, na fé, a verdade de toda religião (3, 21 e 27-30), todavia nenhures é ela idêntica às realidades palpáveis, psicológicas e históricas das experiências religiosas. A fé jamais se mescla, interfere, ou se confunde com o “desenvolvimento contínuo do ser humano, de suas possibilidades e suas obras; nem se transforma em caminho, ou meio, no correr da vida material, na vida eclesiástica, na religião, ou mesmo na história da redenção. Deus permanece livre, inteiramente livre [das injunções ou exigências] da lei. Deus não reage em termos da impressão que os homens têm ou possam ter da revelação; esses fatos [lei e impressão humana] são testemunhas de sua fidelidade. Poderemos, acaso, provar com o que agora conhecemos sobre a fé, que não anulamos a lei, antes a estabelecemos? (3, 31) Poderemos provar que honramos o verdadeiro sentido de toda a proclamação histórica? A pergunta deve ser apresentada na seguinte forma: Acaso tem a religião, em sua realidade histórica, reivindicado para si o privilégio de ser ela a condição essencial para a existência de um relacionamento positivo entre Deus e os homens? Acaso a religião se considera como fundamento de toda fundamentação divina do ser humano? Será que o único lugar onde se encontre a revelação divina é a área religiosa e eclesiástica que consideramos, em um sentido mais amplo, como sendo a expressão histórico-espiritual dessa revelação?

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Acaso a bem-aventurança dos piedosos proclamada através da lei (4, 68) é destinada primeiramente ao circunciso Abraão, Abraão o judeu, Abraão o conhecedor e cultor da mais elevada religião, a Abraão, o pai do histórico povo irmanado [entre si pela promessa divinal? Ou não estará, contrariamente, implícito na religião que ela precisa e só pode ser compreendida em sua realidade histórica, como o relacionamento que houve originalmente entre Deus e os homens? Não reconhece a própria religião que este relacionamento é livre, sem peias, desde a sua pura origem? Não olha a religião para adiante, para a fundamentação do homem que, por assim dizer, ocorre alem da própria realidade religiosa? E acaso a religião não sabe que o lugar da possível revelação pode ser qualquer (em imprevisível extensão) não sendo, portanto, restrito aos ambientes que, aparentemente, “lhe pertencem”? Acaso a bem-aventurança de que a lei fala, não está endereçada ao Abraão incircunciso, a Abraão, o gentio, sem levar em conta a sua religião, a sua convicção teocrática, e a sua posição na história da Igreja e na história da redenção? Não foi Abraão considerado bem-aventurado, na simplicidade de sua humanidade e na sua naturalidade de criatura? E não nos é forçoso concluir que a linha da vida que demarca o relacionamento do homem com Deus, precisa ser compreendida como sendo também a linha da morte da religião? Não resulta, pois, evidente que a fé e a sua justiça constituem também o início [a origem] de todo o conjunto religioso — eclesiástico, seu modo de fazer, ter e agir? Vs. 9 e 10 Lemos: a fé foi imputada como justiça a Abraão. Como entendemos este “imputada”? Ao já circunciso, ou ao ainda incircunciso? Manifestadamente, não ao já circunciso, porém ao ainda incircunciso. [Comparar os Vs. 9 e 10, na versão de Almeida que se expressa de forma ligeiramente diferente e idêntica à das demais versões mencionadas neste trabalho. Todavia, a maneira de Barth traduzir parece-me bastante expressiva]. “Lemos: A fé foi imputada como justiça a Abraão”. É a lei e a história da redenção que chamam nossa atenção à importância extraordinária dessa “imputação” (4, 3) e, observando-se este seu significado, podemos ver com clareza que a “imputação” não resultou de alguma peculiaridade visível em Abraão ou de algum ato seu ou de decisão sua, porém, a justificação deu-se por determinação de ordem inteiramente diversa que nada teve a ver com a sua “circuncisão”.

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Ora a circuncisão não foi reconhecida por Deus como meritória de qualquer atribuição de justificação e ela não mereceu um parecer divino, especial. [A versão inglesa diz nem é a circuncisão que faz (de Abraão) o que ele é”]. A sua circuncisão não é um milagre, porém um acessório visível, na aparência do mundo religioso. Enquanto essa justificação estiver representada e encerrada na circuncisão ela é justificação religiosa [porém somente religiosa] e nada tem a ver com a justificação que lhe foi atribuída, imputada, por Deus e da qual lemos no Gênesis. “Manifestamente não ao já circunciso, porém ao ainda incircunciso”, que a fé foi imputada por justiça. A justificação pela fé somente pode ser aceita como sendo imputada a Abraão ainda incircunciso, o que aliás, está de acordo com a cronologia histórica. [A graça da imputação de justiça pela fé está narrada em Gên. 15, 6, e o concerto da circuncisão aparece no capítulo 17, verso 10] e, segundo a lei, a justificação seria pela circuncisão. Quando Abraão foi chamado [vocacionado] por Deus, ele não era, ainda, nem piedoso, nem patriarca, nem teocrata. O vocacionamento dos homens por Deus, precede aos contrastes [das situações humanas], entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade e a irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja, e essa precedência se verifica, não raro, até cronologicamente. [Deus chama o homem independentemente, e mesmo antes, de ele haver cumprido ou se submetido às formalidades religiosas (batismo, profissão de fé, etc.)]. A fé que encontramos em Abraão [e que lhe foi imputada por justiça] ainda não é religião nem o fenômeno histórico espiritual da crença [ou da conversão]. A fé é o fator inicial [e a condição preparatória, preliminar] das manifestações [exteriores que tornam públicos os frutos da fé]; ela é a origem comum de todos eles, porém não é nem religiosa nem irreligiosa; nem santa, nem profana, contudo, é sempre ambas essas coisas, tem as duas posições, simultaneamente. A vocação de Abraão e a sua fé, são, no Gênesis, puro início, começo; coisa preestabelecida. Do ponto de vista histórico-religioso, Abraão ainda não é um judeu, porém um gentio; para a história da redenção, ele é um ímpio, (4, 5), um morto (5, 12): ainda não é o preclaro pai do histórico povo de Deus que mais tarde veio a ser. O mundo é mundo e nele está Abraão, também. Parece-nos, pois, que agora podemos compreender o que significa a referida “imputação”. Se a justificação religiosa que Abraão poderia ter pela circuncisão está fora de cogitação, não só cronologicamente mas também pelas

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circunstâncias em que ele se encontra, então ele não tem com que velar sua nudez perante o Criador, senão com o que estiver além do fenômeno religioso, o que só Deus vê e tem valor perante ele porque vem dele: a fé. É-lhe atribuído, imputado, (4, 5) somente aquilo que tem: a sua fé; é por ela que Abraão ouve o que nenhum ouvido ouviu. Mas se o texto do Gênesis evidencia que a justificação vem apenas pelo que é invisível em Abraão, pela sua fé, então é também evidente que ela emana de Deus, que é obra divina [que é de sua essência, de seu ser e de sua propriedade], e que nada tem a ver com o ambiente estreito e fechado do mundo [e com o que dele procede ou nele se faz]; portanto, também nada tem a ver com “religião” pois também esta, em sua realidade histórica, nem é premissa nem é condição essencial para um relacionamento positivo entre Deus e os homens. Este relacionamento parte de Deus — que é a sua origem, [seu primeiro movimento, motivado exclusivamente pela fidelidade divina que, encontrando a fé] é a premissa da realidade histórica da religião (e também do seu oposto!); [Deus é quem convida, vocaciona, chama: “Vinde a mim” É em resposta a esse convite que o homem — independentemente das luzes que tiver em seu coração (ou seu intelecto) sem condicionamentos de instrução, cultura, ignorância, riqueza, pobreza, filosofia, religião — chega à religião, aceitando-a, ou a rejeita como incrédulo, ateu]. Vale, pois, a bem-aventurança do homem piedoso (4, 4—8) e, na verdade, também a do impiedoso (4, 9) porque a bem-aventurança vem pela fé e não pela crença [ou, segundo a tradução inglesa “a bem-aventurança vem pela fé, e não pela ortodoxia”]. Nada, se não a fé [e somente a fé] é imputado por Deus como justiça, e isto, tanto ao homem piedoso como ao ímpio. Vs. 11 e 12 E ele recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça de sua fé, quando ainda estava na incircuncisão, para que fosse pai de todos os que crêem, estando ainda na incircuncisão, afim de que isto, também a eles, seja imputado por justiça; e para que fosse também a eles, circuncisão enquanto estes, não somente como descendentes do povo da circuncisão, também andarem segundo as pisadas da fé que teve nosso pai Abraão, na incircuncisão. “Recebeu o sinal da circuncisão como um selo”. Sinal, testemunho, imagem, lembrança, indicação, são a manifestação histórica de toda impressão de revelação, de toda referência a ela, que está sempre além de toda realidade [materialidade e materialização] da própria história.

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Abraão também participa deste mundo de aparências — a circuncisão, a religião, a igreja — que retratam a revelação. A circuncisão teve lugar e foi necessária, para lembrar fisicamente a Israel, de sua eleição [de sua escolha para ser nação sacerdotal] segundo decisão divina; para lembrá-lo de que foi purificado, santificado [separado] como povo de sua escolha para ser por ele enviado [às nações do mundo para entregar a mensagem da fidelidade de Deus]. Religião é o inevitável reflexo espiritual (ou a experiência) do milagre da fé, que se realiza na alma. Igreja é o incontornável conteúdo histórico da obra de Deus para com os homens, sua condução, sua canalização, obra essa que jamais, em si e por si só, será parte da história. [Mas há de figurar na história através das obras dos servos do Senhor, e de vultos semelhantes a Abraão, pois também da História, é Deus e Senhor]. A forma deste conteúdo histórico — espiritual [que a Igreja representa], a característica divina que lhe dá sentido e completa, está sempre em correspondência com algo diferente que vem do além [e para ele aponta]. [A religião e a Igreja são (ou devem ser) um sinal um testemunho, uma indicação da graça divina, manifesta na redenção]. Se isto for esquecido; se a Igreja e a religião não conservarem as suas vistas voltadas humildemente para o paradigma do além, correm o risco de, [na ânsia de se sobrepujarem a si mesmas, serem cada vez maiores, e estarem mais e mais próximas de Deus], projetarem-se às alturas sem atingirem o seu objetivo [de santificação]. Serão qual imensa escadaria formada por soberbos lances sucessivos, terminando nas alturas, em céu aberto, sem dar acesso a lugar algum [antes abrindo—se para o abismo]. Essa atitude [o esquecimento de conservar os olhos voltados para o além] pode acarretar uma tão imensa petrificação e mumificação da verdade divina, como a dos piramidais túmulos do velho Egito. [Todavia, a verdadeira religião e a Igreja fiel] são sinetes inconfundíveis que trazem à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus, fundamento que foi prometido e promessa que foi reiterada no correr da historia. Nessa fundamentação há revogação e redenção segundo a fidelidade de Deus, que se renova diuturnamente. Tanto a Igreja como a religião, ainda como sinetes e símbolos, e exatamente por serem tais, apontam para a efetivação do pacto entre Deus e os homens, que ainda vigora, que ainda não foi cumprido e pelo qual se espera, pois, uma coisa é a firmação e a ratificação de um contrato e outra o seu objetivo, o seu cumprimento, a sua execução.

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Deus determinou a existência destes símbolos [religião e igreja] de sua resolução [de redimir o gênero humano] tomada desde a mais remota origem e a finalidade deles também perdurará até o cumprimento do propósito divino. Eles estão entre o Alfa e o Ômega; entre o princípio e o fim. É somente em relação ao “princípio” e ao “fim” que [a igreja e a religião] são o que devem ser: Sinal e Testemunho. Foi também neste sentido que Abraão recebeu o sinal da circuncisão; o sentido do passado e do futuro; e passou a participar do mundo eclesiástico-religioso, visível. “Como selo da justiça de sua fé, quando estava, ainda, na incircuncisão”. Abraão não recebeu o sinal de circuncisão como o amigo de Deus, separado dos gentios segundo a circuncisão, porém como o crente ainda incircunciso. Ele não adquire personalidade especial e a condição de ser chamado por Deus para representar a humanidade na aliança que Deus propõe, como pessoa da Igreja, como um intermediário com prerrogativas eclesiásticas, porém, a justiça lhe foi imputada quando ainda estava fora da Igreja; quando não participava dela. A fé que lhe foi imputada por justiça é a da incircuncisão; todavia, essa fé tem a circuncisão como seu selo, seu sinete, seu símbolo, tanto para o passado como para o futuro. [Abraão creu ainda antes de estar ligado à expressão religiosa de sua fé através de experiência espiritual pessoal e por atos oficiais (públicos) simbolizadores dessa fé. Semelhante crença foi-lhe imputada por justiça o que se manifestou publicamente (primeiramente), agindo retroativamente confirmando no simbolismo do sacramento a fé que existiu primeiro e, (em seguida) sobre o futuro, como sinal, testemunho e lembrete perene dessa fé]. “Para que fosse o pai de todos os que crêem, estando ainda na incircuncisão”. A significação da circuncisão de Abraão não está nas características ou qualidades intrínsecas do ato mas no relacionamento que ele indica; a circuncisão não tem valor em si, se não o de testemunho, cujo sentido eterno se destaca na linha da morte, onde também se revela a transitoriedade do mundo religioso. Circuncisão, religião e igreja são sinais visíveis e testemunhas, não por seu conteúdo positivo porém pelo seu teor negativo, isto é, na medida que forem compreendidos e confirmados na renúncia, no perecer incessante, na anulação do homem perante Deus, que efetivamente simbolizam. Abraão não necessita da circuncisão para ser circunciso, nem da religião para ser piedoso ou da segregação para ser selecionado; não precisa da igreja para portar a sua atitude teocrática. Sua preeminência histórico-espiritual não se destina a ser modelo (padrão ou protótipo) de tradicionalismo. Porém, tudo quanto é mero sinal, e só pode ser sinal, deve testemunhar daquilo que,

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desde a eternidade, antecede o símbolo [e a que ele agora se refere]; e de maneira igual, deve testificar, também eternamente, tudo quanto vier após ele, e que lhe disser respeito. Esse sinal-símbolo [a igreja, a religião], em sua propriedade temporal, finita, em sua diminuição, em sua retração, na sua morte, deve falar da eternidade que existe antes e após todas as coisas temporais; e deve falar a todos os filhos de Abraão [os crentes] como falou outrora a Abraão [o pai dos crentes]. A santificação de todos os santos, é o serviço que prestam ao que é eternamente santo; é a mão de João Batista apontando para além da linha da morte, conforme pintada por Gruenewald, [O A. refere-se ao quadro da crucificação pintado por Matias Gruenewald no século XVI e que se encontra hoje no museu de Colmar, na Alsácia — (Apud trad. Inglesa)]. O significado da circuncisão, da religião e [da adesão à igreja], do “eclesiasticismo” de Abraão, é indireto e não convida à circuncisão [não convida à participação da religião propriamente dita] mas convida à fé. Observe-se, não a religião de Abraão porém, a invisível justiça que lhe foi imputada. Ele não foi chamado para o judaísmo, porém para curvar-se ante o Deus inescrutável: “Em teu nome serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz”. (Gen. 22, 18). O que está velado, na circuncisão de Abraão, é também o que a torna eficaz e lhe dá destinação: a fé do incircunciso. A fé não é a porta que traz a gentilidade ao judaísmo ou que dê, aos filhos do mundo, o acesso à piedade; porém é o sinal, é a indicação do portal pelo qual, tanto judeus como gentios, vencidas e anuladas todas as diferenças [de raça], históricas e espirituais, devem passar para entrar no reino de Deus. [Ora, (segundo o A. e biblicamente) a circuncisão é o símbolo do ingresso na religião, e na Igreja. É o sacramento do batismo, e o ato da profissão de fé. É a “confirmação” das igrejas luteranas. Portanto, parafraseando o A. e, sem falseálo, podemos licitamente escrever: “A religião, o ingresso na Igreja, é o caminho que a humanidade deve seguir, indistintamente, esquecendo divergências e preconceitos, para tomar posse do reino dos céus. “Venha a nós o teu Reino”!]. A circuncisão não é o início [no caminho da santificação] porém é testemunho desse início; é uma imposição, uma conseqüência da própria fé e sua promessa: a fé que é imputada por justiça e que é justificação perante Deus e de Deus. Enquanto a circuncisão, a religião e a Igreja servirem a este fim [ao fim de testemunhar o início da fé] e guardarem no seu relacionamento com Deus a humildade que este fim impõe, enquanto humildemente reconhecerem sua

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4, 11-12

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mundanalidade [inerente], enquanto tiverem [bem viva] a consciência de que pertencem a este mundo, enquanto nenhuma outra pretensão tiverem se não a de serem expressões da “fé do incircunciso”, têm elas condições [a se candidatarem] à justificação divina nessa sua instrumentalidade, e de participarem da significação e da dignidade da eterna origem e fim de todas as coisas; [do Alfa e do Ômega]. Todavia, se a religião e a Igreja pretenderem ser mais do que a simples “fé do incircunciso”; se a arrogância religiosa [ou o orgulho eclesiástico] quiser elevar-se à categoria de um valor real (que jamais lhe será atribuível) então (deixarão de ser símbolos;) serão inqualificáveis grandezas humanas [consideradas como sendo vis] dentro do próprio mundo que desejarem superar. Quando se diz que Abraão “é também o pai dos circuncisos” ele o é, enquanto estes também trilharem a senda da fé sem circuncisão, que nosso pai Abraão trilhou. Se a circuncisão, a entrada para a igreja, a aceitação da religião fossem erigidas em valores reais [e meritórios dignos da justificação divina] perante Deus, então seria necessário que o judeu primeiramente se tornasse gentio [para então, conscientemente ingressar no judaísmo]; o homem já religioso deveria primeiramente abandonar sua religiosidade e o homem de igreja deveria mundanalizar-se. Todavia, não é isso [o que Deus pede]. A destituição da gentilidade [a conversão ao judaísmo] não é [o Alfa], o início [da carreira espiritual], como também não o é a vantagem concedida ao judeu. Neste terreno “menos” [ou um pouco menos] vale tão pouco quanto “mais” [ou um pouco mais]. O que precisa ficar claro é que toda a fé é, fundamentalmente, a “fé da incircuncisão”, e isto, tanto para o gentio, desprovido de qualquer conhecimento religioso [o homem de fora da Igreja], como para o judeu [o homem de igreja] que tem a religião. Esta fé se instala, independentemente do conhecimento e da experiência religiosa, como o puro início [o Alfa no caminho do relacionamento do homem com Deus]. O mundo judeu, religioso e eclesiástico é também parte do vasto mundo ao qual se manifesta [e se dirige] a revelação e a promessa de Deus e que está, todo ele, envolto no manto protetor da misericórdia divina. Também os circuncisos são filhos de Abraão, porém não por força de sua ascendência, não por força da tradição milenar do povo da circuncisão, [ou pela tradição da Igreja e da religião], porém pela força da fé, que se apóia na “tradição” e na continuidade que vem desde o além; por força de haver um só Deus; por força de ser ele o Deus tanto dos gentios como dos judeus (3, 29-30).

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4, 12

[Judeus e gentios] são recebidos por Deus como companheiros de peregrinação ao longo dos caminhos da fé, sem levar em conta a circuncisão, conforme também não foi considerado o estado (a situação) de Abraão, quando foi chamado. Deus vai ao encontro do homem e o confirma sem cogitar de seu maior ou menor acervo religioso [ou de qualquer outra realidade do mundo], para que o homem saiba que deve dirigir-se a Deus e a Deus somente [sem nada poder esperar de sua religião ou de seus predicados pessoais]. A peregrinação [ao longo dos caminhos da fé] é uma constante autonegação; é plena de desilusões e caracterizada por incansáveis e inabordáveis privações, abdicações, renúncias e mortificações. É um contínuo recomeçar, partindo sempre de novo da nua neutralidade e indiferença do mundo, na sua absoluta pobreza e dubiedade. Deus é encontrado, não em ambiente superior ao mundo, numa esfera elevada, apropriada, religiosa, mas diretamente nesse mundo [miserável, frio, indiferente, pecaminoso e duvidoso, por onde o peregrino da fé terá que vagar, partindo sempre da “estaca zero”]. A verdadeira culminância religiosa nega-se a si mesma e se solidariza de maneira absoluta com o mundo [embora a religião saiba que ele é indigno], inferior (3, 22-23). [A versão inglesa escreve: “O verdadeiro pináculo da realização religiosa é atingido quando os homens são empurrados para baixo, para a companhia dos que jazem nas profundezas]. Fé genuína é a de Abraão, “sem circuncisão”. Genuínos filhos de Abraão são aqueles suscitados sempre de novo, das pedras (Mat. 3, 9). Onde isto for esquecido, os primeiros serão os últimos e aqueles que [no mundo] sempre são os últimos, passarão a ser os primeiros. Estamos novamente ante o fato de que a história da Redenção põe em dúvida os próprios “heróis da lei”, dúvida essa sobre a qual a própria lei silencia, pois a única resposta que se lhe pode dar é Cristo, em sua ressurreição. A confirmação do herói da lei [se dá quando ele se converte em herói da fé] e o SIM com que é galardoado é de ordem diferente do SIM dos homens, e só pode ser entendido através da morte do Filho do Homem. Comentários: 4,9-12 1. Ao analisar a natureza da fé, diz o A. que ela não é, nem religiosa, nem santa nem profana; mas é ambas as coisas. Para a intelecção certa do texto, “profano” deve ser entendido como “oposto a religião”.

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4, 9-12

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Assim, as duas comparações “religioso e irreligioso”; “santo e profano” são quase sinônimas. O surgimento da fé não se dá, obrigatoriamente, dentro ou fora do ambiente religioso nem implica, essa fé, em conseqüente devoção ou sua negação. A fé simplesmente crê, e crendo é o começo que pode levar à aceitação de determinado caminho, à adoção de uma religião, como pode também levar ao abandono de um caminho que esteja sendo trilhado e à rejeição de uma religião até então professada. A fé embora contendo em seu bojo ambas as alternativas, não é volúvel, não é incerta mas absolutamente firme (de outra forma não seria fé), e por isso seguirá o caminho que a fonte divina determinar. Fora disso a fé deixa de ser fé para ser superstição, crendice, carolice ou mania. 2. Nesta seção do Capítulo 4, o A. refere-se abundantemente à igreja e, possivelmente, venham daí (pelo menos em parte) as acusações que lhe são feitas, de que ele ensina e prega a sua extinção. Há os que pretendem (ver “AB EXTRA” após os prefácios) que Barth ao “combater” a existência da Igreja, pavimenta a avenida que os marxistas hão de percorrer (ou que percorrem, mais recentemente), servindo-se das idéias do A. para atrair, envolver e ludibriar os cristãos mediante o estratagema de, conservando primeiramente a fé, combater o culto e — cessado o culto, exterminar a fé. Seria (ou é segundo esses críticos) uma estratégia sorrateira e progressiva adotada pelos marxistizantes para combater o “ópio do povo” ataque esse a que os protestantes estariam mais expostos, talvez por sua liturgia não estar impregnada do misticismo, do mistério, do subjetivismo que domina o culto católico (romano e ortodoxo). À luz do que, até aqui, o A. disse, essa crítica não é procedente pois ele defende com muito vigor a tese de que a religião verdadeira é o símbolo, o sinete que testifica, entre o Alfa e o Ômega, o milagre do surgimento da fé; diz que a igreja, se for fiel, e enquanto for fiel, participará da dignidade e da glória da origem e do fim eterno de todas as coisas. Que igreja será essa? E novamente o A. que o diz: é aquela que não se esquecer que a fé é graça divina; que a justificação é pela fé; é aquela que não pretender ser nada mais que testemunha do milagre da fé; que humildemente reconhecer sua contingência humana, sem nenhuma outra intenção ou pretensão a ser se não simples novo marco, humano e transitório, do milagre da fé. É a igreja que não pretende possuir a palavra mágica que abre as portas do céu; que não pretende ser depositária da graça divina, que não diz, nem sequer pensa, que fora dela não há salvação.

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4, 13

É a Igreja edificada por Cristo sobre a pedra fundamental que os construtores rejeitaram (Jesus, o ressurrecto) contra a qual não prevalecerão as portas do inferno. Mas ainda esta igreja, como parte do mundo, é transitória; naquilo que ela representa obra de mãos humanas ela desaparecerá junto com os céus e a terra, como também desaparecerá, ao soar da última trombeta, o Livro dos Livros; permanecerá, porém, a Igreja Santa e a Palavra Eterna de Deus — o Verbo que se fez carne, e habitou entre nós — para que tivéssemos acesso ao trono da graça de Deus. Então, tudo estará cumprido; não mais existirão lágrimas, nem pranto, nem gemidos, nem dor. O próprio Senhor, o Deus agora ainda desconhecido, enxugará toda lágrima... (Apoc. Caps. 7 e 21). Então a Igreja terá cumprido a sua missão. E a “outra” igreja, aquela que se arvorar em Senhora, em Ídolo, em Deus? Ainda segundo o A. “será inqualificável grandeza humana”. Acaso, está este ensino do A. em desacordo com a Palavra de Deus? Acaso pavimenta ele o caminho da materialização e do ateísmo? Ou, não é justamente o contrário, pois, combatendo a materialização da Igreja impede que o materialismo a invada? (E não será, acaso, por isso, por serem as igrejas católicas (romana e ortodoxa) as que de longe se destacam das “irmãs separadas” na prática de substituir Deus pelos seus fiéis e até por elas mesmas — que os povos por elas dominados foram e são seara promissora e fértil na mão dos marxistas materializantes?)



É

CRIAÇÃO (4, 13-15(A))

V. 13 Porque a promessa de que haveria de ser herdeiro do mundo não foi feita a Abraão, ou à sua posteridade, por força da lei mas por força da Justiça da fé. “A promessa de herdar o mundo”, é a renovação do mandamento original: encher e dominar a terra. Este é o tema e o conteúdo da vida de Abraão: a permissão para dominar sobre tudo o que Deus fez muito bem. Ou, expressando-o de forma inversa: a perspectiva da bênção de todas as futuras gerações da terra com a bênção de que Abraão já goza, antecipadamente, com vistas ao nascimento de Isaque, seu filho “ultra” temporão e, após ele, Jacó (Israel) até o Messias, que foi o advento do verdadeiro varão dos céus, e por conseguinte, a verdadeira humanidade. Como destinatário desta promessa, Abraão é o vulto clássico [o protótipo] da lei (Gen. 18, 17-19).

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4, 13

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Que Abraão recebeu essa promessa é evidente; e é por isso que Israel o honra e porfia por ser sua descendência; quer estar de seu lado, e gostaria de estar em comunhão espiritual com ele, [participando do mesmo espírito]. A peculiaridade de Israel consiste na sua disposição e sua ânsia de participar da promessa que Abraão recebeu; a sua história é a história das vicissitudes pelas quais essa disposição passou e, a sua esperança é a de retornar sempre a essa promessa, a despeito dos descaminhos da história. Não lhe foi prometido que seria herdeiro de um mundo abençoado por Deus e que seria o intermediário da bênção divina a esse mundo? E esta promessa, acaso, não se estende a Israel, que não só a recebeu como a recebe e a receberá sempre de novo? Sim; pode bem ser, mas de que forma e até que ponto? Por “força da lei” ou por força da “justiça pela fé”? O povo de Israel tornou-se depositário dessa promessa, segundo a lei, através de uma série histórica de revelações semelhantes à de Abraão e, também, na sua qualidade de povo da aliança de Deus. Cabe, porém, a pergunta se esses acontecimentos históricos, e essa situação, são mais do que acontecimentos e situações históricas, isto é, se eles representam também a atualidade dessa promessa, seu poder, e a efetivação desse depósito. Será que a manifesta disposição e o notável anseio que, de geração em geração Israel tem em renovar [e guardar] as características da conduta de Abraão são, em si, fundamentação suficiente para justificar a sua posição especial entre as nações do mundo? Serão, a história dessa disposição e a conhecida tradição do povo de Israel, como tais, o princípio pelo qual a história de Israel se transforma na história da redenção? Serão, a proclamada esperança de Israel e a persistência com a qual esse povo se apropria, sempre de novo, dos direitos de descendentes de Abraão, por si mesmos, suficientes para a formação e a fundamentação de um núcleo de “filhos” de Abraão? Será que Israel entende corretamente a sua lei quando, por força do que de fato está explícito e implícito nessa lei, na história, e nas esperanças do povo, ele pretende fazer jus às promessas que essa conjuntura contém? Se negarmos esse privilégio a Israel, não estaremos, simplesmente, deixando de estabelecer [de confirmar] a lei (3, 31) atribuindo-lhe um sentido de testemunha, referência, indicação, e não o sentido de poder, de realidade, de constante atualidade?

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4, 13

Os acontecimento e as situações históricas, embora não sejam mais que história, acaso não apontam, para além de sua historicidade, a um poder original, totalmente diverso? Não se dará o caso de que tudo o que pudermos dizer de Abraão e de seus filhos, não venha diretamente deles mas seja o reflexo de uma luz que vem de outra parte? Não é a história de Israel a “História da Redenção” justamente porque delimita, configura, os eventos que não são históricos e constitui a resposta audível da inaudível voz do apelo divino? E não é justamente esta contingência, esta realidade, que gera a esperança de Israel? Sim, e é desta forma [e segundo esta interpretação], que se honra, que se confirma, que se estabelece a lei. Este é o sentido da lei: que pela justiça de Deus, mediante a justificação pela fé, independentemente da lei, os filhos de Abraão são chamados à existência e confirmados. [Esta é a posição justa para apreciarmos a pretensão de Israel: temos que ver na sua história, na sua tradição e na sua esperança o testemunho audível, o marco visível da graça divina, graça que justifica pela fé. Temos que ver na conjuntura de Israel o sinete da fidelidade de Deus que dá vida ao justo, que o for segundo a fé. Nada mais compete a nós judeus ou gentios. Outro pode ser, e efetivamente é, o julgamento divino sobre o mesmo assunto, porquanto Deus julga segundo o secreto de cada coração. Na realidade, nós — os homens — não julgamos, pois não nos compete julgar mas nos situarmos em cada contingência segundo as luzes de nosso entendimento é a inclinação de nosso coração; é sob este ponto de vista que vemos na longa história dos filhos de Abraão, segundo a raça, a poderosa mão de Deus. Todavia, aos descendentes carnais de Abraão Deus julgará segundo o que houver no coração de cada um e conforme lhe aprouver ante as contingências e vicissitudes históricas em que as gerações e os indivíduos estiverem (ou houverem estado) através dos tempos, pois grande e amarga tem sido a taça de provação desse povo. E se este povo falhar, das próprias pedras pode Deus suscitar filhos a Abraão. Segundo a raça? Segundo a fé? A Deus tudo é possível: Ele o sabe. Todavia, a promessa de ser herdeira do mundo foi feita à “sua posteridade”, pela fé. (4, 13). Podemos, pois, ver claramente que, efetivamente, ao depararmos na história de Israel com os marcos da fé que balizam a história da redenção, constataremos que todos estiveram (e estão) fundamentados na fé singela e firme que habitou em Abraão, ainda antes da instituição da circuncisão. Portanto, a sua descendência segundo a raça só poderá ser a intermediária da dispensação da bênção divina prometida ao mundo, na medida que ela

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4, 14

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trilhar os mesmos caminhos que o Patriarca Abraão palmilhou quando ainda era “Abrão” quando foi chamado e creu. Novamente a pergunta: Ficará o mundo sem a bênção prometida se a raça do Patriarca, falhar? Deus proverá como soube e quis prover quando Abraão levantava a lâmina para imolar Isaque. Das próprias pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão: agora, segundo à fé!]. V. 14 Porquanto, se aqueles que são da lei, herdam, então a fé é vã e a promessa é anulada. Diz-nos o Gênesis que Abraão aceitou a promessa pela fé e pelo poder criador da fé tornou-se a primeira pessoa a esperar pelo reino do Messias (Gên. 15, 6). [Notar as conclusões e as inferências que o A. tira da frase: “E creu ele no Senhor”. Como foi o diálogo? Em visão ele ouviu a palavra do Senhor dizendo: “Não temas, eu sou o teu escudo e grandíssimo galardão”. Abraão era, então, ainda Abrão; voltara vitorioso da sua campanha contra quatro reis para libertar seu sobrinho, e não aceitara galardão; todavia, em tributo de honra e louvor ao Deus Altíssimo, pagara ao sacerdote Melquisedeque, o dízimo de tudo! E a palavra de Deus lhe diz: “Eu sou teu grandíssimo galardão”! E o futuro Abraão pensa em Deus, como um seu igual: “O que me hás de dar? Não tenho filhos e quem administra (e portanto herdará) minha casa “é um estrangeiro”... Mas Deus, paciente, levou o velho beduíno para fora, para contemplar a vastidão dos céus, salpicada de estrelas e lhe disse: “Conta-as, se podes: pois igualmente incontável será a tua descendência”. E Abrão creu. Essa descendência multiplicou-se pela graça, e por ela e dela veio o cumprimento da promessa da bênção que foi a bênção por excelência a todas as nações da terra; o advento de Jesus, que se chama o Cristo; Emanuel, Deus conosco; o Príncipe da paz, Deus forte, Pai da Eternidade; Redentor e Salvador. Crendo na promessa divina Abraão foi ao encontro da fidelidade de Deus, para que o “justo” vivesse. É por isto que se justificam as inferências e conclusões que o A. tira da passagem simples do Gênesis].

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4, 14

É certo que a fé tem sempre o seu lado “legal”. Ela pode ser um acontecimento, uma situação. Todavia, no seu aspecto legal ou visível; na sua conjuntura histórico-espiritual, como um evento imaginável ou uma situação atingível; ou ainda como uma “possibilidade possível”, a fé redunda vazia, despojada de sua dinâmica, e destituída da certeza que, de outra forma, a caracteriza. A fé fica “esvaziada” se Abraão e seus filhos forem o que são por força da lei. A fé é o firme fundamento se ela representar o passo eterno para o totalmente invisível, sendo ela, também, invisível. A fé será negada [esvaziada, aniquilada] em seu sentido espiritual, por toda situação ou por todo evento visível que a acompanhar; por todo meio temporal, por todo pragmatismo, e por todo e qualquer método que sejam prescritos [para seu nascimento ou seu crescimento e empregados para esse fim]. A fé somente vale por fé se for o passo à frente que vem de Deus e que só Deus torna possível e compreende. A fé somente terá poder criador quando ela for a luz da luz não gerada; a fé somente será viva, quando for a vida que vem da morte; a fé somente será positiva se o ser humano, por ela, for fundamentado na insondabilidade de Deus. Somente então é a fé imputada por justiça e o homem será o destinatário [o receptáculo] da promessa divina. Fora dessa qualificação divina da revelação que a humanidade possa encontrar na lei, mesmo a fé mais profunda, a mais ardente, a mais séria, não passa de simples descrença; e quando a fé é negada, anulada, invalidada, também cessa o cumprimento da promessa, pois esta somente pode ser recebida pela fé e mediante a fé. [Suprimida a fé resulta, IPSO-FACTO, suprimida a promessa, pois a fidelidade de Deus se manifesta através da fé. É por isso, que em Hebreus 11, 6 se diz que sem fé e impossível agradar a Deus, pois é necessário que aquele que se quiser aproximar dele, creia que ele existe]. A promessa que Abraão recebeu é indescritível, está além de toda percepção, de todas as possibilidades humanas e de toda realidade. Nada conhecemos do mundo abençoado e tornado bom por Deus; a soberania do homem sobre tal mundo não é, sequer, um objetivo historicamente imaginável; é o Messias que tem essa soberania não é um homem segundo os que conhecemos. [É por isso tudo, que a promessa feita a Abraão é inteiramente inverossímil, totalmente inviável, do ponto de vista humano]. A graça da criação, como a graça da redenção, não é uma dádiva que venha junto com outras dádivas; ela é a relação invisível na qual estão todas as dádivas [divinas], e o seu reconhecimento é sempre, e sobretudo, dialético.

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4, 14-15

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[A promessa feita a Abraão não encontra apoio lógico nos fatos materiais, visíveis e, por isso mesmo, só pode ser aceita, assimilada, apropriada, pela fé; Abraão creu sem nada saber ou entender do mundo transformado pela graça divina e de como iria herdar esse mundo que foge inteiramente do domínio dos homens. No entanto, diz o Autor que a fé é poder criador e esta graça, justamente por estar fundamentada na fé é, semelhantemente a própria fé, imponderável, imaterial, invisível aos olhos do mundo e só é reconhecível na dialética, isto é, pela busca da verdade e sua aceitação mediante o confronto da própria fé com a promessa, e vice-versa. O diálogo, a “racionalização”, faz-se entre a promessa e a fé]. Na narrativa bíblica, a história de Abraão apresenta a fé e a promessa na mais alta “negatividade positiva” de sua oposição mútua, pois a promessa é inteiramente incongruente com a situação de Abrão e com os eventos e situações criadas [posteriormente] na história da esperança de Israel. [É por isso que afirmamos que] se a promessa não for recebida pela fé, jamais será recebida. Sem fé, a promessa não passará de uma proposição “míticoescatológica”, semelhante a todas as demais proposições religiosas que existem por aí. Não há experiência, não há êxtase, não há exorcismo, nem olho, nem ouvido, nem coração, que possa agarrar a promessa, [retê-la, beneficiar-se dela ou entendê-la] se ela não for assimilada pela fé. Se formos herdeiros pela lei estamos, realmente, deserdados; estamos excluídos da candidatura à herança prometida, não somos Abraão, nem filhos de Abraão! V. 15 Pois a lei, sem a fé, não traz ao homem a promessa de Deus, porém, a sua ira. Todavia, assim como a lei não é decisiva, também não o é a sua transgressão. [A tradução de Almeida (acompanhada das outras que temos citado), diz: “Porque a lei opera a ira; porque onde não há lei também não há transgressão”]. “A lei opera a ira”. Entendemos, então, que a lei propriamente dita, a lei sem fé, é um transtorno para o homem, um obstáculo à herança do reino de Deus? — Sim; é exatamente isto. É certo que, mesmo abstraindo da fé, a lei tem sua própria positividade e pode, na realidade, ser apreciada sem se considerar o seu papel [a sua função]

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de testemunho e indicação. Sem dúvida, como acontecimento e situação histórico-espiritual a lei tem, também, o seu peso específico e sua significação, pois é certo que as experiências humanas, [os feitos e as realizações do mundo que se processam sob a égide da lei], sempre brilham por sua própria luz. Porém não nos devemos iludir dando a estas qualidades mundanas da fé uma importância decisiva. Deixando de considerar a relação existente entre as coisas temporais e suas origens eternas, colocamo-las sob a luz do mais destrutivo ceticismo; na verdade, [abrimos o caminho a] um ceticismo incurável. [Se os eventos histórico-espirituais nada tiverem do além, nada testemunharem dele e forem considerados apenas como valores emanados de nós mesmos: nossa espiritualidade, nossa devoção, nossa fé, então cedo chegaremos à conclusão lógica de que nos bastamos a nós mesmos; que tudo vem de nós. Então, se raciocinarmos e, se formos honestos em nosso raciocínio, chegaremos à conclusão de que “Deus não existe”, e estará implantado o ceticismo que, dentro de semelhante análise, não será curável]. Acaso a lei confirma a promessa? — Impossível, pois a promessa veio primeiro e depois a lei que, testemunhando a promessa visa preparar os caminhos, preparar as veredas, orientar o peregrino, para dar aso a seu cumprimento. [A lei é secundária, com relação a promessa, e o que é secundário não pode confirmar o essencial antes este, em se cumprindo, confirmará o secundário, o acessório, que lhe foi por testemunha, durante o tempo anterior a seu cumprimento]. A afirmação de que a lei confirma a promessa sucumbe ante a incongruência evidente entre a promessa e tudo o que tem cunho histórico, ainda que histórico-espiritual, entre a promessa e tudo o que e visível. O único elemento visível na promessa é o fato de ela não ser idêntica à impressão Espiritual-Histórica da revelação de Deus ao mundo. [Esta revelação, como parte do mundo, sendo portanto do mundo] é apreçada em termos mundanos, e não pode produzir a promessa nem a filiação de Abraão; antes produz a ira de Deus se não for considerada como testemunha e indicação do além mas como realidade em si. É este suposto valor, esta suposta realidade, essa pretensão de grandeza absoluta, na sua ajustada semelhança a Deus, que se traduz em impiedade e injustiça (1, 18) e que suscita a ira de Deus. Toda religião, enquanto estiver do lado de cá, enquanto for história contemporânea, realidade palpável, está sujeita a essa regra, e dela não escapa a religião legítima, sincera, profunda; nem mesmo a religião de Abraão e dos profetas, a “religião da carta aos Romanos” nem tão pouco — é isto e evidente — a “religião” de todos os livros que se escreverem sobre essa epístola.

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4, 15

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Quem tentar descrever o que é eterno e vivê-lo na temporalidade, isto é, contemplá-lo, analisá-lo, configurá-lo, esse tal trata da lei e quem cuida da lei, fala de transgressão. É justamente onde estiverem as mãos postas; onde houver a sensação viva da presença de Deus; onde se falar das coisas divinas e onde estiver a pregação; onde houver a construção de templos e onde as obras forem motivadas por ideais e razões as mais dignas; onde houver missão e mensagem da ordem mais elevada; é aí, [nesse ambiente da mais alta santificação] que domina o pecado (5, 20) quando não estiver presente, também, a maravilha, o milagre do perdão, quando o temor do Senhor não estabelece a distância que medeia entre a criatura e o Criador (1,22 seguintes). Nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais arriscada, mais sujeita à crítica, do que a religiosa; [também é certo que] nenhum empreendimento voltase contra o seu empreendedor, para o julgar, com maior rigor. Todo esse vasto mundo, tão rico em aparência de culto a Deus, exibindo desde a mais grosseira superstição até o mais refinado espiritualismo, e que vai do mais honesto aclaramento até a mais suculenta prática metafísica tem, perante Deus, o aspecto de arrogância [atrevimento, irreverência, abuso] e, perante os homens, com mui justa razão, o aspecto de fantasmagoria: exala tanto para cima como para baixo, um forte odor de dúvida. Todavia, não nos enganemos: idêntico odor de suspeição envolve tudo quanto se opõe ao mundo aparente da religião. Isto é: [estão sujeitos ao mesmo julgamento] tanto a afirmação como a negação religiosa; tanto o construir como o derribar templos; tanto o discursar impertinente [a pregação a tempo e fora de tempo] como o inoportuno silêncio. De Amazias e Amós; de Martensen e Kierkegaard. Portanto, também desde o protesto contra o mundo religioso, de Nietzsche, até os mais vis devoradores de sacerdotes, passando pelo romantismo totalmente antiteológico dos estetas, pelos socialistas e pelos movimentos de juventude de todos os matizes. Essa “suspeição” transforma-se em acusação certa e o “odor” espalhado transmuda-se em densa nuvem da ira de Deus, quando a manifestação religiosa, ou anti-religiosa, não apontar declarada e conscientemente para além de si mesma, porém buscar a sua própria justificação [sua implantação, sua promoção] e isto para qualquer que seja a forma com que tais movimentos se apresentem, seja como fé, como esperança e amor, ou [como ideal político, como reforma da igreja, como liberdade dos povos, ou libertação de oprimidos ou então que tenham os próprios] gestos dionísicos do Anticristo. [Todo movimento, toda pessoa, toda agremiação] que não consentir em sua própria supressão [perante Deus], porém tentar justificar-se [seja pela sua

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confirmação, com um SIM, ou mediante o NÃO, que acaso pregue, ensine ou deseje], será julgada por essa sua atitude. Os crentes na imanência, de cá e de alhures, deveriam meditar sobre este assunto: “A lei gera a ira”. [O Autor refere-se aos que crêem na materialização dos fatos transcendentais e que, portanto, se atêm a lei. (Quiçá os teosofistas...). Essa materialização, de aspecto auto-suficiente em si, gera a ira de Deus]. “Onde não há lei, não existe transgressão”. Existe uma justificação para a atitude religiosa, tanto para [a que ao mundo parecer] a mais legítima, como para [a que parecer ser] a menos legítima. Há uma justificação para a religião de sentido profundo e para a de sentido não tão profundo; para a religiosidade profética e para a farisáica. Como contraste, portanto, há também uma justificação à oposição à religião. (No que, talvez, possam regozijar-se os inquisidores, mas não por muito tempo...). Esta justificação é a “Justificação pela fé”. Todavia, a fé [que pode candidatar-se a essa justificação] é aquela que não estiver fundamentada nos acontecimentos [nos eventos] e em personagens (quiçá dignitários) do mundo; é a fé cuja manifestação não tem por origem estes fatores humanos e materiais. A fé [que pode trazer a justificação] há de ater-se humildemente à “realidade” de sua mera aparência histórico-espiritual e ter consciência que tanto a positividade quanto a negatividade que o mundo lhe atribuir, são a mais absoluta negatividade perante Deus. A fé [para ser elegível como adjudicatória da justificação divina] precisa corresponder à posição crítica que separou o religioso Lutero do religioso Erasmo e o anti-religioso Overbeck do anti-religioso Nietzsche. A fé [só pode ser considerada como tal] quando ela nada é se não um relacionamento [confiante] de todo conteúdo humano com a sua origem eterna, em nada sendo [parecendo ser ou se candidatando a ser] uma abertura para a vida, que viesse da morte. Na medida que este aspecto invisível da fé for decisivo, perderá força a transgressão que seu aspecto visível sempre significa. Se este for o ponto central [se o aspecto invisível da fé dominar na mente, no coração, no espírito] tanto do religioso como do irreligioso; se a atitude de um e de outro com respeito à religião tiver o seu baricentro para além da própria atitude individual, então a dubiedade de sua aparência perde seu peso específico [ou este peso já não atua sobre os braços da balança] e a razão para o ceticismo desaparece.

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Pode acontecer, pelo constrangimento de um “apesar de” divino; do reconhecimento da sempre reiterada necessidade do perdão; ou em conseqüência do tremor e da humildade, que já não mais seguindo caminhos humanos e sem nada ter a ver com qualquer justificação nem perante Deus nem perante os homens sim, pode acontecer, que o sacrifício, a prece e a pregação, a profecia, o misticismo e o farisaísmo, a teologia, a piedade e a religiosidade, catolicismo e protestantismo, [ou outras formas de adoração] (e até) “Carta aos Romanos” e outros livros que, fundamentalmente, não pareçam ser tão radicais e não apresentem tão grandes protestos, todos juntos espalhando seu conteúdo [e seu abuso] pelos quadrantes da terra — sejam justificados à luz da seriedade e do beneplácito divino. [O original diz “... im Lichte goettlichen Ernstes und goettlichen Humors”. A tradução inglesa diz: “Justification can be found only in the light of God’s sincerity and of his irony”. Entendo que o original (pelo menos segundo a 5º edição alemã), não justifica a versão inglesa. Também não considero próprio: nem bíblico nem em harmonia com o contexto, o substantivo “humor”; não com o sentido direto dessa palavra em alemão — (humorismo) e muito menos com a conotação de “boa disposição” que representaria um estado de ânimo mutável, quiçá uma casualidade caprichosa, acidental. Se o A. houvesse tido esse pensamento em mente, provavelmente usaria a palavra alemã “Laune”, que expressa exatamente este estado caprichoso do ânimo, para bem ou para mal, bom humor ou mau humor. Também não vejo a possibilidade de jogo de contrastes entre a “seriedade” e o “humorismo”, semelhante ao comentário que o A. faz sobre o julgamento do homem pela fé, afirmando que a alegria divina pelas boas obras humanas não estará isenta de certa melancolia — porque tais obras só valem pela fé, e que a tristeza pelo descalabro do ser humano será também acompanhável de discreto sorriso, porque para esse descalabro há uma esperança. São ambas figuras, metáforas, que reforçam a exposição. Se, no caso em tela, o pensamento do A. teve em vista semelhante antítese, parece-me que a figura não foi feliz, segundo a conotação que a tradução direta do vocábulo possa ter em nossa língua. Portanto, não podemos escrever nem “humorismo”, nem “humor”, nem “ironia”, pois não representariam atributos próprios de Deus. Ficamos, portanto, com o “beneplácito”.]. Não nos esqueçamos, porém, que esta justificação divina será sempre “na medida” que o aspecto invisível da fé, dominar; todavia, neste domínio, nesta aparente condescendência divina em revestir o divino com trajes humanos, de envolver o eterno na sua semelhança temporal, não está uma possibilidade

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humana, mas a “impossível possibilidade”; ela representa o instante decisivo, que não tem nem precedente nem seqüente. Essa possibilidade não é um estágio, uma plataforma, onde nos estabeleçamos, mas é uma passagem, um divisor de águas onde somos chamados a optar, e esse instante, esse ponto, essa oportunidade de opção vem de Deus, exclusivamente. Jamais podemos alegar que chegamos a esse ponto crítico ou que alcançamos essa possibilidade, ou que, de alguma forma, contribuímos para sua existência; compete-nos, apenas, constatar com temor e tremor que essa “impossível possibilidade” pode acontecer. Sem essa fé que se manifesta em temor e tremor, a lei será sempre o imenso obstáculo que nos impossibilitará a aspirar ao Reino dos Céus. V. 16 a 17a É por isso que dizemos: os herdeiros são os que o são, mediante a fé, o que de outro modo se diz: Pela graça; e a promessa é válida para toda descendência de Abraão, não somente para quem o é pela lei, mas também para quem o é pela fé, pois todos temos a Abraão por pai, como está escrito: constituir-te-ei pai de muitas nações. “Por isso, pela fé”. Sabemos o que dizemos. Nem existe qualquer outra possibilidade, se não dizê-lo. A lei, a história, a religião de Israel é a forma dentro da qual esse povo pode ser aspirante, candidato à herança divina, porém não é uma força criadora que lhe garanta o gozo dessa herança. Se a conjuntura da história, da lei, da religião, representar alguma força, esta será terrena, do mundo; [será na realidade] uma reação [uma força em sentido contrário] que, na verdade, impossibilita a co-participação na herança de Abraão. A certeza de ser contado entre os filhos de Abraão, a realidade do ato criador que “das pedras pode suscitar filhos a Abraão”, não está nas “possíveis possibilidades” da lei mas na “impossível possibilidade” da fé. “O que, de outro modo, se diz: pela graça; e a promessa é valida para toda descendência de Abraão”. Mais uma vez, ante a ponderação sobre o que transforma Abrão em Abraão (4, 1), [Abrão, “pai da altura”, para Abraão, “pai de uma multidão” — Ver Gen. 17, 5] somos levados para além das coisas visíveis e chegamos ao primeiro relacionamento, original, que não só fundamenta a alma de Abraão e torna possível a sua existência histórica, como vai para além de sua história e de sua alma.

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É pela graça que Abrão é Abraão. É pela graça que a lei tem significação; que a história tem sentido: e que a religião é uma verdade. Pela graça, porém, quer dizer à luz da linha da morte, que é o limite absoluto de toda visibilidade humana, (e justamente como tal, é a linha da vida, vinda de Deus); é o último NÃO, que também é SIM; é o último julgamento que, só ele, pode ser também a justificação. Quando este relacionamento ocorre [(o primeiro relacionamento entre o homem e Deus, e que vai além de toda a realidade humana)] então revela-se a finalidade da moldura histórico—psicológica de “Abraão” e “Israel”: a lei é estabelecida (3, 31). Falamos de Abraão, e temos que falar em Cristo. Falamos da fé que Abraão teve, e temos que falar na crise universal do “aquém” e do “além”, anunciada em Cristo. Falamos dos filhos de Abraão e temos de falar de todos aqueles que, atingidos por essa crise, participam da ressurreição de Cristo Jesus. São herdeiros os que o são, não pela lei, mas pela fé; não são herdeiros por força dos acontecimentos histórico-espirituais, porém pela graça, pois está claro que a co-participação dessa herança não está ligada à filiação de um “tronco de Abraão” constituído segundo a lei, [como se fora a filiação a alguma agremiação ou a um clube], nem está a co-participação dessa herança condicionada à participação de um Israel histórico, ou de alguma cultura ou tradição, com direitos adquiridos por transferências sucessivas [de títulos, de qualidades ou mesmo de genes da raça]. Com semelhante limitação de “herdeiros”, a herança seria mais que duvidosa. (4, 14-15). Como destinatário da promessa “mediante a fé”, o próprio Abraão fica fora de todos os círculos de delimitação histórica e assim também a sua semente, a saber: a geração dos que crêem. Mas entre esta geração podem estar também aqueles que são seus filhos segundo a lei [e segundo a carne] e [todos juntos] podem aspirar ao reino do Messias e à bênção de Deus. O relacionamento que houve originalmente entre Abraão e Deus pode ocorrer também entre Deus e os homens dos diferentes círculos de delimitação histórica, pois Deus é, também, o Deus dos judeus (3, 20); mas não somente dos judeus! Para testemunhar a revelação Deus pode, em sua fidelidade, conduzir os homens às [mais variadas] conjunturas psico-históricas [ou históricoespirituais]. Mas se a suscitação [e a validação] de filhos de Abraão for pela fé, se os filhos de Abraão forem criados [e reconhecidos] pela fé somente, então desaparece toda forma de sectarismo, desde o mais grosseiro, até o mais refinado. A palavra que foi dirigida a Abraão “pela graça”, e que foi por ele ouvida “mediante a fé”, não tolera, por princípio, nenhuma restrição esotérica

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[não pode haver restrição de extensão da graça e do dom da fé a grupos especiais, favorecidos, eleitos e, ou, teologicamente iniciados]; essa palavra vale, basicamente, a quem quer que seja que tenha semblante humano; ela é qual gume que desce verticalmente dos céus, cortando todas as agremiações dos homens, porém, também as alicerçando; essa Palavra é tanto a supressão como a fundamentação das arregimentações humanas; a interdependência delas, é o próprio Deus. [Em outras palavras: a graça divina e o privilégio da justificação pela fé, não se orientam, nem se restringem, a grupos humanos, quaisquer que sejam suas origens; antes, a palavra de Deus dissolve esses grupos e uma nova condição, um novo “status” se estabelece aos que ouvem a palavra divina mediante a fé. Para estes tais é o próprio Deus o elemento de aglutinação]. Qual é a nossa posição, quando dizemos: “Estabelecemos a lei; este é o sentido da lei, a saber: que Abraão é o pai de todos nós, em Cristo”? O que está escrito? “Eu te constitui por pai de muitas nações”. (Gen. 17, 5). Sim; uma das nações das quais Abraão é pai, é Israel. Porém, vimos que ele é o Pai dessa nação, em Cristo; logo, ele é também o Pai das muitas nações, [que participam da ressurreição, em Cristo]. Não é evidente que a história se desnuda, quando revela seu segredo? Não temos motivos para temer a luz da história que nada mais fará que testemunhar a respeito do sacrifício de um por muitos e do perdão para os pecadores. “E ouvindo estas coisas, calaram-se, e louvaram a Deus dizendo: na verdade, também aos gentios deu Deus o arrependimento para a vida”. (Atos, 11. 18). Comentários: 4, 13-17a 1. Algumas referências a nomes menos conhecidos, que o A. cita nesta seção do capítulo: Amazias: É o profeta contemporizador que se levanta contra Amós. (Ver Amós, cap. 7). Martensen, Hans Lassen — Teólogo dinamarquês da segunda metade do século XIX. Seguiu a filosofia de Hegel e foi fortemente criticado por Kierkegaard. Overbeck, Franz — Teólogo alemão, também dos fins do século XIX, (= 1905). Foi terrivelmente cético pondo em dúvida toda a organização das igrejas cristãs, inclusive as protestantes; ele era ligado à Igreja Evangélica e lecionou “Teologia do

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Novo Testamento e História Eclesiástica”, em Basiléia. Barth o cita freqüentemente, apontando-o sempre como perquiridor da verdade divina conforme se acha (ou julgava achá-la) além dos conceitos e preconceitos humanos. 2. Fé é criação. Criação do que? E de que forma? Fé é o poder que gera filhos a Abraão, segundo a fé. Foram os presunçosos fariseus e saduceus que, astuciosamente, “para fugir da ira vindoura”, procuravam João, o batizador, para serem por ele batizados. Eles não desejavam “lavar-se” de seus pecados, entrar na morte para emergirem em vida nova, que disso não sentiam necessidade, pois eram filhos de Abraão. Peculiaridade e privilégio deles, muito acima do demérito dos vis publicanos... Foi por isso que os censurou João: “Raça de víboras... não presumais em vós mesmos, dizendo: “Temos a Abraão por pai”... (pois)... “mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”. (Mat. 3, 5-9). Esta é a criação da fé: homens e mulheres que produzem frutos dignos do arrependimento; que não buscam os seus próprios interesses, nem para galardão nem para fuga à ira, mas crêem; crêem com reverência, com tremor e temor. Semelhante fé não vem do querer dos homens, do seu labutar, do seu estudar, mas vem de Deus. E de que forma? Pela graça, numa espécie de cadeia contínua. De fé em fé. Abraão creu, e isto lhe foi imputado por justiça. Abraão creu na primeira promessa: na terra que Deus ficou de lhe mostrar. “Sai da tua terra e da terra de tua parentela,... para uma terra que eu te mostrarei, e far-te-ei uma grande nação... e tú serás uma bênção”! (Gen. 12, 1-3). Como seria ele uma bênção? Como seriam benditas nele, todas as famílias da terra? Abraão não perguntou: apenas creu, e partiu... Foi-lhe mais fácil crer depois: “À tua semente darei esta terra” (Gen, 12, 7) e, novamente, “farei a tua semente como o pó da terra” (Gen. 13, 16). Era uma questão de sua prole: de filhos, dos filhos dos filhos. Porém os anos correram e “os filhos” não vieram. Quando Deus lhe garante um “grandíssimo” galardão (Gen. 15, 1 e seguintes) Abraão não consegue calar-se ante a enorme incongruência existente entre a promessa reiterada e a situação real, prática. Velhos, ele e Sara, e o lar não teve a bênção de um filho sequer.

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Todavia, já fortalecido no exercício da fé, creu ainda, a despeito da evidência meridiana de seu claro raciocínio. Creu tão firmemente e tão robusta foi essa fé a ponto de um dia, não em ato repentino, mas após longa preparação, levar seu filho, seu único filho, o filho da promessa, às terras distantes de Moriá, para amarrá-lo firmemente sobre o altar sabendo que das próprias pedras do altar do holocausto Deus poderia suscitar-lhe outros filhos. E deste modo que age e se conduz a fé criadora. Esta fé cria mais do que “muitas nações”. Ela gera a imputação da justiça de Deus. “Senhor, aumenta a nossa fé”!

DA UTILIDADE DA HISTÓRIA (4, 17A a 25) V. 17 (segunda parte) Abraão é pai de todos nós, perante Deus, em quem creu: O qual vivifïca os mortos e fala como sendo. [Segundo Almeida. “Chama as coisas que não são, como se já fossem”] “Perante Deus, em quem creu” Abraão é o pai de nós todos. A história e a personalidade histórica dos seres humanos nunca fica inteiramente fora dessa luz superior que não está na história: “Perante Deus, em quem ele creu”. Nesta luz desaparece a individualização do indivíduo, o passado do que é remoto, o afastamento do que é distante, a separação [a seleção] do que é especial; desaparece a casualidade do que é pessoal. Sob esta luz superior aparece a simultaneidade de todos os acontecimentos e a uniformidade de sua importância e de seu valor. Sob esta luz, a história fala como sensata mestra da vida (HISTÓRIA VITAE MAGISTRA). É por causa desta luz, e por ela somente, que espreitamos a voz da história. “O que não é histórico” é semelhante a uma atmosfera envolvente na qual a vida se gera espontaneamente e desaparece se essa atmosfera for destruída... Onde estão os feitos que o homem gostaria de realizar, que já não tenham estado, primeiramente nesta penumbra da história?... Pudesse alguém penetrar nessa atmosfera onde se forjam todos os grandes acontecimentos (conforme se verifica abundantemente) esse tal, como ser racional, poderia elevarse acima da história e poderia, a partir de então, deixar de levá-la muito a sério. “Ele teria aprendido, de uma hora qualquer, fosse do primeiro século ou do século dezenove — da vida de qualquer um, grego ou turco — como, e para que, se vive” (Nietzsche).

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A timidez do “pensamento retilíneo” [do pensamento horizontal, que não se eleva para o alto] considera essa parte “não histórica” da história, essa luz superior, como sendo mitologia ou misticismo; de nossa parte, porém, preferimos distinguir, justamente no traço crítico da “linha que separa a claridade visível da parte não descoberta e escura” (Nietzsche), o que “não é histórico”, isto é, o condicionamento primitivo, anterior à história, e que a determina; queremos distinguir nessa linha crítica a luz do “Logos”, não só de toda a história, mas de toda a vida. “Perante Deus, em quem creu”, Abraão é o pai de todos nós. Fé, como milagre absoluto, como puro começo, como criação original, que é o relacionamento desconhecido de acontecimentos e situações conhecidas com o Deus desconhecido; este é o princípio para o acontecimento e é a força testemunhadora da personalidade de Abraão. Semelhantemente, este relacionamento é também a base para o conhecimento e a força testemunhadora da história (como fato passado e como revelação e notícia do que aconteceu). O fato de Abraão ser o pai [de alguns], segundo a carne (4, 1) não se comprova nem se realiza outra vez, segundo a carne, naquilo que e visível, porém no invisível, pois ele é nosso pai perante Deus. Perante Deus, “o qual vivifica os mortos, e fala ao que não é, como sendo”. É nisto que a fé se destaca do mundo indefinido do misticismo e da mitologia, como sendo o princípio básico do conhecimento e da força testemunhadora da história. A fé não representa uma excelência, um aprofundamento ou um enriquecimento deste nosso mundo por outro “interior” e até “mais sublime”; não se trata de duplicação cósmica, metafísica; nem mesmo a triplicação ou a septuplicação de uma dada situação de nossa vida, mas a sua única maneira de ser, a sua forma definitiva, final, porque é o contraste intransponível da vida para a morte e da morte para a vida; e o contraste d’aquilo que não é, ante aquilo que é, e vice-versa. A vida e a existência do além representam, para a fé, tudo quanto, do lado de cá, podemos identificar apenas como sendo morte e aniquilação; semelhantemente, a fé representa, no além, a aniquilação e a morte da vida e da existência do lado de cá da linha divisória. Observamos a figura ímpar de Abraão à claridade desta luz superior, da linha crítica. Uma passagem, um desenvolvimento, uma “subida”, ou mesmo uma “edificação” feita daqui para o além, está inteiramente fora de cogitação. Semelhante iniciativa significaria apenas morte e aniquilação, para o “lado de lá”; igualmente, o objetivo a ser atingido do lado de lá, para o lado de cá, só pode ser visto como aniquilação e morte.

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No impasse criado pelas duas negativas, resta apenas a “impossível possibilidade” de que, também nesta situação, “menos por menos seja igual a mais”: que do relacionamento entre essas duas negações absolutas, e da supressão de uma pela outra, resulte, sobrepujante, a sua força original. [Vistos do lado de lá da linha do horizonte, de nada valem o nosso lutar, nosso planejar, o nosso agir e construir. Se quisermos contemplar, com os olhos de nossa imaginação e segundo a perspectiva do mundo material, — o que poderíamos criar para o além, o que acharíamos senão a fria laje tumular, o pó retornado ao pó ou, então, a loucura? Perante a fé, são negativas as nossas obras, vistas por Deus; e, pela nossa materialidade, para nós é negativo tudo quanto existe além túmulo. E a negação divina que nos liberta da negação humana; é nessa relação que Deus, na sua fidelidade, nos recebe segundo nossa fé. Será sempre a despeito da fraqueza dessa fé; será sempre pela misericordiosa graça divina, O justo viverá pela fé, porém a fé acrisolada, santificada, purificada pela fidelidade de Deus. Na raiz da raiz, está a fidelidade de Deus. É no encontro da negação do homem que a tudo renuncia porque sabe que nada é e nada tem perante Deus, com o NÃO divino que recusa tudo o que o homem tem, ou pretende ter, que resulta a fecunda graça divina da redenção. “Menos por menos da mais” ...]. Os “vivos” precisam morrer, para que os “mortos” sejam vivificados. “Aquilo que é” precisa ser reconhecido como “não sendo”, para que a palavra seja dirigida ao “que não é”. Esta é, [segundo os homens,] a ciência impossível; a impossível ressurreição; o impossível Deus Criador e Redentor, que unifica o “aquém” e o “além”. Este “impossível” foi o sentido da fé que Abraão teve, e que emerge das entrelinhas da história do Gênesis como o impossível e o invisível em sua plena invisibilidade. [Todavia, esse impossível surge como o único elemento que confirma e torna possível a história, [a realidade]! E surge como crise e, por isso, é interpretável como sendo mito ou misticismo). Esse mesmo impossível emerge à roda da filosofia de Platão, da arte de Gruenewald e de Dostoiewski, e também no contorno da religião de Lutero. [Gruenewald foi pintor alemão dos primeiros anos do século XVI, considerado como expressão máxima da pintura gótica sendo reputada como sua maior obra a cena da crucificação (Ver nota na pág. 203)]. Essa ciência, essa ressurreição, esse Deus, [não são coisas diferentes mas uma só e esse “todo” impossível] não é mero acaso, nem se trata de uma exceção nem é a conseqüência de uma contraposição ou de uma oposição entre

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o “aqui” e o “além”; Deus é a negação absoluta e por isso é “o lado de lá” tanto do “aquém” como do “além”; ele é a negação da negação, o que significa o “além” para o “aquém” e vice-versa. Ele significa a morte da nossa morte e a aniquilação da nossa aniquilação. Ele “vivifica” ele “fala” e “nele vivem todos”. A fé que teve Abraão é justamente este Deus e a transformação de todas as coisas, nele. (“Eu vi um novo céu e uma nova terra”); ele é a luz (da luz não gerada) de que a história do Gênesis nos fala; o Logos de toda história. V. 18 Ele, sem esperança, creu na esperança de que seria o pai de muitas nações segundo a palavra: “Tão grande será a tua descendência (Gên. 15, 5). Vemos Abraão “achar” onde, evidentemente, só tem a perder; “atar” onde tudo está roto; “estar erecto” onde, declaradamente, não se pode permanecer em pé. Ouvimo-lo dizer “SIM” onde, manifestamente e por todos os lados, só resta o “NÃO”. Esta é a sua fé: a fé “na esperança sem esperança”; é o passo à frente, saindo da propriedade do homem para o alheamento divino; um passo que vai da visibilidade do visível para a invisibilidade do invisível, e vai da possibilidade subjetiva para a objetiva; um passo que o leva para onde só a palavra de Deus o pode suster. Este é o passo que vemos Abraão dar. Vemos? Não. Vemos apenas que todos seus outros passos, levam a este um, singular, e dele procedem. Mas este um passo não o vemos dar. Desta “arte” é Deus o doador; Se Deus não der, não tem valor! Por ela, tu, louva ao Senhor, Pois deste dom, ele é doador. V. 19 E sem fraquejar na fé, pensou em seu corpo enfraquecido (pois já beirava os cem anos) e na madre amortecida de Sara. [Notar a redação diferente da versão de Almeida que, dizendo a mesma coisa dá, segundo me parece, menos ênfase à qualidade consciente da fé].

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4, 19-20

Abraão não se ilude sobre a realidade. Não é otimista, nem entusiasta. É honesto até ao ponto de ser zombeteiramente cético: “E caiu Abraão sobre o seu rosto e riu-se, e disse em seu coração: “Nascerá a mim, com cem anos, um filho, e Sara conceberá, com noventa anos”? (Gên. 17, 17). Isto é o que podemos ver em Abraão. É isto o que dele, e nele, podemos entender (e até entender bem demais), por analogia, o que se pode deduzir pela seqüência de outros acontecimentos. Todavia, além de tudo que podemos ver na história de Abraão, está o fato de que Deus se tornou “forte demais” para ele. [O que Deus lhe dizia estava totalmente além de sua lógica e seu bom senso de homem habituado com as lides do mundo]. Contudo, Abraão não fraquejou na fé, o que é totalmente incompreensível para nós; não podemos compreender como ele resiste à tentação que a realidade lhe depara quando, de olhos e ouvidos abertos, ele vê e ouve o que está além do verossímil: o que não é, e nem pode ser. [E crê!] V. 20 Não criticou a promessa de Deus, com dúvida incrédula, mas permaneceu firme na fé e deu glória a Deus. [Comparar, também este versículo, com a tradução de Almeida]. “Tudo o que nos rodeia, está em contradição com a promessa de Deus: promete-nos a imortalidade e estamos rodeados pela morte e corruptibilidade; testemunha-nos sua misericórdia e sua boa vontade enquanto, por toda parte, nos ameaçam os sinais de sua ira. O que faremos? Convém-nos bastante passar, perante nós mesmos e perante nossos semelhantes, de olhos fechados para que nada nos estorve, ou sequer dificulte, a crer na verdade de Deus”. (Calvino). “Semelhante feito é impossível à razão. Somente a fé pode realizá-lo; é por isto que a fé é, por assim dizer, uma criadora da divindade; não que a fé crie alguma coisa que se junte à divindade do Ser Eterno, mas cria-o em nós, pois, onde não houver fé, Deus se ressentirá da carência de nosso louvor, porque, onde falta a fé, Deus não é tido por fiel, justo, verdadeiro e misericordioso. “Onde não há fé, Deus não é louvado, nem por sua divindade nem por sua majestade. Tudo depende da fé. “Deus não exige mais de nós senão que lhe tributemos a honra que lhe é devida e que o tenhamos por nosso Deus, isto é, que não o tenhamos por ídolo vão e fortuito, porém como o Deus justo e verdadeiro. “Tributar semelhante louvor a Deus é, por certo, a sabedoria das sabedorias, justiça acima de todas as justiças; é uma adoração que está acima de todas as adorações e um sacrifício que é superior a todos os sacrifícios.

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“Quem pois, crer e confiar na palavra de Deus conforme Abraão o fez, este é justificado por ele, porque a natureza de sua fé dá a Deus a honra que lhe pertence, isto é, ele tributa a Deus a honra que lhe é devida, conforme é o dever das criaturas... Diz, pois, a fé que aduz a justificação: ‘Meu Deus amado, prazerosamente creio em todas tuas palavras!. Ora, o que diz Deus? “Tivesse, a razão, que responder diria que Deus nos fala palavras vãs e impossíveis, falsas, tolas, fracas e minúsculas e até horrorosas, heréticas e diabólicas, pois o que poderia ser, para a razão, mais risível, mais louco e mais impossível do que aquilo que Deus disse a Abraão? “Assim são todos os artigos de nossa fé cristã, conforme Deus nô-la revelou pela sua palavra: diretamente impossíveis, absurdos, falsos perante a razão. “Porém, a fé veio para torcer o pescoço da razão e estrangular o monstro, o qual, de outra maneira, o mundo todo, com todas suas criaturas, não poderia estrangular. “Porém, como [Abraão] o faz? “Ele se atém à palavra de Deus; aceita-a por certa e verdadeira, ainda que ela lhe soe e pareça absolutamente tola e impossível. Portanto, Abraão emprisionou a sua razão... e assim fazem as demais pessoas crentes que, com Abraão, penetram na densa e recôndita escuridão da fé; sufocam a razão e dizem: “Ouves bem, ó razão? És tola, louca e cega; nada entendes das coisas divinas; por isso, não me venhas fazer gracejos com teu ladrar, mas fecha essa boca; cala-te; não te arvores em juiz da palavra de Deus, antes, assenta-te e escuta o que ele tem a dizer-te: e crê nele!. “Assim, dominam os crentes, este monstro que o mundo todo não consegue subjugar, e prestam a nosso Deus o mais aceitável dos cultos. Que isto aconteça mais e mais. “Comparados com o sacrifício e o culto de adoração, nesta forma prestados a Deus pelos crentes, todos os demais sacrifícios e adoração de todos os pagãos do passado,juntamente com os atos [piedosos] de todos os monges e de todos os varões santos em obras, nada mais são que vaidosa nulidade.” (Lutero). Quem o puder suportar que o suporte. Este é o fim e o começo da história. V. 21 Ele estava perfeitamente convicto disto: Deus tem poder para cumprir o que promete. “Convicto” por experiência religiosa, por intuição, ou pela consciência de uma missão divina?

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4, 21-22

Sim; talvez sim. Por que haveria de o preenchimento de um fato “não histórico”, (não palpável, não visível) deixar de ser acompanhado de sinais visíveis, materiais? Todavia, pode também acontecer que não; e isto é mais provável, pois parece mais natural que experiência desta ordem seja acompanhada de sentimento de carência, de insegurança, de quebrantamento. Contudo, também este sentimento de falta nada é pois a certeza da destituição, da fome e da sede, são simples acessórios materiais. [O A. usa; no original, e entre aspas, o substantivo “plerofonia” (quiçá um anglicismo) para expressar “persuasão plena!! (convencimento), sugerindo presunção vaidosa de carência, fome e sede]. Tanto a riqueza da misericórdia (Ef. 1) como a pobreza de Espírito (Mat. 5) estão além das situações materiais de posse e de destituição. A plenitude de Abraão é a do destinatário da promessa divina. Como poderia, esse fato, ser histórico, ser visível? Como se poderia compreendê-lo, sem ser como sendo a vida que surge da morte? (4, 13 e seguintes). V. 22 Pelo que, isto lhe foi imputado por justiça. “Pelo que”! Por isto: porque a sua fé, é fé perante Deus (4, 17 segunda parte). Esta fé não é apenas um traço do caráter de Abraão, mas constitui o seu todo; é ela que o configura e o delimita. Ela é o milagre absoluto que confirma e anula a sua personalidade. Ela é o puro início; a criação original. Foi-lhe imputada por justiça, porque sua fé não se origina de um acontecimento histórico, e também não do que nela não acontece. É por isso que Deus a qualifica para a justificação e é ainda por isto que Abraão unicamente pela fé, tem parte com Deus na negação da negação e na morte da morte; é por isto que a sua fé brilha com o fulgor da luz não gerada, sem que esse brilho seja diminuído [ou prejudicado] pela experiência histórica, material, que Abraão viveu. V. 23 a 25 O que está escrito não concerne somente a ele mas diz também respeito a nós, a quem também deverá ser atribuído: a nós, os que cremos naquele que acordou o nosso Senhor Jesus, de entre os mortos, e que aí foi entregue por causa de nossa queda e ressuscitado para a nossa justificação.

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4, 23-24

Da Utilidade da História

“Isto não concerne somente a ele, mas também a nós”. A história pode ter uma utilidade: o passado pode falar ao presente, pois, o passado e o presente têm uma contemporaneidade que pode curar a mudez do passado e sarar a surdez do presente. O discurso desta simultaneidade anuncia a parte invisível incompreensível e imaterial da história, justamente a parte que é o fim e o começo de toda ela e, ao tornar perceptível essa parte velada, oculta, suprime [os intervalos, os interregnos, os séculos e os milênios que estabelecem e confirmam] a temporalidade e, [ao suprimi-los] completa a própria história [dando-lhe unidade e sentido]. A história do Gênesis alça a sua voz para nos falar do que não é histórico: e nos diz que a fé que habitou em Abraão, lhe foi imputada por justiça. A nossa queda é também a queda de Abraão [e vice-versa] e por isso os nossos ouvidos podem, eles também, acolher a voz que anuncia o evento, não histórico, da fé imputada por justiça. É nesta forma, e neste discurso da simultaneidade, que a história revela a sua utilidade, mostrando ao tempo presente o sentido único de todos os eventos históricos. Sem a proclamação do “não histórico”, sem tomar ciência do conteúdo e do significado imaterial dos eventos humanos e mundanos, o passado não fala e o presente não ouve. [Sem esta condição], as claras testemunhas e os eloqüentes documentos nada revelam, e a mais arguta perquirição histórica nada percebe se não entrar em curso o monólogo da contemporaneidade. Abraão, sem a luz superior do que não é histórico, nada tem a dizer-nos; não nos interessa e não o ouvimos. Se, independentemente do estudo dos documentos antigos, não existir, bem viva, a percepção do significado único e constante dos eventos humanos, a história se transforma em simples narração da seqüência de épocas e enumeração das civilizações que se sucedem; passa a ser formada por compartimentos estanques, justapostos, representados por indivíduos, eras, épocas, períodos, fases, situações e instituições. São forças individuais, isoladas, que arremetem em todas direções, irracionalmente. [A história, apreciada nesta forma, puramente material, pode parecer real e interessante, e determinadas ocorrências podem parecer como fenômenos ultrapassados. Todavia, é preciso lembrar que,] nem sempre, “realmente” significa “verdadeiramente”; interessante” não quer dizer, necessariamente, “plenitude de sentido, de bom senso e de lógica”; ainda mais: um acontecimento histórico, a despeito de se parecer como fato consumado, pode estar pejado de significação, conseqüências e potencial de novos eventos, não só para o presente imediato, como para o futuro — tanto o próximo como o mais distante.

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4, 23-24

Se a história nos oferecer apenas fatos consumados, ela é inútil; é mera compilação de material para crítica, por maior que seja a paixão pelas coisas da antigüidade que essa compilação despertar e por mais acurada que seja a análise dos povos do passado, de suas tendências e das situações que enfrentaram. Por mais fascinantes e magistrais que sejam os fatos que a história apresenta, se ela se limitar a fatos pretéritos, somente, ela não é história: e fotografia e análise do caos. História é uma obra de arte sintética que se origina dos eventos e tem um único tema. Quando essa arte, o [senso do] evento e a noção da unidade histórica não estão inatos no historiador, simplesmente não há história. “Apenas podeis interpretar o passado, pela mais alta força do presente; somente pela máxima aplicação de vossas mais nobres qualidades podereis adivinhar o que, do passado, é realmente grande, vale a pena ser testemunhado, e merece ser conhecido. É igual por igual. Se não procederdes assim, rebaixareis o passado... “Só o homem experimentado, só o homem prudente escreve história. Quem não tiver tido alguma experiência mais alta, superior à dos demais, não sabe ver nada de grande e de sublime na história que passou. “O pronunciamento do passado é sempre oracular: somente o entendereis se fordes, verdadeiramente, edificadores do futuro e conhecedores do presente”. (Nietszche). A história somente é útil quando o historiador procurar entender o passado nas multifacetas de sua unidade; quando fizer ressaltar os inúmeros aspectos que apontam, no passado, ao sentido de nossa presente existência; quando ele der voz inteligível ao discurso da simultaneidade e tornar visível e audível aquela parte não material, não histórica que está na origem e no fim de todos eventos históricos e que, por principio, se situa, primeiramente, na crise do desfalecimento para a morte. Esta “história” vê, à medida que compreende, e compreende na medida que proclama. Ela observa a história enquanto a escreve e a escreve enquanto a faz. Ela busca os seus conhecimentos em fontes que só se tornam tais, depois que ela as descerra pelo seu conhecimento. A história do Gênesis é desta natureza. Ela é uma história que escuta e que fala. Ela é plena de contemporaneidade. Ela é capaz de falar e de ouvir porque ela própria está encerrada na crise que descerra ouvidos e lábios. Ela vê e difunde a luz de cima porque ela própria está nessa luz.

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4, 23-24

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A história do Gênesis apresenta o que “não é história”, justamente porque o âmago e o teor de tudo quanto ela tem de histórico foi subjugado àquilo que nela não é história. Ela mesma parte do que não é histórico para chegar ao que o é, e se serve do que é histórico para testemunhar do seu fim e do seu início, como “não-história”. É por isso que ela nos diz, de Abraão, “o que não concerne a ele somente, mas a nós também”: “Nós, os que cremos naquele que acordou o nosso Senhor Jesus, de entre os mortos, o qual aí foi entregue por causa de nossa queda e ressuscitado para a nossa justificação”. “Igual por igual” e “igual para igual”. Não existem lábios que falem no tempo passado, sem ouvidos que os escutem no presente. A obra de sabedoria do Gênesis poderia ser anulada, e a luz superior que a ilumina poderia ser desligada; poderíamos restabelecer a sucessão dos tempos, a conjuntura das situações, a multiplicidade dos personagens da história, e essa história poderia ser interessante, embora muda; poderíamos recambiar o chefe beduíno chamado Abraão para as amplidões remotas, em tempo e no espaço [por onde outrora ele peregrinou]: pouco nos falaria. [Se tentarmos estudar a história do Gênesis de forma analítica, afastando do seu conteúdo a componente “não histórica”], a primeira conseqüência será o emudecimento da voz da simultaneidade histórica, pois o presente já não teria um parceiro digno do passado, e vice-versa. Mas por que não o faríamos? A análise pura e simples — [que visa à dissecação da verdade em todos os seus elementos sem procurar reuni-los para os apreciar em seu conjunto conforme a síntese o faz], é também um método válido. Todavia, [nessa separação de todos os elementos integrantes da história de Abraão], a análise levará, fatalmente, à conclusão de que a personalidade de Abraão é historicamente impossível; [que ela só pode ser entendida e explicada sintetizando todos os fatos e elementos que a compõem]. É o retorno à síntese que o Gênesis apresenta, e melhor faremos se dela não nos afastarmos. No discurso da simultaneidade somos envolvidos ao mesmo tempo, pelo passado e pelo presente. O Gênesis conta-nos de Abraão aquilo que nos concerne, mesmo que só muito vagamente tomemos ciência disso. Conta-nos o que temos de ouvir ainda que a nossa consideração por Abraão seja inteiramente diversa daquela que o Gênesis sugere: “Pois cremos naquele que acordou o Senhor Jesus de entre os mortos”.

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4, 24-25

Estamos na mesma problemática de Abraão, que o Gênesis nos mostra: na linha limítrofe entre a morte e a vida. Estamos entre o abismo em que o homem cai quando rejeita a justiça de Deus e essa mesma justiça, que o homem alcança quando nega a si mesmo. Estamos juntos com o Abraão do Gênesis que é muito mais “não-histórico” do que o historiador analista pode imaginar. Para Abraão, como para nós, o conhecimento é impossível; a nós, como a ele, parece impossível a ressurreição; para nós ambos é impossível a unidade entre o “aquém” e o “além”, unidade essa que se fundamenta em Deus. Cremos — e sabemos — que precisamos admitir que de nossa fé sabemos apenas que ela é sempre incrédula; mas sabemos também que, como fé, como aquilo que não conhecemos, semelhantemente à fé que teve Abraão, ela é a transformação de todas as coisas; é a morte da nossa morte e a aniquilação da nossa aniquilação. (4, 17). Não crendo, resta-nos, entre outras possibilidades possíveis, a da crítica analista que, conscientemente — propositadamente —, se atém ao Abraão que não nos diz respeito, que não nos concerne, nem pode interessar-nos. Não pretendemos [com o que acima ficou dito] denegrir a crítica analista, pois também ela, no final, não poderá afastar o desfalecimento para a morte, em que nos encontramos, antes terá de acelerar o seu desfecho a seu modo, pois a análise, IN FINE, somente poderá testificar que o Abraão histórico não nos diz respeito. E à medida que o fizer, ela abrirá os olhos para o Abraão “não histórico” do Gênesis, para a necessidade da síntese, e para a impossível possibilidade de podermos, todos, atrever-nos a contar com nossa fé. Comentários: 4, 17-25 Nesta última parte do Capitulo IV, o Apóstolo Paulo apresenta Abraão, o herói da fé, dentro da conjuntura e sob a perspectiva da História Universal, primeiramente, no que diz respeito ao povo de Israel e, aí, no que se reporta à História da Redenção; em seguida, na história geral e dentro dela, no que diz respeito a Jesus Cristo. É evidente que a história secular — a geral, e a de Israel, em particular— não toma conhecimento da “promessa invisível” que a história do Gênesis traz. Israel, como uma das muitas nações que integram o nosso presente mundo, prefere ver na promessa do Gênesis o que pode (e com justa

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4, 17-25

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razão) ser entendido como vantagens materiais prodigalizadas e garantidas aos filhos de Abraão segundo a raça, segundo a carne, muito particularmente, nos tempos que correm, aquilo que, na promessa, for concernente à posse da terra. A história secular registra ocorrências; detecta tendências; perquire origens e busca inter-relacionar causas e efeitos no seu senso de fatos consumados; coisas já verificadas, já acontecidas. Daí o seu nome: História. Porém a promessa que o Gênesis contém, é diferente; ela é independente, altaneira e sublime; em nada é comparável com as realidades do mundo, que apenas testemunham a promessa invisível. Todavia, se a história de Abraão for analisada com objetividade, cedo ou tarde, o historiador honesto se deparará com o inverossímil. Como explicar a paternidade de uma “multidão de nações”? E uma descendência tão incontável como as estrelas do céu ou tão numerosa como o pó da terra? Se olhar ao redor dele verá um Israel escasso remanescente e, quiçá uma sobra apenas folclórica dos samaritanos, e ainda que contasse os Ismaelitas, poucas nações e pequenas populações encontraria. Não seria a promessa, um mito, para expressar os fatos com benevolência e não usar qualificação mais forte? E o que dirá o historiador da promessa ainda mais estranha que faz de Abraão e da sua descendência a via da bênção divina a todas as famílias da terra? Misticismo? E como se situa o historiador analista, judeu? Só há duas alternativas: ou rejeitamos inteiramente a história do Gênesis pela razão, ou a aceitamos, também inteiramente, pela fé. Talvez seja constrangedor ao analista “gentílico”, descartar-se dos eventos “não históricos” que giram em torno da ressurreição; talvez, nessa perplexidade ele perceba o significado único que os eventos mundanos sintetizam no encaminhamento do destino traçado por Deus, desde antes da origem dos tempos. Talvez seja ainda mais constrangedor ao analista judeu por de lado o sentido transcendental de todos os eventos da história da redenção, que ocorreram dentro de sua própria casa: da voz profética que aponta ao Messias, apresentando o Cristo; da esperança e tradição que falam vigorosamente do Poder de Deus. Como pode ele explicar a própria existência de sua nação?

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4, 17-25

Todavia, a todo homem, judeu ou bárbaro, assiste o direito de opção. Esse direito é de origem divina; Deus nô-lo deu, ainda na semana da criação: “Não comereis da árvore que está no meio do jardim”. A opção está no centro “do jardim”. Ela é a centelha divina que distingue o homem espiritual e o afasta, o eleva, acima do reino animal. Cada homem terá que optar; é a essa opção, que o A. chama de “crise”, na linha divisória entre a vida e a morte. Para quem crê, soa a voz que o A. designa por” Discurso da Simultaneidade”. Este discurso ecoou em presença de Abraão, e ao largo das portas de Jerusalém, no lugar chamado Caveira; também na rocha cavada, de José de Arimatéia. E ecoa hoje no Templo do Espírito Santo, ao ser contrito e humilde que com temor e tremor, esperançoso e confiante, se aproxima dos pés do Criador, em Cristo. O discurso da simultaneidade é a voz que fala desde a sarça ardente, e desde os céus; é a voz que anuncia o “Deus desconhecido” no farfalhar da folha, no sussurrar da brisa, no rugido das vagas, no estrondo do trovão. (2, 20). E a voz que diz: “Vinde a mim”. Deus! Essa é a voz que une as eras, os séculos, os povos, os remos, as nações; para ela não há ontem, nem amanhã, nem hoje; ela é. A nós, porém, presos ao corpo desta morte, só resta uma maneira de expressá-la: “JESUS CRISTO, ONTEM, HOJE PARA SEMPRE”.

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Capítulo V

O DIA QUE SE APROXIMA O A. divide o Capítulo em duas partes: • O NOVO HOMEM -Vs. 1 a 11 e • O MUNDO NOVO -Vs. 12 a 21 Na exegese da primeira parte o A. abordou o “Novo Nascimento” que tem lugar mediante a justificação pela fé. O “novo” homem é idêntico ao “velho”. Sofre as mesmas limitações; padece das mesmas enfermidades e atribulações; todavia, tem um privilégio: goza da Paz de Deus. Esta paz não lhe advém de qualquer comunicação do além, nem de proteções naturais ou sobrenaturais, porém pela certeza do amor de Deus que é derramado abundantemente em seu coração pelo Espírito Santo, que (sendo o próprio Deus) é o sustentáculo do homem “novo” o qual, pela fé, vê em Cristo o generoso e poderoso “SIM” de Deus, vencendo a morte, para restaurá-lo na condição de filho. É por ter esta certeza que o homem “novo”, embora ainda acorrentado ao “corpo desta morte” se regozija e se gloria na esperança em Deus, antegozando a paz que só Deus pode dar.

O NOVO HOMEM (5, 1-11) V. 1 Portanto, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. (O A., em nota de rodapé, chama atenção à forma do verbo “temos”, no indicativo presente, e na primeira pessoa do plural (que é também como Almeida escreve). Diz o A. que a outra maneira de escrever seria “tenhamos” (ou deixai-nos ter) paz com Deus. Esclarece que esta segunda maneira, embora muito antiga, todavia, não é própria; talvez houvesse sido introduzida para chamar atenção à

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passagem. Segundo Lietzmann, esse engano pode ter sido cometido pelo próprio Tércio (16, 22) a quem Paulo ditou a carta. [Lietzmann foi teólogo evangélico, alemão, falecido em 1942. Lecionou “História Eclesiástica” e notabilizou-se, entre outras coisas, por suas pesquisas filológicas)]. “Portanto, justificados pela fé”, — “a noite já vai longe e o dia está prestes a raiar” (13, 12). [A tradução de Almeida diz: “A noite é passada e o dia é chegado”]. Se contarmos com a nossa fé [se ela realmente existir], então precisamos incluir [com o “eu”, com o “velho” homem deste mundo], também o “novo” homem, a quem o “nós” se refere pela fé: é o novo homem do “Dia do Senhor”, que ainda não raiou, mas esta próximo. Pela fé adquirimos o “status” dos que foram declarados justificados perante Deus. Já não somos somente aquilo que efetivamente somos [neste mundo], mas também, [ainda pela fé], aquilo que “não somos”. A fé é o predicado cujo sujeito é o homem “novo”. Este homem “novo” é caracterizado pelo “interminável sofrimento” (Kierkegaard) que é apenas perceptível como a vacuidade que invade a vida cotidiana e faz com que esse homem novo seja visto por todos, e em toda parte, como negação. E justamente por isso ele, também sempre e em toda parte, dá testemunho deste homem novo. Visto da parte do mundo, ele poderia ser comparado ao ponto “zero” de uma hipérbole, de onde os ramos se afastam até o infinito, e onde se encontram: o começo e fim. Não sou “eu” o sujeito desse predicado, pois ele é tudo quanto está além, tudo quanto é radicalmente diferente e até em oposição a mim; no entanto, sou o sujeito dele pela identidade que a fé estabelece entre mim — o “sujeito” de cá, e o “sujeito” de lá. O homem “novo” [e eu também], nasce sob o signo da morte e da ressurreição de Cristo (4, 25), e no conhecimento de Deus que vivifica os mortos e que fala ao que não é, como já sendo (4, 17); (é por isso que eu, “junto” com o homem “novo”) nascemos de cima (João, 3, 3). A rigor, não serei mais “o mesmo” que sou, mas essa inaudita identidade com o homem “novo” é verdadeira pelo poder da Palavra de Deus. [Deus fala ao homem “novo”, (a mim) que ainda não o sou, como já o sendo]. Somente sou aquilo que (não!) sou, pela Fé! Se o arrojo da fé, [a ousadia de crer nas coisas divinas que são absurdas à luz dos critérios humanos] desaparecer ou falhar por um só instante, se a atitude de confiança se transformarem dúvida, [se momentaneamente eu tomar

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5, 1

uma posição como se eu nunca houvesse aceitado o paradoxo da fé] então essa identidade que o relacionamento pela fé impõe entre o sujeito que sou e aquele que não sou — mas venho [ou viria] a ser pela fé, deixa de existir, e as considerações que se tecerem a respeito não passam de especulação religiosa, híbrida. — [Quiçá. hibridismo resultante da arrogância humana de um lado, e da especulação filosófica sobre a promessa divina, de outro]. Posto em termos dialéticos, a identidade entre o homem “velho” e o homem “novo” só pode existir sob a ponderação de que o homem não é Deus. Precisamos vigiar-nos atentamente desde o instante em que nos atrevemos a contar com nossa fé. [Para que não caiamos na tentação de atribuir algum mérito a nós mesmos...]. A passagem pela “porta estreita” [que é a morte da presente vida e o novo nascimento para a “nova” vida] deve ser encarada como possibilidade e necessidade muito estranhas. É preciso que tenhamos sempre em mente que o caminho angusto é quase inacessível; que a ordem [de entrar pela porta estreita] é altamente incompreensível; e que as forças que temos em nós hão de parecer-nos inteiramente insuficientes para darmos um só passo para além da exígua cancela; que há de parecer-nos extremamente perigoso avançar por essa senda apertada. A caracterização da escolha [entre as portas larga e estreita] como simples questão de usos e costumes, de comodidade e de bom senso, como se tratássemos de coisa natural, é mentira pura; é a maldição original, o germe do veneno quase impossível de erradicar, que existe em toda ou quase toda dogmática, pregação e trabalho pastoral; que existe nos pronunciamentos religiosos das mais variadas espécies. A verdade de que somos novas criaturas, para nós, está exclusivamente em seu ponto de partida. [Entendo que o A. quer dizer que estamos sempre e somente no estado inicial, no nascedouro da nova criatura, sem podermos pretender ter qualquer vivência, qualquer experiência, qualquer conhecimento pessoal dessa nova condição]. Este ponto de partida significa, para nós, o fim de tudo o que é perceptível, e de todo o entendimento. Somente no fim do homem “velho” pode ser percebido o começo do homem “novo”; o sentido e a realidade da ressurreição de Cristo somente podem ser entendidos junto à cruz. Sempre, e acima de tudo, apenas podemos crer, e crer reiteradamente; podemos mesmo, acreditar que cremos sem crermos realmente. Não existe maneira de se fazer uma delimitação, uma determinação de natureza material, histórico-psicológica, entre os que crêem e os que não crêem. Aparentemente, visivelmente, ambos estão com as mãos vazias.

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“Somos quais relva na borda extrema de íngreme encosta, lá nas alturas, onde nada mais viceja; em baixo, nos vales, frondosos carvalhos lançam suas raízes nas profundezas do solo fértil. Nós, porém, somos vegetação fraca, pequena, rasteira, quase invisível da planície; desabrigada dos ventos e tempestades, quase sem raízes, quase emurchecida. É por isso que, apenas começa a raiar a aurora, já estamos banhados em luz, enquanto lá nas profundezas do vale as franças altaneiras das mais frondosas árvores estão ainda imersas em plena escuridão. Vemos aquilo que ainda ninguém vê; somos os primeiros a dizer-lhe: verdadeiramente, vem Senhor!” (Mereschkowski). É, pois, somente pela fé, que somos os primeiros porque somos os últimos; crescemos, porque mirramos; somos grandes, porque pequeninos; fracos: em nossa fraqueza, somos justificados por Deus. Deus se justifica perante nós e assim, também nos justifica perante ele. Ele nos liberta, aprisionando-nos; ele nos rejeita, quais somos, e assim nos confirma quais não somos. Ele toma partido conosco e nos utiliza segundo o seu propósito, de forma que a sua causa fica sendo a nossa, e a sua direita, a nossa direita; a sua boa obra se inicia em nós. Ele toma conhecimento de nós, e permanece conosco; recebemos a promessa de nossa salvação, em seu reino. Pertencemos-lhe, desde já, na esperança. É na rejeição do homem “velho”, conhecido deste mundo, que tem lugar a implantação do homem “novo”, cuja personalidade é modelada pela ação invisível de Deus. “Temos paz com Deus”. A luz na qual penetramos pela fé, e da qual nunca ouvíramos falar, é a paz que o homem não justificado, o único que conhecemos, passa a ter com Deus, nosso desconhecido. Paz com Deus significa um acordo entre o homem e Deus, tornado possível por meio da modificação da condição humana, vinda da parte de Deus, e efetivada por meio do estabelecimento de relações normais da criatura com o Criador, pela fundamentação do amor a Deus no temor do Senhor, o único e verdadeiro amor que a criatura pode dedicar a Deus. (5, 5). Se não fomos justificados perante Deus, pela fé, estamos em estado de guerra com ele; nesta condição, o amor que lhe professamos ignora a distância que separa a criatura do Criador; é um amor que não se fundamenta no temor do Senhor, como por exemplo, a “intimidade” do misticismo hindu, do romantismo, e dos discípulos de Zinzendorf; é um endeusamento que, em sua essência, se refere ao “NÃO-DEUS” deste mundo (1, 22 e seguintes) e que coloca os seus seguidores sob a ira de Deus e na trincheira de seus inimigos. (5, 10). (Zinzendorf foi o restaurador (e praticamente o fundador), na segunda metade

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do século XVIII do grupo evangélico “Irmãos Morávios” originalmente formado por antigos seguidores de João Huss (da Morávia, Checoslováquia); também alemães, remanescentes dos valdenses, aderiram ao grupo. Zinzendorf foi pietista e, como tal, provavelmente via com simpatia a doutrina da justificação pelas obras inspiradas no amor a Deus, e que constituíam a comprovação desse amor. Esta deve ser a razão da crítica do Autor. Diga-se de passagem que os “Irmãos Morávios”, oficialmente, não aceitam essa doutrina; seus princípios fundamentais são: 1.A Bíblia Sagrada é a única regra de fé e prática; 2. Depravação total do homem; 3. Cristo é totalmente homem e totalmente Deus; 4. Só há justificação e redenção mediante o sacrifício de Cristo; 5. A obra do Espírito Santo; 6. As boas obras são fruto do Espírito; 7. Comunhão dos fiéis; 8. Segunda vinda de Cristo; 9. Ressurreição dos mortos para a vida ou julgamento. “A paz com Deus está em absoluta oposição a toda forma de inebriante segurança carnal” (Calvino). Paz com Deus é a oportuna ordenação do relacionamento do homem (como homem!) com Deus (como Deus!). Portanto, paz com Deus é mais do que “um agradável sentimento de felicidade”. — (Kuehl). Tal sentimento [ou outro semelhante] tanto pode acompanhar este “pacto de paz”, como deixar de acompanhá-lo mas, em nenhuma hipótese, constitui esse acordo. Este pacto se dá com a libertação da verdade retida (1, 18), mediante a revelação da justiça de Deus, pela fé. (3, 21). Porém, ter paz com Deus não significa “viver na realidade de Deus” (Kutter). Não há unificação entre Deus e o homem; não há a supressão da linha da morte, nem há apropriação da plenitude de Deus, de sua salvação e sua redenção. A inimizade entre o espírito e a carne perdura em toda sua rudeza e violência. O homem continua sendo homem e Deus continua sendo Deus. A fé continua sendo necessária e não se pode tirar a mínima coisa do paradoxo que a fé acarreta. Também o homem continua sendo aquele que aguarda e espera [que vive na esperança] (8, 24) [sem em nada, em absolutamente nada se modificar a sua situação material por haver alcançado sua paz com Deus]; a diferença,

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porém, é que pela fé, ele espera somente em Deus e esta é a razão, a base, de sua paz com ele. A meio caminho, entre o sentimento humano e a realidade divina, está o sentido e o poder da “paz com Deus” que gozam os justificados pela fé. Onde, pois? Justamente aí onde a consciência do que Deus é, em Cristo, se torna em linha crítica que determina a posição do homem, para a esquerda ou para a direita: “Por nosso Senhor Jesus Cristo”. É indiscutível que esta paz só pode ser fundamentada, e verdadeira, em Deus. É obra de Deus, em nós realizada, completada, com a crucificação e ressurreição de Cristo. Portanto, não é a conseqüência de uma experiência passada ou de um impulso humano. Se a fé [tiver em seu teor, ou] for também experiência ou impulso humano, ela não será tida como justiça perante Deus, e não poderá proporcionar o relacionamento objetivo entre nós e Deus. Fé é o poder invisível que nos anula [para reconciliar-nos com Deus] — para nos transformar em “Filhos de Deus”. Fé é o ponto de inflexão [de mudança de rumo] que nos leva da vida [deste mundo] para a morte, a fim de que vivamos em Cristo. V. 2 Por ele também temos entrada, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. [O A., em nota de rodapé, tece comentário dizendo que há uma aparente reiteração (entre os versículos 1 e 2) quando o primeiro diz: “justificados pela fé” e no segundo diz “também.., pela fé”, opinando que no versículo 1 Paulo se refere a “todos em geral” e, no versículo 2, contempla também, e em particular, o seu próprio apostolado.]. “Por ele, [Jesus Cristo] mediante a fé, temos acesso a esta graça”. A existência problemática e “plena de promessa”, do próprio Apóstolo, ilustra bem a natureza da paz que a “nova criatura” tem com Deus. O Apóstolo está “nesta graça”, isto é, na graça de ser o apóstolo de Jesus Cristo (1, 5) e está na posição altamente invulgar de precisar de falar daquilo de que não se pode falar, de ser testemunha humana de coisas que só Deus pode testemunhar; de, como Paulo, ser também o servo do Messias, “separado para o evangelho de Deus” (1, 1). [“Pela graça de Deus, sou o que sou”]. Paulo não pode considerar essa sua posição se não como graça, como fato paradoxal. (I Cor. 15, 9-10). Esta graça faz com que Paulo — (e, quem sabe, também o leitor) compreenda quão invisível é a paz de Deus, e o que ela significa.

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Paulo aprendeu a respeitar a justiça de Deus com tremor e temor; a sua personalidade como Saulo foi [aniquilada], suprimida; quebrou-se-lhe a carreira que vinha seguindo; ficou cego. Então começou a amar a Deus; então o reconheceu como seu Criador e Redentor, e como o Criador e Redentor de todos os homens; então começou a arder nele o zelo e o fervor por Deus. Quando Paulo sentiu a arrasadora santidade de Deus, a graça divina tomou conta dele. Quando passou a esperar em Deus ele entrou na posse da paz e, conseqüentemente, passou a correr ao lado de Deus; e eis agora a grande atenção divina voltada para o pequenino, o fraco, sobre quem foi lançada a carga de incomensurável missão. Agora, por traz dele está o invisível poder de Deus. Mas Paulo é o que é: o mensageiro daquele perante o qual todo homem é cinza e pó. Isto significa que Paulo passa a ser “o que ele não é”, e a saber “o que ele não sabe”; a fazer, “o que ele não pode fazer” (“Eu vivo, porém não eu,..”). Esta é a graça em que Paulo está e, por entre todas as exaltações e humilhações, quando tiver de falar da paz do “homem novo” com Deus, não deixará de ter em mente o paradoxo de sua própria existência. [Paulo fala das coisas que o mundo não pode ver nele; ele é fraco e pequeno; (“... o mal que não quero, esse faço”.) (7, 19). Mas poderoso e grande é Deus, cuja mensagem ele traz]. Todavia, [para o mundo] a mensagem não pode ser separada do mensageiro. [Por isso] ele sabe o que está fazendo ao pregar (ao insistir) que SOMENTE pela fé se abre (e se fecha) a porta à paz que anuncia, pois o acesso que ele próprio teve a essa paz, foi exclusivamente pela fé. Ele sabe o que diz, quando proclama que essa entrada se encontra “por ele”, a saber: por nosso Senhor Jesus Cristo, em quem creu sem primeiro galgar quaisquer degraus preparatórios, sem atalhos; em quem creu, exclusivamente por obra divina nele, Paulo; ele creu, exclusivamente pela contemplação da crucificação e da ressurreição; e crendo, pela fé, ele é o que (não) é. “E nos gloriamos na esperança da glória de Deus”. Paulo sabe o que faz quando afirma que, proclamando o evangelho, ele traz esperança aos homens; uma incomensurável esperança, plena de gozo; uma esperança que está além de todas as esperanças: a esperança da glória de Deus. Ela “resplandece para nós desde o evangelho que testifica que participaremos da natureza divina, pois, quando virmos a Deus, face a face, seremos semelhantes a ele”. (Calvino). Esta é a vida em sua realidade divina; a salvação e a redenção dos chamados “herdeiros de Abraão” (4, 13); é o despontar do “Reino dos Céus”; a unificação entre o “Aquém” e o “Além”, na ressurreição; é a unidade entre o homem e Deus, em plena visibilidade (3, [22 e] 23). A unidade do “SIM” e do

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“NÃO” divinos, na segunda vinda de Cristo, na “Parúsia”. [A volta gloriosa de Cristo, no final dos tempos]. Esta é a esperança da qual se gloriam os que estão justificados mediante a fé e, “embora sejam, ainda, peregrinos sobre a terra, apressam-se, com plena confiança, para além de todos os céus, trazendo, já agora, em paz, sua vindoura herança em seus corações” (Calvino). Como crente, também Paulo se gloria dessa esperança, e é nessa glória que reside o paradoxo do seu apostolado pelo contraste que apresenta com sua vida material. Mas ele tem “esperança” somente, e é “esperança” que ele prega: Deus o mandou para “dar assistência” ao novo “nascimento” mas lhe é defeso gerá-lo ou criá-lo. Isto é tão proibido a Paulo como o foi a Sócrates. Não existe [qualquer] antecipação do que é “Além”, do que é futuro, do que é eterno, se não pela fé! Não existe um poder atual, presente, [um talismã] conhecido ou secreto que desminta [ou faça desaparecer] o caráter esperançoso da tensão da fé, da negação e da renúncia, pois o sentido e o poder de tudo “O QUE É” para nós [os que cremos] tem que estar sempre “NAQUILO QUE NAO E”. Não pode haver qualquer identificação entre o “homem velho” e a “nova criatura” sem a consciência plena de que a ligação entre o “Aquém” e o “Além” exige a incomensurável e cabal condição do “eu creio”; exige que o terrível vale da morte seja transposto pela fé. Sim, nós nos gloriamos porque estamos cientes de nosso sustentáculo, de nosso apoio, de nosso consolo final; estamos também certos [da justificação] do orgulho que esta firme esperança traz. Todavia, saberemos e sempre nos lembraremos que esse “final” se firma em Deus; na justificação por ele pronunciada, e que nos engrandece, humilhando-nos. Esse final consiste na justificação de Deus, a qual percebemos mas não sabemos soletrar nem podemos contabilizar em nossa escrita, [a nosso favor]. Nunca podemos exibir esse final, nem fazê-lo valer como se fora nossa posse (2, 17 e 22; 3, 27; 4, 2); jamais poderemos apregoar que esse “final” vem [ou virá] de nossa experiência [de nossa vida], como sendo uma “possível” possibilidade [histórica ou pessoal]. Vs. 3-5 Não somente isto — gloriamo-nos também nas aflições, porque sabemos que: a aflição gera a perseverança, a perseverança traz a experiência e a experiência produz a esperança; ora, a esperança não envergonha, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi outorgado.

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“Gloriamo-nos também nas aflições”. A consciência do apoio, do consolo e do orgulho finais não se efetiva e se confirma somente quando tudo for róseo, quando a situação do mundo exterior e interior forem tais que despertem [no coração, um cântico de] esperança colocando o louvor em nossos lábios. A posição da “esperança da glória de Deus” é de ordem superior, tão certo quanto o é a sua correspondente negação: a nossa “destituição da glória de Deus”. (3, 23 e 5, 2). Estes “SIM” e “NÃO” divinos não se prendem ao “sim” e ao “não” do conteúdo contingencial de nossa vida. Portanto, não é essencial [ou necessário] que a paz do homem com Deus, a graça em que o Apóstolo está, seja refletida no seu estado interior ou exterior, como “felicidade”, satisfação, “ataraxia” estóica [a paz mental oriunda da abstração às emoções], ou como otimismo. Isto é tão verdade, como, também, o conhecimento da existência da ira de Deus e de seu julgamento, não cria em si, o pessimismo, a rejeição do mundo e sua maldição. O “SIM” da fé se realiza dentro do “sim” e do “não” das contingências fortuitas da vida, porque está fundamentado em Deus e tem nele o seu conteúdo, da mesma forma que o “NÃO” da fé permanece sendo “não” mesmo quando, por acaso, a vida diga “sim”, pois este “NÃO” também vem de Deus. Portanto, “as aflições”, a precariedade do ser humano no mundo, a “deterioração do homem exterior” (II Cor. 4, 16) que se estendem ao mais íntimo do ser, a “energia da morte” que o Apóstolo experimenta nele mesmo, (II Cor. 4, 12) a “luta externa e o temor interior” em que se acha, (II Cor. 7, 5) e o fato de ser efetivamente afligido por todas essas coisas, não constitui qualquer obstáculo à paz de Deus, da qual gozam aqueles que estão justificados mediante a fé; estas coisas não são empecilhos à presença do amor de Deus, derramado nos seus corações (5, 5); elas não são um PUDENDUM [um aviltamento] da fé, que exigisse uma “teodicéia” ou mesmo uma interferência direta para reanimá-la. A teodicéia [a justiça divina] concernente ao mal, e necessária para seu saneamento, já foi dada pela Palavra com a qual Deus mesmo se justifica, declara justificado o crente, e o constitui em herdeiro de seu reino. Também aqui vale: somente pela fé; pela fé, sim, que certamente, se esforça por ver e que, na realidade, leva a ver, mas não espera por isto, para que seja fé mesmo nas trevas, isto é, fé durante as aflições e na hora do aperto e não somente depois de haver a provação sido, felizmente, vencida interna ou externamente, depois de o sofrimento estar atenuado ou de haver sido galhardamente suportado. Existem suspiros, gemidos, ais, murmurações e fraquezas, na paz de Deus. “Isto significa que não devemos dar ouvidos aos tais parladores que querem apenas cristãos fortes e não toleram os fracos; [na verdade] porém,

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existe um contínuo anseio, um constante cair em aflição, um [incessante] clamor, “Aba, Pai”! Do ponto de vista da razão [do bom senso], este clamor é minúsculo, mau, néscio. Mas Paulo diz: onde houver lamentação, aí há filhos de Deus! Não é mister ser sempre forte: se Deus permitiu que Jesus descesse às profundezas da agonia da cruz, não agirá de forma diferente com seus membros”. (Lutero). Na paz de Deus existe um “sofrer”, um “submergir”, um “estar perdido” e “ser estraçalhado”. “Abraão flutua entre o céu e a terra; luta com Deus e o seu coração se parte. De um lado lhe é dito: ‘Isaque será a tua semente’; de outro ‘ele deverá morrer’. Aí prevalece a base da fé, que a ninguém deixará envergonhado [confundido]; é ela que suporta o golpe”. (Lutero). Na paz de Deus tem lugar, também o que o mundo chama “incredulidade”; o clamor “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é o ataque da morte e do inferno; “que ninguém se iluda; quem não quiser ser atacado, este não é cristão, porém turco [mouro, incrédulo, pagão] e inimigo de Cristo”. (Lutero). Crer na salvação não é crer em qualquer salvamento, em qualquer certeza proléptica, tranqüilidade, benignidade (ou mesmo ingenuidade) e contentamento; antes, é crer no meio do tumulto, no centro da mais íntima convulsão da humanidade, do mundo não redimido; [esta crença] “se verifica na esperança; está por acontecer. Agora é preciso resistir, lutar e golpear; não retroceder perante o inimigo. Os desertores serão estrangulados”. (Lutero). Ter alegria em Deus quando nada justifica essa alegria, é a glória dos que estão justificados pela fé. “Porque sabemos que: a aflição gera a perseverança; a perseverança traz a experiência e a experiência produz esperança”. (Pela tradução de Almeida: ”...sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência, e a experiência, esperança”]. Não nos gloriamos apenas nas aflições, mas também das aflições. [O que, todavia, não significa que louvemos a Deus pelos males que nos afligem segundo algumas pessoas pretendem]. Podemos dizer “sim” a negações de nossa vida como também, e muitas vezes, podemos e devemos dizer “não” a afirmações que ela contém. Como é isso possível? “Porque sabemos”; porque de uma ou de outra forma temos um relance de vista através das realidades, através daquilo que realmente conta no momento. Sabemo-lo mesmo?

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Não; realmente não o sabemos; sabemos apenas que não o sabemos. Mas Deus sabe. É assim que passamos a saber o que é impossível de ser conhecido: o significado e a força da atribulação em que estamos; ela tem o poder e o significado da morte; essa força vem ao nosso encontro como transtorno, destruição e negação em nossa vida; ela vem como o horrível mistério de nossa existência; como permanente maldição da nossa condição de criaturas; ela vem ao nosso encontro como mensageira da ira de Deus como a fatalidade do “NÃODEUS”, do Deus deste mundo (1, 18). Todavia, vemos o invisível. Na ira de Deus vemos a sua justiça; na crucificação vemos a ressurreição; na morte, a vida; vemos o “SIM” contido em “NÃO”. No cerceamento vemos a saída; no julgamento vemos o dia da salvação que se aproxima. A negação no sofrimento de Cristo (5, 6), e que é a nossa posição, muda o sinal matemático inscrito na frente de nossa tribulação. O que parece ser mero sofrimento humano, transforma-se em obra de Deus, o Criador e Redentor; os empecilhos da vida transformam-se em degraus para a vitória; o derribar dá lugar a nova edificação; a desilusão e o revés aguçam a esperança e o anseio pela volta do Senhor. O prisioneiro passa a sentinela (1, 16). “As trevas são como a luz”. (Sal. 139, 12). Entendemos a problemática da vida, como tal; estamos conscientes de nossa limitação e de nossa temporalidade, sabendo que são necessidade não casual, [acidental, em nossa vida]. Confirmamos o “NÃO” que de fato se opõe à nossa condição de criatura; fazemos parecer sensato (1, 20) o protesto da criatura que não se conforma com sua existência e seu modo de ser (8, 19 e seguintes); reconhecemos que a criatura está sob julgamento. Porém, amamos o Juiz. Amamos o Juiz porque, como juiz não julga com critério idêntico ao do “NÃO-DEUS” deste mundo; porque ele, como juiz, revela-se como sendo totalmente diferente de nós e do teor de nossa vida. Todavia, a nossa aflição não deixa de ser aflição, e sempre a sofreremos como tal. Sofremos agora tanto quanto antes; mas já não mais a aflição, o desespero passivo, venenoso, perigoso, destrutivo, que sobrevem à alma do homem que não ama a seu juiz (2, 9), porém a aflição e a perplexidade regenerativa, frutífera, [fecunda] plena de vigor e de promessa, conforme só o pode sentir o homem que sabe que foi suprimido [aniquilado] por Deus; que foi lançado ao chão, aperreado, apertado contra as paredes, posto em cativeiro por Deus! Essa tribulação nos enrijece e gera a “perseverança”; muda a defensiva em ofensiva e transforma a nossa condição incerta e duvidosa na posição serena de quem está fortalecido pela certeza de que todas as coisas operam para o bem daqueles que amam a Deus. (8, 28).

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[Por vezes] duvidamos, porém continuamos em Deus; nos debatemos, contudo, ainda em Deus: sentimo-nos frustrados, abandonados por Deus e até blasfemamos, chegando aos extremos em que se perdeu um Jó, onde a blasfêmia é e continua sendo blasfêmia contra Deus. O original diz: “Wir zweifeln — aber in Gott “Wir stossen an — aber an Gott “Wir scheitern — aber an Gott”. A tradução inglesa escreve: “We may doubt, but it is in God we doubt “We may bick against the pricks, but they are God’s pricks”. Então é possível que a despeito de nossa eventual revolta contra Deus, arremetendo contra ele, continuemos ligados a ele? Parece-me que sim, dentro da conjuntura admitida por Barth, isto é, “quando amamos a Deus”. Talvez possamos traçar um paralelo, ainda que imperfeito, na situação de um filho que, embora amando seu pai, não se conforme com determinada decisão paterna, rebela-se contra ela, todavia, jamais lhe ocorre a idéia de afastar-se do pai, a quem se considera indissoluvelmente ligado; ele argumenta e discute com o pai porém não o despreza nem o menospreza. Assim é a criatura que ama a Deus; em seu desespero luta e, talvez até blasfeme, conforme Jó. Porém, pelo amor a Deus, permanece nele. Foi por isto que Jó, a despeito da insensatez de seu arrazoado, falou o que era reto perante Deus, pois, no íntimo de seu coração, estava límpida e bem viva a chama do amor a Deus. A pressão sob a qual ficamos [em nossas atribulações] revela, à medida que a aceitarmos como divina, a contra-pressão de Deus que nos traz o seu consolo tirando da morte o seu aguilhão e desviando contra o próprio inimigo as armas com que nos ataca. Se reconhecermos que é em Deus que sofremos e pecamos, que fomos lançados sobre Deus, atados nele, que somos aniquilados por ele, para sermos por ele levantados e sustentados, então se comprova a eficácia da nossa fé que tudo espera de Deus e dele espera tudo; e a prova pelo exemplo; é o desafio, o estímulo às novas e sempre renovadas esperanças junto ao portal onde toda esperança parece perdida.

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Se o estímulo [ou desafio] também se manifesta numa “firme disposição de alma” (Lietzmann) é coisa mais do que duvidosa; todavia, não é necessário que assim seja. Gloriamo-nos das aflições porque conhecemos o caminho para as transpor (e que não é caminho), pensando naquele que foi crucificado e que ressurgiu, em quem o mundo não pode pensar. “Ora, a esperança não envergonha, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi outorgado”. “O homem sempre se inquieta quando vê os sinais de luta” (Steinhofer). Não há duvida: se considerarmos a nossa esperança, o desafio que a provação nos traz e a esperança que daí resulta, como grandezas humanas, precisamos reagir e renunciá-las imediatamente pois, nessa condição, o homem perseverante, o homem em provação, o homem esperançoso, não tem do que gloriar-se porque sua tribulação, para dizê-lo a bem da verdade, será sempre [e somente] “aflição”. Porém, a nossa esperança é a “esperança da fé”. Ela não subsiste, ou falha, em função da firmeza ou do desfalecimento de nossa própria esperança. Semelhantemente à fé, o seu nervo vital não está numa contingência humana, porém no alvo que lhe é apresentado por Deus, e dele tira o seu conteúdo. A esperança, como conteúdo e alvo, não traz vergonha (Sal. 22, 5-6 e 25. 20) ainda que falhe [e fracasse] tudo o mais que estiver baseado em esperanças, pois esta esperança (superior e divina) permanece, mesmo que fraquejemos. Gloriamo-nos, pois, na esperança, porque ela não está fundamentada em ação de nosso espírito de criaturas, mas no Espírito Santo que nos foi outorgado, mediante o derramamento do amor de Deus em nossos corações. O Espírito Santo é a obra de Deus, na fé; é o poder criador e redentor do Reino de Deus que está próximo e que, pela fé, tange o mundo dos homens e o faz ressoar como o cristal às vibrações do diapasão. O Espírito Santo é o eterno “SIM” da fé que, vista do lado humano, apenas pode ser descrita como negação e vácuo; ele é o milagre inicial e criativo desta fé. O Espírito Santo é igual a Deus e por ele Deus tributa justiça ao que crê. Ele é invisível para nós pois está além de toda continuidade psicológica humana; ele cria o “novo” EGO que se apresenta a Deus, e que [com o “eu” do homem “velho”] constitui o “nós” que subsiste pela fé, sempre pensado e sempre procurado nas “experiências” religiosas do mundo e a que se referem incompreensíveis expressões; “para que (nós) alcancemos paz com Deus”, ou, “acesso a ESSA graça” ou ainda, “para que (nós) nos gloriemos na esperança da glória de Deus”. (5, 1-2).

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É por isto que ele [o Espírito Santo] foi “outorgado” por Deus, como antecipação a todas realidades humanas, porém para nós, [no mundo], apenas é compreensível, perceptível, naquilo que não é material. O Espírito Santo, fundamento eficaz da vida santificada, não nos foi dado pela natureza; porém agora, por ele, temos o amor a Deus em nossos corações”. (Hofmann). Existe, pois, um “eu”, um “nós”, um coração humano, que Deus pode amar. Dentro da contingência que Deus oferece ao homem, suprimindo-o para o estabelecer, está a realidade dita da revelação de Deus por seus atributos invisíveis (1, 20) os quais o homem tanto gosta de obnubilar e que, efetivamente, com tanta leviandade obscurece. Dentro dessa contingência o homem pode encontrar, como Jó, no absoluto “Não” que vem ao encontro de sua existência, o “SIM” final de Deus. Seguindo o gesto do quadro “O BATISTA”, de Gruenewald, que aponta para o mais profundo terror da morte, pode o ser humano encontrar a promessa de salvação plena, do gozo da mais alta espiritualidade, da vida eterna. O amor a Deus é o impossível; é o amor da criatura ao seu Criador; [mas é também] o amor do condenado a seu juiz; do vencido e mortificado, a seu inimigo; da vítima a seu algoz. Este amor se manifesta apenas porque no juiz, no inimigo, no algoz, está Deus e, ainda mais impossível do que a existência desse amor a Deus, é não o amar! A âncora de nossa esperança se firma no fato absolutamente real de que é impossível não amar a Deus, realidade que o homem não pode chamar a si, da qual não pode apropriar-se, mas ela lhe é dada sempre de novo, derramada de cima. A âncora de nossa esperança está firmada nesse invisível, que é o nosso amor a Deus (e que não existiria se ele não nos houvesse amado primeiro!) (5, 8). Este amor a Deus é a constante duradoura em nossa perseverança; é o que vale em nossa valia; é o elemento esperançoso de nossa esperança. [A tradução inglesa, para a frase “o que vale em nossa valia” escreve “o que é provado em nossa provação”... (“which is proved in our probation”). Embora eu entenda que não foi isto que o A. disse, parece-me que a afirmação é perfeitamente cabível]. É na força [deste amor a Deus], que a esperança não envergonha [não confunde, não desampara ao que espera, nem o deixa descoberto]; é por ela que nos gloriamos da esperança; e das tribulações. “Como haveria de a esperança da glória de Deus ser acompanhada de vergonha, depois [do amor de Deus] ser posto em nosso caminho?” (Hofmann).

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V. 6 Porque Cristo, quando ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. A paz da “nova criatura” com Deus (5, 1) está acima de qualquer entendimento; e não só esta paz, mas também o seu amor ao que é inescrutável, a sua esperança fundada nesse amor e a glória de que goza por ter essa esperança. O homem “novo” vive pela fé, pois vive do Espírito Santo, que lhe foi dado mediante a fé. Portanto, ele vive do Cristo que morre e cuja vida se revela exclusivamente pela ressurreição — a fonte donde jorra a fé (5, 10); todavia, essa vida foi de OBEDIÊNCIA PASSIVA, culminando com a morte na cruz. A doutrina do MUNUS TRIPLEX [Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei — apud tradução inglesa] entolda e enfraquece a concepção centralizadora neotestamentária. Não há qualquer outra coisa, segunda ou terceira, que possa prevalecer ao lado deste único e exclusivo sentido da vida de Cristo, a saber: sua morte na cruz. [Nenhum outro aspecto pode ser considerado independentemente, ou posto em pé de igualdade ou em paralelismo com essa morte]: nem a personalidade de Jesus ou a “Idéia de Cristo”; nem o “Sermão da Montanha” ou as curas milagrosas; nem o amor fraternal, nem sua confiança em Deus, nem sua pregação do arrependimento e sua mensagem do perdão; nem seu ataque ao formalismo religioso de seu tempo, nem o apelo ao discipulado da pobreza [renúncia]; nem os aspectos sociais ou pessoais, imediatos ou escatológicos, de seu evangelho. Nenhum destes aspectos tem luz própria, pois todos brilham refletindo a luz que vem de sua morte. Não há uma só linha dos [evangelhos] sinópticos que pudesse ser entendida sem a cruz. O Reino de Deus é o reino que começa exatamente do outro lado da cruz. Portanto, começa do outro lado de todas as possibilidades humanas, tais como “religião”, ou “vida”, conservantismo e radicalismo, física ou meta-fisica, alegria ou sofrimento do mundo, amor ou responsabilidade humana, atitude ativa ou passiva na vida. [Além da cruz] é além de tudo “isso e aquilo”, de tudo [o que o homem possa criar ou imaginar]. A carreira de Jesus foi uma revista, uma passagem ao longo de todas essas possibilidades humanas, [como um comandante inspeciona as tropas perfiladas]. Foi como uma saudação a todas coisas deste mundo, sujeitas a morte, passando ao lado delas; foi um distanciamento de todas possíveis negações e posições do mundo, de suas teses e antíteses, de toda agitação e de todo repouso humanos — exceto da morte! A vida de Jesus brilha por força desse “não envolvimento”, desse afastamento, e as coisas do mundo refletem esse brilho, revelando sua relatividade,

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— suas fraquezas e também as suas riquezas. É nessa luz refletida que os homens são reconhecíveis como criaturas de Deus e como os que aguardam sua obra redentora. São reconhecíveis como pequenos e grandes; como importantes e insignificantes, perecíveis e imperecíveis. Reconhecíveis na unidade vindoura com o seu respectivo contraste com o seu “Sim” e o seu “Não”, contraste este que não é, se não, a unidade com o invisível tornado visível SUB SPECIE MORTIS por Deus. (3, 30). É deste “reconhecimento” [ou conhecimento] que vive o “novo” homem. Ele vive da vida que só nos pode ser perceptível como a morte de nossa vida; mas vive na medida que esta vida invisível se torna visível para nós, na morte de Cristo. Cristo morreu “por nós”. “Por nós” quer dizer à medida que sua morte for o “princípio de reconhecimento” de nossa morte; à medida que, na morte de Cristo, o Deus invisível se torna visível para nós; à medida que a morte de Cristo passa a ser o ponto de nossa filiação a Deus, [a nossa reconciliação] (3, 25 e 5, 9). “Por nós” se, como criaturas transviadas, [porém agora] amando o Criador, formos recambiados a ele pela morte da cruz; “por nós”, à medida que, nessa morte, o paradoxo da justiça de Deus (a identidade entre sua ira santa e sua graciosa misericórdia) se tornar verdadeiro para nós. Permanece, pois, o fato que o “homem novo” é criado em oposição [e a despeito] de todo e qualquer conteúdo humano, e da eventual superioridade ou prioridade desse conteúdo. Nunca foi, e jamais será, o teor da vida humana [que influirá na criação do “homem novo”], pois, em sua essência, este é a negação crítica de tudo o que é humano. As mais sublimes experiências religiosas (ou outras que se lhes pareçam), que possamos ter em Jesus, mesmo em Jesus crucificado, pertencem ao mundo das coisas pelas quais Jesus passou de largo no seu caminho para a morte, e não podem ser confundidas com a realidade que fundamenta a criação da nova criatura. O que Cristo fez, fê-lo, de fora a fora, sem nós, como homens deste mundo. Por isso os quadrantes da terra e as gerações afastadas (temporalmente falando!) ausentes à cena da cruz, não se ressentem de qualquer restrição ou discriminação à sua inclusão do coletivo “nós” pois essa participação não se restringe a quaisquer determinados setores ou circunscrições históricas. Aqueles que não conheceram a Cristo segundo a carne que não têm em suas vidas qualquer experiência concreta, [semelhante à dos que estiveram ao

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pé da cruz, presentes à crucificação], gozam dos mesmos direitos e do mesmo privilégio de se tornarem Filhos de Deus. [Todos são igualmente reconciliados com Deus em Cristo Jesus, (5, 10)1... “vivificado pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão.” (1 Ped. 3, 19). A reconciliação que se verificou em Cristo permanece, ainda que invisível, como SATISFACTIO VICARIA, a despeito de tudo o que somos, temos e fazemos. [Essa reconciliação alcançada pela “plenamente suficiente substituição nossa” por Jesus] contrasta de forma absoluta com qualquer relacionamento psíquico ou sensorial que possamos experimentar em Jesus, da mesma forma na qual, entre si, contrastam o “SER” com o “NÃO SER”; o “impossível” com o “possível”; a “morte” com a “vida”. Ele morreu por nós (naquilo que somos, temos e fazemos), quando ainda éramos fracos e andávamos sem Deus; por que haveria de modificar-se, basicamente, este relacionamento entre ele e nós, entre a sua morte redentora e as duvidosas possibilidades de nossa vida, ainda não iluminada pela sua morte, e na qual nos movemos (quais somos!)? Como haveríamos nós, vivos temporariamente, (abstraída a fé pela qual morremos com Cristo) de não estar sempre, e de novo, fracos, ante o Cristo que morre na cruz? É justamente esta morte em Cristo que nos transforma naquilo que ainda não somos e nela se funda a vida da nova criatura. Vs. 7 e 8 Dificilmente alguém morrerá por um justo, todavia, poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco pelo fato de haver Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. O homem novo não se aproveita [de algum envolvimento], de participação visível, direta, [nas vantagens do além]. [Segundo a versão inglesa, “O homem novo não vive de benefícios pessoais, diretos”]. Ele não vive de eventuais “valores da vida” que lhe sejam comunicados e, portanto. não vive de sua capacidade, ou aptidão, de canalizar para si tais alores ainda que lesse envolvimento], essa comunicação ocorresse pela morte de outrem ou dele mesmo. Esta aparente possibilidade de tirar proveito na morte ou pela morte pode apresentar-se nos casos raros em que alguém sacrifique a sua vida por

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outra pessoa: a mãe ao dar à luz ao filho; um profissional, ao levar ao extremo o cumprimento de seu dever — um médico ao lado do enfermo contagiante, o missionário no perigo de sua missão, o soldado no campo de batalha... É evidente que o sacrifício de Cristo, sob o ponto de vista histórico, se enquadra nesse tipo de envolvimento sacrificial como evento altamente significativo, e mesmo como experiência espiritual — um martírio. Todavia a expectativa de encontrar no auto-sacrifício uma participação própria ou uma comunicação ulterior, a terceiros, de valores [transcendentais] defesos à presente vida, poderia ser, até mesmo, estímulo dissimulado ao suicídio. Apesar do mais profundo respeito que devemos a tudo que a grandeza humana nos possa oferecer no campo do despreendimento e do sacrifício pessoal, não nos podemos entregar ao sentimentalismo, atribuindo às obras humanas, — (e a morte, quer seja voluntária quer seja imposta a alguém, está entre as obras deste mundo), — significado que elas não têm. Nada disso pode ser mais do que analogia, semelhança ou parábola da realidade que fundamenta a nova criatura. O significado de tais sacrifícios está no âmbito dos valores que realmente os motivam e (no caso de suicídio), na extensão na qual tais valores possam ser comunicados à sociedade (ou aos possíveis beneficiários] a quem a eventual mensagem foi destinada. É sempre questionável até que ponto o bem que se comunica com semelhante morte é realmente um bem e até que ponto as pessoas que devam receber o benefício do sacrifício estão realmente em condições de aprender ou aproveitar dele. Semelhante envolvimento com a morte, no mundo dos homens, mundo da temporalidade e da matéria, tem as suas possibilidades de contrastes. Todavia, nenhum deles será semelhante ao da “filiação”; [da reconciliação com Deus]. Não existe a criação de outro (novo) âmbito, além daquele rotineiro, de cada dia; nenhum novo nível de segurança, acima das vicissitudes do mundo; nenhuma passagem do pequeno [do natural] para o grande [o sobrenatural]; do que é viável para o inviável. Não há [no sacrifício de vidas por obra humana] qualquer definição precisa do que seja “PRÓ” ou “CONTRA” o teor da vida verdadeira [entendida como a que existe] além da vida e da morte [neste mundo]. No entanto, é justamente isto o que a morte de Cristo nos proporciona. [E ela o oferece com absoluta igualdade a toda humanidade que, indistintamente, pela fé, pode apropriar-se da graça oferecida]. “Ela não nos dá, precipuamente, notícias de Deus — (e onde as teríamos?) — mas nos assegura de que Deus nos conhece”. (Overbeck).

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Com esta morte, “Deus comprova o seu amor para conosco”. Ela é a mais radical supressão e, nesta supressão, é a síntese e o fundamento de todos os valores da vida. Na morte de Cristo o homem se confronta com o Deus “inteiramente diferente” do ser humano. [Não exatamente o oposto, a antítese do homem, não uma espécie de “antimatéria”, nem um “alter-ego” mas um ser diferente; não comparável ao homem. “Anderheit” em alemão; “Othemess” em inglês]. Essa diferença não é relativa, mas absoluta; todavia, é também na morte de Cristo que o ser humano encontra o elo que o une inseparavelmente a Deus, e assegura a sua comunhão com ele. Essa morte é o desvendamento da possibilidade final da ira divina e, por isso, a revelação da misericórdia de Deus. Ela apresenta ao homem o problema “Deus” em seu sentido mais agudo e inevitável, e oferece também a solução. Eis aqui “Emanuel”, Deus conosco. E Deus testemunhou “o seu amor para conosco, quando éramos ainda pecadores”. Portanto, estávamos totalmente fora de nossa capacidade de receber; ainda não tínhamos qualquer receptividade que nos permitisse participar do amor de Deus, nem possibilidade de nos tornarmos amoráveis a ele: antes, é lógico que não tivéssemos (como não tínhamos) condições de receber essa participação; não tínhamos ouvidos para ouvir nem olhos para ver. Deus porém, nos prova aquilo que não nos poderia ser provado. Ele se dirige a nós dentro de uma condição, um contexto, uma característica, quiçá numa ambiência, que não é nossa, da qual não fazemos parte: AMORE NON PROVOCATUS SPONTE NOS PRIOR DILEXIT. (“Sem ser levado por nosso amor, Deus nos amou primeiro” - Calvino). Portanto, a glória de Deus (5, 2) pressuposta na morte de Cristo, não é apenas um “objeto” novo, mas também um novo “sujeito”. [Não é apenas mais um complemento, mas também um novo agente]. Este novo “sujeito” é o “homem novo” que pela fé (e somente pela fé), se identifica comigo, o pecador! Este “novo” homem sabe, com superabundante certeza, que é amado por Deus, em Cristo. Vs. 9 a 11 Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porquanto, se como inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida; e não somente como tais, porém como aqueles que se gloriam em Deus, por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem, agora, alcançamos a reconciliação.

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5, 9-11

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É a superioridade da fonte de conhecimento, aberta na morte de Cristo; a superioridade da origem da comunicação divina, testemunhada “por seu sangue”, que caracteriza o amor da “nova criatura” a Deus e também a sua esperança e a sua glória fundamentadas nesse amor. É essa superioridade que caracteriza a “nova criatura” como “aquele” que espera. Enquanto, e na medida que vivermos desta fonte, desta origem, e ousarmos ter fé, somos o que não somos: a nova criatura; o novo sujeito, com referência ao novo objeto; os amados de Deus e, por isso, aqueles que o amam; os agraciados com a esperança e, por isso, os que esperam; os eleitos de Deus, e por isso os que se gloriam nele. Estamos, como “novas criaturas” aguardando e correndo à luz daquele “agora pois... “ (3, 21), sob a parede, prestes a ruir, da crise do homem em Deus. Estamos sob aquele “de onde?” que é a indagação de todas as indagações e cuja resposta é também a única entre todas. Somos aqueles que foram declarados justificados por Deus, e somos aqueles que Deus reivindicou para a sua justiça e para o seu reino. Somos aqueles que estão sob perdão e sob o abrigo de sua sentença livre (forense); aqueles que Deus levantou e colocou lá, bem alto, onde só ele nos pode suster, e efetivamente nos sustém. Somos reconciliados com Deus; temos paz com ele. Nossa atitude para com Deus modificou-se; agora temos o coração aberto e predisposto para receber e ouvir; estamos prontos a servir e a obedecer. Amados por Deus, não podemos, se não amá-lo de nossa parte; na aurora de sua glória não podemos, senão gloriar-nos nele. “Deus toma a iniciativa e traz de volta, para si, o mundo e a humanidade que, em inimizade e tomados de pavor, se afastaram dele”. (Weinel). É “de lá” que voltamos. (3, 21). Somos? Temos? Podemos? Voltamos? Sim. (Bem entendido e repetindo sempre): se nós não formos “nós mesmos”; se crermos; se, pela morte de Cristo, nossa vida for atravessada pela linha da morte que nos leva a reconhecer em cada momento, com temor e tremor: “Eu? — Não eu”; porém com adoração e gratidão, “Cristo em mim”! Não há outra forma de sermos este “homem novo”, se não pelo nosso “não ser”. Neste “não ser” está a suficiência e a superioridade da origem do “homem novo”. Pela morte de Cristo ele é o milagre de Deus, o começo, a criação divina. Este “nós somos” verdadeiramente nada tem a ver com a autosuficiência e sabedoria de alguma religião superior, de alguma posição adquirida na escala da vida, ou com alguma entusiástica ilusão apocalíptica que imagine já antecipada a fusão, [a união entre o “aquém” e o “além”]. A fonte donde jorra [este nós] veda e estanca (com seu vigor) todas as fontes ilusórias.

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5, 9-11

Enquanto formos qualquer outra coisa que não “nós” [quer dizer, o homem velho e o homem novo], enquanto não crermos, enquanto a morte de Cristo não lançar a sua luz sobre a nossa vida, estamos neste mundo e somos participantes dele; não temos parte na paz com Deus, não fomos tocados pela plena reconciliação e não participamos dela. Tudo quanto nós mesmos vemos, sabemos e tocamos, pertence a este mundo; não existe uma ponte “material-espiritual “ que interligue as velhas possibilidades da vida com as novas. [Uma ponte pela qual possamos, por nossos méritos, transpor a linha divisória entre o “aquém” e o “além”]. Enquanto formos “nós” apenas no conceito deste mundo [quando o “nós” não se referir ao “eu” de “aquém” unificado, restabelecido, também no “eu” de “além”], somos e permanecemos inimigos de Deus, inclinados pela nossa própria natureza a odiar a ele e ao nosso próximo e de maneira nenhuma somos cidadãos e herdeiros do Reino dos Céus, porém pertencemos à casa dos que se opõem a ele e o destróem. Quando a criatura entra para a luz da morte de Jesus, surge a “nova criatura” e, inevitavelmente, o “eu” do “homem velho” entra na penumbra. É por isto que se justifica para a classificação do novo sujeito a predicação: (Nós) somos novas criaturas! Porém, sempre dialeticamente, indiretamente, fundados somente na fé: “Por seu sangue, somos justificados”; como “inimigos” somos “reconciliados com Deus pela morte de seu Filho” e nem por um só instante pode essa pressuposição dialética emudecer-se, petrificar-se, em realidade material. Ela vale e subsiste pela fé, (e somente pela fé, no temor do Senhor e à luz da ressurreição) somos, temos, podemos e voltamos! A redenção se aproxima “seremos salvos da ira” que agora e aqui ainda pesa sobre nós, pois a vida que vem à luz pela morte de Cristo, é a salvação daqueles que, por essa morte, são reconciliados com Deus. Estar reconciliado significa poder esperar em Deus. Como não nos haveríamos de gloriar desta esperança, por nosso Senhor Jesus Cristo? “Ao louvarmos a Deus como o nosso Deus, abre-se-nos a fonte de todos os bens imagináveis e desejáveis, pois Deus não é somente o maior dos bens, porém o seu teor e a plenitude do ‘BEM’. Porém, ele só se torna nosso Deus, por Cristo”. (Calvino). “Quando o homem tem Deus novamente, ele tem a plenitude da vida e da espiritualidade”.(Fr. Barth). Ele tem? Sim, ele tem, porque pela morte de Cristo, o presente do homem é o futuro de Deus. SPES ERIT RES — “Esta esperança é possuir”. (Bengel).

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5, 12-21

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Na segunda parte o A. situa a “nova criatura”, o homem justificado por Deus, mediante a fé, no mundo para ele criado por Deus. O A. adota um método expositivo, dialético, muito a seu gosto, procurando estabelecer paralelos e confrontos entre valores ou situações, aparentemente iguais ou, pelo menos, semelhantes. O homem “novo” versus o homem “velho”; Adão, como caminho da queda, e Cristo como propiciador da restauração; O mundo “velho” em contraposição ao “novo”, e a pragmática que rege os dois; A origem permanente do pecado e a fonte permanente da graça. Nessa série de comparações, o A. conceitua o pecado e a soberania da morte e, também, a justificação e a superabundância da graça, na ressurreição. Na conceituação da queda, o A. sublinha a responsabilidade individual de cada um; na conceituação da redenção ele mostra a absoluta inutilidade da vontade humana: a graça é da exclusiva “responsabilidade” divina, e o homem nada pode fazer para merecê-la, nem mesmo em seu mais sublime fervor religioso (nem mesmo crendo, porque a própria fé, é dom de Deus). Semelhantemente, a queda é de exclusiva “responsabilidade” humana

O MUNDO NOVO (5, 12-21) V. 12 Por isso; (a saber, tendo verificado que a fundamentação do “Homem Novo” está na vida que emerge da morte de Cristo (5, 1-1 1), podemos agora avançar mais a nossa análise, pois:) — Assim como por um só homem o pecado entrou no mundo (como poder) e, pelo pecado, a morte que (como lei suprema do mundo) alcançou todos homens como tais, pois todos pecaram, assim também este homem “vindouro” — Cristo — o qual o primeiro prefigura — (5, 14), inaugura uma conjuntura mundial, inteiramente oposta. (5, 18-19). [Sem os expletivos que o A. introduz, o versículo 12, pela tradução de Almeida, diz: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram]. “Por isso:” Como homem “novo” estamos colocados no limiar de um “novo” mundo. Como homem “velho” somos a humanidade, a raça, o mundo e estamos firmemente assentados, — de um lado — desde a casualidade da queda do primeiro homem e — de outro — até a propagação extrema dessa queda

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a toda humanidade. Este é o homem qual o conhecemos e qual somos: o homem que está sob a ira de Deus. Mas também o homem “novo”, o que não é, e aquele que eu sou, o homem justificado por Deus, está sob a ira divina. Sob a luz do instante crítico descortina-se de ambos os lados, ainda que em circunstâncias inteiramente diferentes, um panorama universal de legalidade como sendo a característica inseparável e absolutamente necessária da conjuntura do mundo e da situação dos homens. Está alguém “em Adão”, é “velha” criatura, decaída, cativa; está alguém “em Cristo” é “nova” criatura, reconciliada com Deus e redimida (II Cor. 5, 17). Ali está alguém caminhando para a morte; aqui, alguém entrando para a vida (II Cor.4, 12 (e I Cor. 15, 22]). Porém, não é como se dois mundos estivessem lado a lado (como também o homem “novo” e o “velho” não são duas pessoas) pois, sempre, a possibilidade de um é a impossibilidade do outro e a impossibilidade daquele é a possibilidade deste. Vista sob a perspectiva da “primeira terra”, a “segunda” deixa de ser a segunda e sob a perspectiva da “segunda” a “primeira” já não é a primeira. É a supressão da “primeira” que faz surgir a “segunda” assim como a “segunda” tem o seu sentido fundamental na anulação da “primeira”. Se for “em Adão”, diz respeito ao homem “velho”. Foi e é e será sempre velho e jamais foi, é, ou será novo. Se for “em Cristo”, o que é “velho” passou. “Eis que se fizeram novas todas as coisas”. (II Cor. 5, 17). Esta dualidade é visível apenas à luz do “instante crítico” e, assim mesmo, na unidade que se concretiza plenamente durante a transição do ser humano — (do mundo) “velho” para o “novo”; na transição de “aqui” para “lá”, das épocas passadas para a era vindoura. É uma dualidade que se firma em sua própria supressão que é, concomitantemente, o que a impõe. Os dois caminhos se separam e se encontram no ponto onde o homem, afastado de Deus pela queda, em Adão, os reencontra em Cristo. Na queda em Adão começa o mundo visível, “velho”; em Cristo, o mundo invisível, o “novo” mundo; ambos estão sob o mesmo julgamento: aquele para a condenação; este, para a vida. Não há reencontro com Deus, em Cristo, não há entrada para a nova vida, que não esteja vinculada à queda em Adão e sem que o homem esteja sob condenação divina. E podemos juntar: não há queda em Adão, nem há condenação final, que não tenha a sua origem no ponto onde o ser humano recebe a promessa da vida, mediante a reconciliação com Deus, em Cristo.

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Poderíamos acompanhar Heráclito: “Imortais — mortais, mortais — imortais. Eles vivem sua morte, alternadamente; eles morrem sua vida, alternadamente”. Mas esse acompanhamento teria que ser feito com reservas, pois essa unidade entre o mundo de Adão e Cristo não significa o equilíbrio entre duas grandezas; não é uma gangorra nem um carrossel, como se a queda e o julgamento, a morte e a vida, ocorressem em alternância ou num rodízio contínuo; antes, esta passagem se manifesta como graça do segundo para o primeiro, e volvimento, retorno, do primeiro para o segundo. A unidade se plenifica mediante a vitória do segundo sobre o primeiro. A aparente polaridade, ou o eterno paralelismo dos antagonismos desaparece quando a movimentação do primeiro para o segundo for genuína e esta qualidade só subsiste quando a passagem do cotidiano ao “totalmente diferente” for irreversível e definitiva. É justamente este o sentido do instante crítico, O [nosso] “igual”, [convencional, o presente mundo], Adão, tem como ideal e alvo o Cristo totalmente diverso [com quem se defronta] ao caminhar em direção a este alvo. Esse caminho, revelando a dualidade da suposta unidade do ser humano, conduz não somente à cisão das rotas [no ponto crítico], mas à decisão entre os dois campos antagônicos. Enquanto os dois caminhos se dividem, também se encontram. Como tudo isto pode .acontecer, como é que Cristo é o segundo e último Adão (I Cor. 15, 45), como o “novo” mundo é mais do que mera variante do primeiro, como — depois da justificação — não há retorno possível ao estado de afastamento de Deus, como a vida que emerge da morte é absolutamente superior à vida que gera a morte e está cerceada por ela, e como existe uma “morte” que é a “morte” da presente morte — tudo isto é o conteúdo [a boa nova e o tema] do evangelho (1, 1 e 16), que é o Poder de Deus; é o poder da ressurreição, o teor da nossa vida (todavia não é seu conteúdo!); é a “miraculosa guerra” (Lutero), o paradoxo e a genialidade da fé. Onde, pelo poder de Deus, houver fé, aí está o ser humano como aquele que ele não é: como a “nova criatura” em pé no limiar do mundo “novo”, o mundo da vida. E, quando aí postados, ponderamos que este “novo” mundo não pode ser outro se não o “velho” que foi suprimido, que teve sua rota invertida mediante a vitória de Cristo, torna-se evidente que o pragmatismo invisível deste mundo, e que começamos a divisar nessa supressão e reversão, vai ao encontro da pragmática do mundo “novo”.

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Enquanto olhamos através das grandezas visíveis do “primeiro” mundo, percebemos as suas pressuposições as suas premissas] que, uma vez suprimidas e postas em reversão, são também as pressuposições do “segundo” mundo. (Usei o substantivo “reversão” para expressar a idéia de “Umkehrung” em alemão; é a inversão direcional; é a mudança de 1800 no rumo; é voltar sobre si mesmo. Parece-me que o A. quer dar ênfase a idéia de que, em Adão, o mundo se afasta, foge, corre para longe de Deus e, em Cristo, o homem volta, se aproxima, vem para junto de Deus e se apresenta a ele. Talvez, a ouvidos piedosos, soasse melhor a palavra “conversão” que, todavia, falsearia o original pois o A. não escreveu “Bekehrung”, e talvez tivesse razões para isso pois “conversão” pode ter uma conotação sectária a que ele se mostra inteiramente avesso. A tradução inglesa, de certa forma, contorna o problema escrevendo “the old world dissolved and overthrown” para “aufgehobene und ungekehrte alte welt” e cujo sentido procurei interpretar escrevendo o “velho” (mundo) que foi suprimido, que teve sua rota invertida. Todavia, logo adiante a tradução inglesa escreve... “reversed and set moving in a contrary direction” para “umgekehrt und aufgehoben” e que escrevi como “suprimidas e postas em reversão”. [Traduttore, traditore...)]. Nesse relacionamento dialético entre “velho” e “novo” entre “primeiro” e “segundo” mundo], volvemos nossa atenção primeiramente ao “velho” não por deferência especial a ele (pois como “velho” ele não tem nada a seu favor se não sua relação ao que é “novo”), porém, para extrair dele a LEI do “novo”. A morte é a lei suprema deste nosso mundo. Nada sabemos dela se não que é a negação e a corrupção. Ela é o destruidor e a destrutibilidade; é a característica da criação e da natureza; o antagonismo insolúvel e a qualidade inseparável de nossa vida; a aflição entre todas as aflições, o conteúdo e a somatória de todo o mal, o espanto e o enigma de nossa existência, o aviso permanente de que sobre as pessoas deste mundo e sobre o mundo dos homens pesa a ira de Deus. A lei da morte de tal maneira domina sobre este mundo que até (e principalmente) aquilo que visa a sobrepujá-lo e renová-lo, toma a forma de mortificação: a moral se expressa em termos da renegação do corpo, pelo espírito; a filosofia mostra o seu sentido no quadro da morte de Sócrates; a vida espiritual se apresenta em oposição a vida natural, o progresso se realiza mediante a destruição implacável do que existe: a chama, (exceto a “chama do Senhor” — Ex. 3, 2!) só pode arder, consumindo-se. [Ainda mais], de tal forma é a lei da morte soberana no mundo que o próprio Cristo, segundo a carne, não tem outra alternativa se não morrer, para ser estabelecido como Filho de Deus. (1, 3-4).

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De tal maneira se impõe a lei da morte no mundo que, para podermos tributar a Deus a honra que lhe é devida, precisamos reconhecer que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, para nos aproximarmos de sua invisibilidade. Gostaríamos de nos rebelar contra tal situação, se pudéssemos; gostaríamos de protestar contra a morte, em nome da vida, se o protesto da morte contra a nossa vida não tivesse precedência, não fosse mais antigo e mais importante. Gostaríamos de afastar de nós o ceticismo e a reserva que cercam cada um de nossos “SIM” que acaso não seja negado. Gostaríamos de não ver que entre os milhares de passos criativos, sadios, construtivos, positivos, plenos de renúncia e negação [ao presente século], que no mundo damos, apenas uns poucos, muito poucos, logram ser negação à negação final. E por isso, fraca, pálida, bruxuleante a luz que deles irradia. Porém, só a um observador superficial passa desapercebido que essa timidez, que o palor dessa luz, não se origina na interferência humana mas é própria à contingência dos homens neste mundo. (1, 10). Não há obra de criatura viva que não tenha brotado do sofrimento, da revolução, da morte. [Parece-me que ao citar o versículo 10 do primeiro capítulo, o A. dá amplitude ao seu pensamento inferindo que o homem, em Cristo reconciliado com Deus, estando em um mundo cuja lei suprema é a morte, não procede, não age, não se dirige segundo a sua vontade pessoal; poucos são os seus desejos que correspondem aos planos de Deus e, por isso, poucas são as suas afirmações e suas ações positivas que são confirmadas, que merecem a graça da “anuência” divina]. Estamos impotentes; estamos perdidos. Como lei de nossa vida, a morte sempre vem primeiro. Resta-nos apenas concluir: se houver salvação, ela há de estar em nossa libertação da morte; se houver um “SIM” precisa ser tal que suprima este último “NÃO”; se houver uma saída ela precisa estar onde se levanta esta terrível barreira que nos bloqueia; se Deus é Deus, ele precisa ser o vitorioso antagonista deste “último inimigo” (I Cor. 15, 26), ele precisa ser “a morte da morte”. O que é a morte? de onde vem? como veio ela a ser a lei suprema do mundo? “O pecado”. Convém agora que voltemos nossa atenção ao homem deste mundo. Ele é o homem do pecado. Pecado é a característica inerente e o fundamento do homem segundo o conhecemos. Nunca soubemos da existência de homens que não fossem pecadores. Pecado é poder, (e poder real), (5, 21); é o poder sob o qual está o ser humano neste mundo. O pecado do indivíduo é uma demonstração mais ou menos precisa dessa situação; ele serve para mostrar a que grau de pressão o

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indivíduo em questão está sujeito, dentro da situação geral, mas não representa qualquer alteração na característica fundamental desta situação. Pecado é poder no mundo que conhecemos, no mundo dos homens, e não depende da forma pela qual se manifeste no indivíduo. Porém o pecado tem poder no mundo porque ele representa um determinado relacionamento do homem com Deus. É em Deus que o pecado consegue sua existência como poder, e poder mundial. Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetra sempre na ousada transposição da “linha da morte” que foi traçada ante nós (1, 18 e seguintes); na ébria obliteração da distância que medeia entre Deus e nós, no olvido de sua invisibilidade, no endeusamento do ser humano. Este assalto a Deus se dá quando erigimos o Deus deste mundo, o “NÃO-DEUS” para nosso Deus, na romântica suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar — como ímpios e rebeldes que somos — pela porta estreita da morte. Portanto, em seu sentido histórico, visível, é pecado desfazer, diminuir ou atenuar o nosso relacionamento com Deus conforme é caracterizado, no presente século, pela “morte”. Todavia, [o reconhecimento de que é pecado ignorar o relacionamento do homem com Deus caracterizado pela morte,1 pode remeter esse sentido perceptível do pecado a outra forma, esta subjetiva, invisível, não “histórica”. Considerando que nossa vida é delimitada pela morte que nos separa de Deus, conquanto Deus mesmo não seja a morte mas a vida do dia vindouro, [e se, conforme analisado mais acima, o pecado consiste em nossa aproximação indevida a Deus,], então pode parecer-nos lógico que podemos (ou devamos) inverter a conjuntura, afastando-nos mais de Deus. [Esta segunda atitude pode não ser patenteada, exibida pela nossa prática religiosa, pelo nosso culto ou pelo nosso procedimento, todavia] o assalto a Deus também se dá quando quebramos nossa unidade com ele; quando criamos para nós uma “conveniente” autonomia, quando rompemos os laços espirituais que unem o homem e o mundo a Deus: que unem as criaturas ao Criador. É um assalto a Deus ignorar a origem do homem e do mundo e situar o homem ao lado de Deus ou fora dele. Este assalto é a “sabedoria” da antiga serpente: “Acaso foi assim que Deus disse?” E um assalto que vem desde a origem [do homem]. É o assalto no qual o ser humano se afasta, se separa de Deus como fonte de sua vida, de uma forma sorrateira, “não filial”, não singela [sincera e pura]; uma forma imprópria, improcedente. [E o pecado original]. É pois evidente que “pecado” não é somente aquela primeira manifestação visível que desde a primeira queda, abundantemente (5, 20) avança por

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toda a humanidade, sempre apontando junto com a primeira queda no tempo, a uma queda anterior; também é pecado [e conseqüência direta dessa causa remota] o pecado invisível que, na realidade e impiedade do homem, visa a danificar o relacionamento da vida entre o homem e Deus: o pecado inspirado pela loucura de Satanás — “ERITIS SICUT DEUS!” Havemos, pois, de precatar-nos para que não [demos asas a essa forma subjetiva do pecado e] passemos ao largo da cruz (fazendo-nos iguais a Deus), procurando [restaurar a nossa posição] o nosso retorno para junto dele, [por obras de nossas próprias mãos, quiçá] pela adução ou adoção de refinados postulados, ou tumultuadas exigências técnicas. Sabemos que para nós, que estamos sob a lei da morte, não existe um instante [um ponto, uma maneira material ou outra qualquer que dependa da nossa iniciativa, para voltarmos a Deus] e a própria lei da morte nos aponta, precipuamente, a VIA CRUCIS para alcançarmos uma visão retrospectiva do nosso pecado, fazendo severa advertência contra a tentação [de buscarmos alguma solução nossa], sob dois pontos distintos. Primeiro: “O pecado entrou no mundo”. O que é o mundo? O mundo é a totalidade de nossa existência conforme está caracterizada pelo pecado. Ele consiste de uma parte EXTERIOR, fora de nós destacada de nosso interior; um Cosmos que não é “criação” porque já não conhecemos o seu Criador e, de outra parte, a INTERIOR, que está em nós e que se espelha [e se projeta], por sua vez, no Cosmos — que está ao redor de nós. (ERITIS SICUT DEUS!) O mundo do ser humano é o mundo temporal e da matéria; é o mundo da separação, da reunião e da contradição; é o mundo do contraste entre o espírito e a natureza; entre o idealismo e o materialismo; entre a alma e o corpo. E o mundo da auto-suficiência [que anseia pela sua independência (de Deus)] e das realidades; é o mundo da objetividade e dos princípios; é o mundo dos “Poderes”, dos “Tronos” dos “Principados” e das “Potestades”. Este mundo é co-prisioneiro do homem. Sendo dos homens, este mundo participa, involuntariamente, dos seus erros, de sua conduta displicente, da destruição do relacionamento de vida com Deus, que os homens promovem, e da relativa divindade que os homens criam e que constitui o motivo da sua grandeza e sua ruína. A enfermidade dos homens é, também, a do mundo (8, 19 e seguintes). O homem precisa descobrir, para seu próprio pesar, que este Cosmos é o seu Cosmos. A “vida direta” [a vida em Deus] não é conhecida, é invisível, é impossível neste mundo. Todas as coisas deste mundo dos homens, a materialidade,

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as realidades e os objetivos, “isto” ou “aquilo”, “aqui” e “acolá”, “assim e assim” são mundaneidades endeusadas ou divindade mundanizada. A glória do Criador apenas brilha neste mundo naquilo e à medida que delimita e define a auto-suficiência e a culpa das coisas; somente no alcance do seu conceito crítico, portanto, na questionabilidade de tudo quanto o homem faz, na possibilidade e na necessidade de sua supressão, na sua negação. A glória do Criador brilha, ainda, na medida da faculdade que as coisas humanas tiverem de, dentro do que são, testemunhar do que não são, e isto significa que esta luz vem SUB SPECIE MORTIS. Todos os argumentos possíveis a favor da justificação direta das coisas foram, já de há muito, apresentados (e liquidados) nos discursos apologéticos dos amigos de Jó. Este mundo, por ser nosso, é aquele em que o pecado achou entrada. Nele, sobre esta terra e debaixo deste céu, não há possibilidade de estabelecerse, por força dele, ligação direta do homem com Deus. Salvamento só pode haver pela redenção, e redenção só virá com o dia vindouro quando se farão novos, o céu e a terra. Esta foi a primeira advertência; Agora, a segunda: “Pelo pecado, a morte” entrou no mundo. Entrou como crise e com duplo sentido: como lei suprema e, como referência a um legislador acima dela. A morte entrou como um julgamento e como mudança para melhor; como barreira e como saída; como fim e como início; como NÃO e como SIM; como sinal da verdade da ira divina e como sinal da verdade da salvação. Todavia, e em qualquer hipótese, como o sinal PARE!, dado por Deus, para que não contornemos a “Porta Estreita”, pois a passagem por ela é obrigatória, e aqui vale a pena que sejamos sábios pois, fora da “Porta Estreita” não há sabedoria. “Pelo pecado entrou a morte” que é a sua outra face. Foi pelo pecado original, o pecado invisível [o desejo do homem, de ser igual a Deus], que a morte veio ao mundo; foi a destruição do relacionamento com Deus, que é a fonte da vida. O pecado é a culpa; a morte, o destino. Como ser vivente mas destituído da vida verdadeira, o ser humano passa a ser mortal; despregado de sua origem, [sua existência edênica em Deus,] ele simplesmente deixa de existir e nesta sua selvagem independência, autonomia, auto-suficiência e absolutismo, ele passa a ser relativo. É por isto que agora é inevitável que o relacionamento do homem com Deus seja caracterizado pela morte; é inevitável que a existência do ser humano

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seja fracionada e desdobrada em toda sua problemática; que o seu mundo se esfacele na multiplicidade dos humanismos, da temporalidade e materialidade, mal e apressadamente aglutinados, se tanto, sobre panos de fundo — pessimistas ou otimistas. Tudo isto é agora inevitável para que, dependendo de como optar, possa o homem antever um mundo não visível, um “segundo” mundo, a “nova” terra! É inevitável que a vida humana seja cortada, perturbada e finalmente aniquilada, pela dúvida, limitação, sofrimento e finalmente a morte, ao longo da “linha crítica”. Reina o pecado? Então vive a morte e não nós. (5, 21 e 7, 10) Se é o pecado quem dá as ordens, é também ele quem paga: o salário do pecado é a morte. (6, 23). A existência que o pecado transformou em inanimada, dura, sem sentido, não tem um só ponto que não aponte claramente ao juízo [de Deus] — à limitação do homem. O final de todas as coisas ergue-se abruptamente, fechando o horizonte da vida. Não há um ponto, sequer, da nossa existência que não aponte ao píncaro “de onde Adão caiu”. (Lutero). Não há nada “relativo” que em sua perdida (porém inextinguível) relação, não aponte ao “absoluto” que, na realidade, estabelece sua relatividade; não há aparência de morte que, como tal, não testifique a nossa participação da vida, em Deus, e que não dê testemunho de que o relacionamento de Deus conosco não foi destruído pelo pecado. É inevitável que da morte surja a pergunta sobre a vida e sobre Deus, e é impossível que, pelo próprio amor à vida, não ponderemos sobre a morte. Não pode passar desapercebido o dedo levantado que, desde a cruz de Cristo, nos adverte de que o mundo do pecado só pode ser ultrapassado no ponto onde ele foi alcançado. Portanto, pelo pecado veio a morte; a morte como crise; como ruptura de nossa vida; a morte como elemento de conhecimento da nossa miséria e da nossa esperança. A morte é ao mesmo tempo, o reverso do pecado invisível e da justiça invisível. [Esta foi a segunda advertência]. “Através de um só homem” — tudo isso? Quem é este um? Adão? Sim, Adão como agente daquele pecado invisível, e que, caindo, deu entrada ao pecado no mundo. Porém, trata-se deste Adão, não em seu carente, seu inexistente relacionamento histórico, porém em sua relação não histórica com Cristo.

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Sem olhar para a invisível justiça, na obediente morte de Cristo, como poderemos ver o pecado invisível na vida desobediente de Adão? Como poderemos saber o que significa a “queda” do homem? Como poderíamos, sequer imaginar a queda de Adão, da vida para a morte, se não tivéssemos ante os olhos o levantamento de Cristo, da morte para vida? Donde poderíamos saber o que significa “viver, para morrer”? Adão não é o Adão da queda, [quando considerado] na planura dos eventos históricos e psicológicos, porém ele o é como “primeiro Adão”, a prefiguração do segundo (o vindouro) em cuja luz ele subsiste como sombra. Adão subsiste como o instante que está atrás do movimento para frente, vitorioso em Cristo; atrás desse movimento de retorno e volvimento dos homens e seu mundo, abandonando o caminho do afastamento de Deus, para encetar a marcha no sentido da justificação; no sentido da morte para a vida, do “velho” para o “novo”. Por conseguinte, Adão não subsiste como uma segunda grandeza positiva, ou como um pólo em torno do qual se processasse o movimento de retorno da humanidade; ele subsiste, apenas, na medida de sua supressão. Ele é confirmado pela sua negação em Cristo. Nem Adão, nem Cristo, a quem Deus ressuscitou dos mortos e estabeleceu como fonte da vida, e de quem Adão é a projeção prefigurativa, — são personagens de nossa história secular. A posição de Adão na história é inteiramente irrelevante. O pecado que Adão trouxe ao mundo está aquém da morte assim como a justificação que Cristo trouxe, está além dela. Todavia a humanidade, segundo a história que conhece, está inexoravelmente enquadrada entre a morte de Adão e a morte de Cristo. A humanidade está situada entre o que Adão foi antes de ser mortal, — e Cristo, quando já não era mais mortal, está entre a morte que veio da vida, e a vida que emergiu da morte, e esta posição não é mensurável historicamente. Semelhantemente, a entrada do pecado, no mundo, por Adão, não é uma ocorrência que se possa situar historicamente, em qualquer sentido. A doutrina da “herança” do “pecado original” conforme o ensino da Igreja do ocidente [católica romana), de maneira nenhuma haveria de parecer uma “hipótese simpática” (Lietzmann) a Paulo, mas uma das muitas falsificações “histórico-psicológicas” de sua pregação. Assim como a justificação que Cristo trouxe ao mundo não se prende a uma data histórica mas é perene, ubíqua e transcendental, e os homens podem se apropriar dela a todo tempo, mediante a fé, assim também a queda em Adão não diz respeito a um acontecimento — um determinado evento histórico do

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qual a humanidade, hoje, sofre as conseqüências por hereditariedade, mas é um pecado transcendental que consiste na imemorial propensão do ser humano de voltar as costas a Deus, ao que é “novo”, para correr empós o que é velho, para buscar o “não Deus” deste mundo. Essa tentação provou a sua eficácia com o “primeiro Adão” e seu mundo, e a vem confirmando pelos milênios afora, quando os homens, em sua impiedade e perversão, retêm a verdade pela injustiça. (1, 18). Esta inclinação da humanidade para se afastar de Deus [e que ocorre em todos os quadrantes da terra, sem distinção entre povos, eras e gerações], e que acarreta a ruptura da unidade do homem com Deus, explica-se (e também não se explica) na predestinação, a qual acompanha, como sombra: a predestinação para sua eleição eterna, em Cristo. A queda de Adão, em si mesma, o seu passo em falso, não é a “causa” do pecado, mas o seu “primeiro efeito”. É possível que, sob este aspecto a antiga doutrina do “supralapsarianismo” dos tempos da reforma, segundo a qual a predestinação retrocede até eras anteriores à “queda histórica”, possa ser ouvida e até defendida...) A sombra que encobre todos nós só pode ser identificada com Adão, e trazer seu nome, na medida em que ele foi o primeiro a praticar o que todos praticamos. Adão, o primeiro, significa o homem terreno, o homem histórico, [cada um de nós], que precisa ser vencido (1 Cor. 15, 45 e seguintes). [“Supralapsarianismo” é a doutrina segundo a qual a “queda” do homem foi decretada por Deus para tornar efetivo o decreto anterior de “eleição e danação”. Calvino teria oscilado entre essa doutrina e a do “sublapsarianismo” uma espécie de “opção volitiva”. Todavia, a doutrina da predestinação aceita e defendida por Calvino é a que se acha consubstanciada na Confissão de Fé, de Westminster, toda ela baseada em interpretação de passagens bíblicas, (especialmente Paulinas) e constitui a peça básica da confissão doutrinária presbiteriana. Contudo, parece-me conveniente salientar aqui que Barth não acompanha essa interpretação, antes a combate com muita veemência, também plenamente estribado na Bíblia. Em resumo, ele diz que o Evangelho é sempre a boa nova da salvação; não seria uma boa nova para os “destinados à perdição” se eles tivessem que tomar conhecimento de que só os “eleitos para a salvação” mereceriam a reconciliação com Deus. Entende Barth que ensinar desta forma é “deter a verdade pela injustiça” (1, 18). Barth diz que há, sim, predestinação: dentro desta predestinação há a reconciliação e também a perdição. Cristo morreu para que todo o que nele

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crer, sem nenhuma exceção — (e por predestinação) seja salvo; todavia, o que não crer, (pela mesma predestinação) já está condenado. De outra forma, como seria Deus justo? Como seria ele o Deus de amor? Como explicar o mandamento: “Ide e pregai”? Não seria a idéia (ou doutrina) da predestinação, nos moldes restritos da Confissão de FÉ de Westminster, uma limitação à obra redentora de Cristo, na cruze, em última análise, até a sua anulação, pois por que haveria de Jesus Cristo morrer na cruz, se uma parte do mundo já estava separada por Deus, para a vida eterna, e outra para a perdição eterna? Onde ficaria a verdadeira imagem e semelhança do homem com Deus, tão soberana e soberbamente definida ainda no jardim do Éden, quando ao homem foi dada a oportunidade (esta sim:), de ser igual a Deus (sua imagem e semelhança “em espírito”, é claro) com o livre direito à escolha? É com esta opção, que Barth denomina “CRISE”, que o homem se defronta ante a “porta larga” e a “porta estreita” dos dois caminhos da predestinação: a perdição e a redenção. Mas não acontece MANU MILITARIS; não é por decreto; é por opção. O decreto existe desde a eternidade e é um só; não há dois decretos; nem há um anterior e outro posterior, um a suplementar o outro, coisa tão comum entre certos legisladores apressados: (não prevêm tudo “de começo” e precisam emitir depois, atos, instruções, portarias, regulamentações, decretos e novas leis para justificar e possibilitar a aplicação das primeiras Segundo este “único” decreto não há dois livros “previamente” preparados, contendo as listas dos que hão de se salvar e dos que estão condenados. Não há um “livro da vida” e um “livro da morte”. Todavia alguns nomes (poucos ou talvez muitos) poderão ser apagados do “livro da vida” (Apoc. 3, 5) e, por isso, os seus nomes não constarão dele, “no fim”. (Apoc. 21, 27). A tradução inglesa do trecho que vai da referência (1, 18) até a referência (I Cor. 15, 45 e seguintes) é um pouco mais suscinta e pode ser útil para lançar luz sobre o tema. Ela escreve: “Esta disposição ativa é explicada, todavia não é explicada — pela divina predestinação dos homens à destruição e que segue a divina eleição em Cristo, como a sombra segue a luz. A queda não é causada pela transgressão de Adão, mas a transgressão foi, presumivelmente, sua primeira operação manifesta. Neste contexto, a venerável doutrina reformada do “Supralapsarianismo” se torna inteligível. Segundo ela, a predestinação para a rejeição antecede a queda “histórica”. Designar e definir a sombra em que estamos pelo nome de Adão, somente é legítimo na medida em que ele fez primeiro o que todos nós fazemos. Por

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“primeiro Adão” designamos o homem natural, terreno, histórico; é a este homem que temos de vencer”. Notar ainda, de passagem, que é a doutrina da “herança do pecado original” pela raça, que levou a Igreja Católica Romana ao dogma da “Imaculada Conceição” visando a santificação e beatificação da mãe de Jesus.]. ”E a morte atingiu todos os homens, como tais, pois todos pecaram”. Saímos do segundo plano — o “não histórico”, de nosso “velho” mundo para seu iluminado primeiro plano e vemos, claramente confirmado, o que há a concluir da pragmática invisível da VIA CRUCIS: vemos a humanidade toda praticando o que Adão fez e, por isso, sofrendo o que ele sofreu. A todos vemos pecar, e depois morrer. Vemos todos a tirar de Deus o que só a ele pertence, e sendo, depois, envergonhados. Sabemos que, em vez de “depois”, deveríamos dizer “por isso”; sabemolo, mas não o vemos; só vemos os fatos. O emergente pecado visível de Adão, que não irrompeu sem a comprometedora participação do sexo feminino, o gesto atrevido que estende a mão para arrancar o fruto da “árvore do conhecimento”, repete-se variado e renovado, ao longo de toda a história. “Não há nenhum justo, nem sequer um”. (3, 10 e 23). Também, reconhecido ou ignorado, corre por toda a história, e vai até a linha da morte, onde está bem claro, à luz do dia e ao alcance da mão, o que quer dizer, “Adão se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”. (Gen. 3, 22). Portanto, assim como a pragmática invisível subsiste, e é evidente nos fatos visíveis, assim também... — Contudo, antes que tiremos a conclusão que a analogia propõe, devemos salientar um ponto. [Ver exegese de 5, 18]. Vs. 13 e 14 Porque antes da lei já havia pecado no mundo; mas o pecado não é levado em conta, quando não há lei. Entretanto a morte reinou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram segundo o modelo de Adão o qual, contudo, prefigura aquele que haveria de vir O que precisa ser sublinhado refere-se ao conceito de pecado. O pecado precisa ser entendido na plenitude de seu sentido invisível para que se esclareça, por ele, a natureza deste nosso mundo passageiro e, também, a do vindouro.

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Dizíamos que o pecado não entrou no mundo como um determinado evento, ou pela somatória de uma série deles, ou ainda por uma dada situação; nem aconteceu por algum acaso psicológico ou histórico, porém, ele se apresenta por toda a parte, e uniformemente, como realidade certa pré-existente a todos os acontecimentos e a todas situações. O pecado é o “peso específico” da natureza humana. Pecado não é uma queda, ou uma sucessão de transgressões: é a queda que ocorreu com a emergência da vida. O pecado ocorre ainda antes que seja assimilado, consciente ou subconscientemente, por este ou aquele ser humano. Pecado é poder mesmo antes de dominar a mente e a vontade de alguém. “O pecado existiu no mundo antes da lei”. Contrariamente ao pecado, a lei é uma grandeza histórica, visível (2, 14-16). É a Lei que traz aos homens e preserva entre eles, a lembrança da sua unidade com Deus. A lei é a forma pela qual o homem pode tomar conhecimento de qual seja a vontade e a norma de Deus, tanto consciente como subconscientemente. A lei é a luz da presença e revelação divinas; a luz fracionada, dissociada e tingida pela contínua sucessão e concomitância dos eventos e conjunturas que caracterizam este mundo terreno. Onde há lei, aí há também “retidão humana”; há eleição e vocação divina e há incumbência de manter-se atitude orientada para Deus. (2, 3-5; 2, 12-13 e 3, 2). Bem-aventurado é aquele que sabe que não será desculpável, que não poderá esconder-se. (2, 1-2). Onde houver lei, religião, aí surge a injustiça humana; aí desponta o homem em sua fraqueza, em sua insuficiência, em sua carnalidade, como um estorvo a Deus; como objeto da ira divina; e isto, na medida em que ele sabe o que a lei exige, na medida em que a leva a sério e é seu ouvinte. (3, 14-20 e 4, 15, primeira parte). É então, (se não nos enganarem todas as aparências,) que ocorre o gesto atrevido que estende a mão à árvore da ciência; é então que nos esquecemos que temos de morrer, e procuramos iludir-nos quanto à impossibilidade de nos justificarmos pela lei. E ai do homem de Deus que [justamente dei se enganar, esquecendo-se que está numa zona especialmente perigosa. (2, 17 e seguintes). Onde existe lei, aí há transgressão (4, 15, segunda parte); aí há atribuição de pecado e, porque aí há olhos que vêem, as trevas em que estamos transformam-se em tormento. Aí irrompe a torrente incandescente, porque o material é inflamável.

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[Os olhos que vêem são os nossos próprios, porque têm perante eles a lei, e sabem ver; sabemos distinguir entre o bem e o mal porque adquirimos conhecimento; este é o significado da declaração: “Eis que o homem se tornou como um de nós”; adquiriu conhecimento para discernir entre o que é bom e mau, entre o bem e o mal que pratica (ainda que não o queira). A tragédia deste conhecimento tem o seu ápice na linha crítica da morte, quando o nosso “conhecimento”, longe de nos mostrar a luz que nos poderia guiar, derrama sobre nós um rio de fogo de desespero, aflição, tormento. No dizer trágico de Lutero, “o homem está perdido”. — A não ser que receba a justificação, pela fé...]. Porque o homem conhece o que seja pecado, este pesa sobre os seus ombros. [É o peso da] culpa, a sobrecarga da responsabilidade. Então o pecado acha uma alavanca, um capital operacional (7, 8 e 11), e começa a agir. Ele entra com o Poder; passa a ser altamente notável, grande evento histórico. E é justamente o homem que tem a lei, (o homem que “foi despertado”), o homem que está fascinado por Deus e que nele espera, que está voltado para Deus, o homem religioso, sim, é justamente tal homem que é o pecador para quem o pecado é o mais visível. — (7, 7 e seguintes; 7, 14 e seguintes). O “mal de José” [quiçá presunção], irrompe agora entre as pessoas interessadas na religião e não na massa dos indiferentes; entre sacerdotes e seus amigos e não entre falcatrueiros e réprobos; na Igreja; e não no cinema; nas Faculdades de Teologia, e não no ateísmo dos estudantes de medicina; entre os “ativistas” religioso-sociais e não entre os capitalistas e militaristas; aparece em livros como este é não em literatura profana. O povo de Israel é arruinado em sua lei, em sua eleição e vocação, num desfalecimento e sofrimento que os moabitas e filisteus jamais padeceram. Foi isto o que aconteceu a Adão, por quem o pecado entrou no mundo; foi possível porque ele tinha uma lei: a advertência de não tocar na árvore do bem e do mal. Ele se tornou pecador, sacrificando a sua relação especial com Deus. [Aqui vem à tona uma pergunta que pode parecer ímpia — (e o que é que procede do homem, que não seja ímpio?) — Todavia, pode ser uma objeção natural: por que foi a árvore da ciência do bem e do mal posta à disposição do homem, dando-lhe a oportunidade de desobedecer? A resposta é: para que o homem tivesse o privilégio de optar. Esta é a qualidade que distingue o ser humano (criado à imagem e semelhança de Deus), dos demais seres viventes da terra e o põe numa categoria apenas um pouco menor que a dos anjos. (Sal. 8, 5 — Heb. 2, 7). O homem foi criado livre por Deus; para exercer sua liberdade precisava (e precisa) ter entre o que optar.

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Este direito de opção acompanha o homem desde o berço até o túmulo e, mesmo depois de haver optado pelo paradoxo da fé, ainda depois de haver confessado “Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo”, tem que optar. Há de optar entre as respostas que pode dar a uma criada e a um centurião. Acima de direito e privilégio, o exercício livre da opção é o coroamento do homem espiritual que, se de uma feita o levou a fugir de Deus, pode, a todo o tempo, recolocá-lo na glória em que Adão esteve, antes de pecar, mediante a reconciliação com Deus em Cristo Jesus]. Acaso existe na história do mundo ou na vida de alguma pessoa, algum tempo, algum local, alguma condição ou situação, onde não houvesse “nenhuma lei”? Se, hipoteticamente, um tal lugar, ou tal época, ou uma tal situação existisse, e se, ainda por hipótese, a situássemos [com bastante propriedade], no período histórico que vai de “Adão a Moisés”, isto é, no tempo que medeia entre a “lei particular” de Adão, e a lei nacional dada ao povo de Israel por Moisés, aí caberia dizer: “onde não há lei, não há imputação de pecado”. Onde não há lei, a humanidade é cega, e portanto não percebe as trevas. É lenha molhada que não arde. Não há “alavanca” nem “capital de giro”, por isso não há ação, nem empresa. [Isto é, não há pecado]. Uma tal sociedade apenas vegetaria, como as plantas numa estufa, sob um suposto austero e silencioso aprazimento divino. Nada poderíamos dizer a respeito de tal conjuntura, pois nela não se poderia encontrar qualquer forma de pecado individual, pessoal, nem consciente nem subconsciente, porque não haveria imputação de pecado, dado que, “sem lei o pecado é morto” (7, 8). Seria uma sociedade de pecadores “adormecidos” aos quais haveria uma só sentença a dar: Perdão! Todavia, é justamente por este perdão que esperam e anseiam os povos que viveram no lapso de tempo que vai de Adão a Moisés, porque estes “dorminhocos canadenses” não constituem exceção à regra e também sobre eles impera a lei da morte. Não existe a exceção que seria de tanto agrado aos sensíveis seguidores de Rousseau. [A referência a “dorminhocos canadenses” — apud tradução inglesa — parece ser a um poema de R. Seume, sobre as aventuras de um canadense na Europa]. A verdade de que não há ninguém livre da lei, está clara na observação: “Contudo, a morte reinou, desde Adão até Moisés”. Em nenhuma parte está dito que a lei mundial da morte não atinge aos que estão sem lei (se é que tais existem). As características que, neste mundo, marcam e distinguem a humanidade sujeita à lei, aos que podem ser considerados como despertados por ela, são as

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mesmas daquela outra parte que, adormecida, não a tem (ou não a teria). Uns e outros têm as mesmas qualidades de criaturas; sofrem do mesmo cerceamento e das mesmas limitações. Uns e outros se defrontam com os mesmos enigmas do nascimento e da morte a qual impera sobre todos e, em sua severidade, faz supor a existência de um pecado anterior, maior do que a nossa queda histórica, visível. Essa queda pré-existente, invisível, à qual a nossa conjuntura mortal aponta, não pode ser identificada com os acontecimentos e as ocorrências que, em nossa vida terrena, lamentamos e profligamos como pecado. Também “os que dormem” vislumbram a existência desse pecado invisível, primevo, para além da origem de seus sonhos: pecado que, inicialmente, afastou a criatura do seu Criador — pressentimento este que bem se demonstra na expressão hipocrática de suas faces. [Face “hipocrática” é a face do ser humano perante a morte — Hipócrates, Prognóstico II — Apud versão inglesa]. Todavia, também os que dormem são levados a sério por Deus; também eles são responsabilizados e estão debaixo da ira de Deus, ainda que esta esteja oculta. O fato de não estarem sujeitos à lei geral de Israel e, portanto, o fato de não haverem pecado segundo o modelo histórico de Adão nem segundo a espécie do erro de Israel, não lhes da paz, nem os isenta de culpa. Também eles se defrontam com a crise da eleição e da rejeição, da justificação e da danação, mesmo que, historicamente, sejam inculpáveis [como de fato o são]. [Justamente porque também aqueles que (aparentemente) sem lei, estão sob o império da lei da morte, é que se confirma a pré-existência de um pecado maior, gerador da desobediência dos nossos primeiros pais e de toda a raça que, com lei ou sem lei, têem a inclinação terrena, natural, de voltar as costas a Deus, para fazer-se igual a Deus]. A diferença entre “os que estão sem lei” e aqueles que “sob a lei devem morrer”, é apenas relativa, pois “para Deus não há acepção de pessoas” e, portanto, “todos os que pecaram sem lei, também sem lei perecerão; e todos os que com lei pecaram, serão julgados mediante a lei”. (2, 11-12). O pecado que entrou no mundo “por Adão” é PODER e é SUPERPODER que não pode, de forma alguma, ser identificado com o pecado histórico de Adão, ou com os pecados mais ou menos semelhantes da multidão de seus seguidores. A soberania visível da morte aponta à soberania invisível do pecado, mesmo onde o pecado não se tenha revelado em ocorrência visível. Um rei não é eleito por seus súditos e eles não têem meios de decidir, individualmente, se aceitam ou não a sua suserania; o rei sobe ao trono por

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direito de herança e domina “pela graça de Deus” (ou com seu desfavor...) — Somente a revolução, a derruba da “dinastia”, a reviravolta [o retomo, a inversão] da ordem dominante podem modificar a situação. Ora, a entrada do pecado no mundo, em Adão, deve ser entendida como obra de sua soberania. [Isto é, o pecado se valeu de seu Poder para entrar no mundo]. Todavia, Adão “é a prefigura daquele que haveria de vir”; essa prefiguração de Adão, é na qualidade de pecador, no pleno sentido do cometimento deste pecado invisível, não histórico, [que antecedeu o pecado “histórico”, visível, conhecido, de estender a mão ao fruto da árvore da ciência do bem e do mal, e provar dele]. A sombra em que Adão se acha é testemunha da luz que vem de Cristo e nos mostra qual a significação e a natureza dessa luz. A pragmática invisível deste mundo é igual à do mundo vindouro com o “sinal” trocado. “O segredo de Adão é o segredo do Messias” (um dito rabínico). É o segredo do homem inapelavelmente separado, afastado de Deus, que está concomitantemente, ligado indissoluvelmente a Deus para que não se perca; este segredo se oculta na dualidade de Adão e Cristo porém, se revela na sua unidade. Ambos estão rigorosamente sobre a linha divisória entre o pecado e a justificação, entre a vida e a morte. Adão aponta para traz e Cristo para frente. Os dois estão inexorável e absolutamente separados pelo contraste do que neles se confronta e inseparavelmente unidos na origem desse contraste: na predestinação divina para a eleição ou para a rejeição. O primeiro e o segundo “Adão” estão inseparavelmente unidos porque o pecado e a morte do primeiro, e a justificação e a vida do segundo, abrangem a totalidade da vida humana e da humanidade em todas dimensões; inseparavelmente unidos, por que o “sim” de um, é o “não” do outro e o “não” de um é o “sim” do outro. O primeiro é a “pré-figuração” (o tipo), é interrogação e é profecia; o segundo é o modelo, a resposta e o cumprimento. Isto é tão certo quanto é inevitável que sejam opostos os caminhos que partem de Cristo e Adão; isto é tão certo quanto a justificação e a vida em Deus estão em oposição e são infinitamente superiores ao pecado e à morte (embora isto seja uma maneira imprópria de dizê-lo [porquanto justificação e vida em Deus não são comparáveis com o pecado e a morte] ); isto é tão certo, quanto é certo que a aparente polaridade do contraste entre Adão e Cristo desaparece à luz do instante crítico (“quando uma morte devora a outra” — Lutero). De Adão a Cristo é o caminho de Deus para os homens e entre os homens. Sobre este assunto há mais para dizer. [Antes que tiremos a conclusão da analogia do final da exegese do versículo 12].

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Vs. 15 a 17 Porém não há equilíbrio segundo o qual pudéssemos dizer: “Tal a queda assim a graça” pois se pela queda de um morreram muitos, muito mais a graça de Deus, com a dádiva divina na graça que teve este um só homem, Jesus Cristo, — a muitos cumulou de riquezas. E não há comparação (ou equilíbrio) como se pudéssemos dizer: “assim como ‘isto’ veio ao mundo por meio ‘daquele’ pecador, assim a graça foi concedida por ‘ESTE’ homem justo”. (Todavia, nisto há paralelismo.) “o julgamento veio por um só homem para condenação, porém a graça veio pela transgressão de muitos, para justificação. “Então, (e isto suspende o paralelismo) se pela queda de um, e por este, a morte reinou soberana, tanto mais os que receberam a abundância da graça reinarão, na vida, através daquele um — Jesus Cristo”. [A tradução de Almeida, sem as inserções expletivas do A., assim escreve os versículos 15 a 17 “Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; por que, se pela ofensa de um só morreram muitos, muito mais a graça de Deus, e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos. “O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas para a justificação. “Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber: Jesus Cristo”]. O pensamento central da passagem é inteiramente diacrítico, [dando-se ao adjetivo o sentido mais restrito de distinção entre dois sintomas ou eventos]. Segundo Juelicher [a passagem] “é toda destituída de lógica”. “Tanto mais certamente”, “por quanto mais”, “como ainda bem diversamente” (5, 1517; conferir com versículos 9 e 10) [Notar que nem a redação dada pelo A. e nem a tradução de Almeida usam exatamente as expressões que Juelicher destaca e o Autor menciona]. O dualismo entre Adão e Cristo, entre o mundo “novo” e o “velho”, não é metafísico, porém dialético; ele subsiste apenas na medida que se anula. E de fora a fora um dualismo unidirecional, de um só movimento, de uma só moção; é um caminho que segue “de cá para lá”. Toda a conjuntura seria compreendida erroneamente se admitíssemos alternância, movimento de vai-vem, ou espécie de escoamento alternado entre os cones opostos de uma ampulheta, ou ainda como se fossem duas forças iguais agindo em sentidos contrários.

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A realidade viva das duas proposições contrárias está na sua obrigatoriedade inerente de se volverem a Deus como sua origem e seu alvo. Esta obrigatoriedade divina compele ao movimento que leva da culpa e do destino à reconciliação e à redenção. A crise da passagem pela morte para a ressurreição, a crise da fé, é o retorno, é a conversão do caminheiro que, seguindo para o “Não” divino [pára e] volta ao divino “SIM”. Jamais o viandante segue simultaneamente nos dois sentidos dessa estrada e a conversão, uma vez feita, é irreversível. Precisamos esclarecer que a pragmática invisível do “novo” mundo é a mesma do “velho”; em sua forma, porém, tem sentido inteiramente oposto e lhe é absolutamente superior em significação e poder. É o que tentaremos demonstrar com as (duas ponderações seguintes): 1ª Ponderação (5, 15). Consideremos novamente as causas originais, as dominantes, que determinam, aqui, o mundo “velho” como “antigo” — em vias de passar e, acolá, o mundo “novo”, vindouro. Identificamo-las como “QUEDA” e “GRAÇA”. Trata-se, portanto, da “ESQUERDA” e da “DIREITA”, no relacionamento do homem com Deus. Fundamentado invisivelmente em Deus, e nele somente, de um lado está Adão, o “decaído” e, de outro, Cristo, o “agraciado”. Esta posição relativa é o que neles há de comum, aparentando haver equilíbrio entre a queda e a graça. Mas é Justamente naquilo que é comum, que desponta a diferença: como se apresenta o relacionamento do homem com Deus, em Adão? — Isto já está claro na própria palavra “QUEDA”. Por ela se vê Deus abandonado pelo homem; despojado, negado, sofredor. Despojar a Deus é a essência do pecado, que rouba para si atributos divinos, para exibir, [como seus], poderes semelhantes aos de Deus, no mundo (5, 12) [e 6, 12]. Pecado é a conduta negativa perante Deus e em Deus e, em conseqüência de tal conduta, “pela queda de um, muitos morreram”, isto é, no mundo de Adão, o homem precisa tomar ciência do seu relacionamento negativo com Deus. Em Adão torna-se visível o fato, de outra forma, invisível, que Deus diz “NÃO” a este mundo. E com este “NÃO” o mundo de Adão vê Deus como agressor; como aquele que nos expulsou do para(so e nos rouba a vida: “SICUT HOMO PECCANDO RAPIT, QUOD DEI EST, ITA DEUS PUNIENDO AUFERT QUOD HOMINIS EST” (Anselmo). O mundo pecaminoso, o mundo decaído é, como tal, o mundo da morte. E o mundo rodeado de uma interrogação geral para a qual não encontra resposta;

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é um mundo que não tem saída, senão na própria muralha que o cerca; que só encontra conhecimento na ignorância, e esperança no desespero. É o mundo que aguarda o Juízo Final com a supressão de todas as coisas e enquanto espera sofre os horrores do seu presente estado. A esta situação calamitosa se opõe o relacionamento do homem com Deus, em Cristo. Quer designemos este relacionamento como justificação [1, 14; 3,21 (e 3, 24 – 28) ] quer o identifiquemos como obediência (5, 19) ou misericórdia, é sempre evidente que se trata da graça de Deus, manifestada por sua dádiva na graça que houve [e que há] em Jesus Cristo, na ação invisível de Deus, promovendo a positividade deste novo relacionamento; trata-se da obra divina, da atividade de Deus para com o homem e para com o mundo. Deus não permanece impassível ante a usurpação; Deus não abandona o homem; não o considera perdido porque caiu; antes o reivindica para si; Deus é misericordioso e maravilhoso: é ele o Deus que perdoa e que dá: é dele que vem “a graça que a muitos cumulou de riquezas”. É Deus quem toma a iniciativa e estabelece o relacionamento positivo entre Deus e cada homem, em Cristo, e traz para o “mundo de Cristo”, o “SIM” divino. Eis, agora, Deus como Criador e Redentor; como o doador da vida e de toda dádiva perfeita. Em Jesus Cristo torna-se visível a realidade invisível: que Deus não deixa de dizer-nos “SIM”. O mundo para o qual Deus se volta ativa e positivamente, é o mundo da vida. É o mundo onde a transitoriedade, as limitações, a pequenês, perdem o seu sentido terreno, para mostrarem o relacionamento existente entre a origem e o alvo; para mostrarem o sentido e a realidade da existência. É o mundo onde todas as interrogações já foram respondidas; é o mundo onde o conteúdo eterno é perceptível nas coisas passageiras e o homem vê o resplendor divino e, já agora, nas penúltimas obras, goza da Paz de Deus. É este o mundo que se desvenda, indescritível e pleno de esperanças, ao “novo homem” postado sobre a soleira do umbral eterno; revela-se na unidade da esperança final, na esperança da clareza e da paz que vêm de Deus; e, sendo esperança, é, desde já, realidade espiritual. (5, 11). É assim que se situa a balança dialética entre a queda e o perdão; e por que força de lógica não haveria de estar acessível, e até muito próxima, a possibilidade de suprimir a aparente simetria deste contraste mediante um passo à frente para, (“com mais certeza”), conhecer o seu verdadeiro sentido? E por que não dar esse passo?

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5, 16-17

2ª Ponderação (5, 16-17) Voltemos agora, nossa atenção ao modo de agir e às tendências do mundo, como “velho” e como “novo”, e vejamos o que adveio ao mundo por meio deste “um pecador” e pela “dádiva divina”. O homem está novamente situado [no seu relacionamento com Deus] ou à esquerda ou à direita, pela queda e pelo perdão. As duas posições procedem da mesma sentença do Deus Justo e misericordioso e o homem se situa deste ou daquele lado obedecendo uma determinada ordem invisível, e isto independente de ele estar deste lado, representado por este único Adão [da queda], ou do outro, pela imensa quantidade daqueles que caíram da mesma forma, e também independente de aqui se tratar de sentença condenatória e ali de sentença absolutória, pois: “o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça decorre de muitas ofensas, para a justificação”. Na origem invisível de onde procedem, o “mundo novo” e o “mundo velho” são iguais. Eles tomam as características próprias de “novo” e “velho” quando confrontados em Deus. Eles são, originariamente, tão idênticos entre si como a chuva que cai sobre o divisor de águas: só aí é que se divide e flui em direções opostas. São qual a torrente que chega à aresta do pilar da ponte: só aí é que se fendem as águas, para percolarem as faces opostas. Nesta separação está a eleição divina ou a rejeição. É na unidade que Deus elege e condena. (5, 16). Contudo Deus elege e condena; por conseguinte, não são iguais as duas posições. Basta ver o que o julgamento de Deus significa para o homem (5, 17): de uma parte significa tudo o que veio ao mundo, por Adão; significa a soberania da morte; o homem despojado, negado, reduzido à condição de sofredor; perenemente atado, algemado, aos grilhões que prendem a humanidade desde o primeiro até o derradeiro de seus seres; significa o destino final, causal, claramente visível na morte que é a característica genérica do mundo. Significa o homem envolvido em infelicidades físicas, psíquicas e fatais exigências mecânicas (Ananke), preso por elas ao círculo incoerente da existência passageira; significa o homem cuja segurança é sem fundamento, e cuja desilusão será total; o homem que vive duvidosa juventude, e velhice tristemente célebre; o homem que fracassa, tanto em seus arroubos otimistas quanto nos pessimistas. Esse julgamento qualifica e identifica o homem que não pode viver porque não pode querer; não pode querer porque não é livre; não é livre porque não tem objetivo livre; e não tem objetivo livre, porque é mortal. Apenas mortal. Se esta sentença de morte ainda não foi executada em nós num dado momento físico, ela está todavia, permanentemente suspensa sobre nós qual a espada de Dâmocles.

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5, 17-18

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De outra parte, porém, esta sentença de Deus que condena e elege, tem outro significado. Ela significa que aquilo que veio ao mundo pela dádiva de Deus, por meio deste “um justo”, o segundo Adão, Cristo Jesus, não é nada menos do que a “PLENITUDE DA GRAÇA”, a “dádiva da Justificação” que pode ser aceita, acolhida, recebida por todos os homens, para que sejam eles próprios, reis, em vida. Para que o homem passe a ser “nova” criatura é ele transportado para a verdadeira vida, pela morte de Cristo. (6, 4-5). É a revolução contra a lei invisível do mundo que se evidencia pela morte. Este lado do julgamento significa a reabilitação do homem; a sua libertação fundamental da violência do pecado que o subjuga; significa a ordem da justiça divina debaixo da qual Cristo nos coloca. [Este segundo lado do julgamento divino] significa nada mais e nada menos do que a herança do mundo prometida a Abraão e à sua descendência segundo a fé (4, 13); significa que o homem já não precisa estar sujeito às cadeias do cosmos porém, o próprio cosmos, liberto, estará a seus pés. Significa que o homem, feito escravo de todas as coisas, pelo pecado, foi transformado em senhor delas todas, pela morte de Cristo; significa que foi destruído o aprisionamento causal, que fez da criatura mero elo de imensa cadeia; agora, como indivíduo, pela graça em Cristo, (que veio para apagar1 a transgressão de muitos) o homem está sob a lei da liberdade que, como sua nova e inalienável característica, é idêntica à lei da vida que caracteriza o reino de Deus. (5, 18). Significa ainda que, fundado em Deus, está o homem livre do pecado e, portanto, livre e acima da morte. Na sua imortalidade o homem encontra o livre objetivo de sua vida; na liberdade deste objetivo, a liberdade de sua vontade, quer seja vencedor ou vencido, pois tudo o que é passageiro, efêmero, perecível, é apenas parábola do que é imperecível, eterno. Como sua vontade liberta, o homem se reencontra e, dentro dele, encontra a incomensurável e absoluta grandeza de sua realeza, o verdadeiro valor da vida — a vida eterna. O fato de que aqueles que recebem a superabundância da graça “reinarão” (2, 13; 3, 30 e 5, 20) lembra-nos imediatamente que a identificação do homem “velho” com o “novo” ainda está por se efetivar, a qualquer instante, neste mundo; que a sentença de libertação apenas nos foi anunciada, e portanto, não significa uma libertação histórica, atual. Isto é assim porque, também sob este aspecto, o homem está apenas na soleira da entrada do Reino de Deus que é o reino dos livres e dos libertos. Mas, ainda sob este aspecto, o homem aí postado está pleno de esperança e, nesta esperança, ele não está, de todo, privado do gozo antecipado daquilo que espera.

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5, 18-19

Pusemos nas conchas da balança dialética, o julgamento e a graça; que a posição do fiel nos responda se, com razão (“e com mais justeza”) podemos, da pragmática do “mundo velho”, inferir a outra — superior, vitoriosa, inteiramente diversa, infinitamente mais significativa e mais poderosa — a pragmática do “mundo novo”. [O conjunto de regras que dirige o “mundo velho” na sua relação com Deus procede da sentença eletiva divina e aponta para o domínio do pecado e para o seu salário: a morte. Da mesma sentença depende a pragmática do “mundo novo” que, todavia, aponta para a maior excelência da graça e para a sua dádiva: a vida eterna]. Vs. 18 e 19 É neste sentido que se diz: assim como pela queda deste um, veio a morte para todos, assim também, pela justificação deste outro, veio, para todos, a vida, porquanto, assim como pela desobediência de um muitos pecaram, também pela obediência de um, muitos serão justificados. (A tradução de Almeida escreve: “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens, para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens, para justificação, que dá vida. Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos]. Depois de havermos tornado claro (5, 13-14) que o “pecado”, como fator dominante da conjuntura do “velho” mundo, tem o mesmo caráter original, invisível e objetivo da “justificação” que se lhe opõe e, após nos havermos certificado ainda de (5, 15-17) que o conflito mundial, que assim se desvenda, somente pode surgir como um movimento que: vindo da queda é absorvido pela reconciliação com Deus; vindo da morte, desaparece na vida; vindo do cativeiro, é suprimido pela redenção, — estamos em condição de, sem risco de sermos mal compreendidos, completar a analogia que propusemos mais atrás. [Conforme exegese de 5, 12, IN FINE]. Adão, é o antigo sujeito; ele é o “EU” (o Ego) do homem neste mundo; este “eu” caiu, usurpando para si o que é de Deus, para viver em sua própria glória. Não foi uma ação individual, (única), histórica; antes, trata-se de ação que sempre pré-existiu; que, em última análise, emerge inevitavelmente do mistério da rejeição divina; do desagrado de Deus, que é donde procede a determinação de toda a história da humanidade. Juntamente, e diretamente ligada à queda, foi pronunciada a “sentença de morte” a “todos os homens”: a sua condição de criaturas, a sua natureza, sua insuficiência, sua opressão, — são a sua maldição e seu destino. (5, 18).

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5, 19

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Pois, (5, 19) “pela desobediência de um, muitos pecaram”. O procedimento de Adão não revela um “estado” ou uma condição peculiar a ele, mas é a revelação da condição de todos os indivíduos da coletividade — (“os muitos”). Todos são expostos como pecadores; não há quem quer que seja que, como ser humano, não esteja “em Adão”. Não há, portanto, um homem sequer que, como homem “velho” não seja o “sujeito” deste predicado que se denomina “queda”; não há um, sequer, que não esteja sob a perspectiva da negação, sob a ira de Deus. Este é o mundo velho pelo qual somos gerados continuamente. Cristo, porém, é o “novo” “sujeito”, o eu, [o ego] do [outro predicado que se denomina] “mundo vindouro”. Este “eu” é o portador da justificação e da eleição divinas; é ele quem as recebe e as anuncia. [É em Cristo que se anula, que fica suprimido, o desagrado que o mundo causa a Deus]. “Este é o meu filho dileto, em quem me agrado!” Esta classificação do “homem”, a instalação daquele que nasceu da descendência de Davi como “Filho de Deus” (por fora da ressurreição —(1, 3-4)), não é visível, não é histórica, concreta. A carne e o sangue não a podem revelar. Também aqui, o que é conhecido e o que se pode revelar, vem do mistério da predestinação divina como determinação nova, superior, vitoriosa, para a história da humanidade. Diretamente com a sentença da justificação de (Cristo, [e por força dela] foi decretada “A JUSTIFICAÇÃO QUE É VIDA” para “TODOS OS HOMENS”. Portanto, [foi confirmada] a negação fundamental de todas negações; foi decretada a morte da morte. À justificação de Cristo estão inseparavelmente ligados o rompimento das cadeias que nos prendiam, a derrocada dos muros que nos cercavam, o nosso agasalhamento nos tabernáculos que são dos céus. (II Cor. 5, 2). Como conseqüência direta da justificação de Cristo, “PARA TODOS”, foi a morte tragada pela vitória (I Cor. 15, 54); o mortal foi absorvido pela vida (II Cor. 5, 4). “Cristo ressuscitado, já não morre mais; a morte já não domina sobre ele”. (6, 9). Junto com esta justificação e diretamente por ela, foi criado o homem “novo”, o eterno “sujeito” de todos os homens (5, 18) pois, “pela obediência de um”, muitos serão justificados (5, 19). Também aqui, [semelhantemente à situação dos homens, “em Adão”], não se trata de um estado ou de uma condição particular de um indivíduo, de uma pessoa, ou de um só homem; todos são iluminados pelo que é visível e valorizado na vida obediente e na morte de Jesus; [o aclaramento não é para a coletividade, para a raça, mas] é individual, pessoal: cada pessoa em si e por si mesma.

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5, 20-21

Neste “um justo”, os “muitos indivíduos” são iluminados e expostos aos olhos de quem quiser ver: tu, e eu, somos expostos como justificados perante Deus; como contemplados e reconhecidos por Deus; como fundados em Deus; estamos entre os que Deus chamou a si. Não há uma pessoa sequer que, exposta à luz da obediência, em Cristo, não esteja nele; não há um só que não seja o “novo” sujeito trajado em justiça, e por isso libertado e confirmado por Deus. Vejamos bem como está escrito: [“Hão de ser justificados”; “não há justo”; “reinarão em vida”] (2, 13; 3, 10; 5, 17). Não nos esqueçamos pois que “tu” e “eu” ainda não somos, mas seremos. A nossa relação positiva com Deus está sob a égide da esperança; estamos apenas na soleira, mas aí estamos: este é o mundo “novo” a cujo encontro vamos reiteradamente. Vs. 20 e 21 Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o pecado reinou, soberano, pela morte, assim também a graça reinasse, soberanamente, pela justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cri sto, nosso Senhor: “A lei sobreveio, para que a ofensa avultasse”. A vista de 5, 18-19, também aqui (como 5, 13-14 à vista de 5, 12) há que sublinhar alguma coisa. O destaque refere-se mais uma vez ao conceito de pecado, na “queda” e na “desobediência”. Este aspecto já foi assaz examinado e detalhado, todavia, precisamos voltar a ele para realçar a extraordinária significação da “justificação” e da “obediência que lhes são opostos. Mais uma vez recorremos à noção da lei: concluímos mais atrás que o pecado invisível se impõe como poder, (pela morte), mesmo onde não há lei; agora queremos mostrar que, onde há lei, o pecado se torna visível. A lei não é uma terceira grandeza, que se poderia situar entre as duas determinantes do mundo: “Queda” e “Justificação”, ou “Desobediência” e “Obediência”; a lei, como realidade histórica, apenas indica o ponto onde as duas determinantes opostas se encontram. A lei é o meio pelo qual tomamos conhecimento da existência dos “dois mundos”; é a lei que evidencia a necessidade da inversão da rota; a necessidade de fazermos a conversão de sentido. Vimos “o novo mundo”, em sua conjuntura geral e objetiva, na sua pragmática invisível fundada no querer e no agir de Deus, sobrepujar vitoriosamente o mundo “velho”. Todavia, será que nessa análise não esquecemos de alguma coisa? Não teríamos deixado passar desapercebido algum aspecto relevante,

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5, 20

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quem sabe não teríamos até mesmo, calcado algumas evidências que acaso surgissem? [Vimos que o “novo” mundo se opõe vitoriosamente ao “velho”; que a pragmática deste novo mundo está baseada na vontade soberana de Deus; vimos que a lei, não é uma terceira grandeza mas é a pedra de toque pela qual distinguimos a separação dos únicos dois caminhos que temos à nossa disposição, na vida; todavia, não é a lei que traz a religiosidade? Onde, pois, colocaremos o homem religioso no contexto do ingresso ao mundo “novo”?] Não teria o nosso relacionamento com Deus, “em Adão” ou “em Cristo”, o seu lado subjetivo, humano? Ao lado das possibilidades invisíveis de sobrepujar o homem “velho” pelo “novo”, conforme acabamos de ver, não existiria [quiçá também em Cristo, e justamente nele] uma outra possibilidade visível neste mundo, e que se expressasse na forma de religião? Entre Adão e Cristo, não existiria um “terceiro”, — [uma incursão no terreno religioso] — Moisés, ou seu irmão Arão, (5, 13-14) — um profeta ou um sacerdote, [ou ambos]? Não há, para o crente, para o homem pleno de esperança e amor, para o homem temente a Deus, um meio de, por sua fidelidade, postar-se também na soleira do reino de Deus? Não poderia ser concedida semelhante graça ao homem alerta que aguarda, que corre, que ouve, que vê, que está ativo e pronto para dar o passo ousado, para frente; que é fiel no pouco; que medita; que trabalha “na causa”, que ora? Não poderia ser concedida à pessoa que é abençoada por Deus neste mundo e que se entrega entusiasticamente a sua obra, o privilégio de ficar na “soleira”, junto com os que estão às portas do reino de Deus mediante a justificação pela fé? E, se não, para que serve a religião na história do mundo? Na verdade, onde houver religião já não deveria estar transposta a soleira da entrada ao “novo mundo”? Já não deveria estar, [pela religião — a mais pura, a mais sublime, a mais perfeita] claramente definida a posição das “conchas” da ofensa e da justificação, na balança dialética, sob o vigor de uma sadia humanização divina ou divinização humana, que a religião proporcionasse? Ao homem (tão santamente) religioso, não poderia ter sido dado, desde já, pura e simplesmente, um pedacinho só, que fosse, do “novo” mundo? Dizemos isto com muita seriedade! É certo que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano, subjetivo, histórico. Jamais será por demais apreciado e reconhecido que existem homens religiosos [piedosos]; que o caráter formado pela religião, o pensamento

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inspirado nela, e as obras que ela motiva, se expressam em milhares de formas (e tantas delas são altamente simpáticas, sérias, dignas do maior respeito!) obras e frutos que entram para a história (e não raro são o próprio “sal” da terra]. Poderemos tentar criticar algumas manifestações religiosas; será, todavia, uma crítica relativa, e teremos que nos silenciar, embora também nossa aprovação seja apenas relativa. A religião estará sempre à altura de enfrentar e fazer silenciar as críticas que se levantarem a uma eventual forma de religião ou a alguma atividade religiosa pois, entre todas as atividades humanas é exatamente a religião que tem o sentido mais profundo, o mais puro; entre todas as possibilidades humanas, é a religião que tem o maior poder vital e a maior capacidade transformadora. Religião é a possibilidade que a humanidade tem de receber uma impressão da revelação divina mantendo vivo o movimento de retorno do homem velho para o homem novo. E a religião que retrata e reaviva esse retorno, desdobrando-o e o apresentando em forma compreensível, ou perceptível, ao ser humano, quer isoladamente, como indivíduo, quer em seu conjunto, como coletividade. A religião é uma das maneiras de que Deus se serve para preparar o homem para fazer a conversão do seu caminho, e também para acompanhá-lo depois dessa mudança de rumo; é pela religião que Deus leva o homem — consciente ou inconscientemente, a tomar uma posição. Foi nesta possibilidade que sobreveio a lei. A religião [e ela é uma expressão da lei,] é uma grandeza de sentido duplo que flutua entre o céu e a terra, tremeluzindo, furta-cor, entre a maior das promessas, e o seu mais duvidoso cumprimento. Ela parece ter a possibilidade de cumprir o seu intento: possuir a Deus e estar em sua presença; ela parece conter, efetivamente, o teor que pretende e que afirma possuir; o teor que almeja e pelo qual luta: a justificação e a vida. “Vós recebestes a lei pelo ministério dos anjos”. (Atos 7, 53). Ora, a lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom. (7, 12). Portanto também a lei tem a sua origem invisível em Deus, — e a nós compete pesquisá-la. (3, 31). É nesta pressuposição que o reconhecimento da religião, a sua confissão e a sua defesa, encontram o seu relativo direito. Todavia, trata-se de uma “possibilidade” humana, um aspecto histórico e real do homem, manifesto em seu conteúdo psíquico, intelectual, moral e social e que é totalmente interrelacionada com o mundo e, portanto está também na penumbra do pecado e da morte.

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A possibilidade divina da religião jamais será uma possibilidade humana; talvez resida aí a relativa justificação da crítica que se possa fazer à religião. Realmente é assim: o relacionamento do homem com Deus tem o seu lado subjetivo que, todavia, está necessariamente sob a lei da morte. Não há como fugir dessa luz crepuscular, nem para Arão e Moisés, nem por qualquer experiência religiosa, desde a mais elementar até a mais sublime. Nem o próprio Jesus histórico, o Jesus “nascido de mulher, sob a lei” (Gal. 4, 4) está livre da interpretação de que a religião poderia representar uma possibilidade alternativa para a humanidade. (Na realidade não se trata de uma possibilidade). Esta interpretação errônea pode atingir o apostolado paradoxal de Paulo e a nossa “paz com Deus”. (5, 1). É neste crepúsculo que se origina (e tem lugar) toda a polêmica entre as religiões e, — não em último lugar — a polêmica contra a religião (EO IPSO religiosa!). Qual é a afirmação solene de que “conosco” ou que “ali” e “acolá” “não se pensa assim”, que poderá afastar basicamente, e com autoridade, o luscofusco dessa interpretação errônea? Quem pode apresentar uma forma [ou fórmula] religiosa, segura? Esta problemática atinge a nossa própria religião e toda e qualquer outra expressão de religiosidade; atinge o mais refinado ceticismo e as mais originais crenças, crendices, e preconceitos, quer religiosos quer anti-religiosos. A religião que encontramos em nós e em nossos semelhantes é, como expressão da possibilidade humana de alcançar justificação perante Deus, tão pouco viável como seria, por exemplo, imitar-se um pássaro em pleno vôo. A religião é, e somente pode ser, entendida e avaliada em seu sentido visível, palpável, histórico: ela é uma ocorrência, um evento, no mundo dos homens (que é o mundo do pecado e da morte). O respeito e a admiração que a religião [ou uma religião] merecer neste mundo não deve obliterar a visão real de que qualquer absolutismo, transcendentalismo, e ligação direta com Deus, (atribuídos à religião) são ilusórios, fúteis, irreais. Todas as tentativas religiosas de sobrepujar a natureza, ir ao “além” por processos ou métodos metafísicos, as mais ousadas intenções, as campanhas para ganhar o céu por assalto tudo isso atola no lamaçal de alguma região intermediária, entre o consciente e o inconsciente, algures, no território do “NÃODEUS”, do “Deus” deste mundo, ainda que venha, algumas vezes, designado como “vida”, “realidade”, “Reino de Deus, “além”, etc. De positivo a favor da religião, só se pode dizer que é nela que a humanidade tem a sua mais profunda, mais pura e mais duradoura possibilidade

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neste mundo; é na religião que a humanidade alcança — tem de alcançar — o seu clímax (CLÍMAX!). “Sobreveio a lei para que avultasse o pecado”. E assim que a possibilidade invisível da religião, opera como possibilidade humana, visível. Ela precisa operar nesta forma para que a queda do homem se torne visível e se evidencie a necessidade do retorno [a Deus]. É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é carnal e pecaminoso; que ele é um obstáculo a Deus, que está sob a ira divina. É na religião que se revela a total insuficiência do saber humano, a sua instabilidade, a sua absoluta superficialidade; é na religião que se patenteia a fraqueza da vontade humana e o amargo “PARE!” que se antepõe a tudo que o homem faz. A lei gera a ira e onde há lei, aí há transgressão (4,15) e há imputação de culpa, (5, 13). “Cada um de nós é culpado em tudo, perante todos; e eu, ainda mais que todos os outros” (Dostoiewski). “Antes eu era livre e andava pela noite, sem lanterna; agora, depois que recebi a lei, adquiri consciência e ando à noite carregando uma luz. Portanto, a lei de Deus nada fez senão despertar minha má consciência”. (Lutero). Este é, pois, o lado subjetivo do relacionamento com Deus, conforme visto pelo homem. Livre do sonho de Jacó, Esaú também ficou livre da mentira dele, [Isto é, Esaú não sonhava, todavia, também não mentia!]. A situação de Israel, do ponto de vista humano, é a mais miserável e vil; e plena de enfermidade. O próprio Cristo, como possibilidade humana, significa a morte entre malfeitores; significa morrer tendo nos lábios a frase que nunca preocupou Pilatos e Caifás: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Ser profeta e sacerdote, teólogo e filósofo, crente, ser caridoso e ter esperança, visto e apreciado como possibilidade humana, significa apenas frustração ante a impossibilidade de alcançar por esse meio a justificação divina. Como tal é um trabalho vão e uma aplicação inútil de nossas forças, ainda que a obra seja do Senhor e para o seu reino. (Isa. 49, 4) — São bolhas e chagas em que irrompe o mal de todos. Quem espera por outra coisa, não sabe o que é lei, religião, eleição e vocação; então é melhor que cuide de algo diferente. Onde houver prece e prédica, onde o homem se apresentar a Deus e houver sacrifício, onde houver a percepção e a experiência da presença de Deus —justamente aí, é abundante a ofensa. E aí que se torna visível o que ficou invisível desde “Adão” até “Moisés” (5, 14) e que, de outra forma, talvez permanecesse invisível. “Para que, perante ele, nenhuma carne seja justificada” [3, 20]. É justamente aí [onde o homem sente a presença de Deus] que o seu

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mal irrompe para o desenlace da morte. Porém, “onde abundou o pecado, superabundou a graça”. É, pois, preciso que até a última realidade seja destruída; que a catástrofe atinja também (e precisamente) a possibilidade mais esperançosa e promissora do homem, a sua religião, para que o grande “NÃO” se transforme no “SIM” de Deus; para que a graça seja realmente graça! Este retorno, esta transformação, se efetiva apenas com a dissolução final e total das possibilidades humanas; com a catástrofe; quando o homem descobre a inutilidade e a ineficácia dos seus derradeiros esforços; quando falham os atalhos que tentou seguir para encurtar a caminhada que, de Adão, leva de volta a Cristo; quando todos os métodos que tentou para fazer esse retorno, essa volta, se mostraram vãos. Esta reversão, esta conversão no curso da vida, somente ocorre quando o abandonado “servo de Deus” renuncia a si mesmo. É nisto que consiste o direito à reivindição que a lei busca e que a religião proclama. [Considerando que somente pela morte do homem “velho” pode nascer o homem “novo”] o que pode acontecer de mais salutar que a evolução da enfermidade, para a morte? E onde haveria de surgir a morte, senão onde a lei interveio? Então o homem, sentindo toda sua insegurança, já não pode mais deixar de pensar em Deus e a sua situação incerta se torna evidente. “Quando ele der a sua vida em holocausto, pelo pecado, então terá posteridade, e prolongará os seus dias, e a vontade do Senhor prosperará em suas mãos. Pelo trabalho penoso de sua alma, ele terá prazer e satisfação; e com seu conhecimento, o meu servo — o justo — justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si”. (Isa. 53, 10-11). Esta é a aniquilação, [a supressão], a catástrofe, que de SAULO faz PAULO, e que lhe dá o direito, — mais do que isso, lhe impõe o dever de, como Paulo, ser um verdadeiro Saulo. Pois aquilo que ele é, como Paulo, ele o é como aquele que ele não é, a saber: a superabundância da graça que não pode existir sem que em todo instante desta vida o pecado seja abundantemente manifesto na religião. Não se deve tentar separar a dualidade da realidade histórica da religião, e nem é possível fazê-lo: a graça só é graça quando a possibilidade religiosa, tomada totalmente a sério, em toda a sua pujança e em todos os seus desdobramentos, for oferecida em holocausto. Somente então! Todavia abstenhamo-nos de pensar, e muito mais de dizer, que este “somente então” seja uma limitação do âmbito ou das possibilidades da graça. Felizes aqueles humanistas ponderados que nada sabem da arrogância e da tragédia da religião, e que parecem ter sido poupados da ilusão e da desilusão de Israel. Haveremos de guardar-nos de lançar contra eles o raciocínio farisaico: “Fora

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Cristo nascido em Atenas, não teríamos a garantia tão régia da soberania da graça” (Zahn), pois o pecado precisa abundar, para que a graça seja super-abundante; para que, “como o pecado reinou, soberano, pela morte, assim também a graça reine, soberanamente, pela justiça, para a vida eterna”. O “novo” mundo, sobre cuja soleira estamos como “novas” criaturas, é o Reino de Deus; é o seu Domínio, e a esfera de seu poder. Aqui é somente Deus quem elege, quer, cria e redime. Foi para tornar bem evidente a legitimidade do movimento que, desde Adão, vai para Cristo, que, associando e confrontando igual em igual, colocamos a possibilidade religiosa como a derradeira e a maior delas, sobre este denominador comum: “a soberania do pecado, pela morte”, para então confrontarmos o “todo igual” com o seu “totalmente diferente” e oposto na graça, que “reina soberanamente, pela justiça, para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. Graça não é graça quando o agraciado não estiver justificado. Justificação não é justificação, se ela não for imputada ao pecador. Vida não é vida, se não for a vida que surge da morte. Deus não seria Deus, se não significasse o fim do homem. Vimos o velho mundo como um círculo fechado, contínuo, sem brechas, por onde pudéssemos escapulir. E por isso que compreendemos à luz que vem da ressurreição de Cristo entre os mortos, qual (a força) e o sentido do dia que se aproxima: o dia da “nova” criatura e da “nova” terra. [“Ora, vem, Senhor Jesus!.”] Comentários: 5, 1-21 1. Pelo extenso tratamento que o A. dispensou ao tema, pareceu-me mais conveniente deixar para o fim um comentário que me ocorreu ao interpretar o pensamento de Barth sobre o “pecado original”. Talvez pudéssemos sintetizar o seu pensamento sobre este assunto como segue: A origem do pecado, a fonte de todo o mal, e que se paga com a morte, não é, precisamente, a exteriorização da rebeldia do homem, mas a sua primeira inclinação de voltar as costas a Deus. Essa inclinação não é material e, por isso, não se transmite por herança física, mas é espiritual e teve lugar “em Adão” em quem essa inclinação está “a disposição” do ser humano, da mesma maneira que a reconciliação com Deus está, permanentemente “a disposição” dos homens.

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5, 1-21

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É assim que Adão prefigura o Messias; não no sacrifício, nem na ressurreição, nem na graça, nem como o homem perfeito, que nada disto Adão fez ou foi; nem como pecador porque Cristo não pecou. Porém, como o ponto onde o pecado se ancorou, para que os homens pudessem servir-se dele, como Cristo foi o ponto onde a graça se fixou para que os homens pudessem recorrer a ela. Adão foi o ponto onde surgiu o pecado fundamental, o pecado básico: a decisão do homem de usurpar para si as qualidades divinas; mediante essa resolução, o homem ficou, não apenas “psicologicamente” condicionado para praticar o pecado, como também, e conseqüentemente, possuído do sentimento de culpa que o leva a fugir de Deus e a esconder-se dele. Então entra o homem em círculo vicioso: quanto mais peca, mais foge e, quanto mais se afasta, mais transgride. Adão é, pois, a prefiguração do Messias, não como o protótipo de Cristo, mas qual o reverso da medalha; qual um “paralelo negativo”: em Adão o homem peca tomando para si o que é de Deus! Em Cristo o homem se salva dando a Deus o que é de Deus. 2. Entendo que a “pragmática” do “mundo velho” e do “mundo novo” a que se refere o A., e que chamei também como o respectivo “conjunto de regras” seja o relacionamento do homem com Deus. No presente mundo este relacionamento se faz através do conhecimento adquirido da lei divina, pela religião, pela apreensão do Deus desconhecido através de suas portentosas manifestações no Universo, pela sua palavra escrita e pela sua revelação no Verbo que se fez carne e habitou entre nós. Todavia, pelo pecado, pela queda, o “homem velho” e o seu mundo tendem a fugir — a se afastar de Deus. Ora, são esses mesmos fatores, esses mesmos “agentes” que, pela graça, pela justificação divina, trazem o “homem novo” e o seu mundo, de volta à presença de Deus pela mediação de Jesus Cristo. Uma só pragmática e uma só sentença divina; porém os efeitos sobre a criatura em Adão e a criatura em Cristo divergem radicalmente. Uma só pragmática na forma, porém sinais opostos no sentido. 3. A analogia esboçada no final da exegese do v. 12, e levada a conclusão na exegese do v. 18, parece dizer que: “Assim como a pragmática invisível existe e é evidente nos fatos visíveis, assim também o pecado que é evidente nos fatos visíveis, existe invisivelmente em sua origem.

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Capítulo VI

A GRAÇA O capítulo foi subdividido em duas partes: • O PODER DA RESSUREIÇÃO - vs. 1 a 11 e • O PODER DA OBEDIÊNCIA - vs. 12 a 23 Na primeira parte o A. aborda, como introdução, a absoluta separação que existe entre o cometimento do pecado e a dispensação da graça; são grandezas estranhas, uma a outra; incomparáveis até mesmo por oposição, por antinomia. A graça existe, independentemente do pecado; a graça elimina, anula, suprime o pecado mas ela não veio, nem se fez para este fim; a graça existe porque Deus é gracioso; ele a quer dar. Em seguida, abruptamente, sem transição, o A. passa a tratar do batismo — o símbolo da morte do “homem velho” que é, todavia, o símbolo da graça divina — o fim da “velha” criatura e o nascimento do “homem novo”. O batismo, como sacramento — testemunho visível da invisível graça da morte do pecado e da ressurreição em Cristo. Ao falar na simbologia do batismo o A. faz também uma leve referência ao mundo da magia e passa a tratar, quase imperceptivelmente, do “Homem Novo”, que nasce das águas batismais, para a arremetida da fé. Canta um hino à fé, o ingrediente básico da transformação do homem velho em nova criatura pelo poder da ressurreição de Jesus Cristo, nosso “irmão mais velho” e o próprio Deus.

O PODER

DA

RESSURREIÇÃO (6, 1-11)

V. 1 O que diremos mais? “Detenhamo-nos no pecado para que a graça seja maior”? — Impossível! “Que mais diremos?” Numa relação dialética rigorosa vemos juntos, Adão e Cristo, mundo velho e mundo novo, a soberania da morte e a soberania da graça; uma em oposição à outra, garantindo-se e se legitimando nessa polarização.

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6, 1

O Poder da Ressurreição

Afirmamos com toda ênfase possível (especialmente em 5, 15-17) que essa oposição é dialética, isto é, que ela subsiste no segundo elemento mediante a supressão do primeiro e que, portanto, a “série” não é reversível. Dar-se-á o caso que apenas fazemos a afirmação, e não a demonstramos? Tudo depende de provarmos que esta “vitória” [do segundo elemento sobre o primeiro,] que a irreversibilidade do argumento dialético, que [o giro de cento e oitenta graus] o retorno no curso da vida, é absolutamente necessário [e incontornável]. [Em primeiro lugar] caracterizamos o momento crítico em que Deus, por sua divina deliberação, faz girar a chave e abre a porta que dá acesso à soleira do “mundo novo” com uma frase ousada: “Onde abundou a transgressão, a graça é superabundante”. (5, 20). Com esta frase enfeixamos na mesma conjuntura valores polarmente opostos: o cúmulo do pecado com o apogeu da graça. Saulo e Paulo. Esta posição se impõe forçosamente, pois “Cristo não pode ser silenciado pelo fato de ser ‘pedra de tropeço e rocha de escândalo’ para muitos; porque as mesmas qualidades que significam a ruína para os que não crêem, representam a ressurreição para os que crêem” (Calvino). Poderia, também, ter acontecido que o alcance da afirmação [conforme a segunda parte de 5, 20], não fosse apreciado, percebido, devidamente, e que ela fosse considerada apenas como referência ao momento “crítico” sem qualquer conotação com seu sentido “físico-metafísico”; ou então que se entendesse a frase como sendo, também, uma descrição de acontecimento no campo histórico-psicológico deste mundo. Poder-se-ia, talvez, até supor uma complementação da frase [quiçá um expletivo], dizendo que a queda e a graça estão em eterna contraposição, sob tensão entre si, em polaridades opostas, em antinomia. Nesta possível extrapolação da afirmação contida na frase poder-se-ia, quem sabe, chegar à conclusão que o “SIM” e o “Não” são igualmente necessários; que são equivalentes e igualmente divinos; que o homem vive igualmente, [indiferentemente], em ambas as condições; que o “NÃO” precisa metamorfosear-se em “SIM” e este precisa voltar sempre ao “NÃO”, pois de outra forma morreriam; que todas as coisas podem ser valorizadas tanto como positivas quanto como negativas, inferindo-se da afirmação tudo mais que a generalização da proposição possa sugerir. Seria isto o que queríamos dizer? [Se assim fôra] então estaria certo o dito: “Permaneçamos no pecado para que a graça seja maior!” [Todavia, vimos que não é assim, antes] a continuada interdependência entre o pecado e a graça, entre “Saulo” e “Paulo”, é o ACTUS PURUS de um acontecimento invisível.

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O Poder da Ressurreição

6, 1

A vontade de Deus, una, subdivide-se na dualidade para [em seguida] sobrepujá-la, desta forma comprovando mais excelentemente a sua unidade. Este acontecimento invisível, em Deus, [o “ACTUS PURUS” de que fala o A.] pode ser confundido com a série de fatos histórico-psicológicos pelos quais (o “ACTUS PURUS”) se torna perceptível aos homens. (Aristóteles). Correremos, então, o risco de confundir os sinais com a obra divina ou, em outras palavras, seria como se esses sinais, considerados metafisicamente, fossem reprojetados na própria vontade de Deus. Se isto acontecer, então o homem não estará “voltando” à sua primeira origem, ao “Deus desconhecido”, mas estará indo após si mesmo — o homem conhecido deste mundo; estará transformando as vicissitudes de sua vida, os seus pontos baixos e altos [a sua própria experiência] em ocorrências transcendentais. Quando o homem considera como imperecíveis os fenômenos e as experiências desta vida, desaparece o desassossego que a invisível supressão da dualidade, por Deus, impõe ao ser humano (como ameaça e promessa às contingências do mundo). Em lugar do desassossego reina agora a paz sepulcral das tensões imanentes aos altos e baixos da vida, à polaridade, à alogeneidade ou à antinomia do mundo; essas oposições se apresentam como possibilidades humanas visíveis, inter-acopladas causalmente. Nessa analogia causal, humana, a graça sucede ao pecado e portanto, reciprocamente, o pecado sucede a graça; resulta daí, que podemos permanecer no pecado. Conseqüentemente o pecado que, para Deus, tem que ser combatido, suprimido, cancelado imediatamente após o seu aparecimento, para o homem passa a ser um fator positivo, um meio útil, um caminho, um trampolim [um pretexto] para dar lugar à graça [a fim de que ela seja superabundante]. É exatamente isto que as possibilidades humanas proporcionam entre si, [isto é, uma primeira possibilidade material, aceita como eterna, como o imperecível, abre caminho a outros silogismos e de dedução em dedução, ou conseqüentemente, depressa se chega ao absurdo]. Esta é a mesma lógica humana que já encontramos em outro lugar (3, 3-5): “Pratiquemos o mal para que daí advenha o bem!” Também aqui esta lógica erige o homem em Deus, mediante a condicionalidade de seus contrastes (como se o homem pudesse, por suas obras e dentro da relatividade de sua existência, realizar a conversão do mal para o bem, do pecado para a graça!). Esta lógica submete a vontade soberana e livre de Deus às contingências humanas, como se Deus, caprichosamente, oscilasse de um lado para outro, entre o bem e o mal, entre o pecado e a graça. Como se Deus não fôra o verdadeiro Deus, mas

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6, 1-2

O Poder da Ressurreição

o Deus deste mundo que retrata, como em espelho, a imagem do homem com ele identificado! Aqui, como o fizemos mais atrás, precisamos objetar enfaticamente: “IMPOSSÍVEL”! É impossível aceitar esta lógica humana; é impossível transportar para a experiência humana o instante crítico, nunca visto, inescrutável; o instante quando o pecado e a graça se situam em contraposição equilibrada perante Deus, como forças equivalentes e igualmente sancionadas por ele. Este instante não pode ser transferido para seqüência ou para paralelismo de realidades histórico-espirituais que sejam fruto do conhecimento ou do querer dos homens. É impossível confirmar [e muito menos possível é afirmar] que o pecado é a origem, a causa, [a geratriz] da graça; é impossível reconhecer e festejar o pecado como se pecado e graça — ou graça e pecado — realmente se sucedessem [indiferentemente, como causa e efeito]. É impossível, em “piedoso atrevimento” atribuir ao homem a soberania divina, ou atribuir a Deus, a fraqueza humana, [o que efetuaríamos, fazendo a graça surgir do pecado ou, fazendo o pecado anteceder a graça]. É impossível que se manipule com a tensão eterna, com a polaridade e a antinomia em que o homem, presumivelmente, se encontra, pretendendo que esta posição, ou melhor, que esta oposição, seja da vontade de Deus. E o que torna impossível tal manipulação, é o PODER DA RESSURREIÇÃO. É deste poder que vamos tratar agora. V. 2 ...nós, os que para o pecado morremos, como viveremos, ainda, nele? [Notar que o impossível” que o A. inclui no v. 1, na tradução de Almeida está no v. 2, registrado com a expressão “de modo nenhum”.] Pecado, como acontecimento perceptível, visível, é justamente a troca do homem por Deus, e vice-versa; é o endeusamento do homem, ou a humanização de Deus [o que estaríamos, de fato, fazendo se pretendêssemos condicionar a graça divina à grandeza maior ou menor de nosso pecado]. Enquanto concentrarmos o nosso conhecimento e o nosso querer — todas as nossas possibilidades [as mais insignificantes e as mais elevadas] na troca contínua e forçada do homem por Deus, continuaremos sendo e, forçosamente, seremos pecadores, pois dentro de nossa condição humana, nossa casualidade e nossa fragmentação, [no âmbito total de nossas possibilidades,] nada mais podemos fazer que testificar a existência do pecado invisível, mediante nosso constante cair. “Vivemos em pecado” isto é, vivemos condicionados por

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6, 3

força invisível que nos compele a, consciente e voluntariosamente, intentarmos divinizar as coisas do mundo e trazer Deus ao nível dos conceitos humanos. A graça, porém, é o perdão (cuja continuidade depende exclusivamente da vontade de Deus). O homem decaído e que, o quanto se possa perceber, se esqueceu de Deus, é reconhecido por Deus como seu filho, e é objeto da misericórdia, do beneplácito e do amor de Deus. Este é o ataque mortal ao homem que “vive em pecado”; é um ataque tão profundamente radical que dá lugar à dúvida sobre se o homem está de fato condicionado pelo pecado, quer na sua inclinação invisível, quer em sua expressão visível. “A graça se opõe ao pecado e o devora” (Lutero). Isto é, a graça se opõe ao pecado da queda, que se torna visível na religião, como o ponto mais alto, o pináculo o “supra-sumo” do pecado do antropomorfismo. [É notável o empenho do A. em chamar atenção ao risco que a humanidade corre de, em sua manifestação religiosa, ou como expressão religiosa, tentar elevar-se ao nível da perfeição, (endeusando-se) ou então, de fazer de Deus um “Pai” bondoso — “um velhinho um pouco parecido com a figura de “Papai Noel”, um companheiro e até um comparsa, dando a Deus atributos humanos — humanizando-o]. A graça ataca o pecado pelas raízes. Ela nos questiona (põe em duvida a nossa pessoa, qual é) [neste mundo]; tira-nos o alento e nos fala como àqueles que [ainda] não somos: como a novas criaturas. Agora, Deus ignora o que realmente somos no mundo! Se entramos para a graça, então Deus nos conhece como “não pecadores”. O pecado, como condição obrigatória de nosso saber e querer é assunto passado, ultrapassado, liquidado. “Morremos para o pecado”. Já não brotamos dessa antiga raiz; não inalamos mais o seu ar, e não estamos mais sujeitos ao seu poder. “Como poderemos ainda, viver no pecado?” Como continuaremos vivendo quais somos neste mundo, já que Deus [“agora”] nada sabe de nós? O que é feito do invisível condicionamento de nosso saber e querer? [Se ele foi suprimido, se foi “devorado” pela graça], como nos prestaríamos a ser agora, em nossa existência, o teatro do pecado visível? Sim, como? O fato consumado da existência do pecado, a sua urgência, a sua pressuposição, torna-se, agora, problemático e a nossa existência [terrena] fica exposta à luz superior que evidencia e realça a outra existência, a que ainda não é. O nosso ser foi colocado sob a possibilidade de um FUTURUM AETERNUM, um futuro que Deus não incluiu no leque das possibilidades humanas e que, por obra divina invade, dominador, a totalidade da ciência, da

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O Poder da Ressurreição

vontade, do saber e do querer da humanidade, tanto no presente como no porvir. Isto é GRAÇA. Ora, tanto a graça como o pecado são grandezas incomensuráveis que não podem ser aproximadas uma da outra, como se fossem duas estações ferroviárias, ou dois elementos de uma série causal: não podem ser comparadas como os dois focos de uma elípse, dois conceitos de um argumento, ou dois predicados de um mesmo sujeito. Matematicamente falando, nem sequer são quais pontos em planos diferentes, mas são quais pontos situados em espaços estranhos entre si, nos quais um exclui a existência do outro. A hipótese de que possa existir um relacionamento entre a graça e o pecado, a possibilidade de chegar a um partindo do outro, está inteiramente excluída. Graça que tivesse o pecado a seu lado, não seria graça. Quem goza da graça não conhece o pecado e não o quer; quem goza da graça não é o pecador, pois entre os dois [entre o pecador e o não-pecador] existe um desfalecimento [a morte] e um novo nascimento. [Não esquecendo, porém, que a “nova criatura” só existe neste mundo na medida da esperança fundamentada na fé!] “Justificação é o ato divino que não deixa o homem conforme ele é, porém, o transforma completamente” (Fr. Barth). Vs. 3 a 5 Acaso não percebeis que se fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados em sua morte? Fomos, pois sepultados com ele pelo batismo da morte para que, assim como Cristo foi ressuscitado entre os mortos, pela glória do Pai, também nós andemos em novidade de vida. Porquanto, se formos aparentados com ele na semelhança de sua morte, (a sabe, em nossa morte), também o seremos na ressurreição. (Notar que Almeida, no v. 5, escreve “unidos” e não “aparentados”. A tradução de Lutero diz “plantados”, a V.S.F. diz “identificados” e “unidos”; a S.R.V. diz “unidos”.); “Nós”, que fomos batizados em Cristo Jesus”. Começamos estas nossas considerações lembrando ao leitor que o “batismo” (4, 11) é, no mundo, o ponto visível da partida [no caminho] do nosso conhecimento de Deus. Portanto, o batismo é um fato do mundo aparente da religião. E por que não o seria? Também o pecado, de que aqui tratamos, é um fato visível de nossa consciente e voluntariosa desonra a Deus.

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6, 3

Também a redenção em Jesus Cristo (3, 24) é um fato que pertence à realidade do mundo. Esta realidade histórica, (para todos os que crêem! (3, 22, primeira parte)) é a testemunha da existência do seu conteúdo eterno: — [A obra redentora de Deus!] Assim também o batismo, como ato que não se repete, (e justamente por isso) é um sinal. Um sinal e simplesmente um sinal; bem o sabemos. Mas por que não teria ele algo a nos dizer? “Os sinais somente são vazios e inoperantes quando a nossa ingratidão e a nossa malignidade obstruem o fluxo da verdade divina” (Calvino) isto é, quando nos privamos de sua verdade, identificando-os com alguma coisa material, quiçá diluindo-os em atividades eclesiásticas vazias (piedade não tem conteúdo!) ou então, quem sabe, dando à verdade do sinal a conotação de alguma experiência religiosa — a ser associada com ele: por exemplo, “a experiência do batismo”! Ou então, poderia alguém atribuir ao sinal, um poder mágico ou, mais racionalmente ainda, emprestar-lhe valor ou sentido mais profundo de mito cristão no caos da vida, a ser guardado para nosso bem, [para nossa proteção]. Todavia, o batismo testifica e testemunha a vida do além, dada por Deus, e proclama a sua palavra, como mensageiro da verdade, como santificação e sacramento. O batismo não tem simplesmente uma determinada significação mas, testemunhando para além de sua materialidade, ele é comunicação do novo nascimento e da realidade eterna; não é a graça [em si] mas é, em tudo e por tudo, meio de graça. O batismo é a pergunta do homem a Deus e é a resposta que Deus dá. Assim como a fidelidade de Deus envolve e cria, invisivelmente, a fé, assim também a obra manifesta de Deus para com os homens, envolve a obra humana, expressa no batismo. [Parece-me que o A. quer dizer que ao aceitar o batismo ou ao confirmálo pela profissão de fé para aqueles que foram batizados na primeira infância, a pessoa entrega o seu caminho ao Senhor; confia nele; pergunta a ele: “o que queres que eu faça?” Lança sobre o Senhor e perante o Senhor, a sua vida, o seu querer e o seu fazer; o seu pensar e a sua esperança; a sua convicção e a sua dúvida. E a pergunta eterna que vem antes das demais e acompanha a todas outras perguntas: “Quem és tu, Senhor?” — E é também a resposta: Eu sou Jesus. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Eu sou a luz do mundo. Eu sou a ressurreição! Eu sou o que sou! O A., parece-me ainda, quer dizer que assim como a fidelidade de Deus é a geratriz da fé, de tal forma que o justo, que vive pela fé, vive pela fidelidade de Deus, assim também a obra de Deus na morte sacrificial de Jesus Cristo, é a

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6, 3

O Poder da Ressurreição

geratriz da morte do homem para o pecado, expressa no mundo pelo batismo. Cristo morreu por nós e ressurgiu para que nós, morrendo em Cristo, ressurjamos para Deus. Fidelidade e fé; morte e ressurreição de Cristo; nossa morte para o mundo e vida para Deus]. Se o batismo for tudo isso para nós, por que não haveria de ser ele o bastião de onde arranquemos para a nossa primeira sortida contra o mundo temporal e material? Há os que objetam que o batismo, como “rito de iniciação”, não é criação original do cristianismo, mas a cópia de “artigo” [um produto] do helenismo; essa objeção apenas comprova o que temos dito sempre e repetiremos aqui: o Evangelho de Cristo não surgiu com a proclamação e para a proclamação de novos ritos, dogmas e instituições mas, desembaraçadamente, tomou emprestado o material religioso existente na época. A mensagem do Deus Desconhecido pode arrostar a concorrência dos deuses conhecidos — sejam Mitras, Isis ou Cibele, — sem estar concorrendo com eles. A absoluta superioridade do Evangelho sobre o “mundo intermediário” da magia, no qual o sentido original, legítimo, da linguagem religiosa dos símbolos está deformada, deturpada, obscurecida, lhe permite compreender essas religiões misteriosas melhor do que elas a si mesmas. É essa superioridade do Evangelho, [que não é comparativa, gradual, nem condicional, mas total e independente], que lhe confere o direito de aceitar e acolher o testemunho da revelação, tanto de judeus como de gentios, (3, 21). Ora, sabemos que se trata efetivamente da graça divina quando vemos sensatez na insensatez (4, 16); [é a graça de Deus que concede o teor sensato a nossa insensatez]. Sabemos também que [a percepção], o acolhimento e a aceitação da sensatez na insensatez do mundo religioso visível somente é possível pela fé, [pois Deus não se comunica com o homem “diretamente”, (mas apenas pela fé)]. Sabemos ainda que esta dupla delimitação [a saber: a certeza de que somente “pela graça” e “pela fé” podemos discernir o que é sensato na insensatez] é também a crítica imanente e o cerceamento inevitável de nossa vocação [de nossa decisão de atender] ao sinal e ao testemunho do batismo. “Não percebeis que fomos batizados em sua morte?” Para aqueles que podem perceber, o batismo fala de morte. Ser batizado significa mergulhar, submergir num elemento estranho; significa desaparecer [morrer] nesse elemento; significa ser encoberto pelo fluxo purificador. Quem sai da água do batismo já não é aquele que nela entrou; não é o mesmo.

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O que entrou, morreu; o que saiu, nasceu. O “batizado já não é idêntico ao que está morto, pois o batismo testifica a morte de Cristo na qual triunfa a inexorável vindicação de Deus sobre o homem. Quem foi batizado em Cristo é “incorporado” nesse evento; quem foi batizado em Cristo desaparece, é extinto nessa morte; é tragado e absorvido pela reivindicação divina. Por isso o “batizado” fica desapegado, livre, cortado fora da ilusão e da insolente tendência de fazer-se semelhante a Deus, pois o que resta ao homem, em face da cruz? Ele perdeu a sua identidade como indivíduo que “quer e conhece” o pecado pois “aquele sobre quem o pecado tem poder”, morreu, (6, 2 e 7). Por isso ele está livre desse poder e de sua fatalidade. A morte de Cristo suspende [anula] — a queda; ela cria o vácuo onde não medra a pretenciosa auto-suficiência humana.A morte de Cristo ataca a oculta raiz do pecado invisível; ela transforma Adão — o homem do “Não-Deus” — em um ser do passado; portanto, o homem interessado em persistir no pecado (6, 2), desejoso de fazer-se igual a Deus, já não vive mais para além da morte batismal. O ser humano é anulado pela sua reivindicação por Deus, no batismo. Não há lugar para o “idealismo de ganhar o céu por assalto” (H. Holtzmann) pois o resultado do batismo é justamente o fim de qualquer entusiasmo semelhante. (No batismo o homem inicia “oficialmente” a sua carreira cristã; pode e deve fazer dele a base de partida para o “bom combate”; todavia, o “combate” será feito com humildade, com “temor e tremor”; não será, nunca, um combate, ainda que idealista, para ganhar o céu, porém será combate esperançoso e pleno de fé para buscar o reino de Deus e a sua justiça. A participação do crente, nesse combate, será acompanhada, ou melhor, será precedida por sua genuína auto-renúncia, no esvaziamento de si mesmo. É o sentimento de insuficiência, de vacuidade, de nulidade, de total desvalia, que caracteriza o ser emergente do batismo; o outro, a antítese dessa “criatura nova”, é o “homem velho” que imergiu e foi sepultado com Cristo]. Tampouco é o batismo uma “Doutrina pura e dura” (Wernle), pois o apelo ao Deus que vivifica os mortos (4, 17 - segunda parte) não é doutrina, e portanto nem “dura” nem “pura”, Não é doutrina porque, na plena nudez de um singular paradoxo, o batismo renuncia até à reputação barata de toda e qualquer doutrina; não é doutrina porque, em seu bojo, o batismo traz à idéia da presença do Poder Divino na fraqueza humana, e este conceito (contrariamente a qualquer doutrina) não pode ser esboçado, estudado, pré-estruturado, mas tem de se renovar constantemente, como se nunca antes houvera sido imaginado. É à “teologia do momento absoluto”, de Troeltsch? — Sim! Exatamente isto, desde que o “absoluto” seja imaginado existencialmente, como reconhecimento da existencialidade positiva e exclusiva da graça divina.

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6, 3-4

O Poder da Ressurreição

É disso que se trata no batismo. “O vosso batismo não é senão o estrangulamento que a graça faz ou, um misericordioso estrangulamento, que afoga o pecado que em vós existe, para que permaneçais sob a graça, e não sejais destruídos pelo pecado sob a ira de Deus. Assim pois, quando te apresentas ao batismo, te submetes ao clemente afogamento e à generosa morte que teu amorável Deus te dá, e dizes: afoga-me e sufoca-me, amado Senhor, que eu quero, prazerosamente, d’aqui por diante, estar com teu Filho, morto para o pecado” (Lutero). Esta morte é a graça. “Fomos sepultados com ele pelo batismo da morte para que, assim como Cristo ressurgiu de entre os mortos pela glória do Pai, também nós andemos em novidade de vida”. Por que é esta morte, a graça? “Porque ela é a “morte da morte”, o “pecado do pecado”, o “envenenamento dos venenos”, o “aprisionamento das prisões” — (Lutero). [Esta morte é a graça] porque a ameaça que ela traz, o “solapamento”, a “decomposição” que ela representa, vêm de Deus. [Esta morte que vem de Deus ameaça, solapa, destrói a morte — moeda do pecado; ela é dirigida contra todas as negações humanas, negando-as pela redenção em Cristo]. O poder de negação que a morte de Cristo representa, vem desde a eternidade. A morte de Cristo é a última palavra dirigida ao ser humano; é anjo [mensageiro de boas novas], é porta e passagem [para o acesso ao reino dos céus]; é conversão [no sentido do caminho trilhado no mundo, para a investidura do “homem velho”] em “nova criatura”, pois aquele que foi [ou que for] batizado, renasce e é idêntico ao “homem novo”; jamais continuará a ser [ou voltará a ser] qual o “homem velho” — que morreu. Esta morte, porém, não será Graça se ela tiver um significado apenas relativo [e não radical, total, absoluto]; não será Graça enquanto representar apenas crítica ao nosso mundo, ou mesmo oposição, revolta contra ele. Esta morte não será Graça se ela for [apenas pretexto] para a ampliação das possibilidades (negativas!) do mundo como, por exemplo, pelo ascetismo, o “retorno à natureza”, a “adoração silenciosa”, a “morte mística”, o nirvana budista, o bolchevismo, o “dadismo” [apelo ao subconsciente segundo Tristan Tzara, poeta de 1916] e coisas semelhantes. Esta morte não será a Graça enquanto ela não alcançar, não atingir o homem, fundamentalmente, em todas suas ações e atividades; enquanto ela não promover e efetivar a negação do homem terreno e de todas suas possibilidades. (“Sepultados com ele!”). Quando a morte [em Cristo, expressa no batismo] tiver este sentido radical, então ela se torna verdadeiramente eficaz; então a crise, o fim, o som da

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última trombeta, qual um risco em diagonal que tudo cancela e invalida, atravessa o “SIM” e o “NÃO” de nossa existência; risca a vida e a morte; anula o “tudo” e o “nada”; elimina herança e deserdamento, proclamação e silêncio, preservação e destruição. A anulação, esse risco em diagonal, atinge todas as obras e todas as expectativas humanas [de forma absolutamente radical]. Este radicalismo é uma possibilidade impossível aos homens que, todavia, se confirma e é testemunhada pelo poder da ressurreição daquele que foi despertado de entre os mortos pela glória do Pai. A energia e a seriedade desta negação [de todas as negações do mundo] vêm do sepultamento que Cristo preparou para os homens [deste mundo], criando o homem novo, invisível, [expressão da] plenitude da reconciliação (5, 10-11), mediante a supressão de nossa existência em Adão e a instalação da nossa nova existência em Cristo. [A tradução inglesa diz: “A energia e a seriedade da verdadeira negação — de sermos sepultados — são demonstradas e ratificadas na ressurreição. A verdade da redenção que Cristo realizou é proclamada pela criação do homem novo (5, 10-11); pela nossa existência nele, a nossa existência em Adão é, manifestamente, suprimida]. A ressurreição, caracterizada pela conceituação [que aqui ficou estabelecida] do que seja a morte [da qual ressuscitamos com Cristo], é absolutamente diferente de tudo quanto existe entre a humanidade aquém da linha da morte e é inteiramente independente, autônoma, de tudo quanto o presente mundo tem ou oferece. É o poder da ressurreição que provê o conteúdo divino que existe na vida do homem renascido e que preenche a vacuidade que a morte de Cristo suscita. [Esta vacuidade a que o A. se refere não é a aflição emocional que o drama da cruz pode suscitar (e efetivamente suscita) nas pessoas de temperamento emotivo e em certos tipos de misticismo mas é o sentimento de nulidade, de insuficiência absoluta, que a criatura sente, e da qual se compenetra, no momento crítico de seu encontro com Deus. Não é precisamente o apelo patético do poeta: “Morri, morri, na Cruz por ti, que fazes tu por mim?” que desperta o sentimento de carência, mas é a opção — novamente e sempre a opção — que o homem tem de fazer entre o paradoxo que a fé representa e que tanto escandaliza o mundo e, como única alternativa, a rejeição da fé como preço do apaziguamento da crítica mundana. Esta é a problemática da existência e a crise que esvazia o conteúdo material da vida que vivemos “em Adão” a cujos valores e interesses, como homens terrenos, nos apegamos com tanto carinho. Contudo, o despojamento, a privação que a opção da Cruz impõe ao homem velho não se transfere ao homem novo, antes é exatamente esta

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condição de “casa esvaziada” que da aso à entrada de outra forma de vida; é como luz que se acende na escuridão e que, posta no alto, inunda todos os recantos. Esta luz vem desde a cruz; vem do alto do gólgota e de mais alto ainda, vem dos céus, vem de Deus. O vácuo real, profundo, é preenchido pela vida que é Cristo Jesus. Ele veio para que tivéssemos vida, e vida abundante!] É o poder da ressurreição que restringe a nossa disposição para pecar; é este poder que, por assim dizer, torna impossível, à nova criatura, continuar vivendo em pecado. (6, 2). [Novamente me parece conveniente citar aqui a tradução inglesa, que assim condensa o pensamento do Autor: “Mediante esta concepção radical da morte, a autonomia do poder da ressurreição é garantida como independente da vida que está deste lado da linha da morte. O vazio criado pela morte de Cristo é preenchido pela vida nova, que é o poder da ressurreição. A preeminência da nova vida, não somente bloqueia, mas torna impossível a perseverança no pecado”. (6, 2)]. O poder da ressurreição coloca o ser humano, o homem nosso conhecido, o homem que conhece e ama o pecado, o único homem visível e possível [para o mundo], contra a parede, ante esta proposição [evangélica]: “Sepultados pelo castigo da morte PARA QUE ANDEMOS EM NOVIDADE DE VIDA!” Cria-se, para o homem, um problema pois, como haveremos de continuar vivendo em pecado quando, tais quais agora somos, [nos foi dada essa possibilidade inaudita de] andar em novidade de vida? Novamente, (conforme em 2, 13; 3, 30; 5, 17; 5, 19 etc. e também 6, vs. 2, 5; 8 e 14), esta novidade de vida é o “FUTURUM RESSURECTIONIS”, o nosso futuro [aqui manifesto] como em semelhança [como em parábola] da nossa eternidade. Apenas como parábola! Pois está absolutamente claro que o despertamento de Jesus de entre os mortos não é um acontecimento de extensão histórica ao lado [e a par] de outros acontecimentos de sua vida e morte porém, é o relacionamento não histórico (4, 17 segunda parte e seguintes) de toda sua vida histórica testificando a sua origem em Deus. Por outro lado, também está absolutamente claro que a necessidade coercitiva que sinto de “andarem novidade de vida” é uma realidade motivada pelo poder da ressurreição, e que nada tem a ver com qualquer acontecimento histórico, nem tem qualquer relação com acontecimentos passados, presentes ou futuros de minha vida. Antes, essa força coerciva é a licença, a autorização, a obrigação e a vontade do meu novo “eu”, criado em Cristo; é a confirmação da minha “cidadania no céu” — (Filip. 3, 20); é a minha vida oculta em Deus (Col. 3, 3), rediviva em Cristo Jesus. Este “andar em novidade de vida” é o meu panorama invisível, o meu alvo, a crise que o meu ser finito percebe por aquilo

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que em mim é infinito; é ameaça e promessa; é o que não é mais temporal; é o invisível, que esta além de todos os acontecimentos temporais e visíveis da minha vida; — está além de tudo e todos os eventos que ocorrem enquanto o mundo for mundo, o tempo for tempo, e o homem for homem. [E porque está além de tudo o que é do “presente século”], o “andar em novidade de vida” é o meu “futuro eterno” que, na qualidade do “poder sobre a morte” que vem da ressurreição, invade violentamente, e com radical exclusividade, a minha [antiga inclinação para a] permanência no pecado. Este “andar em novidade de vida” passa a ser o sentido da minha vida temporal, do meu pensamento e da minha vontade e, concomitantemente, é o elemento de crítica a essa conduta. À medida que o impossível se torna possível e sou sepultado com Cristo então, como aquele que não sou, consigo me apropriar do sentido dessa nova vida e da crítica, nela implícita, ao meu presente modo de sentir, querer e viver, (e isto em contradição a tudo quanto [neste mundo] de fato sou;) então estou verdadeiramente “morto para o pecado” (6, 2). Na invisível “novidade de vida” na qual, para honra de Deus, agora peregrina a “nova criatura”, já não há mais lugar, nem luz, nem ar para a permanência do pecado, assim como a morte já não pode subsistir ante a glória do Pai, manifesta no despertamento de Cristo, de entre os mortos. Sempre há de arder de novo em nossos corações a pergunta se, de fato, podemos ousar e se realmente ousamos (5, 1 e 6, 11) contar com esta impossível possibilidade da “nova criatura”. Porém, não resta a menor dúvida de que esta impossível possibilidade exclui a possível possibilidade do pecado. “Porquanto, se formos aparentados com ele na semelhança de sua morte, também o seremos na ressurreição”. Ser “aparentado” [ou “unido” segundo a tradução de Almeida] com Cristo em sua morte significa que a nossa atribulação é uma analogia do sofrimento de Cristo; todavia, isto só é verdade se não houvermos corroborado para a criação de nossa tribulação (8, 17; Gal. 6, 17; II Cor. 4, 10; Filip.3,10; Col. 1,24). [Muitas são as formas pelas quais podemos contribuir para nossas próprias aflições, desde o cometimento involuntário de pecado, até o zeloso combate ao mal. Todavia parece-me que o A. quer referir-se ao tipo de aflição que criamos ou para cuja criação contribuímos conscientemente; também estas tribulações podem variar desde as formas de renúncias piedosas abstinências, celibato, monastecismo — até formas absurdas de penitência — mortificação e flagelação. Podem também ser manifestações mentais, morais e psíquicas, originadas por interpretação errônea, possivelmente mística, sobre qual seja a santa vontade de Deus].

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A morte de Cristo é o convite ao homem para que se situe em Deus. [O A. diz textualmente: “Para o homem entender-se a si mesmo, em Deus]. Situando-se em Deus o ser humano se põe em condições de receber o poder que vem do alto, pela sua própria fraqueza; [de receber o crescimento que vem de cima, pela sua própria diminuição;] de alcançar o dom da vida, pela sua morte. (II Cor. 4, 16 e seguintes). A morte de Cristo dá-nos a oportunidade de nos conhecermos. a nós mesmos, em Deus (o que, todavia, de modo algum significa qualquer coisa parecida ou idêntica a “experiências” humanas); ela é a porta que dá acesso ao Juiz; é o caminho que, tirando-nos da tribulação, nos conduz [ao Pai] que é livre e nos liberta; que afasta de nós o infortúnio e nos apresenta a esperança (5, 3 e seguintes). É por tudo isto que o sinal do batismo é uma recordação de nossa comunhão invisível com Deus (6, 3). Qualquer outro relacionamento com Cristo [fora da morte com ele, simbolizada no batismo], qualquer forma de união com ele, qualquer maneira de seguir a Cristo, que não seja carregando a cruz, não existe no campo das realidades histórico-espirituais. Não existe qualquer maneira positiva de alguém se amoldar a Jesus, de andar em conformidade com ele, sem ser pela aceitação da sua cruz. Não há atividade humana — (“confiança em Deus”, “amor fraternal”, “amor Filial”, “Liberdade”, “Humanitarismo” ou outra atitude qualquer), que possa assegurar um relacionamento positivo com Deus, uma união visível com ele. A nossa união visível com Cristo (e que se manifesta e é visível ao reflexo de sua morte na cruz) está na condição e na situação do ser humano no mundo; é idêntica, acima de tudo, à incurável problemática da existência humana. Estamos (e quem não estaria conosco?) sob os umbrais da porta estreita onde se descerra a verdade de que, quem nos julga, é um juiz bondoso, santo, misericordioso. Olhamos, (e quem não olharia também?) desde a nossa união com Cristo, em corruptibilidade, desonra e fraqueza, para a nossa união invisível, com Cristo, em incorruptibilidade, em glória, e em poder! O que percebemos e vemos daqui, (outra vez como FUTURUM AETERNUM!), é a conformidade positiva com Jesus, das pessoas que vivem na temporalidade. Esta conformidade com Jesus nada tem a ver com a perspectiva que nos podem dar as muitas experiências [de nossa vida espiritual] e a nossa convicção religiosa. Esta conformidade positiva não pode ser trocada ou intercambiada, nem mesmo adquirida, comprada, por e com qualquer outra espécie (ou outras possíveis espécies) de conformidade, pois não se trata de

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obra ou característica humana e jamais terá ela qualquer projeção históricopsicológica. Nenhuma pessoa pode ser interrogada ou interpelada sobre essa conformidade positiva com Jesus [em sua morte e, portanto, em sua ressurreição]. A conformidade positiva com Jesus é dada pela nossa vida abrigada em Deus, com Cristo, a qual agora e aqui [neste mundo] só pode ser encarada como o “futuro eterno”, e nada afora isto. Mas, isto basta; a saber: a graça de Deus nos basta. (II Cor. 12, 9). O “homem novo” SERÁ e é criado por obra divina, e [este homem], como “nova criatura” que é, está livre do pecado. Na minha vida como “homem velho”, na minha negatividade, na minha pouca [ou nenhuma] conformidade com Jesus estou, todavia, pleno de esperanças pela secreta positividade da ressurreição. Vs. 6 e 7 Sabemos isto: Nosso homem velho foi crucificado com Cristo para que fosse suprimido o corpo do pecado, para que não precisássemos mais servir o pecado. Porquanto, quem morreu foi declarado livre do pecado. [Ou, segundo Almeida: “Sabendo isto, que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirvamos o pecado como escravos; porquanto, quem morreu, justificado está do pecado”]. “Sabemos isto”. Se entendermos o sinal do batismo, entendemos a nós mesmos e sabemos o que Deus sabe de nós. “Ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos pó”. (Sal. 103, 14). Vemos a nossa união com Cristo na semelhança da morte na cruz com a nossa fraqueza, com nossa relatividade, e com a profundidade de nossa crise (6, 3-5). Esta introspecção transforma-se em visão panorâmica. Mediante o conhecimento de nossa união com Cristo temos o ponto de partida para a “psicologia da graça”, que exclui toda análise direta (a análise não dialética), e que representa o que não está contido no teor da psique humana e comprova sua eficácia suprimindo a psicologia do pecado. À medida que nos reconhecemos unidos com Cristo [que nos identificamos com ele] vemos o que, [de outra formal, é invisível: vemos a misericórdia de Deus; vemo-nos, a nós mesmos, como seus filhos; vemos a nossa fatalidade ficando para traz, desaparecendo; vemos a anulação da “certeza de nossa anulação” pelo pecado; vemos o poder superior do “homem novo”. “O nosso ‘homem velho’ é o ‘Adão’ decaído, qual ele reaparece em todo ‘EGO’ humano, que vem ao mundo sob o domínio da potestade do ‘amor a si mesmo’ que surgiu com o primeiro pecado” (Godet).

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Vemos esse “homem velho” e contamos com ele da mesma maneira na qual contamos com o mundo temporal, o mundo das coisas e dos homens; aceitamo-lo tão naturalmente quanto a existência de nossa vida terrena, com toda a somatória dos elementos que a compõem. E que neste mundo não existe senão o “homem velho”. Todo pronunciamento que se fizer, toda ponderação e toda a consideração sobre a existência e o valor do homem, tratarão sempre e, exclusivamente, do “homem velho”. Todo sujeito “eu” (se o “eu” não for suprimido e cancelado com a ressalva: “não eu, mas Cristo que vive em mim”... será sempre o “homem velho”, por mais amplos que sejam os predicados que forem atribuídos a esse sujeito, quer sejam eles entraves, nobilitações, rebaixamentos ou exaltações. O reconhecimento de minha total identidade com este “homem velho”, porém, aponta para uma posição fora desta identidade, na qual eu mesmo me reconheço, ou melhor, na qual sou reconhecido; é posição na qual eu mesmo me qualifico, ou antes, sou qualificado, como “homem velho”. Que posição é esta? Que dinâmica é esta, que me situa tão irresistivelmente, tão imperiosamente, em círculo fechado? Que movimentação é esta que me permite apreciar este “Ego”, separado, estranho, como um “X” posto em evidência, como grandeza separada da “expressão” do “homem velho” para ser transposta e isolada do outro lado da igualdade? A resposta é: nosso “homem velho” está crucificado com Cristo. Ao me cientificar da minha união com Cristo mediante a semelhança com a sua morte, passo a perceber a existência dessa outra posição, inteiramente diferente de mim mesmo, com a qual não posso identificar-me, e que dá origem à dinâmica que evidencia o “X”. Eu vejo o homem velho, o único que conhecemos, julgado em Cristo e, por mais alto que seja o seu valor ou a sua possibilidade, vejo-o abandonado à morte e inequivocamente destruído; posto, desde a sua origem, em nítido contraste com o “homem novo” justificado por Deus e por ele vivificado. E, pois, neste julgamento, neste abandono, nesta supressão e contraposição em que me vejo, que deparo (com o que é invisível!), com o outro lado, com este “X” que também me identifica. Este “X” é o ponto de onde sou conhecido e rejeitado como o “homem velho” e que, por isso, é para mim um ponto favorável; portanto o “X” tem que ser [só pode ser], positivo. Este “X” invisível e positivo, relacionado com a morte que Cristo sofreu por mim, na cruz, na qual eu morro com ele, é, pois, o ponto no qual se dá a excelsa passagem do “homem velho” para o “homem novo”. Esta passagem só pode ser descrita como [fenômeno de ocorrências sucessivas, como se fosse, por exemplo] uma série de fotografias instantâneas

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de [alguma coisa dinâmica] uma ave em pleno vôo: um movimento que não aparece em determinada fotografia nem em qualquer delas [porém está em seu conjunto]. [Assim, comparando-se as posições sucessivas, pode-se observar o movimento que leva ao “X”]. Em primeiro lugar, fica fixado distintamente o homem do pecado sob a inexorabilidade do “NÃO” que emerge do “SIM” divino. Em seguida, na segunda pose, eu sou, inescapavelmente, obrigado a me identificar com esse homem do pecado; eu mesmo sou caracterizado, definido por aquele com quem me defronto como ante um espelho, na morte de Cristo. Numa terceira posição sou constrangido a subscrever, eu mesmo, a sentença da crucificação deste “homem velho”, “porque Cristo veio a nós e ressuscitou por nós, seres humanos, tais quais somos e, por isso, porque ele ressuscitou, ficamos envelhecidos, antiquados, obsoletos” (Schlatter). Então, em quarto lugar, cria-se “aquela” distância entre um “eu” novo e este “homem velho” e, com ela, surge a misteriosa possibilidade de eu me colocar em oposição a mim, como se eu já não fosse mais idêntico a mim mesmo, como se “eu” já não fosse mais o “antigo eu”. Finalmente, em uma quinta posição, estabelece-se a minha identidade com um homem invisível, novo, pré-estabelecido como sendo o objetivo, o alvo, o sentido de todo esse acontecimento (e que, contudo, não é um “acontecimento”). “Para que fosse suprimido o corpo do pecado”. Corpo quer dizer também “vida”, “pecaminosidade”, “pessoa”, “indivíduo”, “escravo”. O pecado tem corpo, isto é, ele tem existência concreta, esfera de influência, base de ação, tem substrato. O pecado tem existencialidade, expansão, autosuficiência, substância e atividade no mundo temporal das coisas e dos homens. Como “corpo”, o pecado é constantemente visível, “histórico”, real. É por isto que foi feita a pergunta se haveremos de continuar vivendo em pecado, isto é, se podemos continuar a viver querendo essa materialização do pecado e participando dela (6, 1). Este “corpo do pecado” é o “meu corpo”, a minha existência temporal — material e — humana com a qual estou inseparável, indissoluvelmente unificado. Enquanto eu viver no corpo, portanto, enquanto eu for quem sou, sou também pecador, e a minha permanência no pecado, (6, 1) a minha vida nele (6, 2) é, basicamente, natural e necessária. — [“Enquanto... enquanto”]: E justamente à eliminação desta condição contemporizadora que se visa na crucificação do “homem velho”: visa-se à supressão deste “corpo” com o seu inerente condicionamento temporal — material e — humano. Contudo, é por isto, e nisto, que sou o “homem velho” pois, enquanto vivo no corpo, estou indistinguível — e inextricavelmente unido com ele.

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A morte do “homem velho”, a supressão da minha identidade com ele significa, também, a supressão da minha unidade com este corpo pois, como “nova criatura”, não sou mais eu quem vive neste “ser” caracterizado pelo que é temporal, material, humano. Ao sentir-me impelido a tomar uma posição ante a morte de Cristo, entro em situação de crise pois todo meu modo de ser, minha existência [como homem deste mundo] é posto em dúvida; [esta dúvida, esta perquirição, esta análise que se impõe para uma auto-avaliação à luz da luz que vem da cruz] suspende toda materialidade que fica definitivamente suprimida quando [o “homem velho”l é posto em confronto com as características do “homem novo”, ao qual eu sou idêntico mediante a minha morte em Cristo. A materialidade como vida, pessoa, indivíduo, como escrava da justiça de Deus, aguarda o revestimento reservado ao corpo da “nova criatura”. Tudo o que foi suspenso, suprimido, aguarda a ressurreição. “Para que não precisemos mais servir o pecado”. A supressão invisível deste corpo que se tornou perceptível para nós com a crucificação do “homem velho” (também aqui com o sentido de FUTURUM RESSURRECTIONIS) traz implícito o afastamento do poder do pecado. Se já não sou mais idêntico ao “homem velho” que está indistinguível e inextricavelmente ligado com este corpo, então já não preciso mais servir o pecado. Desaparece o elemento o qual dava vida ao pecado que, agora, fica fora de seu ambiente como “peixe fora d’água”; o pecado passa a ser nota dissonante na sinfonia nova. (Como aquele que ainda não sou), fui posto em liberdade pois, sobre a “nova criatura” o pecado não tem poder! E não tem poder porque o corpo desta “nova criatura” é de outra ordem [de outra natureza]. Ora, estando eu na esperança da ressurreição e tendo em vista a minha identidade com o “homem novo” que está além da morte de Cristo, não preciso, não posso, não devo e não quero ser pecador. “Porquanto, quem morreu, foi declarado livre do pecado”. Portanto, a graça não é uma possibilidade humana ao lado da qual pudessem existir outras possibilidades como, por exemplo, o pecado. [Pois a graça da libertação do pecado mediante a morte em Cristo “foi declarada” por Deus]. Graça é a possibilidade divina do homem e, por ser divina, suprime qualquer outra possibilidade caracteristicamente humana. Graça é o relacionamento do homem visível com sua personalidade invisível, fundamentada em Deus; esta correlação entre o homem visível e sua personalidade invisível é semelhante à da morte com a vida. Dúvidas, insegurança,

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estremecimento, propagação das dificuldades, sobrepujam o “FUTURUM AETERNUM” de nossa existência. O que somos em Deus, o que nele conhecemos e queremos, está assoberbado pela realidade terrena de nossa vida presente, passada e futura, realidade que se levanta ao redor de nós qual íngreme escarpa, qual imensa muralha que ladeasse a nossa trilha. O homem que entra para a história no instante em que o “homem velho” é transformado em “homem novo” [isto é], o homem [que surge na história] unido com Cristo pela ressurreição (6, 5), não é aquele “qual eu sou”, que sabe o que eu sei, e quer o que eu quero; este novo homem [que acaba de ingressar no mundo material em substituição ao que morreu para o pecado, junto com Cristo, na cruz], é incapaz de divinizar o homem ou de humanizar a Deus, coisas de que fui, sou e serei, inevitavelmente, culpado, tanto no passado, como no presente e no futuro. O “homem novo” (que veio do “homem velho”), vive do perdão do pecado; vive da persistente libertação forense pronunciada por Deus; ele vive da própria possibilidade de vida dada por Deus (o que nos parece impossível). Este homem vive da negação da negação; da negação da queda; da negação do pecado invisível de Adão. Deste homem novo que entra transformado para a história, (e também de mim na medida que, pela graça de Deus, ele e eu somos um) sim, de “nós”, o pecado não receberá alento. A nossa existência, o nosso comportamento, o nosso intelecto, não dará lugar ao pecado; não o alimentará; antes, no que depender de nós, ele morrerá à mingua, ficará desnutrido, solapado, será encarado com ceticismo. Por ele e por mim, a página do livro pode ser virada para o início [de um novo capítulo, quiçá], de uma nova história. Ainda que para o futuro, em milhares de vezes, aconteça [e acontecerá] inevitavelmente que eu qual sou, no meu ser material, visível, no meu entendimento, no meu comportamento, seja culpado de pecado, todavia, na qualidade daquele que recebeu a graça, na qualidade de quem foi contraposto àquele que [já agora] eu não sou, isto é, na qualidade do “homem novo”, não posso sequer contar com a possibilidade dessa “inevitabilidade”. Em toda esta análise da “metamorfose” do “homem velho” em “homem novo”, o A. põe constantemente em confronto a “dualidade da “unidade” do ser humano: o “homem velho” e o “homem novo”; diferentes e idênticos; um sob a ira de Deus e o outro justificado por Deus. O pecado não é acontecimento remoto, que uma vez entrou no mundo; a admissão do pecado ao mundo é o procedimento “normal” do homem visível, do homem qual o mundo o conhece.

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A salvação em Cristo, porém, é uma só e eterna; não é fenômeno normal, mas é milagre; é o milagre de Deus e, como tal, ocorreu e ocorre uma só vez para cada criatura; é por isto que o homem cai, e cairá milhares de vezes porém, se confessou a Cristo e o aceitou como seu Salvador, se optou pelo paradoxo da fé, isto lhe é imputado por justiça, e o milagre estará sempre presente. A redenção não se repete, porque ela “é”, tão certamente quanto Deus é — (“Eu sou o que sou”!). É pela graça da minha redenção, pelo fato de eu haver sido reinstalado, pela adoção divina, no estado pré-pecaminoso da raça, graça pela qual sou um “homem novo” que vive para Deus, não posso sequer admitir a possibilidade de “novamente” pecar, conforme era meu comportamento quando eu vivia em Adão. Todavia, ainda não estou liberto do “corpo desta morte” e continuo peregrinando na forma de “homem velho” e pratico o pecado que não quero. Sou os “dois em um”. A dualidade na unidade. Estou na soleira do reino dos céus; talvez não esteja mais com um pé para fora, mas também não estou com um pé para dentro. Antevejo o Reino dos Céus e, na esperança, espiritualmente, gozo (ou antegozo) de sua cidadania; mas estou carnalmente atado ao reino deste mundo e, portanto, estou materialmente sujeito ao seu soberano: — O pecado!]. O passado, presente e futuro, [a temporalidade] na qual esta “inevitabilidade” é fato inevitável, é para mim, na medida que sou identificável com o “homem novo”, o dia de ontem que passou. Vs. 8 a 11 Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com Ele. Sabemos que Cristo , havendo ressuscitado entre os mortos, não morre mais; a morte já não tem poder sobre ele, pois sua morte foi a morte para o pecado, que ocorreu uma vez por todas. Sua vida, porém, é vida para Deus. Assim, considerai-vos, a vós, também mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus. “Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com ele”. Está na própria consistência da coisa que a prova da afirmação de que nos é impossível permanecer no pecado (6, 1) ressalta do profundo significado que o “morrer em Cristo” tem para o homem do pecado [para o homem velho]; a prova de que é impossível permanecer no pecado está na vigorosa negação que a morte de Cristo significa e além da qual estamos como bem-aventurados, [como contemplados pela graça de Deus].

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Se como pecador estou crucificado, morto e sepultado em Cristo, sou idêntico ao “X” que surge além do homem nosso conhecido, do “X” que foi “isolado”, posto em evidência e transportado para o outro lado de nossa equação, com o sinal positivo! Contudo, é preciso ficar muito claro que a negação que a crucificação a morte e o sepultamento do pecador representam é uma conseqüência do divino “SIM”, para que não compreendamos mal o que ficou dito sob 6, 4. A força viva que domina essa negação — [e que se fundamenta no “SIM” de Deus, na sua aceitação do homem para reconciliá-lo com ele, em Cristo] é um poder que cancela todo o “SIM” e todo o “NÃO” do mundo; ela extingue a diferença existente entre “aquém” e “além”; ela faz desaparecer a correlação “tanto... quanto”; ela elimina a dualidade, a diferença de potencial [a tensão], a polaridade; ela cancela toda alogenia e toda antinomia. Esta negação é, na realidade, uma “impossibilidade positiva” que, até aqui, muitas vezes foi confundida com simples negação ao pecado. “Se morremos com Cristo, então cremos”,.. “Crer”! Portanto, a fé é o primeiro e último, o único, o decisivo ingrediente da psicologia da graça. É pela crença — ou é pela fé — que o ser humano se vê restabelecido em Deus, embora, por enquanto, ainda não o seja. A fé é o passo inigualável que, uma vez dado, é irreversível; não pode mais ser desfeito; é o passo com o qual o crente transpõe a linha da divisa existente entre a velha e a nova criatura, entre o mundo velho e o mundo novo. Fé é a plenitude do paradoxo humano: é vacuidade absoluta de conteúdo material e a plena locupletação de conteúdo divino; ela emudece o homem, proclama a sua ignorância e o reduz à expectativa, mas é também a voz de Deus, a revelação de sua sabedoria e sua obra eficaz; [resposta à ansiedade humana]. A fé é [o final das coisas materiais], — o ponto final do caminho [da criatura neste mundo], mas é também [o início do que é divino] — o começo do caminho, a inflexão, a reviravolta, o retorno [que leva a “nova-criatura” a Deus]. É a fé que desloca o aparente equilíbrio entre o “SIM” e o “NÃO!!, entre a graça e o pecado, entre o bem e o mal. Se morremos em Cristo, vemos a nossa problemática à luz que vem da cruz; [vemos a incerteza e a insegurança de nossa vida] como sendo um meio necessário para percebermos [o começo de nossa existência em Deus para além do fim de nossa existência terrena]; no fim do homem, — o começo de Deus; para reconhecermos a luz do amor de Deus no furor da tempestade da ira divina. Para quem crê, tem lugar a primitiva existência do homem em Deus. Para quem crê acontece o passo inigualável, dá-se o retorno que já não pode

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mais ser desfeito e que, mais do que essa irreversibilidade, sequer permite que o ser [assim reconciliado com Deus], volva os olhos para traz. — Em que cremos, pois, se a nossa fé, à luz do momento crítico, à luz da cruz de Cristo, não for apenas aparência, mas realidade; não for apenas vacuidade, porém fidelidade divina? — Cremos que Cristo morreu em nosso lugar e, portanto, nós morremos com ele. Cremos em nossa identidade com o “homem novo” que surge além da morte na cruz; cremos em nossa existência eterna, baseados no conhecimento que temos da morte, sabendo que nossa vida está fundamentada em Deus, pela ressurreição. Cremos que “viveremos com Ele”! Cremos também em nós mesmos, como sendo o “sujeito” invisível deste “FUTURUM RESSURRECTIONIS”. Esta fé, com todos os entraves que lhe são inerentes, com todas as reservas e com todos os sinais de interrogação e exclamação que comporta, é a “nossa”fé! Esta nossa fé, inteiramente estranha à psicologia usual, é justamente o que torna impossível admitir a existência do pecado junto com a graça. “Se crês, tens”! se cremos estamos desvinculados do pecado. “Sabemos que Cristo, havendo ressuscitado de entre os mortos, não morre mais; “a morte já não tem poder sobre ele”. Fé é a ousadia de sabermos o que [Deus sabe e, por isso, também a de ignorarmos o que ele ignora. Deus sabe todas as coisas dos céus e da terra: deste cosmos imenso do qual o nosso sistema solar é um átomo ou melhor nem é sequer, um átomo do pó; Deus conhece as leis físicas e psicológicas; morais e espirituais; tudo ele sabe e conhece, pois tudo e a todos Ele criou; é a obra maravilhosa, perfeita, e do agrado do próprio Deus. Dela não conhecemos nem um “dx de dx”; nem diferencial de diferencial; NADA conhecemos. O que quer o A. dizer, pois? Entendo que, ele se refere ao conhecimento de nós mesmos: atrevemo-nos, pela fé, a conhecer de nós o que Deus conhece; a nossa insuficiência perante Ele; a distância intransponível que nos separa de Deus; a nossa situação não apenas lastimável mas totalmente perdida pela suserania do pecado em nossa vida e pela nossa sujeição irrecorrível à lei da morte. E isto o que ousamos saber, juntamente com Deus e “ousamos” apenas pela fé; nunca diretamente, pois de outra forma seria arrogância nossa, a manifestação da milenar tendência da raça de se comparar com Deus, de se igualar a ele. Todavia, mediante nossa reconciliação com Deus, em Jesus Cristo, Ele nos perdoou cabalmente; transformou nossos pecados, vermelhos como o escarlate, na alvura da mais branca lã; perdoou, transformou, esqueceu! (Heb. 10, 17). “De nenhum modo me lembrarei de seus pecados”. Ainda pela fé,

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reconciliado com Deus, o homem “ousa” ignorar os seus pecados, como Deus, SPONTE SUA, resolveu ignorá-los e de fato os ignora]. A ousadia consiste no fato de que, humanamente, essa possibilidade nem sequer entra em cogitação; essa possibilidade apenas é admissível porque ela constitui o substrato de todas as possibilidades humanas; porque é a possibilidade que resta ao homem junto a Deus e em Deus, depois de todas as outras possibilidades se haverem esgotado. Crer significa parar, calar, adorar, ignorar. [Pela fé], a diferença qualitativa entre Deus e os homens torna-se inconfundível. Pela fé, a resposta, a refutação de Deus ao mundo temporal, ao mundo material e dos homens, passa a ser um juízo necessário e inevitável e a morte a única (sim, a única!) parábola [semelhança] do Reino dos Céus. Este é o sentido visível da “vida de Jesus”: Jesus, o Médico e Salvador; Jesus, o Profeta; Jesus, o Messias; Jesus, o Filho do Eterno Pai. Tudo isto [a resposta e a refutação de Deus ao mundo, a parábola da morte de Cristo na cruz, o sentido visível da “Vida de Jesus”, sim, tudo isto] se percebe com crescente nitidez no desempenho de “Jesus, o Crucificado”. É evidente que tudo isto não foi imaginado, nem pode ser interpretado, como resultante de obras, recursos ou possibilidades humanas. O sentido visível da fé cristã é o conhecimento e reconhecimento de que a lei e a condição imposta a todo ser humano é a linha da morte que atravessa a vida de Jesus; é o reconhecimento de que morremos com Cristo e, portanto, somos ignorantes para com Deus; o reconhecimento de que, perante ele, podemos apenas parar, calar e adorar. Este sentido peculiar, visível, da vida de Jesus, que só pode ser definido e descrito pela supressão de todas as possibilidades humanas, estabelece declaradamente um ponto central invisível do qual irradia esta crise — [a da supressão de todas as possibilidades humanas]: é um “impossível” — [uma “pedra de toque”], pelo qual todas as possibilidades humanas são medidas e aferidas. É este ponto que dá a diretriz a todas as análises, e as concentra. A Jesus sofredor, passivo, se contrapõe, manifestamente, um Jesus batalhador, dinâmico, ativo: o proclamador da destruição do Templo e do mundo dos homens; aquele que, voltando sobre as nuvens do céu, traz o reino de seu Pai; o Crucificado, Ressurrecto. O sentido visível da vida de Jesus não pode ser apreendido sem a manifestação e a contemplação da glória de Deus, que se consumou em Jesus, no despertamento de Cristo de entre os mortos. O juízo que Cristo toma sobre si, é justificação; a morte que ele padece, é vida; o “NAO” que ele anuncia, é “SIM”; a reação para com Deus, que Cristo desencadeia, é a redenção. 311

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Trata-se da invisível totalidade do “novo homem Jesus” — [que sendo Deus é e será eternamente homem, nosso “parente”, nosso irmão mais velho, a quem “foi dado” todo o poder na terra e nos céus], isto é, o Jesus físico, corporal, pessoal, ressurrecto, no qual [agora] se manifesta a inversão do significado das expressões [das manifestações] de sua vida invisível. A manifestação desta inversão, a sua contemplação, é o máximo [é o limite do] que a história humana pode registrar e, portanto, é também o limite da história visível, humana, do Jesus de Nazaré. Como tal, essa manifestação já não é um acontecimento “não histórico” que envolve, delimita e para o qual apontam todos os demais eventos nela havidos, quer tenham ocorrido antes, durante ou após a culminância pascal. Todavia é certo que, em contraposição, se a manifestação da inversão do significado da vida visível [vida terrena] de Jesus com respeito ao Jesus ressurrecto fosse um acontecimento “histórico” (se tivesse um sentido psíquico, físico ou hiper-físico), seria um acontecimento chão, rasteiro, semelhante aos eventos criados ou imaginados pelas muitas “interpretações” e “teorias”, de variada consistência e sofisticação, e que são mais ou menos aceitas como “crença”; então haveria lugar para [as pretensas explicações da ressurreição de Cristo, como tendo sido apenas] “morte aparente”, ou “um logro” [mistificação ou burla feita por Jesus ou imaginada pelos discípulos], ou ainda que as várias apresentações de Jesus teriam sido aparições ou visões objetivas e subjetivas; se assim fôra, seriam válidas para discussão as muitas outras teorias espíritas e antropossofísticas. Se assim fôra, então, evidentemente, já não seria mais Deus somente, que entra em cena e tem a palavra na inversão do caminho de Cristo para a cruz; na instauração do Jesus invisível em contraposição ao crucificado. Nesta hipótese, a ressurreição seria apenas mais uma da série de possibilidades humanas que Cristo rejeitou na sua morte; então Cristo precisaria morrer novamente para que se cumprisse o sentido de sua vida, para que se prestasse obediência e se tributasse honra ao Deus desconhecido, que habita em luz, onde ninguém pode penetrar, e perante quem todas realizações materiais, psíquicas, físicas, são cinza e pó. Aquilo que é, historicamente, possível, provável, necessário e real é efêmero, corruptível, mortal e sujeito ao domínio da morte. Se a ressurreição tivesse qualquer ligação ou relação direta com os fatos históricos, materiais, que a acompanham [que dela dão testemunho], como, por exemplo, o “túmulo vazio” dos evangelhos sinópticos, ou os “aparecimentos” de Cristo (I Cor. 15), isto é, se a ressurreição fosse tomada, de alguma forma, como um fato da história; então não haveria afirmação — nem mesmo a mais

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autorizada, e solene — nem haveria análises ou ponderações suficientemente refinadas, que impedissem o seu enredamento nas discussões estéreis quais as que debatem a alternância entre o sim e o não, entre a vida e a morte, entre Deus e o homem, e que caracterizam a planura da história pois, sob este céu e sobre esta terra não há existência nem evento — nem mesmo a mais excepcional novidade, o mais inaudito acontecimento, ou o mais singular dos milagres, que seja imune ao relativismo que situa lado a lado o grande e o pequeno, que os compara e analisa a um em termos do outro. A ressurreição ficaria então, envolta da mesma penumbra, do distanciamento, da inexatidão e da dúvida que caracteriza todos os fatos da história. Contra a apagada impressão que [esta ressurreição materializada] causaria em algumas poucas almas, levantar-se-iam as conseqüências muito mais claras de suas obliterações e distorções; contra os êxitos de suas realizações sociais erguer-se-iam, com muito mais eloqüência, as fraquezas e as falsificações do [chamado] “cristianismo”; as suas mais puras e mais altas fulgurações seriam, talvez, comparadas com a cintilação de luminares e poderes ainda maiores. (Compare-se com Overbeck!) Lembremo-nos dos 150.000 anos de história, de que temos notícia; “das possíveis alternâncias, passadas e futuras, de eras glaciais causadas, presumivelmente, por pequenas modificações no eixo polar; ou então consideremos as grandes civilizações que surgiram e desapareceram” (Troeltsch). Tais acontecimentos teriam que ser tratados ao lado da Ressurreição —, eles teriam também “uma palavra” no trato das coisas que são de Deus [e que dizem respeito à reconciliação do homem],... se a ressurreição fosse um evento histórico! Todavia, não é isto o que acontece, nem é hipótese que se possa imaginar com seriedade. Mas não há porque nos preocupemos com este aspecto que se poderia dar à ressurreição, pois toda a ameaça que o mundo faz ao Cristianismo através da história, ocorre, indubitavelmente, quando o Cristianismo passa a ser parte da história; quando ele se transforma em temporal, mundano; quando graças a traição dos teólogos, pelos mais extensos e ínvios rincões, ele perdeu a noção de que a sua verdade não deve ser buscada apenas além do NÃO, além da morte, além do homem, porém para além da possibilidade de, sequer, contrastar o “SIM” e o “NÃO”, vida e morte, Deus e o homem; para além de qualquer possibilidade de colocar Deus e o homem lado a lado ou de jogar um contra o outro, pois este é o significado da ressurreição de entre os mortos: “Por que buscais entre os mortos, ao que vive’?” [Mat. 24, 5]. [Por que buscais] a verdade de Deus na planície, no ambiente onde grandezas históricas como “o Cristianismo” sobem e descem, surgem e desaparecem, onde tais grandezas têm [apenas] sua oportunidade e seu enquadramento?

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6, 9

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O sentido da ressurreição deriva do sentido da morte, isto é, do sentido do fim de todas as coisas, como tais. O Cristo, fisicamente ressurrecto, está sempre em contraposição ao Cristo fisicamente crucificado, e não pode ser considerado, nem está, em posição diferente. Vivificado segundo o espírito ele é sempre apresentado e mostrado como o “homem novo”, sob o novo céu e sobre a nova terra porquanto, foi “morto, sim, na carne” (I Ped. 3, 18), isto é, ele renunciou a todas as possibilidades históricas [materiais] visíveis, humanas [e ainda que fossem, [como de fato poderiam ser], as possibilidades do mais surpreendente ser hiperfísico!; ele as renunciou [a todas] por serem coisas visíveis, humanas, históricas, deixandoas para traz, para morrer. Agora, porém, como o crucificado ressurrecto, como o invisível “homem novo” em Deus, pelo fim, pela supressão do “homem velho” neste mundo, ele deixou para trás a relatividade das coisas materiais, históricas; ele deixou [para o passado] a ameaça permanente da temporalidade. Deixou para trás a morte! “Ressuscitado de entre os mortos, ele já não morre mais”. Precisamente porque a sua ressurreição não é um acontecimento histórico, não é material “a morte não tem mais poder sobre ele. [A vida nova, a vida para Deus] não é desatável; ela é irrevogável; é a vida [vinda] de Deus, é a vida dos homens, reconhecida por Deus. Pela fé ousamos apropriar-nos desta aceitação de nossa vida, por Deus. Ousamos tomar conhecimento da existência dessa vida, a vida do Jesus ressurrecto, como sendo a nossa vida: “Viveremos com ele”! (6, 8). É claro que esse “nós” (do “viveremos”) e ao designarmos esta [nova] vida como sendo “nossa”, não somos [ainda] nós pois o reconhecimento da nossa vida [por Deus] e da qual nos podemos apropriar [mediante a fé], só vem pela morte [do “homem velho”] e é por meio desta morte em Cristo que se torna real a fé que nos permite a ousadia de nos apropriarmos desta vida reconhecida por Deus. A fé que conhece esta [nova] vida, apenas se torna realidade mediante a nossa piedosa, humilde e amorável morte em Cristo; porém, será ainda em ignorância dessa vida, que morreremos. [Essa morte em Cristo nunca será com o conhecimento prévio da vida que vem de Deus da qual apenas tomamos conhecimento pela fé que a morte em Cristo nos proporciona]. Somos “novas criaturas” — e estamos na situação positiva, qual a de nos ser impossível voltar novamente à vida em que o pecado é possível — se, e na medida que, o conhecimento objetivo que nos foi revelado nas coisas invisíveis do caminho de Cristo para a cruz se identificar com o conhecimento subjetivo igualmente “impossível” e invisível, da vida que está além da linha que separa e une a “morte” e a “vida”; somos “novas criaturas” à medida que o “FUTURUM RESSURRECTIONIS” — (“vive-

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6, 9-10

remos”) — como sendo o “outro lado” além do ponto de retorno marcado pela morte de Cristo, for a premissa (ou melhor, tiver por implícita) a existência de um novo “nós”. “Pois sua morte foi a morte para o pecado, e que ocorreu uma vez por todas. Sua vida, porém, é vida para Deus”. [Segundo a tradução de Almeida: “Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus”]. A supressão das possibilidades humanas, na morte de Cristo, é também a supressão da possibilidade do pecado. É por isto que [a razão de ser], o sentido da vida de Jesus, está na sua morte pois, aquém dela, todas as possibilidades do homem são a oportunidade do pecado. A vida no mundo temporal, no mundo das coisas e dos homens é a vida no afastamento de Deus em conseqüência da queda invisível; por isso mesmo, é também a vida em que ocorre aproximação arrogante e irreverente a Deus, pelo antropomorfismo. Nessa vida não há santidade, nem há justificação que seja válida perante Deus! O seu sentido, a sua última palavra, sua própria existência é sempre pecado. Porém, eis que Cristo morreu!. O sentido, a última palavra, a própria morte, nessa morte de Cristo, é Deus. Deus, como aquele que está além da morte e é justamente por isto que a nova [humanamente] “impossível” possibilidade do homem só é visível na analogia da morte. Esta nova possibilidade consiste na legítima aproximação do homem, a Deus; na santidade e na justificação do ser humano que só pode ser percebida na parábola da morte que, por princípio, é a negação de todas as possibilidades do homem terreno. Ora, à medida que a nova possibilidade mediante a morte em Cristo se torna evidente, se Cristo, em sua morte, está realmente em meu lugar e, se eu, pela fé, participo verdadeiramente de sua morte (6, 8) para viver com ele, então surgiu na minha frente, e de uma vez por todas, um ser totalmente novo, um “outro ser”, ao qual estou ligado invisivelmente, ao qual fui unido e com o qual fui unificado, passando a constituir, com ele, uma só pessoa. Esta unificação é a minha unidade com o Cristo que perece na cruz. Este ser novo, o ser ressurrecto, o ser que morreu para o pecado e que foi vivificado em Deus, é o indivíduo, a alma, o corpo que está em meu lugar: este ser, sou eu mesmo. Com a morte de Cristo finaliza a vida que pode e que precisa morrer; a morte de Cristo é a vitória que proclama a “ausência do pecado”: é o triunfo sobre a “possibilidade de pecar”. É isto o que está contido na afirmação: “Os teus pecados estão perdoados”. [Mat. 9, 2 e 5].

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Cristo não morre novamente, pois o sentido do fenômeno morte-ressurreição não é reversível [nem se produz em cadeia] e portanto, também a seqüência que do pecado vai para a graça, não é reflexiva. Logo, se vivo para Deus, em Cristo, morri para o pecado; não posso ser, simultaneamente, bem-aventurado [agraciado pela reconciliação em Cristo] e, também, pecador, mas, estarei, necessariamente, na esfera da conversão — do retorno [de quem vem] do pecado para a graça, que é a inversão, o retorno que já não tem regresso. “Portanto, considerai-vos, a vós mesmos, como estando mortos para o pecado, porém vivificados para Deus, em Cristo Jesus”. [Segundo a tradução de Almeida: “Assim também vós, considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus”]. A prova, por excelência, de nossa conversão está na resposta que houvermos dado ao desafio da fé: se ousamos optar pela fé, ou não. Ter fé, é crer: é ver o que Deus vê; saber o que Deus sabe; é avaliar e contar como Deus o faz. Deus conta com o homem (3, 28 e 4, 3) que morreu para o pecado e vive para ele, Deus! (6, 10). A ressurreição de Cristo de entre os mortos, é a revelação e a exposição deste “homem novo”: do homem em quem Deus se compraz. Porém, o poder da ressurreição é o reconhecimento deste homem novo pois, neste reconhecimento conhecemos a Deus, ou antes, somos conhecidos por ele. (Gal. 4, 9; I Cor. 8, 2-3 e 13, 12). O poder da ressurreição é a graça; aliás, o indicativo passa, aqui, automaticamente para o imperativo; [o poder da ressurreição tem de ser a graça] pois a frase não pode significar outra coisa se não a realidade da verdade — o “ESSE” em “OSSE” —, a realidade de quem vem a ser conhecido, de quem vem a conhecer e do próprio conhecimento. A “impossibilidade” positiva de que um pecador pode gozar da graça [divina] existe: deixemo-la pois existir! O perdão dos pecados, vale: deixemo-lo pois valer! “Com Cristo ressurgiste em vida para Deus: vive, pois, para Ele. “Tu foste posto em liberdade: sê livre, pois”! (Schlatter). “Sê tu o que já és, em Cristo”. (Godet). O poder da ressurreição é a chave, é a porta que se abre, é o passo sobre a soleira. A graça é o “transtorno”, a supressão do equilíbrio; por ela temos a “impossível”! possibilidade de constatar (ainda uma vez!) a falsidade e a mentira, de “nossa” [vida terrena] e de expandir, (também ainda uma vez), a nossa vida verdadeira, em Deus! 316

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6, 1-11

“Nós” (como os que ainda não somos, como o sujeito do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”) não podemos perguntar por aquilo que Deus não sabe mais. [Em outras palavras, aquilo que Deus “já não sabe mais” também já não interessa a nós]. Comentários: 6, 1-11 Na exegese dos primeiros 11 versículos o A. salienta a situação do ser humano que foi originalmente criado por Deus segundo a sua imagem e semelhança espiritual e que está agora cindido, perante Deus, entre o “homem velho”, decaído, — o homem segundo o paradigma de Adão — e o “homem novo”, redimido, — a nova criatura — segundo o paradigma de Cristo e Cristo ressurrecto. O homem se “identifica” com Cristo a fim de com ele morrer, para o pecado; morto para o pecado, este já não tem poder sobre a criatura e ela ressurge (nasce de novo—João 3, 1-15), agora identificada como Cristo ressurrecto, a fim de viver para Deus. O A. não economiza argumentos, comparações, deduções e reiterações no afã de demonstrar a sua dupla tese: 1. Que o “homem velho”, havendo morrido para o pecado, já não pode pecar, embora ainda peque milhares de vezes até ser liberado do corpo terreno. 2. Que o “homem velho” havendo dado o passo da fé, já não pode mais voltar para traz, embora tenha que enfrentar constantemente (e, quiçá, mui especialmente agora) a crise da opção entre o paradoxo que a fé propõe e o escândalo que ela representa na vida terrena. A primeira tese tem, humanamente falando, caráter mais objetivo e sua aparente falácia, facilita a análise. Basta que nos reportemos ao versículo 20 do capítulo 7, da Epístola: “Se faço o que não quero, não sou eu quem o faz, e sim, o pecado que habita em mim”. Esta é a verdade singela; a nova criatura já não pode pecar porque, efetivamente, morreu para o pecado. Porém o ser humano “vive” essa nova criatura pela esperança fundamentada na fé; o corpo é do “homem velho”, tão certo quanto este corpo morrerá; porém o “homem novo” o espiritual, o homem recriado pela fé à imagem e semelhança de Deus, o homem qual existiu nas eras pré-adâmicas, este ressurgiu com Cristo depois de haver morrido com ele e, agora vive, sempiterno para Deus. Já não é ele quem peca, mas o pecado que mora, no seu corpo, esse pratica o mal.

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6, 1-11

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Existe, então, a simultaneidade entre o bem e o mal? A resposta me parece ser, sim e não. Será sim, se quisermos ver materialmente, historicamente, terrenamente; será sim, se não soubermos distinguir entre o homem visível e o homem invisível; será sim, se trocarmos o sentido do mandamento, e quisermos dar a César o que é de Deus, e a Deus o que é de César. Será não, se quisermos ver como Deus vê; se dermos asas à fé avançando para além do “bom senso”, da “lógica” do mundo. Será não, se compreendermos e nos compenetrarmos de que “sem fé é impossível agradar a Deus”. Será não, se nos abandonarmos nas nuvens, no vácuo, no vazio, SABENDO que o justo viverá pela FIDELIDADE DE DEUS. A demonstração da segunda tese talvez decorra da primeira: porque a nova criatura continua presa às contingências terrenas, ela continua obrigada a optar. Ela precisa enfrentar constantemente a crise que a cruz levanta e impõe. Aquela criatura que foi reconciliada com Deus, e foi por ele justificada, mediante a fé, é nova Criatura e não pode voltar a ser a velha; ela agora sabe o que quer e como quer. Ela sabe a seu respeito o que Deus sabe e conhece o que ele conhece. Por isso, sabe o que é reto e justo. Sabe-o com humildade; sabe-o com tremor e temor. Sabe que veio a ter esse impossível conhecimento pela graça de Deus, e somente através de sua graça, como uma decisão “forense”, espontânea, da iniciativa de Deus, sem que a criatura, de qualquer forma, contribuísse para isso: nem por sua bondade, nem por sua maldade; nem pelo seu conhecimento da lei, nem pelo desconhecimento dela; nem pelo seu preparo, pela vontade, pela súplica, por nada. É graça divina. Todavia “conhece” e, em Cristo, ousa conhecer. (Ele veio para que conhecêssemos a verdade e tivéssemos vida abundante). Por tudo isto, a nova criatura, o ser humano ressuscitado com Cristo, não quer optar pelo mal; ela já nem sequer conhece o caminho do pecado pois o olvidou como Deus o quis olvidar. Portanto se o “homem novo” não quer, se ele não conhece a opção negativa, ele não pode optar mal: não porque já não seja livre conforme foi criado por Deus, mas porque, agora, o amor de Cristo o constrange, o cativa, o segura pelos laços do amor divino. Então acaso não é patente que não há um só que faça o bem, e portanto, que todos optam mal? E, nesta hipótese, (aliás verdadeira) não há salvos? Não há, neste mundo, homens reconciliados com Deus?

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Há sim! Mas é o pecado que detém (ainda) em seu poder o cetro deste mundo, e reside no corpo do “homem velho” induzindo-o à opção que o “homem novo” não quer. Há, então, uma dicotomia, um dilaceramento, um puxar para os dois lados? Parece-me que outra vez a resposta será sim e não. Essa dupla personalidade espiritual só desaparece à plena luz do meio-dia, ou à plena escuridão da meia-noite. Na completa negação, o homem não buscará a Deus e, assim gozará a paz que o mundo oferece: a falsa paz; a paz enganosa, a paz do “NÃO-DEUS”. De outra parte se houver a entrega completa a Deus, o homem não buscará o mal. Não dizemos que o homem não pecará mais; o seu corpo carnal ainda cairá por pensamentos, palavras e obras — ele exclamará: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (7, 24). Mas concluirá, também: “Graças a Deus por Jesus Cristo”. (7, 25). O homem que põe a sua confiança em Deus não será dilacerado pelo mal; ele não se afligirá, antes repousará seguro em Deus, por Cristo Jesus. Quem tiver fé gozará da paz que Deus tem para dar, pode e quer dar: “A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou”. E no intervalo, entre a meia-noite e o meio-dia? “Acaso ignoras que a bondade de Deus quer conduzir-te ao arrependimento?”

O PODER DA OBEDIÊNCIA (6, 12-23) Na segunda parte da exegese deste capítulo, o A. tem por tema principal a demonstração de que o “Poder” que vem “da Ressurreição” dá ao pecador o “Poder” de obedecer à ordem divina que lhe manda aborrecer o mal e amar o bem. Este “poder da obediência” é a graça divina; graça que anula o pecado e, juntamente com ele, todas as possibilidades, recursos e meios que a criatura humana imagina ter, ou cria e desenvolve, para se aproximar de Deus, e ganhar a vida eterna. Existem, por certo, experiências, arregimentações, feitos, comportamento e convicções que dão testemunho do “poder da obediência” e da graça divina; estas realidades, porém, são testemunhos da graça, e não a graça em si.

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A graça transcende a tudo quanto os homens possam criar e produzir porque ela vem de Deus! É por isto que o A. diz que mesmo a religião, como expressão da mais sublime possibilidade humana, em si mesma, não subsiste perante a graça divina que há em Cristo Jesus e. quando intentarmos fazer do evangelho de Cristo uma religião, isto é, quando tentarmos enquadrar o evangelho em normas e preceitos, condicionando a sua aceitação a critérios eclesiásticos estaremos, na realidade, traindo a Cristo. É pela graça que o homem reconhece a sua origem divina e aceita o sacrifício expiatório de Cristo para lhe abrir a porta do lar paterno; é pelo poder que é outorgado pela ressurreição de Cristo que a criatura humana tem forças para obedecer à ordem de colocar-se integralmente, existencialmente, à disposição de Deus, e de Deus, somente. Vs. 12-14 Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo, de maneira que obedeçais às suas paixões; não ofereçais os vossos membros quais instrumentos para a iniqüidade do pecado porém, ponde-vos à disposição de Deus, como ressurrectos de entre os mortos, e oferecei os vossos membros a Deus quais instrumentos da justiça! Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim, da graça. “Assim, não reine o pecado que habita em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões”. A graça é o poder da obediência; ela é teoria e prática, percepção (entendimento) e ação. A graça é um “indicativo” que, por assim dizer, traz consigo um categórico imperativo: ela é uma convocação, uma exigência, um mandamento, que tem a força de uma determinação decisiva, que não pode deixar de ser obedecida. A graça contém a vontade de Deus, não como uma coisa secundária, suplementar, adicional, mas a contém intrinsecamente. A graça é o conhecimento do que Deus quer; ela é idêntica ao “querer” da vontade de Deus, porque ela é o Poder da Ressurreição. A graça é o reconhecimento da verdade de que o homem é conhecido por Deus; é mediante a graça que o ser humano toma conhecimento de sua existência em Deus, essa existência que Deus evidencia, que Deus dirige, e que repousa nele; a existência que está além de todos os predicados humanos e de todo o conteúdo que a presente vida possa ter; é a existência criada por Deus e que se revela à medida que a criatura nela ingressa. Trata-se do “homem novo”, do ser criado e redimido por

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Deus, do homem justificado perante ELE, no qual ELE se compraz, no qual Deus mesmo se vê, como um pai em seu filho. É altamente significativa esta demanda: “Querer o que Deus quer!” Todavia, esta exigência é imposta a mim, como “nova criatura” que sou pelo poder da ressurreição, por cujo poder passo pela crise da morte, entrando no gozo da vida, mediante a fé. Este novo ser existe; ele é da casa dos homens que Deus quer, e que vivem de Deus. Como “bem-aventurado” (como “receptáculo” como beneficiário da graça divina] posso ouvir e entender a exigência: ela é a recordação da minha origem, a confirmação da minha existência — [essa minha existência em Deus]; esta exigência [de querer o que Deus quer] que se me impõe, estabelece também, para mim, o critério: “Eu sou: “(Porém, não eu, [“mas Cristo que vive em mim”!]). Eu, como este bem-aventurado, [tendo recebido a graça] sou vivificado, despertado, mas sou, também, posto em inquietação. Agora, quem tem de atacar este mundo sou eu e, atacar este mundo significa atacar a mim mesmo; sou o agente deste ataque; sou quem o conduz; sou eu, essa arma! Para mim, como criatura que recebeu a graça, o pecado é um problema absoluto. Ele não é apenas relativo, nem mesmo uma possibilidade fatal em contraposição a outras possibilidades da vida, porém, ele é a “possibilidade”. [A possibilidade por excelência, a única possível]. E a possibilidade que está soberanamente acima de todas as outras possibilidades humanas, melhores ou piores, e esta possibilidade do pecado, aparentemente, me foi dada juntamente com a realidade deste meu corpo mortal ao qual estou indissolúvel e indistintamente ligado. Todavia, ainda como a criatura que recebeu a graça [e justamente por isto], não posso reconhecer esta soberania. Não posso tratar a pretensa realidade desse domínio, a sua presunção de ser um fato consumado, se não com o mais absoluto ceticismo. É bem verdade que vejo o pecado (e sei que ele é um elemento inerente a todas possibilidades humanas) mas não posso considerá-lo se não como uma impossibilidade. [Como algo que não subsiste perante Deus e que, portanto, não existe para a nova criatura que está em Deus]. É certo que o pecado habitou neste homem mortal, aí continua habitando e habitará, enquanto o tempo for tempo, o mundo for mundo, e o homem for homem; enquanto a morte não for tragada pela vitória e o mortal não for substituído pela vida; enquanto eu, (aquém da morte de Cristo, não estando sob a graça, não identificado ao homem novo, não havendo ainda sido quebrantado), sou aquele que sou; enquanto eu estiver, ainda, com um pé na sepultura; enquanto

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eu ainda for o indivíduo comum, delimitado, cerceado por minha grotesca casualidade e peculiaridade; enquanto eu ainda estiver encerrado entre os acontecimentos extremos do nascimento e da morte, enleado nas contingências materiais deste cosmos enigmático, a ponto de me confundir com ele. Este corpo, não pode ser um corpo “naturalmente puro”, isto é, sem pecado; se assim fôra, então o que é mortal e corruptível ter-se-ia revestido da vida e da incorruptibilidade. Porém, enquanto o corpo [deste século não for sepultado para ressuscitar em corpo espiritual e] não estiver revestido da glória celestial, ele se caracterizará como o corpo do pecado. Mas esta caracterização não nos autoriza a permanecer no dualismo da graça e do pecado, numa contraposição entre o “SIM” e o “NÃO” pois a caracterização do corpo como mortal e pecaminoso ficou suspensa com a crucificação do “homem velho” (6, 6), ela foi posta em dúvida, foi atacada, foi “fechada”, “de modo que já não somos mais obrigados a servir ao pecado”. O “homem velho” constitui um EGO indissolúvel e indistinguível junto ao corpo caracterizado como pecaminoso; porém o que vale para esse “homem velho”, já não vale para mim, que recebi a graça; não vale para mim, que morri com Cristo. Não posso pois, [como redimido], reconhecer o domínio do pecado que habita em meu corpo mortal, nem admitir a sua soberania no ambiente onde este meu corpo exerce a sua atividade, portanto, também não posso aceitar que o pecado o caracterize. O pecado também é ameaçado, posto em dúvida, basicamente destronado, porque Cristo é a minha esperança, mediante a crucificação do homem velho, pela qual o meu corpo passa a participar da imortalidade e da ausência de pecado que caracteriza o “homem novo”. Este meu corpo não constitui, para mim, um domínio indisputado do pecado, nem mesmo a base de onde o pecado possa operar, porém e arena onde o pecado precisa lutar. O combatente que luta contra o pecado e contra sua soberania sobre mim e sobre o meu corpo mortal, que luta contra o domínio do pecado na conjuntura da vida e sobre a história; o batalhador que se bate contra o império do pecado sobre todo o reino dos objetivos finitos, inclusive sobre os do meu mundo exterior — (sim, justamente exterior, pois, existencialmente falando, o que há que seja “exterior” que não seja, também, “interior”?) — este lutador, sou eu! Sou eu, que não posso aceitar nem reconhecer o pecado e sua dominação; sou eu que não o posso justificar, nem admitir: eu, como aquele que recebeu a graça; eu, a “nova criatura”. Eu sou o revolucionário que põe este reinado em dúvida. Portanto, não posso ser espectador; não posso ser neutro entre a graça e o pecado. Não

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posso ver o pecado como uma possibilidade ao lado da graça, se não como sendo uma possibilidade que a “impossível” possibilidade da graça torna “impossível” para mim. É explicável que o pecado, sendo uma possibilidade humana, exista até onde nossa observação possa alcançar; não seria explicável, porém, que eu contasse com essa possibilidade como sendo minha. É explicável que o pecado habite em meu corpo mortal, mas não seria explicável que eu fizesse “um arranjo” com ele; que eu, com ele, estabelecesse uma sorte de compromisso, um MODUS VIVENDI. É explicável que as “paixões” do meu corpo mortal sejam realidade, que sejam a característica impetuosa, a irrupção da pecaminosidade e mortalidade do meu corpo — Todas elas: minha fome e minha necessidade de dormir; minha sexualidade e minha ânsia de auto-afirmação; meu temperamento e minhas originalidades; a voracidade do meu desejo de saber, a exibição de minha arte, a agitação cega de minha força de vontade e por fim, e acima de tudo, por certo, a minha “necessidade religiosa”, mais todas as “paixões” da “camaradagem” que envolvem todo o macro-cosmos e que se revelam pelo seu arraigamento na temporalidade, na casualidade, na materialidade da minha existência cósmica; elas vêm à tona por sua incansável implicação na corruptibilidade do meu corpo; elas se manifestam como a força vital da minha pecaminosidade. A realidade da vivência dessas paixões, é por demais evidente. Todavia, não seria explicável se eu, — aquele que recebeu a graça — atribuísse essas características a mim mesmo; se eu ignorasse a relatividade dessa realidade e lhe atribuísse uma transcendentalidade; [se eu atribuísse à realidade material de minhas paixões (ou de uma delas) o valor de manifestação divina]; inexplicável seria se eu considerasse [alguma ou algumas dei minhas paixões, metafisicamente, de ordem hipostática e, assim procedendo, eu as respeitasse, as consagrasse, as declarasse santas, as transfigurasse religiosamente [as sublimasse]. Seria inexplicável que eu contrapusesse à minha vida, como “nova criatura”, o meu presente corpo mortal como se este valesse alguma coisa que não o NADA — “aquilo que não existe”. Seria inexplicável se eu esquecesse que tudo quanto é finito, é apenas analogia (uma parábola); se eu esquecesse do salutar estremecimento provocado pelo abismo que, até o final de meus dias, separa aquele que sou daquele que [ainda] não sou. Seria inexplicável se eu procurasse uma linha contínua, inteiriça, que não houvesse sido quebrada pela negação básica, e a descobrisse [algures], entre a naturalidade de Deus e a minha própria. [Entendo que o A. nesta última proposição quer referir-se à impossibilidade de uma pessoa remida por Deus procurar um meio de receber a graça

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divina diretamente, isto é, sem ser através da morte em Cristo, pois não há outro modo de chegar a Deus; esta morte, portanto, quebra a linha natural da ligação direta da criatura com o Criador e do Criador com a criatura, porque ela anula toda a pretensão humana de ter, em si, qualidades suficientes para chegar a Deus ou para recebê-lo. A criatura que houver recebido a graça divina sabe que é assim e portanto lhe é impossível procurar essa ligação. Já não acontece assim com o “homem velho”; a tendência natural da criatura não redimida é procurar essa ligação com Deus através de suas qualidades ou possibilidades — penitência, caridade, nirvana, transe, religião, racionalização — todavia, será sempre em forma hipostática, atribuindo valor divino às coisas humanas, ou em forma de humanização de Deus, conferindo-lhe qualidades finitas. Será sempre uma das múltiplas expressões do pecado básico: “Sereis iguais a Deus.”]. Seria também inexplicável se eu, sem ter a graça, me esforçasse e me preocupasse em ter conduta que se opusesse às paixões do meu corpo mortal. Como beneficiários da graça, recebemos o “dom da justificação” (5, 17); [Na tradução de Almeida, o “dom da justiça]. Seria desabrida estultícia não utilizar essa força, no combate. [Não usar esta arma de ataque, apud versão inglesa]. “Seremos reis, em vida” (5, 17); seria uma loucura entregarmo-nos à escravidão da morte [quando podemos reinar, em vida]. [Todavia], “note bem: os santos também têm más paixões na carne, paixões que eles não obedecem”. (Lutero). “Não ofereçais os vossos membros quais instrumentos para a iniqüidade do pecado, porém, ponde-vos à disposição de Deus, como ressurrectos de entre os mortos”. A oportunidade e a possibilidade da vida visível, neste mundo, é sempre e reiteradamente [a submissão ao pecado], colocando os nossos membros à sua disposição. Os “membros” do ser humano são o seu organismo psico-físico e a sua existência cósmica na totalidade de suas causas e seus efeitos e, como tais, são utilizados como “armas da rebeldia”, — como instrumentos, naquele levante pelo qual o homem retém, cativa, a verdade e se identifica com DEUS (1, 18). Na suposta liberdade desta revolta de escravos [o rebelde, o ser humano] cai no cativeiro do pecado ao qual é obrigado a entregar tudo o que é seu. Esta possibilidade visível, porém, é anulada pelo poder invisível da obediência da criatura que recebe a graça. [Portanto] existencialmente falando, tu que recebeste a graça não estás sujeito à possibilidade de cair [ou recair] no cativeiro do pecado; tu [já] não és cativo, não és prisioneiro. Teus membros não foram destinados, nem têm aptidões para construir a torre de Babel! Não os

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ponhas pois, à disposição do pecado. Põe-te à disposição de Deus. (Põe-te a ti mesmo, [qual és] — tu, que recebeste a graça, apresenta a Deus o teu corpo ainda não revestido da imortalidade; tu, o “homem novo”, oferece a Deus o corpo do “homem velho”, com todos os seus membros!). Põe-te à disposição de Deus [porque], (existencialmente), tu és de Deus! “Será então possível estar, muitas vezes, com todo o seu ser envolvido até a morte em rebelião mais ou menos aberta contra Deus, bater na face de Deus com a mão que ele mesmo deu e, ainda, pretender colocar a esperança em Cristo?” (J. Chr. Blumhardt). Esta possibilidade, realmente, se estende e se projeta até onde a percepção humana possa alcançar; todavia [a sua prevalência, a conseqüência que dela pode advir] é minada, solapada, instabilizada, derribada, pela invisível graça [divina] outorgada ao ser humano. A “rocha” [aparente] desta [trágica] possibilidade [referida por Blushardt] está minada, está ocada e entra em ação possibilidade de outra ordem, levando a primeira à ruína. Todavia, há uma terceira possibilidade. [A primeira possibilidade, é a de o “rebelde a Deus” cair na escravidão do pecado; a segunda é a de estar a criatura em rebelião mais ou menos aberta contra Deus — quiçá “nem quente, nem fria” e ainda assim, esperar em Deus. Agora, a terceira possibilidade que o A. apresenta:] “A de combater, alternadamente, como mercenário do pecado, contra Deus, e como mercenário de Deus, contra o pecado, quiçá, servindo ao pecado na esfera da vida corporal, e a Deus na esfera espiritual” (Zahn). Esta é uma possibilidade que está excluída: “Viestes da morte para a vida!” Entre a morte e a vida não há uma terceira alternativa; nesta guerra não há traidores [que passem de uma trincheira para outra]; também não há intermediários, nem neutros. Onde há, realmente, rocha, aí não há buraco, nem vazio, e onde houver “vazio”, aí não há rocha. “...quais instrumentos da justiça” — “HIC RHODUS, HIC SALTA”! [A citação é da versão latina da fábula de Ésopo — O Viajante Fanfarrão — É uma frase citada freqüentemente em alemão para dizer que, aquilo que até aqui se blasonou, precisa, agora, ser feito. (Apud trad. inglesa)]. Estar existencialmente à disposição de Deus significa que, positivamente, também os membros de nosso corpo carnal estão sob o invisível poder transformador da obediência, que faz a conversão de todas as nossas possibilidades, anulando-as para que em nossos membros, (justamente onde o pecado exerce o seu domínio mediante a morte,) passe a reinar a graça mediante a justificação

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divina e pela realidade criativa do perdão, esse perdão que Deus nos concede “não obstante” [o que somos] e pelo qual ele se revela a nós, aceita-nos e nos toma para si, a fim de que o nosso corpo mortal, em toda sua dubiedade, sua desvalia, glorifique a Deus, seja um vaso de honra e arma da retidão divina. Como seria isto possível, senão tornando possível o que é impossível? Quem, que não tenha vindo da morte para vida, poderia sequer perceber essa exigência? Pois é justamente disto que se trata: porque [ninguém pode humanamente compreender como este corpo mortal e sem valor pode ser transformado em vaso de honra e que] a graça irrompe através da carapaça do misticismo e da moral e o seu indicativo [a realidade da sua presença] impõe-se ao ser humano como imperativo, como sendo a condição SINE QUA NON para que o impossível se torne possível. (6, 19). “O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, e sim da graça”. A graça é o poder da obediência porque ela é o poder que vem da ressurreição; é por força da graça que nós nos reconhecemos como o “sujeito” do FUTURUM RESSURRECTIONIS. A graça é a força pela qual ousamos reconhecer o nosso “ser” como sendo o “ser” do “homem novo”. É pelo poder da graça que conseguimos inverter o curso de nossa existência, tirando-a da vida para a morte e dela para a nova vida. Quem recebeu a graça está à disposição de Deus e os seus membros estão prontos a cumprir a vontade divina. A pessoa não deve ser considerada como religiosa, mas como quem recebeu a graça de Deus. Portanto, não pode ser considerada em termos da lei, (sob a qual provavelmente está), nem pela experiência divina que acaso tenha “experimentado”, de alguma forma, em seu entendimento (ou em sua convicção religiosa nem pelo seu comportamento que pode mostrar sinais do “invisível”, (impressões deixadas, preservadas, testemunhando um encontro com a graça). Não se pode, nem mesmo, considerar ou cogitar, se essa pessoa (que recebeu a graça) habita ou não às margens do canal por onde a água viva pode fluir. O poder da obediência que sobrepuja o pecado, não está [em qualquer das mais variadas possibilidades humanas], nem resulta de decisão, ou de inclinação, de comoção (por mais sublime que fosse); não resulta de entusiasmo, nem mesmo de transformação. É bem provável que a pessoa que recebeu a graça tenha tido alguma (ou algumas) ou, ainda, um pouco de todas essas experiências. Ela terá uma religião e pertencerá, até mesmo, ao rol de alguma igreja; ela crerá “nisto” e “naquilo”; terá também vida de oração e comportamento ético-religioso, corres-

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pondente; por sentimento e por esperança, com luta e sofrimento, ganhando e perdendo ela terá, algures e de alguma forma, o seu lugar no imenso pandemônio da religiosidade humana, e o seu tipo característico será, certamente, um dos muitos que a história e a psicologia das religiões catalogam (6, 17!). Todas essas experiências e características [visíveis da vida cristã] sendo sinais e testemunhas [da graça de Deus] podem não ser, uma delas sequer, produto do “poder da obediência” o qual, em esperança, (“o pecado não terá domínio sobre vós”) pode levar a quem tiver recebido a graça, a dizer peremptório “NÃO” ao pecado e “SIM” a Deus. Este “poder da obediência” não é típico [ou esteriotipado] mas é original [genuíno e livre em sua manifestação]: não é religioso, mas divino; não é lei, mas é graça. Se este poder da obediência fosse identificável como piedade, como uma determinada conduta na vida, ou com quaisquer outras qualidades ou virtudes materiais, visíveis, [perceptíveis ao mundo] não teria, evidentemente, a força de um imperativo: (“Não vos apresenteis ao pecado, mas apresentai-vos a Deus”!). Como haveria o pecado de deixar de reinar em sua própria seara? Como não imperaria o pecado no campo das possibilidades humanas, no qual estão, logicamente, incluídas as altas — as mais altas experiências da alma, em todas as suas dimensões, tanto demoníacas como religiosas? E como haveria de um ser humano, [exposto a esta materialidade, envolvido por ela, agindo por intermédio dela e sob a sua influência] colocar-se a disposição de Deus, e “querer o que Deus quer”? Como poderia, aquilo que é finito (e também a religião, mesmo em sua mais alta expressão [está incluída na finitude do mundo material]) conter em si e abranger o que é infinito? “FINITUM NON CAPAX INFINITI”! O homem religioso, também, sente a luta entre os ditames de sua vida espiritual e a fixação pecaminosa das demais virtudes e características [ou paixões] de sua existência cotidiana; todavia, o que ocorre [quando se trata simplesmente de religião] é que a luta se trava entre “possibilidades humanas”. Não se pode, pois, neste caso e a bem da verdade, falar em “vitória da graça” pois as forças que se combatem são, na melhor das hipóteses, iguais entre si; [são ambas de origem material e, não raro, a “vontade religiosa” é a de menor presença]. Nesta disputa [entre os ditames da “consciência religiosa” e os interesses das “fixações pecaminosas”] não existe o objetivo profundo de mudar o curso de uma existência. [Não se procura tirar o homem da senda do pecado, da trilha que ele segue desde o dia da primeira queda, quando, voltando as costas a Deus, ele deixou a vida eterna que recebeu, para caminhar em direção à morte; não se objetiva, com seriedade, fazer o homem volver e caminhar no sentido oposto que vai da morte (em Adão), para a nova vida, pela redenção em Cristo].

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Não se tem em mira fazer a conversão do sentido “vida-morte” para o sentido “morte-vida”; [antes, o que normalmente se almeja é “ganhar uma alma” para a sua grei; para a sua religião; para o seu modo de ver]. Se os motivos do homem forem de ordem religiosa, ele não se põe a disposição de Deus [mas à disposição de sua igreja] e a realidade divina já não é afirmada categoricamente, decisivamente, de maneira crítica [isto é, eliminando toda e qualquer realidade humana]. [Esta forma de proclamar o evangelho é lassa, frouxa, e] ao lado da “paixão religiosa” — e em sua contraposição — alinham-se as múltiplas paixões humanas, — intelectuais, [sociais, morais, cívicas, todas que possamos imaginar, até mesmo as] sexuais. Nesta luta, a presença real da vontade de Deus não é tão certa nem tão firme, quanto a disposição para o líbido! Antes pelo contrário a presença da vontade divina é altamente duvidosa e, por isso, é pouco provável que nela se registre a vitória da graça sobre o pecado. Na disputa [entre conceitos de origem humana — religião e paixões] não se transpõe, basicamente, o limite da vitalidade humana [do dinamismo da vida material] e, por isso, também não se alcança, fundamentalmente, a área da vida que vem de Deus; portanto, não se pode afirmar seriamente, que nesta disputa esteja presente o “poder da obediência” que dá forças para dizer “NÃO” ao pecado e “SIM” a Deus, antes, a abundância do pecado, (justamente no mais lindo pináculo das atividades humanas — a Religião — (5, 20)) produz a ira de Deus. (4, 15). Vós, “porém, não estais debaixo da lei” mas além desta última e maior possibilidade humana, onde somente o perdão entra em consideração (4, 15 e 5, 13): “Vós estais sob a graça”. Seria segundo “a fórmula de um otimismo ético, ideal”? (Lietzmann). É justamente isto que a graça não é! Graça é império, é o poder real de Deus. Graça é estar existencialmente a disposição de Deus; é a verdadeira liberdade de ação da vontade de Deus, na criatura humana. A graça está além, tanto do otimismo como do pessimismo e é assim que ela se expressa como o “poder da obediência” pois ela é a expressão da existência do ser humano na área, no ambiente, no mundo, onde a obediência é inevitável, indiscutível e irresistível. A graça é o “poder da obediência” porque ela é o poder da ressurreição; ela é também o poder da morte e o poder que tira o ser humano da morte para a vida. A graça é o poder da criatura que se reencontra em Deus, quando se achou perdida nele. [O centro] é Deus, e Deus somente. [Estar sob a graça “segundo a fórmula” (ou o preceito) “de um otimismo ético”, parece insinuar a existência de um raciocínio “desiderativo” segundo o qual a criatura se imaginasse além de certas contingências menos amenas; quiçá, fora do alcance das asperezas e limitações normais à nossa vida cotidiana.

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Diz o A. que não é assim. Estar sob a graça divina não significa haver ultrapassado a luta terrena e estar livre de aflições e também não significa que não nos seja lícito esperar por consolo na hora do sofrimento: portanto, nem é otimismo nem pessimismo. Estar sob a graça divina é gozar desta graça aqui, no mundo terreno, onde a criatura não tem outra alternativa a não ser a de obedecer a alguém: ao mundo ou a Deus. É nesta alternativa crítica que a criatura renascida para Deus, em Cristo Jesus, encontra na graça divina o poder para obedecer a Deus]. Vs. 15 e 16 E o que acontece pois? “Pequemos porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça”?-Impossível! Não sabeis que se vos ofereceis como servos, para obedecer; sois daquele a quem vos ofereceis e tendes que obedecer-lhe, seja (ele) o pecado, para a morte, ou Deus, para a justificação? “Pequemos, porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça!”? [A tradução de Almeida escreve: “Haveremos de pecar, porque não estamos debaixo da lei, mas da graça?”]. Seria a graça, de alguma forma, a liberdade para pecar? Poderia acaso acontecer que o homem — convencendo-se da verdade de que a vida da criatura, em Deus, não é materialmente possível, nem será visível [neste mundo] e, consciente de que a religião [em si mesma], não pode alcançar a vitória sobre o pecado — se resignasse e até, com um leve sorriso, consentisse que sua vida, neste mundo, seguisse o curso determinado pelo pecado? [Ou então], será que gozar da graça de Deus traz tranqüilidade com respeito às paixões do corpo mortal e às violências que reinam no mundo não redimido? Haverá, acaso, a possibilidade de o ser humano procurar fazer a paz com o mundo (e suas paixões), ou estabelecer um armistício com ele, talvez mediante a consideração de que [a constituição deste corpo terreno, com seus reclamos] (corpo que, de alguma forma, também foi criado por Deus), tenha sido da vontade de Deus e permitida por ele, mesmo porque a redenção não seria uma realidade imediata que ocorresse aqui e agora? Dar-se-ia o caso de ser a pessoa que recebeu a graça, justamente aquela que, — em contraposição à desesperada “criatura da lei”, que exasperada, aflita, se consome na luta contra o pecado — escolha para si, como a posição mais sábia entre Deus e o mundo, entre o “além” e o “aquém”, entre a criatura redimida e a condenada, a pacificadora tranqüilidade da burguesia mundana,

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o ponderado ceticismo que tanto agrada ao humanismo, ou a posição intermediária que, consternada ou alegremente, o misticismo adota? Dar-se-ia o caso de a nossa negação genérica ao pecado estar acompanhada de uma afirmação igualmente geral, de sorte que esta esvazie aquela, dando-lhe mero aspecto de “reverso da medalha”, de “outra face” da questão, com ambos os lados coexistindo pacificamente? As dúvidas e as interrogações levantadas seriam procedentes se a graça divina fosse apenas uma outra expressão da lei; ainda que fosse a possibilidade mais extremada, a mais íngreme, a possibilidade antinômica, mística, quietista; a possibilidade da passividade e da “expectativa”, isto é, uma possibilidade mais negativa em relação às demais, mais positivas. Se a graça divina for uma possibilidade humana então, evidentemente, será normal que certas outras possibilidades humanas compitam e concorram livremente com ela, e a “graça”, nas mais variadas maneiras, passará a significar “liberdade para pecar”. Quem, diferentemente de Paulo e dos reformadores (do século XVI), quiser ver a graça divina exclusivamente do ponto de vista da lei, quiser ver Deus unicamente sob o enfoque da religião e da moral humana, do que os homens fazem ou não fazem, quem não puder encarar com serenidade o “impossível” que se torna possível por obra divina, quem não puder cultivar a idéia da eternidade, esse sempre há de confundir a graça divina com a possibilidade extrema dos homens, [a religião] cujo poder de negação é apenas relativo e, ao fazer esta confusão, aceitando-a e nela caindo entusiasticamente, ou mesmo a rejeitando e investindo contra ela numa polêmica barata, criará em torno de si um mar de agitação. Ora, se entendermos que gozando da graça divina nada devemos nem podemos fazer porque Deus fará tudo, então evidentemente só nos resta escolher uma de três alternativas. Ou, com os mal-disfarçados aplausos do homem deste século, nada fazemos (e assim acabamos de entronizar de vez a criatura do corpo do Pecado). Ou então, rejeitando essa estagnação, adotamos a feroz seriedade do moralista religioso e atacamos o pecado cada vez mais, “fazendo tudo o que for de nosso alcance”, e terminamos por fazer “superabundar o pecado” (5, 20). Ou ainda, (e esta terceira alternativa será provavelmente a mais comum), ficamos entre a aceitação e a rejeição; entre o “quietismo” — [a inatividade,] e o ativismo, [a operosidade] e desta maneira, com meio conhecimento e semiconsciência oscilamos de um lado para outro, e o pecado festeja o seu triunfo duplamente, — tanto quando estivermos deste como daquele lado e, também, em ambas as atitudes; tanto vence o pecado quando nos inflamamos no ardor

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religioso, como quando permanecemos indiferentes ou apáticos; nas duas atitudes ele domina! Contudo, não é a isto que chamamos “graça divina”, O que se tira ou se nega nessas alternativas [o que resulta se considerarmos a graça divina como possibilidade ou dom que a criatura humana possa alcançar por seu próprio empenho], não é, em hipótese alguma, o que proclamamos [isto é, o que Paulo proclama] como sendo a graça divina. “De modo nenhum”! “Não sabeis que se vos ofereceis como servos, para obedecer, sois servos daquele a quem vos ofereceis e tendes que obedecer-lhe?” A “Graça Divina” não significa que o ser humano possa ou deva fazer alguma coisa, nem tampouco que ele nada deva ou possa fazer. Graça divina, significa que Deus faz alguma coisa, porém não tudo. Deus faz algo especifico, não de maneira geral, nem erraticamente, ora aqui ora acolá, mas faz algo para o indivíduo: Deus o perdoa! Graça é autoconscientização da nova criatura. A graça divina é a resposta à interrogação de nossa existência. Somente depois de estarmos devidamente compenetrados e convencidos do que seja a graça; se estivermos imunes a qualquer forma de panteísmo, pela recordação viva do significado crítico [decisivo] da cruz de Cristo; se, efetivamente, não nos confundirmos com indagações a respeito do que podemos ou devemos fazer, somente então poderemos falar objetivamente sobre a graça e o pecado. Graça divina é o reino, a soberania, o poder e o domínio de Deus sobre o ser humano. Graça é a refutação fundamental da determinação do pecado, ao qual estão sujeitas todas as nossas possibilidades humanas, da primeira à última. Ora, sendo a graça a refutação de todas as possibilidades humanas, ela está, também, além de todas elas e traz nova certeza à criatura, impondo à sua vida novo sentido, o que desencadeia a crise [do confronto do homem — segundo sua postura em Adão, — e do homem redimido em Cristo]. Esta crise gera a perplexidade [e ameaça a existência da criatura no contexto deste mundo] todavia, ela tem a sua origem em Deus e, por isso, ela é, também, promessa e esperança. Na sua qualidade de poder e soberania de Deus sobre o ser humano, a graça jamais e nenhures pode ser idêntica com o que o homem faz ou deixa de fazer; porém, ela é a (invisível) verdade da criatura e a (impossível) possibilidade real de seu “fazer” e “não fazer”; ela é o seu verdadeiro “ser” (que se define pelo que ele não é). Ter a graça divina, é ter em nós mesmos a refutação divina, não como algo que tivéssemos em nós, porém, como o que o próprio Deus tem em nós, a saber: a refutação ao homem do pecado; ora, como não conhecemos nenhuma outra criatura de Deus, [senão nós mesmos], essa refutação se dirige contra nós.

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Ter a graça divina não significa, por assim dizer, “ser isto” ou “não ser aquilo” (estar passivamente parado, ou agir ativamente), fazer isto ou deixar de fazer aquilo. Ter a graça divina significa submeter à refutação de Deus, inteiramente, existencialmente, tudo o que somos ou não somos; tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Ter a graça divina significa “prestar obediência” a essa refutação, e nos “oferecermos” para seu “servo”. Ter a graça divina dessa maneira, está além de todas nossas possibilidades humanas e só acontece como a impossível possibilidade de Deus. É a liberdade que Deus toma, em nós; ele toma essa liberdade, porém a toma em nós; somos nós que recebemos a graça. O nosso “ego”, atacado pela graça, não pode esquivar-se deste ataque mas, também, não pode permanecer como espectador, quiçá para ver como o ataque terminará; antes, ele precisa também atacar, à medida que a criatura terrena morre, — (é crucificada — 6, 6) — para, ressurgindo, descobrir a sua unidade com aquele que apresenta ao mundo a refutação divina. [Quando recebemos a graça de Deus, abrem-se-nos os olhos, e passamos a ver no pecado, o império, o reino, que não pode subsistir; passamos pois a lutar contra esse reino (e contra nós mesmos) sabendo que, pela própria soberania do pecado neste mundo, teremos de morrer para pagar-lhe o tributo devido; todavia, não morreremos em pecado, porém para o pecado, em Jesus Cristo, e ressurgiremos dessa morte para contemplar o nosso Redentor, “face a face”, “de graça salvos”, descobrindo a nossa união indissolúvel com Cristo Jesus]. O teor da refutação divina está no fato de que não somos nós [cidadãos do mundo dos homens] que nos apresentamos como sendo a “nova criatura”, mas é o indivíduo criado e redimido por Deus, que se apresenta como a realidade de nossa nova existência e nosso modo de ser e, mediante essa nova realidade, a presente existência [se desvanece, desaparece no passado], é mentirosa. A nossa presente existência é atacada [pelo nosso “ALTER EGO”] em Deus. É por isto que [o Apóstolo diz], “sois servos dele”, Sois seus servos, existencialmente, e não podereis ser outra coisa; sois servos (escravos) e existis para obedecer; sois servos de Deus, porquanto existis para obedecer ao “NÃO” divino que se levanta contra o pecado e contra vós [naquilo que sois idênticos ao homem da queda]. Já não tendes mais em vossa consciência, condições para dizer “SIM” ao pecado [a menos que queirais servir ao pecado pois, de qualquer maneira], “sois servos”: ou sereis servos do pecado, para a morte ou, da obediência, para a justificação. Examinemos, agora, como tanto para o pecado quanto para a graça, se trata de uma questão existencial em que todavia, uma exclui a outra e ambas excluem a possibilidade de uma posição intermediária. [Tanto o pecado quanto a graça são absolutamente dominadores e exclusivistas]. Verificaremos que o

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pecado” e a “graça” só estão lado a lado, no instante invisível [no momento crítico da transição] quando, atacados pela nossa própria existência em Deus, [nos rendemos] e passamos da mão de um senhor para a do outro. Tanto o pecado quanto a graça fixam e determinam a totalidade das características da existência humana, abrangendo as mais extremas, impondo “servidão” no sentido mais rigoroso da palavra. É por isto que eles se excluem mutuamente [“ninguém pode servir a dois senhores” (Luc. 16, 13)]; é por isto que [segundo o conceito do mundo], estão em oposição; é por isto que, quem houver recebido a graça, já não pode mais sentir-se sossegado na companhia do pecado, não pode tolerá-lo nem pode admiti-lo como possível. Nem tampouco, pode o pecador “jogar” com a graça como se ela fosse possibilidade sua. Ambos, [pecado e graça] são partidos [são facções radicais] legítimos, genuínos e exclusivos de tal forma que o pecador não tem olhos para quem recebeu a graça e este absolutamente, de forma alguma, os tem para o pecador em quem só encontrará o que é impossível [o que é absurdo]. Todavia, a graça é a única possibilidade que o pecador tem [para alcançar a verdadeira libertação. (João 8, 32-36)]. Também o pecado tem o seu “poder de obediência”. Todavia, esse poder não é equivalente ao “poder da obediência” que há na graça; nem as duas forças se equilibram. Se essas duas forças fossem idênticas, então quem estivesse sob o poder do pecado [e quem não estaria?] repudiaria a graça e jamais a aceitaria, assim como quem está sob o poder da graça nem sequer admite a possibilidade do pecado. Fosse o poder da obediência ao pecado maior ou igual ao poder da obediência na graça, já estaríamos irremediavelmente destinados, comprometidos, vendidos, [com nosso destino selado na condenação], todavia, o dom gratuito da graça é muito maior que a ofensa. (5, 15-17). Há absoluta impossibilidade de intercâmbio e de identidade entre a vassalagem de lá e a de cá; há absoluta incompatibilidade entre o homem “segundo Adão” e o homem “segundo Cristo”. É de se notar que toda a sanhuda severidade com que a lei, a religião e a moral lançam o homem contra o pecado, não é suficiente para mostrar-lhe a incompatibilidade entre o pecado e a graça; não consegue romper os liames de suas aparentes garantias mútuas — [a graça tolerando o pecado, e o pecado dando aso à graça] — nem desperta [na consciência humana] o desassossego que a presença do pecado gera nos corações que estão sob a graça divina. Parece mesmo que o impacto da lei, da religião e da moral, age como elemento conciliador entre Deus e o homem, tranqüilizando o pecador, apagando a dife-

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rença entre o eterno e divino e o que é efêmero e humano, aproximando o “além” do “aquém”. E isto o que parece estar por trás da pergunta que o “espectador” formula em 6, 15. Todavia, esse apaziguamento, essa contemporização [que as iniciativas humanas, mesmo as mais sublimes e nobres proporcionam à humanidade], não consegue suavizar o problema da existência humana nem aliviar o confronto crítico da criatura deste mundo ante a revelação divina que está vivamente presente para quem “não está debaixo da lei mas sob a graça” e que, de maneira alguma espera alcançar a vitória sobre o pecado por méritos e recursos humanos, mas espera em Deus. Não temos liberdade para pecar porque “não estamos debaixo da lei, porém sob a graça” e por isso não temos senão dois caminhos a escolher, sem atalhos e sem desvios. [Parece-me bastante clara a posição do A. sobre o “poder do pecado” que, de certa forma, é paralelo ao “poder da obediência” sem, todavia, ter a mesma força e o mesmo alcance; antes quem está sob o poder da obediência a Deus, está livre do “poder do pecado” e quem está preso pela sua obediência ao pecado, pode romper os grilhões por força do poder que vem da graça. Já não parece ser tão pacífica a posição com respeito aos ataques que a lei, a religião e a moral lançam ao pecado. As reservas que o A. tem (ou faz) a toda forma de legalização, moralização e espiritualização (ou santificação) do indivíduo tomam, por vezes, o aspecto de obsessão. Todavia, parece-me que a preocupação de Barth com esta perspectiva reside no fato de justamente nas formas mais sublimes da manifestação humana, na lei, na moral e, acima de todas na religião — estar o grande risco da divinização do homem ou na humanização de Deus. É na obediência à lei, na adoção severa de rijos princípios de moral, e no sagrado fervor religioso, que a humanidade tem cometido os maiores desatinos, notadamente sempre quando pretendeu falar em nome de Deus. Essa “sanhuda severidade” a que o A. se refere tem um único aspecto perante Deus e que provoca a sua ira: a retenção da verdade pela injustiça! Perante o mundo, porém, ela pode ter como conseqüência duas posições opostas: uma, é pacífica, benigna, tolerante; é a da conveniência social: seria espécie de trégua entre a virtude e o pecado; é a cessação da luta em defesa de princípios e convicções. É a irmanação de todos na graça e no pecado; na idolatria e no evangelho de Cristo; no cristianismo, no judaísmo, no protestantismo, no catolicismo, no maometanismo e no “romântico” panteísmo oriental, nas expressões de prática e filosofia hindu, ou ainda nas folclóricas expressões de culto africanas e afro-brasileiras. Todas elas são consideradas como válidas, como espirituais, espiritualistas e até espíritas. Seriam manifestações de Deus, e são, na realidade, todas comparáveis entre si, porque são apenas elucubrações

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múltiplas originárias do próprio homem; finitas, efêmeras, e pecaminosas, porque não tributam honra e glória a Deus, antes endeusam as imagens, os animais ou as coisas, os astros (na astrologia), os espíritos (no espiritismo, na macumba, etc.) e a si próprios, como os detentores da verdade. Esta última qualidade é que tende a levar-nos, humanamente, ao outro extremo desta “sanhuda verdade” e, agora ela já não é apenas sanhudamente severa, mas sanhudamente feroz. Ela sai do extremo da tolerância comum e oscila para o lado da intolerância ou melhor: ao deixar a crista original da materialização de Deus, ela tomou a vertente oposta à lassidão e buscou a dureza da intransigência, chamando a si o Juízo que a Deus pertence. E o tipo de que a história do mundo está cheia. Guerras de religião, inquisição, perseguição religiosa, “fundamentalismo” moderno, e coisas semelhantes, inclusive religiões de Estado e supostas teocracias. Parece-me que é procedente a posição do A. se fizermos da natural reserva às posições advindas das possibilidades humanas, outro pretexto para falar em nome de Deus!] Vs. 17-19 Mas graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entre que e, unia vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, com vistas à fraqueza da vossa carne! Pois, assim como pusestes os vossos membros quais instrumentos à disposição da impureza e da iniqüidade, para criar a iniqüidade, ponde agora os vossos membros quais instrumentos da justiça, à sua disposição para criar a santificação. “Graças a Deus porque, outrora escravos do pecado, viestes a obedecer de coração”. O Apóstolo apresenta o seu apelo “de última instância” com a devida consideração às possibilidades humanas. E por is só que dá “graças a Deus” [pois os cristãos de Roma já não são mais escravos do pecado] mas dá também “graças a Deus” porque esses cristãos estão livres das possibilidades humanas [pois estão sob a graça de Deus], e gozam do “poder da obediência!”. É por isto que, agora, pode e deve ser feita a ofensiva decisiva; agora pode-se ousar dar o impulso para frente que é a arrancada e a invasão que transforma a comunicação objetiva em pregação, em carisma, no dom e no talento de cada cristão para desempenhar sua missão dentro da igreja; é a arrancada que se transforma em proclamação. No caso, é a empresa de se dirigir aos fieis de Roma, como àquela gente que recebeu a graça, conclamando-os a vencer o pecado por essa graça debaixo

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da qual estão e com a qual receberam, também, o “poder da obediência”. Por isso tudo, o Apóstolo pode exigir deles que, pelas suas obras, dêem testemunho do conhecimento da graça divina. Dando “Graças a Deus”! É preciso convencer os ouvintes da mensagem, de que o caso deles já não é o da servidão no pecado, mas o de servos de Deus; é necessário mostrar-lhes que em suas vidas o pecado já não tem lugar, pois foi excluído, suspenso, liquidado; é preciso convencê-los de que para eles a submissão visível (e por demais visível), ao pecado, é coisa do passado; que o seu estado presente e futuro está na invisível obediência à graça. “Éreis servos do pecado, mas vos tomastes obedientes”, e isto, “de coração”! Portanto, e sabidamente, nesta abordagem direta se trata de um empreendimento que não poderia ser tentado sem ser na forma de uma destemida prolepse, refutando antecipadamente todas as objeções que se lhe quisessem antepor, conhecendo os seus corações como Deus os conhece (2, 16); chamando-os ao arrependimento e anunciando-lhes o perdão, pela Palavra de Deus. Eles são instados para se considerarem vivendo sob a graça divina, como pertencentes a Deus, incluídos no poder da ressurreição e que, com os olhos fitos no crucificado, creiam no poder da obediência, que receberam. [O A. parece, na sua exposição original, particularmente empenhado em demonstrar que, sem acolher a graça de Deus em seu coração, sem aceitá-la e obedecê-la, o pecador não tem a força necessária — o “poder da obediência” — para seguir a Cristo, portanto Barth escreve: “Anunciando o perdão como se fosse a palavra de Deus acerca deles”. Barth expõe mais adiante o que, talvez, pudéssemos chamar um problema de semântica. Entendo que o A. quer dizer que não é o homem que busca a Deus, mas é Deus que chama para si a criatura pródiga. A tradução direta desse condicional com o qual Barth pretende caracterizar o que ele chama de “prolepse” expositiva, poderia, em nossa língua, dar a impressão da presença de um artifício um tanto semelhante a uma restrição mental; daí, havermos escrito, “anunciando-lhes o perdão pela Palavra de Deus”, seguindo o mesmo critério na interpretação de todo o trecho. Aliás, este critério é idêntico ao da tradução inglesa.] É preciso ousar empreender semelhante pregação pois, como se poderia falar da graça do Reino de Deus sem que se dissesse, justamente a quem a pregação se dirige, quem é o objeto dessa graça? Sem que se lhe anunciasse que ele é súdito desse reino? Como se poderia testificar a graça de Deus para com todos os homens, senão dizendo a cada um em particular que “APESAR DE” todas as fraquezas que tem [corno pecador que é], Deus o recebe? Como haveria alguém de crer que a graça divina é a vitória sobre o pecado, por força da obediência invisível, se a graça, antecedendo a fé, não

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transpuser firmemente a escravidão do indivíduo, (de cada um em particular!), para que cada um nela acredite de antemão e dentro de si mesmo? [Todavia, essa antecipação da graça divina — e que está perenemente e em toda parte à disposição de todas as criaturas, pela própria predestinação segundo o eterno decreto de Deus, não obriga ninguém a aceitar, nem condiciona a Criatura para isso; a opção é de plena liberdade da criatura que pode decidir, e de fato decide segundo o seu livre arbítrio, pela aceitação ou pela rejeição da salvação em Cristo Jesus. A pregação, o apelo, há de ser feito como “se fosse a palavra de Deus” dirigida ao pecador, porque, de fato, essa palavra já foi dada uma vez por todas e pode ser resumida assim... “para que todo o que nele crer não pereça mas tenha a vida eterna” (João 3, 16)]. A graça age, dá testemunho de si, confirma-se como graça, torna-se efetiva e eficaz, estabelecendo o seu recebimento “de coração”; (“perdoa-nos nossas dívidas como também nós perdoamos nossos devedores.”). Segundo a tradução inglesa, “a graça pressupõe que a criatura esteja sob a graça “de coração”]. “Pressupõe” não para patentear a existência da graça, mas para crer nela. E nisto que o “APÓSTOLO” se distingue do homem religioso, pois crê que possam existir pessoas que tenham recebido a graça sem procurar por sinais que o comprovem. ...“A forma de doutrina que recebestes”. [O A. diz, textualmente: “tendo por base a impressão do ensinamento que recebestes”]. Por que haveria de ser somente essa gente [— o grupo cristão de Roma — que se tornaria obediente “de coração” tendo por base a doutrina recebida]? Os demais, não estão excluídos e, numa prolepse análoga à anterior, o Apóstolo aborda agora a “judeus” e “gentios”. Nem o missionário, nem o próprio missivista, pode fazer mais do que “dar graças a Deus” (ao Deus desconhecido!) que veio ao encontro dos homens e os achou, antes que eles o procurassem, e do qual eles, que já estão convertidos, precisam apenas ser lembrados. E por que não haveria de a experiência visível da graça divina entre os “cristãos” ser estímulo e razão para, dando por ela graças a Deus, falar justamente a eles, como beneficiários dessa graça? A “impressão do ensinamento que recebestes” é um “sinal “(semelhante ao do batismo, conforme 6, 3) na imensa planície onde o “cristianismo” toma uma posição humanamente visível ao lado de outras religiões, e não sem múltiplas ligações com elas, em vivência e convivência, quer seja como instituição, ou como dogma e culto, e como a expressão de pregações religiosas de diferentes tipos.

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Entre esta diversidade de tipos estão o ensino Paulino e, possivelmente, o “cristianismo” um pouco diferente do então praticado pelos crentes de Roma. Essa eventual diferença [de formal é irrelevante e Paulo se serve dela para indicação, sinal e testemunho daquilo que ele quer lembrar-lhes. Ele não julga enganar-se quando se utiliza do que é típico, contingencial, visível, para, com estas coisas, lembrar-lhes do que é primordial, invisível e existencial; para recordar-lhes que Deus os achou; que eles têm o perdão; que receberam a graça; para relembrar-lhes que são nova criatura em Cristo; para trazer-lhes à lembrança o poder da ressurreição, que é o poder da obediência. Subentende-se, é claro, que esta lembrança é apenas lembrança, porquanto a realidade da graça divina que aqui é lembrada, vem de Deus; portanto, não é por mera coincidência que o texto começa dando graças a Deus (6, 17). “Libertados do pecado, sois agora servos da justiça”. Esta é a “graça” de que Paulo fala aos cristãos de Roma. Ela envolve um rompimento, um desassossego, a impossibilidade de reajustamento. É o ataque que o “homem novo”, a criatura redimida em Cristo, move ao “homem velho”, ao homem segundo Adão. Os cristãos de Roma haviam recebido a alforria da escravidão do pecado e passaram a ser escravos da justiça. O poder da ressurreição e o conhecimento de Deus os converteu, e fê-los inverter o sentido de sua trajetória. Foram eles próprios que deram este passo; foi um ato personalíssimo; a conversão não resultou de algum dispositivo mecânico mas aconteceu pelo poder da ressurreição; este passo decisivo que eles deram, esta conversão, é indubitável, irreversível e irretratável. [Nesta conversão se aninha a justificação, mediante a fé]. A retidão não é uma possibilidade de quem recebeu a graça, porém, uma necessidade; ela não é uma decisão mutável, porém a decisão definitiva de uma existência. Não se trata de estado de ânimo sujeito a diferentes gradações de entusiasmo mas é decisão final e definitiva. A retidão não é qualidade reclamada pelo homem, antes é ela quem o reclama para si. A liberdade do ser humano está sediada no beneplácito divino, e em nenhum outro lugar, porém, ela é a liberdade [da ação] divina no [coração do] homem e nenhuma outra. Libertados em Deus, estais cativos nele! Este é o imperativo categórico da graça divina. É isto o que significa pertencer existencialmente a Deus e é nesta verdade que surge [momentaneamente] a duplicidade do “homem velho” e do “homem novo”; porém, surge para ser suprimida imediatamente [pela soberania] da nova criatura. [Apoc. 1, 6]. Estais debaixo deste imperativo!

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“Falo como homem, considerando a fraqueza de vossa carne”. Digo “estais” e “sois”; aqui, digo que estais livres; acolá que sois servos. Isto é falar “como homem”! Sabemos que falando nesta forma dialética, inflexível, direta, inevitavelmente dizemos algo que não podemos [não queremos e nem devemos] dizer a respeito deste relacionamento existencial, porém invisível, do ser humano [com Deus]. Sabemos que ao nos atrevermos a empregar tais expressões, damos lugar a certa imprecisão que caracteriza a maneira de falar dos religiosos e românticos, em cujos discursos o pecado e a graça, ou então a crença e a descrença, aparecem como fatos materiais que o homem “tem” ou “não tem” e onde a pessoa tanto pode ser “isto” como “aquilo “ e, também, — “não ser nada”. Sabemos que a volta da morte para a vida mediante o poder da ressurreição, não é negada a nenhuma criatura; sabemos que a nenhuma pessoa é recusada a libertação do pecado, e a servidão na justiça. Sabemos que os nomes daqueles a quem essa libertação e esta servidão tiverem que ser negadas, só podem estar inscritos no livro da vida de onde serão, eventualmente riscados os nomes dos que não “vencerem” [Apoc. 3, 5]). Sabemos que onde e quando se trata da “graça divina” não subsistem as questões de “ser” ou “não ser”, nem de “ter” ou “não ter”, desta ou daquela pessoa, [não há faixas etárias, classes, categorias ou grupos que possam, em razão dessas arregimentações, merecer ou desmerecer a bênção da graça] (como por exemplo, as criancinhas, ou os socialistas, ou o povo alemão, ou a nação russa ou Dostoievski! ou Kutter!). Todavia, ousamos expressar-nos na maneira que o fazemos suportando esta aparência de psicologismo romântico porque não existem outras palavras [que não as humanas], para expressar a obra do perdão divino; é por isso que o apresentamos por meio de analogia humana, pois o discurso objetivo sem a devida atenção ao “ser” e ao “ter” da “fraqueza carnal” seria menos perceptível, menos claro ao entendimento humano, e obscureceria o sentido [da boa nova] do perdão. Trata-se de afastar (de derrubar) a última muralha atrás da qual o homem poderia abrigar-se para permanecer como espectador, opondose ao revolucionamento de seu íntimo por Deus, [quiçá alegando que não consegue compreender a mensagem]. Trata-se de destruir o último resquício da aparência de que o ser humano pudesse entender Deus “objetivamente”, porque a prova de que “vós” não conheceis nem podeis querer o pecado tem o seu ponto chave no fato de que Deus vos perdoou. Pensamos, portanto, que sabemos o que fazemos quando empregamos um discurso assim direto (e que caracteriza inevitavelmente, e também perigosamente, toda prédica!); sendo homens quebrantados, ousamos empregar linguagem dura. Todavia, lembramos [aos nossos interlocutores e a nós mesmos]que,

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então, falamos “como homens”, por analogias; que aquilo que dizemos pela fé, deve ser ouvido segundo a fé. Não pode deixar de estar presente, e bem vivo, em nossa mente o fato de que a graça divina precisa ser proclamada e aceita como graça, isto é, como o real fundamento invisível do homem, em Deus. Esta advertência pode ser convenientemente apreciada pelo seguinte: “Pois assim como oferecestes os vossos membros para instrumentos da impureza e para o que é contrário à lei, fomentando o seu desrespeito, assim, agora, oferecei os vossos membros para instrumentos da justiça, para criar a santificação”. Estais sob o império da graça! Graça é a supressão do pecado que habita em vosso corpo; agora, os membros do vosso corpo estão à disposição da graça e não do pecado. Agora é a graça que determina o destino do homem mortal. É pela graça que Deus toma partido a favor do homem, e não por causa do pecado. Graça significa que Deus conta com a existência do ser humano em sua totalidade, reivindicando-a para si. Graça é o poder de Deus sobre o homem uno e indivisível; é a verdade divina para o indivíduo em toda a extensão de seu ser e da sua existência, justamente por ser, (e na medida que for), a sua crise radical. A graça não pode aquietar-se, acalmar-se; não pode calar, nem transigir, nem mesmo ante a parede cru que separa o invisível do visível, o infinito do finito. A graça não pode abandonar a presente vida visível, ao pecado, para distanciar-se, para encastelar-se na vida do além, na vida da nova criatura, justificada por Deus. Isto é exatamente o que a graça não faz, pois seria a admissão do dualismo, da existência paralela e simultânea da graça e do pecado, cuja supressão a graça não só assegura, mas efetiva. A graça promove o desenvolvimento da vida material, o seu amadurecimento, e exige que ela se renda à retidão, a cujo serviço os seus membros precisam permanecer, pois o conteúdo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS” da pessoa que recebeu a graça divina, consiste em que “aquilo que é mortal se revista da imortalidade”. A graça divina não seria graça se ela fosse simplesmente algo a ser contrastado com o conteúdo de nossa vida material, segundo a sua determinação pelo pecado. Não há promessa de um melhor porvir que possa conter o apelo íntimo, o ataque, a crise a que está sujeita a nossa vida deste mundo, a vida de “nossos membros”, a vida que vivemos temporalmente no reino da matéria e dos homens, quando Deus nos manifesta a sua graça porque, então, a nossa

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vida terrena é posta em dúvida pela vida melhor do além; então esta nossa vida material torna-se questionável quer seja pela evidente ausência de Deus, quer seja pela insistência divina, pressionando, batendo à nossa porta, invadindo o nosso coração. [Todavia, se as alusões e referências a um mundo melhor não conseguem anestesiar o mais íntimo de nosso ser ante a manifestação da graça divina], também não o consegue nenhum extremado fatalismo. Já não viveremos nesta “terrível” existência, nem mais nos entregaremos a ela, pois estaremos em posição radicalmente oposta. Esta oposição é de tal natureza que, na própria mundaneidade de nossa vida material, vemos a promessa divina e, no deserdamento [que pela nossa oposição, o mundo nos impõe], encontramos [e confirmamos] a nossa esperança [em Deus]. A manifestação da graça divina é o testemunho de que o “além” [a criatura na sua nova vida, depois de redimida por Deus] se reporta ao “aquém” [à nossa vida terrena], e que este “aquém” se relaciona com o “além”, não nos sendo possível reconhecer ou discernir qualquer separação entre um e outro. A graça, a invisível verdade, não pode senão estender suas mãos para, na sua possibilidade que nos parece impossível, amparar esta criatura que em seu comportamento, na expressão de sua vontade e em seus empreendimentos, foi e será caracterizada pelo pecado até o final de seus dias [sobre a terra]. A graça [por seus efeitos em nossa vida] quer ser realmente vista, ouvida, sentida; ela quer revelar-se e quer ser observada, pois a própria ressurreição de Cristo de entre os mortos, é a revelação e a manifestação da invisível graça divina (historicamente na periferia do imaterial, e imaterialmente na cercadura do que é histórico) (6, 9). Portanto eu, [reconciliado com Deus], como nova criatura, não sou SOMENTE aquele que não sou mas, TAMBÉM aquele que não sou. (5,1 e 5,9 a 11). [O A. usa aqui uma redação essencialmente dialética valendo-se dos recursos que a composição tipográfica alemã permite, para influir na ênfase e na entonação da frase o que, em parte talvez tenha sido alcançado mediante o emprego de caracteres maiúsculos. Entendo que o A. quer dizer que a criatura, reconciliada com Deus é, concomitantemente, a “nova” e também a “velha” criatura. Ela apenas é “aquele que ela não é”, na esperança e pela fé, mas não está isolada do mundo; ela não é EXCLUSIVAMENTE “aquele” porém é TAMBÉM “aquele” porquanto continua presa ao “corpo desta morte” embora tenha morrido para o pecado, em Cristo Jesus]. Graça divina quer dizer: “Seja feita a tua vontade, na terra como nos céus”! [Esta posição da criatura, desejando que a vontade de Deus seja feita na

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terra conforme o é nos céus] é o relacionamento existencial do homem [novo] com Deus e [a indicação da presença dessa graça] é o “modo indicativo” que leva a criatura a confrontar-se com o imperativo divino: “Desejai pois, agora, o que Deus quer, da mesma maneira como, até aqui, vos opusestes ao seu querer”. Servi-o agora, na retidão, com a mesma ostentação, com o mesmo denodo, com os mesmos “membros” com que até agora servistes à impureza e ao desrespeito à lei! Promovei, agora, a santificação com os mesmos meios e as mesmas ferramentas com as quais, até aqui, promovestes a desobediência à lei! Louvai, agora, a Deus, em vosso corpo, nas mesmas circunstâncias, funções e conjunturas nas quais até agora, o envergonhastes! Um novo “ser”, “ter” e “fazer” é, agora, demandado de vós. De vós mesmos, como se a santificação fosse uma possibilidade humana! Como se o pecado não habitasse no corpo mortal ao qual estais inseparavelmente ligados e com o qual estais indistintamente unificados; portanto, como se o temporal não fosse temporal, nem o material fosse material! Como seja não estivésseis com um pé, ainda, na sepultura; como se o corporal já houvesse sido superado pela vida [espiritual] e a morte sido tragada pela vitória! Como se fôsseis seres aos quais tais exigências absolutas pudessem ser impostas! Todavia, a possibilidade do cumprimento dessas exigências não pode ser contestada. Não podemos impedir [ou negar] que o Reino de Deus venha a nós, neste mundo; que a nossa vida santificada seja manifesta e visível entre os homens, e que o infinito toque o finito. Esta possibilidade ampla, não só não pode ser contestada como, sob o ponto de vista da graça divina, ela precisa ser asseverada, afirmada, pois ela é a última possibilidade [para o ser humano], e a sua realização deve ser aguardada com grande anseio, incontida impaciência e inexcedível zelo. A graça divina não seria graça se pudéssemos suportar a vida [ou admitir a nossa existência] sem satisfazer a plenitude das exigências que a graça apresenta; se tivéssemos suficiente capacidade de moderação para nos contentarmos com menos que a plenitude das possibilidades que a graça proporciona, e pudéssemos viver numa espécie de compensação entre as possibilidades que a graça divina oferece e outras quaisquer [morais, intelectuais e psíquicas], e então pudéssemos libertar-nos da inquietude, do desassossego natural e inerente à alma firmada em Cristo (em Deus.). A graça divina não seria graça se [depois de a recebermos], não nos esforçássemos diligentemente para santificar as nossas vidas, a fim de preparálas e abri-las para receber a justiça de Deus; se não porfiássemos por colocar nossas vidas em paralelo com a vontade divina, tornando esse paralelismo visível

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aos olhos do mundo mediante o domínio sobre nossos membros e a disciplina de nosso corpo mortal. O “FUTURUM RESSURRECTIONIS” atinge a criatura que recebeu a graça, na totalidade de seu ser. Ele atinge o “homem novo”, a parte celestial (“a alma”) e também o “homem velho”, a parte material, (o corpo que foi crucificado). Este “futuro” não tem o sentido vulgar de tempo [que ainda virá], como se devêssemos esperar por datas [quiçá pela ocasião de nossa morte ou na consumação dos séculos], para a sua efetivação; esse “futuro” [é a vida que vem de Deus;] pode referir-se e de fato envolve tanto o passado como o presente e o futuro. Porém, esse “FUTURUM RESSURRECTIONIS” tem um predicado que caracteriza a vida da criatura atingida por ele: “O pecado não terá mais domínio sobre vós”. (6, 14). Entendamo-nos bem: esta possibilidade que se apresenta assim, é a possibilidade do impossível. Este evento — [esta ocorrência que acarreta a perda de poder do pecado] — é uma materialização daquilo que não é histórico, não é material. A proclamação dessa verdade é a revelação do segredo eterno e a sua contemplação é a contemplação do que é invisível; este novo [modo de] “ser”, “ter” e “fazer” do ente humano, é o milagre; é a existência da “nova criatura” e portanto é de outra ordem (realmente diversa), diferente da existência do ser, do “EGO” [segundo o conhecemos neste mundo]. Trata-se de um novo ente; de ordem tão absolutamente diversa que não o podemos descrever nem comentar; é como se um “ser” especial se levantasse ao lado de outro qualquer. É o revestimento [da antiga criatura] “com o tabernáculo celestial” (II Cor. 5, 2) e, portanto, é acontecimento que pertence à nova terra e ao novo céu. [Essa supressão do domínio do pecado] é o cerceamento visível [da conduta humana] que, na realidade, não é cerceamento porém a mais aguda expressão do imperativo: [“Desejai aquilo que Deus quer” e “oferecei agora os vossos membros, para servirem como instrumentos da retidão, e para criarem a (vossa) santificação”!]. Este imperativo significa que o “PORÉM” é também “PORTANTO”; — quem o puder entender que o entenda. [A tradução inglesa escreveu: “A limitação inerente a tal linguagem, contudo, serve somente para enfatizar o imperativo divino tão claramente quanto possível!! — (refere-se à linguagem que fala do “cerceamento”). “Na realidade, não há limitações. O nosso ‘mas’ humano, não é, senão o “portanto” divino. — Quem tiver ouvidos para ouvir, que o ouça”. Entendo que essa maneira de traduzir está estribada na exposição que o A. faz logo a seguir; contudo, quer me parecer que a observação um tanto enigmática, quem sabe se dialética, sobre o “PORÉM” e o “PORTANTO” se pren-

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de mais ao que o A. acaba de expor do que ao que se segue ao “ponto”, com que ele separa os dois períodos no mesmo parágrafo. Entendo que o A. quer referir-se à graça divina, ao “FUTURUM RESSURRECTIONIS”, que não se mede em tempo assinalado materialmente que é a vida abundante, plena, que Deus concede aos remidos, por Cristo Jesus, tanto aqui neste mundo, como na vida de além. (“Eu vim para que tivésseis vida, e a tivésseis abundantemente” (João 10, 10 — seg. parte) ). “PORÉM” aqui gozamos dessa vida, pela graça, mediante a fé, como em espelho. “PORTANTO”, também pela graça mediante a fé, em nosso espírito, já não damos mais lugar ao pecado em cujo reino o nosso corpo mortal ainda peregrina; e porque o homem aqui peregrina, Deus, em sua fidelidade divina, lhe dá a graça da justificação, sempre mediante a fé; (Abrão creu, e isso lhe foi imputado por justiça”. (Tiago 2, 23). A velha criatura — quando, pela fé, aceitou a Cristo como seu Salvador, — foi crucificada e morreu com ele, e nele; “PORÉM” continua, ainda por algum tempo “forasteira aqui, em terra estranha” ligada ao “corpo desta morte” (7, 24), cativa das contingências do reino do pecado. “PORTANTO” Deus, SPONTE SUA, concede à alma crente, contrita e humilhada (Sal. 51, 17) a graça de ser reconduzida, ainda no presente século, à gloriosa condição “pré-adâmica” de “Filho”, pela remissão em Jesus Cristo. Daí, o “POREM” que pesa de maneira multiforme sobre toda criatura e o “PORTANTO” que está à disposição de toda pessoa que “quiser vir” de volta ao lar paterno, para receber o alívio divino. Este binário é conjugado e não antípoda; todavia é invisível ao mundo, pois vem de Deus, e parece paradoxal quando exposto em linguajar humano; por isso, ele só pode ser compreendido e assimilado pela fé. Daí, segundo a minha interpretação, o desafio do Autor: “Entenda quem puder”...] Seria coisa maravilhosa se o linguajar humano tivesse, para este assunto, palavras que não fossem ambíguas, que não fossem [sujeitas às distorções] humanas, que fossem claras! Ora, este “imperativo” [“desejai”... e oferecei”...] (semelhantemente ao “indicativo” de 6, 18) é, também, “segundo os homens” e não há dúvida de que a limitação, o cerceamento, que o “POREM” subentende, não é definitivo, nem absoluto, nem real; [é apenas maneira de expressar uma verdade divina em linguagem humana — é uma analogia]. Este imperativo demanda do ser humano aquilo que [segundo a nossa conceituação], não pode ser exigido dele. Ele exige que rejeitemos [e façamos] tudo quando a nova “qualificação” da vida revoga e impõe. Esta conduta nova precisa ser reconhecida imediatamente (em nossos membros!) no que a exigência

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difere daquilo que ocorreu com Cristo e na páscoa, pois os fatos não foram claramente inteligíveis, havendo ficado aberta a possibilidade de opção entre o escândalo e a fé. É a isto que se chama “falar segundo os homens”: exigir dos homens, por meio da parábola do discurso direto, aquilo que somente é compreensível como inerente ao “ser”, ao “ter” e ao “agir” de Deus. Quando isto não for considerado, quando a condição “como homem” deste imperativo, que tanto impulsiona como detém, for ignorada; quando, esquecendo essa condicionalidade, olvidamos que a força para obedecer esse imperativo [vem do poder da ressurreição e] é o Poder de Deus, então estamos no meio das prolepses do moralismo religioso, envolvidos nas mais selvagens ilusões do romantismo; no meio das doces substituições e misturas da justiça divina com toda sorte de retidão humana; confundimos a redenção em Cristo com todas as formas de salvação que os homens inventam; e achamos que, de qualquer forma, haveremos de gozar da vida eterna. A ambigüidade que oprime todo discurso sobre a graça provém de nosso esquecimento de que “precisamos morrer” [para alcançá-la], (e quando, onde ou por quem é esta lembrança levada, seriamente em consideração?). Se tivermos de falar a respeito da graça divina, se formos constrangidos a fazê-lo por algum motivo razoavelmente justificável, então precisamos, evidentemente (sabendo o que fazemos!), falar “segundo os homens” deixando a última palavra, a palavra decisiva, a palavra envolvente, à própria graça. É à graça que cabe dar a palavra que diz respeito à santificação de nosso corpo mortal para transformá-lo em instrumento da justiça, pois há sempre o risco de que tal palavra, em nossos lábios, seja mera banalidade ou fantasia. É esta palavra final que torna impossível o pecado; ela é o juízo de Deus para a justificação; ela é o Poder de Deus para o perdão: é a palavra criativa de Deus! Vs. 20 a 23 Porque quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. O que colhestes então? Coisas de que agora vos enojais, pois o seu fim é a morte. Agora, porém, libertados do pecado e transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto naquilo que conduz à santificação e que tem por fim a vida eterna, porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor Graça é a crise da morte para a vida. É por isto que a graça divina com relação ao pecado é, simultaneamente, a exigência absoluta e o absoluto poder

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da obediência; é também por isto que não pode existir tensão ou polarização entre graça e pecado, nem pode haver equilíbrio, soluções intermediárias, composições ou compensações entre este e aquela. É ainda por isto que, como “beneficiários da graça”, não podemos considerar nem admitir que a graça e o pecado possam coexistir, isto é, sejam possibilidades que possam situar-se lado a lado, [ainda que por oposição]. É por esta razão que o Evangelho de Cristo é o desassossego, o estremecimento [que o homem do pecado sente] ante o ataque [soberano] da graça que, por assim dizer, a tudo põe em dúvida. Por isto, nada há mais destituído de sentido do que fazer-se do Evangelho de Cristo uma religião, pois isto o transforma numa possibilidade humana ao lado de outras quaisquer; esta tentativa, ensaiada mais conscientemente pela teologia protestante depois de Schleiermacher, é uma traição a Cristo. A pessoa que recebeu a graça divina passa, necessariamente, a ter partido. Ela se encontra envolvida na luta de vida e morte na qual não há paz, nem trégua nem acordos. [Fora desta posição definida] os homens parecem seguir o seu caminho no crepúsculo de certa indiferença ou neutralidade, agindo e sofrendo, vivendo e vividos, semeando e ceifando. Porém, que colheita é esta? Qual é o produto do seu lidar? O que significam as experiências, os seus traços característicos, os costumes, as palavras, os feitos e as obras nas quais eles reconhecem, apenas, a si mesmos, como interlocutores? O que significam os movimentos, as conjunturas e as leis de sua história, e para onde os levam o seu “progresso” e o seu “desenvolvimento”? Qual é o seu alvo, o “fim” em vista, o ponto terminal, a meta, o seu objetivo? O que se procura, realmente, no interminável preenchimento daquilo que a humanidade aspira e, de certa forma, alcança? Sabe o homem o que isso significa? [Os frutos do seu labutar] cresceram todos juntos; como tem o homem condições de saber quais são bons e quais não o são? Eles são inerradicáveis; vicejaram juntos, um ao lado do outro, e um por entre o outro, e se parecem como o joio e o trigo. Estão juntos e se assemelham, tanto o que produz a impureza e a maldade como o que produz a santificação (6, 19). Quem há de julgar, ou que norma se aplicará para saber se isto ou aquilo que o homem produz e realiza pelos “membros” do seu corpo mortal, pertence “para cá” ou “para lá”? Quem há de decidir se é este ou se é aquele testemunho do espírito finito da criatura, que é o certo? Quem diz qual a atitude, entre as muitas que a vida possibilita, que é boa ou má? Se esta ou aquela constituição espiritual é iníqua, ou santa? Se um determinado ato histórico pertence a este ou àquele lado? Acaso não pode, também, acontecer que tudo que uma pessoa fizer, disser, pensar ou produzir pertença, em sua totalidade, exclusivamente ao joio, ou então, só ao trigo?

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Acaso existe alguma “iniqüidade” visível que não possa, nunca, [em nenhuma hipótese] ser tida como sendo “santificação” ou, então, existe alguma “santificação” perceptível que, de forma alguma, possa ser confundida com iniqüidade? É evidente que não possuímos o “Codex”, [não temos em nossas mãos a “Pedra Roseta” — conforme registra a tradução inglesa] para decifrar inequivocamente a escrita secreta do conteúdo da vida humana. É claro que nada sabemos sobre a ceifa que Deus, o Senhor da seara, recolherá aos seus celeiros, juntando aos seus frutos o produto da semeadura de nossa vida. Se não sabemos o que ceifamos, como haveremos de saber o que semeamos? E se não sabemos o que significa a nossa produção, como haveremos de saber o que significa a nossa existência? Se não conhecemos a nossa meta, o nosso fim, como haveremos de conhecer a nossa origem, o nosso começo? É mais do que acaso, ou capricho, quando o ser humano encontra a sua classificação no “SIM” ou em o “NÃO” [de Deus] e neles se reconhece como ímpio ou como santificado, seguindo o seu caminho para achar o seu destino final no céu ou no inferno? E será por acaso que os “bons ficam sempre melhores e os maus sempre piores”? (Harnack). O que significa “bom” e “mau”? Neste crepúsculo [de interrogações vagas e imprecisas] está, manifestamente, o reino da tensão, da polaridade, da alogenia e dualidade; é aqui que o “SIM” e o “NÃO” se opõem como sendo de igual necessidade e de igual valor; [é nesta penumbra que o “Sim” e o Não”] se parecem igualmente divinos (todavia, não nos iludamos com a aparente “necessidade” dessa igualdade nem com esta “identidade divina”!). É neste reino de interrogações [mescla de filosofia e teologia], que a sabedoria [humana] atinge o seu ponto alto, oscilando suavemente, sem atrito, de um lado para outro, entre o “SIM” e o “NÃO”, descobrindo entre eles, o equilíbrio, a compreensão, o acomodamento. Porém, a justiça de Deus, em Jesus Cristo, é a posse do conhecimento que invade esse crepúsculo e aí mesmo incendeia a existência humana. É pela revelação e pela contemplação (do Deus desconhecido) que o homem toma ciência de que é conhecido por Deus e que foi criado por ele. Esta ciência vem daquele SER que o homem não é; daquele SER com o qual o homem não tem relação de continuidade, do qual o homem está separado [como por grande abismo] sem caminho para o contornar ou ponte para o transpor. Esta ciência vem daquele SER que só pode ser compreendido como a origem verdadeira, genuína, da criatura humana e que se manifesta e se revela como NOSSO PAI. Ele é quem torna possível aquilo que é impossível.

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6, 20-21

O Poder da Obediência

A revelação de Deus, e a sua contemplação, é a graça! Pela graça, o homem sabe quem ele mesmo é: “O servo do pecado”; o culpado, a vítima da queda que o afastou de Deus, (para vagar no mundo] “livre” [das injunções] da retidão, sem gozar da luz que vem da palavra de julgamento e de perdão. Esta é a criatura que [o homem, na realidade, já não é, mas] foi. [Agora porém], “libertado do pecado” e “servo de Deus”, ele é [outra criatura]; ele inverteu o curso de sua existência; ao receber a graça, ele foi transformado, movido, deslocado, daqui para acolá. Há um abismo separando o que ele agora “é” daquilo que ele “foi”. A “morte domina o que “foi” e a “vida” preside sobre o que “é”. A manifestação e a contemplação de Deus contém, em si, o passo que vem da morte para a vida, e a vida que vem da morte. Tendo recebido a graça, sabemos o que semeamos; vemos o que significa a nossa vida e conhecemos a nossa origem. Sabemos também qual é a nossa ceifa, qual o significado de nossas obras e qual o alvo e a meta final do teor de nossa existência. O raio de luz que incandesce nossa existência não cintila em vão, pois o nosso ser, nosso saber, pensar e falar, nosso querer e aquilo que realizamos, nossa vida espiritual e histórica, nossos anseios e nossos objetivos, serão iluminados por ele. Serão iluminados, quem sabe, para resistirem incólumes ou, quem sabe, para serem fundidos ou acrisolados; quiçá serão carbonizados, ou então, transmudados em outra substância e, pode também acontecer, sejam totalmente consumidos e aniquilados (todavia não totalmente pois, “NON OMNIS MORIAR”!). Em qualquer hipótese, [este raio de luzi submete a nossa existência a uma prova radical, relacionando o que ela “foi” com o que, agora, “é”; pelo lugar que ela passa a ter, deste ou daquele lado do abismo que a graça revelou; este raio de luz mostra qual será o salário: a vida ou a morte! É assim que se separa a nossa “colheita”. Separam-se o trigo e o joio; tornam-se claros os objetivos verdadeiros dos nossos propósitos. Os caracteres rúnicos do indecifrável teor de nossa vida são, agora, esclarecidos: tudo está determinado pelo que “fomos” ou pelo que “somos”; pela nossa escravidão ao pecado, que agora está extinta, ou pela nossa sujeição a Deus que, também agora, foi instituída. As duas condições não são concomitantes, como também a morte e a vida não podem ocorrer Juntas. Contudo, convém que sempre nos lembremos de que o sentido do que seja esta “morte”, deve ser procurado naquilo que designamos por “vida” e que o sentido do que seja esta “vida” deve ser procurado naquilo que identificamos por “morte”.

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O Poder da Obediência

6, 22-23

Desses extremos — Morte e Vida — cujo significado está contido na revelação e na contemplação de Deus, fica inequivocamente determinado o que sejam “iniqüidade” e “santificação”. Existe, pois, uma iniqüidade absoluta, clara, inequívoca; existe um mal que o ser humano não deve pensar [imaginar], nem querer, nem praticar. “Há coisas das quais, agora, vos enojais”. Há coisas que, embora possíveis, quando iluminadas ao raio de luz que tudo aclarou, resultaram, por assim dizer, como excluídas, proibidas. Proibidas, por que? Porque o seu destino é a “morte”; porque elas provêm da vitalidade daquilo que é mortal; porque elas espalham apenasmente a morte; porque essas coisas só têm o beneplácito da morte; porque tais coisas não podem resistir ao fogo consumidor do qual sobressai a vida que vem da morte. O critério é claro para quem possui a [verdadeira] vida: “O salário do pecado, é a morte”. Existe, também, uma “santificação” absolutamente inequívoca. Há uma colheita, que é para a santificação. Existem, naquilo que o ser humano é, ou tem, ou faz, possibilidades que, por assim dizer, são classificadas como necessárias e convenientes, por Deus. Existe um “bem” em que o ser humano deve pensar; que deve querer e deve praticar, e isto porque esse bem tem o seu início e o seu fim na vida; porque este bem que o ser humano deve querer determina uma existência, um comportamento, um conjunto de ideais, propósitos, obras, ambiente, condições e movimentação que tem a sua origem e o seu fim no rio da vida; não é só o começo e o término deste bem que estão ligados ao rio da vida, mas também o seu ponto intermediário [passageiro, efêmero,] no mundo temporal, onde reina a morte, pois as coisas do mundo não podem obscurecer totalmente os frutos do “bem”, porquanto estes resistem ao fogo consumidor da morte que traz a vida. Talvez traga a vida transformada ou, quem sabe, carbonizada, fundida, acrisolada ou, pode ser, conservada intacta; em qualquer hipótese, porém, subsistindo. Também aqui há um critério para aqueles que dele puderem gozar: “O dom de Deus é a vida eterna, em Jesus Cristo, nosso Senhor”. Assim como a vida e a morte não podem existir juntas, coexistindo uma ao lado da outra, ou interligadas como uma série, ou em cadeia, também a graça e o pecado não podem ser relacionados entre si [nem pode haver intercâmbio entre eles]; não há ponte que transponha o precipício aberto entre os dois; a claridade que a graça traz não tolera qualquer confusão. [Todavia, há os que se libam] na luz apenas crepuscular que pode ser divisada no interior do abismo profundo que existe entre o “bem” e o “mal”, entre o “valor” e o “desvalor”, entre o que é “santo” e o que é “ímpio”. Essa luz não ilumina suficientemente a criatura que não tenha recebido a graça divina e por isso ela não chega a reconhecer a fissura, nem toma cons-

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6, 23

O Poder da Obediência

ciência da separação existente [entre ela e Deus] e não percebe que o único e inequívoco meio de sair do abismo [que a separa da vida] — é aceitar a “nova ordem” [que a graça oferece]. Aqueles que assim vivem, iluminados por essa luz mortiça, buscam uma moral, tentam fazer um rol dos que são pecadores e dos que são justos; farão uma tábua do que é proibido e permitido, pois os objetivos da vida impõem sempre a criação de uma ética, como sendo inexorável necessidade; e cada tentativa [de produzir esse padrão moral] deveria ser a última, a final. No entanto, falham todas, uma após outra, pois é somente mediante o conhecimento de Deus que se atinge a plenitude do valor ético. É então que se percebe nitidamente o que sejam “pecadores” e “justos”. Porém, é pelo “Poder da Obediência” que percebemos a grande possibilidade do impossível, e nos apropriamos dela.

Graça (6, 1-23) Comentários: 6, 1-23 1. No comentário ao versículo 19 o A. diz que ao ser exigido do homem que ponha a totalidade de seu ser à disposição de Deus, está lhe sendo apresentado um imperativo que o próprio sacrifício de Cristo não apresenta neste rigor, pois dá o direito de opção entre a fé e o escândalo; no entanto, é preciso entendê-lo com justeza: Paulo fala “segundo os homens”. Isto é, não podemos concluir que teremos, neste mundo, forças para obedecer a ordem dentro de nossa natureza carnal; se quisermos entender assim, isto é, se concluirmos que vamos viver puros, que “graças a Deus, não pecamos mais”, então não entendemos a ressalva que Paulo faz, e damos azo ao endeusamento da criatura humana que passa a considerar-se (uma vez mais), igual a Deus. O homem não deve esquecer-se que somente morrendo pode alcançar a plenitude da graça; que a pregação é feita “falando como homem” para que a criatura, compreendendo, sinta o impulso para a santificação e saiba que a graça plena, a pureza, a libertação do pecado (ao qual não quer), a realização existencial e plena da nova criatura, que ela vive aqui em espírito, pela fé, ela só gozará plenamente, quando receber a coroa da justiça das mãos do Senhor, o justo juiz. (II Tim. 4, 8). 2. O A. cita a teologia de Schleiermacher, que teve grande influência no pensamento teológico protestante durante todo o século XIX e o primeiro quartel do XX, quando essa influência se apagou pelo impacto da teologia dialética de Barth. (Ver Encic. “Delta-Larousse”, ed. de 1974).

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O Poder da Obediência

6, 1-23

Schleiermacher procurou harmonizar a interpretação religiosa e o pensamento filosófico da classe culta, alemã, de sua época; partindo da tese de que a religião tem a sua origem nas possibilidades humanas, concluiu que, por isso, ela não tem condições para transmitir a mensagem divina, e não pode apresentar as verdades eternas. Na tentativa de “divinizar” a religião, Schleiermacher admitiu uma certa imanência divina, em todas as coisas do mundo: “Não há Deus, sem mundo, nem mundo sem Deus”; Cristo teria sido um mediador, na medida que foi um inovador, e a mediação, hoje, está nas mãos da Igreja de Cristo. É justamente esta pretensão que a Igreja tem (ou pode ser tentada a assumir) de ser ela a promotora da salvação, que Barth critica tão incansavelmente! É esta pretensão que, de certa forma, iguala todas as religiões como se fora um denominador comum, assaltando a divindade pela materialização de Deus ou pela divinização do homem. É a isto que o A. considera como “traição a Cristo”. Fazendo da Igreja (ou da religião) um meio de chegar a Deus, (a união direta que Schleiermacher pretendia, e a comunhão direta que tanto anima os fiéis crentes evangélicos) oculta a verdadeira graça que nos vem desde a cruz, ou melhor, desde a ressurreição de Cristo. Trata-se, exclusivamente de aceitar ou rejeitar o Senhor Jesus. — “Que devo fazer para salvar-me?” — “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e a tua casa!” (At. 16, 30-31). A pessoa que recebeu a graça, também terá normas e preceitos a obedecer; terá religião porque se sentiu constrangida a tomar posição bem definida e definitiva no combate do pecado em si mesma, na personalidade da criatura antiga, do “homem-velho”; ela já não pode aceitar o domínio do pecado, nem conformar-se com ele, embora saiba que não pode arrancar o joio, nem o saberá distinguir com segurança. Todavia, ela sabe o que Deus quer, e isto ela quer também! 3. Finalmente, o A. menciona a “penumbra” que envolve aqueles que não recebem a graça. Por que não a recebem? Porque não a querem; porque preferem achar soluções que lhes parecem mais sonoras, mais sábias, mais cultas, mais liberais, mais tolerantes, mais ecumênicas; menos antigas, menos “bitoladas”, menos fanáticas. Dizem que, afinal. “todas as religiões são iguais”; Deus sendo amor, não condenará os homens, com penas eternas... Ou então, porque as religiões são “invenções” humanas, não vale a pena procurá-las ou ensiná-las.

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6, 1-23

O Poder da Obediência

Nesse sem número de arrazoados e justificativas que o ser humano encontra para não se render a Deus há, freqüentemente, uma parcela de verdade, algumas vezes imediata e outras por inferência remota; é esta parcela que difunde alguma luz: luz crepuscular diferente da luz da aurora, porque não antecede o sol radioso, não dissipa as trevas, mas prenuncia a noite. É nesta meia luz que os homens retêm a verdade com a sua justiça e a humanidade se ilude com a mentira diabólica, — a “mentira perfeita” que Satanás sempre usou: a mistura satanicamente dosada de fragmentos da verdade com a falsidade total. Envolta nessa luz mortiça, anestesia-se a sensibilidade, embotase a consciência, e a criatura goza da paz dos cemitérios e um dia, surpresa, receberá o salário que desde a eternidade foi destinado aos que rejeitam a graça: a morte! Todavia, acima do poder do pecado está o Poder da Ressurreição. A graça é maior do que o pecado; o Poder da Obediência, que vem da ressurreição, é maior do que a força do pecado que vem da rejeição de Deus. Envolta na graça, a criatura redimida sente abrasar-se o seu coração, sente a angústia do pecado e a consciência despertada para amar o bem; e o coração, contrito e humilhado, rendendo-se incondicionalmente a Deus, recebe o Espírito da verdade; já não se turba nem se atemoriza porquanto já goza da paz que o mundo não pode dar, mas Cristo deixou para aqueles que o confessarem. “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”. (João 14, 27). “— Queres ir andando, alegre para o céu, Ignorando todo escuro e denso véu? — Abre o coração e deixa Cristo entrar, E o sol, em ti, raiar!”

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Capítulo VII

LIBERDADE Neste capítulo o Autor analisa a absoluta liberdade que Deus tem para julgar e perdoar a criatura humana; para aplicar a ira divina e para dispensar a sua graça. Esta independência é um atributo da soberania do Criador, que não depende do homem nem se deixa influenciar por atitudes humanas, porém age na criatura conforme lhe aprouver na sua infinita sabedoria, sua incomensurável misericórdia, sua absoluta justiça. Essa é, segundo o A., a LIBERDADE de Deus para agir em nós. Dentro dessa liberdade divina, independentemente de nossa condição carnal, Deus nos revela a sua santa lei, a fim de que saibamos querer o bem. Esse aprendizado da lei divina emana da graça de Deus e se exercita no relacionamento entre a criatura e o Criador: aquela busca, pelos processos ao alcance de sua materialidade, um meio de se achegar diretamente a Deus, quer seja erigindo “Torres de Babel” quer sejam filosofias, religiões, obras pias, renúncias; todas falham e ficam aquém de seu desideratum; todas são, na melhor das hipóteses, obras perecíveis e efêmeras, quando não claramente claudicantes, acintosas a Deus, pecaminosas, dignas da ira divina. Deus, porém “apesar” da nossa pecaminosidade, usa de sua liberdade em nós, proporcionando a religação da criatura com o Criador através de Jesus Cristo, o único mediador entre Deus e os homens. Essa mediação se faz pela fé; a fé é gerada pela fidelidade de Deus; a fidelidade de Deus se faz patente pelo conhecimento da lei. O conhecimento da lei é o arcabouço da religião; por isso a religião é a mais excelente atividade do homem; nela, a criatura se depara com a super-abundante graça divina, porque nela toma ciência da abundância do pecado. É por isto que os subtemas do capítulo versam, diretamente, sobre a RELIGIÃO. Em sua exegese, o A. divide o capítulo em três subtópicos: • O Limite da Religião - Vs. 1 a 6 • O Sentido da Religião - Vs. 7 a 13 • A Realidade da Religião - Vs. 14 a 25 353

7, 1-25

O Limite da Religião

Na primeira parte o A. mostra que a religião não pode transcender o mundo e portanto, não leva o homem ao infinito, até Deus. Na segunda parte, o A. mostra que a religião, ainda que finita, material, perecível, é a mais sublime atividade humana, pois nela a criatura se põe ao encalço da ligação direta com Deus, perdida na tragédia do Éden; todavia, também neste anseio, e justamente por ele, corre o ser humano, e mui particularmente o homem religioso, o risco constante de, reiteradamente, estender a sua mão para tocar o fruto proibido. (ERITIS SICUT DEUS...). Finalmente, na terceira parte o A. demonstra que a religião pura e santa traz à criatura humana a conscientização de sua própria condição; de sua situação humanamente insustentável: o “BEM” que pela religião aprendeu e agora quer praticar, não faz; todavia, o “MAL” que também pela religião aprendeu a não querer, esse pratica. “Miserável homem que sou”. “Quem me livrará”? Então vem Deus em sua liberdade e dá à eterna pergunta a imorredoura resposta: “Graças a Deus, por Jesus Cristo”!

O LIMITE DA RELIGIÃO (1, 1-6) Graça é obediência. Para compreender isto é necessário entender o que significa a ressurreição: é um modo de ser, de ter e de agir da nova criatura que se relaciona com a maneira de ser, ter e agir da criatura velha, assim como a vida se relaciona com a morte. Mediante a graça a nossa existência entra para a luz de uma alternativa cortante, decisiva: (ou... ou!); entra no âmbito de sua última ou melhor, de sua “impossível” possibilidade. Graça é o relacionamento de Deus com o homem; de Deus, quando surge como o batalhador vitorioso, que não admite posição neutra, eqüidistante, intermediária ou de compromisso; é o Deus do qual não se pode zombar; que é um fogo consumidor e não nos deve resposta: graça é o relacionamento com o Deus que diz “SIM” e “AMÉM” enquanto nós podemos apenas balbuciar os nossos Sim e Não, e o nosso “como se”. O relacionamento de Deus com o homem, mediante a graça, significa que à minha porta surgiu um ser humano justificado, redimido, um ser vivo e bom! E o “homem novo”. E “novo” em Jesus Cristo e demanda entrada em minha existência; todavia, os seus atributos, suas características e qualidades são o que eu nunca fui, não sou e jamais serei! Não se trata de algo material, mas também não é um fantasma, um ser metafísico; nem é uma outra pessoa, uma segunda pessoa, a meu lado: essa pessoa que assim se apresenta à minha porta e força a sua entrada, sou eu mesmo! Sou eu, qual sou em Deus, qual sou na minha existência invisível; é por isto que insiste e tem pressa em entrar e não quer, e não pode esperar um instante sequer até que eu, [o “homem velho”] lhe abra a porta.

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O Limite da Religião

7, 1-6

Receber a graça é estar exposto a toda essa urgência, a esta solicitação, a esta veemência, a esta abordagem [e também] a esta promessa [implícita], pois significa que o Evangelho de Cristo foi ouvido. O exemplo de Abraão (Cap. 4) bem esclarece, “historicamente” que esta graça se realiza sempre segundo a invisível e inaudita liberdade de Deus; que ela precisa ser compreendida e contemplada, sempre de novo, como milagre, como início, como “criação” [divina]; que ela deve ser procurada e será encontrada, apenas, na liberdade de Deus — [nesta ação que tem sua origem somente em Deus e na sua livre vontade]. Fizemos mais atrás amplas considerações sobre a religião, como sendo a última possibilidade humana. (Ver 2, 1-13; 2, 14-19; 3, 1-20; 3, 27-30 e 31; 4, 9-12; 4, 13-17; 5, 13-20 e 6. 14-15). Temos, agora, que demonstrar que, sendo humana, a religião é também uma possibilidade restrita, limitada e que, mais ainda, em sua estreiteza e ineficácia, a religião assegura e autentica a liberdade de Deus para conceder a graça. V. 1 Ou ignorais, irmãos, — eu falo a pessoas que conhecem a lei, — como a lei tem domínio sobre os homens, durante toda sua vida? “Irmãos, eu falo a pessoas que conhecem a lei”. Os cristãos de Roma conhecem e sabem quais são as possibilidades da religião. Paulo também as conhece, e sabe; em diferentes graus e com diferentes alcances, todos fazem uso dela. Um véu de religiosidade, mais tênue ou mais denso, está sobre todos os homens, pois o Deus Desconhecido é o Deus tanto de judeus como de gentios. A inevitável recordação que o ser humano tem de sua perdida união com Deus cria sempre experiências morais e históricas [que o impelem à religião]. O temor, o amor, o entusiasmo humano por tudo que fica acima dos homens são quais impressões em negativo da unidade invisível e imaterial da criatura com o Cristo. A graça não deixa de acarretar experiências de sua manifestação e não está dissociada da religião, da moral, do eclesiasticismo e da dogmática que se cristalizam em torno dessas experiências. “Ouvimos” e “cremos”; obedecemos, confessamos, oramos, falamos e escrevemos, aqui com maior positividade, ali de forma mais negativa, (nunca sem paixão!). Filiamo-nos a esta ou àquela denominação; passamos a ser isto ou aquilo; colocamo-nos em lugar mais ou menos definido na feira das religiões; temos uma ideologia e somos morigerados; mudando de quando em quando [de uma para outra denominação], mostramos, a quem souber ver, que não somos

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7, 1

O Limite da Religião

“estreitos”, e mostramos também que não ficamos agarrados sempre ao mesmo ponto de vista. Todavia, não podemos impedir que nossos pés estejam sempre em contato com o chão. Como seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não podemos estar indenes à influência religiosa. Se pretendermos aparentar absoluta indiferença à religião, estaremos tentando uma empreitada pouco prudente e pouco promissora pois, embora possamos passar de um compartimento para outro, não poderemos sair da casa. [Ora, quando concluirmos que a despeito da mobilidade que temos e que exibimos, passando de um ramo para outro, estamos sempre encerrados em alguma forma de expressão religiosa] compreenderemos que esta última e inescapável possibilidade humana, mesmo em suas alternativas mais ousadas, mais agudas, mais fortes, mais “impossíveis” é sempre uma possibilidade terrena, restrita e, por isto, grandemente perigosa, pois testifica uma possibilidade de ordem superior, que a delimita; portanto esta possibilidade religiosa está também envolta em promessa. Vemos [na restrição das possibilidades religiosas] que a liberdade na qual nos é dada a graça está justamente do outro lado da culminância da humanidade, isto é, além da religião. A liberdade [que Deus tem para distribuir a sua graça, sem levarem conta conceitos e preconceitos humanos] não é uma possibilidade adicional [que se oferece à humanidade] porém é uma impossibilidade [absoluta para os homens] que só se torna possível em Deus, sem ser tangida pela dubiedade da religião, pois, “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus.” (6, 23). “Compreendeis isto? Ou não percebeis que a lei tem domínio sobre vós, durante toda a vida?” O homem religioso precisa cambiar constantemente suas cores, qual gotícula de óleo sobre a água, aos raios do sol: a cada instante ele oscila entre os mais altos páramos e os mais profundos abismos; entre Moisés e Arão; entre Paulo e Saulo; entre ser um entusiasta das coisas que são de Deus, e um pessimista; entre profeta e fariseu; entre sacerdote e leguleio da religião. (O antônimo que o A. usa, para sacerdote não encontra tradução fiel. Entendo que ele pretende indicar como opostos, o ministro fiel e dedicado, verdadeiramente interessado em apresentar a mensagem e o obreiro servil, interesseiro, vulgar (que se atém ao simples desempenho de obrigações profissionais) quiçá, legalista e intransigente, quando não apenas relapso e descuidoso]. O homem religioso pode apresentar a mais positiva expressão do conteúdo divino na realidade humana e pode, também, abrigar o mais amplo desdobramento da negação humana à realidade de Deus. 356

O Limite da Religião

7, 1

O homem religioso é sempre positivo e negativo; é positivo, justamente por ser negativo. [Ele é positivo porque testifica o conteúdo divino na realidade humana e é negativo mediante o confronto de sua natureza humana, com a realidade de Deus. (Apud trad. inglesa)]. [Paradoxalmente], é justamente na religião que não se toma em consideração nem “obediência”, nem “ressurreição”, nem “Deus”, porquanto o que aí assim se apresenta, ou se nomeia, é sempre algo que está relacionado com outra coisa, ou em oposição a ela; é como se fosse um pólo com relação a outro, ou uma grandeza coexistente com outra, um “sim”, relacionado com algum “não”; todavia não é a alternativa que exclui e suprime todas as outras; não é a alternativa decisiva [que nem seria alternativa por ser exclusiva, sem paralelos, a única que realmente conta]. O que a religião apresenta, não é “a possibilidade” que já suprimiu a alternativa; não é o “SIM” [divino] que está além do “Sim” e do “Não” do mundo; não é a força, o poder, da conversão da morte para a vida. É a possibilidade religiosa que, entre todas as possibilidades humanas, mais se destaca e se caracteriza pelo dualismo entre o aquém e o além, entre a intenção e a ação, entre aquilo que defendemos e aquilo que de fato é; entre a verdade e a realidade que reina dentro da religião.É na religião que existe a abundância do pecado (5, 20) pois esse Deus [que a religião freqüentemente apresenta e] que é alguma coisa em oposição a outra, que é um de dois pólos, que é um “sim” em oposição a um determinado “não”, que é um Deus que não é totalmente livre e independente, um Deus que não é sobrepujante, vitorioso, único, este é o “NÃO-DEUS”, o Deus deste mundo. “Estar debaixo da lei é estar sob pecado” (Kuehl) e o homem está debaixo da lei “enquanto viver”; isto é, enquanto a sua existência, o seu ser, estiver encerrado entre os limites do berço e do túmulo. É com esta vida [delimitada entre os dias do nascimento e da morte], que concomitantemente se inicia e termina o domínio da lei. A limitação da religião e da inevitável problemática em que ela situa a criatura coincide, precipuamente, com a limitação das possibilidades humanas. Enquanto não me restar outra opção senão a de movimentar-me dentro do limite das possibilidades humanas, também não tenho alternativa ou escolha que não a de ser (ou, de alguma forma, aparentar ser) pessoa religiosa. Na melhor das hipóteses, um “São Francisco” ou, na pior, o “Grande Inquisidor”; ou então, (quem sabe?) tendo a intenção de ser um Blumhardt mas sendo, de fato, um Brand. [Possivelmente o A. cita São Francisco para estereotipar a renúncia, e o “Grande Inquisidor” para se referir ao fanatismo violento. Uma referência posterior evidencia que este “grande Inquisidor” é o personagem que Dostoievski apresenta no cap. 5 do livro V de “Irmãos Karamazov” 357

7, 1-4

O Limite da Religião

que, por sua vez, retrata com grande maestria, o próprio Torquemada, o feroz “defensor da fé”. Para melhor compreender o pensamento do A., ou para apreciar com maior justeza o seu raciocínio, talvez seja interessante lembrar que Blumhardt (Johannes Cristoph) tornou-se célebre na segunda metade do século XIX, primeiramente por suas “expulsões de demônios” (ver nota de rodapé da trad. inglesa, página 312); mais tarde celebrizou-se como teólogo (quiçá de tendência socialista) e a sua influência sobre Barth pode ser observada pela abundância de citações que, dele, o A. faz. (Parece-me que Barth o cita, aqui, como protótipo do religioso objetivo). Finalmente diz o A. — aplicando o exemplo a si mesmo — que procurando, em sua religiosidade, emular Blumhardt, ele certamente apenas conseguiria (ou conseguiu) ficar nas pegadas de Brand. Tratase do personagem de um poema de Ibsen, conforme bem o diz a tradução inglesa. Esse poema trai um certo misticismo do mundo cristão, com vistas à implantação de um cristianismo mais profundo, mediante a pregação da genuinidade e inteireza de coração. “Como haveria eu de me proteger (a mim!) contra a mui justificada suspeita de que eu poderia ser muito mais “negativo” que “positivo”? “Não percebeis” que justamente neste cerceamento das possibilidades da religião, com o seu “sim” e o seu “não”, abre-se a porta para a preponderância ao “SIM” que não me diz respeito — que não se refere ao homem “enquanto ele viver” mas é dirigido ao “homem novo”, à “nova criatura” que veio, da morte, para a vida? Vs. 2-4 Ora, a mulher casada está ligada ao marido pela lei, enquanto ele viver; mas, se ele morrer ficará desobrigada da lei conjugal. De sorte que se ela se unir a outro homem enquanto o marido for vivo, será considerada adúltera; porém morrendo o marido, estará livre dessa lei. Assim também vós, meus irmãos, fostes arrancados, pela morte, da vida em que domina a lei, a saber pela morte do corpo de Cristo, afim de que fôsseis unidos a outro, isto é, àquele que ressurgiu dos mortos, para que constituíssemos fruto para Deus. [A tradução de Almeida, para o versículo 4, escreve: “Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, àquele que ressuscitou dentre os mortos, e deste modo frutifiquemos para Deus”.] Esclareçamos o sentido diacrítico da expressão “enquanto viver” (7, 1) mediante uma analogia: “Enquanto viver”, mas apenas enquanto viver!

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O Limite da Religião

7, 2-4

A prescrição das coisas que são válidas nesta vida, depende da morte. Assim, estando vivo, o marido caracteriza sua mulher como sua esposa e a obriga para com ele; se na vigência dessa condição ela se unir a outro homem, será considerada infiel e adúltera. Porém, com a morte do marido fica a esposa livre [da primitiva obrigação legal] e, se então ela se unir a outro homem, já não será tida por infiel ou adúltera. Portanto, na legítima ordenança da lei moral do matrimônio [cada cônjuge] está preso à contingência da sobrevivência da outra parte contraente. [Paulo baseia seus exemplos materiais na prática legal da época. Dentro desta ordem estabelecida, as partes tem de sujeitar-se à condição do trato conjugal sem outra opção; todavia, é a própria ordem existente que libera a parte sobrevivente quando um dos cônjuges falecer, ficando o remanescente livre para, inclusive, optar por outra ligação matrimonial. A morte representa pois, no caso figurado, a criação de situação inteiramente nova, radicalmente diferente. Aliás, representa um retorno do sobrevivente a seu estado anterior ao do contrato que o ligou ao cônjuge falecido. Esta foi a analogia [a parábola]. Agora, vejamos a aplicação: “Assim, também vós fostes libertados da lei, pela morte do corpo de Cristo”. Sim, sois vós que recebestes a graça, que estais sujeitos ao jugo e à libertação que a morte encerra. Sois vós a criatura que é sujeita a lei, enquanto viver; porém, apenas “enquanto viver”. Enquanto estiverdes enquadrados na ordem que “precisa” existir no relacionamento entre Deus e os homens e tiverdes as possibilidades peculiares à humanidade, inclusive a da religião, que é a mais importante de todas; enquanto estiverdes de baixo do pecado, e portanto sujeitos à lei, estareis cerceados, acorrentados, aprisionados pela problemática da religião e estareis inarredavelmente comprometidos com ela, (como a esposa está comprometida com seu marido, enquanto ele não morrer). Todavia, (assim como a mulher fica desobrigada de seus compromissos e deveres com o marido, quando ele morrer), quando vós nessa ordem estabelecida não fordes quais nela realmente sois, mas estiverdes debaixo da graça e já não precisardes ficar sujeitos à lei, quando estiverdes fora dessa ordem que “precisa” existir no relacionamento entre Deus e os homens, então estareis livres das peias que vos cerceavam, libertos, abertos para receber e gozar da unidade existencial eterna, para a essencialidade, a claridade e a plenitude da possibilidade que vem de Deus, e que está além da problemática religiosa. Acaso estais, a um só tempo, cercados e desimpedidos, atados e soltos, prisioneiros e livres? Ou estais transformados, convertidos, postos em nova direção?

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Sim. Tudo isto acontece pela graça de Cristo pois, assimilando a Cristo sois assimilados pela sua morte — ceifados pela morte com o seu corpo material. Todas as possibilidades humanas, inclusive religiosa, são rendidas e oferecidas a Deus no alto do Gólgota. Morre aquele que estava sujeito à lei (Gál. 4, 4), o Cristo que, com todo o Israel reto e piedoso de seu tempo, se submeteu ao batismo do arrependimento ministrado por João; ele, o Profeta, o Sábio, o Mestre, o Amigo da humanidade, o Messias Rei, morre, para que viva o Filho de Deus. Com a morte do Cristo, segundo a lei, cumpriu-se a mais sublime, a última possibilidade humana: a possibilidade de ser uma pessoa crente, piedosa, espiritual, votada à oração. E o cumprimento desta possibilidade se dá mediante a sua total extinção porquanto, no Gólgota, também a pessoa religiosa — a despeito de tudo que ela seja, quanto tenha, ou faça — ao próprio Deus, e somente a Deus, tributa honra, louvor e glória. Juntamente com o corpo humano de Cristo, também nós morremos para a lei, e somos arrancados, pela morte, da vida onde a lei impera. Vista desde a cruz, a religião, como realidade histórico-espiritual, na forma desta ou daquela conduta humana, visível, é algo que deve ser removido. (Col. 2, 14). [As ordenanças foram removidas, encravadas por Cristo, na cruz...]. A criatura humana não comparece perante Deus como criatura religiosa, nem em qualquer outra qualidade ou qualificação humana, porém mediante aquela natureza divina com a qual também Cristo se apresentou ao Pai, quando sua “percepção religiosa” o levou ao reconhecimento de que estava abandonado por Deus. É na cruz, na morte de Cristo, que se patenteia a anulação da criatura — (justamente da criatura religiosa) e, também da cruz, da morte de Cristo, recebemos a certeza da reconciliação, do perdão, da justificação e da redenção. Da morte, a vida! A morte quer dizer “esta” morte. Portanto, enquanto vivermos, enquanto formos quais aqui somos (7, 1), sujeitos à lei, envolvidos na problemática da religião e arrolados no seu jogo promissor e perigoso de “sim” e “não”, na total ambigüidade da história e das experiências religiosas, nada podemos fazer para sair dessa situação, como também não pode a mulher casar-se com outro homem enquanto estiver vivo seu marido. Porém, se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos desde a cruz, já não pertencermos a este mundo mas “formos o que não somos”, isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já não estamos presos às possibilidades [restritas] que a religião oferece, nem às suas exigências; então já estamos livres de toda e qualquer imposição humana e, assim como a esposa mediante a morte do marido se libertou dos laços que a

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prendiam a ele, assim como a viúva ficou livre para se unir a outro marido, também nós [pela morte com Cristo] obtivemos a liberdade para seguir o caminho onde não há dualismo: “Para pertencermos a outro, àquele que ressurgiu dos mortos, para que frutifiquemos para Deus”. Este “outro” é o que fica em contraste àquilo que representa o ponto máximo das possibilidades humanas. (O “outro” é o Cristo ressurrecto; é aquele que atingiu o máximo das possibilidades humanas, aquele que cumpriu a lei], e que é representado no “corpo vivo”, [humano], de Jesus, o qual preencheu e cumpriu os preceitos e feitos humanos que a religião exige, colocando-nos, portanto, além deles, tirando os grilhões que nos atavam, abrindo as cadeias que nos seguravam, descerrando as algemas e nos libertando! Por esta libertação, vemos, nele o “Poder da Obediência”, o “Poder da Ressurreição”. Nesta limpeza de fronteiras é necessário que primeiramente fique claro para nós o que é a liberdade de Deus na qual se fundamenta a dádiva da graça, considerando o fato de que a graça está para a religião assim como a vida está para a morte. Não será como pessoas religiosas que haveremos de conseguir [cumprir ou] obedecer a estranha ordem de, na qualidade de “libertos do pecado”, e como “servos de Deus” santificarmos os nossos frutos por meio dos nossos pensamentos, nosso querer e nossas obras (6, 22); esses frutos, que Deus juntará em seus celeiros, somente poderão ser produzidos por aqueles que receberam a graça divina da paz que está acima de todo entendimento; são frutos supernos que só aqueles que vieram da morte para a vida, podem produzir. Eis que Paulo ousa dirigir-se aos que, como ele próprio, “conhecem a lei” (7, 1) — (e a conhecem muito bem) tratando-os por “meus irmãos” e escrevendo-lhes como a pessoas que também conhecem a invisível fundamentação em Deus que há na passagem de Cristo da crucificação para a ressurreição, e que está além do limite das possibilidades conhecidas da religião. Vs. 5 e 6 Porque enquanto estávamos na carne operava em nossos membros juntamente com a lei, a energia dada pela paixão do pecado frutificando para a morte. Agora, porém, mortos para aquilo que nos mantinha presos, escapamos do alcance da lei, de modo que somos servos segundo o novo sentido do espírito e não do antigo sentido da letra.

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[A tradução de Almeida escreve assim: “Porque quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas, postas em realce pela lei, operavam em nossos membros a fim de frutificarem para a morte. Agora porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra”]. A frutificação para Deus (6, 22 e 7, 4), (o “pensar”, ou “querer” ou “fazer” digno de (“santificação não é possível sem a graça fundamentada na liberdade de Deus). O ser humano como tal e portanto também a pessoa religiosa, é carnal, isto é, seu pensamento, sua vontade e suas obras pertencem ao mundo e não alcançam qualificação [perante Deus] ou, mais apropriadamente, são da mais alta impiedade e pecaminosidade; são características que afastam a criatura de Deus e a conduzem para a morte, tanto mais assim quanto maior for o seu sonho de se assemelhar a Deus. O homem senhor de si mesmo; o homem que se considera reto, que não tem o espírito quebrantado, que considera estar firme sobre seus pés, que ainda não saiu coxo, trôpego, nem caolho das escaramuças e lutas com o escândalo, este sim, é um homem, existencialmente, sem Deus. O seu vigor e a energia das paixões pecaminosas e seus apetites são os do corpo mortal (6, 12) no qual as paixões mais elevadas [as superiores], como por exemplo a animação religiosa, se distinguem das inferiores (digamos da indolência), apenas por questão de graduação. Sem o perdão final tanto é desagradável e suspeita a emoção erótica como a política; tanto a emoção ética [a moral] como a estética [ou o culto ao belo]. O que se haveria de coibir é o excesso nas paixões; é a falta de moderação. Ora, como as paixões do pecado se originam do vigor da carne mortal, o seu impulso, a sua energia intrínseca, o seu vapor, não podem produzir senão frutos para a morte, se [esta corrida] não for salva pela ressurreição. As paixões humanas [vis ou nobres] objetivam fins, ideais e realizações que têm apenas expressão e sentido temporal e não se projetam para a eternidade; são paixões que não podem sobreviver à crise de vida e morte a que são submetidas todas as coisas. Ora, “a lei” em todos os acontecimentos do mundo carnal opera como elemento propulsor e não como freio; ela é o apogeu da humanidade, em seu terrível sentido duplo. [É o zênite e o nadir; pode ser o maior bem e o pior mal]. Depois de havermos verificado qual o sentido e a direção que tomam os acontecimentos do mundo sob os auspícios da lei, vejamos qual o papel da religião.

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A religião é uma atividade (ou possibilidade) humana que, sem dúvida, se opõe às paixões, mas também ela está contida no mundo do pecado. A rigor, Feuerbach tem razão: na última, na maior, na mais íntima possibilidade que se abre ao ser humano, — na religião e justamente nela, avultam as paixões do pecado; é precisamente aí que elas são despertadas e postas em ação. Todas as paixões humanas, desta ou daquela forma, são a sobrevivência daquela paixão original: “ERITIS SICUT DEUS”! Esta paixão encontra solo fértil na religião e medra facilmente nas experiências e nos eventos que a vida religiosa oferece. Pela lei, o homem se torna pecador! (7, 7-13). Haverá, acaso, um exemplo mais forte dessa paixão [da criatura em igualar-se ao Criador] do que a lenda de Prometeu, roubando o fogo de Zeus? É evidente que esse fogo, que foi furtado, em nada se aproxima do fogo consumidor de Deus; é apenas um lume do qual se ergue determinada fumaça, que vai juntar-se a outras muitas névoas, vapores, nuvens, algumas mais espessas e coloridas, outras mais tênues e pálidas, todas estendendo o seu manto sobre a planura humana; diversas, porém não totalmente diferentes entre si; todavia nenhuma sequer parecida com o calor abrasador [com a coluna de fogo] que impulsiona o passo que vai da vida para a morte e consome todas as paixões do mundo; antes, esses sinais de fogo são expressões da pretensão de todos: o desejo de coroar as emoções e paixões terrenas com a auréola da eternidade; ou são, talvez, a manifestação da própria paixão pela eternidade, da qual recebem o seu verdadeiro sustentáculo e a mais alta consagração. Da conscientização religiosa não resulta, necessariamente, o desejo do pensar, querer ou agir como Deus, [o desejo de ser igual a Deus], mas ela induz um certo raciocínio objetivo, ainda que estranho. Esse raciocínio leva a uma conclusão impressionante, muito lógica e por isso, por assim dizer, inevitável: em primeiro lugar a pessoa conclui que tanto pode ter como deixar de ter vida religiosa; e então deduz que, se tiver, fará uma coisa boa para si e, portanto, será justificada [por Deus], fortalecida, confirmada em si mesma; será amparada para seu próprio benefício, [aperfeiçoada] em suas aptidões, [exaltada e melhor aproveitada] em suas atribuições e [melhor sucedida] em seus esforços. Verifica-se assim, mais uma vez, que a possibilidade religiosa, muito longe de revogar a existência do homem, de desataviá-lo das vestes mundanas e de o colocar contra a parede [para um encontro direto com Deus] transformando-o [em nova criatura], age sobre o indivíduo como droga prudentemente administrada para a preservação das ilusões que são mui caras ao homem sem Deus.

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É daí que procede e se explica a surpreendente fartura da “messe para a morte”, que a religião produz. Qual a outra atividade humana que, em seu desdobramento externo, tenha maior semelhança com a morte, do que a religião? Qual tem vida mais breve? [Qual é mais efêmera?] Em qual campo de atividades humanas existem mais sepulturas que na história da apologética cristã, de sua dogmática, de sua ética, ou de seu ensino social? Esta evidência não pode ser esmagada: “A lei suscita a ira”! (4, 15). É mediante esta evidência que pode, e precisa ficar esclarecido qual é o limite da religião. “Agora, porém, escapamos do alcance da lei”! Do que se trata aqui? Seria “uma descrição da experiência do batismo”? (Kuehl). Absolutamente não! Porém ousamos, novamente (conforme já o fizemos sob 6, 19) dizer de nós mesmos o que ninguém pode dizer a seu próprio respeito: dizer que estamos além desta última possibilidade humana; afirmar que estamos além da possibilidade religiosa dos homens. Dizemos isto com plena consciência da nossa ousadia pois estamos rompendo as barreiras que nós mesmos havíamos reconhecido (7, 1); no entanto, somos constrangidos a isso. O fato de estarmos debaixo da graça de Deus (6, 14) não significa que haveremos de ter um determinado padrão de comportamento, ou uma certa conduta espiritual, ou ainda tal ou qual atividade no mundo [que nos fosse imposta pela graça ou que dela nos adviesse como sua conseqüência lógica]; nem tampouco significa que haveremos de gozar de certas experiências especiais. Todavia, por estarmos debaixo da graça divina “somos” quais “ainda não somos”, e isto não porque sejamos livres para tanto, mas pela liberdade de Deus. É pela liberdade de Deus que já não nos preocupamos com a relatividade do sentido de nossas experiências e com a relatividade de nossa história religiosa. É pela liberdade de Deus, que a criatura alcança o instante [supremo e] eterno quando ela reconhece a Deus [como seu Criador] e vê na ressurreição [o seu Salvador]; é nesse instante que o céu se abre para revelar, não o que o ser humano deve querer, pensar ou fazer [nem tampouco para libertar o homem de suas paixões] mas [para instalar] a liberdade de Deus para querer, pensar e operar na criatura, conforme lhe aprouver. [“Fala, Senhor, porque o teu servo ouve”! (I Sam.3, 9)]. É em virtude desta liberdade que já não nos preocupamos, nem nos embaraçamos com as contradições da religião e não nos entristecemos nem nos

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perturbamos com a duvidosa afinidade que a religião tem com as paixões do pecado. É verdade que, [depois desse Instante], continuamos ainda sob a sombra da lei; “agora porém” (3, 21) volvemos os olhos para traz e ao clarão dessa luz [a luz da liberdade de Deus, em nós], contemplamos a lei [a religião] e a sua dialética, como algo que já não é. Continuamos ainda sacudidos, impelidos e arremessados de um lado para outro pelas peripécias da vida religiosa — (que todos conhecemos em maior ou menor grau); todavia, do meio dessa agitação toda, podemos estender nossas mãos para o local tranqüilo, imóvel, onde o pêndulo repousa. Embora ainda continuemos envolvidos (e confusos) na trama dos acontecimentos religiosos onde tudo (tudo!) é humano, já estamos — [não nós, mas na qualidade daqueles que ainda não somos] situados lá, onde não há ambigüidade nem polarização; estamos, (pela graça da reconciliação que nos restaura na condição de filhos e que foi peculiar ao homem edênico), na origem da história; todavia estamos também no final da história [no FUTURUM AETERNUM, pela redenção em Cristo Jesus]. Nessa posição Peculiar [a quem se apropria — ou apropriou — da graça de Deus] desaparece toda condicionalidade e toda comparação restritiva; ali não há mais “assim como”; desaparece o reflexo falso e o brilho incerto e inconstante, por que Deus é tudo em todos. Por isso a temporalidade, da qual não podemos escapar, se depara ante nós como um todo isolado e cercado pelo dia de Jesus Cristo e nós, finalmente, nos sentimos libertados da rede humana (por demais humana) que, justamente por sermos religiosos, mais fortemente nos estrangula e sufoca. Libertados?! Sem dúvida, falando como homem (6. 19). já dissemos demais! O que quer dizer libertados? e “ finalmente libertados”? Se com tais expressões quisermos indicar qualquer qualidade ou característica visível em nós ou em nossos semelhantes, então estamos de novo no âmbito da religião e é “religião” o que tais expressões passam a significar: é a lei, sempre a lei, em formas e possibilidades sempre novas. Quem há, nascido de mulher, que não seja sujeito à lei enquanto viver, como Cristo o foi? Quem seria tal “super-homem”? Não sabemos o que dizemos e dizemos o que não sabemos quando afirmamos que o lugar onde estamos, em que nos achamos, não é território sujeito à lei, ou então, se dissermos que a religião é uma possibilidade superada, ultrapassada, liquidada. Contudo, o afirmamos! O afirmamos como o acontecimento do “impossível” como também temos afirmado a realização do inaudito imperativo da santificação (6, 12-31).

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Todavia, falar deste modo é falar muito além do [modo e tom] que convém aos lábios e ouvidos humanos; falamos movidos pela verdade que nos atinge, qual flecha desferida da outra margem do rio que nós [como criaturas deste mundo] não haveremos de pisar. É a verdade que vem do outro lado da divisa que não podemos transpor; todavia, de lá ela nos fala e ai de nós se nos calarmos e não proclamarmos o que precisa ser dito, se não falarmos daquilo cuja invisibilidade, apenas, pressentimos! Contudo, o dizemos! Dizê-mo-lo como prisioneiros, todavia livres; como cegos, porém vendo; como os que morrem, e eis que vivemos. Ora, não somos nós que o dizemos: CRISTO é o cumprimento e o fim da lei; é o limite extremo da religião. “Mortos para aquilo que nos mantinha presos”. O limite da religião, a sua fronteira extrema., é a linha da morte; ela separa o campo das possibilidades humanas daquilo que [só] é possível a Deus; é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e o espírito; entre temporalidade e a eternidade. Somente saímos do âmbito da lei na medida em que somos golpeados pela espada aguda e pesada da morte, isto é, na medida em que o poder e o significado da cruz, como sinal da justiça e da graça de Deus, projetarem sua sombra sobre nós. O que nos mantinha presos ao jugo da lei era o desejo de esquecer que temos de morrer, era o anseio de nos esquivarmos do “MEMENTO MORI”! (E isto tentávamos na mais profunda e mais ativa religiosidade) considerando que nosso desejo fosse límpido, íntegro, retilíneo, quando na realidade, e por isso mesmo, era turvo, roto, tortuoso. É no âmbito desse anseio que viceja a religião, na qualidade de última possibilidade humana. Quem está livre dela? Acaso não é evidente que a característica mais própria da realidade histórico-espiritual [do mundo], a mais profunda, a última, é sempre este desejo atrevido, indestrutível e vulgar, de não morrer, que encontramos por toda parte, também no homem religioso, e principalmente nele? Ainda bem que a religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos dela. [A tradução inglesa diz: “Os homens agarram-se à religião com tenacidade burguesa, supondo ser ela a última palavra da alma e do sentimento, indestrutível e imortal”.] Ainda bem que por toda parte, e acima de tudo, vemos a religião cerceada — radicalmente cerceada — e posta em dúvida. Vemos a sombra da morte pairando sempre sobre este anseio indestrutível [de fugir dela] quer o admitamos

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ou não, e esta situação no mundo temporal, da matéria e dos homens, jamais esteve oculta aos observadores sensatos, desde Jó até Dostoiewski. Se nesta sombra da morte que nos envolve reconhecermos nossa afinidade com Cristo (6, 5), então sabemos (na qualidade de quem não sabe!) o que fazemos e o que dizemos quando afirmamos que estamos fora do alcance da lei. Podemos estar, ainda, debaixo da lei, como convém, porém estamos, muito mais, debaixo da graça. Então seremos religiosos como se não o fôssemos. Viveremos ao lado de nossas experiências religiosas, ou passaremos por elas [sem delas fazermos centros de impacto para nós mesmos e, muito menos, para aqueles que nos cercam]. Então teremos condições para olhar um pouco por cima de nós mesmos, por cima daquilo que existe em nós, que venha de nós e por nosso intermédio, vendo um pouco mais longe, talvez com um leve sorriso e também um pouco de pesar. [Quiçá um leve sorriso pelo gozo da inefável paz de Deus e o leve pesar por ainda estarmos presos ao corpo sujeito à lei]. Pode ser que então compreendamos, pela própria religião, a sua fundamental insignificância, sua irrelevância, sua falta de solenidade apropriada, sua consciente limitação. Também pode ser que não. Todavia, quer sim, quer não, ela já não será trágica [fatalista, aterradora] nem triunfante [arrogante e pretenciosa]; nem sequer pretenderá ter razão, mas apontará para além de si mesma dando testemunho de sua transcendentalidade onde quer que se encontre o homem sujeito à lei. O caminho da religião passa pela profecia, pelo dom de línguas, pela interpretação de mistérios, pela crença, pelo sacrifício do corpo, pela caridade, e assim por diante. A religião, quase que só pode ser caracterizada por negações, no entanto é designada como um “caminho sobremodo excelente” (1 Cor. 12, 31 seg. parte): o caminho do amor! Um caminho? Não! de modo nenhum, pois não é visível; não pode ser tomado; não pode ser palmilhado, nem percorrido. Contudo, é um caminho! É a sombra que, desde a cruz, se projeta sobre toda a humanidade “sadia”, e cria, invisivelmente,justamente no ambiente [onde a sadia resistência é] mais tenaz, condições para seu abalo, seu desencrustamento, revelando a possibilidade de Deus, o Espírito Divino, a Eternidade. “Mortos para aquilo que nos mantinha cativos”: isto é, mortos para a carne. Seja-nos invisivelmente perceptível que aqui se trata da indubitável, da segura, da vitoriosa liberdade de Deus, que nos contém, nos move e nos dirige, e que diz “basta” às imensas vagas do pecado — que encobrem as mais altas montanhas da sentimentalidade humana.

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“De modo que somos, agora, servos segundo o novo sentido do Espírito e não no antigo sentido da letra”. Santificai-vos! Sede servos de Deus! É assim que ordena o imperativo da graça (6, 22). No “antigo sentido da letra”, esta ordem significaria uma nova modalidade religiosa, talvez mais perfeita, mais apurada; porém, segundo “o novo sentido do espírito”, ela significa o que estávamos tentando demonstrar: a possibilidade que começa exatamente do outro lado da linha limite de todas as possibilidades religiosas do mundo, novas e velhas — lá onde terminam as possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus. Procuramos entender a limitação da religião; é ela uma grandeza negativa? Sim! — todavia ela tem também o seu lado positivo: o próprio Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. (8, 26). Comentários: 7, 1-6 1. A afirmação do A. de que “é justamente na religião que não se toma em consideração, nem a obediência, nem a ressurreição, nem Deus”, certamente parece estranha embora seja facilmente compreensível quando aplicada a “cultos” e “seitas” dominados por fanatismos e crendices. Contudo, nas religiões mais evoluídas, especialmente nas que têm sua origem no conceito teológico que o judaísmo trouxe e legou ao mundo, a idéia fundamental é a vida eterna e, racionalmente, poder-se-ia talvez dizer que elas todas se apóiam no plano definido pelos três pontos citados: obediência (aos preceitos religiosos); ressurreição (do fiel, para uma outra vida); e, Deus, um Senhor supremo. Essa omissão, portanto, não existe teoricamente; não é proclamada pela Igreja, antes é firmemente negada por ela; contudo subsiste e é prontamente detectável quando forem seguidas interpretações e práticas que obliteram e deformam os verdadeiros conceitos de Obediência, Ressurreição e Deus, substituindo-os pelos valores duvidosos que religiões molificadas ou modificadas segundo critérios humanos, apresentarem. A obediência a que o A. se refere é o exercício, em nossos membros, do poder que vem da graça, que é dom gratuito de Deus; (ver exegese 6, 12 23). Semelhantemente, a Ressurreição, é o poder que dá novidade de vida, é a situação do “homem novo”, em Deus; (ver exegese de 6, 1-12). Finalmente, Deus não é este ser “familiar” à criatura humana que o criou a sua própria imagem e semelhança,

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porém é o Deus que criou o céu e a terra, o Deus em quem nos movemos, existimos e vivemos: (Atos 17. 23-28). Quais são os nossos próprios critérios a respeito desses pontos? Acaso apressamo-nos e nos esforçamos em cumprir os “preceitos” da nossa fé, no espírito da letra “do ensinamento bíblico”, para cumprir o nosso dever, sem considerar que a força da obediência procede da graça divina? Acaso falamos da ressurreição e nos apegamos a ela, como a algo distante (que ocorreu há 2.000 anos) sem considerar seriamente que precisamos de morrer com Cristo para ressuscitarmos com ele? (Necessário nos é nascer de novo...) Acaso estamos insistindo em nos apresentar diretamente a Deus, esquecendo que só por intermédio de Cristo é que podemos achegar-nos a ele? Finalmente, não são, acaso, estas as modalidades dominantes da religião que o mundo pratica? E nós? O interesse imediato, o egoísmo e o egocentrismo religioso levam o crente a “forçar a mão”; a se aproximar do trono da graça e a arrebatálo para si; a se apropriar com violência do reino dos céus; todavia, não com violência sobre seus apetites sobre a cobiça de toda espécie, sempre presente, mas com violência perante Deus. (“Dá-me a parte que me pertence”.). É assim que a criatura religiosa estende as suas mãos para tomar o que não lhe pertence e tocar no que não lhe compete; quer chegar a Deus e se esquece do Mediador; em sua conduta ignora o sacrifício de Cristo, embora o louve com os lábios. Ainda que tal religião se diga cristã, nela se ignora a Cristo e se olvida a ressurreição; nessa religião não há obediência, porque a obediência vem do Poder da Ressurreição e nela não há Deus porque o Deus que o homem adora para alcançar a graça, para conquistar o Reino dos Céus, para fazer jus à atenção divina (nem falaremos sequer do Deus que buscamos para nossas vitórias no mundo), esse Deus, não é o “Deus Desconhecido” de que Paulo falou aos atenienses... 2. Seria perigosa a atividade religiosa? Sim, humanamente falando; porque sendo a religião a mais alta possibilidade do homem, neste mundo, é também nela e por ela, que o ser humano corre o risco de se exceder até o máximo do pecado. Todavia, onde pecado pode ser extremamente abundante, a graça é, efetivamente superabundante. A religião é também perigosa, porque é nela que aprendemos que o salário do pecado é a morte; é perigosa, segundo o mundo, porque ela desestabiliza a criatura; leva-a à porta dos mais altos céus, enquanto lhe mostra que os pés continuam presos nos atoleiros do mundo; é perigosa porque evidencia que o homem nada pode fazer em

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seu próprio benefício; que nada valem suas lutas, seus ais, seus sacrifícios, suas obras, suas renúncias, se não renunciar a si mesmo; a religião é, humanamente, perigosa, porque questiona o ser e o ter da criatura humana e põe a nu a infelicidade de quem pratica o mal que não quer, e não consegue fazer o bem que deseja: é por tudo isto que tantos são os pensadores ilustres e ignaros plebeus que dela fogem e a combatem. Todavia, é também na religião que a criatura aprende que há um Remidor, um Salvador, um Mediador. Esta é a sublime realidade da religião que se supera a si mesma quando o ser humano, por ela, vê a fidelidade de Deus e aceita a Cristo pela fé.

A SIGNIFICAÇÃO (O SENTIDO) DA RELIGIÃO (7, 7-13) V. 7 (primeira parte) O que queremos, pois, dizer? Que a própria lei seja o pecado? — Impossível! [A versão de Almeida, escreve “que diremos, pois? É a lei pecado? De modo nenhum”.] A pergunta leva-nos a considerar qual seja a essência, o significado, a “economia” dessa última e mais nobre possibilidade humana que, na forma de lei, como religião, nos coloca na soleira da porta entre dois mundos e que, todavia, está do lado de cá do abismo que separa os pecadores daqueles que receberam a graça. De um lado está a graça invisível pela qual Deus, na sua liberdade, reivindica o ser humano para si o qual, assim tomado por Deus, e em vista da realidade histórico-espiritual da humanidade, só pode ter o sentimento de nulidade, de vazio, de vacuidade, peculiar à criatura que transpôs o abismo. Do lado de cá está a lei, a religião que, aparentemente, oferece à criatura o mesmo relacionamento que a graça proporciona, todavia, ela determina tal conduta, tal atitude, que não só torna evidente que a religião é apenas uma possibilidade a mais no mundo, além de todas as outras que aqui existem, como também evidencia que a criatura a ela sujeita está [ainda] do lado de cá do abismo. [Este é o dualismo com que se confronta a pessoa religiosa]. [Frente a frente], sob os umbrais dessa porta, manifestam-se, a primeira coisa invisível (neste mundo): a graça divina, e a última coisa visível: a lei, a religião. É pela graça que Deus toma a criatura e a guarda do outro lado do abismo; e a criatura, contrastando essa sua nova posição com as realidades histórico-espirituais de sua vida [neste mundo], sente a nulidade, o total esvaziamento de seu ser. A religião representa o extremo esforço humano para a

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conquista dessa graça; é um esforço sublime, porém apenas válido como roteiro, caminho, marco, seta indicadora do rumo que a criatura precisa seguir para se entregar incondicionalmente a Jesus Cristo; a religião só terá valor humano (talvez reconhecido por Deus, ou talvez não), na medida que contiver os atributos de testemunho acima referidos, sem nada mais pretender [perante os homens e perante Deus]. Para a transposição do “abismo” que existe entre o “aquém” e o “além” não há um caminho gradativo, uma escada que pudesse ser galgada de degrau em degrau, ou ainda, uma rampa que pudéssemos seguir com passo seguro, avançando paulatinamente. O abismo se abre abruptamente e para nós é o intransponível início de um além totalmente diferente, pois mesmo se as mais famosas experiências da graça coroassem sucessivas e constantes atividades religiosas, seriam [ou são] parte deste mundo, estão do lado de cá do abismo, [e em nada se assemelham com o que está além]. [Quando vier o que é perfeito, o que é em parte, desaparecerá]. A graça, na qualidade de primeira possibilidade divina — isto é (“a servidão segundo o novo sentido do espírito”) — veio ao encontro da lei, que é a última possibilidade humana — (“a servidão segundo o antigo sentido da letra”)— (7, 6) com um categórico “NÃO”! — em toda sua extensão. [A graça é o encerramento da lei]. O que significa para nós a enorme distância que separa a graça da Religião? O que significa o fato de corrermos, neste mundo, em paralelo [junto] com a religião embora nela seja absolutamente intransponível o hiato que nos separa da graça? Por que, [em nossa vida terrena], estamos tão próximos da religião e tão longe da graça? Por que temos tanta afinidade com a religião e estamos em estado de inimizade permanente com Deus [a própria fonte da graça]? Como haveremos de interpretar e compreender o relacionamento do homem com Deus pela religião que acompanha o ser humano durante toda sua vida (7, 1) quando ela está separada, dissociada do relacionamento da criatura com seu Criador por meio desta negativa radical [com que a graça vem ao encontro da lei]? “É a lei pecado”? A confirmação (a resposta afirmativa) desta pergunta parece querer impor-se à força e nós mesmos [neste trabalho], por diversas vezes quase a adotamos, quando reiteradamente procuramos deslindar o sentido das duas possibilidades extremas e opostas que a lei representa para o ser humano. Por que não dizer [desde logo] o que está evidente, embora seja um tanto surpreendente [e até chocante]? Dizer que exatamente a religião — a

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destemida presunção do ser humano que se estende para Deus — é o extremo assalto a Deus e, por isso, é também a queda que separou a criatura do Criador, e constitui o pavoroso pano de fundo de nossa existência [terrena]. Por que não encetaremos, então, uma polêmica anti-religiosa, visando a encontrar algures, [ou de alguma forma], uma possibilidade humana que sobrepujasse a religião em sublimidade (grandeza, perfeição, pureza, etc.)? Por que não acompanhar Marcion, proclamando um novo Deus, em substituição ao antigo, revelado pela lei? Ou então, por que não faremos conforme Lhotzky, jogando o “Reino de Deus”, que está bem à mão, contra a religião? Ou ainda, quem sabe, poderíamos seguir Johannes Mueller pelo caminho que nos trouxesse de volta, lá da região da observação indireta [de Deus], para a área perdida, todavia ainda encontrável, da observação direta? Outra alternativa será aceitar o convite de Ragaz, e emigrar do seio da igreja e da teologia, “já sem esperanças”, para o mundo melhor do laicato. Poderíamos, também, dar prosseguimento a Beck e ao antigo naturalismo de Wuerttemberg, segundo não poucas páginas da lª edição deste livro, com referência à existência de algo de divino no crescimento orgânico da sociedade humana, em contraposição a um idealismo vazio. Ou, por que não haveríamos de recorrer ao misticismo, sempre tão “salutar” e engendrar uma religião secreta, uma verdadeira super-religião [uma religião esotérica que estivesse acima de todas as demais, as incorporasse ou lhes desse um denominador comum], um sistema religioso que se desenvolvesse em paralelo às religiões [quiçá mais pragmáticas]? A resposta [só pode ser]: “Impossível!” A radicalidade de todos esses ensaios [de todas essas alternativas] é apenas aparente: “NONDUM CONSIDERASTI, QUANTI PONDERIS SIT PECCATUM!” (Anselmo). [Convém abrir aqui um parêntese para analisar o que o A. diz, ou o que se poderia entender das muitas alternativas que ele sugere (com certa ironia) à religião, particularmente no que se refere ao “antigo naturalismo” do grupo de Wuerttemberg “acompanhando não poucas páginas” da lª Edição de sua própria obra. Parece-me que o pensamento do A. continuará obscuro. Quando esta sua observação foi escrita, já a primeira edição estava, definitivamente, morta e sepultada; os tradutores ingleses não atinaram com o sentido e, ao que tudo indica, nem mesmo recorrendo diretamente a Barth que, segundo eles mesmos afirmam em seu prefácio, era sempre solícito em responder-lhes prontamente e com toda precisão. (“Many questions have been asked and these have been answered always by return of the post,... and always strictly to the point”). No entanto, nesse mesmo prefácio faz-se menção especificamente a

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este trecho, desde a referência a Marcion, até ao “idealismo vazio”, como sendo um trecho intraduzível que, no entanto, colocam aproximadamente assim: “Por que não nos alistarmos entre os discípulos de Marcion, proclamando um novo Deus, totalmente diverso daquele da lei? “Por que não haveríamos de seguir Lhotzky, jogando o “Reino de Deus” contra a “Religião”, ou então Johannes Mueller, transportando os homens do reino da observação indireta para os abandonar no reino perdido da observação direta que, contudo, ainda pode ser encontrado? “Ou então, desfraldando com Ragaz a bandeira da revolução contra a teologia e a igreja, sair de sua esterilidade e invadir o novo mundo do laicismo cabal, em religião? “Por que não voltaremos ao tema principal da lª Edição deste comentário e, dando as mãos a Beck e ao naturalismo dos mentores da velha escola de Wuerttemberg, apresentar, contra um vazio idealismo, a figura da humanidade como sendo um organismo divino, em crescimento?” Seria ousadia descabida contradizer os doutos doutores que prepararam a versão inglesa e que atribuem, em certa extensão, o fraseado de Barth ao “explosivo gênio germânico” e à peculiar habilidade do A. em atacar o vigor da idolatria, em termos modernos. Ora, parece-me que se o A. tivesse pretendido dizer que na primeira edição de sua obra, ele tentara convencer seus leitores de que a humanidade era “um organismo divino em crescimento” (conforme o registro da passagem, na versão inglesa, parece sugerir,) ele estaria incidindo no erro que ele mesmo tanto combate: a divinização do homem ou, a sua manifestação inversa: a humanização de Deus. Parece-me, portanto, mais condizente com o teor geral e também específico da obra concluir que o A. quer dizer que uma das formas de não considerar quão pesado é o pecado é seguir Beck ou o naturalismo dos mentores da antiga escola de Wuerttemberg, tema ao qual Barth dedicou não poucas páginas de sua primeira edição. [Notar que o A. não diz que este foi o tema principal mas “mit manchen Seiten der 1. Auflage”.]. O pecado e a árvore podre; [o tronco apodrecido]. O pecado não é um acontecimento entre outros muitos; ele não é idêntico à possibilidade religiosa [ou semelhante e comparável a ela] e por isso ele não pode ser contornado por alguma forma de religião; isto é, o pecado não pode ser vencido, aniquilado, sobrepujado por práticas religiosas ou por qualquer religião. Porém o pecado é uma possibilidade que existe em toda e qualquer possibilidade humana.

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Ora, nesta metáfora, e por paralelismo de conceitos, a “graça” é a árvore boa; [o tronco sadio]. A graça não está acima, ao lado [ou em paralelo]. Porém, a graça é a possibilidade divina da criatura, que existe além de todas possibilidades humanas. Quem quer que seja que havendo compreendido, com acerto, que a lei [ou a religião] é a expressão da máxima possibilidade da humanidade sob pecado é confundir as coisas considerando religião e pecado vinhos da mesma pipa e daí passar a combater a lei frontalmente ou de alguma forma mais sofisticada; quem advogar a existência no mundo sem os ditames da lei — [e portanto, supostamente, sem pecado!]; quem, ainda que por ressentimento fundamentado [justo], contra a “religiosidade humana”, pretender rejeitar o Antigo Testamento conforme o fez Marcion (esquecendo-se que, conseqüentemente, deveria rejeitar também o Novo Testamento, em sua totalidade), mostra apenas que não se confrontou ainda com a lei, de forma decisiva. [Ainda não entendeu o verdadeiro sentido da religião]. A crise da religião consiste no fato de que não só é impossível sacudi-la do homem “enquanto ele viver”, como também para o ser humano como tal, (para a criatura deste mundo!) ela é uma característica intrínseca; porque na religião as possibilidades humanas estão delimitadas pelas divinas pois, conscientes de que Deus não está na religião mas também conscientes de que não podemos avançar além dela, temos que nos deter e perseverar nesta possibilidade para que, de além da delimitação que ela nos demarca, Deus venha a nosso encontro. Se é certo que na final supressão desta nossa última possibilidade tem lugar a transformação do “NÃO” divino, em “SIM”, então não nos é lícito fugir dela; não podemos colocá-la de lado ou tentar substituí-la por outra possibilidade qualquer. A lei não é idêntica ao pecado e a abrogação parcial ou total da lei não significa que, (por isso ou dessa forma) haveremos de emigrar do reino do pecado para ingressar no reino da graça. V. 7 (Segunda parte) Eu não teria experiência do pecado se não fora pela lei; pois eu nada saberia da cobiça se a lei não dissesse. Não cobiçarás! “Eu não teria conhecimento do pecado se não fora pela lei”. — O que é pois a religião se ela, embora sendo a mais alta possibilidade humana, no reino do pecado, não é, contudo, idêntica ao pecado?

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[Não seria de supor que se a religião é a maior possibilidade humana, e o homem é essencialmente pecador, então também a religião seria (ou será) a expressão máxima do pecado?]. A religião é a atividade humana pela qual todas as suas demais possibilidades ficam, notoriamente, expostas à luz de uma crise profunda, radical, que evidencia o pecado e o torna real. O ser humano é pecador por força de sua própria vocação, de sua eleição; (conscientemente ou não), o homem é pecador por força da situação em que se encontra perante Deus, e pelo desenvolvimento [histórico] dessa situação; ele é pecador por força da lembrança de sua perdida ligação direta com Deus, e por nada mais. Se não considerarmos a religião, então o ser humano, como uma criatura entre as demais, apenas é pecador no secreto de Deus de maneira invisível, não histórica. [Esta maneira de dizer do A., afirmando que o “ser humano é pecador por força de sua eleição” se me afigura como a proposição de silogismo, entendendo-se por “eleição”, ou vocação, a criação do homem à imagem e semelhança de Deus, com capacidade de optar entre a obediência e a desobediência e portanto eleito” (ou destinado) à salvação ou à danação. Poderíamos pois, dizer que o homem foi eleito para ser perfeito perante Deus; todavia, exercendo a liberdade que recebeu pela eleição divina, desobedeceu, cometendo pecado; logo, o homem é pecador por força da própria eleição... Em outras palavras: o pecado é o contraste entre as atitudes da criatura para com o Criador, antes e após a queda. É a lei que revela este contraste; não houvera a lei, e o homem não saberia de sua situação. (Por isso é que a lei é santa e boa, pois chama o homem à realidade). Quando desconsideramos a religião (como se a lei não existisse), então o pecado já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo, e sua memória desaparece por falta de historicidade. Deus conhece o bem e o mal [e sabe o que é um e o outro]. Todavia o homem não pode ser abordado sobre o mal [se a lei não lho revelar]; semelhante mal não pesa sobre a criatura humana, nem como culpa, nem como destino. O homem não vê a espada da lei levantada sobre ele e é impossível impressionálo com essa fatalidade ou convencê-lo dessa sentença. Ora, com o “homem novo”, com a criatura redimida, ocorre um fenômeno similar: a criatura é posta pela segunda vez perante Deus, agora, porém, do lado oposto; o homem é justificado por Deus [por força da graça divina]; ele é justificado de forma invisível, de forma não registrável na história; portanto, sem a lei, o homem é justificado de forma abstrata [tão abstrata quanto, sem a

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lei, é ele pecador perante Deus somente]. O homem é justificado no secreto de Deus. A criatura não pode ser abordada [ou louvada] por essa justificação, nem está ela em condições de se gloriar por isso. [Só Deus sabe o que é bom...] Porém, entre a invisibilidade do pecado e a invisibilidade da graça, está a lei, a religião, e sob o conteúdo dos demais fatos (conscientemente ou no subconsciente) está o impacto, a impressão [indelével] da revelação, o conhecimento do bem e do mal, a ciência (obtida de alguma forma) de que a criatura pertence ao Criador; a lembrança de sua eterna origem, na qual ela foi predestinada para redenção ou para a danação. Uma exceção a esta conscientização foi admitida teoricamente [para fins de argumentação] na exegese de 5, 13-14. Pouco se nos dá [para as considerações que fazemos] aqui, se tal exceção existiria [ou existe]. [A exceção a que o A. se refere é a hipótese da possível existência de algum mundo, tempo ou local, onde não houvesse lei]. Investigando o sentido e o teor da conscientização que nos sobrevem pela lei ou pela religião, percebemos logo que ela contrasta nitidamente, ainda quando de forma apenas relativa, com tudo mais que possamos perceber no mundo. A idéia de um nume — [da existência de qualquer tipo de divindade superior] — é [de certa forma] chocante, inquietante, e perturba todos os outros pensamentos. Se, para a criatura humana, houver um Deus, o homem resulta posto mais ou menos clara e energicamente em dúvida. Abre-se uma brecha, mais ou menos difícil de transpor, entre o seu “SER” e um ameaçador “NÃO SER” que lhe é oposto; entre a realidade e a verdade. Levanta-se uma dúvida mais ou menos forte sobre se “o possível” não poderia ser o impossível ou, se “aquilo que é” não poderia ser “o que não deve ser”. Um pouco desta crise está contido em toda religião e quanto mais fortemente esta crise se fizer sentir, tanto mais claro fica que, no fenômeno em que a observamos, estamos de fato nos confrontando com um problema religioso. Este fenômeno religioso, quando considerado à luz da evolução histórica, parece haver atingido o seu grau mais alto e mais puro na agudeza do ataque profético aos homens, dentro da “lei” israelita. Todavia, o que significa esta crise? Na realidade, cabe agora dizer que a “revolta dos escravos” levantada contra Deus, pelos homens, tem expressão e se torna visível justamente no fenômeno religioso. O homem aprisiona a verdade com a sua pecaminosidade. [“Pecaminosidade” é o substantivo que empregamos para traduzir a palavra alemã “unbotmaessigkeit”; a versão inglesa escreve “Unrighteousness” e a S.R.V. diz “men who by their wickedness suppress the truth”. Entendo que “pecamino-

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sidade” expressa bem o pensamento que o A. parece querer ligar ao texto: a idéia de maldade, de vileza, de caráter ruim, de ausência de virtude e santidade; de disposição depravada e corrupta; impiedade. A tradução de Almeida refere-se aos que “detêm a verdade com a injustiça (1, 18)]. O homem perdeu-se em si mesmo e quis dar ouvidos ao “ERITIS SICUT DEUS”! O ser humano passou a ser para si mesmo o que Deus deveria ser para ele! Passou a confundir [a trocar] o que é temporâneo pelo que é eterno e, portanto, também o que é eterno com o que é efêmero. O homem passou a ousar o que jamais poderia ousar: estendeu a sua mão para além da linha da morte que lhe é imposta [por Deus como limite] para dirigir-se ao Deus imortal e “desconhecido”, [as aspas não são do A.] e assim [tentar] roubar para si o que só a Deus pertence, colocando-se no nível de Deus ou, trazendo Deus para junto de si [isto é, para o nível das coisas materiais e humanas]. A criatura se conduz com relação a Deus ignorando, da forma a mais crassa, a distância que existe entre Deus e o homem, e se situa onde o homem jamais pode estar como homem, pois Deus é Deus, e já não seria mais Deus, se semelhante avanço fosse possível. Assim procedendo a criatura humana faz de Deus mais uma coisa entre as demais coisas deste mundo, e tal procedimento é claramente perceptível na atividade religiosa; a conseqüência de semelhante conduta são as crises [inerentes à vida religiosa], que acompanham o indivíduo nesta sua mais alta, última e arriscada possibilidade. Isto é, pois, o ser humano: a criatura que, ao afligir-se com a problemática do seu mundo, analisando-se no mais profundo de seu ser, corre o risco de — (na possibilidade religiosa, ousando o impossível e fazendo com arrogância nunca imaginada o que ela, em nenhuma circunstância poderia fazer) — colocar-se junto a Deus como perante a um seu semelhante. [Esta análise do A. é extremamente contundente: acaso não é “conversando” com Deus, que oramos? Acaso não expomos a Deus os nossos anseios e as nossas aflições como a um amigo, a um pai? Acaso estaremos nós “os crentes”, errados quando nos dirigimos a Deus com o tratamento mais familiar “Tu”, enquanto a tradição católico-romana persiste na forma mais respeitosa da segunda pessoa do plural? É certo que “do lado de lá” (entre a Igreja Romana), Deus ficou de tal maneira inacessível que houve necessidade de recorrer à mediação dos “Santos”, da Virgem Mãe... Não estaremos incorrendo no erro oposto, fazendo de Deus o nosso íntimo e, nessa atitude, igualando-o a nós ou, nos igualando a ele? 377

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Não se dará o caso de, em assim procedendo, estarmos detendo a glória divina e a “verdade” de Deus com a pretensiosa piedade que, talvez, não seja mais que a nossa própria impiedade e nossa injustiça? Não teria sido justamente por isto tudo que Cristo mandou que pedíssemos em seu nome? (João 14, 13). É verdade que não sabemos orar e muito menos pedir o que convém. Se, conscientes disto, nos aproximarmos reverentemente de Deus, de todo nosso coração, de todo nosso entendimento, lembrando que poucas (e quão poucas, quiçá nenhuma) serão as nossas razões, pois Deus está nos céus e nós na terra; e se nos lembrarmos que somente podemos aproximar-nos do trono da graça valendo-nos da intercessão de quem levou sobre si as nossas culpas, é inegavelmente certo que, independentemente da forma pronominal, da nossa sintaxe e do nosso palavreado, o próprio Espírito nos assistirá, pois “intercede por nós sobremaneira, em gemidos inexprimíveis” (8, 26)]. [Se tão duramente se situa a atividade religiosa], como ficam as outras possibilidades humanas? Se a religião que é a possibilidade máxima, a suprema, é sacrílega, em que situação ficam as demais? É nesta conjuntura que a “lei” [a religião] se impõe a todas atividades humanas [como pedra de toque, para julgá-las]. A luz do que significa, para o homem, a sua mais alta atividade, revelase também o significado das demais possibilidades menos sublimes do que a religião. Se o último elo da corrente é tal [que mostra a pecaminosidade do ser humano em seu relacionamento com Deus], como não serão as demais atividades, que lhe ficam para trás, umas após outras? Com a exposição da ilusão a que está sujeita a mais sublime atividade humana, fica realçada a condição ilusória de todas as demais atividades que o ser humano, como tal, possa ter. Como religioso, o ser humano se situa em confronto a Deus e, portanto — precisa ficar nessa confrontação. Na recordação de sua ligação direta com Deus, a perda dessa ligação passa a ser um caso notável. Irrompe a moléstia que leva à morte. A religião se transforma em ponto de interrogação que põe em dúvida todo o sistema cultural humano. De que forma obteve, o homem, a sua experiência como religioso? — Evidentemente, foi do “condicionamento” invisível que o pecado impôs. A queda que afastou a criatura do Criador, a ruptura da unidade que outrora existiu entre o homem e a sua origem, a dualidade da predestinação — estabelecida desde a eternidade para a salvação ou para a perdição, tornam-se

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realidades histórico-espirituais “mediante a lei” [vale dizer, mediante a religião]. “O pecado avulta!” (5, 20). “Eu nada saberia da cobiça se a lei não dissera: “Não cobiçarás!” Nada explica o fato de minha vitalidade [a minha tendência natural] ser pecaminosa e que eu, por isso, deva mudar a minha conduta; esta caracterização e este reclamo não têm qualquer significado fora da religião. Os sentidos humanos se opõem a esta desqualificação da criatura; reagem contra a desconfiança, contra a acusação de pecado, contra o descrédito lançado sobre a “simples” natureza. [É preciso reconhecer que] fazendo-se abstração do significado original da religião [essa reação de nossos sentidos] tem sua razão de ser). Por que haveria de ser mau o que é natural? “Eu nada saberia da cobiça”. (“Sem lei está morto o pecado” (7, 8)). Se eu não me expusesse, imprudentemente, à luz altamente discriminativa da minha possibilidade divina [a religião]; se eu, como homem religioso, não cometesse a fatalidade de sair da comodidade sombria de uma mundaneidade neutra, eu teria — em toda seriedade e de boa mente — como natural, a minha justificação pelo Deus que me era desconhecido. Todavia, a minha cobiça [as minhas inclinações] e a minha vitalidade tais quais aqui as conheço, não podem deixar de se expor a essa luz. A problemática da existência neste mundo, ainda que oculta, faz com que, de uma ou de outra forma, a religião me sobrevenha como o ataque de um homem armado; ou, por outras palavras, o problema da existência de Deus, ainda que oculto [ou subconsciente], impõe que eu faça o que não posso, não devo, fazer: preciso buscar a eternidade de Deus (por assim dizer), na forma inadequada e indigna de um “relacionamento religioso” relacionando a eternidade divina com a minha temporalidade e a minha temporalidade com a eternidade de Deus. Assim, mediante a prática — digamos, necessária — da religião, entrou em minha vida a lei e, com ela, uma negação tremenda, ainda que não absoluta. [Essa negação vem da] iluminação intensa [de minha conduta], ainda que indireta, (através da Igreja) que interpela a minha cobiça [os meus desejos e meus anseios], as minhas tendências naturais, com extrema energia, ainda que não de forma definitiva. Há um rompimento relativo, porém muito radical entre o teor da vida religiosa e todas as demais atividades do ser humano. Na religião apresentada pelos profetas esta ruptura é assustadora e é justamente isto o que há de especial no judeu: ele avançou muito na direção daquela linha [que separa o humano do divino, o perecível do imperecível; ele

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chegou muito mais longe na sua atividade religiosa do que o mundo gentílico, do que o mundo indiferente à religião]; [havendo avançado tanto], a sua impressionante queda vertical, em toda sua nitidez, pode servir-nos como advertência contra a aproximação indevida a um alcantil ainda mais íngreme e mais agudo, que separa de Deus tudo o que é humano, todo conteúdo e todas as realidades do mundo. (3, 1-20). Se acaso me é lícito exercer a cobiça na singeleza da minha naturalidade como criatura enquanto eu nada conhecer senão esta minha cobiçosa natureza, já não posso mais valer-me desta ignorância para minha própria justificação quando me desdobro para conhecer algo mais do que aquilo que me toca naturalmente. Quando eu houver avançado decididamente até o limite extremo, onde minha existência terrena é argüida e posta em dúvida pela possibilidade divina, então já estou quebrantado; já não mais me sinto justificado, não sou inocente! Agora a religião, esta “cobiça” que, de certa forma, sobrepuja todos os desejos, descerra os lábios para proclamar: Não deveis cobiçar coisa alguma! A eternidade de Deus, quando atribuída às coisas passageiras do mundo, as torna pecaminosas da mesma forma que se torna em pecado a temporalidade humana comparada à eternidade divina, porquanto este relacionamento do homem com Deus e vice-versa, é obra do ser humano em sua queda e não é obra de Deus, de Deus, somente. De que maneira se dá, como ocorre, como se desenrola, com que nitidez se pode observar esta crise da “vitalidade” humana este contraste entre a possibilidade extrema da criatura e as possibilidades divinas, são questões de desenvolvimento histórico que agora não nos interessam. Investigamos apenas o significado básico do fenômeno religioso ao lado das demais experiências da vida; indagamos a respeito do sentido da religião. [Como resposta], encontramos que através da religião o pecado se torna uma realidade visível em nossa existência, e que é na religião que a criatura manifesta a sua revolta de escravo, contra Deus. Agora compete-nos indagar sobre o sentido da liberdade de Deus e da nossa liberdade; como esta se manifesta além da realidade e da visibilidade do pecado [que a religião nos revela]. Vs. 8-11 Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte de concupicências. Porquanto, se tirarmos a lei, está morto o pecado, outrora eu vivia sem lei, porém, chegando o mandamento, entrou o pecado na minha vida; eu, todavia morri.

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Então aconteceu que justamente o mandamento, que visava à vida, me proporcionou a morte. Pois o pecado obteve um meio pelo mandamento, enganou-me, e me matou com ele. A tradução de Almeida registra assim: “Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupicências; porque, sem lei, está morto o pecado. Outrora, sem lei, eu vivia; mas sobrevindo o preceito, reviveu o pecado e eu morri. E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se tornou para morte. Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento enganou-me e me matou.”]. “Mas o pecado, fazendo da lei um meio, despertou em mim toda sorte de concupicências”. Não se pode deixar de usar um pouco da linguagem mitológica quando se quer tratar do processo no qual o “logos” é transformado em mito. O pecado, na sua origem, no secreto de Deus (que jamais e em lugar algum dá origem ao pecado, mas estabelece a sua verdade final) é a possibilidade do rompimento da unidade entre a criatura e o Criador; é a possibilidade da alternativa de sua predestinação — para a salvação ou para a perdição. Em Deus o homem tem a oportunidade de ser um escravo agitador, rebelando-se e rompendo a unidade com ele a fim de reter para si a sombra que deveria acompanhar a luz divina como negação e, ao retê-la, procura dar-lhe fôros de valor eterno para ter a oportunidade de ser Deus, a sua maneira. [À criatura humana compete honrar e glorificar a Deus; é nesta condição que o crente fiel brilha em seu viver, não porque irradie algo de seu, mas refletindo a luz que lhe chega desde a cruz; nesse reflexo destacam-se as sombras da materialidade, da mundaneidade, da temporalidade e da história e esse destaque, na forma de contraste qual o rebaixo de um sinete, em sua negatividade, é testemunha e testifica a glória de Deus. Todavia, é um testemunho humano e, portanto, efêmero e corruptível. Ora, o homem tem, em Deus (pois foi criado à sua imagem e semelhança), a liberdade de escolher o seu próprio caminho: tanto pode optar pelo escândalo da fé como seguir outras alternativas, quiçá mais racionais do ponto de vista humano procurando, entre outras possibilidades, roubar para si o brilho que vem da “luz não gerada”, atribuindo valores transcendentais e eternos ao destaque negativo de suas próprias qualidades; então cria para si um Deus segundo o desejo de seu coração, segundo a sua cobiça. Cria o Deus deste

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mundo, satisfazendo o anseio fútil (e antigo) de se tornar igual a Deus: igual ao Deus conhecido deste mundo!]. O conhecimento dessa possibilidade e a sua utilização, constituem o pecado. Assim como a água retida numa eclusa se precipita, pela comporta aberta, para o nível inferior e aí permanece como convém a sua própria natureza, assim também o pecado avança no mundo das coisas, no mundo visível da temporalidade e aí se alastra em contraposição ao que não é material, ao que é invisível e eterno. Isto se dá segundo a sua natureza que, tratando-se de água do canal, a impele “para baixo”, e não “para o alto”; é da natureza do pecado, correr para o que é relativo, para o que está separado [de Deus], para aquilo que pode ser observado e visto diretamente, [materialmente], para o que está em oposição [a Deus]. Pecado é a manifestação do cosmos contra o ato de criação; é a oposição da existência e do modo de ser [do homem], contra o [verdadeiro] ser; é a oposição da criatura, contra o Criador. Não é evidente por si mesmo que a eclusa, necessária para a manifestação dessa oposição, seja aberta. Originalmente não foi assim. [Na analogia do A., assim como a água na parte alta da eclusa tem energia potencial para, através da comporta aberta, alagar os baixios do canal, assim o pecado, originalmente, existia em potencial e, aparentemente, nada justifica que a “eclusa” houvesse sido aberta e o pecado fluísse]. A criatura humana estava no paraíso onde não havia “em cima” e “em baixo”; onde não havia absoluto e “também” relativo, nem aquém e “também” além. Nesta inclusão adverbial, neste “também” está [implícita, e presente em potencial], à espreita, a queda do homem. [A abertura da comporta teve lugar com o acidente da queda do homem]. Enquanto o homem habitou no Éden, o cosmos era um todo com a criação; havia o estado de unicidade entre o homem e Deus; o que era natural era também santo porquanto o que é santo era então natural; não havia cobiça porque todos os frutos do jardim estavam à livre disposição do homem, e até mais do que isso, era-lhe ordenado que comesse deles todos — exceção dos frutos da árvore do centro do jardim, a árvore do “conhecimento do bem e do mal”, porquanto a “oposição” (o “reverso”), escondida em Deus desde toda a eternidade, não estava reservada à criatura humana, não deveria ser parte de sua vida. O homem não deveria ser, para si mesmo, o que ele [efetivamente] é, perante Deus: a criatura como um “segundo” [um subalterno] ao lado do Criador. O homem não deveria ter conhecimento daquilo que Deus sabe dele e, misericordiosamente, dele oculta, que a criatura é apenas um ser humano.

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[A Bíblia não nos diz que Deus criou o homem para ser seu igual, porém, fê-lo à sua imagem e semelhança. (Anotemos desde logo que Deus é Espírito e, portanto, essa semelhança — semelhança e não igualdade — terá sido espiritual). Apenas para melhor conceituação da significação de semelhança, lembremos que dois triângulos podem ser semelhantes e, contudo, bastante diferentes entre si: um pode ser infinitamente pequeno e outro infinitamente grande... Semelhança não é congruência; ser semelhante não é ser idêntico, não é ser cópia ou réplica fiel. Para o entendimento dos comentários do A. sobre os versículos 8 e 9 será conveniente ter em mente a advertência que ele faz quando afirma que ao tratar da mitologia, para desmascará-la, é mister empregar palavreado mitológico; é o seu ponto de vista. Portanto, é de esperar que, quando Barth analisa aquele aspecto do pecado que transforma Deus em ente mitológico, o seu linguajar tenha esta forma mediante a qual visa a mostrar a hedionda impropriedade da humanização de Deus; é um método expositivo, característica notória de seu estilo, que choca pelo absurdo. Ora, como argumenta o Autor? — Afirma que Deus estaria usando (ou teria usado) de piedosa ocultação da verdade “nua e crua” de que o homem é simplesmente homem e nada mais, não lhe contando a verdade por pena, piedosamente, qual médico que esconde ao paciente sem esperanças, a verdadeira situação de seu estado físico. Seria este um Deus algo comparável aos deuses da mitologia grega, onde um cria o risco e o outro, generosamente, desvenda aos olhos dos interessados, o perigo iminente. É Circe advertindo Odisseu para que não se deixe enganar pelo canto mavioso das sereias. Deus seria, assim: teria, quiçá, poupado piedosamente o “seu segundo” do conhecimento “da posição” que desde a eternidade estaria escondida no próprio Deus, “bondosamente” nada contando dessa situação que, para desgraça do gênero humano, “a serpente” veio revelar. Acaso teria Deus, deliberada ou casualmente, feito caso omisso do decreto eterno da predestinação de duplo efeito? Parece que o A. considera tão clara a evidência dos fatos (pois escreve para teólogos) que não se dá, sequer, o cuidado de reiterar que fala “por parábola”. Acaso não é absolutamente certo que jamais o homem se considerou igual a Deus? Não foi justamente esta diferença, esta desigualdade (esta distância, ainda que não houvesse distanciamento), que serviu de ponto de apoio para a bem sucedida empresa da “serpente”, para induzir Eva e Adão à queda? “Sereis (então) iguais a Deus”! Também é certo que o Deus que a Bíblia nos apresenta é justo e reto em todos os seus caminhos e não se deixa levar de respeitos humanos. Todavia,

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7, 8

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quando o patriarca Abraão peregrinava ao largo de Sodoma e Gomorra, Deus houve por bem contar-lhe qual o destino reservado às duas cidades (Gen. 18); em tempo certo, esse mesmo Deus conclamou Nínive ao arrependimento; no tempo oportuno preparou um povo (nação) para que aparelhasse os caminhos da redenção, mandando-lhe os profetas a tempo e fora de tempo e finalmente, entregou o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crer tenha vida eterna. Tal é o Deus de que a Bíblia nos fala. Ela nos revela um Deus que é divina e superiormente ético, cujos mandamentos estão voltados para o bem da própria criatura, quer digam respeito ao relacionamento do homem com Deus, quer se refiram ao comportamento do ser humano em relação a seu próximo. Então, qual seria a razão da existência de uma árvore de frutos proibidos no “centro do jardim”? Parece-me que havia, para isto, uma grande razão. O homem foi feito do pó, carne e sangue à semelhança material dos animais da terra — mais próximo de uns e mais distante de outros. A rigor, em que se caracterizou a diferença entre o “HOMO ERECTUS” e outros seres? Outros havia que também andavam erectos; outros havia que também emitiam sons, quiçá inteligíveis entre eles; outros havia que recorriam a variados graus de recursos intelectuais. Todavia à criatura humana, ao chamado “HOMO SAPIENS” foi dado o dom sobremaneira excelente entre os demais dons: o dom de optar! Só o homem decide. É o instinto ou é o condicionamento que governa o animal; é o aguilhão que conduz o boi, o freio que domina o cavalo; é o condicionamento que educa o cão e determina o comportamento do animal de laboratório, mas o homem, somente o homem, toma decisões: vai à guerra, vai ao sacrifício, busca ou rejeita a fonte de prazer, porque escolhe, não pelo instinto mas pela razão. Esta é a semelhança espiritual do homem, dádiva que ele recebeu de Deus, no ato da criação. Deus que é Espírito fez o homem à sua imagem e semelhança; homem e mulher, os criou. Houvesse o ser humano sido posto no Éden sem ter como exercer o dom de optar, já não estaria aí como o ser criado à imagem e semelhança de Deus. Já não seria “Filho de Deus” mas apenasmente uma criatura material. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança dando-lhe em Deus — a liberdade de escolher o caminho que haveria de seguir; deu-lhe a faculdade de optar e estabeleceu o pólo de referência: a árvore no centro do jardim; e o advertiu solene e divinamente: “Não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Estava implantado o pomo da opção.

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7, 8

Se é verdade que a desobediência não deveria entrar no conteúdo da vida humana, é absolutamente certo que o direito de escolha, o privilégio da opção, constitui o dom intrínseco dessa existência; o exercício do livre arbítrio é uma qualidade inalienável da criatura humana, que lhe foi dada por Deus; que é o privilégio supremo e também a condição precípua do homem criado à imagem e semelhança do Criador. (Deus contou da existência da árvore...) O homem foi avisado para que não escolhesse mal; para que conservasse santa e pura a sua semelhança com Deus, a fim de permanecer nele e ligado a ele; não que Deus quisesse poupar-lhe o conhecimento de sua possível inferiorização como homem, porém porque o destinou, por seu decreto eterno, à gloriosa condição de poder optar pela unicidade com Deus, em Deus. A “árvore do fruto proibido” era, por assim dizer, a lei que qualificava e valorizava a opção santa e pura de obedecer a Deus! Havendo o homem optado mal, ainda pelo decreto eterno de Deus-Pai, deu-lhe este a oportunidade de nova opção: agora, já não mais a ordem de não comer do fruto da árvore proibida, mas o direito de optar pela fé. Não é mérito para o homem: é privilégio! Não é obra humana: é graça divina. Adão, antes de pecar, viveria pela obediência (optando!); depois da queda o justo vive pela fé, — (ainda optando!). Esta é, parece-me, a posição do homem perante Deus; pôde e pode optar entre ser semelhante a Deus, conservando-se unido a ele: antigamente — na origem da raça, como ser espiritual através da obediência: hoje e na consumação dos séculos, pela fé. Como alternativa, pôde e pode optar também, na origem da raça e hoje, até a consumação dos séculos, pela autopromoção de sua igualdade com Deus, quer seja ouvindo a pregação da “serpente”, ou construindo suas “Torres de Babel”, ou fazendo para si bezerros de ouro...]. Ante o homem “não conhecedor” passeia o Senhor pelo jardim, na tarde amena, como entre seus iguais [por concessão divina e jamais por presunção dos moradores do Éden!]. Voltemos, por um instante, o nosso olhar ao quadro de Miguel Angelo (no teto da Capela Sixtina) representando a criação de Eva e prestemos atenção ao gesto fatal de adoração com o qual a mulher entra no palco, em pleno esplendor de sua sensualidade; observemos a mão de Deus levantada em advertência, e a expressão altamente preocupada de sua face, com que ele responde a este gesto adorativo da mulher. [Novamente a linguagem “mitológica”. As considerações do A. dizem qual a sua interpretação da representação do grande artista; poderiam ser, no máximo, a expressão do pensamento de Miguel Ângelo, sobre a criação da mulher e quiçá, como tal, a mitificação da criação, segundo a tendência humana, pois é absolutamente certo — e é o próprio A. quem o afirma — a santidade era o estado natural do mundo, antes da queda]. 385

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Eva entra no mundo adorando a Deus e, enquanto o adora, afasta-se do Criador. [O A. quer salientar, parece-me, que num gesto de adoração, conforme expressado e interpretável, no quadro de Miguel Ângelo, a criatura estabelece uma determinada desvinculação entre ela e o Criador; já não há mais unicidade entre Deus e o homem. É verdade o que diz o mandamento: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás” conforme Cristo repetiu (Mat. 4, 10); porém adorar a Deus, é tributar-lhe louvor e culto “em espírito e em verdade” (João 4, 24) e não na forma subserviente que, segundo Barth, a pintura de Miguel Ângelo sugere no gesto de Eva, curvada e de mãos postas, ao surgir perante o Criador!]. Ao adorá-lo [dessa forma], ela se afasta dele de maneira jamais ouvida ou imaginada; ela se afasta imprudentemente, atrevidamente. [Eva se faz — sempre segundo a interpretação do quadro — diferente, distante, separada de Deus]. [Todavia], honra seja feita [a essa Eva do quadro]: foi a primeira pessoa religiosa do mundo! Então, logo entra em cena a “celebre serpente”! É dela [que ouvimos] a primeira fala sobre Deus! (O protótipo de todas as pregações!). O mandamento divino torna-se assunto de aconselhamento humano. (Assistência religiosa!...) A gigantesca possibilidade de Adão (a possibilidade de adquirir conhecimento) emerge perante Eva e se transforma em trágica realidade. Sim, em trágica realidade pois, quando o homem se torna “semelhante a Deus” e sabe o que é “bem” e “mal”, quando a sua ligação direta com Deus passa a ser o próprio conteúdo de sua vida, de sorte que “um” passa a estar ao lado do “outro” [o homem com Deus ou vice-versa, segundo a pretensão humana] então se dá a destruição da verdadeira união com Deus. Quando a árvore de centro do jardim for tocada, quando o ser humano tocar naquilo que o une a Deus, e que o separará dele no instante em que for tocado, (quando o homem roçar no que ele jamais deveria!), então ele encostou no arame farpado e eletrizado da linha da morte; então o homem, ao estender sua mão em busca daquele que ele não é, encontrou a sua própria limitação, e achou-se qual realmente é; então abrem-se-lhe os olhos para ver o que o separa de Deus: ver que está nu! Ver que está inteiramente sujeito a seus instintos, dominado pelo sentimento de cobiça e pelas suas paixões; que está inteiramente inclinado ao que é efêmero e passageiro e que, portanto, também ele é perecível. Tocará, o homem, na linha do destino? Conseguirá deixar de a tocar? Por que será que [embora] esta questão — representada pela conjuntura de Deus, como Criador, de uma parte, e do homem, como criatura, de outra, — sendo, quando vista de nossa perspectiva, tão imperativa, tão categórica, tão premente, sequer possa ser abordada? (Por que não podemos formular esta questão?)

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7, 8

Nunca tivemos notícia de um só ser humano que deixasse de praticar o que Adão perpetrou. Nem podemos admirar-nos de que Adão tenha feito o que não deveria: tocamos [constantemente] a árvore e levantamos a questão; a contradição que ela contém, cujo conhecimento e cuja carga Deus, para nossa salvação, reservara a si mesmo, tornou-se o conteúdo de nossa vida; agora a nossa vida é dominada pela exigência que o conhecimento do bem e do mal impõe, e o paraíso passou a ser — o “Paraíso Perdido”! [Isto se dá porque] a determinação daquilo que será “o bem”, daquilo que “deve ser” [ou que se deve buscar], desacredita aquilo “que já é”; pelo menos, “o que é” passa a ficar sob suspeição, e talvez já tenha sido denunciado, ou até mesmo julgado, como sendo o mal. É que, em virtude da cobiça com que o homem estende as mãos ao encalço do fruto daquela árvore [no centro do jardim] torna-se um tanto ilícito (proibido) o desejo de provar do fruto de qualquer outra árvore, pois a cobiça básica [de conhecer o “bem” e o “mal” é, em última análise, de ser igual a Deus], e revela [e torna patente] o santo, o inexorável, o eterno mandamento divino que se opõe a tudo que o homem, como tal, pensa, quer e faz. — O que teria acontecido? — O pecado triunfou. Ele irrompeu impetuosamente [qual a água na parte superior da eclusa que se abre] e encontrou o seu nível natural na multiforme atividade humana que está agora estigmatizada como “cobiça”. Em conseqüência de a afirmação de Deus haver sido posta em dúvida (... “certamente não morrereis”!) tudo quanto é visível, no mundo, passou a ser contradição a Deus, e se apresenta em oposição ao que é invisível; o relativo foi instalado em contraposição ao que é absoluto; as multiformes e sempre novas possibilidades de ligação com Deus, ficaram em contraposição à forma primitiva, original, [aquela que vigorou quando Deus passeava pelo Jardim do Éden, à viração da tarde...]. Esta oposição surgiu do próprio mandamento de Deus [mediante a desobediência ou, mais propriamente, mediante a natureza negativa da opção que o homem fez e faz]; esta oposição a Deus está na religião, que entrou no leque das possibilidades humanas; esta oposição veio da prédica sedutora (da serpente!) falando da ligação direta do homem com Deus [acenando à criatura, com a igualdade a Deus!], discurso esse que encontrou ouvidos por demais atentos, especialmente da parte feminina da raça, mais fortemente impressionável pelo mistério da ligação com Deus. Justamente a religião serve de alavanca, [de meio] ao pecado; serve como seu capital operacional, como ponto de apoio, na empresa que visa a afastar o ser humano de sua união direta, original e verdadeira, com Deus, e conduzi-lo

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— juntamente com o mundo — à condição de criatura [mas não de filho]; visa a colocar o homem em oposição a Deus e em conflito com ele. “Porquanto, sem lei está morto o pecado. Outrora eu vivia sem lei”. “Eu vivia”, colocado na forma passada, semelhantemente ao “viveremos” (de 6. 2) colocado no futuro, não pode ser tomado ao pé da letra. Este passado, referido às origens do ser humano, assim como o futuro que se refere a fatos escatológicos, não trata de um “viver” histórico, como se apontasse a uma data ou era assinalada relacionada a algum, ou alguns ou mesmo a todos seres humanos; não se trata de determinada qualificação da cronologia humana, antes são “um passado” e “um futuro” independentes dessa cronologia. Na melhor das hipóteses poderemos falar [desses tempos passado e futuro] apenas em forma de parábola (e, ainda assim, com muita reserva!), referindonos aos tempos de inocência infantil, e da culpa dos que já não são mais crianças; da culpa de povos, culturas, etc., que “amadureceram” e “envelheceram”. O “viver” a que se refere o tempo gramatical passado ou futuro, não tem expansão histórica, porém é a vida que existe além e em contraposição à vida do presente século: é a vida eterna! “Eu vivia” e o pecado estava morto, porquanto eu vivia “sem contar com a lei”. Sem a lei, o pecado está morto e o homem vive. Se a criatura for pesada e analisada sem considerar a sua contraposição ao Criador, ela não será achada pecadora, pois não estará em contradição a Deus; então ela já não está senão na contingência de simples criatura e não há qualquer suspeição [ou insinuação] de sua relatividade em face do Criador. O contraste [entre a criatura e o Criador] (e, com ele, a evidência do pecado), somente se torna agudo na imensa possibilidade humana que a religião representa. Na vida original, invisível, não histórica, a linha da morte que separa o homem de Deus, não foi tocada; a mão que tangeria a árvore fatal do centro do jardim, não foi estendida; nessa vida a simultaneidade da união e da separação entre Deus e o homem ainda não tem a conotação trágica que lhe advém imediatamente através da religião. O olhar límpido com que se fitam a criatura e o Criador na cena da “criação de Adão”, de Miguel Ângelo, a alegre liberdade com que as duas mãos se buscam, a expressão triunfante da mais profunda e, também, mais comovida paz, reinante no instante da criação, parece coroar o homem [protegendo-o contra aquilo que lhe roubaria o direito de conviver com o Criador], protegendo-o da queda após a qual ele passaria a ser o “homem velho”, a criatura que ansiaria pelo “homem novo” desejando ardentemente a restauração da perdida comunicabilidade. Sim, de tudo isso parece falar a soberba pintura, porquanto

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7, 9

ela nos fala da comunicação direta ainda não perdida, da comunicação que não tem nenhuma conotação religiosa. Neste estado de comunhão direta vive o ser humano: não este ou aquele, mas o ser que Deus criou a sua própria imagem e semelhança, na qual também o restaurará: esta união jamais e nenhures “foi” e nunca e em parte alguma “será”. Dela viemos e para ela iremos! [O ser criado à imagem e semelhança de Deus não “foi” nem “será”: “é”!]. Esta união é feitura e obra exclusiva de Deus; ela é o relacionamento que Deus tem conosco, que o pecado não destruiu. O que Marcion descreveu “como, por assim dizer”, sendo “terra estranha”, é a nossa pátria; pátria que não podemos esquecer; pátria cuja realidade, proximidade e glória o Evangelho nos revela com as candentes palavras Perdão e Ressurreição, Amor, Deus! — e onde a perplexidade e a promessa se fundem e desaparecem porque para além, para onde essas palavras apontam, não há lei nem religião (4, 15). Aquilo que no mundo, em nossa vida e na história, possa parecer-nos como natural e relativamente inocente e puro, conforme a passagem 5, 13 claramente o admite, pode ser, para nós, tomado com a devida simplicidade e necessária prudência, um significativo e esperançoso relance da vida de onde viemos e para onde vamos. [Da vida e para a vida sem pecado, pois o pecado não é levado em conta onde não há lei]. “Porém, sobrevindo o mandamento, entrou o pecado na vida; eu, porém, morri”. “O mandamento veio”; veio porque tinha de vir para o ser humano que, com seu conhecimento do bem e do mal, da eleição e da rejeição, do sim e do não, tornou-se “qual Deus” e se fez participante do segredo divino, ficando obrigado a suportar essa condição. [“Iguais a Deus” apenas no conhecimento do Bem e do Mal]. O eterno “agora” da criatura, foi pulverizado e espalhado por todos os ventos; já não temos conhecimento de era alguma, — (mesmo dos evos mais remotos) — para a qual não houvesse sobrevindo a lei. O relacionamento do homem com Deus vem de uma predisposição divina para com a disposição humana; sendo esta disposição originada por uma predisposição divina, ela destrói todas as demais disposições humanas. [Em decorrência do conhecimento que o homem adquiriu sobre o que é o “bem” e o “mal”], concientizou-se da terrível realidade de seu desconhecimento de Deus e tomou ciência do fato de que é apenas criatura e um ser inteiramente diferente do Criador. Então surgiu-lhe a monstruosa possibilidade do gesto de adoração ao Deus desconhecido, gesto que lança sobre todas as demais possibilidades humanas a luz fatal da impossibilidade.

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7, 9-10

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[Por outras palavras, quando a criatura, feita à imagem e semelhança de Deus, se conscientizou de que o Criador, que com ela privara nas tardes amenas do Éden, era um ser inteiramente diverso desta criatura que é o ser humano, — então esboçou o gesto de adoração, vale dizer a religião, como forma possível de voltar a gozar da comunhão direta com Deus. Ora, é este próprio gesto que evidencia e denuncia a materialidade e a perecibilidade de tudo quanto o homem, como tal, faz; quer e pensa]. Se, pois, o ser humano pode e tem que se conduzir [através da religião] e se no fim da trilha [apertada e estreita segue] se depara com a dupla predestinação — (realidade que só uma religião “tísica” não percebe) — que triste coisa é este ser humano! O que é ele, na realidade? “Então o pecado entrou na vida”. Agora está irrecuperavelmente perdido o instante eterno da criação; já não se pode salvar a pureza, a alegria, a paz, daquela existência em que o Criador, como Deus, e a criatura, como homem, eram um e não dois; já agora se tornou inevitável a introdução da dualidade na existência humana e de um lado, está Deus, como o prepotente adversário do homem e este, do outro lado, como o impotente adversário de Deus. Nessa dualidade Deus cerceia o homem, e o homem “restringe” a ação divina. [Do ponto de vista humano], um põe o outro em dúvida, e ambos se opõem comprometedoramente. “Porém eu morri”. E o passado primevo (não temporal), está claro. Esta morte assinala a passagem da eternidade para a temporalidade. Agora, tudo se tornou indireto. Nossa vida ficou em insolúvel oposição à vida divina e por isso está sob o inevitável estigma da morte, em toda sua extensão. Situados em nossa finitude, somente podemos vislumbrar o eterno pela porta estreita da negação decisiva, porta essa que constantemente se fecha e que precisa ser sempre arrombada novamente. Cabe-nos, apenas, lembrarmo-nos de que temos de morrer; convém pois que nos tornemos sábios, para não sermos tolos (no sentido mais infeliz da palavra!). É na morte que nos confrontamos com a interrogação da vida, a interrogação divina. A interrogação sobre o “SIM” se impõe inexoravelmente dentro do “NÃO”; ela está no contraste entre o visível e o invisível — está na figura do tempo que só pode ser passado ou futuro, porém, jamais presente; está no conteúdo da história que só é história e nunca atualidade; está na representação da natureza, que só pode ser o Cosmos, porém jamais será criação. Conhecemos apenas o mundo da temporalidade, dos homens e das coisas e a experiência máxima que nesse mundo podemos ter, que é também a experiência básica de todas as demais, resume-se nesta frase: “Eu, porém, morri”!

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A Significação (o sentido) da Religião

7, 10

Isto se dá, exatamente, com o homem religioso; aliás, é uma peculiaridade dele: “E então exclamei: Ai de mim que pereço! Eis que vi o Rei, o Senhor Jeová, com os meus próprios olhos. (Isa. 6, 5). [A tradução de Almeida, escreve: “Estou perdido!... os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos”!] Desta visão e deste desfalecimento ninguém pode fugir. “Então aconteceu que justamente o mandamento, que visava a vida, me proporcionou a morte”. “Pois o pecado obteve um meio pelo mandamento, enganou-me e me matou”. O paradoxal em nossa queda é que a possibilidade mediante a qual o pecado destruiu a nossa união com Deus, — [a comunicação direta do Éden] — é agora, na vida do relacionamento indireto com Deus e dominada pelo pecado, a nossa maior, a mais premente necessidade: é a ânsia de tocar a linha da morte; é a busca do conhecimento do mal e do bem; é a emergência, o aparecimento, do contraste entre Deus, como Deus, e o ser humano, como homem. [Em outras palavras, talvez pudéssemos dizer que o maior absurdo de nossa queda, é que justamente a aspiração que a motivou, — o desejo de sermos iguais a Deus, é agora o que temos absoluta necessidade de recuperar]. Se procurarmos identificar a força que, entre as contingências humanas, materiais e passageiras do mundo, nos impele em busca da vida em união [ou comunhão direta] com Deus, essa vida que foi perdida e que ansiamos por recuperar, veremos que [essa força] é o mandamento; é a lei. É a nossa capacidade religiosa; é o cumprimento, a plena realização de nossa negação decisiva, final, crítica: é a lembrança e a consideração de que “temos de morrer”. Acaso existe algum outro meio pelo qual possamos perceber o invisível (1, 20) para, como homens sensatos, sabermos o que se pode conhecer de Deus, sem que seja pelo caminho estreito e apertado da morte? Onde poderíamos e quereríamos ficar (agora e neste mundo onde, de qualquer maneira, teremos que estar) se não na beira desta linha “de onde Adão caiu” (Lutero), já que não podemos estar além dela? Onde haveremos de procurar estar, se não naquela posição arrojada e privilegiada onde encontramos o “Jesus histórico”, Abraão, Jó, todos os profetas e apóstolos, lá no limite extremo das possibilidades humanas onde o homem, o ser humano por excelência, está verdadeiramente à máxima distância de sua união ou comunhão direta] com Deus? — (Deus, Deus meu, por que me abandonaste?). Onde haveremos de estar se não lá onde a problemática da existência se torna sobremaneira pesada, [onde a sua sobrecarga é sentida ao máximo]? O que mais poderemos ser honestamente, se não criaturas religiosas, penitenciando-nos no pó e na cinza para, porfiando com temor e tremor, na esperança da graça, em verdade, esboçar [sempre] o gesto de adoração?!

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7, 10

A Significação (o sentido) da Religião

O mandamento que a isto nos constrange visa à vida, e sabêmo-lo muito bem; nem poderíamos, aqui, saber outra coisa. Se, ao medirmos as conseqüências [da atitude religiosa], acaso nos atemorizarmos e não ousarmos ir ao extremo que a possibilidade religiosa nos oferece, se acharmos forte demais a inexorabilidade de Calvino, por demais grandiosos o ânimo dialético de Kierkegaard ou a devoção de Overbeck, ou ainda a fome de Dostoiewski pela eternidade, e a esperança de Blumhardt, então contentemo-nos com uma religiosidade inferior, mais fraca, alguma espécie de pietismo ou, [quem sabe], alguma forma de racionalismo. Todavia, também estas [expressões “mais palatáveis” da religião] apontam às conseqüências inexoráveis do limite extremo da possibilidade humana e ninguém pode impedir que, um dia, a crise que essa possibilidade — [a religião] — nos apresenta venha à luz. E se acaso Adão, mais facilmente contentável, se conformar com as possibilidades inferiores, se ele se esquecer de qual é a verdadeira situação humana e do que lhe resta, então Eva, mais sensível à perda da comunhão direta com Deus, lhe traz presente, de novo e sempre, a lembrança desta suprema possibilidade humana de união indireta com Deus: a religião. Porém, — e este é o trágico paradoxo — o ato de aproximação a Deus [pela religião], que na conjuntura histórico espiritual em que nos encontramos como criaturas neste mundo, representa o nosso movimento de retorno à terra estranha que, no entanto, é nosso verdadeiro lar, (ato esse do qual menos podemos nos esquivar) é, justamente ele, o ato que configura a maior traição [da criatura] à predisposição divina; e o ato que, representando a expressão mais alta de nossa ligação indireta [com Deus], expressa também o nosso absoluto distanciamento, o nosso fundamental alheamento da comunhão direta. É justamente pela religião, a maior das possibilidades humanas, que irrompe a catastrófica impossibilidade do homem perante Deus e que, do ponto de vista divino, não deveria ter acontecido. Porquanto “o mandamento, logo ele, me proporcionou a morte”. A necessidade incoercível de exercer a atividade religiosa [em alguma de suas formas] e que se expressa no gesto de estender a mão à árvore do meio do jardim, no desejo de conhecer o Bem” e o “Mal”, de conhecer a vida e a morte, e [de saber o que é] Deus e o homem, é uma realidade que brota da criatura, neste mundo, e por isso ela é incontornável; é por ela que a criatura é classificada como sendo má, mortal, como homem; é por ela que a criatura é lançada e acorrentada ao absoluto, em contraste com o relativo; é por ela que, na melhor das hipóteses, o ser humano é posto diante daquele “NÃO” que abriga, só ele, o “SIM” divino.

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A Significação (o sentido) da Religião

7, 10-11

Religião significa a morte. Para provar esta analogia, é bastante lembrar que toda relativa inocência, ingenuidade e paz interior desaparecem quando a religião [ou para quem a religião] se torna aguda. A religião jamais proporcionará harmonia [a paz] da criatura consigo mesmo, e muito menos com o que é eterno. Nela não há lugar para sentimentos generosos e nobreza, conforme talvez o possam supor centro-europeus e ocidentais ingênuos. A religião é abismal, e pavorosa; nela aparecem demônios. (Ivan Karamazov e Lutero). Na religião o milenar inimigo está inconfortavelmente próximo, e tudo isto acontece pelo engano (pelo logro) do pecado. “A serpente me enganou”. (Gen. 3, 13). É por isto que o mandamento é a morte da criatura. O pecado torna possível aquilo que agora, neste mundo, é a nossa carência, a nossa necessidade: a mais alta mediação do conhecimento do “Bem” e do “Mal”. O logro está na ilusão de que essa mediação significa a vida quando, na realidade, ela significa morte. Esse logro se perfaz cegando o ser humano para que ele não veja que a sua própria carência e sua necessidade, puramente humanas, são coisas que não devem, como tais, existir perante Deus. O logro é bem sucedido porque o ser humano, que toma essas características [de conhecimento] perante Deus, revela-se como simples criatura. [A tradução inglesa diz: “Ele (o logro) tem bom resultado porque a determinação humana de reter a possibilidade de independência diante de Deus, revela que os homens são apenas homens”.] O mandamento é o meio, a alavanca, na mão do pecado; a mediação veste as roupagens da imediação; piedade passa a ser ação e obra do homem; é uma religião que não sabe quão questionável é, já não o mundo, mas ela própria; é uma adoração que não sabe calar perante Deus; que deixa tombar os braços que se levantaram em prece para novamente incitá-los a que se ergam, deixando-os, porém, cair sempre de novo. Esta é a situação humana! [A tradução inglesa escreve assim: “O mandamento é, por tanto, a alavanca, a ocasião para o pecado; vestindo o que é temporal com as roupagens da eternidade, ele apresenta a piedade como obra humana; evoca adoração que não sabe silenciar perante Deus, designa tal adoração por “religião”; oculta do adorador [do crente], não somente a situação duvidosa do mundo, mas também quão terrivelmente duvidosa é a religião; ele [o mandamento] o anima a erguer as mãos em prece e deixa-as cair em aflição, e nesta aflição o induz novamente à prece. Esta é, afinal, a situação em que os homens se encontram, sob a lei”].

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7, 10-13

A Significação (o sentido) da Religião

[E assim] encontramos a segunda resposta à nossa indagação sobre o significado da religião, a saber: A religião, pela necessidade que dela tem o ser humano, é a demonstração do poder que o pecado tem sobre a humanidade, neste mundo. [Esta conclusão] nos compele a considerar novamente o sentido da liberdade de Deus ante o círculo que circunscreve e fecha a humanidade na religião. [A primeira resposta a essa indagação está no final da exegese do versículo 7, a saber: a religião torna visível a realidade do pecado]. Vs. 12 e 13 Por conseguinte a lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom. Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Porém o pecado me preparou [me condicionou] para poder revelar-se como pecado; por meio de uma coisa boa [causou-me] a morte, a fim de que o pecado se manifestasse como incompreensivelmente pecaminoso, através do mandamento. “A lei é santa; e o mandamento santo e justo e bom”. [Nestas condições], o que faremos?! Exclamará a criatura que, — sob a terrível pressão de sua situação no mundo, havendo tomado consciência de si mesma, do mandamento que lhe é dirigido e do seu afastamento de Deus, — houver abraçado a religião. A resposta a esta pergunta apenas há de realçar a sua grandeza. Pergunte-se sempre! Que Deus conserve o nosso ânimo de perguntar! Que essa pergunta nos chegue de toda parte, de todos os lados, e nos cerque inteiramente! Que Deus nos negue qualquer resposta que não seja outra pergunta; que ele nos impeça de contornar o problema, de buscar contemporizações; que essa pergunta seja o aro da roda de cujo cubo já falou Láo-Tse, com muita precisão. [Atribui-se a Láo-Tse, o livro Tao-Te-King (O Livro do Caminho da Vida), possivelmente escrito no século III A.C., em que são expostas as doutrinas do Taoismo. Aí se afirma alegoricamente, que “os 30 raios e o arco da roda da carreta seriam inúteis se não existisse o cubo central, assentado no eixo”.] A resposta à pergunta é o conteúdo do plano delimitado pelo círculo que circunscreve o sentido da pergunta que, por isso mesmo, não pode deixar de existir por um instante sequer. (Em outras palavras, na alegoria da roda, a própria pergunta aflita do ser humano aponta para o centro que é Deus. Se o homem já não perguntar será, ou

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porque se desinteressa pelo problema, ou porque encontrou (e aceitou) a resposta que ele mesmo tem para dar, ou porque está afastado de Deus por se haver alheado, ou porque substituiu Deus por si mesmo! Por isso, “livre-nos Deus” da tal coisa. A pergunta não pode deixar de existir pois em seu âmbito (como dentro da área que o lugar geométrico da circunferência delimita) está o próprio relacionamento lícito do homem para com Deus). “A lei é santa”. A “religião” é tão pouco o pecado quanto qualquer outra possibilidade [ou capacidade] humana o seja, pois pecado é muito mais que uma possibilidade. Antes, pelo contrário: A “Religião” marca o ponto onde todas as possibilidades humanas entram e ficam expostas à luz divina. [Ou para usar a maneira de dizer da tradução inglesa: “A religião é o lugar onde toda capacidade humana é iluminada pela luz divina”]. [Colocada no ambiente do mundo], fora do que é propriamente divino, a Religião representa o que é divino, por delegação, [como se fôra dele] uma cópia; [quem sabe], um negativo; contudo ela não é divina. É por isso que, neste mundo, a Religião é, indubitavelmente, sagrada. É a religião que, ao longo dos caminhos do mundo testifica o que é divino; fala da retidão; é a religião que repele as coisas humanas e aponta a Deus. A religião é correlata, paralela à vontade divina, e a própria semelhança dessa vontade. A religião é o bem que mostra o desenvolvimento e a situação [do homem], testemunhando da perdida ligação direta com Deus por meio da ligação indireta [que ela representa]. Se consciente ou inconscientemente quisermos fugir da ambigüidade que sentimos na religião, ou haveremos de voltar a manifestações humanas menos sublimes, talvez lógicas, éticas e estéticas e até a formas menos nobres ou nos encaminharemos a modalidades religiosas [exóticas], quer sejam antigas, quer modernas; ora, não estando a pessoa devidamente informada a respeito do fenômeno religioso, certamente escolherá mal. Não existe para a humanidade um “AVANTE”! que vá além da possibilidade religiosa. A religião é o último “avanço” do homem [no mundo] porquanto (e na medida que) dentro da conjuntura humana e fora do que é divino, ela testifica aquilo que está além da conjuntura humana e dentro da esfera do divino. Por tanto, dentro da possibilidade religiosa, podemos apenas anelar pelos melhores dons, afora a soberania do amor que não tem ciúmes. (I Cor. 12, 31; 14,1 e 13,4). Oxalá fôssemos pessoas religiosas, verdadeiros adoradores, esperando [em Deus] e o buscando de toda nossa alma, de todo nosso coração e com todas

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A Significação (o sentido) da Religião

as nossas forças! — Que despertássemos para a religião, que a conservássemos viva e a cultivássemos e que, acima de tudo, a reformássemos — não: que sempre a revolucionássemos! Esta é, sem dúvida, a tarefa que, entre todas as atividades humanas, vale o suor e o esforço dos caracteres nobres. Todavia, quanto mais conseqüente for a nossa religiosidade, quanto mais nos aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será, sobre nós, a sombra da morte. É bem compreensível a relutância da maior parte da humanidade em colocar-se na posição extrema dessa possibilidade [de entregar-se irrestritamente à religião], onde, do ponto de vista humano, apenas subsiste a pergunta, como tal; onde tudo, absolutamente tudo, que está mais além, se situa à luz dessa pergunta: [O que faremos, pois?] São bem compreensíveis as incontáveis tentativas [humanas] de encontrar um meio termo, um compromisso, entre a humanidade espiritualmente adormecida e a religião conseqüente da lei santa, justa e boa. É bem compreensível a pergunta: “Acaso o bom se me tornou em morte?” Esta pergunta coincide com a outra, (da qual partimos para nossa análise) e que indagava se a lei era pecado (7, 7); o conteúdo dessas duas perguntas poderia levar a quem quer que busque a lei, a evitá-la, a fugir dessa luz mortiça, do lusco-fusco, do perigo da Religião. Bem sentimos a tensão, o desassossego, a inviabilidade da situação em que estamos (e à qual fomos levados) sendo religiosos. Não é verdade [falando do ponto de vista humano], que isto que nos leva pelo deserto a dentro para tão longe das panelas de carne do Egito [Exo. 16, 3]; isto que assim nos levanta para, em seguida, lançar-nos ao solo; isto que é tão excêntrico e tão invulgar; isto que nos transforma em emigrantes [peregrinos] e estrangeiros; não é verdade que isto [que assim age e assim se manifesta], que tanto se assemelha com a morte, não pode ser o bem, [nem o bom]? Haverá, Deus, de ser tão duro conosco? Quão próximos de nós estão todas estas soluções antinômicas ou semiantinômicas! Que convidativas e simples são elas! E todas se propõem a libertar a criatura humana da amarga e terrível seriedade da religião: que o homem não se atormente: todas oferecem, em contraposição a sombra da morte que a lei de Deus projeta, uma salvação alegre, [quiçá mais] modesta [menos espetacular], aquém da zona do perigo, embora [esqueçam que] os grandes pregadores da salvação pela graça tenham, todos, passado os seus dias sobre a terra, debaixo dessa sombra. Não seria demasiadamente grande a tentação de tirarmos da religião a sua carga explosiva, de a tomarmos um pouco menos a sério, como a rigor se

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poderia fazer e, desta maneira nos livrarmos, pelo menos em parte, da maldição e da miséria da mediação [em nossa ligação com Deus, que a religião nos impõe]? Não seria forte a tentação de nos libertarmos dessa possibilidade [ou atividade]? Não seria razoável procurar diminuir ou evitar até certo ponto, os efeitos desta possibilidade que é apenas humana, que é tanto relativa quanto alternativa, própria à existência neste mundo, e que a ninguém sobrecarrega mais do que à criatura religiosa? — “Impossível”!, respondemos. Custe o que custar, temos de suportar este fardo. Temos de sorver o cálice até a última gota. O bom não deixa de ser bom [nem o bem deixa de ser o bem] pelo fato de não ser a coisa simples ou fácil, por não ser o que está diretamente à mão, por não ser o logicamente aceitável, nem deixa de ser bom (ou o bem) porque, indubitavelmente, nos conduz à porta da morte. Temos de tomar sobre nós o paradoxo cabal da situação da criatura neste mundo, e que consiste nisto: quando tomamos consciência do que somos e qual é a nossa situação neste mundo, quando nos confrontamos com a problemática desta vida, o mandamento de Deus vem a nosso encontro e nos conduz, passo a passo, à nossa última e maior possibilidade [leva-nos à religião]; então, suspirando, desfalecendo, implorando, clamando, estendemos as mãos súplices ao grande desconhecido, ao SIM invisível, oculto dentro do “NÃO” que nos aprisionou; somos obrigados a reconhecer que todo esse suspirar, esse desfalecer, esse implorar, esse clamar, não nos justifica, não nos redime, não nos salva, antes, com o nosso aiar, nossa súplica, nosso desfalecimento, nosso clamor, apenas confirmamos e comprovamos que somos criaturas humanas — [apenas criaturas e nada mais]! Preciso obedecer à cobiça [ao desejo] que está acima de todas as cobiças, ao desejo de voltar à vida de ligação [comunhão] direta com Deus, que foi perdida e, enquanto eu o escuto [e o acalento], este desejo qualifica todos os desejos [do meu coração] — também a si mesmo, e não em último lugar — como pecaminosos. “Desde que, mediante a lei, eu sei em que termos me encontro perante Deus, estou em temor e sobressalto, em interrogação e medo, qualquer que seja o meu caminho: assusta-me o farfalhar da folha e me apavora o trovão; estou sempre preocupado [solícito pela minha vida, pelo que hei de fazer, comer ou vestir ...]. Estou constantemente em angústia, pensando que Deus pode vir por traz e ferir-me com uma dava”. (Lutero). [Eis a situação cruciante da criatura humana, na religião]. Para alcançar a “semelhança com Deus”, para usufruir do “instante eterno” que é o ponto central visado por todas minhas atividades preciso, a despeito

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de minha covardia e minha fraqueza, enfrentar o perigo e ousar tudo. Preciso ceder [no terreno de meus interesses e minhas conveniências na sociedade e no mundo em que vivemos] e preciso sacrificar [anseios, desejos e cobiças de minha natureza material, tanto carnal como intelectual]. No entanto, depois de eu me haver arriscado a tudo, de haver cedido em tudo, eis-me de mãos vazias, pó e cinza, estrangeiro, ainda mais afastado de Deus do que antes. Sabemos, finalmente agora, o que é o pecado e quão pouco nos é possível escapar dele? [O pecado], essa possibilidade que existe em todas as atividades humanas, é tão fundamental que, justamente na tentativa de escaparmos dele, [o que tentamos por meio da religião], nele nos embaraçamos e nos lançamos ao encontro de nosso destino mortal. “Porquanto o pecado me preparou para poder revelar-se como pecado”. [Fê-lo] pelo que é bom! Pelo que é necessário! Pelo inevitável! [Fê-lo] por meio daquilo a que, para sermos honestos, afinal, nos agarramos qual náufrago ao graveto que passa. [O pecado nos prepara e nos condiciona para revelar-se] pela possibilidade [sublimei que, ao ser descoberta, surge para nós como luz na escuridão. Prepara-nos pela mais pura, mais esperançosa, pela mais desejável das possibilidades humanas. O que é o erótico, o alcoólatra, o intelectualista, o adorador de “Mamon”, o déspota, o que é a multidão de diuturnos filisteus, a par do crente, a par do pecador em oração? Todavia é este, — e não aqueles — quem ouve e percebe o aniquilante “PARE!” que Deus ordena aos homens. É este, e não aqueles, quem perece pela morte, que é a ultima sentença exarada contra o homem neste mundo. “Na verdade ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as dores nossas carregou sobre si” (Isa. 53, 4). Ele é o pecador; enquanto ele, concomitantemente, é o inocente, o bendito que anuncia a salvação e a vida, quando nosso castigo é posto sobre ele para que tenhamos a paz, (Isa. 53, 5); não se trata de possibilidade [ou obra] humana, mas de ação divina. Compreendemos, afinal, o que é o pecado e qual o sentido da religião? “A fim de que o pecado, pelo mandamento, se revele incompreensivelmente pecaminoso”. A finalidade da religião, como suprema finalidade do homem, consiste em revelar na inexorabilidade dos fatos (7, 7 IN FINE) e, inevitavelmente, (7, 8-11) o soberano poder que o pecado tem no círculo humano que ele fecha, e o cerceamento desse poder pela liberdade de Deus. Somente por essa liberdade! Este é o sentido, o significado da lei; ela aguça a nossa vista [abre a nossa inteligência, o nosso entendimento] para compreendermos que esta libertação da

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lei, essa servidão segundo a nova lei do Espírito, pela qual já olhávamos para além dos limites da religião (7, 6), é de todo impossível à criatura humana, neste mundo. Comentários: 7, 7-13 1. Ao analisar as considerações do A. sobre a religião é preciso ter sempre presente a sua clara afirmação de que a religião é a expressão da maior possibilidade humana, sob o pecado, sem daí concluir que religião seja sinônimo de pecado; antes, diz ele, quem assim pensar não sabe o que e religião. (Ver exegese de 77). Todavia, o A. confessa candidamente que, por repetidas vezes, os seus comentários “quase” levaram à conclusão de que a religião é o próprio pecado. Ora, se não fora o limite que o “quase “ estabelece, a conclusão estaria em franca oposição à Palavra de Deus, que declara ser a lei “boa”, santa e justa” e mais ainda, a lei vem de Deus. A confissão dessa extremidade — desse “quase”, é procedente pois acompanhando a exposição de Barth chegamos ao limiar da anatematização da religião. Essa posição extremada, essa incursão e pesquisa ao longo dos aspectos mais difíceis (e até mais escabrosos) do tema é uma característica do Autor; tem-se a impressão que a indagação surge espontânea e, intimorato, ele a persegue e disseca sob todos os ângulos e aspectos sem endereço certo; sem encaminhar o raciocínio para uma tese preconcebida; indaga e analisa sem destino prévio e forçoso é reconhecer que ao nos aproximarmos do final da exposição, concluímos por antecipação pela tese que logo a seguir resulta demonstrada. 2. “Pergunte-se sempre”! Esta é a satisfação que o A. oferece à pergunta “O que faremos?” Parece que esta resposta não condiz com a que recebeu o carcereiro de Filipos quando perguntou a Paulo o que deveria fazer para salvar-se, nem com aquela que o próprio Paulo, (ainda como Saulo), recebeu quando viajava ao longo da estrada para Damasco. (Atos 16, 27-31 e 22, 10). Todavia, a pergunta de que o A. trata (na exegese de 7, 12) referese não ao que fazer para salvar-se mas, ao que fazer com a religião que, de uma parte se impõe como inexorável necessidade humana — santa, justa e boa e, de outra, define o pecado e impõe a inexorabilidade de seu salário — a morte!

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Ora, somente indaga, se aflige e pergunta quem sente a grandeza divina da lei; a fatalidade do pecado que ela revela e condena. É por causa desta sensibilidade e em virtude do anseio pela graça divina que ela evidencia, que o A. faz votos de que Deus conserve e preserve o nosso ânimo de perguntar. Quem, pela graça de Deus, vir o pecado, pela mesma graça verá a fidelidade de Deus. Não se cansará, nem se fatigará de perguntar, antes, renovar-se-ão suas forças de dia a dia e sobreviverá pela fé.

A REALIDADE DA RELIGIÃO (7, 14-25) A finalidade da religião é testificar o poder e domínio que o pecado exerce sobre a criatura humana neste mundo: também a pessoa religiosa é pecadora e o é justamente como religiosa! Isto para que, abundando o pecado, fique claro o que significa a superabundância da graça (5, 20), e se evidencie a necessidade da misericórdia de Deus “a despeito” [do pecado]. [A tradução inglesa escreve assim: “A percepção do significado da religião depende da clareza em que se revela o domínio do pecado sobre a criatura deste mundo. Quando reconhecemos a pecaminosidade peculiar ao homem religioso e vemos que o pecado é abundante nele, então compreendemos o que significa a “super-abundância da graça” (5, 20) e a necessidade de que a misericórdia divina se manifeste a despeito do pecado”]. Porém, antes que voltemos novamente nossa atenção ao ponto de vista geral dessas nossas cogitações, [sobre a liberdade de Deus, no homem], convém que nos precatemos contra a conclusão (que possam tirar os teoristas) da nossa dedução teórica de que a religião é a última pergunta do homem, e que venham dizer-nos que a resposta a essa pergunta está, exatamente, na chamada “realidade religiosa”; que esta realidade já não é questionável e que ela está além do que seja culpa e destino. Para tanto, precisamos dar a palavra a essa “realidade religiosa”, isto é, Homem Religioso naquilo que ele tem de peculiar: [dar a palavra à] — “Psicologia da Religião”! Acaso sabe o homem religioso algo mais além do fato de que o pecado celebra o seu triunfo marcando-o [a ele, o religioso] com a marca de escravo seu [ferrando-o a fogo], (e que, para fazê-lo), serve-se do que é bom, serve-se [justamente] da mais esperançosa, da mais alta e mais inevitável possibilidade humana para, através dela mesma, proporcionar-lhe a morte? (7, 13). [Na realidade], nada mais que isso conhece ou sabe o homem religioso. Por mais que a psicologia romântica procure esconder este fato, exaltando a religião como o meio de dignificar todos “os conhecimentos do mun-

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do” apresentando-os como “obras de Deus que acompanham todos os atos humanos qual música divina” (Schleiermacher), a religião propriamente dita, a religião ativa, combativa, devidamente lastrada, não estética (isto é, sem preocupação com o artístico, o belo, o agradável aos sentidos], a religião não retórica, não devota, a religião qual a retrata o Salmo 39 ( “tu és a minha esperança livra-me desvia de mim o teu olhar para que eu tome alento”!], ou [então a religião] de Jó, de Lutero, de Kierkegaard, a religião de Paulo — tal religião reagirá tenazmente, sempre e de novo contra a religiosidade inócua e insossa [do romantismo]. Esta religião vigorosa não pretende ser o coroamento do ser humano ou a expressão de sua plena realização antes, se sente como sendo algo perturbador, como sendo uma atividade perigosa; ela traz a sensação de estar fechando completamente o círculo da humanidade e de, concomitantemente, o estar abrindo subrepticiamente. [Entendo que o A. quer dizer que a religião vigorosa, a religião que tem consciência da posição da criatura perante Deus, na realidade envolve e enfecha todas as possibilidades humanas, todavia também as anula, as esvazia do valor que possam pretender ter perante Deus e dessa forma prepara o caminho para a graça de Deus, que testifica]. A religião vigorosa, [não totalmente dominada pelos interesses pessoais, não beata nem carola, nem mística, mas submissa ao Senhor Jesus e nele confiante] põe em dúvida e questiona toda a atividade humana e a totalidade dos acontecimentos na história do mundo, eventos esses a que se contrapõe e que considera como incompreensíveis, insuportáveis, inaceitáveis. A religião está longe de ser o lugar saudável onde se encontra o bem estar do homem mas é o ponto onde se revela e se reconhece a nossa enfermidade; nela não está a harmonia mas aí se entrechocam as desarmonias de todas as coisas; nela a cultura não encontra fundamento antes é posta na mais profunda dúvida junto com a sua companheira, a incultura. A religião viva e vigorosa sabe que todas criaturas no mundo, nos instantes de apreciação honesta, fazem dela exatamente este juízo. “Cessa a música, levanta-se a cortina; Também, ao longe, desapareceu o Templo Eis que surge, enorme, imensa, a velha esfinge”! (Fr. Schlegel sobre os Discursos de Schleiermacher). E a religião há de, certamente, esquivar-se de ensinar algo de melhor a semelhantes inconversos. [Referindo-se ao comentário de Fr. Schlegel].

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A realidade da religião é luta e escândalo; pecado e morte; satanás e inferno. Ela não conduz o homem através da problemática da culpa, ou para fora dela, antes o leva ao encontro dessa problemática. A religião não traz a solução nem a resposta à pergunta vital da criatura neste mundo, antes apresenta-lhe, por assim dizer, um enigma insolúvel. A religião não se propõe a ser usufruída nem exaltada; ela quer, apenas, ser suportada como jugo obrigatório. Não se pode desejar, apregoar ou recomendar a religião a ninguém. A religião [do ponto de vista humano] é infelicidade que irrompe em certas pessoas como necessidade fatal e por elas atinge a outros. Religião é a infelicidade sob cuja pressão João, — o batista — sai para o deserto, a pregar o arrependimento e a lei. É sob o pressionamento da religião que vem a lume um tão estremecido e profundo gemido qual o da segunda carta aos Coríntios. É esta mesma pressão que transmudou a face de Calvino, marcando-a com a expressão que ele apresentou nos seus últimos dias. Religião é a infelicidade sob a qual, provavelmente, terá de gemer [ainda que] secretamente, toda criatura que se chama humana. [Para comprovar esta afirmação, vejamos o que se pode constatar, primeiramente, dos versículos 14-17 e, em seguida, dos versículos 18-20]. Vs. 14-17 (Primeira constatação): Pois eu sei muito bem que a lei vem do Espírito; eu, porém, sou carnal, vendido ao pecado. Portanto o que faço, isto não reconheço; pois não faço o que quero mas o que odeio, isso faço. Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa; porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que está em mim. [A tradução de Almeida escreve assim: “Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado. Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero consinto com a lei, que é boa. Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. Parece que ambas as redações deixam bem claro que ao fazermos o que não queremos, por não querê-lo, estamos confirmando a boa qualidade da lei. Todavia o A. chama atenção à primeira parte do versículo, onde ele escreve “eu sei muito bem que a lei vem do Espírito” — (ou, é espiritual) enquanto Almeida, e as demais traduções escrevem, “bem sabemos que a lei é espiritual”.

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Em nota de rodapé, analisando o texto grego, o A. diz que embora a tradução “nós sabemos” seja defensável, ele prefere a forma “eu sei” porquanto, pelo contexto, não considera que os romanos — (os destinatários da carta) estivessem em consenso com Paulo, sobre o assunto; portanto Barth prefere, neste particular, acompanhar Hoffmann e Zahn. (Para o comentário completo do A., ver o original ou a trad. inglesa da 6ª edição, ao pé da página 259)]. “Eu sei que a lei é espiritual”. Saber isto, é o primeiro requisito de uma criatura religiosa. Ela está sob a impressão compulsiva do Espírito, que é compulsivo por ser o “de onde” que se opõe diretamente à pergunta “para onde” que a morte apresenta. A criatura fica situada entre a aflição e a esperança de uma batalha da qual não pode esquivar-se por se tratar da luta pela própria existência. Ela está perante uma solicitação que precisa satisfazer a todo preço, pois todas as insuficiências de sua vida e de seu modo de ser testificam a necessidade e a justiça dessa exigência. Pergunta-se-lhe, e ela precisa responder; ela é chamada, e deve obedecer. A existência de Deus sobressai e se eleva qual um muro, qual uma fortaleza que bloqueia o horizonte e invade a vida do ser humano qual punho cerrado e ameaçador. Nesta situação o ser humano precisa tomar posição, precisa definir-se, precisa submeter-se. Paulo sabe o que diz quando, escrevendo algures, se considera “prisioneiro e encarcerado.” (Efésios 3, 1 e 4, 1; II Timóteo 1, 8 e Filemon 1, 9). “Senhor, tu me persuadiste e eu me deixei persuadir; tu foste mais forte que eu, e prevaleceste”! (Jer. 20, 7). Eu porém, sou carnal, vendido ao pecado”. [Mediante semelhante condição], se Deus for Deus, quem sou eu? [Como ser carnal e pecaminoso) estou preso e acorrentado por ele? Ante semelhante interrogação, pela própria experiência da vida, se torna evidente que [como homem carnal] não tenho uso para essa urgência, essa inevitabilidade, essa imposição que a lei do Espírito traz. [Essa solicitação não é dirigida a mim]. Que espécie de existência seria essa que, recebendo o impacto da lei que vem do Espírito, tivesse de orientar-se pela aflição e pela esperança que ela provoca e tivesse de submeter-se a sua solicitação? Em qualquer hipótese, não seria a minha, nem qualquer existência humana que eu conheça. Como haverei de responder [carnal que sou], se for interrogado? Como haverei de escutar, se for chamado? “Eu sou carnal”. A carne jamais será Espírito! Seria, então, na ressurreição da carne? “Estou vendido ao pecado”. Esta transação, [esta venda] não é reversível [ou anulável], senão pelo perdão dos pecados. Ora, eu sou um ser humano

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e nenhum entusiasmo religioso pode iludir-me ou me enganar sobre o que isto significa: somente uma criatura nova [poderia fazer jus a essa condição que a lei do Espírito impõe], somente a vida eterna poderá libertar-me da perplexidade, [segundo a tradução inglesa “do enigma”] de “minha condição de criatura humana”. [Como homem do presente século], para que me serve o Espírito? Para que me serve a lei que dele procede? Para que me serve minha “religiosidade”? Para que me serve a persuasão e o subjugamento divinos? Não é, então, público e notório que não há (em mim) forças para suportar a situação? “Senhor, retira-te de mim porque sou pecador”! (Luc. 5,8). “Deus”, não condiz, não vai bem com o homem que sou. [A trad. inglesa escreve: “Não há elo de ligação entre mim, qual sou, e Deus”]. “Porquanto o que faço, isto não reconheço, pois não faço o que quero, mas o que odeio, isso faço”. É evidente: se. acaso, a lei ou a minha personalidade religiosa fosse o próprio Espírito; se, acaso, “a contemplação e a percepção do universo” e “a sensação e o gosto do infinito” (Schleiermacher) pudessem ser tomados seriamente como possibilidades possíveis; se, acaso, Deus e o homem que eu sou pudessem ser, de alguma forma, tomados juntos, então olhando deste ponto de vista, eu deveria estar em condições de considerar-me como a resposta à pergunta crítica desta vida; eu deveria considerar-me como um ser obediente ao mandamento divino: uma nova realidade abençoada por Deus. Então eu reconheceria e aceitaria minhas realizações, minhas palavras, meus atos e obras, toda a minha vida real, como totalmente alinhada com as exigências do Espírito ou [quiçá sendo mais modesto], pelo menos parcialmente em conformidade com elas, ou ainda, que fosse [apenas] como um princípio auspicioso, esperançoso, do cumprimento das exigências da lei. É claro que eu posso ser naturalmente ingênuo e também suficientemente presunçoso para pretender, ou afirmar ocasionalmente, que estou nestas condições, contudo, as circunstâncias se encarregarão de demonstrar que não posso afirmar isso com muita segurança e por muito tempo pois, por mais esclarecedora e mais clara que seja para mim a determinação divina de que a vontade de Deus se cumpra em minha vida e de que seus preceitos são leves, é igualmente evidente e claro que isto não acontece — não aconteceu e nem acontecerá mesmo nas coisas mais simples de minha vida, em nenhum instante sequer, nem mesmo no mais alto, no instante mais puro, mais límpido, no momento mais reto de minha existência. Estou, acaso, em condições de ter um só pensamento que seja a expressão do Espírito que me compele? Acaso uma palavra minha, uma única que

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fosse, seria a expressão que procuro para exprimir com propriedade a minha grande ansiedade e imensa esperança? Acaso posso falar de outra forma se não de maneira que uma palavra suprima e cancele a outra? Será que me situo melhor pelos meus atos e obras? Acaso a minha infidelidade nas coisas grandes constitui um sucedâneo válido à minha infidelidade nas coisas pequeninas, ou vice-versa? (Seria assim — de infidelidade em infidelidade — que eu supriria aquilo que me falta e pelo que anseio?) Acaso algum pensador, poeta, estadista ou artista, que mereça ser levado a sério, realizou alguma obra que lhe satisfizesse plenamente, na qual ele se considerasse plenamente realizado? Não é verdade que precisamos sempre [e por vezes] dolorosa e saudosamente, mas inescapavelmente, de nos despedir em definitivo de tudo quanto tivermos realizado, ou feito? (E ai de nós se nos demorarmos demais nessa despedida...) [Ai de nós se apreçarmos ou prezarmos excessivamente as nossas obras e nos dermos por satisfeitos com o que houvermos realizado!] E quando meus pensamentos, minhas palavras e obras se perdem nessas divagações, acaso encontrarei no mar undoso dos meus sentimentos ou no “caldeirão de bruxas” de minha capacidade subconsciente, algum sucedâneo que substitua aquilo que conscientemente me falta? Não! — Somente os irrecuperáveis acreditam no valor perene de seus sentimentos! Em nada que eu realize ou fale, nem em sua generalidade, nem em qualquer detalhe especial, reconheço como sendo minha produção aquilo que eu produzir, antes, vejo em tudo produtos que me são estranhos e hostis e que, para meu desgosto, prontamente se levantam contra mim e testificam a minha insuficiência. Eu não entendo tais obras e feitos, nem os aprecio e quero; antes quisera renegá-los quando me fixam quais monstrengos repelentes. Eis que conhecemos em parte e sabemos em parte (I Cor. 13, 9). Por isso não reconheço [não sei] o que faço. Aquilo que quero não faço, porém o que odeio, isso faço. Quem sou eu, porém, — aquele que fica despedaçado entre este “não fazer o que quer” e o “fazer o que não quer”? “Enquanto, porém, faço o que não quero, confirmo a lei como sendo justa”. Dizíamos: “Aquilo que odeio, isso faço”. Parece, pois, haver um ponto comum entre mim e aquilo, incompreensível, inaproximável e intransferível, que vem do Espírito: é a minha aversão, o meu protesto contra minha vida qual ela o é; o desassossego com que acompa-

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nho minha própria passagem pelo mundo; o fato de eu não querer aquilo que pratico. Não estarei [quando mais não seja] ao menos por força dessa minha negação, em harmonia comigo mesmo? Acaso não sou praticante da lei, pelo menos na medida em que tenho profunda consciência da minha pecaminosidade e me oponho a ela, decididamente? Não posso, ao menos me acalmar [me consolar, justamente] pelo fato de estar tão inquieto? “Quando sentires, em ti, a luta entre a carne e o espírito e freqüentemente fizeres o que não queres, é sinal de que tens um coração crente. — Enquanto esta luta persistir no íntimo de uma pessoa, o pecado, ali, não reina; e porque a criatura luta contra o pecado e não o quer, o pecado não lhe é atribuído”. (Joh. Arnd). Frases perigosas essas. Quem não conhece esse subterfúgio da dialética pietista ou a rósea suavidade crepuscular do compromisso, do apaziguamento e da resignação que mansa, mui mansamente, tinge o horizonte após toda sorte de tempestades de consciência, sempre quando nos deparamos com semelhantes lutas? “Porém não sou eu que faço tal coisa, mas o pecado que existe em mim”. O que significa, pois, que eu odeie aquilo que faço e que proteste contra mim mesmo? Evidentemente apenas isto: que estou abrindo o valo que me separa de mim mesmo. Seria isto, um começo promissor? Será assim que encontrarei a resposta à pergunta: “Quem sou, se Deus existe”? Eu, — aquele que “faz estas coisas” e cujos feitos e obras [também] eu (o outro “eu”) observo com acerbo desgosto — [esse primeiro “eu”] evidentemente não é o que há de subsistir ante aquela pergunta. Todavia, poderia o outro “eu”, [o segundo], aquele que se aflige, o protestador, estar à altura da pergunta? Quem é este outro eu? Acaso não é ele esse nobre observador impotente, esse coitado expatriado que nada mais pode fazer do que menear a cabeça para dizer “Não” ao que o outro faz, enquanto este outro continua agindo e fazendo o que bem quer, até mesmo em nome daquele que o desaprova? Servir-me-ia, acaso, de justificação o fato de que na realidade “não faço” aquilo que faço; que “não mando” em minha casa; que é um outro que aí “faz e acontece”, sob meu protesto; que é um outro que (na minha casa) “pensa, fala, sente e negocia, enquanto “eu” somente cedo “a praça” e o nome [a razão social] para realizar aquilo com que nada tenho a ver?

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Contudo, o que mais significa esta justificação [que alego], esta minha concordância com a lei, se não o juízo que faço de mim mesmo, admitindo que o pecado existe em mim? E semelhante julgamento acaso garantirá um seguro ponto de apoio para os meus pés? Quem me garante que “aquele eu” que faz aquilo que lhe apraz, e “este outro” que não quer aquilo que aquele faz, não sejam, basicamente, idênticos? Quem sabe se a minha sanhuda oposição contra mim mesmo, não é mais do que bravata do estilo do “Barão de Muenchhausen” [celebre personagem, “contador de lorotas” da literatura alemã] que se desenvolve [em torno do meu ego] dentro das quatro paredes da “casa do pecado”? Na realidade, a religião não fala nunca, em lugar algum, daquele “eu” que de fato existe além do pecado que habita em mim. A religião fala apenas da dupla personalidade segundo a qual, constantemente, mediante uma faço o que não quero e, mediante outra não quero o que faço. A religião fala-nos apenas da discordância que há entre aquilo que o ser humano sabe [que deve fazer] e aquilo que ele pratica; ela nos fala unicamente de uma só realidade: a realidade do pecado. Vs. 18-20 (Segunda constatação): Porquanto eu sei que o bem não habita em mim, isto é, na minha carne; eu consigo querer o bem mas não está em mim realizar o que é reto, pois não faço o bem que quero, mas o mal, que não quero, não sou eu quem o faz, porém o pecado que habita em mim. “Eu sei que o bem não habita em mim, isto é, na minha carne”. Esta é a segunda constatação que o homem religioso faz, e ela resulta diretamente da primeira. [Que a lei vem do Espírito, mas o homem é carnal...] Aqui, ainda uma vez, nos deparamos com a situação especial em que se encontram aqueles que anunciam o evangelho (3, 1-20): eles podem e precisam saber [e reconhecer que em nós, — e neles — não existe bem nenhum]; logo eles! Nem tampouco a revelação de Deus em Jesus Cristo se faz sem a iniciação da criatura neste terrível segredo e isto porque a revelação de Jesus Cristo é a revelação de todas as revelações! “O mui caro Paulo bem que gostaria de não estar em pecado; eu e outros muitos estimaríamos, também, do pecado estar isentos; mas não pode ser assim; caímos em pecado e o exsudamos por todos os poros; levantamo-nos de novo, martirizamo-nos e nos debatemos com ele dia e noite sem descanso. Porém, enquanto estivermos ligados a esta carne, enquanto carregarmos este

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mal cheiroso invólucro atado ao nosso pescoço, a luta não há de cessar, nem poderemos ensurdecê-la, por mais que nos esforcemos para conseguí-lo. O antigo Adão também quer ter a sua vida até que chegue à sepultura. Em resumo: o Reino de Deus é um reino peculiar: nenhum santo pode aqui dizer outra coisa se não: — Oh Deus, Todo-Poderoso, eu me confesso um pobre pecador; não me imputes a antiga culpa!... “Não é cristão quem não tem pecado nem sente culpa, e se encontrares um tal, esse é um Anticristo e não um verdadeiro cristão. Portanto, o Reino de Cristo está onde há pecado, por entre o qual existe. Cristo destacou o pecado na Casa de Davi”. (Lutero) Este “porém” [eu, “todavia”] (7, 14) não representa uma ressalva, uma atenuante, uma concessão a favor do homem religioso com respeito ao que ele sabe de si mesmo, pois a expressão “em minha carne” não é condescendência que se lhe faz, antes é reforço à acusação [à desqualificação] que ele, justamente o homem religioso, precisa levantar contra si mesmo. “Sou carnal”! é o que isto quer dizer. Lembremo-nos o que “a carne” significa (3, 20): mundanalidade desqualificada; (vista justamente pela criatura religiosa), “carne” é a definitiva e inqualificável mundanalidade, “carne” quer dizer relatividade, nulidade, contra-senso, falta de sentido. Isto tudo, é o que sou! É claro que esta afirmação [esta autoconceituação, ou autocrítica] não pode vir do argentário, do gozador, do déspota. (Como poderiam tais pessoas sentir isso? O que tais caracteres sabem de si mesmo talvez seja um raio de luz da misericórdia divina, que é maior do que sua ira!) Semelhante afirmação, tal juízo a respeito de si mesmo, [tal autocrítica], porém, há de vir de quem é devotado a Deus; do homem reto, com genuína experiência religiosa: do profeta, do apóstolo, do reformador, para quem a unidade da santidade e misericórdia divinas se tomou uma questão existencial, pessoal. “Por que me chamas bom? Não há ninguém bom, senão só Deus”! (Marc. 10, 18); e isto, é Jesus quem o diz! Portanto, a afirmação de que “Deus e ‘o homem que sou’ não vão juntos” [não se coadunam] e que se tornou clara para nós imediatamente quando tomamos conhecimento do que é espiritual (7, 14), não foi deduzida sob um impulso pessimista, antes o que então concluímos por experiência se confirma pela própria lógica. Este conhecimento do ser humano se baseia, exclusivamente, no conhecimento de Deus. [O homem sabe que não é bom, em virtude de seu conhecimento de Deus]. “Porquanto eu consigo querer o bem, mas não consigo realizar o que é reto, pois não faço o bem que prefiro mas o mal, que não quero, esse pratico”.

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A minha vontade lembra-me do bem que não está em mim, porém é apenas minha vontade que se identifica com o meu conhecimento do caráter divino da lei (7, 14), pois sem querer o que é divino, não poderei sequer tomar conhecimento do que esse divino seja. [Talvez pudéssemos parafrasear o A. dizendo: o meu “ALTER-EGO”, aquele que ainda não sou, recebeu a revelação e “conhece” o que é bom; por isso, eu quero o bem que, todavia, o meu “EGO” terreno, carnal, não quer, pois está sob o domínio do seu senhor, o pecado, em cujo reino vive, mantendo o “ALTER-EGO” inseparavelmente ligado a si, até a morte. Vejamos, porém, a exposição do Autor]. “Consigo querer”: o que significa “querer”? E claro que significa almejar, desejar, ambicionar, pedir, procurar, perguntar, buscar, rogar, suplicar, bater à porta. Essas palavras, decisivas e plenas de promessas, são os pontos-chave de toda cogitação espiritual e de toda prédica. São palavras repetidas constantemente em todas suas variações, gradações e ênfases por todas testemunhas e todos mensageiros da verdade, em todos os tempos; talvez sejam elas repetidas tão sofregamente justamente por ser tão simples o seu significado e tão assustadoramente claro o seu sentido decisivo; se tais palavras não surtirem resultado, quais o terão? Elas indiscutivelmente têm êxito: “Buscai a Deus”! Sempre encontraremos ouvidos atentos [a este convite e esta ordem, a esta exortação] por ser ela a última (e a suprema) coisa que ouvidos humanos podem ouvir; e é fora de dúvida que o número de pessoas que efetivamente querem e buscam a Deus é infinitamente maior do que possa parecer numa observação superficial. Quem poderá privar alguém de “querer verdadeiramente”? Talvez eu, também, seja um dos que procuram a Deus. “O querer eu consigo”! Pode ser. Mas o amparo religioso que provavelmente terei de procurar para “conseguir” esse querer, pode ser tão precário quanto o lado [aparentemente oposto] onde [declaradamente] não faço o bem que quero. (7. 16). Tanto cm um como noutro caso, tudo depende de eu conseguir realizar o que é reto, segundo o “bem querer” que há em mim. Fica, pois, claro e fora de dúvida que o mais honesto, o mais profundo, o mais fundamental desejo de fazer o bem, nem sempre é coroado com a realização do que é reto. Contemplemos ainda uma vez o vasto cemitério que abriga a história de tantas igrejas cristãs. Examinando o teor de espiritualidade dessas igrejas todas veremos que, certamente, não lhes faltou um mui sincero “querer”.

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A Realidade da Religião

Em que se diferençava a ação de Jeremias daquela dos falsos profetas que se lhe opunham? Qual a diferença entre o sucesso da cristandade antiga que teve o seu apogeu com Constantino (historiadores não interessados em teologia, por favor, entendam) e o sucesso de seus contemporâneos, adoradores de Mitras e Cybele? O que distingue o êxito dos reformadores em Wittemberg Zurich e Gênovea, do êxito dos Papas, em Roma, ou dos arquitetos das mais altas torres do Babel? Donde procede o contraste da piedade interior que emana dos olhos da virgem, pintada na Capela Sistina, admirada por tantos, quando comparada com a enorme hipocrisia que fala dos olhos das “virgens” de El Greco? Acaso não são as realizações [e os feitos] dos homens apenas degraus de uma mesma escada e todas juntas, na melhor das hipóteses, apenas analogia [ou parábola] de obra totalmente diversa? Não é evidente que a sinceridade que o Senhor faz prosperar não é exatamente a mesma coisa que o querer honesto que podemos desejar e do qual, ocasionalmente, podemos tirar consolo ou conforto? [Não é certo que] nada sabemos do caminho que desse honesto desejar leva à sinceridade que o Senhor acolhe? Não é verdade que apenas sabemos que esse caminho é linha que se rompe sempre e sempre e que jamais nos leva ao nosso alvo? “Pois não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”. Como homem religioso, à minha própria indagação sobre o que poderei fazer de bom por força do meu amor ao bem, terei que responder “NADA”. Terei que admitir que não posso permutar a minha vontade de praticar o bem pelo próprio bem. O bem tem a peculiaridade de insistir na realidade, [na sua efetivação]; o bem não quer ser somente desejado mas precisa ser realizado e praticado. Porém eu não o pratico; por isso, ainda uma vez, preciso indagar: quem sou eu que de forma intolerável preciso ser “os dois”, concomitantemente: aquele que quer e aquele que não pratica o que quer e que, pelo desejo sincero de seu coração, é apenas conscientizado de que o bem... não habita nele? “Contudo, quando pratico aquilo que não quero, não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim”. Portanto, no que concerne ao meu querer, não há meios de fazer o que é “reto”. (Final do vers. 18 e todo vers. 19 deste capítulo). Voltamos, pois, à questão decisiva: — o que se faz? E a resposta é: — “Faço aquilo que não quero”! Não se afirma (ou se diz) em lugar nenhum que o fato de eu honesta e sinceramente — querer o bem, ou que a realidade de eu aborrecer o mal

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(7, 16 -17) possa justificar-me, antes, pela segunda vez se confirma a minha própria conclusão a meu respeito: não sou eu que faço. Excluído e premido contra a parede, preciso assistir ao que acontece, de fato, em minha própria casa. De que adianta o apelo, o meu apego, ao bem, se não para confessar que o pecado habita em mim? Sim, ele habita, e é ele quem faz e realiza. Porém, o fato de ser o pecado quem pratica o mal, não me serve de desculpa; antes, é minha autocondenação pois, que bases tenho para dizer que o “eu” que não quer, e o outro “eu” que faz, não sejam os dois o mesmo “eu”? A realidade — e também a realidade religiosa, — conhece apenas um ser, e este sou eu. Este “eu”, todos o sabemos, vive querendo o bem sem o realizar, ou praticando o mal sem o querer, dentro das quatro paredes do solar do pecado. O pecado (deste “ser”) é, em resumo, a realidade de que nos dá notícia a experiência religiosa. Vs. 21-23 (Conclusão): Descubro, pois a realidade da lei evidenciada para mim no fato de que, ao querer fazer o que é reto, pratico o mal pois, segundo o homem interior me regozijo na lei de Deus; porém, vejo em meus membros uma outra lei, guerreando contra aquela que está na minha razão [no meu senso, na minha “mente”], e me levando ao cativeiro sob a lei do pecado, [que está] em meus membros [Almeida escreve assim: “Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está em meus membros”]. “Descubro, pois, a realidade da lei evidenciada para mim no fato de que, ao querer fazer o que é reto, pratico o mal”. Ser religioso significa ser criatura despedaçada, em desarmonia consigo mesma, sem paz. Somente poderá estar em harmonia consigo mesma a criatura que ainda não acordou para a grande interrogação sobre sua unidade com Deus. Todos traímos com suficiente clareza, por nossos atos e pelo nosso comportamento, que de maneira alguma estamos de acordo com nós mesmos e mostramos, assim, o quanto Deus nos inquieta. (Felizes [do ponto de vista do mundo], aqueles que podem iludir o coração que esmorece; possam eles [prolongar por longo tempo essa insensibilidade] adiar de muito o seu despertamento.)

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A Realidade da Religião

A realidade da religião consiste no fato de que em contra posição àquilo que eu quero e não pratico, — ou àquilo que pratico sem querer, — está o meu “eu”, o sujeito desse predicado [o “agente”j, que se transforma numa grandeza totalmente duvidosa; esse “eu” passa a ser uma incógnita, um “X”, que nem pode viver nem morrer. Por força da lei através da qual conheço a Deus, quero “praticar o que é reto”; todavia, também por força da lei mediante a qual sou conhecido por Deus, [isto é, pela qual Deus me analisa ou através da qual me vê], “pratico o mal”. [Ora a lei é a religião e] esta mais alta possibilidade, [o conhecimento que tenho de Deus pela religião], transforma-se para mim na mais alta perplexidade [pois a religião me expõe perante Deus, qual sou]. A maior dádiva e também a maior ameaça; a mais alta promessa se transmuda na mais alta aflição. É acaso compreensível que Schleiermacher, no mesmo dia em que terminou a sua obra “Discursos sobre a Religião”, “em acesso de alegria de pai e temor da morte”, tenha afirmado que “seria pena se tivesse de morrer naquela noite”, como se a morte não fosse coisa muito próxima [algo, quiçá, até mais desejável do que a vida], depois de se haver discursado tão linda e energicamente sobre a religião? Pode-se recomendar a religião ao homem simples que em seu coração busca apenas paz? Será que se pode oferecer a religião como algo, não apenas suportável mas, como sendo coisa bem vinda, interessante, enriquecedora!? Podemos apresentar a religião como sendo suplementação valiosa da cultura, (ou então como sucedânea dessa cultura, dada a problemática interna própria, tanto a toda forma de cultura como à falta de cultura), impingindo-a diligentemente!? Acaso podemos colocar a religião em posição triunfante, comparandoa com a ciência, a arte, a ética, o socialismo; confrontando-a com movimentos de “juventude”, movimentos nacionais (ou raciais), e à Nação (ou ao Estado), como se já não tivéssemos visto e aprendido por milhões de experiências que toda vez quando, seriamente, colocamos a religião em correlação com alguma coisa, — (Religião e Estado, Religião e...), até a erva murcha e seca!? É difícil de acreditar que esses estranhos líderes que anunciam e pregam semelhantes associações, encontrem sua justificação no fato de milhões e milhões de pessoas quererem ser levadas exatamente assim; assim, e de nenhuma outra forma. São milhões e milhões que se apegam às alternativas religiosas, para se fundamentarem, para alcançar maior aperfeiçoamento, ou mesmo para a consoladora consagração de suas demais atividades, quiçá para justificar o seu próprio “patos”, [seu anseio por compreensão e comiseração] com o “patos do

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infinito” na esperança de assim proporcionarem, a si mesmos, algum bem e para que, acima de tudo, sejam tidos por piedosos! Mas esta surpreendente realidade — de que a justificação de semelhante pregação e conduta está apenas no fato de que muitos andam em pós ela] não impede que uns e outros — guias e guiados — estejam juntos a serrar a base do galho em que se abrigam; estejam a incendiar a casa em que pretendem repousar, estejam a broquear o casco do barco no qual navegam sobre o abismo. Quem sinceramente preferir ater-se à sua paz íntima, à agradável harmonia da humanidade e à solidez de sua cultura (ou ignorância), esse tal, enquanto lhe for possível, estará junto com Lessing, Lichtenberg, Kant, Goethe, opondo-se tenazmente à penetração da religião em sua vida. Esse tal levantará sua voz em advertência aos incautos que por motivos estéticos, históricos, sentimentais ou políticos estejam minando a barragem para dar vazão à torrente que atingirá cabanas e palácios e da qual serão eles as primeiras vítimas. Esse tal mostrará mais visão e realismo que aqueles possíveis “virtuosos” da piedade (na verdade os seus mais sangrentos diletantes) que, não sabendo o que fazem, em sua alegria romântica apelam aos gênios da religião que, depois, não poderão suportar. Todavia, todo esforço [e clamor] que alguém faça contra o sentimento religioso não surtirá qualquer êxito pois a criatura humana tem este sentimento tão profundamente arraigado em seu coração que não pode afastar-se dele; nem mesmo a cultura do hodierno mundo ocidental tem capacidade para proteger o homem contra a incursão da religião. [O A. escreveu isto entre os anos de 1918 e 1928]. Precate-se, pois, o guardião do bastião da humanidade para que ele próprio, na hora undécima, não se veja forçado a pleitear uma pequena trégua com esse adversário tão justamente temido. A religião, sob a capa de mais fiel amiga do ser humano, é adversária de gregos e bárbaros; ela tanto é a crise da cultura como da falta de cultura. Ela é o mais perigoso adversário que a criatura humana tem deste lado do mundo (depois de Deus), pois é ela que leva o homem a cogitar sobre a certeza de sua morte e a considerar a possibilidade que Deus oferece. A religião é a sede onde, no mundo da temporalidade, das coisas e dos homens, se firma a pergunta: Quem és, afinal? É na religião que esta interrogação se expressa de forma insuportável: “A lei de Deus é a danação dos homens pois, enquanto estiverem sob a lei, são escravos do pecado e devedores da morte”. (Calvino) “Pois segundo o homem interior, me regozijo na lei de Deus, porém vejo em meus membros outra lei, guerreando contra aquela que está em minha mente, me levando ao cativeiro da lei do pecado” [que está] em meus membros”.

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A religião é o irrompimento do dualismo. Quem esconder esta realidade com as flores retóricas do sonoro monismo é “um notável traidor” (Overbeck) e presta ao mundo, que ele quer agradar, o maior desserviço que se pode imaginar, pois o segredo que tenta encobrir não pode ser oculto e a dinamite que ele enterra entre flores, explodirá um dia. Religião significa a divisão do homem em duas partes: de um lado o espírito, o homem interior, que se compraz na Lei de Deus; (acaso sou idêntico a este “espírito”? Acaso sou unicamente o “homem interior”? Quem se atreverá a responder afirmativamente?). De outra parte está a “naturalidade” de meus membros nos quais reina lei totalmente diferente; neles há uma possibilidade inteiramente outra; neles se manifesta uma parcela de atividade, absolutamente diversa. Esta outra lei está em guerra com a que existe em minha mente; quando esta diz “sim”, aquela diz não. Nesta oposição que aqui emerge, neste segundo [eu], neste principio da heterogeneidade, se incorpora, declaradamente, neste meu corpo — separado da alma — a lei de todas as leis, a possibilidade que é a primeira entre todas as outras [neste mundo]: o pecado que me aprisiona. (Acaso sou idêntico a esta “natureza” dominada pelo pecado? E agora alguém se atreverá a responder afirmativamente?). (Temos a dualidade em oposição:) Homem interior e homem exterior; além e aquém; ideal e matéria, (qualquer que seja o par de antônimos que escolhamos). Mas onde pertences, tú? Ao “espírito” ou à “natureza”? Não podes renegar o espírito e querer ser somente “natureza”, pois como homem religioso bem sabes que a “natureza” quer ser “espírito” a qualquer preço; — (tu o sabes de Deus!). Também não podes renegar a “natureza” e pretender ser exclusivamente “espírito” pois, ainda como homem religioso, tu também sabes muito bem que o espírito quer ser natural, a todo custo. (Isto também o sabes de Deus). Portanto haverás de responder: sou ambas as coisas! Talvez “EspíritoNatureza” ou, quem sabe? “Natureza-Espírito”! Tenta prosseguir com tão atrevidas antecipações [ou conclusões precipitadas] e logo verás que essa pessoa que pretende ser una, por isso mesmo não suporta, por isso mesmo não admite [nem tolera] ser colocada ao lado de outro “eu”, consorciada e amalgamada com ele, em um mesmo ser; pior do que isto, quanto mais furiosamente tentares vencer essa relutância à [justaposição dos dois “egos”, à] fusão das duas características, mais aguda e mais firme será a sua separação e tu, sempre instigado para um ou para outro lado és ou um ou outro, porém jamais totalmente um ou totalmente outro. Serás ora um, excluído pelo outro, ora o outro, excluído pelo primeiro — mas nunca excluído definitivamente, mortalmente, porém de maneira que a mais radical expulsão [de um

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pelo outro] deixe aberta a possibilidade, ainda que tênue, porém visível, do mais radical retorno [daquele que foi expulso]. Vs. 24-25 (primeira parte) Desventurado homem que sou! Quem me arrancará do corpo desta morte? — Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! Estamos novamente no ponto onde principiamos o capítulo: o homem religioso “é um ser humano enquanto viver”, (7, 1) —(Ele é e será) esta criatura, neste mundo; a criatura dotada com as capacidades humanas, a única que conhecemos. A criatura que nunca deve ser o que ela é, nem é o que deve ser. O homem religioso é a criatura que, com o seu corpo mortal, carrega a lembrança constante de que ele pertence à morte. A que mais nos poderiam levar todas as afirmações sobre a realidade da religião se não à mais fundamental dúvida sobre a possibilidade de tal criatura [a criatura religiosa]? Na realidade, ela nem pode morrer nem viver! Com a sua religiosidade ela fica suspensa entre o céu e a terra! Mas de que serve esta dúvida fundamental sobre as possibilidades dessa criatura, se eu mesmo a sou? [De que valem todas essas elucubrações] se, com todas as torções e distorções psíquicas e todas as inversões dialéticas não consigo escapar à brutal realidade deste “eu sou”? [De que valem todas as cogitações] se eu, justamente por obra da minha religiosidade, tomei consciência de que não há outra possibilidade para mim se não a de personalizar este ser humano? “Infeliz homem que sou”! Acaso [nos compenetramos e] sabemos agora, finalmente, o que é o “ser humano”? Sabemos, também, o que é a realidade da religião? Acaso sabemos agora o quanto se afasta da realidade religiosa o que os primeiros pregoeiros dessa tendência [de apresentar o cristão verdadeiro como herói, vencedor em todas as batalhas], no século XIX, se compraziam em proclamar em termos triunfais como sendo religião? A realidade da religião é o espanto de si mesmo que ela desperta no homem. Mas Jesus Cristo é o “Homem Novo” que está além do homem das possibilidades humanas; está além do homem religioso que ele cancela e suprime totalmente. Jesus Cristo é a criatura que veio da morte para a vida; ele, não eu, constitui o meu “ego” existencial, o “eu” que sou na liberdade de Deus.

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“Graças a Deus”; por Jesus Cristo, nosso Senhor, eu “não sou” o homem infeliz que sou. [Ele me livra do “corpo desta morte”!] Vs. 25 (segunda parte) Portanto, esta é a situação: eu, como uma única e uma só pessoa, sirvo a lei de Deus com a mente, porém a lei do pecado com a carne. [Ou, segundo a tradução de Almeida: “De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado”]. “Infeliz homem que sou.” Temos que suportar todo o peso deste “eu sou”. Não se pode alijar esta carga. Em verdade Paulo não estava se referindo à sua condição de “antes da conversão”. O que significaria “antes” em se tratando da conversão e da supressão da criatura em sua totalidade? Porém Paulo se referiu — e isto também segundo o consenso dos Reformadores, mas incompreensível aos que lerem com os óculos dos pietistas da nova teologia — a seu passado, seu presente e seu futuro. Esta realidade refere-se à realidade de seu ser de “antes” e de “após” [à sua experiência no caminho de] Damasco. É a mesma e una pessoa, bipartida por força da lei de Deus e que, por força dessa mesma lei, não pode ser dois; a criatura é apanhada em um dualismo que é a sua própria refutação; e despedaçada em Deus sem, todavia, poder esquecê-lo. Sabemos agora, afinal, o que é a liberdade de Deus, o que é a sua graça? Comentários: 7, 14-25 1. “O reino de Cristo está onde há pecado”. Essa expressão vigorosa de Lutero (e que parece coadunar-se muito bem com o estilo do A.), serve para destacar a realidade de que Jesus Cristo veio ao mundo para buscar e salvar a criatura humana, perdida em conseqüência do pecado. Se alguém diz que não tem pecado esse tal é mentiroso e torna vão o sacrifício de Cristo; não tem parte com Cristo que morreu pelos pecadores. Ora, se alguém ensinar que ao fazermos o que não queremos, quando sentirmos em nós, bem acesa, a luta entre a carne e o espírito, o pecado não reina em nós, esse tal nos acalma (ou tenta acalmar-nos) com parte da verdade e, portanto. perigosamente pois o pecado é o próprio mal que praticamos sem o

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querer. A luta que em nós existir é o nosso não conformismo com o mal e Deus, que julga segundo o secreto de nossos corações poderá, quiçá, não nos imputar o mal que praticarmos. Todavia, se de antemão concluirmos que o pecado não nos será imputado em vista de nossa relutância em praticá-lo, estamos SUB JUDICE da nossa justiça e não sob a graça misericordiosa de Deus. 2. É de Deus que nos veio a ciência do bem e do mal. De Deus e não de Satanás. Satanás induziu o homem a buscar ciência que só a Deus pertencia. (ERIT SICUT DEUS). É por isso que ao tomarmos conhecimento da realidade da religião e da verdadeira posição do homem em seu relacionamento com Deus, percebemos que, sem a remissão mediante Cristo Jesus, nada pode haver entre o homem e Deus. 3. Poderemos ensinar a religião ao homem que almeja simplesmente a paz? Se tal homem procura a paz que o mundo oferece e pode dar, a resposta será não. Todavia se a criatura almeja a paz e a segurança que engalana a existência do “homem novo”, haveremos de pregarlhe o evangelho e, pela religião, trazer ao seu encontro o conhecimento da fidelidade de Deus; e a criatura ouvirá a voz do Bom Pastor: “A minha paz vos deixo, a minha paz vos dou;... não se turbe o vosso coração”. Essa religião assim anunciada não será compêndio de confissão de fé, nem livro de doutrina, nem manual de preceitos e ritos litúrgicos. Será a permanência no amor de Cristo pela guarda amorável de seus mandamentos. Será a Igreja contra a qual não hão de prevalecer o mundo e o inferno; será aquela Igreja de cuja unidade nos falam os capítulos 14 e 15 do Evangelho segundo S. João. “Da Igreja o alicerce É Cristo, o Salvador; “Em seu poder descansa; É forte em seu amor. “Enquanto Ele permanece, Ela continuará, “E n’Ele fortalecida, Jamais perecerá.”

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Carta aos Romanos de Karl Bart por Koller Anders Segundo a Quinta Edição Alemã (impressão de 1967)

2ª Parte CAPÍTULOS DE VIII À XVI

QUALIS AB INCEPTO Chegamos ao início da segunda metade do original. A esta altura você já terá lido e relido a tradução inglesa e terá tomado o pulso das diferenças no traduzir e da propriedade ou impropriedade das interpretações. É certo que as considerações que foram apostas referentes a um ou outro tópico e mesmo as de ordem geral, necessariamente restringem, em parte, a penetração mais profunda do leitor no pensamento do Autor. Nem tudo está perdido, porém. Bastará ao leitor que desejar acompanhar o pensamento do A. sem se sujeitar ao risco de influências espúrias, prosseguir na leitura ignorando as considerações gerais e as mais restritas enfeixadas em colchetes. Barth diz algures que aqueles que não puderem enfrentar a inexorabilidade de Calvino, a grandiosidade de Kierkegaard ou ainda a devoção de Overbeck, que se contentem com religiosidade inferior. Aproveitando a sugestão direi aqui que, talvez, as ponderações apresentadas, os comentários introduzidos e as interpretações dadas permitam àqueles para quem a dureza de Barth é por demais contundente, — ou a rude franqueza de sua dialética por demais traumatizante, — uma aproximação mais suave e possam, ainda assim, travar conhecimento com o vigoroso Autor. Convém que se diga agora aquilo que deveria ser patente ao leitor desde as primeiras linhas do livro: para entender Barth é preciso ter a coragem de o ler até o fim! Enquanto lutava com a interpretação do Capítulo VII tive oportunidade de falar sobre a obra de Barth com ilustre Pastor patrício, a quem bastante prezo, e ele me disse textualmente: “Li Barth até onde ele escreveu que Maria é a mãe de Deus. Foi demais para mim: fechei o livro e mais tarde vendi a obra”. E foi pena porquanto leu apenas até o começo do 2º volume do Livro I da Grande Dogmática. O culpado por essa perda foi, sem dúvida, o incorrigível método de Barth de enunciar as suas 421

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premissas ousada e provocativamente para a seguir expor, nem sempre colocando as coisas muito bem explicadas. É que Barth escreve para TEÓLOGOS... Procede, a observação do Pastor meu amigo; de que valeria insistir na leitura? O que mais se poderia esperar perante tal afirmação do Autor? No entanto, se meu dileto amigo houvesse lido mais uns poucos parágrafos adiante da página 138 do Livro 2 do Vol. I da “Dogmática da Igreja”, publicação da Casa T. & T. Clark, de Edimburgo, edição de 1963, teria saboreado a extraordinária refutação à Mariologia Católico-Romana que Barth faz — (Grandiosa até mesmo na Prosaica língua de Shakespeare). Nesse ataque à idolatria o A. diz que “de certa forma constitui para nós um ‘teste’ da compreensão da encarnação do verbo o fato de, como teólogos cristãos, não rejeitarmos a descrição de Maria como ‘mãe de Deus’; porém, a despeito de esta expressão estar supercarregada da chamada ‘Mariologia’ da Igreja Católica Romana, a aceitamos e confirmamos como sendo a expressão legítima de uma verdade Cristológica. NÃO PODEMOS DEIXAR DE DEFENDER ESSA EXPRESSÃO CONTRA O USO IMPRÓPRIO QUE DELA SE FAZ, todavia, nem por isso devemos suprimir o conhecimento que ela envolve: (‘Filho de Deus, nascido de mulher’ e ‘mãe de meu Senhor’. Gal. 4,4 e Luc. 1, 43). A frase tem fundamento bíblico e é muito significativa no contexto Cristológico. Porém, a sua utilização como base para a MARIOLOGIA independente (como é chamada) FOI E É UM DESSES TÍPICOS EMPREENDIMENTOS CATÓLICOROMANOS CONTRA OS QUAIS É FORÇOSO EXISTIR UM PROTESTO EVANGÉLICO, NÃO SOMENTE PELA ARBITRARIEDADE DA FORMA, PORÉM TAMBÉM PELA PRECARIEDADE DO CONTEÚDO. O conteúdo dessa testificação bíblica não nos dá motivo algum para reconhecer que a pessoa de Maria possua, sequer relativamente, posição tão enfática e independente no evangelho da revelação que dê origem ou que justifique a que se faça dela doutrina que vá além desta única afirmação e, muito menos, que se faça dela o dogma Mariológico. Nem podemos concluir de outra forma, partindo das mais sérias interpretações do dogma que apareceram, se não que, neste caso, ESTAMOS TRATANDO, ESSENCIALMENTE, NÃO COM O ACLARAMENTO MAS COM O OBSCURECIMENTO DA VERDADE ou, por outras palavras, TRATA-SE DE FALSA DOUTRINA. MARIOLOGIA É UMA EXCRESCÊNCIA; uma construção doentia sobre um pensamento teológico. [É como se fosse um câncer intelectual...] EXCRESCÊNCIAS PRECISAM SER EXTIRPADAS”. [Os grifos em letras maiúsculas não estão no original]. 422

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Na obra de Barth não são poucas as assertivas traumatizantes; é preciso ter suficiente confiança em si mesmo e na fundamentação de sua fé, para ler até o fim o que por vezes soa tão chocantemente herético. Em geral a persistência é compensadora; no caso em tela encontramos a seguir os ensinamentos de Lutero e Zwinglio; vemos como Calvino encarou o problema e como o entendeu a ortodoxia reformada em geral e luterana em especial; vemos como, de fato, o menino que nasceu pela instrumentalidade da Virgem Maria, foi (e é) o verdadeiro Deus “que se liga com o nosso sangue”, (a nossa raça); verdadeiro homem de uma parte e verdadeiro Deus, de outra. Para entender Barth é preciso ter persistência e mente aberta para analisar, não nos agarrando cegamente a nossos conceitos e preconceitos, antes examinando tudo para, se for o caso, reter o que for bom. Isto é verdade com respeito à conceituação do que seja pecado, na estigmatização da idolatria, no emprego da “linguagem mitológica” e na análise da própria religião. Quem sabe, será também preciso vencer o enfado e a impaciência... Não escreveu um crítico Dominicano que as frases de Barth eram apenas altissonantes? Não era de oitiva que os doutores, que mencionei em algum lugar no prefácio, verberavam a obra de Barth? E não foi com meias verdades, (ou com frases incompletas, quiçá apenas iniciadas) que pensador e teólogo católico-romano responsabilizou Barth pelo que esse crítico considera ser a degenerescência do clero romano? maio, 1979

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Capítulo VIII

O ESPÍRITO O Autor dá ao capítulo o título geral “O ESPÍRITO” e o subdivide em três partes: • A Decisão - Versos 1 a 10 • A Verdade - Versos 11 a 27 • O Amor - Versos 28 a 39 Aque DECISÃO se refere o título que o A. dá a esta primeira parte? A resposta vem na exegese dos versículos 5 a 9 que Barth inicia afirmando que “o Espírito é a decisão eterna”. E, pois, do Espírito que ele trata procurando mostrar o “relacionamento” entre o Espírito e as outras duas pessoas da Santíssima Trindade. Mostra como o Espírito leva a Cristo de tal forma que aquele que não tiver o Espírito também não tem Cristo e quem tiver o Espírito, está em Cristo. Voltam-se para Deus os que tiverem o Espírito. Mostra também como o Espírito traz aos homens o conhecimento de Deus Pai, e termina dizendo que a condição SINE QUA NON para alcançar a redenção é estar em Cristo Jesus: portanto, é ter o Espírito. Mais uma vez Barth deixa bem claro que “receber o Espírito” não vem do nosso clamor ou do nosso gemer, nem pela nossa religião, antes pode vir apesar disso tudo. Diz mesmo, o A., que nem sequer nos é lícito anunciar que temos o Espírito porquanto ele, por si mesmo, se anunciará e, por ventura, nos inspirará quando e como deveremos falar sobre ele.

A DECISÃO (8, 1-10) Vs. 1 e 2 Agora, porém, não há sentença de morte contra aqueles que estão em Cristo Jesus! Pois a lei do Espírito da vida que foi revelada em Cristo Jesus, te libertou da lei do pecado e da morte. (A tradução de Almeida escreve assim: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte”.) 425

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“Não há sentença de morte contra aqueles que estão em Cristo Jesus”. Do que falávamos? Acaso era da Religião, como possibilidade humana, ou foi da liberdade que temos em Deus, além de todas possibilidades humanas? Falávamos do pecado, ou da justiça? Da morte, ou da vida? Quem é este ser humano que [realmente] consegue perceber aquilo que acabamos de entender a respeito da limitação, do significado e da realidade da Religião? Donde vem este ser [que assim percebe]? Como pode ele ver [e discernir]? De onde lhe vem este conhecimento? Quem lhe conta tudo isso? Quem lhe diz que ele é um ser humano? Ao fazermos tais perguntas já estamos tocando o “peixe elétrico” e recebendo sua descarga quais os ouvintes de Sócrates. [Em virtude do domínio que Sócrates exercia sobre seus interlocutores ele foi comparado ao “peixe elétrico” que imobiliza e anula com sua descarga aqueles que o tocam]. Ao ser humano é difícil, [e até penoso] admitir que ele seja a criatura nula e incapaz [que é perante Deus]; esta situação o humilha [e ele, de per si, não quer reconhecê-la]. É preciso que alguém lho diga; é preciso que a pergunta lhe seja respondida [que a realidade lhe seja inculcada] inda antes que ele a formule. É claro que o homem não deseja o cerceamento (que Deus, no mundo, lhe impõe), e não o procura; nunca o imaginou, não o desejou nem preparou pois, [alçar vôo, sair da delimitação, romper o cerco, ir além do perímetro que o aperta] é o princípio básico, [consciente ou inconsciente] de toda atividade humana, de todas pesquisas, análises, investigações científicas, de todos os sonhos, de todos anseios, de todo afã das criaturas humanas neste mundo. Ora, o ponto de onde, com um só relance de olhar, se pode observar todo perímetro que delimita a área, ou a circunferência que define o círculo, certamente não está dentro dessa área; [assim também, o homem deste mundo não pode, como tal, observar as suas próprias limitações [ou as do mundo em que vive)]. Esta possibilidade de ver e reconhecer o seu próprio cerceamento é totalmente estranha, é nova, nunca “dantes” ouvida e que, todavia, existiria ainda que nos submetêssemos e aceitássemos a proibição de espiar além da linha que nos confina, conforme Kant sugere (e, talvez, justamente por isso)! [Esse reconhecimento e essa percepção vêm de fora do âmbito humano, vêm de cima.] A criatura que não faz apenas sua autocrítica; que não fica exclusivamente a se lamentar e a se menosprezar mas se questiona na totalidade de seu ser (7, 24), que vê a sua própria miséria, essa criatura não sou eu — [o “eu” deste mundo].

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Se porém continuarmos a indagar: quem, pois? Então seremos forçados a reconhecer que esta nova pergunta, ainda que formulada impensadamente, por chalaça, traz para nosso horizonte algo de novo, algo de radical, de irremovível e irreversível. Quem ou o que seja [esta criatura], pertence ao outro lado do âmbito terreno; está além do limite de nossa vida humana. Trata-se de inversão [ou melhor, de transformação] do sentido de nossa vida. É uma realidade nova totalmente diferente [da realidade terrena, material]. TOTALITER ALITER. Notamos [neste alguém que responde à pergunta “quem pois?”] um olhar estranho que, todavia, parece ser nosso conhecido, assim como contemplamos um conhecido que nos parece estranho. Percebemos um olhar que nos observa deste lado [onde estamos], no sentido reverso; observa a realidade de nossa vida ainda não transmudada; observa-nos, por assim dizer, em nossa pecaminosidade e mortalidade. Com a pergunta “de onde” vem o nosso conhecimento que caracteriza a nossa existência pela perspectiva do pecado e da morte, confrontamo-nos diretamente com a existência do “homem novo” que se opõe ao “homem velho” que somos [neste mundo]. Ele é. Este encontro decisivo não se dá no tempo mas na eternidade; a limitação do tempo desapareceu. Ainda que por milhares de vezes e reiteradamente, de alguma forma, toquemos a eternidade, é somente mediante a pergunta [sobre quem somos e de onde viemos] que recebemos o choque que nos revela a [existência da] nova criatura. A pergunta, em si mesma, já envolve a resposta e quem nô-la dá é o Espírito. Ele é o SIM que (mediante o seu NÃO) traz ao ser humano o conhecimento que ele tem de si mesmo. O NÃO revela e fixa o limite, o sentido e a realidade da vida humana e o SIM mostra o outro lado de nossa existência, o reverso da medalha, a inversão do sentido de nossa vida; o SIM mostra a nova realidade da criatura. É desta forma que o ser humano toma conhecimento de si mesmo e de sua origem sob a luz dessa própria origem. Conseqüentemente passam a ser subalternas todas as possibilidades humanas, expostas na sua relatividade em confronto com o absoluto. É assim, de fora e de cima, que é visto o “miserável homem que sou”, (7, 24) — [miséria que se patenteia no confronto da condição humana com o absoluto, na relativização imposta pelo conhecimento que o Espírito dá à criatura deste mundo]. No entanto sou eu mesmo que, assim “de fora e de cima” me contemplo, na minha excelência humana (que, todavia, se avilta e desaparece ante a super-

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excelência deste [meu “ALTER” EGO], totalmente outro, o qual não sou (porém, paradoxalmente, é conhecido por mim). Assim relativizados, absorvidos, vistos e reconhecidos, não nos atinge a sentença de morte que pesa sobre toda carne e, mui especialmente, sobre o homem religioso pois é assim relativizados, vistos, absorvidos e reconhecidos que percebemos o “som que vem dos céus e, qual impetuoso vento, invade toda casa” (Atos 2, 2). É o som que vem da Cidade Santa, — a Nova Jerusalém, descendo do céu, da parte de Deus (Apoc. 21, 2). Estamos “em Cristo Jesus”! Estar em Cristo Jesus significa ser co-participante da supressão do “homem velho”, operada por Jesus como o Cristo, pela qual esta velha criatura foi estabelecida como “homem novo”. Este “homem novo” veio da morte para a vida. Ora, se formos co-participantes da fundamentação, do estabelecimento do “homem novo”, então a sentença de morte que pesa sobre o homem velho já não nos alcança mais, pois ela já foi cumprida. “Pois a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte”. Existe uma possibilidade que está acima de todas as outras e que, por isto, não é uma possibilidade ao lado das demais porém está ligada a todas elas qual denominador comum, de certa forma (e mal comparando), de maneira análoga à presença do pecado do qual, todavia, é a negação e cujo lugar proeminente passa a ocupar. Existe também a dádiva que foi feita uma única vez e que, por sua singularidade, parece jamais ter sido dada aos homens. Existe, ainda, a lei suprema mediante cuja constituição subsistem e são anuladas todas demais leis. Essa possibilidade superior, essa dádiva singular, essa lei suprema é o ESPÍRITO. Referimo-nos ao Espírito porém, podemos falar a respeito dele? Verdadeiramente, não; não podemos porque, embora possuamos vocabulário abundante para descrever as muitas possibilidades humanas, não temos uma palavra sequer para esta “impossível possibilidade” de nossa vida. Então por que não nos calamos, por que não silenciamos a respeito dele? Isto é o que [aparentemente] deveríamos fazer; todavia, é necessário que nos lembremos que tanto o comprometemos com o nosso falar pouco, silenciando, quanto falando sobre ele, pois o Espírito é a PALAVRA, e portanto será anunciado de uma ou de outra forma. Quer não podendo falar sem poder calar ou, tendo de falar quando pensamos dever silenciar — qualquer que seja nossa atitude, estamos sempre em extremo aperto perante o Espírito e desse aperto não há saída. Cuidemos pois, para que o nosso falar e o nosso calar sejam em tempo certo e não olvidemos

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que, se acaso nos conduzimos acertadamente, não fomos nós que soubemos quando devêramos falar ou calar (nem mesmo nós, como pessoas religiosas) mas foi o Espírito que falou ou calou conforme foi oportuno. Temos o Espírito. Quem se houver encontrado com a existencialidade do Espírito encontrou a sua própria existencialidade em Deus. Não podemos, nem queremos negar ou esconder e obscurecer que ouvimos o som dos céus “qual vento impetuoso” [de que fala Atos, 2,2] ou negar que vimos a Nova Jerusalém, que tomamos a eterna decisão e que estamos “em Cristo Jesus”. Porém o que significa “ouvir”, “ver”, “estar”? Se começarmos a acentuar as nossas vantagens e os nossos méritos raciocinando e discorrendo em termos de “nós” mesmos, ou daquilo que “temos” ou “possuímos” [dizendo que ouvimos a manifestação do Espírito e que o “temos” em nossa vida”], então ingressamos e nos assentamos nos arraiais [do ensino e da prática] da religião. Nem podemos pretender estar falando do Espírito [ou dele tratando] quando o colocamos em conotação. ou o relacionamos com as nossas próprias pessoas — [nós o ouvimos, e o recebemos...] — ou quando [quisermos mostrar a nossa riqueza espiritual dizendo que] o temos em nossa vida. Contudo, precisamos contar que o temos e é certo que se não anunciamos que o recebemos, todavia pensamos e, se não pensamos, pelo menos sentimos pois, de fato, RECEBEMOS O ESPÍRITO! Ainda que nos seja defeso proclamar que recebemos o Espírito, na verdade o anunciamos de uma ou de outra forma. Todavia, precisamos saber que isto não nos é licito [pois esta posse não depende de nós, não é conquista nossa, não o recebemos como prêmio ou recompensa]. Por isso, ao pensarmos “nós” [ou “eu”] precisamos lembrar sempre que não somos nós [que o recebemos segundo o que somos no mundo; semelhantemente], precisamos manter permanentemente presente em nossa mente que se temos o Espírito (não o recebemos como posse que enriqueça o nosso cabedal de conhecimentos ou o nosso rol de virtudes, antes) é como não o tendo recebido [pois a sua própria existência em nós evidencia que nada temos. De certa forma, mitologicamente falando, esta nossa anulação absoluta é semelhante ao “buraco negro estelar” que tudo absorve a anula, e que o físico Jean Emile Charon considera como a possível sede do Espírito...]. Quem sabe, se, ao falarmos assim de “nós” como não sendo “nós mesmos” e ao discorrermos sobre o que “temos”, como “não tendo”, a verdade se imponha pelo que é defeso e então esse “nós” e esse “ter” sejam devidamente qualificados [por Deus] e, virtualmente, encerrem em si todo o “nós” — [toda a individualidade] — e todo o “ter” — (toda a posse) humana, sem todavia deixarmos de submeter ambas essas formas à crítica e de as pormos em dúvida.

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Pode então acontecer que nós (não como nós mesmos), já não sejamos mais uns quaisquer, porém os representantes e as primícias da comunidade dos espíritos na unidade do Espírito; [pode acontecer] que o nosso “ter” [então] não seja apenas certeza psico-histórica porém (na forma de nosso “não ter”!) seja a eterna destinação do ser humano, seja o nosso ser em Jesus Cristo e não apenas a existência de uma comunidade. Talvez então aconteça que os outros, os muitos, ao redor de nós, (em função daquilo que “não somos” e “não temos”), cessem de ser “os outros”, os que nada têm, e nos ouçam falar em suas próprias línguas dos grandes feitos de Deus. (Atos 2, 11). Contudo [nesta graça de assim testemunhar do Espírito], o nosso receio de o renegar é incomparavelmente maior do que o temor de nos envolvermos na dubiedade de uma posição religiosa. [Talvez possamos concluir desta observação do A. que o testemunho vivo que acaso damos ao dom do Espírito Santo, proclamando as grandezas de Deus tão eloqüentemente que todos os povos, nações e tribos as possam entender como se as anunciássemos em suas próprias línguas, é também uma aparente atividade religiosa todavia, vinda do Espírito, vinda de além da linha extrema das possibilidades humanas; porém se cairmos na tentação de, nesse testemunho, introduzir a “nossa” própria eficiência e a grandiosidade dos dons que “temos”, estaremos dando largas ao fluxo do pecado, efetivamente renegando o Espírito; já não estaremos “apenas” (se assim pudéssemos dizer) retendo a verdade com a nossa injustiça, mas blasfemando contra o Espírito Santo. (Mar. 3, 29)]. Contaremos com o Espírito. Sim, contamos com ele como se fora um fator, um motivo, um agente eficaz, uma causa [uma influência material em nossa vida]. No entanto sabemos que não é assim pois [temos ciência de que o Espírito] é “ACTUS PURUS”; que é genuína realidade [mas não é materialidade]; é evento incontestável que não tem começo nem fim; não tem limitações nem condicionalidade; não está sujeito à temporalidade nem ocupa lugar no espaço; sabemos que o Espírito não é comparável a qualquer outra coisa; não é efeito nem causa. Todavia, dá-se o paradoxo: o Espírito passa a ser [segundo nossa compreensão] alguma coisa a par de outras coisas; o intangível torna-se tangível; o impossível passa a ser possível; o invisível fica visível e o desconhecido vem a ser conhecido. O que há de paradoxal no [procedimento nosso com relação ao] Espírito é que, embora ele somente possa ser descrito em termos negativos [“não tem início nem fim”, “não é visível”, “não ocupa lugar no espaço”...] somos

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declaradamente obrigados a considerá-lo como se fosse alguma coisa; como se fosse origem ou causa; pedimos que ele nos seja concedido e consideramos que determinadas obras são peculiar e caracteristicamente suas; calamo-nos ante seus feitos e nos esforçamos por não entristecê-lo [Efe. 4, 30]; e o adoramos como a terceira pessoa da Trindade. Ainda que essa nossa atitude [que assumimos em nossa religiosidade] nos anule constantemente querendo ser efetivamente espiritual [quando, na prática, é material apenas], não podemos e nem devemos deixar de nos apropriar, a cada momento e de alguma forma, de uma das mais sublimes realidades existenciais do Espírito, [qual seja a religião]. Sabemos que nenhuma atitude humana pode, de fato, corresponder ao Espírito; todavia, quem sabe, (e até por isto mesmo) o Espírito venha a condescender conosco e interceda por nós, justificando-nos, embora sejamos injustificáveis [em nossa forma de culto e nosso posicionamento ante o dom do Espírito]. Portanto, repetindo ainda uma vez, entre o pecado contra o Espírito Santo e a prática de uma religiosidade (em si mesma) indigna da justificação divina, optamos por esta. O Espírito fala, opera e age. Não sabes o que isto significa? [Não entendes?]. Eu também não sei [e não entendo] o que afirmo. Todavia, ele é o “Totalmente Outro”, que tem falado, operado e agido e isto é tão absolutamente certo quanto a radicalidade com que ele contradiz tudo o que digo e tu ouves — (e oxalá contradiga sempre a interrogação que tu e eu fazemos!). Estás comigo perante os fatos consumados. A nossa perquirição pode indagar do significado desses fatos mas não de sua realidade. O Espírito “te libertou da lei do pecado, e da morte”. Isto aconteceu, existencialmente, a ti! A conversão, a volta, o retorno que aconteceu em Jesus Cristo, é teu. A possibilidade que nele foi dada, é tua. A vida que surgiu nele, te pertence. O âmbito do teu falar, das tuas obras e de tua ação está rodeado deste “OUTRO” incontrolável e incomparável. O próprio mandamento de Deus, que vês como lei que define teu pecado e [te condena à] morte, passa a ter significação apenas relativa quando comparado com a lei das leis. (Marc. 12, 28 – 31). Tu pecas, — com relação à retidão deste OUTRO; tu morres — em relação à sua vida; o teu “NÃO”, apenas é “não” mediante o seu “SIM”. Onde, pois, fica o teu pecado, a tua morte, o teu não, se em Cristo Jesus tu descobres a relatividade [das coisas terrenas] quando confrontadas com este “OUTRO”, que é o Deus “totalmente diferente”? Já não resta nada relativo que não tenha a sua correlação; nada de concreto que não aponte para [algo transcendental], além de si mesmo; nenhuma realidade que não seja uma parábola.

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Ao reconheceres a tua escravidão, te libertas; ao reconheceres o teu pecado, recebes a justificação; ao reconheceres a tua morte, revives. É o Espírito que te liberta, te justifica e te vivifica, pois o Espírito é o “conhecimento”. O Espírito é o achado eterno sem o qual nós, que estamos postos sob a lei do pecado e da morte, sequer faríamos a perquirição. Ele escreve a lei de Deus em nosso coração com fogo vivo” e, por isso, “não é ensino mas vida; não é palavra mas existência; não é sinal mas o próprio cumprimento”. (Lutero). Vs. 3 e 4 Porquanto aconteceu aquilo que foi impossível à lei; aquilo para o que ela se mostrou fraca demais por causa da resistência da carne: Deus mandou seu próprio Filho, na semelhança da carne dominada pelo pecado, para destruição do pecado e, assim, pronunciou a sentença de morte do pecado no meio da carne, afim de que a justiça da lei fosse cumprida em nós que não andamos segundo a carne, porém segundo o Espírito. [Almeida escreve assim: “Porquanto aconteceu o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne; isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus na carne o pecado. A fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne mas segundo o Espírito.” A V.S.F. talvez esclareça melhor o pensamento Paulino, dizendo: “Porque o que foi impossível à lei, visto que a carne a enfraqueceu, Deus o fez! Ao mandar o seu próprio Filho em carne semelhante à nossa carne pecaminosa, ele condenou o pecado na carne a fim de que a justiça imposta pela lei fosse cumprida em nós que marchamos, não segundo a carne mas, segundo o Espírito]. “Aconteceu o que foi impossível à lei: [aquilo] para o que ela se tornou fraca, por causa da carne”. [Isto é, Deus fez o que a lei não conseguiu realizar porquanto a carne se revelou forte demais para a lei]. O que é impossível à lei? A resposta vem logo depois: lavrar a sentença de morte do pecado. Ou então, conforme acabamos de ouvir [a lei não teve poder suficiente] para libertar o ser humano; para colocá-lo sobre um fundamento [imperecível] eterno, a fim de suspender a sentença de morte a que foi condenado. A religião em nada pode modificar o fato de que tudo o que o homem faz neste mundo, ele o faz sem Deus; ela pode apenas [e quando muito] desnudar e expor a absoluta ausência de Deus porquanto a religião é determinado modo de ser, ter e agir do homem segundo a carne. A religião participa da confusão e da

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mundanalidade inerente a tudo o que é humano. A religião é a expressão da mais alta possibilidade do ser humano e, mais do que isso, ela constitui a auto-realização da criatura em toda sua plenitude todavia, a religião não faz com que a pessoa vença a si mesma, nem a transforma em nova criatura. [Aliás], nenhuma religião faz isso, nem mesmo a dos primeiros cristãos, ou a de Isaías ou a dos reformadores. Jamais será o ser humano convencido e renovado pelo “odor da morte”, [a morte da qual a religião nos fala e com a qual nos ameaça] e que parece emanar dos páramos mais altos [da pregação e ensino] religiosos. Recendem a esse aroma o insípido e vulgar burguesismo [quiçá populismo] de Zwinglio, o venenoso pietismo de Kierkegaard, o histerismo estraçalhante de Dostoiewski e a excessiva condescendência que os Blumhardt (pai e filho) espalharam ao redor de si, conforme é notório. É realmente lamentável quando dos alcandores da religião se irradia apenas religiosidade! Ela não liberta, mas aprisiona — e prende mais terrivelmente que qualquer outra coisa. Carne é carne, O que resulta da carne, o que parte do homem para seguir em direção a Deus é, necessariamente “fraco”. A história da Religião e a História da Igreja são “fracas” em seu sentido absoluto e o são por força da infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem; são fracas por serem histórias absolutamente humanas e carnais e são carnais mesmo quando se revestem com trajes de História Sagrada. Como carnais são qual a erva que murcha e cuja flor cai. A Palavra de nosso Deus porém, permanece para sempre! “Deus enviou o seu próprio Filho”: esta é a Palavra de Deus. O “próprio Filho de Deus” é Jesus Cristo. Trata-se da existencialidade de Deus, elucidada na sua unicidade com Cristo. A proclamação dessa unicidade é a Palavra de libertação [da criatura humana], que a religião não encontra [nem tem para oferecer]: quem a anuncia [e oferece] é o “próprio Filho de Deus”. Jesus é a existencialidade de Deus esclarecida em sua singularidade; por isso, em todas as formas de racionalismo, a revelação histórica de Cristo é considerada um escândalo. [Isto é assim porque] Deus não é; necessariamente, a “verdade racional”; sua eternidade não constitui, IPSO FACTO, a confirmação direta de toda sorte de idéias (por exemplo, a idéia de Deus, de Cristo, da mediação); sua onipotência não é a conseqüente necessária (e lógica) de uma função matemática. Deus é uma personalidade distinta: ele é singular [sem igual, ímpar]; ele é único — [exclusivo]; ele é incomparável [porque nenhum outro ser tem quaisquer dos atributos de Deus]. É por isto que Deus é eterno e Todo-Poderoso. Dele dá testemunho o Jesushomem, o Jesus histórico. Porém, Jesus é também o Cristo e, [como Unigênito

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de Deus, Emanuel — Deus conosco, revela e] esclarece a singularidade de Deus em sua própria existencialidade. É por isso que a despeito de todo o “historismo” e “psicologismo”, tanto crente como incrédulo, encontramos em Cristo o escândalo de uma revelação eterna, a revelação daquilo que, na verdade, Abraão e Platão já haviam visto: Deus não é “uma verdade histórica casual”. A ação divina foge a toda pragmatização e mitologização, antepondolhes asperamente, um “JAMAIS” ou um “SEMPRE”! É justamente em Jesus que o amor divino transpõe todas as mediações, toda ligação a “isto e aquilo”, a “aqui e acolá”. Como Eterno e Onipotente, ele é o único, — o que [foi e] é “uma vez por todas”, — [o decisivo]; é disto que Cristo, — o Cristo Eterno — dá testemunho. Lá na encruzilhada dos caminhos (e em nenhum outro lugar) está o próprio Filho de Deus. Foi Deus quem o enviou lá do Reino Eterno; lá do mundo que não decaiu e que não conhecemos; do mundo que é do princípio e do fim e portanto, — (e que nenhum “ortodoxo” se regozije, concordando.) — “gerado, não feito”; (e isto contrariando tudo quanto conhecemos como criaturas). “Nascido de Maria, uma virgem”, (como [se fôra] um protesto contra a nossa pretensão de atribuir validez perene aos métodos e sistemas da humanidade, da natureza e da história, conforme os conhecemos); [e assim nascido], verdadeiro homem e verdadeiro Deus, qual documento da antiga e original união entre Deus e o ser humano, unidade que foi perdida mas não definitivamente, conquanto não perdível. Deus o mandou a este mundo temporal, perecível, decaído, a este mundo por demais nosso conhecido e que, afinal, apenas podemos explicar em categorias biológicas que designamos como natureza; que só entendemos como sistema material-econômico que designamos história; mundo que, portanto, conhecemos e entendemos conforme nosso conceito humano e carnal. Sim; o Verbo se fez carne, até mesmo carnalidade “dominada pelo pecado”, conforme mais adiante veremos; Deus o enviou, não para aqui mudar alguma coisa, não para melhorar a carnalidade, moralizando-a, ou para racionalizar o mundo pela sabedoria, para o aclarar pela arte, ou ainda para elevá-lo pela “Fata Morgana” da religião; [para nada disso: o Verbo veio] porém, para proclamar a ressurreição, para [apresentar] a nova criatura na qual Deus se reconhece como em sua própria imagem e essa criatura reconhece em Deus a sua figura original [aquele em cuja imagem e semelhança foi criada]. [A tradução inglesa escreve assim: (Deus enviou o seu Filho ao mundo para proclamar o homem novo que se reconhece em Deus, porque foi feito à sua imagem e no qual Deus se reconhece a si mesmo Pois Ele é o seu modelo”.].

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[Deus enviou o seu Verbo] para anunciar o “mundo novo”, aquele no qual não se faz necessária a vitória divina porque Deus já é VENCEDOR; tratase do mundo onde Deus não é um ser [quiçá superior] ao lado de outros ou algo comparável [ou a que se possam comparar) outras coisas, porém [Deus) é tudo em todos. [O Verbo de Deus] veio a este mundo para anunciar aquele outro, novo, no qual a criatura e o Criador não são dois, mas um. [Sal. 82, 6]. É nisto que podemos verificar se falamos acertadamente sobre o envio do Filho de Deus ao mundo: se o nosso discurso, de fora a fora, em seu conjunto e em cada um de seus detalhes [por insignificantes que pareçam] não der origem ao mais profundo e justificado escândalo, então estamos falando de outra coisa! Deus mandou seu Filho “por causa do pecado”. Por isso a Palavra de Deus, se anunciada corretamente, precisa sempre estar pelo menos “um corpo” à frente das demais. O envio do Filho de Deus somente pode ser descrito em termos da mais forte negação; só pode ser proclamado como paradoxo, como absurdo que, portanto, só pode ser crido [nunca entendido, nem racionalizado] pois [a vinda de Cristo ao mundo] é a reação divina contra o pecado. O escândalo que a Palavra Divina provoca em nós é o reflexo do escândalo que somos para Deus. A Palavra de Deus é a inversão daquilo que conhecemos como seres humanos — natureza e história — e por isso ela é a negação de tudo quanto possamos imaginar nesse nosso sistema desde o seu ponto de partida. A Palavra de Deus é a resposta divina à derradeira e insolúvel pergunta da criatura humana, neste mundo, sob o domínio do pecado; por isto a resposta não está contida nas respostas que o homem encontra, nem é dada às perguntas [que são secundárias ou] penúltimas, nem tampouco às que sejam respondíveis, porém (só e exclusivamente) à pergunta extrema (e que neste mundo não têm resposta). Esta palavra é a [nossa] justificação dada pelo próprio Deus e por Deus somente que, por isto mesmo, se sobrepõe plena e vitoriosamente à última [à maior e única] característica [insofismável] da criatura [segundo o mundo]: sua pecaminosidade intrínseca. E por isto que a resposta que ela contém não pode ser uma “certeza” humana, nem é uma grandeza qualquer, ou um dado, que seja aplicável a elucubrações que os homens façam, nem é um fator que se aplique a seus cálculos. Antes, para nós, sempre há de ser algo que está além daquilo com que podíamos contar, como algo ambíguo, problemático, algo [que na qualidade de criaturas humanas não sabemos explicar logicamente e que nos parece estar] à margem, na periferia de tudo quanto seja racional e pragmático: é algo que não se pode estabelecer nem verificar [materialmente].

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Ora, Deus mandou o seu Filho “na semelhança da carne dominada pelo pecado”. Portanto, não o enviou para comunicar a inocência da vida paradisíaca; nem poderia a missão [de Jesus Cristo] ter semelhante aspecto edênico, pois ele veio justamente por causa do pecado”. Se Deus o houvesse mandado como confirmação [ou demonstração] franca e aberta de sua divindade, então Cristo não seria para o mundo o que ele efetivamente é: não seria o ponto de conversão [a transformação divina, o evento que originou a mudança de sentido que se opera na vida da criatura]; não seria a resposta e a justiça de Deus [à eterna pergunta humana e à sua inerente pecaminosidade]. [Fôra diferente a missão de Cristo], ele não seria o “totalmente outro” Deus que se opõe à totalidade do reino humano e o suprime, mas seria, neste reino, uma segunda grandeza [ou, apenas, mais uma grandeza ao lado de outras]; seria uma das [inúmeras] realidades rudes e prosaicas que coroam de espumas as altas ideologias e ilusões deste mundo. Na verdade, o fato [de Deus ter enviado o seu Filho Unigênito ao mundo] é tão extremamente diferente daquilo que existe [e que é normal entre a humanidade], que a nada pode ser comparado; é um fenômeno que apenas pode ser considerado como sendo sem paralelo, sem nada que lhe fique a par ou semelhante; não pode ser imaginado ou tido como um segundo evento [similar a algo que já tenha ocorrido], nem mesmo como um acontecimento maior, ou mais sublime, em comparação com quaisquer outros fatos que possam ocorrer na história. Este acontecimento é, por assim dizer, a superlativa verdade da realidade em todas as suas mais altas manifestações e, por isso mesmo, não é nenhuma das realidades especiais [ou não] que sejam abordáveis diretamente. “Este é o artifício divino” (Kierkegaard). [Escrevi “artifício” acompanhando a versão inglesa para conservar certa fidelidade à expressão que Barth transcreve com a palavra “Hinterlist” que significa “astúcia”, “manha” e até “perfídia”. Pessoalmente, preferiria escrever “processo” divino; todavia, assim escrevendo talvez eu não expressasse o pensamento de Kierkegaard conforme o A. o registrou embora me pareça que nem mesmo a expressão abrandada segundo os tradutores ingleses é adequada para identificar atributo divino a menos que, retoricamente, usássemos palavra de significação rasteira, chá, quiçá “mitológica” para realçar, por contraste, a liberdade da ação divina]. Esta realidade divina só pode ser entendida pela revelação de Deus e jamais como sendo realidade especial, diretamente abordável [Cristo é a Verdade!]. Precatemo-nos pois do cúmulo do disparatado clangor clerical segundo o qual “a certeza de que Cristo é Jesus pode ser vista nele, direta e imediatamente”.

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Evitemos a blasfêmia de nos apresentarmos perante Deus “sem temor e tremor”; sem enfrentarmos a luta da morte que é o nascimento da fé; sem o estremecimento que é o princípio [a primeira coisa] da adoração; sem o espanto ante a possibilidade do escândalo [quando nos confrontamos com Deus em Cristo]. Evitemos a blasfêmia de tentar conhecer diretamente o que só pode ser conhecido indiretamente [através da revelação de Cristo]. Antes digamos: “Ele foi verdadeiro Deus porque foi irreconhecível”. (Kierkegaard). O Filho de Deus não foi enviado [ao mundo] senão “na semelhança da carne dominada pelo pecado”; [foi enviado] em incógnito na categoria de servo, irreconhecível [como enviado de Deus]. — (Jesus Cristo não foi) “homem tão notoriamente sério [mas] quase tão respeitável quanto um pároco”. (Kierkegaard). — Isto é que não! É na semelhança dominada pelo pecado que se revela sua verdadeira divindade e também sua verdadeira qualidade humana de modo que, ao observador é sempre facultada a escolha livre para o enfoque que lhe aprouver: Poderá, por exemplo, considerá-lo como Homem e como Deus, pela força especial da consciência de Deus que ele desperta; Poderá ver nele o herói religioso-moralista; (esta é, evidentemente, a atitude a que [Kierkegaard] se refere quando fala do clangor sacerdotal). Poderá mesmo classificar Jesus como [tópico da] mitologia de antigas religiões populares [quiçá como folclore] ou até como paranóia aguda. Fenômeno idêntico acontece com o fato de não se encontrar pecado na vida de Jesus; as posições podem ser diametralmente opostas; [qualquer opinião é viável]: e igualmente fácil negá-lo tanto pelo que Jesus fez como pelo que deixou de fazer. Na verdade, os argumentos que possam negar a ausência de pecado estão prontamente a mão (e são mais fáceis de encontrar do que as acusações de pecado que acaso tentássemos levantar contra aquelas pessoas que, entre nós, são justificadamente tidas como melhores, mais dignas e mais piedosas!). Em oposição à secreta afirmação de que [Jesus Cristo] não pecou [conforme Deus nô-lo revela] e de que através de suas ações e suas omissões fala o próprio Deus, levantaram-se os seus contemporâneos imparciais (que ainda não conheciam o que nós entendemos conhecer), rejeitando-a com absoluta convicção. Dá-se fenômeno idêntico com o seu poder de operar milagres: ele é rejeitado com toda sorte de arrazoamentos. Encontram-se explicações psicológicas. médicas, ocultistas, históricas e outras muitas. Essa maneira [“livre”] de reagir ocorre também em relação ao seu apelo ao arrependimento: não há nada que nos impeça de considerar o “Sermão do

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Monte” como pregação moral, idealista, romântico-religiosa, social-religiosa (ou ainda como “ciência” prática para a vida, para vencer enfermidades, ter bom êxito financeiro-social, sucesso nas lides do mundo e até a vitória física e imediata sobre a morte]; nada impede que esse Sermão seja ouvido e apreciado como qualquer outro pronunciamento que hoje se faça em campos, bosques, prados e jardins em lugares ermos e praças públicas... Ainda mais: acaso se poderia ver na escatologia judaica a chave da “conscientização messiânica de Jesus”, de seu relacionamento espiritual com Deus, ou ainda de sua pregação do “Evangelho do Reino”? Ou, quem sabe, seria um problema de psico-análise ou de interpretação da história segundo uma filosofia materialista? Ante a forma de sua morte na cruz poderemos dizer dele o que disseram os judeus no Gólgota [Luc. 23, 35; Mat. 27, 39 —43]. Pode-se dizer que aí morreu em desespero um Sonhador; é possível [até mesmo] remover o aguilhão da morte de Cristo estabelecendo paralelos com ocorrências da história das religiões. O mesmo procedimento se pode ter com respeito à ressurreição: o que haveria de impedir que teólogos, tanto crentes como incrédulos, em nobre competição, discutam se ela deve ser considerada sob esta ou aquela analogia, conforme melhor convenha ou seja mais plausível às suas próprias pressuposições? O que pode impedir “aos que conhecem” [ou pretendem conhecer] mundos [e regiões] superiores, usem o mistério da ressurreição como a água muito necessitada para a movimentação de seus próprios engenhos? O que haveria de impedir que o Dr. Fr. Strauss considere a ressurreição como a “asneira da história do mundo”? Qual é o evento histórico que está tão indefeso ante qualquer ataque [“sábio”] sabido ou tolo, e sujeito a toda sorte de interpretações (ou mal-interpretações) e a todo uso e abuso, como o aparecimento histórico do próprio Filho de Deus? Que outro fato seria menos ostensivo, mais equívoco, menos duvidoso? Não há um só ponto da vida de Jesus, segundo a conhecemos, que não esteja [ou não possa ser inserido] nessa situação ambígua. Não há um só ponto que não provoque escândalo, antes há centenas deles onde não é possível afastálo; há centenas de pontos que, abordados pela ingenuidade de teólogos modernos recebem deles a confissão melancólica e logicamente amarga de que “aqui sentimos diferentemente de Jesus”. “Carne dominada pelo pecado”! Humanidade, mundanalidade. historicidade, naturalidade, na sua incerteza furta-cor! Mais do que qualquer outra vida, a de Jesus é um mosaico que permite a formulação de toda sorte de considerações [toda sorte de quadros, arranjos e

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figuras] desde as mais elevadas até as mais absurdas, por cujas peças no final, cada um cai à sua própria maneira. [O original diz “praça de jogos” e não “mosaico” e a tradução inglesa escreve que a vida de Jesus é qual “praça de jogos onde os homens podem exercitar o seu engenho propondo toda sorte de idéias ou noções, nobres e absurdas, todavia é praça coberta de pedras nas quais cada um tropeçará à sua própria moda”] Tem que ser assim. O tropeço que todos encontramos na vida de Jesus, uns aqui outros acolá, não é a blasfêmia mas a pretensão de nos podermos haver com ele, falar dele e ouvir dele sem nos escandalizarmos. [Para “tropeço” o A. usa no original o mesmo substantivo que para “escândalo” (Aergerniss), isto é, aquilo que irrita, atrapalha,incomoda]. Porquanto Deus enviou o seu Filho na “semelhança” da carne dominada pelo pecado e “assim pronunciou a sentença de morte ao pecado, entre a carne”. É assim que se comprova a filiação divina de Jesus Cristo, a saber: a carnalidade dominada pelo pecado passou a ser mera semelhança, uma parábola. A humanidade, a mundanalidade, a história, aquilo que é natural, se revelam quais realmente são: apenas transparências, figuras, testemunhas de Deus, coisas relativas perante o Criador; isto, porém, não significa que sejam pouca coisa ou nada pois, [como semelhanças e parábolas, os homens e o mundo] poderão ter mais e maiores características do eterno e incomparável, do que possa ter a carnalidade real, absoluta e opaca tomada na ilusória legitimidade do mundo não referido a Deus e, portanto, sem ser suprimido por Ele. Porquanto a carnalidade foi suprimida em Cristo; o que é material ficou destituído de sua qualidade intrínseca para que o ser humano seja reconduzido a Deus, seu Criador; a profunda confusão e a transitoriedade sob as quais a criatura geme tornaram-se evidentes e, nessa evidência, revelaram-se também a esperança e a redenção pelas quais espera. A grandeza, a importância e o brilho do ser humano são julgados em Cristo e, por isto, salva-se a sua destinação como criatura de Deus. Foi por essa razão que Deus enviou o seu Filho para o meio da carnalidade dominada pelo pecado para que, justamente aí, (e onde mais haveria de ser?) o pecado e a rebelião dos homens contra Deus fossem julgados e abatidos; que fosse exterminada à pretensão humana de ser mais do que semelhança apenas; que o falso “absoluto”, a efetiva dissolução e a maldição da morte [que reinam na carne dominada] pelo pecado, fossem postos de lado, [suprimidos]. Esta condenação do pecado que habita na carne se cumpre mostrando o que a carnalidade realmente é: uma semelhança [uma parábola] do Espírito

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conforme pode ser notada na crescente tendência de esvaziamento de Jesus (já mencionada mais atrás (5, 6-8 e 6, 8)) e conforme se nota primeiramente na história da tentação, depois no Getsêmane e, finalmente, no Gólgota onde tem o seu nadir e atinge seu alvo. Foi justamente para a realização integral da sentença [divina], que [Cristo] tomou a condição de servo; que não foi apresentado [ao mundo com poder e glória]; que assumiu o seu próprio esvaziamento [Filip. 2, 6-7]; que ficou incógnito [Mat. 4, 6-7]. Essas são qualidades essenciais e não atributos fortuitos, casuais, do Filho de Deus. É imperativo que esse incógnito [essa falta de identificação com Deus] se acentue, aumente, se avolume e que aumentando gradativamente passe a dominar até chegar ao desprezo e à auto-renúncia. É essencial que, do ponto de vista humano, fiquemos escandalizados. É imperativo que nos compenetremos de que a carne e o sangue não podem revelar que em nós haja mais do que carnalidade, pois esta revelação só pode fazer o Pai, que está nos céus. Fôra tudo isto diferente, fôra Cristo uma dessas pessoas que são imediatamente reconhecíveis como “filhos de Deus”; fôra sua divindade descritível por meio de predicados humanos; fôra ele, como os sacerdotes [os pregadores] pretendem, a última e poderosa expansão da bolha [de sabão, ou de balão] que se chama “religiosidade”, então existiria nele a indicação de um caminho paralelo à estrada da fé, pelo qual se poderia contornar o escândalo da cruz. Então não seria evidenciada a qualidade alegórica da carnalidade, nem sua relatividade e sua supressão; o pecado não teria sido atingido em sua raiz, nem teria sido definitivamente condenado e a existencialidade do ser humano não seria salva, [não seria restaurada como nova criatura]. Todavia, não é assim; Cristo, em sua qualidade de desconhecido, [em seu incógnito] é o oposto dos brilhantes filhos de Deus [deste mundo]; ele não pode ser exaltado com predicados humanos; foi ele quem furou definitivamente a bolha, [esvaziou o balão da religiosidade]. “Ele amaldiçoou o pecado com o pecado; ele expulsou a morte com a morte; venceu a lei com a lei. Como assim? Ele foi um pecador na cruz; teve o seu título [sua qualificação] entre os patifes; como um arqui-malfeitor sofreu o julgamento e o castigo que um pecador merece”. (Lutero). [Poderíamos, talvez, parafrasear a explicação de Lutero, escrevendo: ele amaldiçoou o pecado assumindo o pecado, em si; expulsou a morte, morrendo; venceu a lei, cumprindo-a em sua condenação]. Esta forma característica na qual o Filho de Deus foi enviado ao mundo tem por objetivo (que, aliás, ele de fato alcançou) que “a justiça da lei se cumpra em nós que não andamos segundo a carne porém conforme o Espírito”.

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Se nós reconhecermos no Filho de Deus e nele vermos a supressão de nossa carnalidade e o julgamento de nosso pecado vemos, também, o acontecimento — o achado — eterno: a existencialidade do homem novo que vive em Deus. Então estaremos na situação, nunca dantes ouvida, de nos pormos (a nós mesmos) em dúvida e neste autoquestionamento (que, evidentemente, é o questionamento que outrem nos faz!) nos situamos no campo das coisas eternas. Então somos obrigados por Cristo; tomados e reconhecidos por Deus, usufruiremos da possibilidade que está acima de todas possibilidades: a “impossível possibilidade” de andar segundo o Espírito. — Não mais “segundo a carne”? — Certamente temos e conservamos também esta possibilidade porém, o que significa ela se, embora estando à mão, foi relegada a uma posição apenas relativa, reduzida (melhor diríamos “elevada”) à condição de semelhança [de parábola]? Nossa “peregrinação” a nossa destinação central e final, a nossa existência e o nosso modo de ser, realmente qualificados, acontecem por força do conhecimento do Filho de Deus, segundo o Espírito. O Filho de Deus, o Senhor, no qual nós mesmos nos reconhecemos como seu parente [seu afim] na semelhança de sua morte, isto é, em nossa morte, (6, 5) é a inflexão, o retorno, a decisão, a vitória divina; é o Deus absolutamente diferente: é o Espírito. (II Cor. 3, 17). Como não haveremos de ter o Espírito e como não haveremos de ser transportados para o reino deste amado Filho de Deus (Col. 1, 13), para além dos limites de nossa vida humana, mediante a conversão de seu sentido, na sua transformada nova realidade, se estivermos envolvidos na pergunta insolúvel, no questionamento [que nos propõe o fato de Deus haver mandado o seu Filho ao mundo] e nele encontrarmos a [divina] resposta? Como poderia deixar de ser superior (por assim dizer) à vida carnal, esta nova peregrinação “segundo o Espírito” que de uma forma [tão drástica], tão incontrolável, tão impossível de afastar ou de fazer cessar, tão irrevogável, se apoderou de nós? Como haveria de a carnalidade, na sua realidade transitória, continuar a seguir o seu antigo caminho por força de seu próprio poder, depois de ter sido exposta, em Cristo, como parábola da esperança imperecível? Acaso não haveria ela de, preferentemente, partilhar do caminho da criatura liberta em Espírito? “Que este mundo cesse e venha o teu Reino”! Esta é a verdade sob a qual estamos — ou melhor — sob a qual estão a humanidade, a natureza e a história, por força do envio do Filho de Deus [ao mundo]. Este é o “cumprimento da justiça da lei, em nós”; e a solução do problema da liberdade; e a supressão da sentença de morte que pesava sobre a huma-

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nidade: problema levantado pela religião e que ela, mesmo em sua expressão mais elevada, só pode exacerbar, porém jamais resolver; sentença sobre o pecado, cumprida em Cristo (isto é, aplicada a Cristo.). É a revelação da justiça divina (5, 16 e 18), sempre procurada e nunca alcançada pela religião. Vs. 5 a 9 Porquanto os que estão na carne têm o sentido da carne, porém os que estão no Espírito têm o sentido do Espírito. Ora, o sentido da carne é a morte, porém o do Espírito é a vida e paz, porque o sentido da carne é hostil a Deus e não se submete à lei divina, pois não o consegue. Por isso, os que estão na carne não conseguem agradar a Deus. Porém vós não estais na carne mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Todavia, se alguém não tiver o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. [Comparar a passagem transcrita, com a tradução de Almeida. Notar que onde Barth registra “sentido” Almeida escreve “pendor” ou inclinação, que talvez se ajuste melhor a alguns pontos da exposição do A., quando será empregada]. O Espírito é a decisão eterna: Deus se agrada da criatura humana e esta se agrada em Deus, porquanto [ter ou estar no] Espírito significa pertencer a Cristo, (o que, por sua vez, significa participar do agrado que Deus manifestou por Cristo. [“Eis o meu Filho dileto”... (Marc. 1, 11)]. Estar em Cristo significa estar em sua interrogação e, por isso, também em sua resposta; estar em seu NÃO e, portanto em seu SIM; em seu pecado e, por isso, em sua justificação; em sua morte e, por isso, em sua vida. O Espírito dá sentido à existência; cria e fixa esse sentido. [Pelo Espírito] entra sentido na existência e a existência passa a ter sentido. O Espírito nada tem a seu lado nem contra si. O Espírito é, a um só tempo, luta, prepotência, vitória e ditadura; nunca, jamais, será concomitantemente, tranqüilidade, equilíbrio, compensação, tolerância. O Espírito significa alternativa; a antítese já foi de antemão suprimida mediante a anulação de uma das posições ante a determinação da outra. Espírito significa “Eleição” e por isso mesmo ele de forma alguma pode significar condenação. A outra possibilidade que o Espírito conhece é a que foi (por ele) subjugada, é a que foi excluída, a que não existe mais. [A tradução inglesa escreve assim: “Espírito significa a decisão eterna pela qual Deus [se] decide pelos homens e estes [se] decidem por Deus. Espírito é a satisfação que Deus toma na humanidade e a boa vontade que os homens têm para com Deus. Espírito significa pertencer a Cristo, participar de sua interrogação e, conseqüentemente de sua resposta; em seu pecado e, portanto, em

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sua justifïcação; em seu NÃO e por isso em seu SIM; em sua morte e, portanto, em sua vida. O Espírito é o significado e o sentido existencial; ele faz e cria o sentido. (“He makes and creates sense”.) Com o Espírito a existência passa a ter sentido. (“With Him sense enters into existence and existence into sense”.) “O Espírito não tem parceiro nem oponente pois ele é, ao mesmo tempo, conflito e conquista; ele é ditador vitorioso que não admite paz se esta representar equilíbrio, síntese, tolerância. Espírito significa “ou um” “ou outro”, em que toda a antítese já está destruída pela vitória do “um” sobre o “outro”. Espírito significa aquela eleição onde não existe a possibilidade de rejeição. O Espírito não admite qualquer outra possibilidade que já não tenha sido excluída, vencida, elidida”. É possível que algumas das expressões de Barth (e também dos tradutores ingleses) nos pareçam impróprias ou, pelo menos um tanto obscuras, confusas. Talvez seja da natureza do assunto: como falaremos com palavras perecíveis das coisas que são eternas? Como discursaremos sobre o Espírito que jamais homem algum viu? Que predicados lhe atribuiremos? Como o definiremos? Também pode acontecer que, para nós, um pouco dessa dureza e penumbra esteja na dialética anglo-saxônica quando não, e quiçá muito provavelmente, na insuficiência da “interpretação”. Sem nos esquecermos da substância contida na exposição original do A. (e sem dispensar as luzes que a tradução inglesa aduz), talvez pudéssemos “reinterpretar” mais livremente esta primeira parte da exegese que Barth faz dos Vs. 5 a 9, (sem falsear o seu pensamento), servindo-nos da semântica mais em conformidade com a nossa lexicologia, como segue: Na conformidade da decisão tomada por Deus, desde a eternidade, pertence ao Espírito Santo — à terceira pessoa da Trindade divina e UNA — o munus de trazer ao conhecimento dos homens o fato de que Deus se interessa pela criatura humana e se compraz nela; é o Espírito Santo que assim nos inspira e, concomitantemente, nos conduz a Cristo. Conduz? Assim dizemos com impropriedade porque não somos levados forçadamente aos pés da cruz. A nossa rendição a Cristo não é compulsória; se nos entregamos a ele para estarmos firmemente nele, fazemo-lo no Espírito e pelo Espírito, porém de maneira nenhuma porque o Espírito nos houvesse escolhido de antemão, e nos empurrasse ao encontro do Salvador. Entregamo-nos pela nossa livre opção. Entregamo-nos? Escolhemos? Novamente não, pois também não está em nós saber como escolher e optar perante Deus. Todavia, podemos optar pela fé e rejeitá-la, não em virtude ou em conseqüência de aptidões nossas mas unicamente pela graça de Deus. Esta graça foi dada por Deus, uma vez e por todo sempre, a todos homens; é a fonte da vida, perene, que jorra para sempre; quem quiser pode dela beber.

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Nesta livre escolha está o mistério divino de nossa criação como espirituais, feitos à imagem e semelhança de Deus, e também o mistério da eleição. Deus criou o homem livre e dentro de sua absoluta fidelidade ELE respeita essa liberdade. Diríamos em linguagem mais atualizada que Deus respeita os “direitos humanos”. Respeita, mas não aprova indistintamente; por isso, na predestinação da criatura humana existem as duas saídas finais, diametralmente opostas: há a porta larga e a estreita. A predestinação é esta: quem aceita já está salvo; quem não aceita já está condenado. É nisto que consiste a anulação de uma alternativa mediante a opção por outra já determinada e isto, tanto para a justificação como para a condenação. É pela inspiração do Divino Espírito que “sentimos saudades da vida Edênica” e (por assim dizer) vislumbramos a graça divina; é assim que a nossa existencialidade toma o seu verdadeiro sentido — aquele para o qual Deus nos criou. Todavia, o Espírito Santo é o próprio Deus, como o é Jesus Cristo — que é Deus conosco — e o é Deus Pai, o criador dos céus e da terra. Deus está nos céus; não se deixa levar por conveniências humanas; é reto e justo. Nada há que se lhe compare, nem no cimo da torre de Babel, nem no mais humilde pó da terra, pois o relativo não subsiste ante o absoluto nem pode ser comparado a ele: o Espírito é! (“Eu sou o que sou.”). Porque o Espírito é absoluto nele e perante ele as antinomias, as contraposições, as alternâncias e as alternativas desaparecem e a criatura humana que pela fé e mediante a graça de Deus tiver o Espírito de Cristo e nele estiver, já não sofre condenação (8, 1) pois é o Espírito em quem está (aquele que o tiver) que revela — ele mesmo — a redenção e nele não há contradição mesmo porque a única outra possibilidade foi peremptoriamente cancelada, derrotada, suprimida por ele]. Esta outra possibilidade já não existente é o ser humano segundo a carne. Carnalidade é a decisão atual [do presente século] na qual [e segundo a qual] Deus está contra o homem e o homem contra Deus. Por isso, e em contraposição ao Espírito, a carnalidade só é por nós conhecida como sendo a “carne dominada pelo pecado” (8, 3). Carnalidade quer dizer estar longe de Cristo; é não ter perguntas e, portanto, não obter respostas. Tudo quanto foi dito mais atrás sobre o Espírito aplica-se com o sinal trocado à carnalidade. Carnalidade é ausência de sentido [a tradução inglesa escreve: “Carnalidade é falta de senso” (“non-sense”), introduzindo uma certa duplicidade no sentido, perfeitamente permissível tanto em inglês quanto no original para “sense” e “Sinn”, respectivamente; no entanto parece-me que só em alguns casos poderemos, com propriedade, escrever “senso” conforme, aliás, escrevemos logo adiante].

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O “contra-senso” invadiu o ser humano [porque] ele perdeu o seu sentido [original] e anda agora em inimizade e hostil a Deus pois por sua [agora] natural inclinação não se submete, nem pode submeter-se, à lei divina. Este “contra-senso” se patenteia na religião. Assim como o sentido do Espírito é o “ser” da vida e da paz, também o sentido da carnalidade é o “ser” da morte. Também a carnalidade significa uma alternativa já resolvida ante a qual todas as demais reiteradas intenções, aparentes justificativas, agitações e comoções, são triviais. O mundo, (o mundo moral e cristão!), “se admira e se queixa de serem as pessoas tão más, todavia não sabe como isso acontece; vê o regato fluindo e as folhas e os frutos brotando da árvore má, porém não sabe donde a fonte vem nem onde estão as raízes da árvore. Por isso, acode com conselhos; quer controlar a malignidade e tornar a humanidade piedosa, promulgando leis e impondo castigos e, por mais que faça e por mais que persevere, nada consegue. Talvez lhe seja possível barrar o regato mas a fonte continua a lançar a sua água; talvez lhe seja possível cortar os rebentos novos da árvore mas a raiz fica. Tudo é feito em pura perda porquanto de nada adianta melhorar e curar por fora se por dentro ficar o tronco, a raiz e a fonte do mal. É necessário que, antes de tudo, a fonte seja estancada, secada e as raízes da árvore sejam extirpadas pois de outra forma, para cada barragem ou poda surgirão dez outros pontos. É preciso que o mal seja curado em sua origem pois, se assim não for, por mais emplastro e pintura que se aplique, a ferida supurará e escorrerá de novo e sempre trazendo, apenas, irritação”. (Lutero) Não temos possibilidades de, por nós mesmos, decidir entre a carnalidade e o Espírito, rejeitando aquela e optando por este. Os que andam “segundo o Espírito” não são uns poucos nem são estes ou aqueles; o mesmo se dá com os que andam “segundo a carne”. Quem haveria de reconhecer a sua existência “na carne” que não estivesse “no Espírito” e a quem seria permitido reconhecê-la “no Espírito, sem assim confessar que está na carne”? Ora, está determinado que na temporalidade estaremos todos na carne e na eternidade estaremos todos em Espírito. [Enquanto] na carne, somos rejeitados e (quando) no Espírito somos eleitos, [redimidos]. No mundo da temporalidade, das coisas e dos homens, somos condenados; no reino de Deus somos justificados; aqui pertencemos à morte, ali gozamos da vida. Essas duas condições — condenação e justificação, rejeição e redenção, morte e vida são quais os focos de uma elipse que ovalizam o perímetro que, todavia, vai se arredondando à medida que os focos se aproximam e se transforma, afinal, em círculo perfeito quando os focos coincidem no centro do diâmetro. Contudo, a unidade [a coincidência] dessas duas opções

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opostas (e isto não é demonstrável [nem comparável] matematicamente) não é semelhante a [um todo ou] uma unidade em equilíbrio porém é um sobre-peso, uma preponderância infinita, conforme se exemplifica bem no tempo passageiro, efêmero, absorvido pela eternidade; na unidade da eterna vitória do Espírito sobre a carnalidade; na unidade do caminho que foi restabelecido e que leva daqui para o além. O instante absoluto [o ponto de coincidência dos focos], do lampejo do conhecimento, é o momento [do relâmpago] da ressurreição, do raio divino que relampejando desde o hemisfério superior dos céus ilumina o inferior (Luc. 17, 24). [O A. cita mais proximamente a tradução de Lutero: “assim como o relâmpago lampeja de cima no céu, e ilumina tudo o que está debaixo do céu, assim será o Filho do Homem, no seu dia]. Esta unidade [esta coincidência] mostra que se trata de Jesus Cristo — “o Filho do Homem, em seu dia”! [Notar na simbologia do A. a unidade que ele dá (ou atribui) aos eventos do mundo com a eternidade, unidade essa que se consumará mediante a supressão e absorção do que é finito pelo que é infinito; do que é efêmero pelo que é eterno; do que é matéria pelo que é Espírito; da condenação pela redenção: unidade que se consumará no “Grande Dia do Senhor” quando, ainda segundo a simbologia do A., havendo Deus vindo ao encontro dos homens, na pessoa de seu Filho Unigênito, estes se voltarem a Deus na pessoa do Filho do Homem. Então cessarão os antagonismos e a distorção da criação perante o Criador e voltará a reinar a regularidade do círculo perfeito]. V. 10 Se, porém, Cristo estiver em vós o corpo está morto por causa do pecado condenado, porém o Espírito vive por causa da justiça que foi imputada. “Cristo em vós”: esta é a condição da liberdade de que gozamos para além da lei, e esta é a solução do enigma da vida posto com insuportável dureza na religião. Esta condição de “Cristo em vós” não é para ser entendida como algo a ser ainda preenchido, a ser realizado; esta condição não é subjetiva mas sempre objetiva; é algo já realizado, já cumprido. O ser humano recebe motivação e toma a iniciativa de abrir os olhos para, por si mesmo, ver sua liberdade existencial, constrangida por esta condição: Cristo. Não é o homem quem cria essa contingência por meio de alguma função lógica, por algum parecer estético, ou mediante desejo ético, ou ainda por expe-

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riência religiosa. Essa condição [“de Cristo em vós”], basicamente antecede todos esses atos [ou ações] e é também, basicamente, a permanente negação deles. A condição [“Cristo em vós”] foi criada pela fidelidade de Deus (3, 21) com o envio de seu Filho (8, 3); ser obediente à fidelidade de Deus (1,5) significa curvar-se [sujeitar-se, submeter-se] à condição que, independentemente de nossa submissão e de nossa obediência, foi estabelecida e dada para nossa liberdade. Assim como “o pecado que habita em mim” (7, 17 e 20) é a pressuposição [a condição inicial] da minha rebelião contra Deus independentemente da ação ou inação humana que possa ocorrer posteriormente, assim também “Cristo em nós” é a [condição inicial a] pressuposição divina [de nossa eleição] qualquer que seja a ação ou a inação humana que venha depois. “Cristo em nós” é a Palavra de Deus que nos foi dirigida; é a pergunta e a resposta divina: é a interrogação, porque leva a nossa existência e o nosso modo de ser à morte; e é a resposta porque nos conduz dessa morte para a [nova] vida. [A Palavra de Deus que assim nos guia] é o caminho em toda parte acessível [e visível] para aqueles que sabem ver (1, 20), isto é: Cristo revela o caminho inscrevendo-se em expressiva exclusividade e existencialidade entre os eventos históricos do mundo, neles se destacando como o ponto ao qual todos eles se referem e do qual são vistos. É deste ponto de referência que o pecado é condenado e que a justiça é imputada; é dessa condição de “Cristo em nós” que o ser humano recebe a motivação para sua liberdade e dela toma a iniciativa. “Cristo em nós” não é a conseqüência de suposição nossa ou da apreensão da Palavra de Deus que nos foi dirigida. “Cristo em nós” é uma condição que nos é imposta e que se origina do processo de julgamento e justificação, como condição essencial e determinante. [A tradução inglesa escreve: “Cristo em nós” não é jamais, o processo pelo qual apreendemos a palavra divina dirigida a nós e, portanto, nunca deve ser identificado como “nossa” percepção]. “O corpo está morto por causa do pecado porém o Espírito é vida por causa da justificação”. Cristo é a nossa liberdade; ele é o passo que transpõe o limite da vida humana, e dá origem à inversão do seu sentido; ele representa a emergência — [o surgimento] da nova e verdadeira realidade. A eternidade foi resolvida [decidida, estabelecida] em Cristo; a carne é somente carne, o mundo apenas mundo, e o ser humano não é mais do que ser humano enquanto o pecado for pecado. A existência da criatura humana neste mundo, tanto em seus estágios mais altos como nos mais baixos, precisa desaparecer e morrer em Deus. Não

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há e não pode haver qualquer saída para o suspirar do homem [mesmo] que este alcance o ponto mais alto da religião profética, apostólica e reformada (7, 24). O “corpo” da criatura, a totalidade de seu “Eu sou”, — tanto no passado, como no presente e no futuro — [tudo somado] “está morto por causa do pecado”. A terra volta à terra e o pó ao pó; as ilusões vão às ilusões. A decisão eterna, porém, o juízo eterno, pertence à terra já alcançada, da liberdade, da justificação, da vida, da eternidade. Somente estando redimida pode a criatura humana entender a sua irredimibilidade; somente justificada pode compreender sua pecaminosidade; somente estando viva percebe sua morte. Só em Deus pode o homem esfacelar-se. Não fôra o homem mais livre do que todas as possibilidades humanas, como haveria de compreender o limite, o sentido e a realidade da mais alta possibilidade humana como sendo uma prisão? Não estivesse já salva a criatura que suspira pela redenção, não estivesse já redimida, como haveria de suspirar? A vida do Espírito se inflama à mesma chama da luz que revela a morte do corpo pois esta morte provém do pecado condenado em Cristo e a vida provém da justificação alcançada [também] em Cristo. Ambas as contingências ocorrem conjuntamente, uma reconhecível e mensurável pela outra, porém a segunda predomina qualitativamente e em eternidade, superando e suprimindo a primeira; esta é a liberdade do ser humano em Cristo. A verdade existe e não é sem razões que ela é tão amarga. O Espírito existe e não é sem razão que suspiramos pela redenção do corpo desta morte. Cristo ressurgiu, e portanto há razão para que tudo o que não seja [eternamente] existencial seja dado à morte, em sua morte. [“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.] Comentários: 8, 1-10 Aqui e de modo geral em toda sua obra, Barth refere-se reiteradamente à permanente pergunta da criatura humana, pergunta esta que, diz o A., está implícita na vida de Jesus; diz que, semelhantemente, a própria vida de Jesus é a resposta eterna (e por isto divina) a esta pergunta. Barth diz ainda que na vida de Jesus se patenteia, gradativamente, a condenação do pecado, condenação que chega à culminância no Gólgota. Parece, portanto que a esta altura será conveniente reexaminar as duas primeiras afirmativas e reconsiderar também a terceira questão que muito se relaciona com as outras duas.

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Qual é a nossa pergunta? Ela nasce de nossa incerteza, nosso sofrimento, nossa aflição. Afinal, quem somos? Por que sofremos? Donde viemos e para onde vamos? Quem é Deus? Onde está? Existe? Essa indagação é o despertamento que o Espírito promove em nós e nos leva a cogitar a respeito de nossa origem e de nosso futuro. É mediante esse interesse que começamos a compreender que somos frágeis, mais do que inaptos somos ineptos, somos pó. Descobrimos que não podemos enfrentar, com êxito, o mundo da matéria que nos levará de roldão, mais dia menos dia, ao pó da terra, onde todos desapareceremos e, se alguns passam para a história, breve serão lenda e fábula e transitória é a sua lembrança. Ora, as origens dessa indagação estão implícitas na vida de Jesus, como Filho do Homem. Se descobrirmos que somos fracos, desprotegidos, nulos, massacrados pelos eventos do mundo, mais fraco, mais desprotegido, mais esmagado foi Jesus, em sua vida. E tanto mais porque, sendo infinitamente mais forte, podendo contar com a proteção das hostes celestiais, infinitamente grande em sua personalidade (“jamais homem algum falou com ele”), apto vencedor em todas batalhas, foi despojado de tudo e levado à mais ínfima condição humana, insultado, vilipendiado, crucificado, desprezado de Deus! (“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”). É por isto que Jesus, em sua vida, consubstancia o paroxismo de nosso sofrimento, de nossa insegurança e, portanto, também de nossa indagação. Todavia, a Cristo Deus deu a resposta antecipada: “Este é meu Filho Amado. Esta é a resposta eterna de Deus a Cristo e também a nós se em Cristo estivermos. Passamos para o rol dos “filhos amados” de Deus. Também a nós a resposta é dada por antecipação: recebemo-la aqui, no presente século, antes de sermos transformados a isto, pela nossa justificação mediante a fé. Então, a terceira questão: como foi condenado e vencido o pecado, na vida de Jesus? Ora, a vitória do pecado é a morte. Havendo Cristo, em sua vida, assumido e tomado sobre si todo o pecado da humanidade, mais forte, poderosa e prepotente deveria ser, sobre ele, a morte. Efetivamente, ela foi extremamente arbitrária, violenta, arrasadora. Todavia, Cristo ressurgiu. A morte, o instrumento e a lei de seu próprio senhor, o pecado, foi com ele derrotada. O pecado ficou desmoralizado — perdeu o seu poder. “Onde está, ó morte, a tua vitória?” — Cristo venceu. Cristo triunfou. O pecado não foi “apenas” condenado; ele foi vencido, anulado, definitivamente sobrepujado. Sua coroa lhe foi tirada. Agora é Cristo quem reina!

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A resposta eterna de Deus, dada por antecipação a Cristo, foi por Deus confirmada chamando-o, de entre os mortos, para a vida e é confirmada para nós, na ressurreição de Cristo. — Ele veio para que tenhamos vida — e a tenhamos abundantemente.

A VERDADE (8, 11-27) Barth analisa a obra de Deus junto ao ser humano, operada pela multiforme manifestação do Espírito Santo que, ora leva a criatura à indagação sobre si mesma — sobre Deus e sobre seu relacionamento com o Criador, ora desperta no coração humano o amor a Deus, ora conduz os homens ao Salvador Jesus Cristo, sempre interpretando e aperfeiçoando perante Deus Pai os gemidos e as súplicas da criatura! Não recebemos o Espírito porque clamamos mas o Espírito se antecede incitando-nos a clamar Aba, Pai! Não vamos a Cristo por iniciativa nossa, mas é o Espírito que nos move! Não amamos a Deus porque fomos a isto predestinados, mas o Espírito põe esse amor em nossos corações! O Espírito Santo é a Verdade. Pelo Espírito nos unimos a Cristo, levando seu transitório vitupério (Heb. 13, 13), para juntamente com ele herdarmos a eterna glória. Se vemos nosso sofrimento no sofrimento de Cristo e, então, com ele nos irmanamos, passamos à categoria de filhos do mesmo Pai. Somos feitos filhos de Deus! Eis aí a filosofia cristológica do sofrimento. Vejamos, pois, o que o A. tem a nos dizer! V. 11 Se, porém, o Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos habitar em vós então ele, que acordou Cristo Jesus dentro os mortos, também verificará vossos corpos mortais por causa de seu Espírito que habita em vós. [A tradução de Almeida escreve: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também os vossos corpos mortais, por meio de seu Espírito que em vós habita”. As duas maneiras de escrever se equivalem exceto nos advérbios “por meio” e “por causa”. Entre as versões tomadas para confrontação do texto só a de Lutero registra da mesma maneira que o Autor.

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Todavia Barth tece um comentário de pé de página sobre a parte final do versículo: “Habita em vós”, dizendo que esta forma (no acusativo) é a sugerida por Zahn enquanto Lietzmann se opõe a ela e sugere o genitivo. Diz o A. que sem entrar na discussão do complexo processo de transmissão dos documentos antigos até nós considera que, no caso, deve acompanhar a redação de Zahn pois lhe parece pelo contexto e, notadamente pelo que está no versículo imediatamente anterior (10), ser esta a forma correta. Aliás, diz Barth que a aplicação do genitivo poderia justificar a idéia de mecânica psico-física do Espírito que parece harmonizar-se mais prontamente com os pontos de vista de algum teólogo posterior a Paulo]. “O Espírito habita em vós”, O Espírito é a verdade. Se o Espírito habitar em nós então também habitarão em nós o amargor e a doçura, a perplexidade e a promessa que a verdade traz à criatura humana. Não podemos observar a verdade objetivamente porquanto é ela que assim nos contempla antes mesmo de havermos analisado o que quer que fosse. A verdade é a própria objetividade original, primária, que fundamenta a nossa capacidade de observar e analisar. Semelhantemente, não é possível subjetivar a verdade porquanto ela mesma, com sua crítica “imanente e subjetiva”, acompanha objetivamente e suprime de forma temível e [também] redentora, todo o “eu”, “tu” e “ele”, a que se contrapõe. A verdade não pode ser tomada levianamente; (nem como algo trágico); a verdade põe um ponto final a toda tragédia. [De outra parte], a verdade é também por demais jovial, alegre e por demais gloriosa, para que com ela justifiquemos a nossa existência — [a nossa razão de ser], para que digamos ao instante que passa: “Demora-te um pouco; és tão lindo”. [Uma referência ao poema FAUSTO, de Goethe, apud tradução inglesa]. Todavia, a verdade é extremamente séria e terrível, de maneira que não nos é permitido, acaso duvidando, atentar contra nossa própria existência. O cidadão que havendo lido “Fedo”, de Platão, se lançou em seguida ao mar, entendeu tão pouco do sentido da eternidade quanto os muitos que, tendo lido a peça, não sentiram a mínima necessidade de se afogarem. Não podemos perguntar a verdade por que é ela verdade, porquanto ela já se dirigiu a nós indagando: “Quem és, pois?” Com esta pergunta ela já nos deu a resposta tão plena de conteúdo eterno: tu és o ser humano; a criatura deste mundo, e pertences a Deus o Deus teu Criador e Redentor. É baseado nessa pergunta que a verdade dirige a nós e na resposta que ela contém implícita, que se desenvolve a nossa indagação. Nada podemos, por assim dizer, iniciar com a verdade por que ela é a nossa origem. Por isso temos de nos conformar em deixar a verdade ser o que

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é e conviver com ela, sujeitando-nos ao seu ataque roaz e usufruindo sua incessante bênção (Sal. 139, 1-12) porquanto “Cristo em nós”, como julgamento e justificação (8, 10), é a VERDADE, é o Espírito que habita em nós e, de Cristo, não há fuga nem esconderijo. “O Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos” é o Espírito que habita em vós. Quem passa a se relacionar com Cristo, relaciona-se com Deus, o Deus desconhecido, o Deus que está em secreto, que é Santo, que habita na luz, onde ninguém tem acesso. A vida que dele procede está acima do bem e do mal; seu SIM está acima de todo “sim” e todo “não”; o seu além está acima do além e do aquém. (4, 17). É por isto que a verdade não se mantém e não cai conosco; nem conosco vive ou morre. Não fica com razão quando acertamos [ou por acertarmos] nem a perde quando erramos. Não triunfa em nossas vitórias, nem fica subjugada mediante nossas derrotas. Esta é a razão pela qual a verdade vive a sua vida tão poderosamente; é por isto que a verdade tanto é a morte que paira sobre o berço como é o alento de vida que respira sobre o túmulo. É por isto que a verdade tanto pode ser a condenação de um São Francisco de Assis como o perdão de um Cesar Bórgia. É por isto que ela expulsa do trono os poderosos e eleva os humildes; é por isto que a verdade pode mudar todo “sim” humano em NÃO e todo “não” em SIM. É por isso que a verdade está ante nós, quer subamos aos céus quer façamos nosso leito nas profundezas do inferno. É nesta infinita superioridade sobre tudo o que é humano que a verdade é nossa esperança, nosso inquebrantável relacionamento com Deus, nossa porção imortal. Não existe esperança apaziguadora, não há relacionamento estático com Deus, nem tem o ser humano [como homem], algo que seja imortal; porém, aquele que acordou Cristo Jesus de entre os mortos, também vivificará os vossos corpos mortais por causa do seu Espírito que habita em vós. “O corpo morto por causa do pecado e o Espírito vivificado por causa da ressurreição” (8, 10), eis o contraste que surge da ressurreição e do conhecimento de Deus; todavia, surge para ser suprimido, vencido logo a seguir sob a ação dessa mesma luz; enquanto o cone de luz que vem do projetor desenha e define o contorno do objeto, também o bombardeia certeiramente e aquela “outra coisa”, secundária [a criatura material que se antepõe à luz], deixa de existir. O mesmo Deus que acorda Cristo Jesus de entre os mortos e assim revela a preponderância do infinito sobre o finito, também vivificará vossos corpos mortais. Essa confrontação do finito, na forma de “outra coisa” meramente secundária, com o infinito, só pode ter lugar a título de analogia, como parábola.

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Somente como parábola podemos ver na morte de nosso corpo, a vida do Espírito em nós. Em invisível realidade, aquilo que é finito não se opõe ao infinito mas é, por assim dizer, suprimido por ele e, por isso mesmo, confirmado nele de tal forma que a própria supressão (ou revogação) do que é finito [da criatura segundo este mundo], constitui a sua fundamentação, [a sua razão de existir]. Conseqüentemente, em sua realidade invisível, o nosso corpo não é uma segunda coisa, uma “outra coisa” ao lado do Espírito de Deus que habita em nós, porém ele é, ainda “por assim dizer”, o espírito da persistente mortalidade de nosso corpo e portanto, (e no mesmo modo de dizer), a nossa vida incessante. Em sua invisível realidade, — (e isto distingue o Evangelho da Ressurreição, radicalmente, de toda e qualquer forma de panteísmo, espiritualismo e materialismo [e também das manifestações ruidosas do mais remoto até o mais moderno “avivamentalismo”] ), o anunciado despertamento de nosso corpo no passado. presente e futuro, só pode ocorrer dentro da negação total [do indivíduo] e do envolvimento completo do “FUTURUM RESSURRECTIONIS”: “Ele fará viver”. [Ele vivificará!] Portanto devemos nos afastar o mais possível de todo entusiasmo que a aparência [de termos o Espírito de Deus] possa despertar em nós, como se fora a afirmação de que se poderia alcançar visão (ou intuição) superior do despertamento, [que o Espírito Santo opera] por meio de condicionamento psíquico. [Novamente, atenção, senhores avivalistas. A versão inglesa escreve assim: “Devemos, portanto, dissociar-nos de toda espécie de crença entusiasta de que aqui estamos na presença de reivindicação de alguma ordem superior — (intuição), alcançável por algum estado peculiar da alma.] O quanto mais friamente falarmos da vivificação pelo Espírito, melhor será. A pressão psíquica que a menção dessa vivificação produz já é, por si só, bastante obscurecedora; por isso devemos afastar como enganosas as especulações de caráter “filosófico — natural”, que procuram demonstrar a existência de espiritualidade corporal, visível, real, principalmente aquelas que vão de Oetinger até Beck, e de Rothe até Steiner (e que timidamente aparecem também na primeira edição do “Der Roemer Brief”.) — ousados ensaios que conduzem ao erro; [tais especulações] falsificam, esvaziam e desvalorizam o depoimento [da vivificação]. [A versão inglesa escreve “falsificam o Evangelho”. Em outras palavras, o recebimento do Espírito Santo é a aceitação do Cristo ressurrecto em nosso coração, sem ostentações, sem manifestações especiais exotéricas ou esotéricas, sem outra exteriorização se não aquela da oferta de nossos dons carnais a Deus como instrumentos de justiça (6. 13 e 19) e isto,

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com temor e tremor ante a graça divina, tendo por fruto a santificação e, no final, a vida eterna (6, 22)]. A proclamação da vivificação pelo Espírito, [ou a própria vivificação] é por si mesma [suficientemente] digna de crédito e todo e qualquer esforço que seja feito para comprová-la a torna suspeita, duvidosa, a desacredita porque esse esforço se origina de nossa própria incredulidade. “Corpo” significa a totalidade de nosso ser carnal, conforme existente neste mundo temporal das coisas e da humanidade. “Corpo” quer dizer “eu mesmo”, rodeado de todas possibilidades imagináveis que de alguma forma me são apresentadas. Esta qualificação do meu corpo eu faço mediante o meu conhecimento de Deus, confrontando minha condição atual com a original. Este confronto anula, suprime, revoga todos meus predicados [naturais], inclusive minha própria identidade. Nenhuma substância pode resistir a esta anulação, nenhuma; nem a derradeira, a mais elevada ou a mais profunda das realidades pode opor-se à peremptoriedade dessa negação, [pois ela resulta do meu conhecimento de Deus]. Também a morte natural é, dentro desta anulação total, apenas e somente uma parábola; juntamente com a morte estão todos os atos de nossa vida que, de certa forma, são pequenas (ou maiores) antecipações da morte e acompanham o seu caminho, quer sejam exteriorizados ou não, na forma de mortificações, auto humilhações, renúncias, autoflagelações e espiritualizações. Tais atos [e atitudes], sem dúvida, vislumbram o mistério porém, depressa se afastam [daquilo que o mistério poderia revelar], transformandose em exercícios de cultura espiritual e corporal, processo que a humanidade tem adotado em todos tempos para salvar a vida deste corpo que não pode ser salvo da morte. Não nos é possível deixar de incluir nas “antecipações” da morte natural as várias derivações para o asceticismo [cláustro, vida monástica, etc.], algumas mais severas outras mais brandas; são métodos que o mundo adota, formas variadas e por demais comuns, que são postos sob dúvida radical mediante o conhecimento [do que seja a vontade] de Deus. Portanto, mesmo a semelhança intencional da morte natural — [a antecipação do sofrimento da morte — a repressão a vida — nas várias formas referidas pelo A.] é apenas parábola; é a invasão explosiva do infinito na ordem das coisas que têm somente o conceito do finito. Esta invasão se dá porque somos capazes de [por assim dizer] criar o infinito pela conceituação que lhe atribuímos, isto é, imaginando a eternidade com as qualidades das coisas que são visíveis para, a seguir, aplicar a essa visualização o [rótulo ou o] timbre do invisível, de sorte que criamos para nós uma finitude “quase” infinita. Este “infinito” [assim criado por nós] de maneira

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alguma é o eterno e, confrontado com a origem, revela-se como um produto nosso, [perecível] suprimido, revogado, [pela negação fundamental a tudo quanto é mundano]. Declaradamente, não sou eu esse ser que permanece para sempre, que é imortal: não sou eu o sujeito incorruptível, o ser que, tudo conhecendo, é também conhecido; o ser que não é matéria. Este ser não sou eu mas o Espírito de Deus que habita em mim, que está além da catástrofe que me envolve totalmente e na qual o meu ser [deste mundo] está irremediavelmente perdido. Estar além da catástrofe significa a anulação do “aquém” e, por isso mesmo, significa também a supressão do próprio “além” para este “aquém” [porquanto, cessando o “aquém” desaparece o ponto de referência para situar o “além”, e a unidade se estabelece qual o círculo perfeito, quando os focos da elipse coincidem sobre o eixo [segundo a figuração feita mais atrás pelo A.]. Justamente porque o corpo (visível como passado, presente e futuro) é perecível, mortal, é preciso que invisivelmente (como FUTURUM AETERNUM) ele seja imperecível e imortal. Todavia a presente corruptibilidade, [este corpo mortal, portanto a “carne e o sangue” qualificados como mortais juntamente com tudo mais que lhes diz respeito] não pode herdar o Reino de Deus se ela não estiver relacionada com a sua origem [em Deus] embora possa, talvez, gozar de uma falsa [uma aparente] ressurreição; quem sabe, um “além” relativo, ou melhor, ela pode, talvez, ter um “aquém” [um tempo presente, aparentemente] mais prolongado, [temporariamente falando]. [Entendo que o A. quer dizer que sem reconhecermos em Deus o doador e consumador da vida, sem nos compenetrarmos (e aceitarmos) que em nossa origem remota fomos criados sem pecado e, portanto, se agora não reconhecermos a tragédia de nossa existência perante Deus, como criaturas humanas podemos gozar de aparente paz, de uma suposta vida eterna, ou melhor, podemos prolongar o tempo e por algum tempo, (e talvez até durante a vida toda), o estado de inconsciência de nossa verdadeira situação; dentro desse estado psicológico e mental porém, não temos condições de receber o Reino de Deus cuja existência, aliás, então ignoraremos, na ignorância de nosso próprio estado. Daí a necessidade da pregação. (Como ouvirão se não houver quem pregue? - 10, 15). Todavia, não confundamos esse conhecimento que a pessoa precisa adquirir para aceitar o seu Salvador, como sendo obra ou mérito humano; com o entendimento tomamos conhecimento; com a boca fazemos confissão, porém é com o coração que cremos e somente pela fé somos salvos e justificados. Ora, havendo adquirido o conhecimento, somos livres para optar pela confissão e pela fé, ou pela negação e pela incredulidade].

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Isto que é corruptível, que é mortal, a saber, a carne e o sangue postos em referência a Deus, precisa ser revestido de incorruptibilidade e da imortalidade. Passando a ignorar a sua realidade visível, essa carnalidade [assim suprimida] “nasce de cima”; ainda na temporalidade, aguarda a eternidade e, pelo poder positivo dessa mesma referência a Deus que suprime o ser deste mundo, passa a participar, invisivelmente, dos novos predicados, dos quais se apropria. Estes novos atributos, dos quais nada sabemos porque eles não nos concernem, dizem respeito à ressurreição do corpo. Esta ressurreição se fundamenta, necessariamente, na habitação do Espírito, em nós; isto é, na automovimentação da verdade que se completa [se realiza] em nós e mediante a qual tem lugar esse relacionamento do ser humano com Deus, no qual a criatura encontra sua morte e, por isso, a vida. Nenhum outro fundamento tem a ressurreição do corpo, mas este único lhe basta. Somente se o Espírito não fosse o Espírito, se a verdade não fosse a verdade, e Deus não fosse Deus, (mas fosse uma realidade [material, visível, deste mundo], fosse alternativa, um “além” não genuíno), — somente então não poderíamos anunciar e proclamar o “FUTURUM AETERNUM” da ressurreição do corpo, que é a mais imprescindível interpretação do que o Espírito significa para a nossa vida. [A tradução inglesa escreve: “Somente se o Espírito não fosse Espírito, se a Verdade não fosse Verdade, e Deus não fosse Deus; somente se eles fossem coisas observáveis, secundárias pseudo-aléns, ser-nos-ia impossível; anunciar e formular em palavras o FUTURUM AETERNUM da Ressurreição do Corpo, que e a mais atrevida, mas também a mais indispensável interpretação do que o Espírito significa para nossa vida”]. Vs. 12 e 13 Portanto, irmãos, com referência à carne não somos obrigados a viver segundo a carne! Porquanto, se viverdes segundo a carne caminhais para a morte e se, pelo Espírito, deixardes morrer a empresa da carne, caminhareis para a vida. [Almeida escreve: “Assim, pois, irmãos, somos devedores não à carne, como se constrangidos a viver segundo a carne. Por que se viverdes segundo a carne, caminhareis para a morte, mas se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis]. “Não somos obrigados, na carne, a viver segundo a carne”. O Espírito ou, (o que quer dizer a mesma coisa), a verdade que se tornou avassaladora em nós, a verdade tomada a sério e aceita na mais absoluta agudeza como sendo a

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proclamação do “além” de toda corporalidade e [que constitui] por isso a expectativa da ressurreição desta corporalidade em sua totalidade, significa para nós, em primeiro lugar, um posicionamento crítico bem definido com relação a essa mesma corporalidade. Viemos de uma abrangente supressão de todos atributos do ser humano nosso conhecido e, vamos ao encontro de predicados também totalmente envolventes, porém TOTALITER ALITER da existência, que desconhecemos, em Deus; trata-se da existência da Nova Criatura que eu não sou e, contudo, vive em mim e não posso negar que seja parte do meu “ego” existencial. Procedemos da possibilidade visível de nossa existência na carne e prosseguimos em direção da possibilidade invisível de nossa existência no Espírito. (8, 5-9). Procedemos da morte e vamos ao encontro da vida; para isto somos orientados de maneira bem definida: nossas costas estão voltadas para o Poente e nossa face para o Levante; o contrário, é impossível. [O A. fala Oeste e Leste; preferi usar os respectivos sinônimos para evitar possível conotação política atual, que o original não sugere]. Vida segundo a carne, isto é, a vida prevalente no mundo da temporalidade, das coisas e dos homens; vida não quebrantada em sua dialética; vida tomada a sério, em sua realidade; ou vida ingênua que se preocupe apenas com as possibilidades da criatura neste mundo; vida que se afoga nas possibilidades mais rasas e que desabrocha, satisfeita e feliz, nas possibilidades mais elevadas que encontrar, ou então, vida conservadora e sem humor ou, ainda, desenfreada vida revolucionária, — nenhuma delas entra, sequer, em cogitação [entre a origem de onde viemos e o alvo para o qual marchamos] entre o “início” e o “fim”, entre a morte da qual saímos e a vida para onde avançamos. O Espírito libertou-nos definitivamente da obrigação (da inevitabilidade) de nos apaixonarmos pelas possibilidades [pelas coisas e oportunidades] materiais [conforme acontece quando vivemos] sem considerar que temos de morrer. Agora estamos livres e já não precisamos andar solenemente sem dar uma olhadela sequer à nossa pequenez; já não precisamos andar atarefados sem sentir a moderação que a eternidade sugere; não precisamos andar diligentes, zelosos, pois percebemos a transitoriedade de nossos feitos e obras; todavia estamos, também, livres da indolência pois estamos conscientes da inexorabilidade do tempo que foge sem mais voltar. Estamos livres [do risco] de viver sem Deus (como se isto fora possível); já não precisamos viver desesperados pois podemos elevar nosso pensamento à suprema glória de Deus. Libertados pelo Espírito já não precisamos viver separados, dispersos, esquecidos da única coisa que nos é necessária e na qual todo nosso esfacelamento e nosso desmembramento já foram sarados.

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Já não existe mais a obrigação, a necessidade de viver semelhante vida, de viver... “segundo a carne”. É apenas à sombra de uma possibilidade totalmente diversa que a carnalidade — na qual estamos — conserva o seu caminho, sua própria seriedade, suas luzes e seu poder. Essa possibilidade vem, por assim dizer, de um ponto de vista superior, do qual a carnalidade nem é diretamente confirmada nem negada, de onde, porém, o seu poder de nos obrigar é posto basicamente em dúvida. É justamente nesta dúvida, neste questionamento de todo o complexo de nossa existência, que se revela o machado posto à raiz das árvores. É o questionamento, e a dúvida que cerca todos os caminhos e rodeios nossos conhecidos; nossas atitudes responsáveis e nossas leviandades; é a dúvida sob a qual são postos nossa retidão e nosso pecado; as crenças, o ateísmo, e os ceticismos — especialmente estes. Estes? — Talvez; ou talvez não! O machado está posto à raiz das árvores: gozemos da liberdade que, em Deus, temos para além da lei, a verdade da qual não nos podemos esquivar porque é a verdade; ela é a liberdade do próprio Deus. Existe algo [ou alguém] que está sempre presente, acima de toda profundeza, de toda força e de toda fraqueza, de toda razão ou falta de razão do ser humano; no mundo [existe algo ou alguém] que constantemente livra o ser humano, que o afasta apressadamente [desta ou daquela emergência], que por ele chora à infinita distância e que, sorridente, está infinitamente próximo, confortando e aconselhando; [existe alguém ou algo] que sempre e reiteradamente acusa a criatura mas, também, sempre a perdoa novamente; [existe alguém ou algo] que faz morrer mas também vivifica. [Este algo ou alguém] é invisível mas fala e dá testemunho de si. Este algo [ou alguém] pode ser percebido em forma caricata no pensamento que Dostoiewski atribui ao mais questionável dos seus personagens o qual, no fundo do lodaçal, se refere a seu patrão dizendo que este, algum dia, ainda se dirigirá aos alcoólatras inveterados, aos pusilânimes, aos desavergonhados condescendendo: “Sois porcos e semelhantes a animais, mas vinde a mim, também vós”! Ou então [podemos perceber o mesmo pensamento] na frase nada edificante [quando analisada segundo a filosofia do mundo] que o grande homem de Deus que foi Lutero, pronunciou ao morrer afirmando que, na verdade, somos mendigos. Tudo isto é verdadeiro e podemos dizer, em suma, que não há circunstância ou situação vantajosa, nem algum pedestal mais elevado onde esta ou aquela pessoa pudesse situar-se; não existe alguma “salvação oportuna” [à nossa espera] nos desvãos de nossa vida não redimida. Não existe um suave arrebol

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de tarde amena que em alguma ocasião de nossa vida houvesse de surgir após a tempestade; há somente a orientação que o próprio Deus, e exclusivamente ele, dá ao ser humano: a perplexidade, a ameaça, a promessa, a insegurança e a ulterior segurança final que, como reflexo da luz não criada envolve, por todos os lados, as coisas criadas, anunciando o fim e também o começo da criatura, transformando o interminável dessossego em interminável paz. Esta orientação divina [qual roteiro de santificação], faz-nos sair de amenos abrigos ou incômodos esconderijos e nos compele à fé, para crermos em nossa redenção ou nossa condenação, pois o tema da redenção somente pode ser abordado pela fé por queda e “a paz de Deus que excede a todo entendimento”. “Porquanto, se viverdes segundo a carne caminhais para a morte e, se pelo Espírito deixardes morrer a empresa da carne, caminhareis para a vida”. Todos desdobramentos da vitalidade humana, desde as suas formas inferiores até às mais altas, toda plenificação das nossas possibilidades, tanto as negativas quanto as positivas, tudo quanto quer dizer “vida” com sentido biológico, é “segundo a carne” e está na sombra da morte. [Tudo isso] já começa a morrer no instante de seu nascimento; é suprimido, [revogado] no mesmo momento em que é estabelecido; é condenado em sua retidão. [Todas manifestações de nossa vida terrena] estão na temporalidade e portanto têm o seu futuro pelo que, já agora, estão no passado. Morta está a palavra no instante em que anunciada ou escrita; morta está a natureza quando entra em existência, vinda da não-existência”. Morta está a história quando acontece aquilo que, evidentemente, não poderia acontecer. Morto e anulado é todo movimento que chega a merecer essa designação. Morta e liquidada está a personalidade no instante em que se reconhece, ou é reconhecida pelos outros, como tal. Se [acaso] pudermos, se precisarmos, se conseguirmos “viver” hoje ou sempre “segundo a carne”, então convém que não nos esqueçamos que estamos cavalgando um corcel que galopa sobre as espumas do mar: que estamos correndo ao encalço da morte! Não podemos deixar de ver a mão de Deus levantada contra o que fazemos, ainda que nos seja permitida e até ordenada a fruição da realização plena, sadia, retilínea, vigorosa, aperfeiçoada, da inclinação de nossa vitalidade, de nosso “Eros”, tanto em seu sentido negativo quanto positivo, em todas suas componentes, desde as mais rasas até as mais altas. Embora a justificação que está imanente em nossa conduta (e que, evidentemente, poderia ser também condenação), seja o vapor, a eletricidade [a força motriz] que nos impulsiona e que nos leva a realizar tudo quanto fazemos — nosso respirar e até nossa prece, — não podemos deixar de perceber a última

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e abrangente restrição que está aposta não apenas ao que nos é proibido mas acompanha, principalmente, o que nos é facultado e até ordenado. Não podemos ignorar que será milagre se entre o que fizermos acaso existir algum fruto do Espírito (Gal. 5, 22), algum fruto da luz (Efe. 5, 9) ou alguma obra justificada por Deus. [Esta conclusão de que será apenas por genuíno milagre que faremos algo que seja aprovável por Deus vem do fato de que] a ética [aquilo que é moral], se baseia exclusivamente na límpida vontade de Deus e jamais [pode ser tida] como direito imanente à vontade humana [ou à nossa própria força de vontade], por maior que ela seja. É por isto que, uma vez conhecida a vontade de Deus, ela se manifesta na forma de crítica radical a tudo quanto fazemos, fizemos ou faremos, tanto individualmente quanto coletivamente na sociedade. Essa crítica jamais tem o aspecto de justificação e confirmação como também nunca será contestação ou refutação ao que somos, pois “a inescrutável idéia de liberdade afasta todas as configurações positivas” (Kant). [A tradução inglesa transcreve assim o pensamento de Kant: “A idéia de liberdade está além de nossa investigação porque ela barra o caminho a toda representação positiva”]. Todavia não poderemos deixar de observar a mão que se levanta de fato contra a totalidade das obras humanas; nem podemos olvidar de que é pelo Espírito que devem cessar toda lide, todos negócios, práticas e ocupações do “corpo”. Não se trata porém, de substituir a ética normal, positiva, por outra negativa, de fuga ao mundo, de indiferença, de asceticismo, de revolução, ou de espera [de contemporização?]; nem é o caso de adotar a ética de suposta recuperação da perdida inocência paradisíaca, embora semelhante prática possa ser permitida e, aqui ou acolá, até ordenada como sendo uma parábola expressa no exercício e na montagem dessa semelhança. Não podemos deixar de prestar atenção à solapação do edifício de nossa existência, com todas as construções que lhe apusermos e superpusemos, ou não constatar que treme violentamente o solo sobre o qual se erguem as santas colunas dos pioneiros, dos primitivos cristãos e também dos homens da natureza e dos nobres anarquistas que, ao lado de Stinnes, Ludendorff e Hoelz, promovem, felizes, os seus interesses. [Parece que ao mencionar “homens da natureza” o A. se refere ao “naturalismo” o que se confirmaria se o Hoelz citado logo após por Amo Holz, o naturalista alemão dos fins do século XIX e começo do XX; os “nobres anarquistas” seriam aqueles que, semelhantemente ao General Ludendorff em 1920, pretendem e pregam a destruição das instituições vigentes visando à implantação de ordem melhor.

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Para penetrar mais profundamente no pensamento do A. convém lembrar que Stinnes foi um industrial progressista dos fins do século XIX e primeiras décadas do seguinte, que soube promover seus próprios interesses (financeiros) servindo à coletividade e seu país a seu modo. Quis transformar a Alemanha em grande cartel, sua especialidade como organizador e planejador comercial]. É preciso ver e admitir a fundamental questionabilidade de tudo quanto fazemos ou deixamos de fazer; a questionabilidade de nossa fragilidade e morte [e esta], inclusive, como sendo o fim de nossa sabedoria terrena. É sempre o mesmo quadro: agindo ou não agindo, procedendo desta ou daquela maneira, é claro e evidente que nenhum ser humano, ninguém — nem mesmo a pessoa mais humilde, a que tiver o espírito mais quebrantado, ou a que for a mais direita, — tem o direito de cercear, limitar, ou “fazer morrer” [quiçá mortificar], as “lides corporais” enquanto ainda em plena atividade. Ninguém pode orientar sua atividade a uma direção diferente daquela que conduz “naturalmente” à morte. [Ninguém pode tentar apressar esse caminho — mudar o seu sentido, percorrendo atalhos ou desvios, seja por autoflagelação, privações auto-impostas e martirizações semelhantes, seja pela própria provocação da morte ou o suicídio]. É somente caminhando ao encontro da morte [em Cristo] que se vai ao encontro da vida; [ganhamos a vida ao perdê-la, isto é, dando cotidianamente lugar ao Espírito e não pela renúncia à faina de cada dia; não em contemplativo nirvana “qual anacoreta em seu retiro”, qual monge em seu mosteiro, qual freira em sua cela, qual místico em seu misticismo, qual fanático em sua religião e morte sacrificial!] É da grande questionabilidade [de nossa vida] que brotam palavras, ações e gestos que, a despeito de sua total perecibilidade e mortalidade, dão testemunho da vida verdadeira. É somente dessa grande questionabilidade que emerge a aptidão para ver tais testemunhas da vida: quem sabe, com olhos de descobridor, as vislumbrando onde ninguém as percebe; ou também pode ser de maneira vulgar, enxergando-as onde todos as vêem. Haveremos de sublinhar, porém, que esta tão grande e frutífera questionabilidade não é [necessariamente] uma atitude aceitável, recomendável ou justificadora, como também não o é a grande inquestionabilidade. É pelo Espírito e somente pelo Espírito, que a carnalidade precisa morrer para, nesta morte ser posta à luz da esperança e da vida. “Esta representação meramente negativa e puramente exaltadora da moral” (Kant) é a posição fundamental, (embora ela não seja um posicionamento!) a que somos levados pela sobre-excelente verdade, a verdade levada e tomada a sério.

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Vs. 14 a 17 Porquanto aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus. Porquanto não recebestes espírito de servidão, sob o qual novamente serviríeis, em temor porém o espírito de filiação, no qual exclamamos Aba Pai! O próprio Espírito é testemunha junto a nosso espírito de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, somos também herdeiros. Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, tão certo quanto sofrendo com ele, com ele seremos glorificados. [Confrontar o texto acima com a tradução de Almeida, ligeiramente diferente]. “Este é um texto consolador e excelente e não será suficientemente valorizado mesmo se for escrito em letras de ouro”. (Lutero). “Os que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”. A posição fundamental e crítica [a que somos levados pela sobre-excelente verdade] que em sua negação questiona e põe em dúvida os nossos méritos corporais e em sua afirmação, dá a esta mesma natureza a mais sublime das esperanças, não é senão a realidade de que a criatura está nas mãos do Poder que a impulsiona e este PODER é o Espírito de Deus. Esta é a verdade que toma a criatura pelas raízes e não a deixa fugir nem para a direita nem para a esquerda; não a deixa apegar-se nem ao SIM nem ao NÃO. A verdade que assim agarra é o germe da morte que está em tudo quanto a criatura faz ou deixa de fazer mas é também ela que deseja dar destinação sempre nova a tudo isso que a criatura deixa de fazer ou faz. É a verdade que, com negação inabalável, responde a toda pessoa que se apresente a questionar, quer o faça por atrevimento ou por comodismo, lembrando-lhe do seu posicionamento positivo, o único a respeito do qual se poderia perguntar e que por isso mesmo, não é questionável nem pode ser posto em dúvida, pois se trata do Reino de Deus e da sua glória. As oposições entre subjetivo e objetivo, entre autonomia e heteronomia, entre racional e irracional, entre o aquém e o além, nada significam — nem podem ser investigadas, quando estamos no ponto de sua origem e de seu alvo. A verdade é a presença daquele que nos conduziu da morte para a vida: ele quer e nós somos obrigados; esta é a situação real. É Justamente o nosso desvinculamento, a nossa desobrigação para com o inundo temporal das coisas e dos homens (8, 12) que constitui a nossa liberdade em Deus. Todavia, a nossa liberdade em Deus é também o nosso cativeiro nele; nele, Deus! Portanto, também aqui não se trata de questão de entusiasmo, de experiência mística ou de sentimento de dependência. “Ser movido pelo Espírito” é ser orientado, colocado na posição de quem se move do poente para o nascente, da morte para a vida, [e isto se dá] mediante

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a ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos. “Ser movido pelo Espírito” é dar ocasião a que o Santo Espírito exerça o seu mister de Juiz e Consolador; é ter a verdade como A VERDADE e isto, em qualquer circunstância. Reconhecemos que somos filhos de Deus, justamente porque somos “movidos pelo Espírito”; porque estamos sob o ataque e sob a bênção da verdade; porque estamos nas mãos do Poder. Identificar-me como filho de Deus é, em qualquer hipótese, o mesmo que eu afirmar que Cristo é o Filho de Deus (8, 3) pois ao apresentar-me dessa maneira não me refiro a mim mesmo; jamais [tenho em mente] esta criatura que sou neste mundo porém, sempre a outra, a nova, a invisível; refiro-me ao ser humano que está perante Deus e vive em Deus; quero dizer, pois, Cristo em mim! (O inaudito paradoxo dessa afirmação deveria, por si só, ser suficiente para protegê-la contra a afoiteza com que determinada teologia prática se compraz em transformar afirmações cristológicas em assertivas antropológicas). [A tradução inglesa escreve assim: “O paradoxo sem paralelos desta asserção deveria protegê-la contra o processo de humanização pelo qual teólogos práticos, — por demais práticos — costumam glosar as afirmações cristológicas”]. O que eu quero dizer é que não encontro outro nome para a fonte do Poder em cujas mãos vejo a reversão da minha existência da morte para a vida, senão Deus. Ele é o desconhecido, o Inescrutável, o Oculto, o Estranho; Ele é o Senhor, sobre a vida e a morte. Ele mesmo é a Verdade, que É e QUER; a Verdade pela qual eu sou constrangido, obrigado; e eu, que simplesmente tenho de sujeitar-me a este Senhor, nada mais quero nem sei (na verdade, não eu mas Cristo em mim!); sei apenas que não sou seu servo, nem seu estranho mas — SEU FILHO. Como poderia eu ser movido pelo Espírito, como poderia experimentar a infinitamente doce e também amarga aflição que a verdade me prepara, se o abismo entre o aquém e o além não houvesse estado fechado na sua origem, se eu não houvesse sido originalmente, participante da verdade, não fosse filho de Deus? Sou do mesmo gênero do Criador do ser humano! Isto é o que acontece quando somos “conduzidos pelo Espírito”. Porém, o Espírito é o daquele “que acordou Jesus de entre os mortos” (8, 11). Aqui não há lugar para experiências de românticos, nem para entusiasmos por rapsódias; não há elementos para análises psicológicas nem temas para narradores de contos. Nada, absolutamente nada podemos tirar dessa “célula germinal”, dessa emanação de Deus, que possa prestar-se para explicar ou para permitir supor a existência de uma continuidade, um prolongamento, entre o ser Divino e nosso ser. Não existe uma vida que jorra borbulhante de Deus e tem continuidade em nós.

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A movimentação da criatura humana, pelo Espírito, na qual se verifica a filiação a Deus, implica em “Fim” e “Começo”; Morte” e “Vida”, “Juízo” e “Justificação”. Estes acontecimentos ocorrem aqui e são a resposta à pergunta existencial que a religião, em sua culminância, apresenta como insolúvel. Continuamos pois a existir neste mundo fora do Reino? Continuamos cativos, a despeito de nossa liberdade em Deus? — Sim! Enquanto pertencermos a este mundo onde, na melhor das hipóteses, somos [apenas] pessoas religiosas! [Todavia, a resposta poderá ser] — NÃO! Se nós, (maravilha das maravilhas), formos idênticos ao Homem Novo, em Cristo: Verdadeiro homem e verdadeiro Deus”. “Porquanto não recebestes um espírito de servidão sob o qual novamente serviríeis em temor, porém o espírito de filiação no qual exclamamos Aba, Pai!” A “servidão no sentido do Espírito” (7, 6), no qual estamos quando somos invisivelmente movidos por ele, não é escravidão; nela não existe a diversidade [de condição que caracteriza a escravidão do mundo], não há oposição entre Deus e nós, entre o Criador e a criatura. Por conseguinte, nessa nova servidão não existe medo, mesmo porque ele foi suprimido, expulso e substituído pela plenitude do amor. Esta nova servidão traz tranqüilidade, clareza e paz que nos permitem avaliar a sua natureza e perante as quais a tranqüilidade, clareza e paz que a criatura procura e encontra [neste mundo] são pêlago undoso e revolto. [Na servidão segundo o Espírito] foi suprimida a cruenta pressão [que pesa sobre a servidão do pecado] porque o infinito suprimiu tudo o que é finito; também foi suprimido o comprometimento que tudo o que é finito representa ante o que é infinito. Cessou, desapareceu a suspeita e enfadonha aprovação da burguesia juntamente com sua desagradável, sinuosa e venenosa desaprovação; ficou suprimida a necessidade do insensato cumprimento das possibilidades [humanas] e desapareceu o significado [aliás] vazio do impossível; cessou a debilidade da vida e o poderio da morte. O ser humano deixou de ser apenas humano e Deus deixou de ser unicamente divino; foi, portanto, suprimido de nossa vida o duplo aspecto que se apresenta, inevitavelmente e a todo instante temporal, sob a porta estreita da negação crítica. E o que mais, se não essa inevitável duplicidade, poderia levar-nos ao medo — medo ante a problemática e o enigma de nossa existência e, em última análise, medo perante Deus? O Espírito que recebemos ao sair da morte para a vida é a supressão [o cancelamento e a anulação] desta duplicidade. A nova criatura, Cristo em nós, prevalece em sua singularidade [na unidade da criatura com Cristo], na vitória da vida sobre a morte, na unidade do ser humano com aquele que corta todos os nós górdios, — o próprio Deus! Somente Deus! Já agora a criatura não está mais como estranha, excluída e trêmula [perante Deus], dominada e escravizada

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por cegos ([ética] “heteronômica”); nem, tampouco, precisa ela, ao rebelar-se contra superstições e fanatismos, profundamente ferida em seu amor próprio, preocupar-se nervosamente com o paládio da cultura moderna, ([ética] “autonômica”). Agora [tendo recebido o Espírito], a criatura se apresenta [a Deus] como o filho que ouve a voz do pai, esquecendo que Deus é totalmente diferente dela, na realidade já esqueceu antes, que ela mesma é totalmente diferente, já agora a criatura nada sabe e nada mais quer, além dessa bem-aventurada luz: o próprio Deus! Somente Deus! Este “espírito de filiação” esta nova criatura que não sou eu, é o meu EGO existencial invisível. É daí que sou conhecido e movido, vivificado e amado. À luz deste meu ego invisível vivo qual sou no presente mundo, na minha corporalidade; vivo no reino da duplicidade, sob a porta estreita da negação crítica [total], no ambiente onde o temor do Senhor não é apenas o princípio mas, tem de ser também o fim da minha sabedoria. Vivo no escuro, mas não sem o reflexo dessa luz não gerada; como prisioneiro de Deus, todavia, também liberto por Ele; servo, porém como filho; suspirando, contudo bem-aventurado. Vivo clamando àquele que vejo como o Desconhecido, o Inescrutável, meu inimigo o meu dominador; clamando àquele que vejo como o meu Juiz e minha morte; clamando em profunda aflição e grande temor, porém, exclamando “Aba! Pai”! “Eis aqui descrito o poder do Reino de Cristo”, a obra apropriada e o serviço elevado e certo que se deve prestar a Deus para que o Santo Espírito opere nos crentes” (Lutero). Porventura o meu clamor que, como expressão derradeira e extrema das minhas possibilidades humanas chega perante Deus na forma de Religião, será agradável a ele e então, por ele justificado, não seja considerado como realidade suprimível, anulável, isto é, [pode acontecer] que minha religião seja, também, fé? Quem se atreve a confirmar tal possibilidade, ousadamente, quando todas as conseqüências da religião, no mundo, sugerem o contrário? E quem há que se atreva a negá-la pelas conseqüências que observa? “Deus tomou a forma carnal: quem há que entenda semelhante mistério? Eis agora aberta a porta da vida, através da qual podemos vê-la” [Tersteegen]. Na realidade, esta é a porta do descerramento. Se Tersteegen e seus seguidores não quiseram dizer mais do que a frase realmente encerra, então eles têm razão e a polêmica e crítica de que são alvos podem cessar, pois é certo que no último clamor humano, [na religião], quando nossa atividade se torna tênue, extremamente tênue, poderá, quem sabe, transparecer a glória de Deus, como também, poderá acontecer que ela seja destruída [para nós].

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Que a verdade é a verdade e que somos co-participantes originais dela, a própria verdade nô-lo diz. “O próprio Espírito testemunha junto a nosso espírito, de que somos filhos de Deus”. Não se trata de um espírito [qualquer], de entusiasmo, de impulso, ou de algo demoníaco, nem de uma “hora de Damasco” porém, como “filhos de Deus”, somos levados, pelo Espírito, ao conhecimento do “além” do mundo visível. O Espírito [que assim nos dirige], não é racional nem irracional, mas é o LOGOS, a origem e o fim, tanto da racionalidade como da irracionalidade. Somos guiados pelo próprio Espírito — Jesus Cristo —, em sua plena unicidade e existencialidade, conduzindo-nos da vida para a morte e da morte para a vida; por Jesus Cristo que, abrangendo o céu e a terra, atesta de Deus perante nós e de nós perante Deus; Jesus Cristo, que é a soberania divina que existe desde sempre, desde antes que dela tivéssemos qualquer [noção ou] experiência e que subsistirá, mesmo que nunca venhamos a provar dela. “O Espírito dá testemunho”. Não há necessidade de êxtases e iluminamentos; nem de inspirações e intuições. Felizes os que são dignos de tais coisas porém, ai de nós se por elas esperamos; ai de nós se não percebermos que tais experiências são acessórias e apenas partes do todo. Tudo o que acontece conosco e em nós é apenas resposta ao que o Espírito diz. Somente como resposta pode ter força, ser verdade e vida, o que o nosso espírito fala. Além, sempre além dessa força dessa verdade e dessa vida, fala o próprio Espírito, fala Deus. Fala daquilo que é incomensuravelmente maior do que o máximo que nosso espírito pode falar. Fala do que não somos: fala de nosso ser, como filhos de Deus! “Se somos filhos... “ Nós, filhos de Deus! Retenhamos essa frase em nossa mente e meditemos sobre a total impossibilidade, sobre [o irreal], sobre o paradoxo, sobre a total invisibilidade daquilo que esta proposição afirma. Lembremo-nos de que, ao ousarmos aceitar esse atributo [de filhos de Deus] estamos dando o passo inicial, maravilhoso, criativo, que Abraão deu: o passo da fé; este passo transpõe o abismo que separa o homem velho da nova criatura e só o podemos dar incentivados por Deus. Nós, filhos de Deus! Isto não se pode dizer assim, tão simplesmente! Afirmar tal coisa, ou é a exaltação dos redimidos ou é blasfema prosápia; todavia, seja este ou aquele o caso, nossos lábios já o disseram quando exclamamos Aba! Pai!, de cujo teor nunca tivemos, não temos nem teremos conhecimento. Ao assim exclamarmos perpetramos o que ao mortal é defeso, situando-nos “como se” tivéssemos visto o que nenhum olho viu e houvéssemos ouvido o que nenhum ouvido ouviu. “Como se” o nosso coração houvesse

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recebido o que nenhum coração humano recebeu — o que, contudo, não podemos negar, porquanto, estando no abismo, os altos vieram ao nosso encontro; no pecado, fomos justificados; na morte encontramos a vida, e em nós vive o próprio Cristo. É isto o que Cristo preparou para aqueles que o amam?! Quem pode enfileirar-se entre os que amam a Deus e para os quais ele preparou [tudo] isto? [Todavia] já estamos nessa fileira e já ousamos exclamar [Aba! Pai!]! [Portanto,] existe um “ver” e um “ouvir” que elimina todas perguntas (e não nos estamos referindo a uma experiência, [a evento material em nossa vida] ); [este “ver” e “ouvir”] é apenas memento da decisão já tomada. Sofrimento, culpa, destino, em sua interminável e tétrica realidade humana, que se revela nas mui duvidosas expressões faciais e nas biografias dos indivíduos, na loucura de nossas aldeias, na tirania banal de nossas mais primitivas necessidades e na ingenuidade ideológica de nossa ciência e nossa consciência, no espanto do nascimento e da morte, no enigma da natureza que nos fala desde qualquer casca de árvore ou de um fragmento de rocha, na futilidade dos ciclos da história universal, na quadratura do círculo e no par de paralelas que nunca se cortam; em tudo isto existe uma luz, uma voz. Quem houver, ainda que por uma só vez, visto essa luz ou ouvido essa voz, — não psicológica, sociológica, histórica ou cientificamente, nem por nobreza ou por academicidade, de forma ponderada e meditada, sem envolvimento [emocional] pessoal, mas também não piedosamente, ou por algum iluminamento religioso, — porém existencialmente, esse tal não pergunta mais, porém ouve e vê! Essa existencialidade há de ser genuína; jamais poderia ser existência sorrateira ou astutamente condicionada para apresentação de um todo harmonioso e providencial. Existencial significa plena seriedade; significa ter sido arremessado da sela ao chão; existencialmente quer dizer ter ouvido e visto sem qualquer problemática, de maneira desinteressante e inevitável, incontornável, sem qualquer possibilidade de salvação. [Existencialmente quer dizer] ouvir e ver com os ouvidos e olhos de Ivan Karamazov. — O que? —A si mesmo! — Como aquele que crê, ama e espera? — Não! Mil vezes não! Porém [ouve e vê] a si mesmo em face ao totalmente impossível, ante a absoluta contradição; decididamente não se considera digno de ser justificado por Deus e jamais pensará que poderia ser entronizado em algum conceito divino. Vê-se em confronto com a total realidade de sua existência [no mundo] sofredor, subjugado, perguntando sem alcançar resposta;

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sem poderio, quer seja no protesto, quer na rebelião; totalmente incapaz de fazer qualquer outra coisa que não clamar ou calar, contudo — [e esta é a diferença], vê-se também como OUTRO, afinal e enfim — ou melhor — de início e em primeiro lugar, separado desse conjunto (do qual não pode, todavia, isolar-se!); vê-se colocado na liberdade e na superioridade de que gozou originalmente, em contraposição a esse conjunto (no qual está totalmente emaranhado!). Ele se vê na inconcebível situação de dizer NÃO ao mundo, (“NÃO” que apenas pode confirmar com seu protesto e sua rebelião!); ele se vê como filho de Deus! O que aconteceu? No meio desse “ver” e “ouvir” percebe-se claramente a exclamação, ABA! PAI!, mesmo que a criatura jamais tivesse ouvido falar de Deus ou [até mesmo] se houvesse blasfemado dele. Sob o espanto e horror que a criatura sente ante si mesma nasce o homem novo, a criatura de um mundo novo; dá-se a plenitude da teodicéia ante a qual tudo mais é apenas escárnio e zombaria. Deus mesmo justificou-se perante nós e, assim, justificou-nos para ele. Falando nessa voz e luzindo nessa luz, Deus realizou o ato existencial uma vez por todas, aceitando o ser humano como seu filho. Havendo Deus realizado [efetivado] esta existencialidade definitivamente, “somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo”; herdeiros da promessa semelhantemente a Abraão (4,15) e, portanto, herdeiros do mundo tornado bom e abençoado por Deus; herdeiros da vida eterna que se tornou invisível, indescritível, irreal e impossível pela ação do pecado; herdeiros do “ser”, do “ter” e das obras do próprio Deus. Vivemos carnalmente, [todavia] aspiramos e esperamos a ressurreição e o novo corpo, que foi predito; a vida que agora e aqui vivemos desaparece no reflexo dessa esperança da qual é cópia e testemunha, referindo-se a ela e a tendo por alvo. A vida que aqui vivemos é qualificada pela sua destinação imaterial, invisível e isto sem a mínima influência de qualquer imaginável alteração ou modificação da presente realidade. Se com Cristo formos filhos de Deus somos também herdeiros com ele: somos herdeiros de Deus que está além do SIM e do NÃO, do Bem e do Mal, da Vida e da Morte; somos vencedores porque Deus o é; a seu lado em sua vitória, estamos nós como seus filhos, como aqueles quais [ainda] não somos. Todavia [embora] sendo quais [neste mundo] somos, contemplamos a nossa glória eterna. Acaso já dissemos demais? Sim!, e também de menos.

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Como não haveremos de dizer demais se falamos de nossa esperança e de menos quando falamos de sua realização? A verdade está naquilo que Deus fez, faz e fará e não no que dissermos a esse respeito. Lembremo-nos, pois, que somos “herdeiros de Deus” tão certamente como “se sofrermos com ele, também com ele seremos glorificados”. A obra divina é isto: a cruz e o sofrimento. Não porque o nosso sofrimento seja maior ou menor, ou porque tenhamos mais ou menos paciência para suportá-lo ou, por causa do grau de nossa coragem para enfrentá-lo, como se o sofrimento ou a maneira de nele nos conduzirmos nos tornasse, só por isso, participantes da glória eterna! “Sofrer com ele” significa sofrer com Cristo, estar com Cristo perante Deus, conforme também estiveram Jeremias e Jó: viram a Deus nos fenômenos da natureza; reconheceram a Deus como sendo a luz nas trevas; amaram a Deus, embora sentissem apenas a dureza de sua mão. Aquilo que, acaso, suportamos pessoalmente é apenas “lembrete” do “sofrimento do tempo presente” (8, 18) que envolve os céus e a terra, ainda que nossa aflição, nosso sofrimento, fosse originado pelo interesse em alguma causa nobre, por amor à cristandade, por exemplo, pois nenhuma “causa boa” é causa de Deus. [Entendo que o A. quer dizer que uma “boa causa” é sempre humana e material, portanto, perecível e não divina.] A vida do ser humano no “presente século” (que não é a vida eterna mas a traz em seu bojo), está sob a sombra do sofrimento, que a envolve qual manto escuro, que a ameaça como espada sacada da bainha, qual paredão em vias de ruir. Nestas condições nossa vida é duvidosa e a incerteza que a acompanha é inarredável, pois ela é o elemento constitutivo do caráter temporário da vida humana. Os sofrimentos que a limitação temporal de nossa existência nos impõe, a estreiteza e a apatia de nossa condições naturais, as dores pequenas e grandes que temos de suportar penosamente “por serem coisas desse mundo”, são sombra de nossa finitude substancial. O trauma que sofremos por causa das nossa limitações, e que constatamos ora aqui ora acolá, é o sofrimento [maior] dentro de nosso multiforme sofrer. Haverá de nos ser oculto que a própria pergunta que DEUS faz ao ser humano, prepara a resposta que Deus tem para nós? — No Espírito, isto não nos pode ser ocultado. No Espírito podemos conhecer o sentido de nossa vida, anunciado pelo sofrimento. No Espírito, é possível que o sofrimento suportado conscientemente se transforme no passo [dado em direção] à glória de Deus. Este “não-ocultamento”, este conhecimento de Deus [que nos advém] no sofrimento, é a obra de Deus em nós e, ao entendermos assim, damos lugar

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a que a verdade seja efetivamente a Verdade. [Este entendimento] é o testemunho do Espírito e do Poder que faz de nós “filhos de Deus” e, portanto, herdeiros de sua glória. Vs. 18 a 25 Porquanto eu considero que os sofrimentos do tempo presente de nada valem em comparação com a glória que será manifesta em nós. A atenção da criatura [da criação, segundo Almeida] aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criatura foi sujeita à fatuidade [o original permite, também, que se escreva “à vacuidade” e a tradução de Almeida escreve que “a criação está sujeita à vaidade”) — não por sua própria vontade, porém por quem a sujeitou, em esperança, porque também a criatura será libertada da servidão da corrupção [Almeida escreve, “a criação será redimida do cativeiro da corrupção] para a liberdade na glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que a criação toda geme em uníssono e está conjuntamente em angústia até o tempo presente. E não somente a criação mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, aguardando nossa filiação, [nossa adoção de filhos — Almeida] a redenção de nosso corpo. Porque somos salvos pela esperança. Ora, esperança visível não é esperança (pois o que alguém vê, por que precisa esperálo?). Porém, se esperamos por aquilo que não vemos) o esperamos com perseverança. [Os vs. 24 e 25 são registrados por Almeida, de forma bastante semelhante. A tradução inglesa escreve “paciência”, conforme Almeida, e não “perseverança”. Embora me pareça que a palavra usada por Barth — “erharren” deva ser entendida como “perseverança”, também se poderia escrever “paciência”. No entanto Barth tece breve comentário de pé de página sobre o final do versículo 24 em que justifica a maneira de dizer que ele considera melhor sintonizada com o final do versículo 25]. “Eu considero que os sofrimentos do tempo presente de nada valem em comparação com a glória que será manifesta em nós”. “Eis que agora ele começa a consolar os cristãos em sua tão grande aflição e fala como quem tem experiência e está seguro do que diz e o faz como se contemplasse este nosso mundo com olhos baços ou através de um vidro pintado porém, vendo o mundo de além com os olhos bem abertos. Vede como ele volta as costas para este mundo e volve a face à revelação futura, como se em parte alguma da terra houvesse infelicidade ou lamento porém somente a mais genuína alegria. Faz da totalidade do sofrimento do mundo, uma gotícula,

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uma fagulhasinha; porém da glória do além, que devemos esperar, faz um mar infinito, uma enorme fogueira”. (Lutero) O sentido desta maneira chocante de olhar as coisas humanas requer explicação. É evidente que aqui não se trata de aprofundamento ou de exaltação exagerada do modo usual de ver as coisas, nem de intencionalmente ignorar, atenuar ou dar sentido consolador ao sofrimento neste mundo — (algo como a apresentação de compensações [ou a sugestão da existência de recompensas] na harmonia do além). Semelhante interpretação não suportaria, sequer, uma simples dor de dente, para não mencionar considerações mais sérias sobre o nascimento, a doença e a morte, a fome e a guerra, os destinos de pessoas e povos [coisas que ocorrem] a todo instante e durante toda nossa existência humana, com brutal e fria realidade. Por trás do menor ai e, principalmente, por trás das grandes tormentas de nossa vida está chamejante a problemática [a ambigüidade] de sua finitude. Como iremos ao encontro dela? “Curtocircuitante” e mentiroso é todo consolo e toda resposta que procurarmos dar pois dela procedemos e dela não nos livraremos, nem mesmo pensando na existência de infindável harmonia divina, além de nosso mundo, porquanto o infindável que pudermos imaginar, se mede segundo a nossa finitude e, portanto, é ele mesmo, infindável finitude. A harmonia que postulamos é relativa à nossa desarmonia; é a “Fata Morgana” [a miragem] de nossa peregrinação pelo deserto. Aquele Deus de quem esperamos a paga e a compensação, em um “além” melhor é o NÃO-DEUS; é o Deus deste mundo, criado à imagem e semelhança do homem e, portanto, sujeito à nossa crítica e até mesmo a ser negado quando for enfrentado por algum Ivan Karamazov. Todavia, a problemática de nossa finitude caminha para solução absoluta e não relativa e está acima de nosso pensamento: ela se dirige ao Deus Verdadeiro, ao Deus Desconhecido; ela busca o seu consolo perante aquele para quem os sofrimentos do tempo presente “não pesam na balança” porque o seu consolo é o além que excede a tudo quanto é incomensurável neste mundo. Para sermos consolados precisamos, em primeiro lugar, admitir que não temos consolação; se quisermos oferecer consolo, precisamos reconhecer que estamos todos fartos de consoladores. [A tradução inglesa escreve que “precisamos reconhecer que nosso consolo é vão”.]. “Por isto precisa o Espírito Santo ser Mestre-Escola e mandar o conforto para dentro de nosso coração”. (Lutero). O consolo vem mediante a adoção de nova forma de contabilidade para nossa vida. (Já fizemos uso dessa expressão tão fria em outra parte desta obra (3, 28 e 4, 3) chamando atenção ao fato de que nessa nova escrita não se trata de maneira alguma, de introduzir conceitos que, de certa forma, pudessem ser

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anexados aos diferentes modos de ver da humanidade.) Esta contabilidade tem característica de súmula geral de todos os modos de ver do mundo, lançando esse resumo numa conta que só Deus estabelece. E a consideração “SUB SPECIE AETERNI”, a apreciação vinda de Deus, que jamais pode ser descrita como obra humana pois é obra da fé e portanto, apenas pode ser definida como obra de Deus. Se pretendemos cooperar com Deus ou se quisermos ver como ele vê, jamais chegaremos ao resultado (à conclusão) de Paulo mas, inevitavelmente à posição de Jó antes de Deus lhe haver falado “desde um remoinho”. Se eu disser “conto com Deus”, eu escondo, nessa fórmula muito batida, o salto absoluto [da fé]; a verdade, que não pode ser formulada deve ser procurada no fato de que Deus conta comigo; esta realidade se dá, se permitirmos (não nós, porém...) que a verdade seja realmente a verdade; se dermos ainda uma vez, não nós...) testemunho do Espírito e do [seu] Poder; se apreendermos a obra de Deus na interrogação e na resposta da cruz (8, 17, segunda parte). Se assim procedermos veremos o tempo em que vivemos e que caracterizamos como o “presente século”, qual mar das realidades do mundo invadindo e cobrindo a ilha da verdade que todavia, permanece absolutamente intacta, inalterada sob a superfície mal coberta. A verdade é o “agora” (3, 21), [o instante presente, o momento crítico, decisivo] quando a criatura se apresenta em sua nudez, perante Deus. Este instante não é um ponto ao lado de outros mas é o ponto de onde viemos e que não tem expansão [nem extensão]. Esse ponto é Jesus Cristo, crucificado e ressurrecto. Tudo quanto existiu antes, existe agora ou existirá depois desse instante crítico; tudo quanto circunda esse ponto, constitui o tempo. Neste ponto antes do qual tudo é passado e após o qual tudo é futuro, surge o “tempo” como negação da eternidade; a este tempo designamos por [“presente século” ou] “tempo presente”, pelo que ele oculta e pelo que indica; por aquilo pelo que ele é medido e sem o que ele não existiria. [Em outras palavras: é em Cristo e por Cristo que definimos o que chamamos “presente século”: este tempo material que oculta de nós a glória de Deus — a eternidade — cuja existência, porém, indica ao atestar que somos mortais, carentes dessa glória. Cristo, crucificado e ressurrecto é o padrão de referência pelo qual aferimos a má qualidade dos dias em que vivemos; sem ele, sequer teríamos noção da presente temporalidade (por falta de contraste com a eternidade.)]. Que efetivamente é assim, que o tempo em que vivemos esconde em si a eternidade e também a testifica, que fala dela silenciando a seu respeito, isto sabemos e reconhecemos se, por força da obra de Deus em nós, por força da

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pergunta e da resposta que nos vêm da cruz, temos nossa origem no AGORA absoluto e presente; se Deus, aqui, manifestamente conta conosco e, assim, nos põe em condições de [podermos] contar com ele. [Parece-me que poderíamos interpretar o pensamento do A. dizendo que, para a criatura humana entender que o tempo presente testifica a eternidade é preciso que ela haja passado da morte para a vida; que ela se tenha confrontado com Deus no instante crítico de sua aceitação de Cristo; que tenha visto e reconhecido a obra de Deus na morte e ressurreição de Jesus e assim se haja convencido da questionabilidade de sua existência, de seu sofrimento e sua condenação final e haja, também, visto na morte e na ressurreição de Jesus a resposta divina que consiste na justificação e vida eterna que Deus assegura a todo aquele que crê]. Vemos o transcorrer da nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que ainda não raiou mas está infinitamente próximo. Vemos o desenrolar do tempo à sombra do “momento presente”; vemos as coisas humanas tomarem o seu curso à sombra de Deus. Se formos guiados pelo Espírito (8, 14) precisamos exclamar Aba! Pai! (8, 15); precisamos legitimar-nos como filhos, ou melhor. Somos legitimados como filhos de Deus (8, 16) e, portanto, herdeiros de sua glória. (8, 17). E agora, novamente a questão: nesta conjuntura de nossa vida temporal, como fica o imenso e incontornável problema do sofrimento? Evidentemente ele não impede nem mesmo perturba o nosso acesso à glória de Deus, que se abre no instante crítico, nem poderia, para tanto, “pesar na balança”; e não pode mesmo influir porque é justamente o sofrimento — o sofrimento consciente — que, no Espírito e por Cristo Jesus, constitui o portal do conhecimento e da redenção. (E se não assim, onde é que Deus conta conosco? Onde se justifica ele, perante nós? Onde nos ensina, o seu Espírito, a clamar Aba! Pai!? Onde se evidência que a temporalidade é a negação da eternidade? Onde se choca o ser humano com a limitação que lhe é imposta? Onde é que se demonstra o testemunho e o poder do Espírito, se não na obra de Deus pela qual nos faz co-participantes do sofrimento — quer dizer — estabelece a nossa afinidade, o nosso parentesco com Cristo (6, 5) e assim nos acolhe [e recolhe] na invisível liberdade e glória da nova criatura?) Os sofrimentos “do presente século” não pesam na balança porque eles já foram pesados em Jesus Cristo; porque eles nem são significativos para nossa presente vida, a não ser como sinal de suas limitações, ou melhor [eles mostram o limite, a barreira extrema, onde se dá] a supressão do sofrimento pela vida eterna, pois o tempo no qual vivemos e sofremos, o tempo presente, é o tempo em que se nos revela a glória de Deus, justamente no sofrimento.

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A revelação da glória de Deus é tão forte no mistério do sofrimento e justamente na dor, que longe de nos esquivarmos de olhá-la por amor a ele, precisamos considerá-la como um passo no movimento que conduz da morte para a vida; temos de olhar à dor como ao ponto onde Cristo pode ser visto. Passar ao largo da dor é passar ao largo de Cristo. Perguntar por que sofremos é o mesmo que ignorar a questão que nos é imposta: [A pergunta que nos é feita desde a cruz; não exatamente “o que fazes tu por mim”, mas “o que hei de fazer de Cristo?”]. Responder que não entendemos o sofrimento, que não o suportamos, que não o dominamos, que não o podemos tornar frutífero [útil], seria ignorar a resposta divina. [Vinde a mim... eu vos aliviarei. Eu sou a ressurreição e a vida.]. Esta resposta nos é dada na realidade da negação [que o sofrimento representa]. [A tradução inglesa escreve que a resposta de Deus seria ignorada “porque ela é dada, precisamente, em nossa incapacidade”]. Aqui está o segredo e a revelação da razão do sofrimento: Deus quer ser e é Deus e neste seu querer e ser, precisa ser conhecido e amado por mim. [Deus quer ser e é nosso Pai]. O filho de Deus não desvia o seu olhar do sofrimento e nem pergunta ou responde isto ou aquilo, porque Deus já enquadrou a pergunta e a resposta e ele ouve a voz do Pai; no sofrimento ele ouve a voz da verdade que está na raiz de todas perguntas e respostas humanas. A criatura “quer ver todas as coisas até desesperar-se” (Nietzsche) porque é no desespero que está a esperança: AVE CRUX UNICA SPES MEA! “Assim, pois, queres ser co-herdeiro do Senhor Jesus Cristo, ser seu irmão e ser igual a ele, mas não queres sofrer com ele, então ele, certamente, no dia novíssimo, não te reconhecerá nem como cooperador nem como irmão mas te perguntará onde tens tua coroa de espinhos, tua cruz, teus cravos e teu opróbrio; se foste motivo de horror para todo mundo conforme ele próprio e todos os seus membros [ou seguidores] o são, desde o princípio do mundo. Se não puderes exibir estas coisas, também ele não poderá tomar-te por seu irmão!” (Lutero). “Os filósofos antigos buscavam a verdade e a felicidade com todas suas forças, todavia, um axioma malévolo da natureza diz que jamais alguém encontrará aquilo que precisa procurar. Contudo, é possível que alguém que veja a inverdade em toda parte e que espontaneamente se irmane à infelicidade, em vez de desilusão, encontre algo diferente, um milagre: algo inexprimível, algo de que a verdade e a felicidade são apenas quais imagens idolatras; a terra perde a sua ponderabilidade, os eventos e poderes do mundo tornam-se irreais quais sonhos e, como em claro entardecer, a luz se espalha em todo seu redor.

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Esse tal se sentirá como se estivesse acordando de sonho cujas nuvens flutuantes ainda o envolvessem. Essas nuvens também se dissiparão: então será dia claro” (Nietzsche). Cegos e mudos, por isso mesmo vendo e falando; sem perguntas e sem respostas e justamente por isso, perguntando e respondendo; sofrendo e, assim, triunfando: é assim que os filhos de Deus reconhecem e amam seu Pai, pois “a sua glória será revelada neles”. SERÁ; esta é a grande carência. [A tradução inglesa escreve que “esta é a nossa grande miséria”], mas é, também, a esperança infinitamente maior. Mais uma vez, o FUTURUM RESSURRECTIONIS nos lembra que em tudo [dito aqui] falamos de possibilidade divina e não humana. “Pois a atenção da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus”. Tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas testificam que, verdadeiramente, o tempo em que vivemos é a ocasião do “agora” divino; que este tempo traz em seu bojo um futuro eterno, vivo, que ainda não veio à luz. Esta é a verdade da qual tudo o que é temporal, toda criação e todas coisas dão testemunho. Para onde há de a criatura humana, na sua inextinguível preocupação a respeito de si mesma ou em sua insaciável aspiração por aquilo que ela não é, volver os olhos sem encontrar outros, igualmente ansiosos, quando não ainda mais ansiosos, a lhe interrogarem? Nem por um instante, sequer, pode a criatura duvidar que está num mundo onde todos sofrem. Se a criatura sofrer por ter consciência de um mundo interior, invisível, que ela pressente ao menos como problema em dura oposição ao mundo exterior, totalmente outro, estranho, diferente, — vendo [esses dois mundos] separados porém lado a lado e um contra o outro, — sentindo que o mundo exterior, por demais conspícuo, vem complicadamente, prepotente, ameaçador, hostil ao seu encontro, ela não pode ignorar por muito tempo que, também lá fora, não existe imediação; [não existe a ligação direta com Deus]. [A tradução inglesa escreve que “não imaginaremos, por muito, que a Paz de nossa união direta com Deus esteja na harmonia do mundo exterior”.] O mundo exterior é um cosmos de fatos reais, mediações, limitações e [sobretudo, essencialmente] questionável. Acaso não é evidente que o quanto mais problemático o homem se tornar perante si mesmo, mais duramente ele se chocará com o sofrimento, — a realidade fundamental de sua vida — e tanto mais difícil lhe será, sob a persistente influência cristã, aliviar o “espinho da carne” e, quem sabe, assim esquecer que ele é o ser humano que está sob sombra [da morte]? Não é, também, evidente que [quanto mais preocupada a pessoa estiver com a sua própria incerteza], maior atenção prestará ao mundo que a rodeia,

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mais solidária se sentirá com ele e mais avidamente procurará conhecer os mistérios que lhe dizem respeito? Donde procede este curioso empenho do homem moderno em conhecer [as profundezas dos mistérios da natureza e da ciência], pesquisar as geleiras (ante as quais o próprio Goethe se deteve!), desvendar os segredos do deserto, [atingir] o pólo norte, examinar as profundezas dos oceanos e a vastidão do espaço, compreender o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, pesquisar o obscuro passado de muitos milhões de anos, não só da natureza mas também da vaidade e do sofrimento de sua própria história e descobrir pela análise, (segundo o testemunho insuspeito de competentes especialistas), os absurdos que governam nossa vida inconsciente? Donde procede esta busca de experiências e saber de milhares de coisas que, verdadeiramente, nem se deveria desejar conhecer e experimentar? Donde procede esta reação que o conhecimento cada vez mais profundo do cosmos provoca em nós que, longe de mitigar a problemática de nossa existência, a acentua e incrementa desparadamente? Todavia, não podemos ignorar o desvelo de um olhar gigantesco que, do outro lado do nosso, notoriamente aparentado com ele porém mil vezes mais penetrante, vem de encontro aos nossos olhos; não podemos deixar de reconhecer uma interdependência entre o exterior e o interior, um condicionamento entre ambos os lados do hiante abismo, uma interrogação comum a todas contraposições entre o sujeito e o objeto: “São Paulo, com seus agudos olhos apostólicos, via a amada santa cruz em todas criaturas”. (Lutero). A interrogação [comum a todas antinomias] dirigida diretamente aos homens é, na realidade, o sentido [básico] desse desvelo. O homem vê, indaga [e pesquisa]; descobre, experimenta e sabe; este é o seu cosmos cuja paz ele procura na história e natureza porém, o que a criatura recebe, o que lhe vem ao encontro de toda parte, com fatal inexorabilidade, é a inquietação inerente a este mundo. Quando provocadas, as vozes dos elementos, dos mundos próximos e remotos, dos tempos e das eras, soam caracteristicamente humanas. A sua linguagem fala de belezas e horror; de guerra e de paz; da vida e da morte; do finito e do infinito. Elas falam do bem e do mal como se o homem, com seus contrastes, fosse a sua causa primeira, a sua origem; como se o sofrimento humano fôra o seu sofrimento e a sua enfermidade a enfermidade da criação. “Quando a natureza acorre ao ser humano, ela evidência que ele é necessário para a remir da maldição da vida animal e que nele, finalmente, a existência apresenta um espelho em cujo fundo a vida deixa de ser destituída de sentido para emergir em seu significado metafísico. Contudo, ponderemos: onde termina o animal e começa o ser humano, este ser único sobre o qual repousa a

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natureza?!... Normalmente não saímos da animalidade porém somos, nós mesmos, animais que, aparentemente, sofremos sem qualquer sentido, porém temos instantes de clarividência; então rompem-se as nuvens e vemos como nós mesmos, juntamente com toda natureza, nos voltamos ao ser humano como algo que está acima de nós, muito alto... Todavia, sentimos imediatamente que somos demasiadamente fracos para suportar esse instante de profunda introspecção por muito tempo e compreendemos que não somos “nós” a quem se volta a natureza; já é bastante que, ao menos uma vez, saiamos com as nossas cabecinhas ligeiramente à tona e contemplemos em que profundas correntezas nos afundamos. Porém, isto também não acontece por nossas próprias forças”. (Nietzsche). A verdade é esta: a expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus; ela espera conosco, ou melhor: ela espera por nós! “Pois a criação foi sujeita à vacuidade, não por sua própria vontade, porém por quem a sujeitou, em esperança porque também a criação será liberta da servidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. “Não há um só elemento, uma partícula sequer, do mundo que, conscientizada pelo lamento presente, não alimente a esperança da ressurreição” (Calvino). A inquietação — a ansiedade, a “vacuidade” — que nos espreita [de todos lados] em toda criação, não vem desta ou daquela dor, deste ou daquele horror, anseio [ou nostalgia], ou por alguma falta de beleza; nem provém da totalidade das coisas imagináveis [ou de tudo quanto possamos imaginar e] que lhe possam dizer respeito diretamente, porém, vem da própria condição de criatura. Essa inquietação tem a sua origem no declarado deserdamento da vida direta e na insopitável esperança que a criatura tem. Como haveria de a eterna interação entre energia e matéria, entre “vir a ser” e desaparecer, entre formação e decomposição, entre sede de viver e necessidade de morrer, ser parte da vida eterna? Como poderia a corruptibilidade a que tudo está sujeito, desde o micróbio até o maior dos sáurios e até o mais digno deão de uma faculdade de teologia, ser a vida plena, real, direta, a vida eterna? Donde procede pois, o triste ânimo que o homem (principalmente o ocidental) sempre reencontra para, num otimismo cruel, não ver a vacuidade, a ausência de vida [perene] na criação que, no entanto, verdadeiramente lhe fala (ou poderia falar-nos se não fôssemos tão surdos) a partir de sua beleza (como por exemplo a do corpo humano) ou da fealdade; através da sua grandiosidade (uma cadeia de montanhas) ou da miséria; através da luz (por exemplo a do luar ou a que vem de algum novo livro) e através das trevas?

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Para que entendamos [o que as realidades do mundo poderiam (e podem) ensinar-nos] é preciso que percamos a veneração pela “pseudo-vida” pois ela impossibilita a compreensão dos mistérios divinos que o Cosmos revela. Precisamos reencontrar “aquela sabedoria”, para ver no Universo a revelação do Deus invisível (1, 20); para sentir o salutar espanto que a criação impõe, não pelo terror mas, (por ele despertados de nossos sonhos otimistas,) à vista das espantosas coisas que foram criadas e pelo amor que merecem; pela criação [em seu conjunto], que é um espelho de nossa própria criação. Além da perene interação que é a marca característica da criação, está a criatura (como interrogação!) dentro da criação, e Deus no Cosmos. Se Deus não for encontrado nesse universo, ele não será encontrado de forma alguma e amanhã, quando por qualquer motivo, — provavelmente muito válido — o arrebatamento [o encanto] que sentimos pela vida, houver esmorecido e o negativismo o substituir, passaremos a considerar o mundo perverso e mau, assim criado pela própria vontade [de Deus] ou então, criado vazio [sem qualquer sentido] pelo capricho de algum demiurgo. Reinará então [profundo] pessimismo em substituição ao incorrigível e cruel otimismo [mencionado mais atrás], que leva o ser humano a sistematicamente ignorar a voz que fala através das realidades do Universo para aqueles que “sabem ver”. A vacuidade da criatura não vem por sua vontade; ela não é uma realidade primária; ela resulta da falta de percepção dos otimistas ou da conclusão apressada dos pessimistas e é, imediatamente, mal interpretada, todavia, essa vacuidade não é a característica final, definitiva, do ser humano, porém a criação está sujeita a ela, por quem a sujeitou e, por isso, há esperança, pois a sujeição vem de Deus. Em Deus estão ocultas as antinomias tão claramente visíveis no homem: a vida e a morte; a luz e as trevas; o bem e o mal; a ascensão e o declínio; o idealismo e o materialismo; o interior e o exterior. As oposições que caracterizam e constituem a essência da vacuidade [do mundo] são obra de Deus e a sua interrogação assim como o sofrimento a que agora está sujeita toda criação, juntamente com o ser humano, são a resposta divina; é por isto que a criatura foi sujeita “em esperança”. Para além do otimismo ou do pessimismo [de nossa apreciação da revelação divina] lá onde se identifica a origem da vacuidade humana com a queda invisível da criatura ante o Criador, ali há, também, esperança: esperança da restauração da invisível unidade entre criatura e Criador por intermédio da cruz e da ressurreição de Cristo. O reconhecimento da inexorável escravidão é também o conhecimento da liberdade; o horror ante a corruptibilidade é também a esperança da incor-

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ruptibilidade; o último PARE! é também o primeiro AVANTE! e isto, em Cristo; quer dizer, em Espírito, porque Deus é Deus; porque a verdade é um passo dado da morte para a vida; é movimento, é mudança de rumo. A liberdade na glória que a nova criatura — o filho de Deus, aquele que [ainda] não sou, — espera suspirando, mas feliz, é a promessa da qual o corpo, — o ser humano, aquele que [ainda] sou, — é co-participante juntamente com seu mundo: o mundo abençoado da criação e da vida, cuja herança foi prometida a mim, filho de Deus. Se o ser humano for livre, também o mundo o será. Se o ser humano for “um” em si mesmo por ser “um” com Deus, então também no cosmos deixará de existir “isto” e “aquilo”; não haverá mais “dentro” e “fora”, não haverá “ser” e “desaparecer”. Quando surgirem os filhos de Deus, “pelo seu aparecimento dará a natureza, que nunca salta, o seu único salto; um salto de júbilo porquanto pela primeira vez ela sentirá haver alcançado seu alvo”. (Nietzsche). Também o mundo é eterno, a saber: em Deus; é eterno, na qualidade de Novo céu e Nova Terra; é o mundo que o Pai sujeitou a si por intermédio do Filho (I Cor. 15, 25-28). Quem quiser saber estas coisas pode conhecê-las desde já, ciente porém de que nada sabe: “Na verdade, a terra será ainda lugar de convalescença, mas nela já se sente novo odor — aroma salutar e de novas esperanças”. (Nietzsche). — O que sabemos? — Sabemos que temos motivos para silenciar perante Deus. Sabemos que quando falamos da glória de Deus, nos referimos a um futuro que nunca e jamais será tempo [presente ou temporalidade]. “Sabemos que toda criação geme em uníssono e está conjuntamente em angústia até o tempo presente”. Toda criação: também o que estiver encoberto, oculto e que, por isso, é mais difícil de ser entendido com a nossa inteligência! Não se trata de sua extensão e amplitude mas do saber de nosso entendimento. O que conhecemos, o que sabemos e o que entenderemos é que [aqui] se trata de [contínuo] “suspirar” e “gemer”; de estar permanentemente em dores, como coisa desprendida de sua origem, de algo [agora] apenas relativo, separado do absoluto por abismo intransponível. Então, se algo conhecermos, conhecemo-lo como “coisa”, como o que é relativo; mesmo isto é criação do ser humano e, portanto, a origem de seus “suspiros” e de sua existência “em sofrimento”. Sabemos que tudo que foi [ou é] criado pelo ser humano, tudo o que está na temporalidade — (pois nada sabemos nem conhecemos daquilo que não é criado, e que não está no tempo) — traz em si o embrião da eternidade, do seu futuro eterno que anscia trazer à luz o que, todavia, não pode fazer no tempo presente. 479

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Conhecemos a universalidade, a uniformidade e a generalização desta esperançosa carência e desta carente necessidade. Uma especulação mental, pura, fundamentará este conhecimento, o formulará adequadamente e o aprofundará porém, jamais conduzirá a conhecimento maior ou mais elevado pois ele sempre considerará que o conhecimento verdadeiramente superior, o conhecimento a respeito daqueles que não gemem, que não jazem no sofrimento, diz respeito a criaturas que não pertencem a este mundo e, portanto, é conhecimento que pertence a Deus. Deus, porém, está nos céus e tu estás na terra! Justamente este NÃOCONHECIMENTO daquilo que Deus sabe é o conhecimento que [no mundo] temos a respeito de Deus; é o consolo, a luz, o poder, é a consciência da eternidade que temos em nossa vida temporal. “A criatura geme até agora”, refere-se à verdade revelada em Cristo e testifica, para os que têm os ouvidos convenientemente abertos, que o “tempo presente” é também o tempo eternal. Acaso já ouvimos esse gemer da criatura, que nos diz tudo quanto precisamos ouvir se tivermos ouvidos para tanto? [Acaso ouvimos esse gemer] que Cristo nos revela se ele estiver em nós?! Não é isto um mistério mais misterioso que todos os mistérios? “E não somente a criação mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, aguardando a nossa filiação, a redenção de nosso corpo”. Da vasta amplidão de nosso mundo, que é o mundo da criação, da temporalidade e da corporalidade, voltamos ao ambiente restrito da criatura humana. Transformamos o objeto de nossa apreciação em seu sujeito [isto é, enquanto antes observávamos a criatura no mundo, passamos agora a nos observar a nós mesmos], na medida em que também formos objetos observáveis. Passemos, pois, a considerar o ser humano que somos; como esse ser labuta e vive neste mundo, pois os olhos que assim perscrutadores nos olham do espelho são os nossos, que tudo examinam e, no final, até a si mesmos. — Quem é esta criatura (que assim me observa)? Quem sou eu? — És o dono; és o proprietário; és o que possui as “primícias do Espírito”. Sim, sou eu, o ser [humano] que sabe que a lei procede do Espírito (7, 14); [sou eu], que invisivelmente estou redimido por força da redenção que teve lugar em Jesus Cristo (3, 24); (sou eu,) a criatura que foi tomada, conduzida, favorecida e liberta invisivelmente pela verdade; sou filho de Deus! De outra forma, como poderia eu, realmente, sofrer sob a pressão de minha existência e de meu modo de ser [segundo o mundo]? Não fôra assim, como poderia eu chamar Aba! Pai! E como poderia eu ouvir o gemido das criaturas que sofrem?

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Como homem novo, sou cidadão do mundo vindouro e, à luz do “tempo presente”, revelado em Jesus Cristo, eu sei tudo quanto preciso saber sobre a temporalidade e seu conteúdo. Estou salvo! (8, 24); é daí que eu venho; mas, para onde vou? Qual é meu caminho visível, seu começo e seu fim? Convém que tenhamos, de novo, presente a nossa advertência para [não cairmos em] alguma forma de romantismo, lembrando-nos de que aquém da ressurreição existe interminável complexo de possibilidades, desde as excelentemente superiores até as mais ínfimas; desde as mais nobres até às mais vis; existem as mais dignas e as mais inominavelmente baixas. Arte, saber, moral, distinguem o ser humano e indicam o seu anseio em comungar com o infinito, porém — Deus o sabe — também o distinguem a fome, a sede, o instinto sexual, a sonolência, a digestão e... onde está o limite? Quem nos livra da implacável impressão do quanto tudo isto está emaranhado entre si — (que nossas atividades, desde as mais sublimes às mais abjetas, se entrelaçam e, quiçá, se confundem em suas origens?]. Quem pode demover-nos da convicção quase certa de que a história da humanidade — e a minha própria — seria contada mais justa e fielmente se fosse descrita do ponto de vista do estômago e não da cabeça? O que vale o maior dos gênios se ele, com toda sua genialidade vem a este mundo, nele vive e dele se despede, como qualquer um de nós? O que é [de fato] a história se, [na realidade] melhor descrevemos acontecimentos semelhantes ao da cristandade nos seus primeiros séculos, ou as cruzadas, ou a reforma, como ocorrências “histórico-materiais” ou se, pelo menos, dessa maneira, os tornamos mais verossímeis, mais plausíveis, mais livres de dúvidas, mais claros? O que resta de Blumhardt em Moettligen se tratarmos psiquiatricamente o início do fenômeno e psicologicamente o restante? (A tradução inglesa explica em nota de rodapé que Johannes Cristoph Blumhardt (o Velho), com orações curou uma mulher que sofria de caso grave de histeria. Isto foi em 1842, na localidade referida, perto de Calw em Wuerttemberg; Blumhardt e a própria mulher consideraram o caso como de possessão e expulsão de demônio, semelhante aos narrados em o Novo Testamento. Este foi o ponto de partida de amplo movimento de conversão e cura que Blumhardt considerava ser acompanhado de perdão dos pecados. O movimento tomou por lema a frase “Cristo é Vencedor”, frase que o demônio, supostamente, teria balbuciado pelos lábios da mulher, quando a deixou. Esse acontecimento recebeu, não só em 1842 mas também posteriormente, explicações puramente fisiológicas. [Ver tradução inglesa, página 312, 7ª impressão, (1965) —da lª Edição (1933)].

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E quem poderia [ou poderá] opor-se a semelhante tratamento e interpretação [do fenômeno]? Este é o ser humano; o ser criado, temporal, corporal; o único que conhecemos. — Espírito? O que é espírito? Aquilo que designamos como “espírito” não é mais do que algo comparável à neblina sobre terreno alagadiço. Donde vem a névoa? E o que sobra quando o vento a espalha? O que permanece visível, consistente, material? — Não é necessário que se responda. Semelhantemente, o homem vindo da invisibilidade do Espírito de Deus entra visivelmente na ambigüidade, de forma total e absoluta; de maneira alguma escapamos dela; a sua realidade é inequivocamente clara e se manifesta amplamente. O que [ou quem] somos nós, já que admitimos tudo isto, tão honestamente? Também nós, detentores das primícias do Espírito, gememos tão abertamente quanto a criatura que está a nosso lado, ante a mesma vacuidade, isto é, ante os mesmos contrastes entre a vida e a morte, entre a luz e as trevas, entre a beleza e vileza, jazemos em dor tanto quanto os outros, trazendo em nós o futuro eterno do qual temos ciência [todavia], sabendo que nunca foi e jamais será parte de nossa temporalidade. Somos prisioneiros de Deus como as demais criaturas e por isso, semelhantemente a elas, vivemos em esperança! “Também nós gememos em nosso íntimo, aguardando a nossa adoção de filhos”. “Em esperança”! O Espírito testifica que somos filhos de Deus. Nasceu a nova criatura que, de seu Pai, herdará o mundo. Todavia, essa nova criatura não sou eu; ela não é este ser que é segundo meu corpo no presente século. A última possibilidade desta criatura [o que resta à existência temporal] é gemer e esperar pela adoção. A adoção como filho, porém, está na “redenção do corpo”; ela consiste na realização plena de minha identificação com Cristo na qual, aqui, apenas podemos crer; ela está na ressurreição dos mortos, na “revelação” dos filhos de Deus pela qual toda criação espera e da qual nem sequer um fio de cabelo da nossa cabeça ficará de fora. Escorrido e escoado o grande mar da realidade que aqui e agora nos rodeia e alaga, só restará a verdade: a verdade da realidade! Então a Eternidade será a totalidade dos tempos, [a sua integração entre os limites que vão] da mais remota antigüidade até o mais distante futuro! Então já não existirá mais [mundo] interior que não seja também exterior; não haverá outro eu que não seja eu mesmo; não se tratará de uma parte apenas mas estarei redimido na totalidade de meu ser, transformado, purificado, novo perante Deus, por Deus, em Deus; serei participante da vida e do ser divino: — a isto se chama Filiação.

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Aquém da ressurreição, porém, a última palavra é a religião e nos recordamos [bem] do que isto significa; daí a inquietação e o anseio que, na verdade, nos fita mais fortemente pelos nossos próprios olhos. Também nós estamos debaixo da cruz; também nós não podemos senão testemunhar que o nosso tempo é o tempo do presente século e que a eternidade é o Dia de Jesus Cristo, que não é “um” dia mas O DIA de todos os dias e que existe desde antes, após e acima dos dias de nossa vida. “Não é de admirar, pois, que sejamos movidos por profunda tribulação; não se trata de desejo mas de clamor ansioso pois, quando se descobre a realidade da miséria, é preciso clamar”. (Calvino). Assim, tornamo-nos testemunhas de nós mesmos e esta é a justificação divina da religião. Ficamos sabendo que, em última análise, também nós gememos — e nada mais fazemos; o que isto significa pode ser mostrado e comprovado: significa que Deus é nosso Pai! Acaso ser-nos-á insuficiente saber o que significa o sofrimento, o gemido da criação e o nosso próprio? Acaso haveremos de pretender porção melhor, alguma coisa mais elevada, passando ao largo da cruz e do sofrimento temporal? Se assim pretendermos, então passaremos ao largo da ressurreição, ao largo do “momento presente” que é o mistério do presente século, passaremos ao largo de Deus! “Porque somos salvos pela esperança. Porém esperança visível não é esperança (pois o que alguém vê, por que precisa esperá-lo?). Porém, se esperamos por aquilo que não vemos, o aguardamos com perseverança”. Sim! A verdade é tão pura, tão santa, tão imensa e poderosa, ela é tão acentuadamente a nossa redenção, ela é tão peculiarmente o próprio Deus — Deus por nós, que só nos podemos apropriar dela como sendo vitória, cumprimento e realização, como presença, mediante a esperança e de nenhuma outra maneira. Como poderia a verdade ser “a Verdade” se nós, quais somos, pudéssemos examiná-la e ajuizar a respeito dela? Como poderia a Verdade ser Deus se ela, para nós, fosse uma possibilidade, entre outras? Como poderia ser ela a nossa salvação se ela não fosse, [permanentemente e] a todo instante a força [a mola propulsora], que nos coage a ousar o pulo para a eternidade e nos induz a pensar os próprios pensamentos de Deus, a pensar livremente, renovadamente, integralmente? “Pela esperança”, somos salvos: pela esperança naquilo totalmente diferente, no desconhecido, no inacessível, no “eterno poder e na própria divindade” (1, 20) de Deus, que veio a este mundo em Jesus Cristo. Que mais poderíamos desejar senão que esta esperança redentora seja. sempre de novo, circunscrita à cruz, e subsista contra tudo mais que há no mundo?

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Se conhecêssemos a Deus sem ser pelo sofrimento da criação e nosso próprio; se conhecêssemos a Cristo sem ser o crucificado ou se conhecêssemos o Espírito Santo sem ser como o Espírito daquele que acordou Jesus de entre os mortos, então estaria quebrado o incógnito [o sigilo] no qual a salvação veio, vem e virá a nós e já não seria salvação! “Esperança visível não é esperança”. [Então já não haveria lugar para fé que é, em Jesus Cristo, a instrumentalidade de nossa salvação]. “Comunicação direta de Deus”, não é comunicação divina. Cristianismo que não seja totalmente escatologia, nada, absolutamente nada tem a ver com Cristo. [Entendo que o A. está afirmando que o cristianismo verdadeiro se completa, se realiza, se confirma, através da morte e da ressurreição; por isso, ele continua afirmando que] o espírito que a todo e qualquer instante do tempo presente não proceder [não se originar, invisivelmente] da morte e apontar para a nova vida, esse não é o Espírito Santo pois “as coisas que se vêm são temporais” (II Cor. 4, 18). O que não for esperança, é tronco, jugo, algema; é tão pesado quanto a própria palavra REALIDADE. Não liberta, antes aprisiona; não é misericórdia, porém juízo e destruição; não é direção divina, mas fado; não é Deus, porém o espelhamento da própria criatura não redimida, ainda que [essa expressão material, essa imagem com a qual procuramos iludir a esperança], seja a imponente estrutura do progresso social ou a pomposa exibição da redenção cristã! Redenção é o invisível, o inacessível, o impossível, que vem a nosso encontro na forma de esperança. Acaso poderemos pretender ser melhores do que os que aguardam em esperança, ou ser alguma coisa mais? A perseverança [na esperança] é o sentido mais profundo de nossa tarefa na vida (e isto é bem conhecido não só por qualquer lavrador ou qualquer vovozinha, mas também por toda pessoa verdadeiramente sofredora, sem qualquer conotação com o “cristianismo” ou referência a ele). Haveremos de perseverar “como se” existisse um além do outro lado do bem e do mal; do outro lado da alegria e do sofrimento, da vida e da morte. Por tanto, haveremos de perseverar “como se” em nossa existência e em nosso modo de ser esperássemos por alguma coisa; perseverar “como se” existisse um Deus a quem nós tivéssemos que volver e a quem devêssemos servirem amor, quer fôssemos vencedores ou vencidos, quer subíssemos ou descêssemos, quer vivendo quer morrendo. Dissemos “COMO SE”. Por que? Porque esta é a notável condição: Somente alcançaremos o ponto alto em nosso caminho [ou em nossa peregrinação] através da temporalidade se

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perseverarmos “como se” víssemos o que, de fato, não vemos, “como se”, contemplássemos o invisível. É a esperança que acaba com este enigma; é ela que suprime o “como se”. [Pela esperança] vemos “de verdade”; vemos existencialmente aquilo que, contudo, não vemos. É por isso que perseveramos. Se apenas vermos o que enxergamos materialmente não haveremos de perseverar [na esperança] pois, bem ou mal humorados nos contentaríamos com o que existe. [Com aquilo que é]. Somente a invisível esperança que temos em Deus, em Cristo, no Espírito, explica o fato de não nos conformarmos com a realidade, o fato de não haver harmonia [ou sintonia] possível entre o nosso ser e aquilo que existe [ao redor de nós]. Somente esta esperança invisível explica porque fica subjacente em nós uma “espera oculta” por aquilo que “não é” e que nos confronta existencialmente. Nada mais podemos desejar ser (se é que nos entendemos corretamente) do que pessoas que se contentam em saber, pelos gemidos da criação e seus próprios, que nada podemos pedir que seja maior ou melhor do que a cruz, na qual nos é revelado que Deus é Deus e que precisamos ser servos que esperam por seu Senhor. Vs. 26-27 Semelhantemente, também o Espírito antecede a nossa fraqueza. Pois não sabemos como haveremos de orar devidamente. Mas o próprio Espírito intercede poderosamente por nós com inexprimíveis gemidos porquanto aquele que sonda os corações conhece a mente do Espírito que intercede pelos santos na capacidade divina. [A tradução inglesa escreve:... intercede pelos santos segundo a vontade de Deus.] Semelhantemente, também o Espírito antecede a nossa fraqueza”. (Almeida escreve “nos assiste em nossa fraqueza”). Do que falávamos? Da nossa procura da verdade, ou dela própria? Acaso tratávamos de determinada quantidade, qualidade ou intensidade da experiência humana ou de algum acontecimento divino em nossa vida? Acaso discorríamos sobre espiritualização, ou sobre espiritualismo, quem sabe se de espirituosidade; ou do Espírito? Na verdade, não falávamos diretamente do Espírito, pois somente podemos abordar o tema [de modo relativo], mostrando a negatividade de todos os demais aspectos. Todavia, era o Espírito [Santo de Deus] que tínhamos em mente. “O próprio Espírito testifica junto de nosso espírito que somos filhos de Deus”. (8, 16).

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O gemido da criação e o nosso são apenas o timbre, o selo do Espírito; o nosso clamor Aba! Pai! é apenas o eco da palavra divina. O Espírito opera em causa própria e segue seu próprio caminho; não somos nós que o possuímos, porém é ele quem nos tem. Ele chega primeiro e se “antecede à nossa fraqueza”. Ele é o CREATOR SPIRITUS, pois o nosso gemer é fraqueza, é carnalidade, e não Espírito; é humano e não divino; é pecaminoso e não justo: se o nosso aiar for aceito e ouvido perante Deus, então ele é ouvido (e aceito como justo) perante Deus e Deus somente. Também a nossa expectativa é fraqueza, por mais paciente e crente que seja. Pode bem acontecer que nossa expectação se já infernal, descaracterizada, sem futuro, ineficaz e sem propósito, inútil, uma expectativa que por nada espera e que, por isso, nada alcança, nada recebe e ninguém, se não Deus, pode nos garantir que nossa expectação não seja dessa espécie. A força que existe em nossa fraqueza está na antecedência do Espírito e na Verdade que subsiste por si só. Todavia, precisamos de nos convencer de que nem mesmo pela maior renúncia conseguiremos apropriar-nos dessa força. O próprio “caminho negativo” do misticismo é um engodo, pois o único [e verdadeiro] caminho é Cristo! “Pois não sabemos como haveremos de orar, devidamente”. Acaso entendemos agora, no final desta parte da Carta aos Romanos, o que isto quer dizer? Acaso não teria Paulo orado, enquanto escrevia estas palavras? Ou não teria orado acertadamente, [“devidamente”]? Não são estas palavras uma só oração e, onde já se orou com mais ousadia, mais altruísmo e mais profundidade que aqui? Contudo, enquanto Paulo escreve estas palavras ele sabe que NÃO SABE como deve orar adequadamente. Por que não sabe? Evidentemente, porque a oração não é nenhuma “maravilha das maravilhas que se realiza na alma dos fiéis”; porque “o motivo de toda prece é denodado esforço em busca de confirmação, de fortalecimento e da ascensão gradual de nossa vida” e a sua essência é a idéia da “intercomunicação entre os fiéis e Deus, que é imaginado como pessoa e considerado como estando presente” (Fr. Heiler). A mais heróica [a mais eloqüente], a mais grandiosa súplica e, na verdade, até mesmo as preces dos profetas, dos reformadores e do Apóstolo, para não mencionar as orações dos “Ama-Xosa” e “Kekchi” — mostram quão pouco o próprio homem de oração consegue sair do ambiente restrito de seus interesses, sua experiência e seus pensamentos, quão difícil lhe é transcender a si mesmo. [A tradução inglesa traz nota de rodapé explicando que a referência às orações das tribos “Ama-Xosa” e “Kekchi” São tiradas do livro “A Oração” de Fr. Heiler].

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É na oração que justamente o homem que ora, mostra que é totalmente humano. É das pessoas tidas como piedosas [religiosas, crentes, espirituais] que brotam e rapidamente se sucedem os mais atrevidos saltos e as mais arrojadas pontes, [visando à comunicação direta com Deus]. Tais aproximações, porém, nada têm a ver com Deus, o Deus desconhecido, que [tais homens] não ouvem nem compreendem e que, todavia, está vivo [e pode ser conhecido (1, 19)]. Elas nada têm a ver com Deus porque a oração, considerada e glorificada como coisa objetiva, [como experiência humana] apenas justifica e confirma o libelo (certo se for analisado do ponto de vista humano) que Feuerbach levanta contra toda religião. “Não sabemos”. Além deste “não sabemos” e contida nessa confissão está a realidade do relacionamento do homem com Deus. [Esta negação nada tem a ver com a técnica de submersão (de “absorção”), segundo a tradução inglesa] praticada pelos virtuoses da oração, tanto ocidentais como orientais, pois a confissão dessa ignorância é, em si, o mais agudo libelo contra o mar de absurdos [que tais “especialistas” propagam e praticam]). “Mas o próprio Espírito intercede por nós com inexprimíveis gemidos”. Esperamos! Todavia, porque esperamos em Deus, a nossa expectativa não é vã. Olhamos, porém, somos diferentes daqueles que olham para o vazio, porque já fomos observados antes [por Deus]. Falamos mas, porque naquilo que dizemos tratamos do que não podemos fundamentar, a nossa conversa não é mera tagarelice. Assim também oramos, porém o Espírito intercede por nós com gemidos que nossos lábios não sabem articular pois, traduzidos em linguajar humano, seriam cânticos de júbilo a cuja altura não estamos; é isto que diferencia a nossa oração e os nossos gemidos daquilo que é fraqueza e nada mais. Não é importante que alcancemos um estágio alto, mais alto ou muito alto em nossa oração, pois esta escala, junto com todas as demais que medem o acesso ao céu [ou a nossa “santidade”,] está no distrito do NÃO-DEUS, [no reino] do Deus deste mundo. A realidade de nossa comunhão com Deus, a justificação de nossa oração, consiste no fato de que perante Deus, em nosso lugar, está o Outro, o Todo-Poderoso, o Eterno, o Segundo Homem, o que é do céu! (I Cor. 15, 47). “Pois aquele que sonda os corações conhece a mente do Espírito que intercede pelos santos, na capacidade divina” [ou, “segundo a vontade de Deus” — Almeida]. Deixemos de lado nossa investigação sobre Deus; porém Deus nos esquadrinha. Nossa mente nunca é reta, mas Deus sabe que a mente do Espírito [que está] em nós, é reta; Deus a conhece e [vê que] ela é segundo o Espírito. Humanamente, nada e ninguém pode interceder por nós; estamos totalmente sós e inteiramente perdidos; mas o Espírito, segundo a vontade de Deus, 487

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por nós intercede; somos salvos. Pecadores somos e continuaremos sendo se esta intercessão do Espírito não se der; porém Deus nos chama santos. Foi para sermos santos que ele nos criou do NADA que éramos, somos e seremos [se santos não formos]. Ele nos faz seus santos [isto é, criaturas separadas para ele], seus escolhidos, seus instrumentos, por força dessa intercessão. Quem por nós intercede é o ESPÍRITO, a Verdade, a Esperança, JESUS CRISTO. [Mais uma vez parece oportuno observar o contra-senso que pratica quem segue ou ensina que outros seres, ainda que redimidos, possam interceder por nós perante Deus ou Cristo, que é o próprio Deus. Há um só mediador; temos um só mediador; temos u único advogado e somente um intercessor: JESUS CRISTO, o ESPÍRITO SANTO]. Comentários: 8, 11-27 Na exegese do v. 11 encontramos a afirmação de que assim como não podemos objetivar a verdade (porquanto é ela que nos objetiva primeiro), também não podemos subjetivá-la; outrossim, não a podemos tomar levianamente, nem a poderemos considerar trágica ou por meio dela justificar a nossa existência pois ela é por demais alegre, gloriosa e bela. O que pretende o A. dizer? Talvez esteja dizendo que não podemos objetivar a verdade porque ela não pode ser consubstanciada em algo real, visível, palpável, concreto, pois é justamente a verdade que assim nos delimita, nos pesa e nos define, como seres humanos que somos. Da mesma maneira, não podemos considerá-la como algo abstrato, algo que pertença ao pensamento, à mente e que esteja ao nosso alcance para que dela nos apropriemos subjetivamente, nem mesmo como ideal; ela não pertence a esta ou àquela determinada pessoa. A verdade não é destino e também não justifica ou explica nossa existência. A verdade é a “Boa Nova”, por isso é alegre, é perfeição; por isso é bela. A verdade é o Espírito; por isso não pode ser encarada levianamente. A verdade, segundo critério filosófico, humano, é a conformidade das palavras (e até das atitudes) com a realidade de pensamento, pode ser moral ou física, ou ambas as coisas; pode até ser intuitiva e dependerá da formação da consciência do indivíduo, ou cognitiva e dependerá do conhecimento científico e da cultura das pessoas. A verdade segundo conceitos humanos é apenas analogia; é parábola e até alegoria da verdade divina e serve para julgar segundo a retidão dos homens. Não é por acaso que o mandamento não diz:” Serás verdadeiro” mas ordena: “Não darás falso testemunho”. 488

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A verdade vem de Deus. Os filósofos se vêem compelidos a pôr a verdade em dúvida, conforme Pilatos o fez; os que se encontraram com Cristo, porém, filósofos ou não, só podem expressá-la em termos divinos. A verdade é como Deus; não tem definição; ela É. A alegoria, a parábola da verdade, tem o poder de esclarecer dúvidas humanas, todavia, sendo humana é perecível e mutável; tem mais de uma face e diferentes graduações; o que parece ser verdade hoje pode ser considerado falso amanhã quando outros forem os conhecimentos ou outras as informações; essa verdade pode ser radiosa para uns e pode ser tétrica para outros. Para Deus e em Deus, porém, não há sombra de variação e não há senão uma VERDADE, que não é matemática nem lógica, nem indutiva nem dedutiva, nem subjetiva, mas é eterna imutável; esta verdade divina é a jubilosa realidade que se revela no verbo de Deus perceptível à humanidade em Jesus Cristo: Deus é amor! É em Jesus Cristo que os homens podem conhecer e saber o que é a verdade; a verdade que é imutável, que subsiste por si só, que é eterna; a verdade que liberta. Pilatos, afeito às lides de governo, habituado a julgar e decidir, possivelmente conhecedor da filosofia de sua época, tinha razão ao perguntar “o que é a verdade?”. Endurecido pela experiência humana não teve mente aberta para reconhecer a verdade na pessoa de seu interlocutor, o réu que ele sabia ser inocente e que procurou salvar com meias medidas. Esta inocência era a verdade humana que Pilatos bem conhecia; mas não se ateve a ela, antes preferiu a “outra verdade” que lhe pareceu mais prática, mais objetiva e que lhe falava mais subjetivamente, pois era mais consentânea com seus interesses pessoais e os de seu governo. Não tenhamos porém, pressa em criticá-lo. “Maior pecado” teve a organização eclesiástica que entregou o justo ao juízo do injusto. Sabemos melhor do que Pilatos que antes da revelação de Deus, em Cristo, não podia o mundo saber o que é a verdade para por ela aferir e pautar o seu procedimento. Sabemos que Jesus Cristo é a VERDADE. Sabemos! Quem há que por ela invariavelmente, paute suas palavras e suas atitudes? “Eu sou o caminho, a VERDADE e a vida”, disse Jesus.

O AMOR (8, 28-39) O Amor de Deus à criatura humana é o supremo bem de que ela goza e para o qual concorrem todas as coisas deste mundo; esta concorrência, operada pelo Espírito Santo e em Cristo Jesus, põe o amor de Deus no coração da cria-

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tura, não como imposição, nem como predestinação seletiva, mas na forma de predestinação de possibilidade. Em seu relacionamento com a criatura humana Deus se revela inteiramente a favor dela e por força e graça dessa favorabilidade nenhuma outra força ou poder, qualquer que seja sua forma, sua natureza, sua origem e seu sentido, poderá separar-nos do Amor de Cristo. É disto que o A. trata nas páginas seguintes. Vs. 28-30 Pois sabemos que Deus permite que todas as coisas conjuntamente operem para o bem daqueles que o amam, aqueles que por sua deliberação foram chamados para isso. Por quanto, aqueles que ele conheceu, a estes também destinou a serem conformes à imagem de seu Filho (a fim de que este seja o primogênito entre muitos irmãos!). Porém, a estes que para isto destinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também declarou justificados. Mas aos que justificou fez também participantes de sua glória. [Parece-me que convém transcrever aqui a tradução de Almeida da qual se aproxima bastante a redação da tradução inglesa: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E os que predestinou, a esses também chamou; e os que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”]. Sabemos! Não se trata de uma realidade material que tenhamos recebido de Deus, de algo contemplável, objetivo, concreto. Fôra assim, Deus não seria Deus! “Aquele reino” não está ao alcance do ser humano e nem o reino (dos céus) se projeta neste mundo. Somos as criaturas para as quais, definitivamente e em toda extensão de nosso conhecimento, Deus é o “Totalmente Diferente” — o Desconhecido. Semelhantemente, o nosso mundo é aquele do qual Deus está total e definitivamente excluído. ”Precisamos todos completar o ciclo de nossa existência, segundo leis eternas, férreas e poderosas”. O ser humano, neste mundo, conhece apenas os gemidos da criação e seus próprios (8, 22-23), mas pode, pelo menos, tomar conhecimento [da existência] de Deus (1, 19-20) se não lhe escapar de todo a vacuidade de sua existência (8, 20), [a vaidade] da dialética das antinomias e a relatividade do anseio pelas coisas materiais que são apenas visíveis e circunstantes.

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Pela salutar abertura de nossos olhos zela o sofrimento e, diretamente dele, partindo de seus extremos, encontramos a filosofia [“da dor”] que, conforme o seu nome sugere, procura explicar o sofrimento humano. Ignorantes de Deus e do seu Reino, todavia conhecedores do sofrimento da criação, acompanhamos todas ponderações honestas, inda que profanas, rejeitando as imperfeições das interpretações teológicas dadas aos fenômenos naturais e à História. É que justamente em nosso desconhecimento de Deus e na observação do padecimento da criação estão os elementos básicos — o aço e a dura rocha — que, ao se chocarem em Espírito e Verdade, produzem o terceiro elemento: a centelha que leva [a criatura] ao conhecimento do Deus [até então] desconhecido. Esta chama que assim surge é a inconsciente tomada de consciência da existência de Deus e também do desconhecimento consciente da vaidade de nossa existência. Esta chama é o amor a Deus, porque Deus é Deus (5, 5). Não é assim o pseudo conhecimento teológico de Deus nem o pretenso desconhecimento da vaidade do mundo que esse pseudo conhecimento aparenta, pois este “conhecer” e este “ignorar” não estão nem no Espírito nem na Verdade e, por isso, não geram nenhuma chama, muito menos a chama do amor a Deus. “Aos que amam a Deus”. — O amor a Deus não é conseqüência da atitude humana [nem é possibilidade que tenha origem em nosso modo de ser ou pensar]. Podemos, [talvez] senti-lo ressoando em nossos ouvidos ao percebermos o lamento da criação ou experimentá-lo nos ais que afloram aos nossos próprios lábios; ele tanto pode estar em nossas preces como em nossa incapacidade de orar; pode estar em nossa religião e nossa indiferença, nossa negação e até em nossa luta contra a religião; [... “dura coisa te é recalcitrar contra o aguilhão!”]. Esse amor pode estar no terreno de nossas maiores paixões e também de nossa maior tranqüilidade. Todavia, jamais será [uma coisa qualquer indefinida], “isto” ou “aquilo”, mas é o Poder e o Sentido que vem de cima, que é dado por Deus independentemente de qual seja a atitude humana. O amor de Deus é a mais profunda realidade na problemática de nossa existência. Se a criatura humana, qualquer que seja sua atitude, se houver, realmente, confrontado uma única vez, de maneira clara, incontornável, inescapável, existencialmente, com a pergunta: “Quem sou?” então ela ama a Deus. Então esse “tu” [que vem na resposta], é que constrange a criatura a se diferençar de si mesma, [a distinguir entre o material e o espiritual que há em seu ser]; neste impulso insopitável (que leva a criatura) a confrontar [as suas próprias inclinações], manifesta-se o seu amor a Deus. [Em outras palavras, o ser humano confronta sua natureza carnal com a espiritual, porque ama a Deus].

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A pessoa pode, efetivamente, estar consciente das flechas que estão cravadas em seu corpo; do veneno que sua alma tem de sorver; dos horrores que lhe são enviados. (Jó 6, 4). A criatura pode, realmente, saber que ela tem de viver em luta constante e que os seus dias são quais os de um jornaleiro (Jó 7, 1); ela pode mesmo exclamar: “Acaso sou mar, ou algum monstro marinho, para que assim me vigies?” (Jó 7, 12). O homem pode, de fato, encontrar em seu caminho um opositor para o qual não encontre árbitro ou juiz... “que levante sua mão sobre ambos” [e faça prevalecer a justiça], (Jó 9, 33); pode ser que o seu caminho lhe seja [subitamente] ocultado e [suas saídas] estejam cercadas por todos os lados (Jó 3, 23). Sim, tudo isto pode ser tão forte, tão eficaz, tão real e, por isso, tão [claramente vindo] da mão de Deus que a criatura nada mais possa ver, nem saber ou querer, ou tomar a sério e ter por válido, [que nada mais lhe reste] senão submeter-se a Deus. Todavia, não se trata de rendição resignada, fatalista, ou que [ao menos] contasse com o consolo da religião, porém será uma submissão existencial, acompanhada do inexprimível gemido do Espírito (8, 26): “Eu sei que meu Redentor vive!” (Jó 19, 29). É assim que a criatura ama a Deus. Não antes nem depois do instante [crítico] que “não é”, [o instante que não está cronologicamente situado na escala de nosso tempo], e que, todavia, é o sentido e significado de todos momentos de nosso tempo. “MAGNA ET INCOMPREHENSIBILIS RES EST, AMARE DEUM NEMPE HILARI PECTORE ET GRATO COMPLECTI PER OMNIA VOLUNTATEM DIVINAM, ETIAM TUM CUM DAMNAT ET MORTIFICAT”. (Melanchton). [Sim, grande e incompreensível coisa é, amar a Deus, sem dúvidas, com o peito tomado de alegria e gratidão pela totalidade da vontade divina, inclusive pela condenação e mortificação ou,] melhor entendendo: quando tiver lugar o amor a Deus, a possibilidade religiosa (conscientemente ou não) passa a ser acontecimento temporal. [Todavia], para caracterizar a temporalidade [a natureza efêmera] da religião, não é necessário que ela seja acompanhada dos fenômenos (tipicamente transitórios) — a profecia, o dom de línguas, sabedoria — que nela, por vezes se manifestam, tão certo quanto, no Livro de Jó, não são importantes os excelentes discursos proferidos pelos seus amigos. O que importa é a resposta de Deus que ali está; é a presença de Cristo; é o derramamento do Santo Espírito. É o caminho “inexplicável” (I Cor. 12, 31) de Deus para os homens e dos homens para Deus. [A tradução de Almeida escreve: “Procurai, com zelo os melhores dons e eu passo a mostrar-vos ainda um caminho, sobremodo excelente”; e o Apóstolo apresenta um hino de louvor à caridade, ao amor].

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É o caminho que foi aberto, que pode ser palmilhado e pelo qual a criatura entra em contato com a sua carência, [com o que lhe falta] e com a sua liberdade; ao longo dele se dá a fundamentação existencial da personalidade e a revelação do sentido eterno de todas as possibilidades do ser humano. [Esta revelação, todavia, se completa] no “além” daquilo que fica suprimido; quando o menino for homem; quando contemplarmos de face a face e não mais através da imagem obscura do espelho; quando já não conhecermos somente “em parte” mas totalmente, conforme somos conhecidos... (I Cor. 13, 8-12). O amor a Deus — ÁGAPE [o festim de caridade e amor dos antigos cristãos] diferencia-se de tudo e todo EROS religioso pela relampejante espada da morte e da eternidade; o amor a Deus proclama que a Nova Criatura está perante Deus, esse Deus que não pode ser atraído por baladas e canções de amor como Baal e seus iguais. Este é o amor que jamais acaba (I Cor. 13, 8) e que permanece juntamente com a fé e a esperança: “Estes três, porém o maior destes é o amor”, porque ele é o acontecimento existencial presente tanto na fé quanto na esperança, (como a “consubstanciação energética” da fé (Cal. 5, 6) — (Almeida registra... “mas a fé atua pelo amor” e a tradução inglesa escreve “a fé opera pelo amor”]. O caminho inexplicável (sobretudo excelente (I Cor. 12,31 2ª parte)], o caminho do Amor (I Cor. 13, 13), é única, total e exclusivamente, obra de Deus. CARNI CONTRARIA VOLUPTATE SPONSUS SPONSAM SUAM AFFICIT CHRISTUS, NEMPE POST AMPLEXUS, AMPLEXUS VERO IPSI MORS ET INFERNUS SUNT. (Lutero). [A estes ele] permite que todas as coisas operem conjuntamente para o bem”. O amor a Deus é humildade tão consciente de si mesma, humildade que sabe tão bem o que quer, que já não formula determinadas perguntas, nem levanta determinadas reivindicações. Este amor, por ser anseio tão veemente, já provou o sabor do cumprimento e, por isto, não pode mais ser mitigado, [muito menos] extinto. Este amor é paz suficientemente profunda para, simultaneamente, abrigar a maior calma e a mais alta inquietação. Este amor é tão grande expectativa pela Redenção, que não necessita de esperar por acontecimentos, cumprimentos [de profecias e promessas divinas], e livramentos. Este amor, inconscientemente, tem conhecimento de Deus e, conscientemente, ignora a vaidade de nossa existência. No amor a Deus está o ponto invisível e eterno onde já se realizou plenamente a conversão de todas as coisas. Jó, em seu desarrazoado clamor à vista do obumbramento de Deus, “falou retamente perante mim”, e por isso o Senhor o recebe e lhe concede “em

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dobro, tudo quanto antes possuíra”, (Jó 42, 7-10), pois ao contrário de seus amigos por demais religiosos ele venceu o “ponto morto” e chegou ao “ponto vivo” onde o ser humano e seu mundo, não só ultrapassaram a noite, como estão sob o reflexo do glorioso dia vindouro, quando Deus deixa de ser o Grande-Desconhecido para se tornar o Grande-Conhecido, quando o misterioso Universo se revelará como criação de Deus. “Pois todas as coisas operam conjuntamente para o bem daqueles que amam a Deus”. Esse bem é a contemplação do Redentor e da Redenção; é alcance da vida que está além da morte; é o princípio da expectativa que já não é mais expectativa; é o “não-conhecimento” de Deus que é o mais alto conhecimento; é saber o que é o pecado, a morte, satanás e o inferno, que é o supremo desconhecimento. O bem é o amor de Deus à criatura humana que, miserável e nua, apenas está ainda vestida na presença de Deus mas, por isso mesmo, está ricamente trajada. Tudo precisa operar conjuntamente para que aqueles a quem Deus ama sejam participantes desse bem; tudo precisa cooperar na construção desse bem. Tudo, quer dizer a totalmente inconstrutível visibilidade do mundo, [sua materialidade] e também a igualmente inedificável invisibilidade de Deus; o lamento da criação e as trevas da ira divina; a incurável dubiedade dos tempos e a incerteza da eternidade que se lhe opõe. Aquele que ama a Deus está onde as duas negações [a realidade do mundo e a invisibilidade de Deus] se manifestam mais agudamente e se contrapõem, uma apontando à outra e se cancelando mutuamente. Quem ama a Deus está na posição onde, por trás dele, acima dele e nele mesmo, se vê superimposta a nova condição: Jesus Cristo, a ressurreição e a vida. Bem-aventurada é a descoberta de que Deus habita na luz inacessível e, igualmente bem-aventurada é a outra, de que toda a carne é como a erva e toda a glória humana como a flor do campo! Se uma dessas descobertas se der em Espírito e Verdade, a outra ocorrerá semelhantemente, e ambas operarão conjuntamente, conduzidas pelo único Deus, cuja majestade é, aqui e no além, [e em toda parte] o [divino] SIM que está contido no próprio não de Deus. O amor a Deus leva a criatura a observar tanto o lado de lá quanto o lado de cá do grande mistério como um conjunto único e, além de todas dubiedades e tensões, em tudo, vê esta verdade única: que Deus, o Livre, o Justo, o Santo, o que Vive, reconhece a nós, os cativos, OS pecadores, os condenados, os mortos, como sendo seus! No inconsciente conhecimento e consciente desconhecimento a que o amor a Deus dá lugar, manifesta-se a primitiva unidade entre o visível e o

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invisível; entre o céu e a terra; entre o ser humano e Deus. Também a dualidade conforme aqui a conhecemos e que teremos de [suportar e] reconhecer até o final de nossos dias, proclama a sua unidade, que é a nossa esperança: a glória dos filhos de Deus. É assim que Deus recompensa aos que o amam. — Quem são estes, porém? — “Aqueles que são chamados segundo sua deliberação”. Portanto, nem estes, nem aqueles, nem tampouco, todos. A pergunta: “Quais são os que amam a Deus?” não pode ser posta quantitativamente. O amor a Deus não é [dom que possa ser] concedido; isto [não aconteceu, não acontece e] jamais acontecerá em parte alguma; ele não está à mão e não se o pode apanhar, nem para o indivíduo nem coletivamente; ele não pode ser conquistado nem herdado, nem existe nas pessoas como se fora propriedade de alguém. [Paralelamente é preciso entender que] na realidade, e na forma mais séria de seu significado, não há “cristão”; o que existe é a eterna possibilidade, sempre presente e igualmente acessível a todos, de se tornarem cristãos. Sempre, e por toda parte, Deus, o próprio Deus, se antepõe ao ser humano, neste mundo. Foi Deus quem primeiramente amou a criatura humana; foi Deus quem rasgou, quem abriu o abismo à direita e à esquerda de cada pessoa, tirando-lhe todas as demais alternativas de forma a restar-lhe esta uma só: amar novamente aquele que acentua as antonomias da duplicidade e as faz operar “conjuntamente” para que ao ser humano não passem de todo desapercebidas a inambigüidade e a oculta unidade dessa duplicidade. Assim Deus edifica o que [de outra formal não seria edificável nem aqui nem no além. “De acordo com a sua decisão”, aqueles que o amam são chamados a executar a obra para a qual ninguém pode chamar outra pessoa, nem mesmo oferecer-se. E quando foi que alguém que amasse a Deus entendeu de outra forma? Quem há que, (amando a Deus), acaso se glorie de dar a volta à chave e abrir a porta realizando a plenitude da negação da negação; que se glorie de haver vencido o caminho estreito entre os abismos que o ladeiam; que haja trocado o sinal daquilo que não é edificável tanto no aquém como no além e tenha, assim, conseguido e efetivado a conversão de todas as coisas? Que a “certeza cristã” que, felizmente, subsiste apenas na presunção dos teólogos, tenha a desfaçatez de citar, de mencionar os paradoxos absolutos do governo divino do mundo e a confiança dos homens em Deus, como fatos religiosos, contando com eles ou,

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pelo menos, fazendo-os soar como se fossem moedas verdadeiras. (E não importa que essa atitude seja o resultado de um genuíno embaraço ou que ela seja tomada como recurso de retórica ou ainda por astúcia apologética, para contraexibir [pretensos] valores. [A verdade é que] quem realmente ama a Deus sabe que este amor não é “uma coisa”, uma façanha heróica desta ou daquela pessoa; não é um porto no qual, finalmente, possamos ancorar depois de longa viagem. [Quem sente o amor a Deus] sabe que ele não é um “Bem” cuja posse o cristão de alguma maneira possa ostentar de direito ante quem quer que seja; sabe também que este sentimento é, unicamente e sempre, dom e obra de Deus, e a conseqüência da vocação [do chamamento] que tem por base a decisão divina tomada desde antes de todos os tempos e também antes de todo instante de nosso tempo. “Dando-lhes tu, eles o recolhem; abres a tua mão, e enchem-se de bens. Escondes teu rosto e ficam perturbados; se lhes tiras a respiração, morrem e voltam para o seu pó”. (Sal. 104, 28-29). Somente em Deus, passa a dualidade a ser unidade. Quando se manifesta o amor a Deus, então também Deus se manifesta [ou melhor, então o ser humano adquire [ou assume) condições de sentir a manifestação de Deus] e esta sua manifestação jamais se estende pelo tempo, de forma que ela não pode tornar-se um “bem”, uma posse, (para quem quer que seja]. Esta manifestação é (repetimos) de novo e sempre, trabalho próprio de Deus e dádiva exclusivamente sua, porquanto só em Deus pode a “vida” ser morte e a “morte” vida; somente ele revela a criação no Cosmos e só ele revela que ele mesmo é o Redentor. Somente Deus cria a existencialidade da conversão do conhecimento não redimido, tirando-o da vaidade do mundo para o livre conhecimento. [Em outras palavras, só Deus dá vida à conversão que tira a criatura, não redimida, da vaidade do mundo e a restaura no livre conhecimento da verdade]. Somente Deus produz a conversão de nosso conhecimento irredimido [e portanto cativo do pecado], em conhecimento livre. Estes, pois, são os que amam a Deus; que para isso foram chamados pelo próprio Deus e por ele só. Como poderiam amar a Deus se houvessem encontrado a seu próprio ver, respostas mais satisfatórias, mais aquietantes? “Porquanto aos que conheceu a estes também destinou a serem conformes a imagem de seu Filho (a fim de que este seja o primogênito) entre muitos irmãos. Porém a estes que para isto destinou, a estes também chamou”. São identificados como “chamados” [vocacionalmente], aqueles que amam a Deus; “chamados” evidentemente em contraposição aos “não-chamados”, aqueles que pretendem [pensam] ou aparentam amar a Deus, porém não o amam.

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A vocação (a chamada) é a única coisa que distingue o profeta do falso profeta; que estabelece a diferença entre Paulo e os sete filhos de Ceva (Atos, 19). Os que amam a Deus jamais poderão impedir que sejam comparados aos fúteis portadores de tirso [insígnia de Baco, que consistia no desenho de um bastão encimado de uma pinha ou, alternativamente, de ramos]; nem ficarão surpresos se forem [até mesmo] confundidos com eles e, se isto não acontecer, o atribuirão à providência divina; em qualquer hipótese, porém, não apelarão à sua vocação pois sempre considerarão que ela só é válida em si mesma e nunca admitirão que ela lhes dê alguma vantagem. Nem tampouco esses tais [que amam a Deus] se oporão a que se lhes tire toda a paz, lembrando-se que eles não são senão apenas chamados. Jamais lhes parecerá lógico [ou compreensível] que o amor a Deus tenha sido derramado em seus corações pelo Espírito Santo. Nunca poderão supor que isto seja um fato real, consumado. “Eu serei aquele que eu for”! (ou, na versão de Almeida, “Eu sou o que sou”!] (Ex. 3, 13-15): O Desconhecido, o Invisível, o Eterno; [eu sou] aquele que chama. É como tal que Deus é amado “por aqueles que o amam”. Se, por um instante, [os que assim são chamados] o amassem de forma diferente, [tivessem com Deus] um relacionamento direto, assegurando para si uma posse, ou se gozassem de algum privilégio [ou vantagem ou experiência especial], então Deus já não seria mais Deus e a vocação deixaria de existir, pois são chamados aqueles que foram destinados por Deus “para serem conforme a imagem de seu Filho”. A imagem a que se devem assemelhar é a morte de Jesus. (Filip. 3, 10). Foi sob esta figura [nesta imagem], sob esta forma incógnita e sob a transparência do fato que constitui a característica dominante da vida de Jesus — [a sua renúncia a tudo quanto poderia ser (inclusive ao que o mundo lhe poderia dar como “filho do homem”), culminando com sua morte], —que o Filho de Deus veio ao mundo. (5, 6; 6, 5; 8, 3). A isto, [a esta semelhança] são destinados aqueles que amam a Deus: destinados a testemunhar o caminho da morte, [a “VIA CRUCIS”] de Jesus, e também a sua ressurreição. A última e mais pesada aflição [daqueles que amam a Deus] é o caminho que têm de percorrer na vida, qualquer que seja a forma efetiva[e particular de cada um]. É a aflição de quem está apertado entre o Deus Desconhecido e o mundo, por demais conhecido; é uma situação na qual a criatura não sabe como se há de ter nem como dela há de sair. Amar a Deus, é amá-lo nesse aperto; é amá-lo na aflição em que o Gólgota e o Getsêmani nos mostram e anunciam Jesus.

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Amar a Deus é seguir na vida o “inexplicável caminho” que principia no batismo do Jordão e na tentação [do deserto], e termina na Cruz; e ser o arauto de Cristo, anunciar a palavra da Redenção [da Reconciliação] é sentir indefeso que, na sua realidade final, essa mesma palavra se levanta como condenação, até para aqueles que a proclamam. (II Cor. 5, 19-20). Isto é amar a Deus! Todavia é claro que quando esta destinação se completa em uma pessoa, quando se torna num evento, quando pessoas como Jó ou Paulo anunciam a morte de Jesus, quando se tornar possível que a criatura se glorie em sua tribulação como sendo sua honra e sua salvação (5, 3), quando acontecer alguém tornar-se em luz que brilha dentro de sua miséria, [angústia, aflição e tribulação], a despeito dessa miséria ou por causa dela, (II Cor. 1, 3-11), então se trata de obra de Deus que opera nessa pessoa e por meio dela, pois nenhuma negação finita gera o infinito. Não há asceticismo, nem martirização, nem “sabedoria da morte”, nem morte voluntária, nem qualquer suplício que a pessoa escolha, que possa criar a luz que vem da cruz de Cristo. Nenhuma experiência mortal serve como sucedânea da morte que fala aos “chamados” e que, através deles, fala do Deus vivo; não há discipulado [ou imitação] de Cristo que, como empreendimento humano, tenha o poder de transformar alguém em um dos [muitos] irmãos do primogênito Filho de Deus. Esta filiação é criada pela invisível, eterna e divina destinação, “guiada pelo Espírito” (8, 14); é ela que gera essa importância [esse novo significado] da existência material; é ela que dá orientação no modo de pensar, falar e agir da criatura. A luz que assim se acende, pertence a Deus e, portanto, é dele o seu brilho. Quando a aflição já não for somente aflição, nem a morte apenas morte; quando o “NÃO” deixar de ser puramente não, e o “não-conhecimento” já não for exatamente, desconhecimento, [quando as coisas se transformarem e mudarem de sentido] semelhantemente ao que acontece na “imagem de seu Filho” em quem se dá a conversão de tudo, então Deus despontará como Criador e Redentor, pontualmente presente com sua palavra, o olhar que tudo vê e que é visto como o sol. Quando isto se der, foi porque Deus assim resolveu e não o ser humano. E nesta determinação [nesta resolução anterior] que a todo instante [e em cada momento] precede a nossa atualidade em nosso relacionamento com Deus (que uma vez foi rompido pela nossa queda e ora se faz indiretamente), que está a legitimidade e a autoridade da vocação daqueles que amam a Deus. Eles são destinados por Deus porque são conhecidos por ele. “Se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele”. (I Cor. 8, 3).

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Aqui estamos ante o segredo da predestinação da criatura à bemaventurança. Agostinho e os Reformadores a apresentaram em forma mitológica, como se ela fosse baseada num esquema de causa e efeito e, com isso, privaram-na de seu verdadeiro alcance. O fato de que Deus conhece a criatura humana e de que neste conhecimento que é de Deus e somente de Deus, a destinação desta criatura para filho de Deus esteja no amor que ela tem a Deus e [ainda] que dentro desta destinação a criatura seja chamada para testemunhar do evento da ressurreição, não significa que este amor seja motivado por decisão divina tomada na origem dos tempos (no próprio começo dos tempos!) pela qual se crie agora, no decorrer dos tempos e na presente criatura, uma determinada maneira de ser, de ter e de agir; antes significa que esse amor a Deus não pode, em momento algum, brotar como modo de ser, ter ou agir, atribuível aos homens pois ele tem, por todo sempre e a cada momento, sua origem em Deus, que é onde sua fonte precisa ser procurada e só onde pode ser achada. [A tradução inglesa escreve assim: “É aqui que encontramos o segredo da predestinação à bem-aventurança, que Agostinho e os Reformadores representaram em forma mitológica, como se fora um esquema de causa e efeito e, assim, roubaram-lhe o significado. Sem dúvida o amor humano a Deus, a ordenação dos homens à filiação e sua chamada para testemunhas da ressurreição são ocorrências genuínas conseqüentes do conhecimento que Deus tem dos homens e que tem lugar no conhecimento do único e verdadeiro Deus. Mas isto não deve ser tomado como significando que o Amor a Deus deu existência a um modo peculiar, humano, de ser, estar ou agir, resultante da causa divina ocorrida concretamente como a primeira de uma série de ocorrências]. Quem ama a Deus, jamais pode perguntar: “Sou eu?” Nem tampouco lhe podem interrogar: “És tu?” Esta pergunta, “acaso sou eu?” é rica em sentido na conotação que teve nos lábios dos Apóstolos quando a formularam na última ceia. O Senhor conhece os seus; ele os conhece, os prisioneiros libertos, os pecadores justificados; os mortos vivificados. Semelhantemente, é ele o Juiz; também é só contra ele que o homem pecou e pode pecar. A verdade do amor da criatura a Deus está em Deus e não no homem. Este amor se fundamenta em Deus e é efetivado [materializado] nele; Deus o vê e o recompensa; Deus o conhece e é em Deus — e somente em Deus — que ele tem existência. Este conhecimento que Deus tem existe eternamente, invisível, antes. após e acima de todos os tempos e, portanto. jamais é igual [ou semelhante] ao conhecimento do ser humano na temporalidade. 499

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O conhecimento [que Deus tem do homem] é a crise de todo conhecimento humano, a [própria] condição para a existência deste conhecimento e [é, também] a sua supressão. “Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito não aprendeu ainda como convém saber” (1 Cor. 8, 2), “porquanto o que alguém sabe, e que portanto lhe é perceptível, isso é temporal, porém o que é eterno, é invisível”. (II Cor.4, 18). Isto é Espírito e é Verdade! A paz e a certeza [a segurança] daqueles que amam a Deus está na realidade de que a decisão sobre o seu destino e a sua chamada se fazem na eternidade, no Espírito e na Verdade. A sua inquietação perante Deus, é a sua paz; a sua insegurança, a sua certeza; o seu temor e tremor é a alavanca que eleva o seu próprio modo de ser, seu ter e seu agir. Julgados, eles são justificados; cegos, eles vêem; mortos são vivificados, porém, nunca jamais em relação direta de causa e efeito mas sempre e reiteradamente dependendo de Deus. Eles são, a todo tempo da temporalidade, aquilo que são! [Isto é, no mundo, são — apesar de toda graça divina — apenas seres humanos!]. Agora, pois, pretendemos saber o que dizemos [do que estamos falando e o que estamos afirmando], quando dizemos: “Aos que chamou, a esses também justificou e aos que justificou, a esses fez co-participantes da sua glória”. Se a vocação [o chamado] da criatura para o amor a Deus está segura — assegurada no Espírito, na Verdade, no próprio Deus, — então também é certa a invisível e límpida justificação — a sua aptidão — para a cidadania do Reino dos Céus. Então é certo que Deus conta com ele, o pecador, como sendo seu, [isto é, — como pertencente a Deus]. Porquanto na criatura por ele chamada, por ele destinada e dele conhecida, no oculto de seu ser, ter e agir (2, 16), Deus encontra o que lhe apraz, [porque o que aí existe] é a nova criatura, [o ser] que o próprio Deus criou para a redenção dos homens. A criatura chamada para amar a Deus é a invisível criatura nova. Este é o fundamento, a razão pela qual Deus permite que “todas as coisas conjuntamente operem para o bem” (daqueles que o amam); eis aí porque a verdade eterna pode vir ao encontro desses tais na qualidade de esperança eterna, a sua esperança existencial. [É por isto que, para aqueles que amam a Deus], para o ser humano, o futuro eterno é tanto o passado como o presente e o futuro. O ágape “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Cor. 13, 7). Ágape tem significado existencial para Deus. [A tradução inglesa escreve “amor é o reconhecimento existencial de Deus”]; é existencial porque tem o próprio sentido

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de Deus, porque o amor é o Espírito que perscruta até mesmo as profundezas de Deus.(I Cor.2,10). Todavia “ágape” continua sendo o “caminho mais excelente” que não pode ser entendido nem pela experiência, nem pelo raciocínio, nem pelo nosso intensivo testemunho de que pertencemos a Deus; ele se torna compreensível, apenas, em Deus. Vs. 31 e 32 Que diremos, pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, como não nos dará também, com ele, graciosamente, todas as coisas? “Que diremos, pois, à vista dessas coisas?” — [o que diremos pois] para esclarecer, interpretar e completar aquilo que o próprio Deus diz aos que o amam, aquilo que só Deus pode afirmar lá onde ele quer que o procuremos e onde ele se dá a conhecer? Acaso [poderíamos juntar algo ao que Deus diz, sem obscurecer-lhe o sentido?] Poderíamos acrescentar alguma coisa que não fosse senão um pequeno comentário, [não importa se] reiterando ou negando o que Deus disse? Ora, calar sobre o que o amor [a Deus] conhece [e traz ao nosso conhecimento] tem o mesmo efeito obscurecedor que falar a seu respeito; erramos igualmente, quer falemos quer silenciemos mas estaremos certos em ambos os casos se Deus nos justificar— (literalmente, “se Deus nos der razão”). “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” “SI DEUS PRO NOBIS, QUIS CONTRA NOS?” Se soubéssemos declinar e entender devidamente o pronome [em sua forma] NOS e NOBIS, então também saberíamos conjugar corretamente o nome DEUS fazendo desse substantivo um verbo que significaria DEUS DIXIT ET DICTUM EST; então a preposição CONTRA, envergonhada, diminuiria [progressivamente] para se tornar, finalmente “INFRA NOS conforme, alias, acontecerá — aliás, tem de acontecer. Amém”! (Lutero) . “Deus por nós” é o que se diz aos que amam a Deus. “Deus por nós”, é coisa nunca dantes ouvida; significa que o reino dos contrastes [das antinomias] já passou. Significa que foram vencidas as trevas do mundo visto por Deus e, também, as trevas em que o mundo via a Deus. [As duplas trevas foram desfeitas pelo nascimento do Homem Novo (em Cristo) que já não apresenta as trevas da retenção da verdade com sua própria justiça e não está à sombra do NÃO divino à injustiça humana. Todavia, o Homem Velho, (em Adão)] é precipitado na dualidade dessas trevas e, eventualmen-

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te, transformado em criatura religiosa; “retém a verdade na injustiça” (1, 18) e tem, contra ela, Deus e o mundo, a morte, o pecado. Por isso somente lhe resta pensar em termos de contrastes, por antinomias e sob tensão. Esta é a situação da pessoa não redimida que não conhece a unidade [que há no amor a Deus]. Contudo, a criatura com quem Deus está e que, portanto, por força da iniciativa divina está ao lado de Deus, ignora a dualidade e não pensa por antinomias; a ninguém e nada tem contra si, pois este ser corruptível [desagradável], revestiu-se da incorruptibilidade e o mortal, da imortalidade. Aqui se cumpriu o que foi dito: “Tragada foi a morte pela vitória”! (1 Cor. 15, 54). Mediante este “Deus por nós”! está dito o que era preciso, sobre “Cumprimento”, “Redenção”, “Perfeição” e “Glória”; foi dito tudo o que podemos afirmar e o que precisa ser dito sobre o invisível centro. O princípio e o fim é Deus, que é “tudo em todos” (1 Cor. 15, 28). Não temos palavras para expressar, nem o nosso entendimento pode compreender [como pode Deus ser — ou como é ele “tudo em todos”], mesmo porque se entendêssemos, se pudéssemos explicar, ele já não seria esse “tudo em todos”. Contentemo-nos, pois, em observar que todas as setas do caminho apontam nessa direção e, aí, cessam. Porém paramos com conhecimento de causa, não sonhadoramente, mas cientes que vimos a verdade final inesquecivelmente. “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes o entregou por todos nós, como não nos dará também, com ele, misericordiosamente, todas as coisas?” Se olharmos para onde a existência e o modo de ser da criatura humana atingem o seu ponto mais baixo, onde a sua vaidade é mais inconfundível, se olharmos para o ponto donde procede o lamentoso gemido que ressoa em nossos ouvidos, lá onde é mais impenetrável o incógnito divino, ali, justamente ali, vem Jesus Cristo ao nosso encontro. Ele está ali, “entregue” e “não poupado”, na linha divisória da materialidade, também ele, indubitavelmente, submerso no imenso caudal; “por nós todos” foi ele entregue e, em nosso lugar, é que ele está lá. Juntamente com ele, também nós (especialmente nós!) estamos submersos nas águas, arrastados para as profundezas e colocados perante o não que Deus pronunciou a nosso respeito — a respeito desta criatura a quem foi tirada toda possibilidade de fugir desta confrontação [com o não divino] e que é conduzida ao tribunal a que todos são submetidos no insanável conflito entre a justificação e o pecado, entre a vida e a morte, entre a temporalidade e a eternidade. Lá [onde Jesus Cristo está e para onde a criatura humana foi conduzida] resta [e permanece] apenas Deus, em sua existencialidade [eterna]. Todavia, na culminância desse enigmático acontecimento dá-se, também, a conversão de

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todas as coisas. Quando somente Deus permanece, ele se torna o nosso verdadeiro Deus vivo; então surge, para nós, a esperança de sua glória. Ali está Deus — o Deus a quem nunca conhecemos se não como nosso opositor, como quem está contra nós — [e que, agora e aqui] é o “Deus por nós”. O Cristo entregue, o Cristo que tudo nos tira [que nos leva à renúncia de todas as possibilidades do mundo], deixando-nos apenas a existencialidade de Deus é, [realmente] o “Deus por nós” (8, 31) e “nós”, ao lado de Deus; temos de ousar o assalto a esta posição incapturável que, todavia, já caiu! O Cristo que foi entregue é o Espírito, a Verdade, o incansável braço de Deus. Se sofrermos com ele, como não haveremos de ser, também, glorificados com ele? (8, 17). Se morrermos com ele, como não haveremos, também, de viver com ele? (6, 8). Se Deus nos entregou, juntamente com ele, ao tribunal que está sobre todos [que a todos julga], como não nos concederá também, em toda graça, que todas as coisas concorram conjuntamente para o nosso bem?! (8, 28). “Em toda graça!” — Não podemos falar, mas também não podemos deixar de falar da aurora que vimos!

Vs. 33 a 39 Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? Acaso Deus, que nos declara justificados? Quem condenará?— Acaso Cristo Jesus, o que morreu, ou melhor o ressurrecto que está à direita de Deus e que até intercede por nós? Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? (Acontece conforme está escrito:) Por amor de ti somos entregues à morte, o dia todo; somos considerados como ovelhas para o matadouro (Sal. 44, 22), porém em tudo isto somos vitoriosos por meio daquele que nos amou! “Pois eu sei que nem a morte nem a vida, nem anjo nem potestade, nem o presente nem o porvir nem poderes das alturas nem os das profundezas, nem qualquer outra criatura pode separar-nos do amor de Deus [que está] em Cristo Jesus, nosso Senhor”. — Este assalto que aqui é feito à fortaleza “Deus por nós” acaso pode ser confirmado? (A tradução inglesa escreve: Podemos agora, afinal, anunciar que assaltamos e ocupamos a fortaleza “Deus por nós”? Embora esta maneira de traduzir possa estar implícita no contexto geral parece-me que, pela posição em que a frase está e pela maneira de escrever do Autor, ele quer referir-se à idéia geral contida nos versículos 33 a 39 nos quais

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se afirma vigorosamente que “Deus é por nós”. [A tradução literal da frase, que segue imediatamente à transcrição dos versículos é: [Pode a posição “Deus por nós” aqui assaltada, ser confirmada?)]. [O A. prossegue, respondendo sua pergunta:] — Não; ela precisa ser renunciada imediatamente pois sabemos que este território é propriedade de Deus; é território no qual nada temos a procurar, nem agora, nem no passado, nem no futuro. [Entenda-se: O “assalto” precisa ser renunciado]. Acusação se levantará sempre, — a todo tempo, em todo sentido e contra todas pessoas. O que mais pode a criatura humana ser perante Deus senão acusada? Somos condenados ao sermos medidos em Jesus Cristo e “entregues” juntamente com ele. Estamos separados [infinitamente distanciados] do amor de Cristo porquanto a minúscula fagulha do nosso amor é incomensuravelmente pequena ante o brilho do amor a Deus que Cristo revela em sua morte. Aberta esta porta e expostos a esta luz, quem poderia ser justificado? [É insignificantemente pequeno o nosso amor] quando contrastamos a divindade, a glória e o eterno porvir que vemos, cremos e experimentamos em Cristo, com a miséria da vida que temos de viver em sua brutal realidade. “Em tudo isto somos vitoriosos! “Somos”? Acaso “nós”? Nós que de uma ou outra forma nos convertemos, ou que procedemos desta ou daquela maneira ou que, de alguma forma fomos convencidos, entusiasmados ou adequadamente orientados? Ora, sejamos honestos, comedidos e objetivos. Não falemos apressadamente, nem em voz tão alta e com tanta certeza; também não seja, aquilo que dizemos, mera repetição, mas falemos baseados em nossa própria observação. Olhemos a enorme diferença entre [o que Cristo revela em sua morte e] a nossa experiência, ou a de outros. É mesmo possível que — HORRIBILE DICTU —, a experiência dos outros esteja, até, menos distante que a nossa... Todavia, para uns e outros, e sem fim a diferença entre o instante eterno no qual abordamos [assaltamos] a posição “Deus por nós”, e todos demais momentos tanto anteriores como posteriores, nos quais “ainda” ou “de novo” (e há muito tempo) estamos do lado de fora, vangloriando-nos de uma vitória que, o quanto possamos perceber, é uma derrota. Todavia, não podemos desistir desse assalto porquanto o “amor a Deus” por parte daqueles que para isto foram chamados pelo próprio Deus e que são destinados e conhecidos por ele (8, 29-30), caiu nos braços [ou no coração] do encolerizado juiz da criatura deste mundo. Cristo — o HOMEM NOVO que eu

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não sou — implantou seus pés onde não posso estar. A ele se diz o que eu não posso dizer. Ele não é apenas aquele que morreu, mas nele se completa a conversão [a mudança, a transformação] de todas as coisas; ele é aquele que ressurgiu e, nesta qualidade, está em meu lugar à direita de Deus e intercede por mim. Ele percebe que eu, o pecador, estou justificado; que minha prisão é minha liberdade e que minha máxima aflição na morte é a vitória da vida. Eu sei que ninguém e nada me poderá separar do amor de Cristo — (amor, esse, do qual nada sei). Consideramos monstruosas as intermináveis finitudes, sua realidade e a inevitabilidade dos contrastes que elas criam entre o “saber” e o “não-saber”, entre a morte e a vida, entre o ser humano e o ser divino, entre o passado, o presente, o futuro, e o FUTURUM AETERNUM (do outro lado); entre o que é visível e o invisível no além, entre o relativo e o absoluto, entre a terra e o céu. Todavia [essas terríveis e infindáveis antinomias] são, perante Deus e em Deus, a negação da negatividade, cuja imposição é suprimida e a criatura se encontra em paz, adotada como “filho”, redimida e liberta de todas antinomias, una em Deus. Porquanto o amor de Deus, em Jesus Cristo, é a unidade [ou a unificação] do amor de Deus ao ser humano e o amor do ser humano a Deus. Nessa união está a vitória de nosso amor; nela se realiza a “irrealizável” identificação. Todavia, precisamos voltar imediatamente ao fato de que, de forma alguma somos nós que realizamos esta identificação; nem, sequer, a podemos considerar como realizável. Baste-nos saber que é desta união que viemos e para ela vamos. [Jesus Cristo, ontem, hoje e para sempre.] Comentários: 8, 1-39 (O Espírito) 1. Ao tratar da obra de Deus junto aos homens, Barth diz repetidas vezes que Deus se justifica perante os homens e conta com eles; todavia o A. não entra em minúcias sobre estes aspectos específicos do relacionamento de Deus com o ser humano. (Deve ser porque escreve para teólogos!) Por que precisa Deus justificar-se? Acaso não disse ele a Moisés, “Eu sou o que SOU”!? É certo que a seguir Deus abrandou a sua maneira de se identificar: “Dirás que quem te enviou é ‘o Deus de nossos pais, o Deus de Abraão’... “(Exo. 3, 14-15).

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Talvez possamos estudar estes aspectos focalizando-os sob o conceito geral da “ética divina” em confronto com a ética humana, a que se contrapõe. Ética, segundo os padrões humanos, é a ciência do bem envolvendo os deveres e a finalidade última do homem e, conseqüentemente, implica no ajustamento das ações humanas para o conseguimento do bem perfeito. Na prática desse ajustamento dá-se o fracionamento da ética que, então, passa a se referir a classes e grupos de atividade e profissões, dentro das quais busca o bem comum por meio de princípios e normas de conduta que estabelecem “códigos” incorporando princípios aceitos pelo consenso geral dos respectivos grupos, independentemente da veracidade ou falsidade desses princípios. Tais códigos, todavia, são apenas referência para estabelecer critério mas não são de aplicação compulsória; são “lei moral”. Portanto, talvez possamos dizer que a ética humana consiste, em suma, no procedimento decente entre pares, referido a determinado código. Também a “ética divina” é, em princípio, “apenas” lei moral — (se for permitido que assim nos expressemos) mas a sua semelhança com a ética humana não vai além desta peculiaridade e, assim mesmo, porque a característica veio de cima. É Deus que, havendo por seu próprio decreto criado o ser humano à sua imagem e semelhança, lhe dá liberdade plena para “fazer” e “deixar de fazer”. Deus visa ao bem perfeito e à finalidade última da criatura, não pela adaptação de meios mas, mediante uma única condição: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás”. (Deut. 6, 13 e Mat. 4, 10). Ou então, segundo o grande mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma, de todo teu entendimento”. (Deut. 6, 5 e Mat. 22, 37). A diferença fundamental está nisto: a ética humana estabelece leis para moldar os corações; a ética divina sugere a reforma do coração para dele surgirem pensamentos retos. Para os homens valem os princípios do consenso; para Deus o princípio é absoluto. Amando a Deus, amará o homem a seu próximo e seu procedimento será necessária e excelentemente ético. Do que haveria Deus de se justificar? De ser Deus? De haver criado o homem? De exigir exclusivamente para si o atributo que é devido pela criatura ao Criador? — Sim, talvez possamos dizer “Sim”, se Deus assim o entender. Todavia parece-me que, mesmo mediante a excusa ou a justificativa de sermos obrigados a usar palavras de sentido mitológico, ou por

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isto mesmo, seria mais próprio dizer que no sofrimento, na aflição e na dor, quando convenientemente entendidos, vemos a razão de Deus quando nos reivindicou (ou reivindica) para si. Esta é a justificação (que encontramos) de Deus. Ora, é justamente quando assim entendemos que nos entregamos a Deus, sem reservas. Isto se dará quando houvermos ouvido e entendido a pergunta e a resposta que nos vem desde a cruz; quando nos houvermos esvaziado completamente, quando virmos a luz não gerada que brilha através e além do sofrimento; então estaremos em condições de receber em nós a obra de Deus e daremos ocasião (todavia não nós, mas Cristo em nós!...) a que o Espírito Santo entre e faça morada em nós. Esta é a maneira pela qual Deus conta conosco, no sofrimento. Não para lhe servirmos por testemunhas, embora esse testemunho seja marco indicativo de nossa redenção. Deus conta e “precisa contar conosco” para justificar-nos, pois ele não nos predestinou para crermos, inescapavelmente, (ou para que alguns, — poucos ou muitos — creiam) mas nos predestinou à bem-aventurança eterna, mediante nossa fé, segundo aquilo que houver no íntimo de nosso coração. (Novamente, não “nós” mas “Cristo em nós” porquanto a fé nasce da fidelidade que vemos em Deus, e o “ver com sabedoria” nos é dado pelo Espírito que não podemos criar em nós, nem convidar para habitar em nosso coração, ou aí o reter pelos nossos méritos, embora possamos rejeitá-lo a qualquer tempo). Ainda correlacionado com os dois aspectos acima referidos, diz o A. que o segredo — a revelação — da razão do sofrimento está no fato que Deus QUER SER e É DEUS, e neste seu “ser” e “querer” ele “precisa ser amado por mim”. Novamente quer me parecer que aqui há forte dose de “linguagem mitológica” vasada na chocante terminologia alemã. Fraseado análogo ouvimos de certo pastor que dizia ser a criatura perante Deus qual cão frente a seu dono: lambe a mão que o acaricia e também quando o fustiga. Entendo que tais modos de dizer são expressões caricatas de determinadas facetas do relacionamento do homem com Deus. Deus não trata o homem qual cão (inda que seja o cão “melhor amigo”), porquanto o ser humano foi criado à imagem de Deus e não consta, em lugar algum, que o cão goze desse privilégio perante o homem... Semelhantemente, Deus não quer “PORQUE QUER”; Deus é! Foi ele quem nos criou! — Por que sofremos? 507

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— Porque nos afastamos de Deus, quando quisemos ser iguais a ele, conhecedores do bem e do mal. Eis que agora ansiamos pelo bem que não realizamos e sofremos pelo mal e do mal que não queremos mas praticamos; sofremos diretamente desse mal e de todas conseqüências diretas e indiretas que o acompanham e seguem quais corolários e axiomas que se fundamentam nos respectivos teoremas. — Qual o mistério do sofrimento? — Está na porta que ele abre para vislumbrarmos a luz que vem desde a cruz. (É por isso que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus. — Todas as coisas — (isto é, também o sofrimento). — O que revela o sofrimento? — Revela nossa condição humana. Revela o contraste que existe entre a nossa vida atual e a edênica, quando ainda éramos filhos de Deus pelo direito de criação; quando ainda não havíamos abandonado o lar e perdido a filiação. Revela, portanto, também o contraste que existe entre a criatura deste mundo e a nova criatura, restaurada na condição de filho de Deus, agora por adoção. Nestes termos é que sofremos porque Deus É e QUER ser Deus. Ele é o Senhor que nos criou e não nos rejeita, antes nos aceita e nos justifica perante si mesmo. Todavia, para poder socorrer-nos, é preciso que o queiramos, que o amemos. (Nós?) Chegaremos à “perfeição ética” se amarmos a Deus. Esta é, portanto a ÉTICA DIVINA: “Amarás o Senhor teu Deus!” 2. Toda criação? Também a totalidade do reino animal? O reino vegetal? O reino mineral? O Cosmos? — Sim, tudo isto! — De que maneira? Por quê? — Ora, Deus criou o mundo e o sujeitou inteiro ao homem (Gen. 1, 26) e por causa da queda também o amaldiçoou (Gen. 3, 17). Acaso Isaías 11, 6-9 não nos sugere um mundo inteiramente diverso daquele que conhecemos? O homem que recebeu o domínio sobre a terra e tudo o que nela há, para seu sustento, seu prazer e seu gozo, não se limitou a usá-la mas a explorou e explora. Dizimou o reino animal e as espécies rareiam e se extinguem; devastou o reino vegetal e os desertos crescem. Devassou as entranhas da terra e a constituição íntima da própria matéria; e as ameaças de destruição parcial e total são abundantes.

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A poluição ambiental é intensa e chega a tal ponto de levar a pensar no risco de ficar o globo terráqueo exposto a ação desintegradora dos raios cósmicos. Na aurora do século ecológico parece ser mais evidente o que o Apóstolo quis dizer quando, há 2.000 anos, escrevia os versículos 19 a 22 do Capítulo 8 de sua carta aos Romanos. “E morará o lobo com o cordeiro e o leopardo com o cabrito se deitará; O bezerro, o filho do leão e a nédia ovelha juntos viverão, E um menino pequeno os guiará. ————————————————— “Não se fará mal algum em todo monte da minha santidade Porque a terra se encherá do conhecimento do Senhor!”

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Capítulo IX

A TRIBULAÇÃO DA IGREJA Barth dá a este capítulo o título geral de “A TRIBULAÇÃO DA IGREJA”, que é como a tradução inglesa escreve. O original traz o substantivo “NOT” que seria, talvez, traduzível mais diretamente como “NECESSIDADE”; todavia esse substantivo contém, implícitos, os sentidos de carência, penúria, miséria, perigo, aflição, apertura. Por isso, me parece que TRIBULAÇAO se ajusta melhor ao pensamento do A. O capítulo foi dividido em três partes: • Solidariedade - Vs. 1 a 5 • O Deus de Jacó - Vs. 6 a 13 • O Deus de Esaú - Vs. 14 a 29 Os versículos 30-33 foram deixados para o capítulo X. Sob os três tópicos referidos acima Barth aborda, primeiramente, a solidariedade da raça humana, no pecado. Ninguém dele está isento e ninguém é melhor do que seus semelhantes (e conseqüentemente ninguém é pior). Esta solidariedade humana nos irmana na perdição, todavia não vai além; ainda que de boa vontade quiséssemos substituir algum de nossos entes queridos para tomar sobre nós a sua responsabilidade não o poderíamos fazer pois se trataria de substituir igual por igual. Esta igualdade humana no pecado apenas pode ser vencida, suprimida, sublimada por outra igualdade de ordem superior, a irmanação em Cristo mediante a adoção da criatura como filho, pelo Deus invisível de Jacó, o Deus que pela sua graça e seu amor elege para a vida eterna. A aflição da Igreja é inerente à sua missão e será tanto maior quanto mais fiel a Igreja for. Esta missão é a de anunciar o Deus invisível — o Deus de Jacó — o Deus de amor; todavia esta proclamação se faz mediante o despertamento das consciências para o reverso da medalha; para o Deus da justiça, o Deus da ira, o Deus que abomina o mal, o Deus que odeia Esaú e, porque odeia Esaú, elege Jacó; porque abomina o mal é ele a fonte de todo bem; porque é o Deus da ira, ele exerce a misericórdia; porque faz justiça, justifica o pecador. 511

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A aflição da Igreja não é para penalização mas para libertação; é pela pregação da Igreja fiel que o homem do presente século se defronta com o Deus de Esaú; se aflige e com ele luta durante a longa noite de sua temporalidade até que raie a aurora do grande Dia do Senhor e ele receba a graça, a bênção do Deus de Jacó. É por força desta graça que a Igreja do presente século, a Igreja de Esaú, perene em sua temporalidade, desaparece para dar lugar a sua irmã gêmea, mais excelente, de quem Deus se agrada, a Igreja de Jacó, perene em sua eternidade, e da qual o fundamento é Cristo. É na forma da semelhança dos gêmeos Esaú e Jacó e sob esta alegoria, esta parábola, que o A. analisa o processo da revelação divina, mediante a dupla predestinação. Neste capítulo e nos dois seguintes o A. analisa a Igreja sob três aspectos: sua Tribulação, sua Culpa e sua Esperança.

SOLIDARIEDADE (9, 1-5) Vs. 1 a 5 Falo a verdade em Cristo, não tergiverso, do que minha consciência me dá testemunho do Espírito Santo, que tenho grande mágoa e incessante dor em meu coração, porquanto desejaria ser eu mesmo, amaldiçoado e separado de Cristo em lugar de meus irmãos, meus parentes segundo a carne, os quais são israelitas; pertencem-lhes a adoção, a glória, as alianças, a outorga da lei, o culto divino e as promessas; seus são os patriarcas de cujo meio veio o Cristo segundo a carne; os quais têm a Deus que governa todas as coisas — louvado seja eternamente, amém. [A tradução de Almeida escreve: “Digo a verdade, em Cristo não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência, que tenho grande tristeza e incessante dor no meu coração porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas segundo a carne. São israelitas; pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas e também o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém”. As duas traduções diferem acentuadamente na parte final do verso 5, onde Almeida registra... “o qual é sobre todos Deus bendito para todo o sempre. Amém”. Em extensa nota de rodapé — (ver original, paginas 314 e 315 ou a tradução inglesa — 6ª Edição impressa em 1965, páginas 330 e 331) — Barth justifica sua maneira de traduzir, que tentarei sintetizar como segue:

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Além da versão adotada por Barth, existem três outras: a) Versão semelhante à de Almeida, atrás transcrita; b) Versão que usa as mesmas palavras da versão anterior porém, valendo-se do artifício de introdução de vírgulas e supressão de um artigo escreve, finalmente, que “a dignidade de Deus pode ser, verdadeiramente, atribuída a Cristo”. (Esses artifícios são de Hoffmann, Zahn, Beck e Kuehl). c) A terceira versão considera a parte final do v. 5 como sendo doxologia a Deus, independente do teor básico dos vs. 4 e 5. (Isto porém, segundo Barth, escrevendo o texto original sem conjunções). A primeira alternativa (conforme o texto veio até nós) encontra forte apoio na construção gramatical análoga à das passagens em 1, 25 e II Cor. 11, 31. Todavia, Barth diz que não pode aceitar essa tão ímpar atribuição ao Deus Altíssimo (a classificação “acima” de todos, de Zahn), pelas seguintes razões: • Ela não consta em II Tess. 1, 12 ou Tito 2, 13; • Parece que semelhante atribuição não foi considerada necessária em 10,11-14; • A atribuição, (parece a Barth), revelaria falta de sensibilidade (estaria comparando o absoluto com o relativo), coisa em que um pensador e escritor de discernimento tão claro, qual Paulo, dificilmente incorreria; • A passagem não provocou a celeuma (nem a polêmica) violenta por ocasião dos primeiros estudos cristológicos — conforme se pode concluir pelos comentários de Wettstein, B. Weiss e Zahn — que sem dúvida ocorreria se o texto, então, fosse considerado conforme sua redação atual; • A doxologia, conforme expressa no final do v. 5, [porém sem a comparação “acima de todos”] encontra-se repetidamente no livro dos Salmos onde, evidentemente, se refere ao Deus de Israel. Barth considera que a segunda versão, “arranjada” de forma a se poder chegar à conclusão de que nessa passagem se estendem também a Cristo os atributos inerentes ao “Deus de Israel” não é apenas por demais artificiosa mas, está também sujeita às mais graves restrições quanto à substância. Diz o Autor que ante interpretação tão profundamente ambígua (e na falta de outra melhor) ele certamente optaria pela primeira.

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É certo, diz o A., que o texto como doxologia independente poderia ser admitido porém ele não concorda com Juelicher que diz ser esta a única interpretação cabível, e faz notar que Lietzmann, embora também aceite a hipótese de que se trate de doxologia independente do texto, é mais prudente com respeito à possibilidade de existirem outras interpretações plausíveis. Para que a passagem possa ser tida como doxologia independente, diz o A., é necessário aceitar a sua redação como assindetonia inteiramente estranha ao estilo de Paulo e também totalmente descabida no texto. Em vista desta série de dificuldades e anomalias que as três versões admitidas apresentam, Barth conclui que, provavelmente, a forma do texto que chegou até nós resultou de erro de transcrição, que pode ter ocorrido por confusão com o texto em II Cor. 11, 31 ou sob a influência dele; portanto ele prefere acompanhar a conjetura levantada por Wettstein há mais de 200 anos, redigindo conforme está transcrito no início do capítulo. O A. junta mais algumas razões para justificar a sua posição: Na enumeração que o texto usual faz, das vantagens de Israel em seu relacionamento com Deus, falta a prerrogativa essencial, a maior delas e que é justamente a geratriz de todas as outras, isto é, o texto não menciona que Israel tem o verdadeiro Deus. A redação adotada pelo A. corrige e elimina esta omissão. Sempre quando Paulo trata da realidade religioso-eclesiástica, como é claramente o caso nos vs. 4 e 5, ele considera, como Deus, o Deus de Israel. Isto se confirma na passagem em 2, 17 onde ele sanciona, irrefutavelmente, o direito que têm os que não são judeus de gloriar-se em Deus, não admitindo que as vantagens de precedência que os judeus têm no seu relacionamento com Deus (3, 1-2) tenham sido suprimidas pela problemática que os cerca. A mesma posição nota-se em Efe. 2, 12 onde a visão da unidade de Deus não impede que, ao menos nas “vizinhanças” do Apóstolo, os gentios, “outrora separados da comunhão de Israel”, sejam considerados “estranhos”. Portanto, a ilação de que a parte final do v. 5 possa referir-se a Cristo se afigura como incoerente. Juelicher (e Lietzmann), estribando-se em 3, 29, se opõem (à afirmação de que a enumeração esteja incompleta dizendo que não haveria necessidade de reiterar aqui, (no v.5), que os judeus têm o Deus verdadeiro porquanto isto já foi dito quando Paulo escreveu que Deus é Deus de judeus e gentios — (3, 29)).

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Barth contra-argumenta dizendo que, se a objeção fosse procedente, então Paulo, para ser coerente, não deveria apresentar aquela relação de atributos peculiares a Israel, por força do que está escrito em 8, 14, em 2, 14-15, em 3, 30 e em 4, 16. O A. diz ainda que Juelicher parece não perceber que a redação em 3, 29 é parte de tratamento dialético, característica notória do estilo de Paulo. Assim também o são as demais passagens que, se não forem apreciadas como tais, absolutamente não serão entendidas.] Deus! Aquele que tanto é a nítida linha de chegada como de partida de tudo quanto somos, temos e fazemos; que qualitativamente difere infinitamente do homem e de tudo que é humano, que nunca foi e jamais será idêntico aos homens, aquele que designamos por Deus, assim o sentimos, o pressentimos e adoramos; aquele que é o terminante “ALTO” a toda impetuosidade (ou dessossego) humano e o peremptório “MARCHE!” a toda estagnação (ou sossego); aquele que é o SIM em nosso não e o não em nosso sim; aquele que é o primeiro e o último e, como tal, o desconhecido; aquele que jamais é uma grandeza entre outras no âmbito de nosso conhecimento: Deus, o Senhor, o Criador e o Redentor, este é o Deus Vivo! O evangelho é a boa nova da salvação que há em Cristo Jesus, que nos revela esse Deus [de outra formal oculto, o Deus Vivo. O evangelho é o relampejo do impossível sobre o aparentemente interminável reino das coisas possíveis; do invisível sobre o visível; do além sobre o mundo presente. [Este lampejo do além] não [vem] de algum mundo separado — destacado do nosso mundo porém como a verdade deste mundo, verdade que agora e aqui [ainda] está encoberta; vem como a origem à qual todas as coisas estão vinculadas; como a supressão de toda relatividade e, por isso, como a realidade de todas coisas relativas; vem como o Reino de Deus cuja inevitabilidade, existencialidade, vitória e glória não podem ficar ocultas, a despeito do ser humano, ou melhor — [não a despeito mas] por causa da temporalidade, da finitude, da efemeridade de nossa vida. [Para remir a criatura da precariedade de sua contingência material o evangelho] oferece ao ser humano a possibilidade de ser efetivamente o que ele é em Deus: ser filho de Deus e portanto LIVRE, embora ele esteja, como pessoa deste mundo, sujeito a julgamento, aguarde [o pronunciamento da] justiça e [ainda] espere pela redenção. Eis agora Israel, a Igreja, o mundo religioso frente ao evangelho da salvação, de Jesus Cristo. É o mundo da religião conforme se encontra na história e, juntemos logo, segundo aparece na história em sua forma mais pura, mais

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vigorosa e mais adequada a seu ser, pois não falamos das degenerescências religiosas, porém da plenitude da Igreja ideal. — Dissemos “frente ao evangelho” como se houvesse contraposição de “ponto por ponto”? Pode, aqui dar-se o caso de uma parte pretender ter razão perante a outra, que não a tenha? — Sim, sem dúvida! A Igreja enfrenta o Evangelho na qualidade de corporificadora [materializadora] das derradeiras possibilidades humanas deste lado (aquém) da “impossível possibilidade” de Deus. É na Igreja que se escancara o abismo [que separa a criatura do Criador], como em nenhuma outra parte; aqui irrompe a enfermidade da criatura em Deus, porquanto a Igreja é o lugar onde, deste lado do abismo, a eternidade revelada é prontamente transformada em temporalidade, em realidade material, em coisa corriqueira ou usual; o relâmpago celeste é logo transformado em fogareiro de combustão lenta; o deserdamento é o desnudamento [da criatura, em Deus e por Deus] são encarados pela Igreja como ganho e proveito. O descanso [que a criatura deveria gozar] em Deus, é considerado como desconforto e a inquietação [que o ser humano deveria sentir com respeito às coisas divinas] desaparece no sossego [que a Igreja sugere]. Na Igreja, o “mundo do além” é transformado em mundo metafísico que “existe” além daquele que conhecemos e que, por isso, passa a ser tido como simples prolongamento do nosso. A Igreja é o lugar onde se sabe e se “tem” toda sorte de coisas de Deus e, conseqüentemente, é aí que dele nada se sabe ou tem. Na Igreja Deus é, de alguma forma, desvinculado do PRINCÍPIO e do FIM que desconhecemos, e empurrado para o centro, nosso conhecido, a fim de que não precisemos de nos lembrar, a cada instante, de que é necessário morrer para alcançar sabedoria; antes pelo contrário: a Igreja apresenta a fé, o amor e a esperança, a nossa filiação a Deus e o Reino de Deus como se fossem “coisas” que se poderiam ter, ser, esperar ou obter pelo nosso esforço. A Igreja é a tentativa mais ou menos geral e enérgica de humanizar aquilo que é divino; é o esforço para temporalizar, materializar, mundanalizar; [a Igreja procura] transformar [o que é divino] em alguma coisa prática e o faz para o bem da humanidade que não pode viver sem Deus mas, também, não pode conviver com o Deus Vivo. (Ver “O Grande Inquisidor”!) Em resumo: [a Igreja] tenta transformar o caminho incompreensível e inevitável, [a senda apertada e difícil, a via do paradoxo da fé,] em vereda que possa ser entendida. Neste particular a Igreja Católica [a Romana e também a Ortodoxa] teve bem melhor sucesso que o Protestantismo o qual padece com-

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parativamente mais ante o fato de que o ser humano não alcança aquilo que, como membro da Igreja, ele tanto aspira. (Humanamente falando), o que a Pessoa procura na Igreja é a sua “entrada” no céu, e esta entrada a Igreja não pode dar. A missão da Igreja é mostrar o definitivo NÃO de Deus a tudo quanto é do mundo, nele está, ou dele tem origem; é testificar a salvação que há em Cristo Jesus. Porém a salvação propriamente dita, a dádiva da reconciliação com Deus, a “entrada” no Paraíso, é graça divina operada EXCLUSIVAMENTE pelo Espírito Santo. Quanto mais fiel a Igreja for à verdade evangélica mais alto ela falará do NÃO divino e mais claramente apontará à cruz da renúncia, do sofrimento, da vergonha, da dor e da aflição; mais fortemente proclamará a absoluta necessidade de o homem perder a sua vida para ganhá-la. Tal Igreja não opiará o povo, antes o despertará, o sacudirá, até que cada um clame “Deus meu!, Deus meu!”. [Dentro da dialética irônica do A. é certo que, no acalento dos que dormem, as Igrejas “menos” evangélicas têm maior êxito do que as que diligenciam obedecer aos preceitos bíblicos.] Ainda falando humanamente, não podemos deixar de dizer que a Igreja visível é o Corpo de Cristo; que entre aqueles que nela ingressam, que a ela se ligam, há os que buscam a Deus para adorá-lo em Espírito e Verdade; há os que esperam e desejam o antigo estado de filhos de Deus, a sua volta ao lar; todavia, não visam necessariamente a sua “entrada” no céu, mas amam a Deus. Já não confiam em seus dotes, seus bens materiais, seu saber, seu estofo moral, sua espiritualidade, sua fé; não buscam nem pedem recompensa, porque sabem que nada merecem. Contudo, vivem em esperança, pela fé. Crêem que Deus é poderoso para os salvar. Confiam no sacrifício expiatório de Cristo; esperam em Deus! [A seguir o A. afirma que há oposição constante e perene entre a Igreja e o Evangelho: Diz que a Igreja nega o Evangelho e que o Evangelho suprime a Igreja. É evidente que Barth não quer dizer que a Igreja desaparecerá ou deve desaparecer; tal interpretação é inteiramente inadmissível ante as afirmações feitas em capítulos anteriores onde Barth declara, inclusive, que a existência da Igreja é essencial à religião que é, por sua vez, a mais sublime de todas as atividades humanas. Também é certo que neste contexto, quando Barth fala da Igreja, ele não se refere às agremiações de caráter eclesiástico pretensamente paralelas ao Cristianismo — (Judaísmo, Maometanismo, etc.) — nem a conventículos semelhantes ao Mormonismo, por exemplo, nem ao Espiritismo ou alguma forma de

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Espiritualismo, nem a qualquer das múltiplas expressões religiosas supostamente derivadas do Cristianismo ou aglutinadas pelo sincretismo religioso. Nenhuma dessas religiões místicas, fanáticas, folclóricas ou filosóficas interessa ao caso. Aqui se fala da Igreja segundo a mais pura concepção do Evangelho de Cristo; da Igreja que prega a mensagem da cruz segundo a Bíblia nô-la revela. Esta é a Igreja visível, o Israel de Deus, a que o A. se refere. Por se tratar da Igreja militante no “presente século” ela tem a sua componente material, humana e, portanto, perecível. É a Igreja que se esquece de sua primeira caridade, que abriga “nicolaitas” e “jezabéis”; que pensa estar viva mas está morta; que não é nem quente nem fria; que tem em seu meio a própria sinagoga de Satanás]. Por todas essas propriedades tal Igreja tem de ser — só pode ser — destruída pelo Evangelho. Todavia essa mesma Igreja abriga os que permanecem fiéis, aqueles que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro e não as contaminaram; a Igreja que com paciência e perseverança guarda a fé; a Igreja que tem ante si uma porta aberta, contra a qual não prevalecerão as forças do mal. Estando no mundo e sendo parte dele, é natural que a Igreja, por seus membros, seu clero, seus dirigentes, seus pregadores e seus missionários, por sua própria organização eclesiástica, descambe sempre e reiteradamente para o pecado fundamental, origem específica da queda do homem: o desejo de tornar-se igual a Deus. E tanto maior é esta tentação quanto mais perto de Deus o homem se sentir; ela é ubíqua na Igreja porque nela os Balaãos de todos os tempos têm campo fértil para a sementeira de tropeços; porque quanto mais a criatura tratar de seu relacionamento com o Criador maior será o seu anseio de aproximar-se dele diretamente, contornando a cruz. E o faz por eufemismos engendrando doutrinas, elaborando confissões de fé, promulgando dogmas, pregando e promovendo — SUA FÉ — sua IGREJA. Assim procedendo, a Igreja se apresenta como a congregação dos justos, a Igreja dos salvos, e os seus membros, seus oficiais, seus mais eloqüentes pastores, consideram-se iluminados, inspirados; “ouvem” a voz de Deus e querem transmitir e impor a vontade divina que sentem e estão certos que muito bem ouviram, aos seus conservos e, se possível for, a todo mundo. Assim justificados perante Deus a seus próprios olhos e por força de sua inspiração, constituem-se, na Igreja, a própria Sinagoga de Satanás: retêm a verdade com a sua Justiça, e ficam sob a ira de Deus! Tal é a Igreja que constante e permanentemente nega o Evangelho e é por ele desmascarada, suprimida, permanecendo porém, o remanescente que vigia e ora; que porfia para ser fiel até a morte; que constantemente se lembra

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de onde caiu; que com temor e tremor espera pela coroa da vida; que humilde e crente confia na fidelidade de Deus. (Apoc. caps. 2 e 3). É pois evidente que a oposição entre Igreja e Evangelho é de fora a fora e que, basicamente, ela é interminável. Sim, senhores, neste assunto um lado tem razão e outro está errado. O Evangelho é a revogação da Igreja e a Igreja é a revogação do Evangelho. — Porém, quem se contrapõe a quem? — Os antagonistas são a criatura humana e Deus! Não se trata de homem contra homem; não é Saulo ou Paulo contra os demais fariseus! Não é o pregador do Evangelho contra o membro da Igreja. Estas contraposições não são infinitas mas altamente finitas. Nos lábios humanos não há pregação pura do Evangelho que não seja “eclesiástica”. O evangelista como tal, é também membro da Igreja, sofre de sua aflição e participa de sua culpa. O incógnito divino continua por mais clara que seja a nossa pregação do Evangelho, porquanto ninguém pode de direito [e com propriedade] falar sobre Deus, ainda que o fizesse com línguas de fogo. Nem podemos ser diferentes: todo aparato [de que nos servimos] para erigir manter e ordenar o relacionamento [humano] com Deus é eclesiástico e [é claro que em nossa pregação] tudo fazemos para tornar compreensível o “incompreensível” caminho [da salvação]. (Acaso haverá algum homem de Igreja que não proceda dessa maneira?). Se não mostrarmos a eternidade na semelhança das coisas efêmeras, (se não acharmos analogias para ilustrar nosso discurso), então estamos servindo à Igreja e não estamos pregando o Evangelho (e quem, senão só Deus, pode livrar-nos dessa possibilidade tão altamente provável?). [Entendo que o A. quer dizer que se intentarmos falar de Deus e sobre Deus em termos metafísicos, transcendentais ou filosóficos, sem recorrer a comparações e ao estabelecimento de paralelos com fenômenos do mundo temporal estaremos, talvez, exaltando a cultura, a sublimidade da Igreja ou promovendo sua mística mas, não estaremos entregando a mensagem de Deus a nossos ouvintes. Barth afirma que a própria pregação, em suas variadas facetas, é qual parábola dos diferentes aspectos da verdade divina, pois:] A sistemática inevitavelmente eloqüente que empregamos quando pretendemos fundamentar e disciplinar nosso discurso é qual parábola da inquebrantável unidade da verdade; O fato de ninguém conseguir falar seriamente a respeito de Deus sem com isso envolver sua própria pessoa e comprometer-se a si mesmo (fato que

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tanto nos escandaliza) é parábola da personalidade de Deus, que sustenta e mantém todas as coisas, eternamente; O paradoxo da desesperadora inadequação da fala humana para expressar a Verdade [divina] é parábola do milagre do Espírito: A dolorosa e quase insuportável unilateralidade e exclusividade que sentimos ao falar da verdade — [unilateralidade e exclusividade que somente conseguimos contornar (se mudarmos de assunto)], se falarmos de outra coisa — é parábola do impacto avassalador que a idéia da eternidade tem sobre nós. Qual o evangelista que poderia impedir que “aos de fora tudo seja dito por parábolas” e que esses tais, em tudo que ele diz, vejam apenas a forma estranha de um direito novo e fabuloso pelo qual não se deixam derrubar antes, servindo-se dele, com menos ou mais garra, paixão e habilidade queiram defender os direitos que conhecem, [segundo os quais se julgam] justificados e salvos? [Quem pode impedir que aqueles que estão de fora] julguem a seriedade (a importância) de toda pregação como sendo [apenas] de âmbito eclesiástico onde, reconhecida e realmente, nada é aplicável à vida prática pois nada na Igreja é, de fato, existencialmente sério? Quem há que possa impedir o escândalo desse malogro do evangelho? — NINGUÉM! Poderíamos executar as mais espetaculares acrobacias, e até andar sobre nossas mãos em honra a Deus (1 Cor. 13, 1 ss) e [nosso procedimento] seria interpretado como coisa de igreja e jamais, existencialmente. [Esse escândalo] só pode ser impedido por Deus, e mais ninguém. Porém, quando Deus o faz [quando Deus remove o escândalo], ele se mantém incógnito. Não há qualquer possibilidade de termos nós a razão enquanto os outros não a tenham. O ponto de vista de Deus permanece inteiramente resguardado, [protegido da influência] de todos nossos pontos de vista, [de todas nossas opiniões]. (Ele tem razão e todos estamos em erro, [ele é justo e todos nós somos injustos] ). — O que resulta disso? Acaso esquecer-nos-emos de Deus, encostaremos nossas ferramentas e passaremos a servir à Igreja, isto é, aos homens, como se não existisse Evangelho? — Não! Porém com a mente voltada para Deus e utilizando nossas ferramentas [com a eficiência de que formos capazes], propagaremos o Evangelho e, porque a Igreja é erigida pelo Reino do Céu, a ela nos submeteremos não obstante nosso pleno conhecimento de sua permanente oposição ao Evangelho; com ela nos solidarizaremos, não nos desinteressaremos dela, antes a reconheceremos, nela ingressaremos e nos colocaremos à sua disposição, tornando-nos co-responsáveis e participantes por aquilo e daquilo que lhe falta — que necessariamente tem de lhe faltar.

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“Falo a verdade em Cristo, não tergiverso [não finjo], do que minha consciência me dá testemunho no Espírito Santo, que tenho grande mágoa e incessante dor em meu coração”. Esta é a posição que o Evangelho impõe [ao pregador] em relação à Igreja. Quem ouve e proclama o Evangelho não fica fora da Igreja, rejeitandoa por não compreende-la nem simplesmente simpatiza com ela por entende-la porém, dela participa pessoalmente. É evidente que participará com conhecimento de causa e por isso como sofredor; jamais como vitorioso. Ele sabe do que se trata na Igreja; ele a toma a sério, extremamente a sério, [ainda que amarguradamente]. Ele não aceita o consolo barato de que a Igreja seja mera configuração humana que poderia até mesmo não existir e que o ministério seja uma profissão como outra qualquer. Ele sabe que é preciso crer, pregar, esclarecer, chamar, orar; ele sabe que não pode ser de outra maneira e que é justamente na Igreja que a enfermidade humana em Deus irrompe em formas sempre novas; ele sabe que a atividade Eclesiástico-Religiosa não pode ser evitada e que no presente século o relacionamento não-eclesiástico entre a criatura e Deus é tão impossível quanto a inocência paradisíaca. O Pastor porta sua toga sem sequer se dignar a lançar um olhar aos que defendem o “laicismo” e que são amplamente tidos como melhores e mais felizes; contudo ele vê a impossibilidade [quiçá a limitação] do empreendimento Eclesiástico-Religioso; ele sabe que esse empreendimento tem de sossobrar porque é inviável por sua própria natureza; ele vê como sua questionabilidade cresce, não pela sua fraqueza, não com sua falta de influência, não mediante o alheamento da Igreja no mundo, mas pelo contrário: a questionabilidade da Igreja cresce com a habilidade e a força das ilusões que oferece, que são sobremaneira práticas e geram tanta felicidade; [as restrições que se podem fazer ou as dúvidas que surgem a respeito da Igreja, aumentam] com a grandiosidade dos resultados que colhe sempre de novo; mediante a destreza com que ela sabe ajustar a sua peregrinação às condições do mundo. O pregador percebe que justamente quando a Igreja atinge seu objetivo no ministério dos homens para os homens, desaparece o objetivo divino e o julgamento está às portas. Entristecido, preocupado, cheio de perguntas está [o ministro] na Igreja e tanto mais assim quanto mais [caracterizada a] Igreja for. Todavia, ele não está como observador pois a Igreja é, em toda extensão, a sua própria possibilidade; a perplexidade da Igreja é também a do Pregador e a aflição dela é também a dele. Ele é solidário com a Igreja justamente naquilo que, precipuamente, fundamenta a solidariedade e a comunidade entre os homens: o seu deserdamento da glória de Deus (3, 23).

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9, 2-3

Solidariedade

Objetivamente, esta solidariedade, este sentimento comunitário, não tem limites: “Desejaria ser, eu mesmo, amaldiçoado e separado de Cristo, em lugar de meus irmãos, meus parentes segundo a carne”. É preferível não gozar da graça, não ter a liberdade, não receber o Espírito, não esperar o Dia Vindouro, do que ter tudo isso na qualidade de quem não é co-participante, não sofre, não está perplexo, não se lamenta, mas é fugitivo e está “separado”: isto nunca! A posição paradoxal em que Paulo se encontra fica evidente quando com sinceridade e sem qualquer condescendência, sem nenhuma reserva esotérica, trata os fariseus por “seus irmãos” quando ele toma absolutamente a sério o fato de ser “parente deles segundo a carne”; quando ele, consciente do desconhecimento deles mas também por seu próprio desconhecimento, com eles se curva sob o avassalador incógnito divino que caracteriza a Igreja. Paulo precisa tomar essa posição, inda que, a todo instante, pareça ser infiel e então os outros lhe lancem em rosto acusações de falsidade e de oportunismo. — Trata-se de posição perdida? — Sim, sem dúvida, uma posição perdida que, mesmo assim, precisa ser guardada. Quaisquer que sejam as posições que, como criaturas humanas, sustentamos [e defendemos] são posições perdidas. Isto precisa ficar claro e de fato se esclarece quando na Igreja se anuncia o Evangelho; quando na solidariedade do profeta com o sacerdote, o impossível se torna possível e aquilo que é possível se torna impossível. O profeta declara-se solidário com o sacerdote porque sabe que tem de enfrentar uma pergunta para a qual somente Deus tem a resposta; todavia não [se faz solidário] para apresentar a pergunta em nova terminologia, nem tampouco para engendrar nova tarefa para a veneranda Igreja; nem estará pensando na fundação de alguma Igreja nova para tratar de incumbência antiga. Ele sabe que [até] uma colônia, ou uma escola técnica pode ser uma igreja. Ele sabe que para esta enfermidade de nada adianta a troca de hospital ou de enfermaria, por mais radical que [essa mudança] seja, pois somente em Deus pode ser alcançada a cura. O profeta sabe que as oposições [as disputas, as polêmicas, as discussões] e as discórdias entre os indivíduos (e que não podem ser totalmente evitadas) revelam, em ultima análise, a oposição que existe entre o Evangelho e a Igreja; todavia, nem por isto o profeta desiste. [Para melhor inteligência do pensamento do A., convém lembrar que o profeta é aquele que ensina, proclama, prega a Palavra de Deus, o Evangelho. O sacerdote ministra o culto, o louvor, a adoração.] Ora, o pregador (o profeta) tem de solidarizar-se com a ministração do culto, isto é, tem de ingressar na Igreja pois de outra forma ele não poderia

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Solidariedade

9, 3

trazer aos seus ouvintes a resposta que Deus tem para dar e dá através da instrumentalidade da Igreja. [Isto é, aquela Igreja que se assenta sobre a pedra fundamental que é Cristo, o Filho do Deus Vivo, contra a qual não prevalecerão as portas do inferno]. Todavia o Pregador sabe que a Igreja, sendo constituída por membros ainda sujeitos ao “corpo desta morte”, está em natural oposição ao próprio Evangelho conforme bem o comprovam as discórdias entre os irmãos; o Pregador sabe que não é a “mudança de denominação” nem mesmo a troca de confissão religiosa que modifica a criatura, que a cura espiritualmente, que a salva e a conduz para a vida eterna. Esta graça é dada por Deus, e Deus somente! [Isto evidentemente, não significa que aqueles que se convertem a Cristo devam ficar onde estão, que não precisem “mudar” de Igreja; isto dependerá da conjuntura de cada caso e a divina inspiração do Espírito Santo mostrará o caminho a seguir. Saulo não foi desobediente à visão celestial; deixou o farisaísmo e entregou-se ao Cristianismo e, para isso, teve de afastar-se da sinagoga dos judeus, fundando as inúmeras Igrejas Cristãs que o registro dos atos apostólicos e as cartas de Paulo bem revelam. Quem realmente se converte, muda de rumo em sua vida; não mais se afasta de Deus mas vai ao seu encontro no caminho para a cruz; esta conversão, esta mudança de rumo exige novos caminhos e o converso abandonará a avenida larga, plana, alegre, do comodismo, para seguir a vereda estreita e difícil da renúncia. Mudará de Igreja? Talvez sim e talvez não. Quem houver passado da morte para a vida buscará aquele redil onde melhor possa praticar o bem que deseja e quer; onde, no seu entender, melhor possa louvar e adorar a Deus em Espírito e em Verdade; ele terá que decidir por si mesmo, perante Deus e optar! Esta é a sua responsabilidade (e também o seu privilégio) como criatura feita à imagem e semelhança de Deus!]. [O Profeta não apenas se solidariza com a Igreja mas] se dirigirá oportunamente e com absoluta seriedade a todos quantos lhe pareçam haver descuidado demais das coisas eternas para chamá-los aos fatos, [para convidá-los a participar da Igreja], embora o faça com certa dose de humor pois sabe que sua advertência não é mais do que parábola; todavia, ele está também totalmente isento da loucura de pretender ensinar novos caminhos [fora da Igreja]; ele não tem a mínima inclinação de se colocar na posição de detrator ou inimigo da Igreja, ainda que o estímulo e o convite a ir até tais conseqüências o pressionem clara e veementemente; isto porque o ato de deixar a Igreja ou o Sacerdócio [o Ministério] tem ainda menos sentido lógico do que o suicídio. O Profeta não entrará num bote salva-vidas para fugir da inevitável catástrofe que ameaça a Igreja mas permanecerá, agradecido ou não, no seu posto, seja este na Casa de Máquinas ou na Ponte de Comando.

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9, 3

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O Profeta não assumirá nenhum ponto de vista sem a intenção íntima de o abandonar tão logo o objetivo tático seja alcançado, (pois é disto que se trata!). Ele jamais fará qualquer construção sem, ao mesmo tempo, ter disponíveis os meios para o desmonte; ele estará sempre pronto a fazer tudo a despeito da periclitante estabilidade de suas próprias palavras, para a [absoluta] liberdade da Palavra de Deus. O que mais horroriza o Profeta é o fato de a interminável luta entre o Evangelho e a Igreja estar sempre ameaçando transformar-se em luta [de partidos], na qual “nós” estamos de um lado e “eles” do outro, mesmo que “nós” fôssemos os mais excelentes [campeões da verdade] ou que “eles” tivessem de seu lado toda razão. Tais confrontos [o Profeta fiel] procurará [impedir e] debelar por todos meios a seu alcance. Após cada vigoroso ataque polêmico contra a Igreja ele [o Profeta] voltará prontamente à posição onde neste mundo — e justamente como pessoa eclesiástico-religiosa — a criatura humana é “amaldiçoada” [é anátema], “separada de Cristo”, para sentir a bem-aventurança unicamente na esperança da graça de Deus, porquanto toda e qualquer polêmica anti-religiosa, [toda disputa contra a religião] só tem sentido se o seu objetivo for a afirmação [categórica] de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista, [acaso] sabendo e conhecendo melhor, poderia justificar-se e se salvar. Por isso, ao alçar a sua voz para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o Profeta prefere estar em todo instante do tempo presente com a Igreja (e também com a teologia, por exemplo), no inferno, a estar com os pietistas de alto ou baixo coturno, de observância mais moderna ou mais antiga, em um céu que não existe. Aceite-o quem puder: Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos banidos de sua presença, não porém, (jamais), onde nos sintamos abrigados e protegidos da aflição que a ciência deste banimento nos traz. Acaso levamos a Igreja por demais a sério, damos-lhe excessiva importância ou a honramos demasiadamente, quando vemos nela a exemplificação do interminável contraste entre Deus e os homens ou quando, na finitude humana, negamos peremptoriamente a existência de qualquer diferença entre nós e a Igreja ou ainda, porque enquanto chamamos atenção ao destino da Igreja, nos solidarizamos com ela? — Por que não encerraríamos o assunto “Igreja” com o Capítulo VIII, como se a Igreja nada representasse de sério, de real, mas fosse apenas história, ou questão acidental? — Porque o assunto “Igreja” nos inquieta excessivamente; porque, excluída a realidade de Israel, é a própria realidade da Igreja (que representa a pergunta para qual foi vazada a resposta de 3, 8, [isto é, ajusta condenação daqueles que,

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Solidariedade

9, 4-5

tergiversando, buscam e apresentam razões para explicar sua conduta. — Ver também 5, 20 e 6, 15], é justamente na realidade da Igreja que se contempla o invisível e é nesta conjuntura humana que os olhos se abrem para ver a Deus. Admitir que existam caminhos diretos — natureza, história, arte, moral, ciência ou até mesmo a religião — para chegar à impossível possibilidade que é Deus, é [mera] auto-sugestão sentimental e liberal. A superabundante variedade dos caminhos diretos que levam à Igreja, a igrejas e igrejinhas de toda sorte é bem exemplificada nas experiências do chamado “Socialismo Religioso” [quiçá o Evangelho Social, tão em voga entre os ledos marxistizantes]. Todavia é sempre somente depois de, felizmente, se chegar ao extremo do beco sem saída do humanismo eclesiástico, que se pode considerar o tema “Deus” de forma séria e radical. Tudo quanto experimentarmos no caminho de aproximação a Deus, antes [de nos convencermos do impasse decisivo que o humanismo e o Evangelho Social representam], é ilusão inócua. O verdadeiro tiroteio só tem lugar quando percebemos, de uma ou de outra forma, que não podemos contornar a Igreja e que fora dela não podemos prosseguir; esta percepção, porém, apenas se dá quando o Pregador do Evangelho (e quem não quererá sê-lo?!) reconhecer nos membros da Igreja (e quem não o seria?!) o seu irmão a quem nada tem “de novo” para oferecer. “Os quais são israelitas; pertencem-lhes a adoção, a glória, as alianças, a outorga da lei, o culto divino e as promessas; deles são os patriarcas e também o Cristo, segundo a carne”. Isto não é dito [por Paulo porque ele estivesse] “tomado de grato e profundo respeito” (Juelicher) porém trata-se da afirmação sóbria de que os demais fariseus podem, também, saber, dizer, representar e ter, do Evangelho, tudo o que Paulo tem. Conhecida, dita, apreendida e defendida [ou representada] pelos homens, a NOVIDADE do Evangelho nada tem de novo, pois é idêntica ao [que, sobre o assunto, já possuía o] Israel da mais remota antigüidade. Histórica e humanamente, negando-se a revelação divina, o NOVO Testamento dificilmente pode ser considerado mais do que o resumo vigoroso da essência cuidadosamente extraída do ANTIGO. Qual a proposição do Cristianismo primitivo que não tenha seu paralelo inconfundível no judaísmo de então? O que sabe Paulo que já não houvesse sido do conhecimento de João Batista e o que conhece João Batista que Isaías já não houvesse sabido? Reiteradamente e sempre a pregação do Evangelho há de esbarrar na estranha realidade de que nada há de novo sob o sol; segundo a observação humana, tudo o que é essencial já foi dito e ouvido antes; acima da culminância da humanidade já existe alguma igreja como testemunha viva e histórica do esva-

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ziamento de todas demais possibilidades humanas. Cada uma e todas afirmações grandiosas da Igreja foram, já, traduzidas em Instituição, Ensino, Caminho e Símbolo, postas em circulação de forma mais ou menos abrangente e, assim, transformadas em bem comum. Desde o singelo e simples moralismo até a mais profunda mística; desde a piedade da conversão pessoal até a escatologia cósmica, desde a crente e piedosa defesa da personalidade humana de Jesus até a mais concentrada e dinâmica enunciação da palavra DEUS, desde a teologia de chagas e sangue até o mais envolvente ensino do “que se deve, então, fazer”, desde a mais bem intencionada — a mais oportuna e mais apurada — reforma do culto, até à rude pregação do escândalo no estilo de Kierkegaard. TUDO ISTO, até mesmo o incansável ensinamento dos historiadores de que “nada há de novo sob o sol”, já existiu antes... Tudo isto a Igreja pode e faz (Exo. 7, 2) e [nisto] o Evangelho não pode sobrepujá-la. Para tanto, é preciso ser israelita? [É preciso ser israelita] para ter a filiação, a glória, os pactos [as alianças], à dádiva da lei, o culto a Deus, as promessas, os patriarcas, o Cristo segundo a carne? Acaso a Igreja não tem todas essas coisas, também? Como, pois, se poderia ter mais do que o cumprimento do Antigo Testamento? [Como poderia a Igreja desejar mais do que o cumprimento das promessas do Antigo Testamento?]. Bem sabemos que as paredes do canal são firmes e bem construídas e contra o temor de que ele pudesse estar seco os moradores ribeirinhos estão devidamente protegidos porquanto também nós outros [aqueles que estão de fora da Igreja] nada podemos fazer senão abrir canais pois a água viva da revelação [tanto ou] tão pouco está à disposição de uns quanto de outros. Sabemos que tudo quanto fizermos será apenas em forma de variantes daquilo que a Igreja sempre foi. Seja qual for a “nova” aspiração, no pináculo das possibilidades humanas, o ponto mais alto será sempre a torre da Igreja. “Os quais têm a Deus que governa todas as coisas. Louvado seja eternamente!” — Então Israel e a Igreja têm também, Deus? — Não podemos negar isto; e como poderíamos? Portanto, dizemos Sim! Mas neste “Sim” está subentendida a objeção que endereçamos [não só] à Igreja (mas) também a nós. Dizemos Sim se o Deus de que falamos for aquele que, como toda gente, também nós conhecemos, assim o designamos e adoramos. Porém, se [esse] Deus for aquele que “reina sobre tudo” então está latente em nossa pergunta, (se Israel e a Igreja têm Deus), a queixa e a acusação de que

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O Deus de Jacó

9, 5-6

a Igreja não o tem. Como objeção do próprio Deus à Igreja, não deveria ser ignorada levianamente a objeção que os inimigos da Igreja levantam quando dizem que o “canal” está vazio, e que a posse da Filiação, das Alianças, da Lei, do Culto Divino, das Promessas, dos Patriarcas, do Cristo segundo a carne e do próprio Deus, não pode ser considerada como existencial [como real e objetiva] embora de todas essas coisas a Igreja se glorie e não sem razão. Quando esse leão rugir, quem há que não tema? Deus, como Deus, cessa a solidariedade entre Paulo e os Fariseus e se inicia o protesto, o contraste. Vista por Deus, como Deus, a Igreja está extinta desde agora, “Ouvis o sinal?” Comentários: 9, 1-5 Nada há de novo sob o sol; todavia, para a criatura Deus é sempre a absoluta novidade porquanto ele não está “sob o sol”. Quando para o homem (e para a congregação dos homens na Igreja visível) raiar a manhã do Dia do Senhor, quando o ser humano transpuser os umbrais da eternidade, ele terá perante si a grande NOVIDADE; ele verá de face a face o Deus Desconhecido deste mundo! Então será a Nova Jerusalém; então aquilo que “E” para este mundo já não será mais; estará definitivamente extinta a Igreja de Esaú; egressa da Igreja visível, da Igreja das lutas, das dissenções, dos fracassos espirituais e, quiçá, das glórias terrenas, a Nova Criatura ingressará na Igreja invisível, cujo rol de membros é o Livro da Vida de cujas páginas, pela graça de Deus, seu nome não foi riscado. Para Deus não há tempo passado nem futuro; aquilo que SERÁ para a criatura deste século, “É” desde agora para DEUS. Em Cristo é HOJE o dia da Salvação, e AGORA o instante crítico da decisão. Compreendeis a que sinal se refere o Autor?

O DEUS

DE

JACÓ (9, 6-13)

V. 6 (primeira parte) Não me entristeço como se a Palavra de Deus houvesse falhado. [Almeida escreve: “E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado”]. A Igreja sofre de toda sorte de falhas humanas; é necessário e compreensível que pelos séculos afora, em diferentes intervalos e com algumas diferenças entre umas e outras, essas falhas sejam trazidas a baila, não só pelas polemicas internas da Igreja como também pela controvérsia antieclesiástica.

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9, 6

O Deus de Jacó

Se a tribulação da Igreja fosse apenas o problema das falhas humanas e a degenerescência daí resultante, não se justificaria o apaixonado ardor com que profetas, apóstolos e reformadores atacaram as diferenças entre a Igreja e o Evangelho, não se entenderia por que [os reformadores] não se voltaram ao paciente trabalho de recuperação [da Igreja de seu tempo] ou então, caso considerassem tal recuperação inviável, por que não se teriam dedicado vigorosamente à organização de nova Igreja. Por que será que Paulo, e também Lutero, tudo fizeram e lutaram até o extremo de suas possibilidades para não trilhar novos caminhos e só seguiram esta alternativa quando foram, finalmente, obrigados a isso? Por que será que são sempre e somente os espíritos pequenos e nervosos, os “religiosos-histéricos” que ao se revoltarem, [aliás] com razão, contra o ensino de sacerdotes e escribas ou ante a mundanalidade da Igreja, seu atraso político e cultural, sua corrupção, sua fraqueza e sua hipocrisia, apelam apressadamente — e não sem satisfação com seu próprio gesto trágico — a esta ULTIMARATIO de todos verdadeiros profetas, [que é a fundação de nova Igreja]? Por que será que o impacto da oposição direta à Igreja até mesmo [o impacto da luta] contra a sua degenerescência é tão desmesuradamente desagradável, vazio, inconsistente e tão pouco convincente? Por que será que o trabalho paciente de reforma do procedimento da Igreja nunca produziu resultados que pudessem ser levados a sério, e isto desde os tempos de Josias (ano 621 AC — Ver II Reis, Caps. 22 e 23] até os dias de hoje? Por que manifestou Paulo sua melancólica solidariedade com Israel, na aparente tentativa de ficar na linha média entre essas duas possibilidades — (a preservação da Igreja e a tentativa de sua reformulação] ambas tão pouco promissoras? Assim acontece porque Paulo — e com ele toda pregação verdadeiramente radical do Evangelho — nunca pode perder de vista que é na Igreja, na qualidade de religião organizada, que se cogita do relacionamento da criatura com o Criador, e isto independentemente do grau de perfeição ou plenitude da Igreja; que a aflição característica deste empreendimento humano [que a Igreja é] consiste no fato que a Palavra de Deus na qual esse relacionamento deveria ter lugar não é palavra humana, casual, fortuita, mas é a própria palavra eterna e absoluta de Deus. Se fosse diferente, se Paulo pudesse proceder de outra maneira e tratar deste tema peculiar da Igreja como coisa relativa, uma coisa entre outras, como grandeza histórico-psicológica ao lado de outras semelhantes, como um “QUANTUM” que pudesse ser aumentado ou diminuído, como realidade sobre qual outros seres criados ou pessoas pudessem exercer influência, então

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também o Apóstolo estaria junto com os muitos que se queixam dizendo “que a palavra de Deus falhou”, e por isso se põem a [imaginar e] meditar sobre como poderão ser salvos. [Estivera] em tal situação, o Apóstolo responsabilizaria a degenerescência humana pelos inconfundíveis sintomas da evidente enfermidade crônica da Igreja e tomaria as medidas apropriadas e mais ou menos decisivas para debelar o mal. Todavia isto lhe é defeso pelo inextrincável paradoxo da verdade, O tema da Igreja é, realmente, a Palavra de Deus, a palavra do fim e do começo, [do alfa e do ômega]. É a palavra do Criador, do Redentor, do juízo e da justificação; esta Palavra de Deus é ouvida por ouvidos humanos e enunciada por lábios também humanos, porquanto a Igreja é sempre e reiteradamente a comunidade formada por pessoas que ouvem e anunciam a Palavra de Deus. Dessa conjuntura resulta que os ouvidos e lábios humanos hão de sempre e necessariamente falhar quando se tratar [do discernimento e da proclamação] da palavra infalível de Deus; o ser humano precisa ouvir e anunciar sempre a verdade de Deus que, todavia, assim ouvida e anunciada já não é a verdade divina. Daí resulta que o tema da Igreja é tão [absolutamente] verdadeiro que jamais será VERDADEIRO a menos que [...] aconteça o milagre! Esta é a sua tribulação. [Parece-me que fazendo jogo de palavras conforme é de seu estilo, o A. quer dizer que a Igreja não pode, pelas contingências da temporalidade que a reveste, anunciar a Palavra de Deus com “palavras dos céus”, porém o faz com terminologia humana e entendimento humano procurando (por assim dizer) TRANSMITIR a inspiração que recebe, embora essa “retransmissão” seja imperfeita. A Igreja que tiver Cristo por alicerce não é detentora da verdade porque ela não detém Cristo em si mesma, porém ela é a fonte onde brota, ou melhor, onde pode e deve brotar a água viva, porque a água da vida somente jorrará enquanto e na medida em que Cristo for, de fato, alicerce; contudo, mesmo estando fundamentada em Cristo, a água que através dela jorra traz consigo algumas das características materiais — humanas — que deturpam a verdade eterna de modo que a mensagem da Igreja, sendo da Igreja, já não é a verdade de Deus; no entanto o mister, o assunto, o tema de tal Igreja é a própria Verdade, (é Deus!); é de Deus que a Igreja fala, por isso não fala “exatamente” a Verdade mas fala da Verdade; se a Igreja revelasse (ou se revelar) a mensagem que tem para entregar com absoluta fidelidade ao “original”, ela já não estaria (ou não estará) falando do Deus de Abraão, Isac e Jacó, do Deus dos Profetas e dos Apóstolos, do Deus Desconhecido, mas de UM Deus, quiçá do Não — Deus deste mundo. Esta é a deficiência que atinge a Igreja e, paradoxalmente, será sentida tanto mais agudamente quanto mais firmemente ela se assentar na rocha que os

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“edificadores rejeitaram” por que não quiseram ou não tiveram coragem para assimilar o escândalo da fé. Esta é a TRIBULAÇÃO DA IGREJA! No entanto dá-se o milagre da graça; o Espírito intercede por nós e vem ao nosso encontro e pela instrumentalidade da Igreja (todavia não somente pela Igreja) nos leva aos pés da cruz. Esta é a COROA DA IGREJA! ...] A Igreja se esfacela na rocha que a fundamenta; ela morre naquele de quem ela vive. O “bem-aventurado” e, também, “terrível” tema da Igreja é a Palavra de Deus na qual se efetiva o relacionamento entre o homem e Deus [... e o verbo se fez carne ...] para que Deus seja verdadeiro e todo homem mentiroso (3, 4). [E como poderia alguém falar a própria verdade de Deus?] Neste tema divide-se a Igreja sempre de novo em Igreja de Esaú e Igreja de Jacó. Naquela o milagre não acontece e por isso todo falar e ouvir de Deus apenas revela que o homem é mentiroso, enquanto nesta acontece o milagre e a Verdade de Deus é visível [acima e] por sobre a mentira humana. É evidente que estas duas Igrejas jamais e em parte alguma aparecem [como duas organizações] em oposição entre si. A Igreja de Esaú é a única que [na realidade desde mundo] é, basicamente possível, visível e conhecida, [seja ela] Jerusalém, Roma, Wittemberg, Genebra ou de qualquer um de todos lugares santos do passado, do futuro [ou atuais]; em todas essas Igrejas, sem exceção, se encontrarão erros, as degenerescências tomam vulto e nelas ocorrem reformas e cismas. [De outra parte] a Igreja de Jacó, também basicamente, é a Igreja impossível, invisível, desconhecida; é a Igreja sem dimensões e sem cerceamento, sem sede e sem nome, sem história, sem congregação e sem excomunhões; ao redor dela está a livre graça de Deus, vocação e eleição, a unidade e o todo, princípio e fim. Tratamos da Igreja de Esaú porque somente dela podemos falar; mas não nos podemos ocupar dela sem imediatamente nos lembrarmos que o seu [verdadeiro] tema é o da Igreja de Jacó. Em toda sua dubiedade, Esaú vive de Jacó e subsiste somente porque não é e enquanto ele próprio não for Jacó. Como não podemos contornar esta realidade, a [contínua] queda, a perene degenerescência e a eventual recuperação da Igreja de Esaú passam a ter, para nós, interesse apenas secundário e não nos podemos animar a perder com ela uma palavra sequer, a não ser em conexão com sua própria aflição — a aflição que fustiga suas virtudes e não a que procede de seus vícios.

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A “grande mágoa e incessante dor” (9, 2) impõe-nos o peso ingente de investigar se, para nós, o tema da Igreja apenas revela a mentira humana ou se, talvez, também signifique a revelação da verdade de Deus; se a Igreja de Jacó está perdida para nós ou se também nós estamos, de alguma maneira, nesta Igreja impossível, invisível e desconhecida. O que nos resta senão permitir que essa pergunta execute a sua obra em nós, e “esperar que o milagre se realize” conforme dizem aqueles que não têm esperança? O que nos resta senão estar atentos ao Evangelho e tartamudear a respeito daquele que, para sempre, fundamenta a Igreja de Jacó? O que mais nos resta além da aflição da Igreja, esta Igreja de Esaú, a única que conhecemos? O que nos resta senão tomarmos esta Igreja “a sério” para então bater à porta de Deus: “Não te deixarei ir se não me abençoares”? (Gen. 32, 36). Vs. 6 (segunda parte) a 9 Porquanto não por eles descenderem todos de Israel, são eles Israel; nem por serem descendentes de Abraão são todos filhos de Deus. Antes: em Isaque a tua descendência terá o seu nome! isto é: os filhos segundo a carne, como tais, não são filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são considerados como descendência de Abraão e de Deus. Porque a palavra da promessa é esta: “Ao tempo eu virei e Sara terá um filho”. [A versão do A. tem nuanças um pouco diferentes da tradução de Almeida, que escreve assim:... “porque nem todos os de Israel são de fato israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados, como descendência, os filhos da Promessa. Porque a palavra da promessa é esta: “Por esse tempo virei e Sara terá um filho”] “Não por eles todos descenderem de Israel, são Israel, nem por serem descendentes de Abraão são todos Filhos”. Quando dizemos “Igreja” referimo-nos à multirramificada e multiclassificada totalidade daqueles que são movidos pelo bafejo da Revelação, que clamam a Deus seriamente, nele perseveram e guardam os seus mandamentos. É evidente que esses todos “descendem de Israel”. Se eles acaso ouvem a palavra de Deus e dela falam de forma que aquilo que aí se ouve e de que se fala seja realmente a Palavra de Deus — o milagre acontece; se o seu instante histórico contiver também, o culto, o instante eterno da Revelação, então eles são existencialmente aquilo pelo que se nomeiam e mais

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O Deus de Jacó

uma vez precisamos dizer: o milagre acontece! Então estes são, invisivelmente, a Igreja de Jacó; possuem a promessa de Abraão (4, 16), são filhos de Deus (8, 16)! São mesmo? São aquilo que seu nome diz? E por que não seriam? Por que não o seriam todos eles desde os mais categorizados até os mais de baixo? Quais, deles todos, não seriam testemunhas e sinais da lei e dos profetas (3, 21)? “Em Cristo”, todos eles, sem exceção, são Filhos de Deus. Porém, “em Cristo” quer dizer na medida em que se der o milagre; na medida em que a livre graça, vocação e eleição de Deus assim o quer; na medida em que houver compreensão (entendimento) de Deus. (Parece-me que a versão inglesa inverteu o sentido desta última frase, escrevendo “na medida em que forem conhecidos por Deus”. O original escreve: “SOFERN ERKENTNISS GOTTES STATT FINDET”. Ao pé da letra parece-me que seria “CONQUANTO O CONHECIMENTO (A NOÇÃO, A COMPREENSÃO) DE DEUS (SE REALIZE (OU) TENHA LUGAR. Daí a interpretação adotada que me parece ser mais coerente com as idéias gerais do Autor e também mais bíblica]. (Se não houver compreensão de Deus] se não for pelo milagre, pela eleição divina, então não é “em Cristo”! Portanto nunca e jamais enquanto forem “descendência de Israel” ou “tronco de Abraão”; nunca e jamais por força da eventual máxima plenitude da Igreja de Esaú ainda que ela atingisse o ápice, à culminância do desenvolvimento religioso da humanidade. De Deus e somente de Deus procede a possibilidade de que a palavra infalível que eles [os que estão na Igreja] ousam ouvir e da qual se atrevem falar, seja uma palavra abençoada. Acaso não é motivo de aflição se esta for a situação da Igreja com relação ao seu próprio tema? E esta aflição que, de uma ou outra forma, constitui a base de todas atribulações da Igreja, inclusive daquelas vindas de fora; é por isso que ela não é reconhecida [pelo mundo]; [é por causa desta aflição básica] que são infrutíferas, tanto a nossa eventual teima em sustentar a situação [a Igreja] existente, quanto a tentativa de reformá-la ou de criar novas condições [ou novas organizações eclesiásticas]. “Em Isaque será chamada a tua descendência” (ou segundo a redação do A., “em Isaque a tua descendência terá o seu nome]. (Gen. 21, 12). Isto é, os filhos segundo a carne, como tais, não são Filhos de Deus, mas são os filhos da promessa que são assim considerados. Portanto todos os que “descendem de Israel” e que representam aqueles que a Deus levantam mãos postas em oração, estão dentro da crise da duplicidade da Igreja ou, por outras palavras: [estão sob] a dupla predestinação; para eles subsiste a dupla possibilidade que se fixa e se desloca em Deus, somente. Como

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O Deus de Jacó

9, 6-8

descendentes de Israel, tanto podem ser eleitos, [salvos] como condenados; como filhos segundo a carne tanto podem ser do lar, como estranhos; tendo a Palavra de Deus nos ouvidos e sobre os lábios, tanto podem pertencer à Igreja de Jacó como à de Esaú. É em Cristo que se revela que esta possibilidade em Deus toma o sentido de eleição da criatura humana; [é em Cristo] que se dá a sua inclusão entre os “filhos do lar” e sua participação da Igreja de Jacó. É portanto em Cristo que a crise [da duplicidade] vem a furo. Quando o instante eterno da revelação, em relampejante claridade, mostra à criatura o seu substancial arraigamento naquele que ela não é, — [o seu enraizamento] em Deus, então se dá o seu mais profundo alicerçamento [em Cristo]. Todavia neste mesmo instante eterno da revelação, na medida em que a criatura se apercebe de que somente em Deus, somente naquele que ela não é, estava, está e estará a rocha firme em que se poderá apoiar, ela sente o mais profundo abalo, [a falta de fundamento sólido]. [Em seu fraseado característico, recorrendo aos contrastes, o A. — parece-me — quer dizer-nos que no instante em que, ouvindo a voz de Deus, a ele nos entregamos irretratavelmente, embora nos sintamos seguros pela graça de Deus, não podemos deixar de estremecer ante a realidade de Deus.] Aqueles que não trazem apenas o nome de “descendência de Abraão” mas também são o que esse nome significa, são [por assim dizer] peculiares, [especiais]: não podem ser definidos ou explicados; não encontram confirmação histórica ou psíquica; não podem ser definidos no mundo porque foram definidos por Deus como Isaque, como “filhos da promessa”, à luz do FUTURUM AETERNUM; por força da nova contabilidade de Deus com a criatura humana (3, 28; 4, 3; 6, 11 e 8, 18), eles são o que são; portanto, não é de outra maneira: não é por força de suas características próprias (ainda encontráveis neles), não por sua capacidade como “filhos segundo a carne”, não por força de alguma coisa, inda que fosse a mais sublime e mais santa que existiu, existe ou poderá existir neste mundo; antes é por que todas essas características, [qualidades], (propriedades e possibilidades) foram postas em dúvida, anuladas, canceladas. Acaso não é tribulação [para a Igreja] quando ela é sempre e reiteradamente advertida, admoestada por seu próprio tema, que lhe chama a atenção sobre o seu “Não-ser” e de que ela, em sua existência apenas pode, sempre de novo, atacar a si mesma, renunciar a si mesma e sacrificar-se? Quem há que suporte essa aflição? Quem a remove ou quem está à altura dela? A Igreja vive tentando fugir da conscientização dessa aflição, ora mediante a defesa tenaz de antigos e venerandos costumes dos pais da Igreja e da tradição,

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9, 8-9

O Deus de Jacó

ora no zelo de galvanizar-se [de se reanimar, de ganhar vida, de dinamizar-sei ou ainda, procurando erigir novos modelos de religião [ou de religiosidade]. Esta sua vontade de não morrer é a verdadeira tragédia da Igreja. “Porque esta é uma palavra de promessa. Ao tempo eu virei, e Sara terá um filho” (Gen. 18, 10). O cumprimento das promessas feitas aos homens é o despontar triunfante da própria verdade de Deus (e de Deus somente), entre as realidades deste mundo. A promessa é indicação [de que a verdade de Deus está surgindo entre os homens] isto é, ela se refere ao milagre, ao Espírito, ao impossível, à redenção. É na forma de promessa, exclusivamente nesta forma e em nenhuma outra, que a criatura se depara com a Eleição Divina. [Entendo que o A. quer dizer que a criatura se depara APENAS com a promessa da Eleição e não com a sua efetivação objetiva]. A criatura precisa crer ousadamente; não se lhe oferece qualquer garantia [para avalizar a sua fé] pois tal garantia só poderia ser o próprio Espírito, a própria fé, e se constituiria na ousadia que deve acompanhar a fé. [Em outras palavras, a “garantia” anularia a fé mediante a supressão da possibilidade de existência das características que lhe são inerentes]. “Isaque” quer dizer “sorriso”, Por que e como sorrimos? [Acaso sorrimos] ceticamente em vista da impossível possibilidade ou entusiasticamente porque vemos a impossível possibilidade? O passo que vai de uma a outra destas reações não é tão grande como pretendem aqueles que não conhecem o verdadeiro ceticismo e o verdadeiro entusiasmo. A Igreja não pode ocultar que seu tema a empurra a uma aresta de rocha extremamente aguda; no entanto, em nenhum instante ela pode desejar que seja diferente porquanto o cumprimento fácil da promessa seria a perda daquilo que foi firmemente prometido aos homens. (O que quer isto dizer? — Qual é a posição difícil, a agudíssima aresta de rocha na qual a Igreja se situa por força de seu próprio tema? Ora, o tema da Igreja é a verdade de Deus. Esta verdade somente pode ser assimilada pela fé e tanto pode ser recebida com entusiasmo pela possibilidade da (aparentemente impossível) graça de Deus, como pode ser vista com ceticismo, justamente pela aparente impossibilidade dessa graça. Portanto, a área de opção é infinitamente pequena, reduzida é a distância que medeia entre as duas escolhas, pois ambas as posições se definem nesta mesma aresta aguda: a aparente impossibilidade da graça de Deus! [O A. diz ainda que a Igreja não poderia desejar que fosse de outra forma porquanto o cumprimento aleatório da promessa invalidaria a própria firme

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9, 9

promessa divina, Parece-me que isto é assim porque não se trata de decisão simples; não se cogita nem mesmo de alguma decisão extremamente importante ao nível das coisas mais sérias do mundo, mas da única decisão que a criatura humana precisa tomar ante o seu Criador. Não é questão aleatória “mui simples de entender” e “fácil de explicar” como pretende certa “teologia para crianças”. Trata-se de assunto crítico e decisivo a ser resolvido, quiçá em oportunidade única, e que é um só: Jesus Cristo! Se esta questão for considerada casual, simples, talvez vulgar e até repetitiva ou mesmo rotineira, ou se ela apresentar alternativas e variantes segundo critérios humanos, se a verdade for retida pela injustiça dos homens, então a plataforma de opção se amplia mas ela perde o seu significado real; será a decisão por alguma verdade secundária, de caráter transitório, que poderá proporcionar ao suposto crente a paz enganosa, passageira, tão do gosto do mundo e, talvez, também do agrado de não poucos membros das variadas confissões religiosas, inclusive “cristãs”, que vão desde os praticantes do mais “moderno” protestantismo até o mais “ultramontano” catolicismo, para não mencionar seitas pretensamente evangélicas ou cristãs, cujo leque se estende desde as mais ingênuas até as mais satânicas e desde as mais exóticas até as mais solenes. A decisão fácil, casual, fortuita, invalida e anula a promessa de Deus aos homens ou melhor, não diz respeito a essa promessa pois não se relaciona com o DEUS DESCONHECIDO de Abraão, Isaque e Jacó cuja verdade a Igreja proclama (ou deve proclamar), antes serve ao NÃO-DEUS cuja “verdade” o mundo gosta de ouvir. É por isto que a Igreja não pode, em instante algum, desejar que esta aresta aguda da linha de decisão se alargue, que se transforme em plataforma ampla e firme, tão caracteristicamente — mas também de forma tão caricata — definida no antigo e tolerante aforismo: “Todas as religiões, sendo sinceras, são iguais perante Deus”! Esta é a falácia da tolerância religiosa]. Esperança [posta em algo] visível, não seria esperança (8, 24); a suposta presença direta da verdade divina, não é a Verdade Divina. A Igreja que ousa ouvir a Palavra de Deus com ouvidos humanos e dela falar com humanos lábios VIVE da promessa porém, tanto a criatura como tudo quanto é humano precisam MORRER nessa mesma promessa a fim de que vivam para Deus. A Igreja — e principalmente ela — não pode esquivar-se dessa morte pois justamente a Igreja que perece [que morre em Cristo], é a que verdadeiramente vive da promessa, isto é, vive à luz do eterno cumprimento que vem de além da vida e da morte. Toda Igreja que triunfa desta ou daquela forma, [aleatoriamente] e que por isso é tida por viva. “tem o nome de que está viva, mas eis que está morta”.

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9, 9-13

O Deus de Jacó

[A tribulação da Igreja está no conflito entre a sua vocação mundana e a vocação divina; humanamente] a Igreja quer alcançar o cumprimento da promessa deste lado da existência e, como tudo o que é humano, quer viver para sempre e triunfar. Todavia, [pela vocação divina] a Igreja precisa viver da promessa e diminuir sempre para que ELE cresça. Esta é a tribulação da Igreja e a seriedade desta situação não pode [sequer] ser suficientemente enfatizada pois a fonte desta sua aflição é também a fonte de sua esperança. Se a Igreja não perceber esta sua real tribulação ela também não terá verdadeira esperança: se ela não quiser crer sem ver, apenas verá aquilo que se pode perceber sem crer. Vs. 10 a 13 [Continuando o versículo 9, que diz,... “esta é uma palavra de Promessa: ao tempo próprio eu virei e Sara terá um filho”]. Todavia não só então mas também quando Rebeca engravidou de um homem, nosso pai Isaque, por conseguinte, antes que nascessem (os gêmeos) e portanto antes que houvessem praticado o bem ou o mal, (para que prevalecesse a determinação de Deus que é segundo a eleição e sua decisão que se dá não pelas obras mas por vocação), foi lhe dito que “o maior servirá o menor! Conforme a respeito desta decisão está escrito: “Amei a Jacó, porém odiei Esaú”! [A tradução de Almeida escreve, a partir da parte final do versículo 11:... (“para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras mas por aquele que chama), já fora dito a ela: o mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: amei a Jacó porém me aborreci de Esaú. Dentro da descendência de Abraão os filhos gêmeos, ainda não nascidos, de um casal: e deles se diz: “O maior servirá o menor”, (Gen. 25, 23). Assim se proclama ainda mais claramente como a Igreja se divide ante seu próprio tema e que tema é este. Quem se não Deus, e somente Deus, pode falar a favor de um ou contra o outro, quando toda diferença humana ainda está oculta no secreto das entranhas maternas que recordam a invisibilidade divina? Por que Jacó e não Esaú? Nenhum deles levara (ou possuíra) sobre o outro qualquer vantagem para ser vocacionado: ambos eram filhos legítimos de Isaque, netos de Abraão, e nenhum deles havia praticado “nem bem nem mal”. No entanto a linha inexorável e crítica corta através da descendência até aqui gerada e concebida em comum marcando, deste lado, a eleição e daquele, a condenação; aqui a Igreja de Deus, ali a Igreja dos homens; de um lado a Verdade como justificação e do outro, a verdade como julgamento. Por que? poderíamos perguntar sempre.

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O Deus de Jacó

9, 10-13

A resposta: “Para que prevalecesse a determinação por Deus que é segundo a eleição e a decisão se dá não por obras, mas pela vocação”. Portanto é porque, havendo a descendência de Abraão travado relações com Deus e porque Deus é Deus, ele sempre e reiteradamente se confirma como Deus; [reiterou] que ele, ele mesmo e somente ele, é quem elege e condena, eleva e faz cair, dá a vida e a tira. De que outra maneira haveremos de reconhecer esse Deus, senão nesta sua sabedoria? [Como poderíamos sequer vislumbrar] esse Deus totalmente diferente que não está ligado a qualquer característica humana, nem de modo independente nem relativamente e que não pode ser contrastado com coisa alguma? Como haveria de se tornar visível para nós o Deus Invisível e como haveríamos de conhecer o Deus Desconhecido senão nesta segunda condição de sua liberdade? E de que outra forma poderia efetivar-se o tema da Igreja senão mediante a contínua reiteração de sua crise? A própria descendência de Abraão, oprimida por Deus, nada mais pode aspirar nem querer senão que “a determinação de Deus, segundo a eleição, prevaleça”, que Deus tenha razão e a detenha em sua irrestrita liberdade. Deus é glorificado com o júbilo dos eleitos [ou salvos] e também com o ranger de dentes dos condenados porque na incontornável doutrina da eterna dupla predestinação “não se trata da limitação quantitativa mas de descrição [especificação] qualitativa da ação divina” (Kuehl), [A tradução inglesa escreve “definição” divina]. Não há modo de ser, posse ou ação humana, nem obra alguma que, nessa qualidade, seja preterida ou preferida; ninguém, na temporalidade, pode consolar-se com a eleição e ninguém tem de estar consciente da condenação eterna. Antes, o que esta doutrina ensina é a fundamentação eterna da criatura humana e que nesta fundamentação “a decisão é dada por aquele que chama”; ensina que Deus é verdadeiramente o Deus dessa criatura, O que o ensinamento da dupla predestinação assinala é o paradoxo; no contraste da eleição e da rejeição o seu entendimento é equívoco. É a descendência de Abraão — (e também a Igreja) — que procura entender [esse paradoxo]. “Deus não te ajuda por tua causa, mas por ele mesmo” (Schlatter). Se for diferente então, absolutamente, não é ele quem te ajuda; tal auxílio não vem de Deus. Deus conduz a sua causa na Igreja e por ser sua a causa, ela [a Igreja] não sossobrará. [O A. diz, literalmente, “ela não pode sossobrar”]. É justamente por isto que haveremos de tomar muito cuidado ao desfazer da “causa em que estamos”, [ao detratar a Igreja] porquanto ao conduzir a sua causa Deus, em todo caso, arrebatará a nossa (como “nossa”!), de nossas mãos; permitirá

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9, 13

O Deus de Esaú

ou não que se dê o milagre. [É Deus somente que] confirma seu Israel (como seu!) e rejeita aos que o são apenas de nome; conduz à luz um povo que o serve e envolve em trevas a outro que apenas pretende servi-lo; dá a herança a seus filhos e a tira dos estranhos; aos que chamou abençoa com sua presença e com sua ausência castiga os que não chamou; faz derradeiros dos que no mundo são primeiros e dos que aqui são os últimos ele faz primeiros: tudo isto sendo ele Deus, o Desconhecido e sendo seus o Reino, o Poder e a Glória. “Porquanto amei a Jacó mas odiei a Esaú”. Recordamos que esta é uma descrição da conduta de Deus. (Mal. 1, 2-3); é uma descrição da qualidade do procedimento divino: procedimento livre, régio, soberano, incondicional; [humanamente] sem razão de ser. Só nesta forma podemos entender e honrar a Deus pois ele somente é compreendido pela criatura deste mundo e por ela considerado digno de honra, como o Deus que elege e rejeita, que ama e odeia, que faz viver e faz morrer. O paradoxo de que a eternidade se torna temporal sem, todavia, ser temporal, constitui a tribulação da Igreja e é, também, a revelação de Deus. [Este paradoxo] está no enigma e na parábola do amado Jacó e do odiado Esaú; [está] no segredo da eterna dupla predestinação. E por isso que a predestinação é o segredo do ser humano e não desta ou daquela pessoa. Ela não separa uns dos outros [ela não discrimina entre as pessoas] mas é o mais profundo elemento da generalização da espécie humana. [A tradução inglesa escreve que os homens “não são separados, mas unidos pela predestinação”.] Ante a predestinação estão todos na mesma linha; tanto. Jacó quanto Esaú se defrontam com ela durante toda sua temporalidade. Com ela defrontase Esaú no eterno instante da revelação e também Jacó. Jacó é o Esaú invisível e Esaú o visível Jacó. A formulação reformada da doutrina da predestinação fixando a eleição e a condenação na unidade psicológica do indivíduo, e quantitativamente em [número de] eleitos e condenados é mitologificante. Paulo não quis dizer isso nem poderia pensar assim pois nele, de fora a fora está focalizado o interesse de Deus pelo indivíduo e jamais o interesse do indivíduo por Deus [como seria o caso se a aproximação da criatura humana a Deus fosse, de alguma forma, originada pela predestinação]. [A tradução inglesa escreve assim: “Quando os Reformadores aplicaram a doutrina da eleição e rejeição (predestinação) à unidade psicológica deste ou daquele indivíduo e quando se referiram quantitativamente aos “eleitos” e “condenados” eles estavam, conforme agora se pode ver, falando mitologicamente. Paulo não pensava nem quantitativamente nem psicologicamente porquanto a sua ênfase está posta, totalmente, no interesse de Deus pelo indivíduo e não no interesse do indivíduo em Deus].

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O Deus de Esaú

9, 13

Como poderia o indivíduo temporal, visível, psicológico, estar habilitado à eleição ou à rejeição? [Como seria isto possível?] A invisível liberdade humana é apenas o palco onde tem lugar a eleição ou a rejeição do indivíduo que se move e repousa em Deus — e para tal palco esta carga é suficiente. Sabemos o que esta duplicidade significa em Deus. Verdadeiramente não há equilíbrio [de forças] mas a permanente vitória da primeira sobre a segunda. [Da eleição sobre a rejeição]. A justiça é sobrepujada pela graça, o ódio pelo amor, a morte pela vida. Todavia essa vitória nos é oculta a todo instante da temporalidade e não nos podemos esquivar da duplicidade. Para nós, o Jacó visível chama-se Esaú e somente o Esaú invisível pode ser Jacó. Portanto a Igreja se confronta total e absolutamente a todo instante da temporalidade — com a possibilidade da rejeição (que, todavia, foi sobrepujada eternamente por Deus!). A sua eleição, porém, subsiste apenas pela fé; a verdade da Palavra de Deus que ela percebe e proclama é apenas em Espírito; e sua fé, seu espírito e sua esperança, por sua vez, estão somente em Deus. Isto é assim para que ela [a Igreja] também, na medida em que queira ser a Igreja de Jacó, esteja em infindável temor perante Esaú e, depois de tudo haver feito para reconciliar-se com o irmão inamistoso, no final, pode apenas pelejar com Deus e com ele tem de lutar “até o raiar do dia”. (Gen, 32, 25). Esta é a grandeza da Igreja e também sua aflição que nunca pode ser suficientemente avaliada: a aflição a par da qual todas as demais tribulações que tiver são apenas quais folganças infantis.

O DEUS

DE

ESAÚ (9, 14-29)

Vs. 14 a 18 O que diremos pois? Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus? [Almeida escreve “injustiça divina”]. Impossível! Porquanto ele disse a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Portanto é assim: não vem do querer e do correr da criatura humana mas do Deus que se apiada. Porquanto a Escritura diz a Faraó: Foi por isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu Poder e para que o meu nome seja proclamado em toda terra. É pois, assim: ele tem misericórdia de quem quer e obstina a quem lhe apraz. “Não é isto uma iniqüidade da parte de Deus?” — “A Jacó amei, mas odiei a Esaú! [Esta] é uma verdade terrível e mais terrível ainda porque ela nos é apresentada claramente sem qualquer conotação psicológica!

539

9, 14-18

O Deus de Esaú

Quem é o Deus que assim nos fala, em cujas mãos é tão terrível cair, que lida com os seus dessa maneira e lhes prepara semelhante aflição? Quem é o Deus tão superno, que faz maravilhas, que não pode ser conhecido e em quem não pode ser crido senão pelo milagre da revelação e na transformação (pela mudança) da rejeição em eleição? Quem é o Deus que sempre se faz encontrável e que, por isso mesmo, quer ser sempre procurado? [quem é esse Deus] que por toda eternidade é o Deus de Jacó e, por isso mesmo é, a todo tempo, o Deus de Esaú? [Quem é] o Deus que de maneira tão absolutamente superlativa é, ele mesmo, a verdade a ponto de a criatura deste mundo não poder ter “certeza” dele? Quem há que não estremeça [ante essas considerações]? EST ENIM PRAEDESTINATIO DEI VERE LABYRINTHUS, UNDE HOMINIS INGENIUM NULLO MODO SE EXPLICARE QUEAT - (Calvino). Acaso não é evidente que este pensamento (de Calvino), sobre o qual nenhuma Igreja digna desse nome pode deixar de ponderar, é um ataque ao princípio fundamental de toda Igreja? Não é claro que ante a realidade desse Deus [que assim elege e rejeita] todas nossas abstrações ético-religiosas ruem por terra como se fossem esferas equilibradas sobre hastes pontiagudas, como casas e árvores representadas em pinturas futuristas? Acaso não são por demais compreensíveis as objeções que em todos os tempos o açodamento e o curto-fôlego eclesiástico-religioso levantam à doutrina da predestinação em nome da altamente ameaçada criatura humana? [Acaso] não é inevitável que do mais alto e mais destemido pináculo da fé humana sempre e sempre ressoe de novo a estulta pergunta (3, 5), se Deus não seria, ele próprio, “iníquo? Se ele não seria um demônio malévolo e caprichoso que nos faz parvos, a todos, um perturbador das normas da justiça [do direito] a que ele próprio deveria estar sujeito? Há algo mais revoltante aos homens do que esta potestade, majestosamente misteriosa, inescrutável, inacessível, intocável, que só ela é livre, só ela poderosa? Não estaríamos todos inclinados a clamar espontaneamente que semelhante ENTE não pode, não deve ser Deus? É certo que a Igreja não compreenderá [a natureza da] sua tribulação e não poderá transformar-se enquanto a ameaça dessa interrogação [sobre a iniqüidade de Deus], [ou a formulação] dessa queixa e dessa acusação não for entendida em sua inteireza. Sem chegar a esta pergunta, sem nos conscientizarmos da falência catastrófica de tudo quanto a criatura possa pensar sobre Deus e “fazer” por ele, não há conhecimento de Deus, nem consolo, nem socorro.

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O Deus de Esaú

9, 14-15

[A tradução inglesa escreve: “Em qualquer caso temos que admitir que enquanto a Igreja não reconhecer quão ameaçadora é a possibilidade dessas perguntas, dessas queixas e acusações, ela nem entenderá sua própria atribulação nem alcançará a transformação de sua miséria. É precisamente na possibilidade de semelhante interrogação que se revela a extrema impropriedade de toda noção que os homens têm de Deus e de tudo quanto podem fazer por ele. Não há conhecimento de Deus, nem consolo nem esperança, fora da catástrofe à qual essa possibilidade dirige nossa atenção]. Um Deus contra o qual não se levantasse esse clamor, não seria Deus. A este respeito cumpre notar que a característica da proclamação do Evangelho de Cristo, tanto no Antigo como Novo Testamento consiste no destaque dessa objeção e nisto o Evangelho difere de outras mensagens, mais baratas e agradáveis. Quando o assunto é tratado com seriedade, sobressai o escândalo da predestinação e o Deus de Esaú tem a palavra. Estas são coisas que Nietzche, em sua selvagem oposição a Deus, parece ter entendido melhor do que os irrefletidos crentes “diretos”, [quiçá os que se consideram em ligação direta e íntima comunhão com Deus-Pai] que ousam incriminá-lo por isso. Porquanto [está escrito]: “A Jacó amei, mas odiei a Esaú”. “Isto está em conformidade com outros episódios semelhantes, como [por exemplo], a coluna de nuvem que se pois entre exércitos de Faraó e Israel, e era escuridade para aqueles e luz para estes. Estas passagens têm dois lados: para aqueles que crêem, que confiam no amor de Deus, elas têm um sentido amorável, suave; porém aos que prefeririam poder contar com suas próprias obras elas são, francamente, qual nuvem tenebrosa. “Quanto mais duras essas proposições forem consideradas por alguém, tanto mais está essa pessoa absorvida por sua própria justiça; porém quanto melhor aceitarmos esse ensino, mais plenamente repousa nosso coração na graça divina”. (Steinhofer). A objeção [de que Deus é iníquo] é impossível por mais pertinente [mais verossímil] que pareça; por mais profunda que seja sua penetração na realidade [segundo o critério humano]. Esta objeção apenas pode ser levantada para imediatamente ruir sobre si mesma e assim, nesta emergência e pronta submersão, evidenciar que Deus é “aquele que é”: o Deus de Esaú, por ser o Deus de Jacó; ele é o Deus que gera a aflição porque traz o socorro; é o Deus que rejeita porque elege. Justamente por isso a crise não pode ser contornada nem se pode querer afastar o escândalo da coluna de nuvem de dois efeitos. Tratemos agora de como suportar esta crise.

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9, 15-16

O Deus de Esaú

“Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem tiver misericórdia! Portanto, não vem do correr ou do querer da criatura humana, mas do Deus que se apiada”. Deus, “iníquo”? Não, porém é sua própria norma! A justiça divina é justiça eterna! O amor de Deus é infinito, não finito! É disto que se trata. É exatamente este Deus que para a compreensão humana só poderia ser qualificado como “déspota” e contra cuja dominação o homem [sempre segundo o mundo] somente pode revoltar-se e a quem a criatura a preço algum chamaria [naturalmente seu] Deus, este é DEUS! O fato de os homens terem a Deus por [Senhor e dominador ou,] “déspota” [no dizer do Autor] (Luc. 2, 29 e Atos 4, 24 e seguintes) e assim o considerarem como pai amoroso, de o tratarem como o Deus de Esaú porque o consideram Deus de Jacó e assim o amam, isto se dá pelo conhecimento [que temos] de Deus, em Cristo, e não há caminho para nosso conhecimento de Deus que não esbarre no escolho dessa objeção. O Deus que pudéssemos conhecer em termos de grandezas condizentes com o entendimento humano ou como causa em uma série de acontecimentos, ou na forma de partido [ou parte] entre partidos, não seria o Princípio [o “Alfa”], o Absoluto, o Eterno, nem seria o Deus pessoal [personalíssimo de cada indivíduo], mas seria o Não-Deus [generalizado e comum ao mundo]; [este próprio Não-Deus] qual imagem e semelhança do Deus verdadeiro que nos leva (inevitavelmente) ao ponto onde a objeção tem de aflorar, aponta para além de si mesmo e se anula para a honra de Deus e de Deus somente. A vontade de Deus não consiste na aplicação e no acionamento de um bem superior que existisse (por assim dizer] acima de Deus [a tradução inglesa escreve “que existisse independente de Deus e ao qual fosse sujeito”l — porém o próprio Deus é a fonte e a sede de todo bem e de tudo que é bom. Somente se pode entender o bem [ou o que é bom] se [o evento] for entendido como [sendo] a vontade [ou da vontade] de Deus. [Os tradutores ingleses escrevem: “Sua vontade é (...)] a fonte e a sanção de todo bem, e é bom somente porque é o que ele quer] “ DEO SATIS SUPER QUE EST SUA UNIUS AUTORITAS; UT NULLIUS PATROCINIO INDIGEAT, por isso, FACIAM QUOD FACTURUS SUM; e (ainda]: HAEC DEO LIBERTAS ERIPITUR, UBI EXTERNIS CAUSIS ALLIGATUR EJUS ELECTIO. (Calvino). [As duas últimas citações de Calvino que o A. faz mostram o que o grande Reformador pensava a respeito das dificuldades que o ensinamento bíblico sobre a predestinação representa para o nosso entendimento: a rigor, é inútil tentarmos desvendar o seu segredo para expô-lo em palavras humanas;

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O Deus de Esaú

9, 15-16

Deus é sobremaneira excelso em sua exclusividade e não carece de nossa defesa para a justificação de seus atos; em sua liberdade ELE escolhe onde nenhuma razão existe para explicar a escolha a não ser sua própria vontade. Todavia, isto não significa que a eleição divina seja quantitativa nem que tenha sido imposta aos homens na origem dos tempos ou antes da origem da espécie mediante a destinação de uns para a vida e de outros para a morte ou de uns para a redenção e de outros para a danação, enquadrando-nos em destinos inamovíveis. É claro que poderia ser assim pois o barro não interpela o oleiro sobre a destinação que lhe deu; todavia “amei a Jacó e aborreci a Esaú” não significa que aquele será salvo e este condenado, mas diz muito claramente que a salvação é pela expontânea graça divina embora a manifestação da predileção de Deus por Jacó, ainda antes que os gêmeos houvessem praticado o bem ou o mal — pois nem haviam ainda nascido — possa, não sem razão, ser considerada como evidência da destinação “anterior” ao nascimento da criatura, quiçá, a “predestinação” eterna. Somente em Cristo se pode considerar o caso Esaú-Jacó como parábola típica do ensinamento sobre a salvação exclusivamente pela graça pois somente pela revelação de Deus em Cristo, pelo evangelho de Jesus é que aprendemos que o dom gratuito de Deus é a salvação de TODO AQUELE QUE CRER. Todavia, imediatamente surge a “parábola” de Esaú e Jacó como advertência para que ninguém pense que “por ter crido” e “porque consentiu em ser batizado” alcançou a redenção. Deus ESCOLHE a quem quer e a nós resta apenas observar que a Bíblia nos ensina que esta escolha é feita pelo que houver em secreto, em nosso coração; só ELE avalia, julga e aceita sem sequer sabermos que era bom o nosso tesouro. (“Senhor, QUANDO te vimos com fome”, com sede, estrangeiro ou nu e enfermo? — Mat. 25, 37 e seguintes). Por que haveremos de arrazoar? Acaso não aceitamos o paradoxo e não vemos nele a invisível Graça de Deus? Ora, O JUSTO VIVERÁ PELA Fé!]. O que faz de Moisés, o MOISES mensageiro e proclamador da aliança divina, da graça e do evangelho da redenção? — “Como será reconhecido que verdadeiramente achei graça perante ti, — eu e o teu povo — senão que andes conosco? E a resposta: — “Farei passar perante ti a minha glória com o meu nome, O SENHOR! Far-me-ei ouvir perante ti e me compadecerei de quem me compadecer e me apiedarei de quem me apiedar”. Lembramo-nos da continuação da passagem: “Não podes ver a minha face pois homem algum verá o meu rosto e viverá”. (Exo. 33, 16-20 Apud LXX).

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9, 16-18

O Deus de Esaú

É assim que Moisés se transforma em MOISÉS. A justiça de Deus É JUSTIÇA DE DEUS e de forma alguma é a retidão do homem que quer e corre. Nada se acrescenta à criatura que já não lhe pertença por direito humano mas Deus lhe dá (aquilo que dá) por compaixão e misericórdia; porque esta compaixão e misericórdia são genuínas e poderosas, ele é digno de nossa adoração como o fundamento de nossa esperança pois, [nessa atitude compassiva] ele é totalmente Deus; ou, em outras palavras, essa compaixão é livre, incondicional, [se origina e] repousa exclusivamente em Deus e somente por ele é dinamizada. De outro Deus que não seja este que direta e linearmente é entendido como sendo o Deus de Esaú e que, todavia, cm autêntico milagre é também o Deus de Jacó, a Igreja que vê sua esperança em sua própria aflição, nem sequer deve querer cogitar. “Foi por isto que te levantei, para em ti evidenciar o meu poder e para que meu nome seja proclamado em toda terra; portanto, tem misericórdia de quem quer e obstina a quem lhe apraz”. Perguntamos ainda uma vez: E Deus “iníquo”? Novamente respondemos: não! Como o seria ele, [como poderíamos julgá-lo assim] se não medimos sua ação segundo nossa conduta e nossa expectativa (antes pelo contrário!) temos de reconhecer que ele segue sua própria norma, que é invisível para nós?! Como chegamos a reconhecer isto? Reconhecemos isto quando percebemos que nem sequer poderíamos ter feito esta pergunta louca, que cai tão longe de seu alvo; que não nos seria, sequer, possível protestar contra a realidade visível do Deus de Esaú, nem pedir socorro ao Deus de Jacó e clamar pela sua revelação se, além da única visão que agora e aqui temos de Deus, não brilhasse vitoriosamente a luz original do Criador e Redentor. Se, porém, a realidade de nosso protesto contra a inegável condenação direta nos recordar [que ele é feito] segundo nossa própria justiça, que [todavia] se trata de procedimento divino, então pode acontecer que sintamos o imperativo de adorar e honrar a Deus na sua visibilidade, como o Deus de Esaú; como o Deus que gera as aflições e que condena; talvez então agarremos e seguremos a mão que fustiga e assim encontremos muito mais: encontremos o Deus de Jacó, o Deus que traz o socorro, o Deus que elege. De que outra maneira queremos entender o Deus de Jacó, se não curvando-nos ante o Deus de Esaú? Como compreender a nossa eleição a não ser mediante a transformação de nossa rejeição? Moisés, colocado na fenda da penha somente pôde ver Deus pelas costas, depois dele haver passado, (Exo. 33, 21 -23). Vê-lo de outra maneira significaria a morte.

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O Deus de Esaú

9, 17-18

O que a Igreja Triunfante designou por “Deus” jamais foi, verdadeiramente, Deus. A Igreja que sente sua tribulação, que sabe que em toda extensão de sua realidade histórica ela é rejeitada por Deus e que [todavia] se prende, se agarra a este Deus terrível porque, apesar disso, ele é Deus, tal Igreja tem por Deus, o Deus vivo: o Deus que muito acima de tudo mais e de forma totalmente diferente, pode eleger e elegerá! Não somente Moisés foi “levantado” por Deus na invisibilidade do seu munus de Homem de Deus, mas também o foi Faraó em sua função de opositor de Moisés. Nesta predestinação para a obstinação Deus não tira de Faraó a mínima partícula daquilo que lhe cabe segundo a Justiça humana. Do ponto de vista humano Moisés não tem qualquer vantagem decisiva sobre Faraó. Ambos estão evidentemente sob a mesma mão dura, a mesma mão sob a qual já antes estiveram Esaú e Jacó. Moisés poderia estar no lugar de Faraó e Faraó poderia ser Moisés. Humanamente, a figura Esaú-Faraó é mais fácil de compreender que a de Jacó-Moisés porque, quando mencionamos Moisés, o eleito, não nos referimos ao Moisés visível [humano] a quem o Faraó visível se opõe com a vantagem de certa grandiosidade trágica em sua obstinação quando confrontada com suas fraquezas humanas, seu insucesso e seu amargo fim. Invisivelmente [isto é, sem considerações de ordem material] é paradoxal o confronto [de Moisés] com o Faraó rejeitado e também é paradoxal o confronto entre as duas “personalidades”. A rigor vale o INEFFABILE EST INDIVIDUUM. Neste episódio não há qualquer classificação ou diferenciação e nele cai por terra a conhecida (e por demais conhecida) teoria de que a pessoa tem duas almas [que se opõem] (e por que não tem três ou mais?) — Aqui se trata de qualidade que, de forma alguma, pode ser qualificada psicologicamente e que, portanto, não pode ser atribuída a um ou outro. Os predicados de “Eleito” — aplicado a Moisés — e de “Rejeitado” — atribuído a Faraó — são absolutamente escandalosos, são contra-senso e não encontram apoio. Esta qualificação acontece [e só pode acontecer] na liberdade de Deus e no milagre de sua revelação; é nesta revelação que, este como Eleito e aquele como Rejeitado, devem [ambos] servir “para que em ti eu testifique meu Poder e que meu nome seja proclamado sobre toda terra” (Exo. 9, 16); [meu Poder, isto é] minha “VIRTUS” e efetiva excelência ante todos os deuses (1, 16). O propósito da rejeição de Faraó poderá ser, e de fato é, o mesmo da eleição de Moisés. Eles não são SENHORES mas SERVOS; são servos da vontade de Deus que, aqui em seu “sim” e acolá em seu “não”, aqui em sua

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“misericórdia” e acolá no “endurecimento”, resguarda e comprova sua glória invisível e se serve de um e de outro, do bom e do mau. A pessoa “endurecida” é o homem visível [o homem deste mundo] que como tal, em seu fundamental afastamento de Deus, não conhece o arrependimento nem pode praticar atos dignos dele. E quem de nós sabe o que é arrependimento, para nem sequer falarmos de atos dignos dele? Este é o nosso endurecimento, [a nossa obstinação]. A criatura de quem Deus tem misericórdia, [ou talvez devêssemos escrever “a criatura que usufrui da misericórdia divina] é o homem invisível [espiritual], no milagre da plenitude de sua unidade com Deus; é a nova criatura, que é a obra divina realizada no arrependimento. Quem haveria de ser excluído dessa obra divina? Esta é a misericórdia sob a qual estamos. Como poderia Deus, agora e aqui, falar conosco senão pelo rude desnudamento deste contraste? E como poderia este tão grande contraste ser fundamentado senão neste único Deus em quem também se oculta a sua supressão? Deus quer; Deus tem misericórdia e endurece: Ele! Este “ELE” é a tribulação da Igreja, cuja obra humana jamais pode ser a obra dele; todavia, “ELE” é também a esperança da Igreja para além da tribulação e isto com tanta certeza quanto a genuflexão perante ELE é o ponto final da obra humana. Se a Igreja, embora querendo ser totalmente MOISÉS (e qual a Igreja, mesmo a mais minúscula, que não o deseja?), reconhecer e considerar que ela é [na realidade], FARAÓ, que é a Igreja de Esaú, então pode acontecer que se tenha formado o ambiente para se dar o milagre absoluto e que, justamente por este seu reconhecimento e por seu anseio de ser [efetivamente] MOISÉS, ela possa ser a Igreja de Jacó. Vs. 19 a 21 (Um episódio [uma digressão]). Sendo assim, o que tem ele a censurar pois quem haveria de resistir à sua vontade? Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus? Acaso pode a obra feita perguntar ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o oleiro poder sobre a argila para, da mesma massa, fazer um vaso para adorno e outro para a imundícia? [Parece-me que na maneira de redigir do A fica mais evidente do que na tradução de Almeida, que a objeção ao direito da censura a Deus está vinculada à sua absoluta liberdade de eleger e rejeitar, de ter misericórdia de quem quer e de endurecer a quem lhe apraz].

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“Neste caso, o que tem ele a censurar, pois quem haveria de resistir à sua vontade?” (Almeida escreve: “Do que se queixa ele?”] Já conhecemos esta aproximação, [este tipo de conversa] (3, 8; 6, 1 e 6, 15) [Ora], nenhuma ação humana contribui para o triunfo, para a vitória de Deus; [qualquer que seja nossa reação ou nossa atitude, ela não constituirá nem empecilho, nem contribuirá para a promoção dos desígnios de Deus]. Concluir-se-ia, pois, que ante a absoluta liberdade de Deus e considerando que só ele é Todo-Poderoso e, mais ainda, que o ser humano não tem qualquer responsabilidade e, [finalmente], como o pecado é sobrepujado pela universalidade da graça divina, então a criatura humana pode praticar, livremente, tanto o bem quanto o mal? Esta conclusão surge infalivelmente sempre que se meditar seriamente sobre a eternidade ou sobre o pensamento de Deus, todavia, quando esta indagação surgir precisamos conduzir-nos com tremor e temor porque estaremos fitando a sarça ardente, estaremos próximos de Deus; contudo a Igreja não pode deixar de levar essa indagação a sério por considerações de ordem humana pois, de outra forma, [as pessoas que tomarem essa objeção por válida] poderão ser conduzidas à loucura, à imoralidade, ao crime e ao suicídio. [Se a Igreja objetar a essa indagação,] colocará em jogo a sua própria existência como fator [de moderação e de sal da terra] na sociedade e no mundo. As coisas mais absurdas que podem acontecer e têm ocorrido no contexto da proclamação evangélica, justamente nos seus pontos mais altos, não testificam contra a verdade [anunciada] mas contra a criatura humana que não consegue suportá-la. Naturalmente (quando dizemos “criatura humana”) referimo-nos a todos os homens e não a uma ou outra pessoa que em virtude de sua força ou sua fraqueza tenha sentido no próprio corpo, de maneira clara e especial, quão insuportável é a verdade; (portanto, não é apenas contra Nietzsche), porém e contra a sociedade e contra o mundo cujas organizações parecem esfacelar-se [ou desconjuntar-se] quando a ordem divina acaso se aproxima delas. O desfecho do “Idiota” de Dostoiewski ou o fim de um Hoelderlin ou Nietzsche, a inevitável catástrofe de todos “BATIZADORES” (MuckLamberty!), apenas tornam consternadamente claro que a criatura, em sua presumida opulência, sua sanidade [e saúde], sua retidão, precisa morrer, [precisa desaparecer] perante a verdade. As pessoas [que sentem o problema da eternidade de forma crucialmente pessoal] são quais parábolas [para observação e ensino] indicando aos demais que talvez tenham sido poupados de tão grande tentação e conseqüente queda,

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o quanto a criatura está enferma [e fraca] perante Deus, embora esse resguardo, provavelmente, não contribua para a celebridade deles. [A tradução inglesa escreve: Os sofrimentos de tais pessoas, em todo caso, mostram quão grande é a enfermidade de que os homens sofrem nas mãos de Deus]. [Em nota de rodapé a Edição Inglesa explica que... “Muck-Lamberty” foi um escândalo religioso que surgiu entre “Movimento de Juventude” na Alemanha de após a primeira guerra mundial. Hoelderlin foi poeta alemão que faleceu sofrendo das faculdades mentais, em estado de infantilismo, (apud Delta-Larousse). Nietzsche terminou seus dias, também, transtornado mentalmente e sentindo extrema solidão]. O que acontece com tais pessoas é prova inconfundível de quanto a criatura humana está enferma em Deus. Todavia não é o caso de fugir da doença (de que todos sofremos) por medo dos sintomas; [afinal], as mais pavorosas aberrações e os destinos trágicos de uns poucos ou de muitos, nada mais são do que sintomas. Não é o caso de contornar a aludida objeção ou de não meditar seriamente sobre o pensamento de Deus. Apenas podemos praticar efetivamente o amor ao próximo mediante o amor a Deus, mas este amor a Deus não nos permite calar a respeito do temor que a ele devemos, nem por medo dos homens nem para lhes sermos agradáveis. Parece-nos que agora entendemos o perigo que representa a restrição [... “neste caso, o que tem ele a censurar?”]. Vemos esse perigo porque fracassamos e sempre fracassaremos de novo se quisermos falar da liberdade, do poder e da graça de Deus de tal maneira que de nosso discurso resulte um maior e melhor conhecimento de Deus e não uma erupção [violenta] de nossa própria prepotência. E porque é notório que fracassamos sempre [quando queremos arrazoar a respeito da liberdade, do poder e da graça de Deus nos têrmos da objeção formulada], não nos podemos conformar com o sacrifício que a via indireta da verdade sempre exige: a renúncia a toda argumentação lógica e insubmissa. Esta renúncia se impõe mais fortemente justamente quando meditamos sobre os pensamentos de Deus com seriedade absoluta. Fica, portanto, fundamentalmente assentado que a objeção levantada não corresponde à verdade e, por isso, deve ser rejeitada. Vamos, porém, elaborar essa rejeição, mais uma vez. ([Para as anteriores ver] 3, 5s; 6, Is; e 6, l5s). “Ó homem! Quem és tu que queres replicar a Deus?” O homem! Com isto já está dito o que se poderia dizer contra essa objeção que ignora a infinita diferença qualitativa que existe entre Deus e os homens. Essa crítica ajuíza entre o Criador e a criatura como se fosse entre coisas iguais;

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ela fala de um Deus ao qual o homem se opõe com as objeções de um parceiro, ainda que da parte mais fraca, imediatamente vencido, todavia, com o direito imediato de exercer essa oposição. Essa objeção admite, senão total, quase totalmente que a ação humana é conseqüente da vontade de Deus, isto é, ela subentende que aquilo que o homem fizer está em relação a Deus em termos de causa e efeito. Ora, isto é improcedente. O que o homem faz não pode ser relacionado com a vontade divina nem como causa nem como efeito. Não existe nenhuma relação direta, visível, entre a responsabilidade humana e a liberdade de Deus mas apenas o relacionamento indireto, inderivável, irrealizável, entre o temporal e o eterno, entre Criador e criatura. A liberdade de Deus com relação à criatura humana não é mecanismo que, de fora, impulsione os homens nem é a força geratriz (ou criativa) da vida (ver 1ª Edição deste livro!) porém é a genuína origem da criatura; a liberdade de Deus é a luz na qual os olhos da criatura brilham e sem a qual se obscurecem; ela é o infinito a cuja dupla dimensão o ser humano é grande ou pequeno; ela é a sentença do juiz pela qual o homem permanece em pé ou cai. Pelas suas próprias ações o homem não pode, nem diminuir nem aumentar, nem promover nem reter a liberdade divina. Esta possibilidade está tão fora de cogitação pois é justamente no relacionamento indireto da própria liberdade do ser humano com a liberdade de Deus que se fundamenta e está garantida a relativa necessidade, a relativa seriedade e a relativa ordenação dos homens. É o conhecimento da Liberdade de Deus, de seu Poder e de sua Graça, que mantém a criatura “nos trilhos” porque este conhecimento está inextricavelmente interligado com o reconhecimento de que o ser humano é homem e não Deus! É Justamente a pessoa que respeita a Deus como Deus, que não terá motivos para essa objeção; tal pessoa nem temerá nem desejará a supressão de sua responsabilidade; ela não enlouquecerá nem se tornará imoral, criminosa ou suicida. E se [acaso] ela vier a ser uma destas coisas ela não as erigirá em “sacramento” (Blueher) mas, mui possivelmente [as tomará] como sinal de advertência — (qual Raskolnikoff, de Dostoiewski!) [em Crime e Castigo] — da possibilidade de entendermos mal o mandamento que nos diz que a verdade final consiste em temer e amar a Deus sobre todas as coisas; será [talvez] um memento de quanto, para nós, o respeito a Deus é uma novidade que tudo [revoluciona e] põe por terra; do quanto somos incapazes de vigiar com Cristo por uma hora, ao menos; de como nos é difícil suportar o paradoxo de nossa existência sem recorrer a toda sorte de titanismo [de heroísmo e de grandiosidade humana], para a satisfação de nossa sede de equilíbrio.

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[Blueher, (Hans) foi um dos líderes intelectuais do “Movimento da Juventude alemã”, após 1928; em 1921 publicou um tratado sobre o comportamento da sociedade masculina, defendendo o suicídio como “sacramento”. Aderiu ao nazismo no tempo de Hitler]. A pessoa que percebe que Deus é a aflição daqueles que a ele pertencem, sabe que, em qualquer caso, tanto em sua moral quanto em sua [eventual] amoralidade ela é digna de censura e se opõe à vontade de Deus (9, 19); ela sabe que para ela não há qualquer compensação e que ela não encontra pretexto, nem em sua moral nem na amoralidade para replicar a Deus, para pretender ter razão perante ele e assim se eximir dessa aflição. Tal pessoa levará essa atribulação muito mais a sério e dessa maneira fundamentará a conscientização de sua responsabilidade. “Estas coisas não são ditas para que, pela dureza de nossa cerviz e nossa indolência ponhamos em cheque o Espírito Santo — que nos deu um pequeno lampejo de sua luz — mas para que entendamos que aquilo que temos, dele recebemos e para que aprendamos a procurar tudo nele, a esperar nele, a nos reconsagrarmos a ele e a prosseguirmos ao encalço de nossa salvação com temor e tremor”. (Calvino). “Acaso perguntará a obra ao mestre: por que me fizeste assim? Acaso não tem o oleiro poder sobre a argila para da mesma massa fazer um vaso para o adorno e outro para a imundícia?” Esta é a situação do homem perante Deus. Prossigamos agora analisando o problema tomando por base a conhecida parábola profética (Isa. 29, 16; 48, 9; 64, 7; [e também nos apócrifos, o livro de] Sabedoria 15, 7). Como [interrogará] a obra ao artista e o barro ao oleiro? Quem ousa falar ainda em dois parceiros, de dois elementos de uma série (como causa e efeito)? Aqui, o artífice com sua intenção; acolá o material de que se serve e ali o produto acabado. Daqui para ali, do oleiro ao barro, do artista à obra, não há ponte de ligação, não há continuidade, O “aqui” e o “acolá” representam diferença qualitativa que é incomensurável, infinita; [diferença que], embora expressa com certa impropriedade, implica em relacionamento indireto, invisível, entre o “aqui” e o “ali” (ou que [por outras palavras] é uma parábola de tal relacionamento!). A despeito de tudo quanto se puder dizer sobre a natureza do material, sobre a utilidade [do produto], sobre a disposição, o conhecimento e o êxito do artífice ou ainda sobre a seqüência que deve ser seguida no processo, [sobre como proceder] de passo a passo e de etapa a etapa (conforme a 1ª Edição deste livro!) — [Sim, a despeito de tudo quanto se puder dizer] a fim de esclarecer que o mesmo material trabalhado pelas mesmas mãos tanto pode vir a ser um

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vaso de flores quanto um urino] — (que a liberdade do artista para decidir entre este e aquele produto não se prende a concatenações de causa e efeito,) — do ponto de vista da “matéria prima” e do “produto” continua faltando a explicação do “por que” de cada decisão. Assim, o homem e Deus. Deus está perante o homem como ORIGEM e não CAUSA. Se o homem for justo, ele o é para Deus; se pecar, peca contra Deus. Se o homem viver, vive na participação da vida divina e se morrer é porque a criatura precisa morrer em Deus! Na sua existência e no seu modo de ser a criatura não é apenas condicionada mas, juntamente com tudo [ou todas as coisas] que a condicionam (e que esse conjunto fosse um “Deus”), a criatura é (ou seria) um ser criado. A parábola [a analogia] do “Artífice e da Obra” ou do “Oleiro e do Barro”, naturalmente não se estende a este “CRIAR”; todavia, aponta para ele. A criatura humana está perante Deus como a realidade ante o irreal; como o “SER” ante o “NÃO SER”. Qualquer argumentação sobre a justiça e sobre a liberdade da criatura pode, quando muito, adiar o enfoque do problema da origem, da justiça e da liberdade de Deus; o problema do começo e do fim, da criação e da redenção. A ponderação sobre a predestinação significa a renúncia fundamental dessa procrastinação e ela se impõe forçosamente quando Deus é reconhecido como DEUS perante todo o SER, o TER e o AGIR da criatura humana. Deus precisa ser compreendido como o Deus de Jacó E o Deus de Esaú; de outra forma não ficaria claro como, em toda temporalidade, ele é o Deus de Esaú e, na eternidade, é o Deus de Jacó. Como porém, se imporia mais vigorosamente a idéia da responsabilidade individual do ser humano (que a objeção (9, 19) teme ou deseja), do que pela “assim chamada” relatividade (correlação!) do ser humano perante Deus? Vs. 22 e 23 (Voltemos ao ponto central:) Se pois, Deus com grande paciência suporta os vasos da ira, consagrados à perdição, com o intento de evidenciar a sua ira e revelar o seu poder mostra também a riqueza de sua glória nos vasos da misericórdia, que preparou para a glória? [A tradução de Almeida escreve: “Que diremos pois, se Deus querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos da ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas de sua glória em vasos de misericórdia que para a glória preparou de antemão?”]

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O Deus de Esaú

Por que é Deus, o Deus de Esaú e de Jacó, o Deus iroso e misericordioso? Sabemos que assim perguntando estamos agindo infantil e mitologicamente, pois em Deus não existe a conjunção “E”, não há duplicidade, mas ampla supressão do “primeiro” pelo “segundo”. Deus é o UNO Deus de Jacó, para todo sempre, que se revela como o Deus do gênero humano. Todavia, podemos compreender que não podemos entender a Deus, senão na dualidade dialética pela qual “um” tem de se transformar em “dois” para que “dois” seja verdadeiramente “um”. Quando Deus se revela à criatura — a esta criatura deste mundo — ele precisa antepor-se a ela como o Deus que a aborrece, como aquele que revela sua força irresistivelmente, isto é, Deus revela inevitável e inexoravelmente à criatura que ele não é semelhante a nenhum dos deuses que o homem adora, ainda que o adorado seja o “Deus Altíssimo”. Quando a criatura humana recebe a revelação de Deus ela não pode mais ser outra coisa senão um “vaso de ira” incapaz de obedecê-lo e compromete a Deus em tudo quanto fizer e nada mais sabe, senão que tem de morrer em Deus. Não seria o caso de que os verdadeiros homens de Deus foram tais precisamente porque reconheceram que eram vasos preparados para a destruição? Precisamente porque perceberam que nenhum homem, como tal, é Justo, que suas vidas são desprezíveis, (Exo. 4, 24-26) e que este mundo é passageiro? Acaso temos outra esperança fora do conhecimento de nossa atribulação, [fora da consciência de que] como criaturas humanas apenas podemos ser e receber o lado negativo da revelação divina e que, neste mundo, apenas poderemos conhecer o Deus de Esaú? Todavia, [dentro dessa revelação em que nos defrontamos com o NÃO divino] Deus dá-nos também, na totalidade de nossa natureza de criaturas humanas, o amparo do “NÃO-OBSTANTE” do Criador, com o qual [ele anuncia] o perdão que encobre toda nossa pecaminosidade (lembrar o “Kapporeth”— 3, 25). Mediante este NÃO-OBSTANTE ele se apresenta à suas criaturas mostrando as riquezas de sua glória e a sua Verdade infinitamente superior e vitoriosa. Nesta concessão ele se revela o Deus compassivo e misericordioso, o Redentor dos homens e, quando o ser humano recebe esta revelação de Deus, passa a ser o “Vaso da Graça”; dá-se então o milagre absoluto e seus olhos se abrem, ele se põe em arrependimento e já é a “Nova Criatura”; na dureza divina ele reconhece o amor de Deus e passa a amá-lo; vê no evangelho a alegre nova a despeito, ou melhor, por causa do ilimitado escândalo que lhe traz o fato de ele haver lutado com Deus, com o Deus de Esaú, e de haver prevalecido como Jacó, como Israel.

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Ante a aflição que Deus preparou para Jacó, Moisés, Elias, não se pode, em verdade, deixar de considerar que do ponto de vista humano, os seus opositores Esaú, Faraó, Acab, escolheram a melhor parte. [Todavia], este Deus é o escudo, o grandiosíssimo galardão, eternamente. [Gen. 15, 1]. Mas, se o processo da revelação deste Deus único partir sempre daquilo que é temporal para o eterno, da rejeição para a eleição, de Esaú para Jacó, de Faraó para Moisés? Se a existência dos “Vasos da ira” (que todos somos na temporalidade) for a expressão da contenção e tolerância divinas, (3, 25-26), se for o véu da grande longanimidade (2, 4) e paciência de Deus, atrás do qual a existência dos “vasos de misericórdia” (que todos somos na eternidade!) está apenas encoberta mas não perdida? E se a pessoa de Esaú, votado à perdição (à qual também Jacó pertence!), tiver de suportar sempre a ira de Deus apenas como substituto para que a pessoa de Jacó, que foi preparada para a glória (à qual também Esaú pertence!), tenha acesso à justificação de Deus, que existe oculta na ira e dela emerge? Incompreensível e temível é este processo da revelação que tudo abrange e tudo suprime! Incompreensível e temível é este ocultamento do verdadeiro SER, atrás da [própria] existência! Incompreensível e acima de qualquer imaginação é este irrompimento da justificação divina através de toda injustiça e retidão humana! Mas... se for assim? Se este processo for conforme a vontade de Deus para conosco? Então, onde fica a nossa pergunta infantil, mitológica, sobre a razão de Deus querer esta dualidade? Vs. 24 a 29 Como tais, ele também nos chamou, não só de entre os judeus mas também de entre os gentios. Conforme ele diz em Oséas: eu chamarei para meu povo o que não era meu povo e os que não foram amados para serem amados. E acontecerá que no local onde lhes foi dito: Não sois meu povo! serão chamados filhos do Deus vivo. Isaías, porém, lamenta Israel: ainda que o número dos filhos de Israel fosse como a areia do mar, apenas um remanescente será salvo! Porquanto o Senhor permitirá que na terra haja um corte e uma redução nas palavras da profecia! E conforme Isaías já havia dito anteriormente: se o Senhor Jeová não nos deixasse sobrar uma semente, ter-nos-íamos tor nado como Sodoma e seríamos semelhantes a Gomorra. Mais atrás perguntávamos “mas... se”! Todavia não queremos perguntar “SE”! [Não temos dúvidas], antes dizemos que É ASSIM, pois este processo da revelação se decide com precisão em Cristo; e nós, os “vasos da ira” na

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O Deus de Esaú

temporalidade, somos na eternidade — e por isso mesmo muito mais e de forma totalmente diferente — os “vasos da misericórdia”. [A tradução inglesa escreve: “Dissemos ‘se’; mas não queremos dizer isso porque não há dúvidas a esse respeito. O processo da revelação, em Cristo, é decisivo. Na temporalidade somos ‘vasos da ira’; na eternidade não somos apenas algo mais, mas coisa absolutamente diferente: somos “vasos da misericórdia!”]. Na qualidade de chamados [eleitos] de Deus, maravilhosamente salvos, estamos além de toda materialidade de nosso SER visível. O milagre absoluto aconteceu: somos a igreja de Jacó; somos a comunidade dos Eleitos. Quem... “Nós”? Não são “estes e aqueles”. Não se trata de congregação numericamente instável; não é algum NUMERUS CLAUSUS, sobretudo, não é NUMERUS; não é o Israel visível, como tal. O fato de ser Deus que ama, que elege, que se compadece, significa a supressão de todas divisões [e separações] que podem e precisam existir entre os homens. É apenas a Igreja de Esaú que precisa refazer sempre os muros que segregam Israel de Edom, os judeus dos gentios, os crentes dos incrédulos. No instante eterno quando, em Cristo, irrompe a Igreja de Jacó, as paredes divisórias são lançadas por terra, o “gentio” Esaú entra no serviço do Senhor e, juntamente com as hostes que estão de fora, passa a participar da promessa divina. Quando é Deus que ama e que se compadece (Oséas 2, 23 e 2, 1) o exterior passa a ser interior, o remoto fica próximo, o que não é amado passa a ser amado, o local da rejeição passa a ser da aceitação. Contra a Igreja segura de si mesma, feliz com o que possui e consciente do que tem, levanta-se a voz de Isaías a respeito do mistério da dupla predestinação, clamando que o judeu Jacó, como tal, não é necessariamente um servo de Deus — e proclama isto com todo desamor que se impõe quando tratamos do amor de Deus como palavra de julgamento ou como palavra profética; e quem há que possa separar entre uma e outra na passagem de Isaías 10, 22-32? Quando é Deus que ama, que elege e que se compadece, quem há que, estando do lado de dentro, tenha a certeza de, na realidade, não estar de fora? Qual a promessa que não corre o risco de ser automaticamente podada e reduzida, segundo a verdade de quem a fez? Qual a grandeza de retidão humana que não possa ser condensada no invisível e impalpável “resto” e na “semente” a que pertencem os justificados perante Deus? [Ou então,] qual a Jerusalém que está a salvo do risco de já amanhã, ou ainda hoje, ser transformada em Gomorra, se não estiver garantida pela graça do Deus que julga? (Isa. 1, 9).

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A Tribulação da Igreja

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A Igreja de Esaú, a nossa, a Igreja que conhecemos, está sobre o fio de navalha, à borda do precipício, porque o seu alvo, a sua meta, o seu Sião e a sua promessa é justamente a Igreja de Jacó; porque ela tem que se haver com o Deus Vivo; porque ela é povo deste Deus. Não há outra certeza além daquela que Deus tem [ou oferece] em si mesmo, pois é incerto todo saber afora o conhecimento de Deus e nosso desconhecimento. O próprio Deus é desconhecido fora da revelação que ele mesmo nos dá em Cristo, como sendo o Deus Desconhecido. Esta é a aflição da Igreja. Comentários: 9, 1-29 O problema da predestinação tem sido abordado reiteradamente no correr desta obra e o será, por diversas vezes ainda, até o seu final; nem pode deixar de ser assim pois a predestinação é o processo segundo o qual Deus se revela aos homens como o Deus da Justiça e Amor. (O A. diz, literalmente, que a predestinação é a “caminhada” — ou o “caminho” — de Deus para sua revelação). O conceito geral sobre a predestinação conforme esboçado nas diversas notas até aqui introduzidas, parece-me corresponder ao pensamento de Barth conforme o encontrei e entendi, não somente na “Carta aos Romanos” mas também na “Dogmática”. É certo que nossa compreensão é influenciada pelo nosso modo de sentir e pensar, tanto mais quando a exposição interpretada vem (ou nos parece vir) ao encontro de opiniões ou conclusões anteriores, confirmando-as. Portanto é justo que além das reservas que o leitor já tenha feito aos conceitos emitidos, ele aponha reservas ainda maiores, para escrutar cuidadosamente as observações que lhe pareçam apressadas ou até “desiderativas”; pode também acontecer que os pesquisadores mais profundos as considerem por demais singelas, super — simplificadas. Será, sem dúvida, assim. Como poderemos falar com propriedade daquilo que é de Deus? Neste capítulo 9 o A. volta redundantemente ao tema; todavia, não com o objetivo imediato de estudar a doutrina da predestinação, propriamente dita, mas para analisar o processo pelo qual Deus se revela aos homens. Se retiver-mos em mente este objetivo fundamental do A., serno-á fácil entender que o exemplo do Oleiro, do Barro e do Vaso não se

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A Tribulação da Igreja

refere à destinação do vaso mas à liberdade de Deus. Deus é, efetivamente livre e pode agir conforme a sua vontade. (Nem precisaríamos dizê-lo...). Deus afirma e reafirma constantemente esta sua liberdade soberana. Ela esta profusamente repetida na Bíblia desde “NO PRINCIPIO CRIOU DEUS”, até o “CERTAMENTE VENHO SEM DEMORA”. Pode, portanto, eleger, justificar, rejeitar e condenar conforme lhe aprouver. Todavia não é disto que se trata quando a passagem bíblica fala do endurecimento de Faraó perante Moisés e do amor de Deus a Jacó em contraposição ao ódio a Esaú. O que Moisés e Faraó, Esaú e Jacó, assim como Davi e Golias, Samuel e Saul, Elias e Acab, João Batista e Herodes, Paulo e Saulo — e quantas antinomias quisermos achar — evidenciam e não só as antinomias mas os caracteres típicos quais um Pedro ou um Judas, é que Deus julga segundo aquilo que houver no íntimo do coração quer seja tesouro aí escondido, mediante a inspiração do Santo Espírito, quer seja a cultura da semente lançada pelo Espírito das Trevas. A decisão, porém, se dá em Cristo! Teria Elias sido “cristãmente” superior aos sacerdotes de Baal? Elias deu o seu testemunho; mostrou o poder do Deus Altíssimo. Depois deu largas ao deus de sua imaginação, “aproveitou” o impacto e trucidou os seus opositores. E o que aconteceu? Sentiu-se inseguro e foi esconder-se; e o que fez Deus então? Convocou o profeta à sua presença mas não se manifestou nem na tempestade, nem no terremoto, nem no fogo mas no cicio tranqüilo e suave, (I Reis, 19,9.14). Teria Elias aprendido a lição? Todavia Deus o utilizou para outra tarefa. Deus é soberano e lê os corações Deus, em sua liberdade, se revelou a Elias quando este viveu a sua própria incapacidade. Moisés teve de sentir que nada valia por si só, quando sua mulher o chamou de sanguinário. Jacó teve de lutar com o Deus da ira para sentir sua própria carência. Pedro teve de ouvir o cantar do galo para esvaziar-se de si mesmo e voltar ao redil. E quem não voltar? De Acab os cães lamberam o sangue; Faraó foi vencido pelas ondas do mar; Judas enforcou-se. Seria Deus o responsável pelo destino destas vidas? Repetindo Barth, a pergunta é infantil e muito lógica. Talvez devamos dizer que ela é sacrílega!

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A Tribulação da Igreja

9, 1-29

“Deus é a fonte de todo bem e dele não procede mal algum”. Deus se revela aos homens mostrando o seu poder na dupla predestinação feita na eternidade, antes — muito antes de existir o mundo e de haver sido criado o homem à imagem e semelhança de Deus. E dizemos “antes — muito antes “ porque o mundo e o universo são mensuráveis, ainda que a medida seja em bilhões e bilhões de anos-luz; porém Deus é eterno e a eternidade não é comparável com o que é material por maior que a materialidade seja. Esta dupla predestinação se decide em Cristo — “Quem crer já está salvo; quem não crer já está condenado. (João 3, 18). É na dupla predestinação que a criatura humana se defronta com a Justiça e o amor de Deus. E por ela que Deus “se justifica” ao condenar e ao salvar; ao rejeitar e ao perfilhar. A dupla predestinação é a lei divina que a mente humana pode compreender. Deus rejeita o ímpio que é impuro em seu coração e aceita o justo que é puro em seu coração. Impuro? Puro? Quem há que não seja impuro, e quem há que seja puro? É novamente pela graça de Jesus Cristo, que levou sobre si a nossa impureza. E só em Cristo, (pela fé na graça de Deus) que o salmista podia orar a Deus suplicando a purificação de seu coração. É somente pela graça de Cristo que nos podemos aproximar de Deus clamando ABA, PAI. Que mais podemos dizer? Dizer muito é demais e dizer pouco é de menos. É bastante, pois, que conheçamos de Deus o que ele de si revela na sua rejeição e na sua justificação, que é segundo nossa fé que, por sua vez, se fundamenta na fidelidade de Deus, comprovada em Jesus Cristo, o Filho Unigênito de Deus que tira o pecado do mundo.

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Capítulo X

A CULPA DA IGREJA Este capítulo foi subdividido pelo A. em duas partes: • A Crise do Conhecimento - 9, 30 a 10, 3 • A Luz nas Trevas - 10, 4 a 10, 22. A análise que Barth faz da primeira parte do capítulo mostra a Igreja em círculo vicioso: sua missão é promover o entendimento (o conhecimento) de Deus; ao desempenhar-se de sua incumbência ela cria a comunidade religiosa e esta — a igreja visível — substitui o Deus que a Igreja anunciou e anuncia, pelo Deus “conhecido”, o Deus imagem, o Deus criado segundo critério humano. Então se manifesta a falha, da Igreja: a ausência de Deus: Ora, a Igreja sabe que não tem o Deus que anuncia. Sabe que não faz a adoração que quer e que deve, antes pratica a que não quer; não dá legitimamente a Deus o que é de Deus: deixa levar-se por influências e respeitos humanos; não consegue esquivar-se totalmente (e muitas vezes nem um pouco sequer) das glórias transitórias que o mundo lhe proporciona e nem sempre resiste a tentação de ser ela própria o lenitivo que o mundo espera, o descanso para as almas! Em seu diligente cuidado de servir a Deus e salvar as almas, a Igreja ensina, dogmatiza disciplina, exclui, anatematiza e ora se separa do mundo, daqueles que não têm a lei, ora se identifica com ele “para tornar a graça redentora mais acessível” aos homens. No anseio louvável de cumprir o seu dever, em seu diligente cuidado de servir a Deus e salvar as almas, em seu zelo por Deus e pelas coisas sagradas, corre a Igreja empós a justificação divina e não a alcança porque a justificação não é alcançável mas nos é dada de graça mediante a fé. Tudo isto a Igreja sabe; sabem-no os seus membros, esclarecidos pelo ensinamento ministrado pela Igreja, sabem-no seu oficiais, seus pastores, seus teólogos e os professores de seus seminários — e porque o sabem, sofrem por não o cumprir: é a crise do conhecimento. Nesta crise evidencia-se a culpa da Igreja; todavia, ai da comunidade que não sentir essa culpa e não sofrer dos constantes ataques desta crise: tal

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congregação não estará em condições de aspirar a qualificação de Igreja, nem mesmo à classificação de Igreja visível mas será, mais propriamente, a “Sinagoga de Satanás” de que nos fala o Apocalipse. (Apo. 2, 9). Vejamos o que Barth tem a dizer.

A CRISE DO CONHECIMENTO (9,30 a 10,3) Vs. 30 a 32 (primeira parte) O que diremos pois? Gentios que não corriam ao encalço da justificação a alcançaram, a saber, a justificação que procede da fidelidade de Deus. Israel, porém, que buscava uma lei de justificação, não a obteve. Por que? Porque esta busca não procede da fé, mas das obras. [Almeida escreve: “Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; e Israel que buscava a lei da justiça não chegou a atingir essa lei. Por que? Porque não decorreu da fé e sim, como que das obras”. A tradução inglesa fica mais próxima da tradução de Almeida.] “O que diremos pois”? Com o objetivo de nos contrapormos às acusações diretas e usualmente precipitadas que se fazem à Igreja tivemos que, até aqui, falar apenas de sua aflição; da aflição que lhe advém de seu próprio tema, de sua missão e de sua tarefa, que é a promoção do conhecimento de Deus. Falamos da tribulação a que estamos todos sujeitos, qualquer que seja nossa posição em relação à Igreja; tratamos da tribulação da qual, aos olhos de Deus, ninguém se pode excluir e pela qual ninguém pode lamentar nem culpar os outros, porque é a aflição que a criatura humana, especialmente o homem religioso como tal, tem de suportar em seu relacionamento com Deus. A Igreja padece por Deus ser Deus, quando toma consciência de que ela mesma desenvolve — e que portanto nela surge — a humanidade religiosa. [A tradução inglesa diz: “Na Igreja a humanidade toma consciência de si mesma e se manifesta como religiosa. Então sofre porque Deus é Deus”]. Este padecimento não é provocado por Deus ser contra [ou se opor alisto ou aquilo; [por não estar] aqui ou acolá, ou [por exigir] menos ou mais; mas porque Deus se contrapõe a todo ser [e a todas coisas] de natureza material ou temporal e que são determinadas (ou criadas pelos homens desta ou daquela maneira); Deus se contrapõe às coisas materiais como aquele que é imaterial, que é a origem e o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, (porém jamais como um segundo ser em oposição ao que quer que seja!) Como haveria semelhante modo de ser, de Deus, gerar a aflição das criaturas, senão através [e por causal da culpabilidade humana? 560

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Lembremo-nos de que a nossa condição de criaturas é nossa maldição apenas por força do pecado (7, 7-13) e de nenhuma outra forma. (Lembremo-nos também que a Igreja visível, a Igreja que gera e acolhe a “humanidade religiosa” e que portanto luta com Deus (e contra ele prevalece) até o raiar da aurora, é a Igreja de Esaú, na sua porfia para alcançar a bênção de Deus e ser, finalmente — quando raiar o Dia do Senhor, — a Igreja de Jacó; é por isto que a Igreja é claudicante, ferida por Deus, e sofre por Deus ser Deus!] Se, finalmente, compreendemos em todo seu alcance que a Igreja sempre teve, tem e terá falta de Deus, [que Deus não está (necessariamente) na Igreja], então não só nos é permitido falar desta ausência de Deus na Igreja como devemos falar dela, apontando-a como a falha da Igreja. Se pudéssemos deixar de aqui levantar esta acusação, se não nos sentíssemos constrangidos a constatar e mencionar a culpa, o pecado e o erro como tais então, na verdade, ainda não teríamos reconhecido esta carência [de Deus na Igreja] como sendo a sua verdadeira aflição. Aflição [que fosse apenas contingência natural da condição humana], que fosse apenas destino e que, portanto, não admitisse inculpação, não seria sentida agonia ou angústia ardente. Se [neste assunto da aflição humana] pudermos levantar queixas contra Deus, será sinal de que ainda não nos apercebemos da situação e que ainda não compreendemos o que significa o fato de a base real dessa carência [de Deus] coincidir com o conhecimento que temos dele. [Entendo que o A. quer dizer que se nos animarmos a responsabilizar a Deus “porque tudo se faz segundo a sua soberana vontade” (9, 19) e que, portanto, a ausência de Deus de que a Igreja se ressente teria como origem remota o “MODUS OPERANI)” de Deus, isto será sinal de que não compreendemos ainda que esta carência resulta do próprio conhecimento de Deus a que a Igreja nos leva. Por outras palavras: a Igreja sente a falta de Deus porque sabe o que é Deus!] [Se intentarmos queixa contra Deus,] isto significa que, neste fenômeno, quem precisa ser incriminada é a criatura humana. [Somos nós!] (A partir da citação de 9, 30-32, a tradução inglesa registra assim: “Neste sentido precisamos lembrar-nos de que a nossa condição de criaturas é uma maldição apenasmente em virtude de nosso pecado. De outra forma ela não é maldição. Quando chegamos a compreender a imensidade do erro [do fracasso] da Igreja, — no passado, presente e futuro — não somente devemos e podemos, porém precisamos falar do mal que a Igreja fez [ou faz]. Não teríamos penetrado no âmago da tribulação da Igreja se deixássemos de fazer a denúncia e de dar a definição e o nome de sua culpa, seu pecado e seu erro. Porquanto

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aflição imposta meramente pelo destino e que portanto não admitisse incriminação, não seria uma tribulação reconhecível e ardente e se, em contraposição, transferíssemos nossa acusação e a endereçássemos contra Deus — não faríamos mais do que, ainda uma vez, expor [a incapacidade,] a falha de nossa análise da situação. Teríamos deixado de perceber que a sede profunda de nossa tribulação é, na realidade, o nosso reconhecimento de que nós somos os acusados”). Se a criatura não conhecesse a Deus ela sequer estaria em condições de reconhecer a sua aflição, pois a miséria do ser humano está na sua aferição por Deus e na consciência que tem de que é Deus que a mede. Por outro lado, esta miséria consiste unicamente na angústia, na carência, na crise que a criatura sente mediante seu conhecimento de Deus e da culpa de que se compenetra nesta crise; ela não pode fugir pois esta crise, que se alicerça na liberdade de Deus, toma corpo e se processa ininterruptamente na liberdade e sob a responsabilidade da própria criatura. É fácil de ver que mediante seu conhecimento de Deus o ser humano não é apenas um paciente, um enfermo, porém é também um pecador que erra. “Gentios que não corriam ao encalço da justificação a alcançaram, a saber, a justificação que procede da fidelidade de Deus”. Esta é a primeira manifestação da crise: aqueles que têm conhecimento estão ao lado dos que não têm; os filhos de Deus têm a seu lado gente do mundo; os santos estão emparelhados com os ímpios. A Igreja — qualquer que seja o seu nome [ou denominação], — tem a seu lado os gentios, os estranhos, os que não entendem, os não participantes, aqueles que não buscavam a justificação. Esta aproximação [que assim iguala uns aos outros] talvez, em sua silenciosa eloqüência, seja realidade insuportável para as pessoas de sensibilidade mais apurada: como pode acontecer que alcançaram a justificação os gentios [os que não são crentes], que sempre foram e continuam estranhos à Igreja e que, imperturbáveis, persistem em mostrar a sua apatia ante o que a Igreja preserva e guarda como sendo o mais sagrado? Em que situação ficam as coisas sagradas se com o passar do tempo elas perderam o respeito universal e apenas umas poucas pessoas ainda as reverenciam? Como fica a Palavra de Deus em nossos lábios se, [para anunciá-la], precisamos convencer-nos [primeiramente] que entre “os outros”, [os que estão fora de nossa grei], ninguém tem muito a dizer contra aquilo que pregamos sabendo, porém, que não há muitos que estejam [decididamente] a favor? Considere-se a situação em que se encontra a Igreja na tolerância dos tempos modernos, vivendo sua vida peculiar, tranqüila, sem ameaças hostis

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mas também sem horizontes mais amplos, [situação essa] que a leva a ansiar por alguma luta, alguma oposição, chegando quase a suspirar, saudosa, por uma pequena perseguição [para sacudir os fiéis, afastar os adesistas e oportunistas] e se livrar da proximidade incômoda [daqueles que estão a seu lado, assim postos por Deus, sem serem da Igreja]. Acaso não está a Igreja (mais ou menos) nessa situação desde os tempos dos apologistas? [A apologética como defesa do cristianismo contra os ataques de seus inimigos “hereges”, ateus ou seculares, surgiu e celebrizou-se nos tempos de Tertuliano, por volta do ano 200]. Todavia, olhos mais penetrantes postados à janela da Igreja vêem mais do que isto — [do que a preocupação da Igreja em sondar a reação de seus ouvintes e, quiçá, defender a posição de seus fiéis] — pois percebem, (se tiverem a acuidade necessária para compreender o que se pode vislumbrar apenas indiretamente), que a Igreja não poderá salvar sua situação e sua existência peculiar, colocando o mundo no banco dos réus por causa de seu empedernimento no pecado e então avançar contra ele com bordunas e alfinetadas. Tais observadores terão percebido com horror o que está claramente descrito em 2, 14-29: “Gentios que não têm a lei praticam, em sua condição natural, o que a lei exige”. Eles não correm empós a justificação porque já a alcançaram; não aceitam ensino [não entram para a Igreja] porque já receberam ensinamento; não têm interesse nas coisas religiosas porque, de há muito, Deus se interessou por eles. Não se interessam pela “nossa” Palavra de Deus porque já de há muito eles a ouviram sem nossa intervenção, pois ela mesma se anunciou. Os filhos deste mundo, os ímpios, [o A. escreve os “não-santos”], os incrédulos, na total nudez de sua miséria e, talvez, também na total inteireza de sua alegria não admitem que os transformemos em objetos de nossa pregação e de nosso zelo pelas almas, de nossa evangelização, de nosso trabalho missionário, de nossa apologética, de nossa atividade salvacionista; tampouco se sujeitam a ser objeto de nosso amor, porquanto foram procurados e encontrados pela misericórdia divina muito antes de em nós haver despertado a comiseração por eles; já estão à luz da ressurreição divina e já participam do “poder” da ressurreição e da obediência; já sentiram o temor perante a eternidade e, confiantes nela em esperança, já entregaram a sua existência nas mãos de Deus! É claro que julgando segundo a retidão humana, tal possibilidade pode ser refutada com argumentos bem evidentes: quem ignora que os gentios [os não crentes] são, visível e realmente, apenas pobres pagãos? Todavia, trata-se aqui daquilo que só se pode perceber com os olhos do Salvador; trata-se da impossível, invisível e inaudita possibilidade que Deus

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apresenta e que não é condicionada por eventual contrapartida de fidelidade humana, mas procede exclusivamente da própria fidelidade de Deus; trata-se de nova criação divina e não de um concatenamento de “causa-e-efeito”; em breves palavras: trata-se da verdade de Deus em Jesus Cristo. Como, porém, poderia a Igreja, como tal, negar a existência dessa possibilidade divina [que Deus oferece aos gentios] ou condicionar sua aceitação a esta ou àquela possibilidade de retidão visível, humana, por mais abundantes e decisivos que fossem seus argumentos contra a salvação existencial dos gentios? Como poderia a Igreja, que diz ser Deus o seu Deus, ignorar que Deus é Deus? Como poderia ela, de qualquer forma, negar que Deus é o Deus de “judeus e gentios” (3, 30)? Acaso não é o próprio genitor da raiz de Israel, louvado como o “incircunciso” (4, 9)? [Contudo], se a Igreja reconhecer, ou pelo menos contar com a possibilidade de que também pode existir SALUS EXTRA ECCLESIAM* que Esaú pode também ser o eleito Jacó, onde ficará (então) a sua espinha dorsal, a confiança absoluta em sua missão? Não é evidente que a Igreja Romana, na sua conhecida pretensão [fora da Santa Madre Igreja não há salvação] está apenas defendendo “justificáveis” interesses de todas igrejas? [* o destaque não é do Autor]. De que vale a busca da justificação que Israel promove, de que vale seu zelo por Deus, se ele (ou a Igreja) tiver de admitir que justamente os “outros”, os que não procuram a justificação, que não lutam [junto com a Igreja], já tenham alcançado o alvo? Pode, acaso, a Igreja ignorar a censura que está implícita na realidade do que Deus sempre fez sem ela, ao lado e antes dela, aquilo que é [a missão precípua da Igreja] seu dom e sua tarefa e que [assim fazendo] Deus destrói a própria razão de ser da existência da Igreja? Onde fica a Igreja ante esse reproche? E se o olhar perscrutador [postado à janela da Igreja] penetrar ainda mais profundamente e constatar que “Israel, porém, que buscava uma lei de justificação, não a obteve”? Se o eleito Jacó também puder ser Esaú e se o valoroso soldado de Deus for simplesmente um dos muitos combatentes que no mundo correm, lutam, falam sem obter qualquer resultado, pois não podem mesmo ter êxito pelo simples fato de serem humanos? Esta é, evidentemente, uma possibilidade pela qual podemos levantar todas objeções humanamente viáveis contra a seriedade da Igreja, o seu sentido mais profundo e o resultado de sua obra. Todavia e especialmente a Igreja que não pode deixar de meditar sobre esta possibilidade pois ela vive da lembrança da interminável diferença qualitativa entre Deus e o ser humano, conserva esta lembrança em suas leis e isto porque a Igreja deve saber que a criatura não pode correr ao encalço da justificação divina nem empós qualquer meio para determinar e compelir a presença de Deus ou para a garantir,

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convalidar e mostrar. A Igreja deve saber que o “PORQUE” divino do perdão apenas tem resposta pelo “PORQUE” que vem de Deus e jamais por qualquer razão ou causa humana. Basicamente a Igreja sabe isto; porém ela precisa saber mais: precisa saber também que não pode andar empós a fé, empós o invisível; que ela não pode procurar o relacionamento direto do homem (que é o presente homem!) com Deus (que não conhecemos!) relacionamento este que subsiste unicamente na fidelidade de Deus, [pela sua revelação em Cristo Jesus]. A Igreja precisa saber que de nada lhe adianta fugir do objetivo para o subjetivo, do “serviço” a Deus (do culto a Deus) ao “cultivo” da devoção; da justificação para uma “lei de justificação”; e de nada adianta porque aquilo que na realidade a criatura procura ela não encontra. É claro que a Igreja pode correr ao encalço da lei humana e da religião; pode cultivar a vivência [ou a experiência religiosa] mediante o estabelecimento de normas lógicas, éticas e estéticas, mas não pode fazer mais do que isso. A “experiência” que a criatura tem de Deus não é a fé, não é a justificação, nem é a presença real de Deus; não é o divino “PORQUE” mas é o nosso relacionamento humano (e por isso também muito duvidoso, com Deus). A lei [que normaliza e orienta este relacionamento humano com Deus] não é a própria revelação porém é sua impressão em negativo, muito condicionada segundo o mundo. A Igreja bem pode (e deve) vigiar o fluir das águas nas quais pode jorrar a torrente divina quando chegar a hora de Deus; todavia ela não pode forçar o fluxo dessa torrente, e isto a Igreja não pode esquecer! Talvez seja a lembrança constante desta sua impossibilidade, desta sua ferida aberta, a sua melhor posição. Religião não é o Reino de Deus, nem mesmo a “Religião do Reino de Deus” pregada pelos decadentes seguidores de Blumhardt. Religião é obra humana! Talvez a Igreja não saiba que não existe “LEI DE JUSTIFICAÇAO” e que ao seguir ao seu encalço ela persegue uma ilusão. [Ainda que o saiba], ela o esquece a todo instante; seja como for, sem exceção, jamais fazemos o menor esforço para nos convencermos, inda que por um só momento, de que semelhante lei não existe. A parte real desta ilusão, — o alvo colimado por todas Igrejas e igrejolas — [sob o rótulo] de “LEI DA JUSTIFICAÇAO” é, evidentemente, a “LEI DA FE”; desta “LEI”, porém, está excluída toda jactância. (3, 27). Se a Igreja falar sobre a fé, então ela claramente fala de algo que esvazia a temporalidade; ela fala de alguma coisa que a criatura deste mundo pode ter, pode aspirar e pode alcançar de uma ou outra maneira; algo que pode ser mostrado, exibido, aqui e acolá. [Todavia], como haveria esta obra humana

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[que é a Igreja] ser a [expressão da] fé que justifica [a criatura] perante Deus? Não é muito mais provável que [justamente] a mais alta religiosidade seja confundida como predicado da fé e que [na pretensão de ser a própria fé] constitua a ilusão [a que nos referimos]? Se existir uma religião superior a todas, ou se quisermos definir o modelo do mais perfeito relacionamento do ser humano com Deus, onde encontraríamos tal excelência senão na religiosidade dos profetas de Israel ou nos cantores dos Salmos pois, uns e outros jamais foram superados em sua expressão religiosa, nem mesmo pela “religião de Jesus” — se é que podemos falar em “religião” do Mestre. (E isto para nem sequer mencionarmos [o quanto a religião dos grandes vultos da história bíblica excede e supera em valor o tipo de religiosidade encontrado na] história das religiões cristãs). (Contudo, a religião dos profetas e cantores bíblicos também não alcançou a justificação...) Seja como for: ainda que existisse [ou exista] religião que estivesse [ou esteja] em harmonia com a justificação divina, a criatura humana não alcança a “lei da justificação” pois esta lei só pode ser atingida no instante do Milagre Absoluto, e este milagre vem pela fé; [não chegamos a esse instante porque por ele houvéssemos diligenciado mediante nosso correr, vigiar e agir] pois FE ou é milagre ou então não é FÉ. A Palavra de Deus ouvida por ouvidos humanos e proclamada por lábios de homens somente é [realmente] a Palavra de Deus, quando o milagre acontece. Se não for assim é obra [ou palavra] humana como outra qualquer. A Igreja é a de Jacó unicamente se o milagre se der; de outra forma ela é a Igreja de Esaú e apenas isto. Este milagre não pode ser “almejado”, nem alcançado, nem apresentado mas é, a todo instante, o novo e imprevisível acontecimento divino entre os homens. Poderíamos, contudo, perguntar: por que não? Por que não podemos correr ao encalço do milagre da fé, que a Igreja prega? Por que resulta sempre sendo [mera] ilusão aquilo que a Igreja tanto busca? [“Por que não?”] (A resposta:) “Porque esta procura não vem da fé, porém das obras”. Somente chegamos à fé “partindo da fé” e pela fé. Ter fé significa temer e amar a Deus sobre todas as coisas; [significa aceitá-lo] qual é e não conforme pensamos que seja. Ter fé significa a nossa sujeição ao indefectível julgamento que a situação geral entre a criatura humana e Deus exige. Todavia esse julgamento subsiste porque não nos podemos apropriar de Deus, não podemos perseguí-lo (caçá-lo) porque Deus é e permanece

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sendo para nós por assim dizer — o [“totalmente”] outro, o estranho, o desconhecido, o inabordável. Esta “perseguição”, portanto, não pode ser originada pela fé, e por isto ela não atinge o seu objetivo, que é a própria fé. A “perseguição” que a Igreja pratica vem “das obras”. As “obras” são o relacionamento da criatura humana com um Deus conforme ela o supõe e que não é, necessariamente, o Deus que opera maravilhas [ou milagres]. As obras são a “carta magna” do ser humano pela qual ele não reconhece o julgamento da situação geral entre os homens e Deus; “cartas” em que esse julgamento não é reconhecido em sua inteireza, — (o que dá na mesma coisa). Os homens correm em busca da justiça de Deus, da fé e da realização do milagre através das lacunas da lei e assim esperam poder sentir, alcançar e mostrar essa justiça. Isto é o que não dá resultado. A Igreja somente poderia chegar à fé se ela começasse com a [própria] fé: com a fé no Deus desconhecido; no Deus vivo. A Igreja poderia alcançar a justificação no julgamento se ela se submetesse inteiramente ao julgamento; ela não precisaria de morrer se ela não [se apegasse e] lutasse tão tenazmente por seu feudo. Ela ouviria e proclamaria a Palavra de Deus se não tivesse pretensão de se engrandecer com a Palavra e não se preocupasse com os possíveis resultados mas cuidasse [de ser fiel] à verdade da mensagem. A Igreja poderia ser a sede do conhecimento se ela quisesse ser a sede da adoração do Deus incompreensível ante o qual nenhuma carne é justa. Se ela fosse suficientemente humilde para novamente compreender [reconhecer e aceitar] a comunidade dos santos como a solidariedade entre os pecadores conscientes do perdão, abandonando, — por isso — toda convulsiva criação de novas comunidades [religiosas], [novas seitas, novas denominações]; se ela fosse suficientemente humilde para não se deixar superar por um Kant na prudente defesa da limitação humana e para suportar com moderação a humilhação [que lhe impõe] o racionalismo; se a Igreja, [nesta atitude geral] amasse e obedecesse a Deus, tal Igreja seria suficientemente corajosa para, ao avaliar e considerar o seu tema, [a sua missão,] ter ousadia e força para renunciar os [seus próprios] anseios [de sucesso], abrir mão de seus êxitos e da exibição de seus alvos. [Para que a Igreja possa candidatar-se a ser a sede do conhecimento de Deus], é preciso que ela cultive a comunhão com Deus mediante rigorosa crítica a todas experiências religiosas vazias; é preciso que ela não se arreceie de confrontar a religião com o relativismo de todas religiões; que ela observe o homem religioso [o beato] — (esta teimosa espécie do gênero humano!) — em incansável confronto com os gentios, os publicanos, os espartanos, os imperialistas, os capitalistas e outros tipos pouco simpáticos (por exemplo, os socialistas

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não religiosos [ateus]) e que são, todavia, justificados por Deus. É preciso que a Igreja volte sua total objetividade [à pregação da mensagem] do Deus desconhecido, do Deus vivo, do Deus livre; que a Igreja se concentre totalmente na pregação da cruz. Tal Igreja poderia, de maneira invisível e inaudita, ser a Igreja de Jacó, a Igreja da fé, a Igreja da justificação divina; de fato a Igreja assim [também] é e foi através de todos os tempos. Contudo, para ser assim a Igreja precisa ter a ousadia de começar pela “escuridão” da fé (Lutero) o que, também por todos os séculos que passaram, a Igreja não tem tido a coragem de fazer. [A Igreja tem preferido] orientar sua atividade pelas obras, (para aquilo e naquilo) que podemos ver; o que a Igreja diz ser sua fé em nenhuma hipótese se assemelha com [o paradigma da fé apresentado em] Hebreus, li. A Igreja não ama a solidão do deserto; mesmo quando ela prega sobre isto, não é disto que ela realmente trata; mesmo quando ela, aparentemente, se detém em solidão e no ermo, ela desveste sua solitude de todo espanto verdadeiro, de todo perigo real. A Igreja não pratica o jejum daqueles que foram privados da presença do noivo, antes procura e sabe como consolar-se da terrível vacuidade de toda história da Igreja, recorrendo a toda sorte de romântico sentimentalismo. A Igreja não quer ser estrangeira no mundo: ela não pode esperar pela cidade que tem fundamento — [cujo fundamento é Deus]. A Igreja não se conforma em se deter naquele ponto inicial do cristianismo — na paixão do Cristo abandonado — quando os ponteiros [do relógio do tempo] ainda não marcavam a ressurreição, pois ela tem muita pressa, está sedenta e faminta por coisas positivas, [ela anseia] pelo júbilo do festim nupcial. A despeito de todas suas derrotas e seus reveses a Igreja não quer recuar das perdidas obras exteriores para o centro do fortim, mas quer avançar sempre. [Porém, avançar] para onde? Sem dúvida avançar na direção do ser humano que assim, quem sabe, poderia livrar-se do julgamento [divino]. E o avanço para o que é diretamente constatável, para o que e visível, compreensível, imediato, manejável. A FÉ segundo o capítulo 11 da Epístola aos Hebreus parece-lhe por demais desumana, descaridosa, [não amorável], perigosa, não psicológica, não prática. A mensagem alegre deve ser inteiramente direta; se possível, deve ser divertida; deve ser algo de positivo e que possa ser assim considerada mesmo sem fé e sem Deus. Todavia se a Igreja, em contraposição à “impossível” possibilidade de permanecer fiel ao seu verdadeiro tema (o que poderia envolver o risco de sua ruína) [perante o mundo], optar pela “possível” possibilidade de concentrar o

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seu tema no indivíduo — (naturalmente no homem religioso!), — então sim, ela se porá realmente em perigo e se destruirá. Isto é assim porque o ser humano não pode contornar a maldição de sua condição natural de simples criatura — nem mesmo sendo religioso — ainda que fosse o seguidor [ou adepto] da mais sublime das religiões. Como não haveria Israel [(ou a Igreja)] de ser aniquilado, [(destruído)] em Deus, enquanto o seu objetivo se concentrar na religiosidade do ser humano? Se tudo for apenas questão existencial, como não haveria de Israel [(ou a Igreja)] ser alcançado e ultrapassado pelos “primeiros” entre os gentios que, declaradamente, não estão de mãos vazias? Como haveria de a Igreja merecer a gratidão [e o reconhecimento] do mundo a quem ela faz tantas concessões quando, na realidade, ele espera dela algo tão diferente? A Igreja não alcança a ilusão que tanto persegue e, nesta sua corrida, passa-lhe desapercebida a realidade que poderia agarrar; assim a Igreja não sofre apenasmente por ser Esaú e não Jacó, mas sofre por sua própria culpa. Quem há que tendo procurado participar seriamente da experiência da Igreja, sabendo que é absolutamente necessário ter essa experiência e que ela não pode ser encontrada em nenhum outro lugar, [sim, quem há que nessas condições] não sinta sobre os seus ombros o peso dessa culpa, ou possa livrar-se dela? E, sentindo a culpa, quem há que não tenha plena consciência dela? Ora, a culpa surge quando o ser humano descobre que aquilo que é possível a Deus é impossível ao homem; então a criatura se atreve a ouvir o Criador e a falar de Deus, todavia não lhe tributa honra: esta é a única culpa do ser humano! Vs. 32 (segunda parte e 33) Correram de encontro a uma pedra de tropeço, da qual está escrito: Eis que porei em Sião uma pedra de tropeço, uma rocha de escândalo, e só quem nela crer não será despedaçado. [A tradução de Almeida escreve: “Tropeçaram na pedra de tropeço, como está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, e aquele que nela crê não será confundido]. A pedra de tropeço e a rocha de escândalo é a mesma preciosa pedra angular posta em Sião (pois esta admirável citação bíblica resultou da combinação de Isa. 8, 14 com Isa. 28, 16); [ela se refere a] Jesus Cristo em quem Deus se revela desabridamente como Deus recôndito cuja realidade somente

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pode ser conhecida indiretamente. [Em Jesus Cristo] Deus se oculta definitivamente para ser revelado apenas mediante a fé. [Em Jesus Cristo] Deus revela o seu interminável amor, enquanto dá a conhecer a sua liberdade, o milagre, o seu reino, de forma absolutamente inequívoca. [O original diz “na mais cortante inambiguidade”]. Quem for da verdade, aqui, [em Jesus Cristo,] ouvirá sua voz. Porém, quem é da verdade? Quem vê Deus qual ele é? Quem há que não tenha milhares de pretextos para desviar-se dele? Não toleramos a verdade e seria milagre se a suportássemos; [todavia, se este milagre se desse] ele nos salvaria do sofrimento que a situação de criaturas nos impõe. [Porém] se o milagre não puder acontecer por não estarmos abertos à verdade, por não estarmos prontos para ela, então a verdade, pela lógica que lhe é imanente, se transforma para nós em julgamento. Então a criatura, no paroxismo de sua carreira ao encalço do alvo final, que ela designa como Fé, Justificação, Amor, Deus, ela se despedaça [fica confundida] porque neste Sião, neste céu terreno, [Deus] estabeleceu a realidade de que ELE é o Eterno que, pela graça, permite que se o encontre onde ele for procurado como o ETERNO. Somente aquele que crê não se despedaçará neste tropeço e neste escândalo. Quem porém não crer mas “correr ao encalço”, (9, 31), esse necessariamente colherá apenas nozes chochas; esse tal será qual o homem que dispara para dentro de beco sem saída. Irrompe, então, a crise do conhecimento, a catástrofe da religião; o desnudamente e a vergonha a que fatalmente estão sujeitos todos os empreendimentos irrealizáveis, aparecem inevitavelmente! A Igreja de Esaú é e permanece sendo a que precisa sacrificar o Cristo o qual, contudo, é a sua única esperança. Nem pode ser de outra maneira quando a criatura não reconhece alegremente — e [ainda] quer inverter — a norma divina, segundo a qual é Deus que nos elege [nos escolhe] e não somos nós que o escolhemos. [Deus nos escolheu e nos escolhe pela sua fidelidade à qual apenas podemos corresponder com nossa fé; se diligenciarmos, se nos empenharmos por atingir a graça de Deus, se corrermos ao encalço da vida eterna, se procurarmos a fé, então não estaremos porfiando por entrar pela porta estreita da renúncia e de nosso auto-esvaziamento mas estaremos correndo empós uma lei de justificação por força de nossas obras e não alcançaremos a justificação mas seremos confundidos! Se dissermos, “façamos o mal, pois então será mais abundante a graça de Deus”, ou se não nos preocuparmos com nossa vida espiritual “porque Deus salva a quem quer” então no primeiro caso, estaremos confiando em nossas obras que, nesta hipótese, são declaradamente negativas; na segunda atitude

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9, 32-33 e 10, 1-3

pecaremos contra o Espírito Santo, tornando vão o sacrifício de Cristo e não poderemos esperar pelo perdão. A porta é uma só; não existem dois caminhos: “Crê no Senhor Jesus”. “toma a tua cruz” e “segue-o”]. Os mais evidentes erros humanos que a Igreja cometer, suas transgressões, sua superficialidade e sua indolência, seu bem-estar mundano e sua ingenuidade, sua inútil humildade e seu igualmente inútil orgulho, seu importuno zelo teórico nas coisas minúsculas pelas quais não vale a pena mover um dedo sequer e também sua igualmente importuna indiferença e irresoluta tranqüilidade em questões fundamentais, nada disto nem tudo mais que se puder dizer contra a Igreja a condenaria se ela mesma não se condenasse ao rejeitar o julgamento [a sentença] que pesa sobre todos os homens, como tais, desde antes de haverem pecado ou transgredido [este ou aquele mandamento]. Se a Igreja se conduzisse sempre submissa a esse julgamento, encontrando sua justificação no fato de não buscá-la (nem cogitar de encontrá-la) senão nesse mesmo julgamento; se a Igreja cresse na pedra de tropeço e escândalo e não a tivesse por escândalo e tropeço então, em todos seus erros e transgressões (e certamente, um dia sem eles!) ela seria a Igreja de Deus. Todavia, a Igreja “triunfante”, a Igreja atualizada, moderna, popular, que satisfaz todas as exigências dos homens (exceto a única, [a fundamental]! ), a Igreja que a despeito de todo ridículo [de que ocasionalmente se cobre], é sempre altiva; a Igreja que sabe passar maciamente (por entre os óbices do mundo) como o mercúrio que se escoa; que sempre procura e encontra saídas [“airosas”], tal Igreja — Igreja de “vida eclesiástica” — não pode ter nem terá bom êxito, ainda que tudo faça (ou tudo fizesse) com o mais sincero zelo para se livrar do erro e da transgressão. Com ou sem erros [tal] Igreja nunca jamais será a Igreja de Deus porque ela não conhece [não sabe] o que seja ARREPENDIMENTO. Vs. 1 a 3 Irmãos, o anseio e a súplica do meu coração estão postos na salvação deles, pois eu lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus, porém sem conhecimento. Porquanto eles menosprezaram a justiça de Deus e ambicionaram estabelecer a sua própria e, assim, não se submeteram a justiça divina. “O anseio e a súplica do meu coração estão postos na salvação deles”. [Almeida escreve: “A boa vontade do meu coração e a minha súplica a Deus a favor deles é para que sejam salvos”]. Estamos absolutamente tranqüilos para responder à censura de que nos opomos a Igreja ou [à incriminação] de que somos anti-eclesiásticos em virtude de afirmações como as que acabamos de fazer; todavia, não tornaremos as coisas

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10, 2

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tão fáceis, nem para nós nem para os outros, aceitando o convite implícito nessa censura ou incriminação, abandonando a Igreja assim qualificada e suportando as eventuais conseqüências; sequer pensamos nisso! Quando falamos da Igreja, falamos de nós mesmos e o fazemos antes de nos dirigirmos aos outros e ainda uma vez [será essa crítica endereçada] a nós. Talvez sejamos mais eclesiásticos que os igrejeiros; francamente, “VERE VERBUM DEI, SI VENIT, VENIT CONTRA SENSUM ET VOTUM NOSTRUM. NON SINIT STARE SENSUM NOSTRUM ETIAM IN IIS, QUAE SUNT SANCTISSIMA, SED DESTRUIT AC ERADICAT AC DISSIPAT OMNIA”. (Lutero). Todavia [o pregoeiro] não tem culpa de ser assim, de ser a Igreja a maior atingida. O mensageiro — [o pregador, o pastor, o homem de Igreja] — tem de fazer valer a Palavra de Deus tanto na Igreja quanto contra ela e não é responsável pelo fato de a Igreja também ser atingida. [Ele seria, sim, culpado perante Deus e os homens se tergiversasse, se concedesse contemporizações, se procurasse apresentar mensagem atenuada, suavizada, alentadora, ao gosto do mundo ...]. Quando prega é o próprio pregador [o primeiro e] o maior atingido! Nas lides de Deus é completamente impossível haver partido contra partido, pessoa contra pessoa, um lado [ou uma parte] criticando e tendo razão e o outro sendo criticado e estando errado. No relacionamento com Deus o acusador e o acusado podem sempre e indiferentemente, substituir-se mutuamente. Todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério tanto são acusados como acusadores. “Pois eu lhes dou testemunho de que têm zelo por Deus”. Em segundo lugar, poderíamos tranqüilamente [ignorar ou] negar a acusação de que não fazemos justiça ao sentimento religioso e à obra da Igreja porquanto não só estamos em perfeitas condições de fazer justiça à posição histórica e psicológica da Igreja, como nos comprometemos a defendê-la perante o fórum do mundo, pelo menos tão bem quanto o fazem seus mais convincentes advogados. Reconhecemos — uma vez por todas — o seu “zelo por Deus”. Porém em se tratando de assunto divino, a troca de gentilezas não tem cabimento. Portanto, para nós não se trata de galopar, de disparar em busca da lei de justificação (9, 31), [quiçá] montando “animais” mais velozes [como por exemplo] tendo maior piedade [ou mais devoção], vivendo experiências [espirituais] mais profundas, tendo mais confiança em Deus, ou [mostrando] mais amor fraternal. Não se trata da ridícula discussão sobre quem “tem mais” isto ou aquilo, [sobre quem é mais crente, melhor membro da Igreja], se este ou aquele consegue sobrepujar algum outro em intensidade espiritual, vida interior, paz, entusiasmo, amor, esperança.

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10, 2

Pelo contrário: aqui se trata de acabar com essa competição inútil [e frívola]; sabendo-se que a religiosidade humana, — (mesmo a que qualitativamente se situar entre a mais requintada cultura e quantitativamente superar a multidão da Torre de Babel) — não tem significação decisória perante Deus; sabendo-se que na arena onde os homens e Deus se confrontam para se separarem e [efetivamente] se separam, e se confrontam também para se encontrarem [e realmente se encontram ...], não é uma praça onde os homens se mimoseiam distribuindo ramos de louro entre si ou onde alguns possam negar os louros a outros; sabendo-se que a todos nos resta apenas: temer, amar e adorar à Deus! [E o que podemos fazer ...] “Porém sem conhecimento” têm eles zelo por Deus. [Almeida escreve... “porém não com entendimento”]. É justamente esta falta de conhecimento [ou de entendimento] que constitui a culpa da Igreja. É a mesma coisa que vem sempre de novo e acima de tudo, pois quem há que tenha conhecimento, [ou entendimento]? Para quem não falta ele, sempre de novo nessa fatal corrida rasa? O que significa toda essa série de explosões religiosas, uma mais forte que a outra, que com horror assistimos desde 1918? O que significa este livro na medida em que ele, NOLENS VOLENS, concorre para este caos? O que significa toda a história da teologia, até o dia de hoje, este eloqüente setor da luta generalizada pela existência, na qual as feras mais Jovens armadas com aspas e dentes mais agudos vão eliminando as mais velhas e mais fracas até que [no ciclo natural] elas sejam, também, eliminadas? Que sentido tem essa sucessão de cenas? E quem é que [acaso] nota que nisso tudo não há sentido algum? Esquecemos disto sempre de novo e este esquecimento é a culpa da Igreja. Todavia, precisamos admitir humildemente que a despeito de todo nosso protesto, encontramo-nos sempre lá, na sede desse esquecimento: fazemos parte desta Igreja culposa. “Eles menosprezaram a justiça de Deus e ambicionaram estabelecer a sua própria e assim, não se submeteram à justiça divina”. Zelo por Deus, com entendimento, seria a submissão à justiça divina, ao próprio Deus e a Deus somente; seria a submissão à divina predestinação e seria o amor ao Deus que neste mistério reina absoluto por ser ele só o verdadeiro Deus, pois a justificação de Deus e a sua liberdade para ser lei é norma pa ra si mesmo; é em sua liberdade que ele — e somente ele — chama e vocaciona (9, 12; é nesta liberdade que é próprio amar Jacó e odiar Esaú (9, 13; é nesta liberdade que ele se compadece de quem quer e endurece a quem lhe apraz (9, 18); esta é a liberdade de Deus: de ser somente ele o próprio Deus, ontem, hoje e amanhã, com a mesma irrestrita soberania.

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10, 3

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Portanto, o conhecimento [ou o entendimento] de Deus seria o reconhecimento dessa soberania divina — reconhecimento esse que jamais poderíamos olvidar, — que jamais poderia ser considerado como fato consumado ou ultrapassado. Conhecimento de Deus seria a prática constante da diferenciação crítica entre o que seja retidão [ou justiça] de Deus e toda (TODA) [e qualquer] retidão [ou justiça] humana. Conhecimento de Deus seria a inexorável superposição da importância divina a tudo quanto seja importante [e até importantíssimo] segundo nosso parecer. (Esta superposição das coisas humanas pelo que é divino está sempre em vias de acontecer, e sempre iminente, ainda que entre os assuntos por nós considerados como importantes o de suma importância seja a própria meditação sobre Deus). O conhecimento de Deus leva os homens a aceitarem de boa vontade e conscientemente o ataque que contra eles procede da justiça divina e de semelhante conhecimento poderá, eventualmente, resultar zelo por Deus que não implique na participação dessa “corrida rasa” e que portanto estará [somente] sujeito ao julgamento de Deus; [ou por outras palavras, o “entendimento” de Deus pode gerar zelo que não se manifesta nem se expressa por obras e feitos humanos e que, por isto mesmo, está exclusivamente na dependência do juízo e do julgamento divinos]: Quem tem tal entendimento e quem vive segundo ele? A quem não é esse conhecimento sobremaneira elevado e por demais maravilhoso? Quem subsiste sob semelhante luz e em tal atmosfera? Quem não teme que [nesse conhecimento] “tudo poderia acabar”? Quem há que não substitua [ou não tente substituir] esta inabordável [inflexível e absoluta] justiça divina com sua própria justiça, [seu critério particular de retidão]? (Talvez, e muito provavelmente) será retidão de elevado quilate, muito valiosa e mui excelente, [será retidão que “contara”] “com a graça de Deus”; confiando em Deus” e assim por diante, quiçá será consoante algum plano, algum programa ou método; alguma nova linguagem [a tradução inglesa escreve “alguma nova interpretação”], alguma coisa qualquer, [ou um objetivo] um movimento que exija de nós menos esforço criativo, menos que pensar e menos que padecer do que essa RETIDÃO DIVINA e [em compensação] nos dê mais trabalho [para melhor usarmos nosso dinamismo]; nos dê mais do que falar e mais para empreender. [Quem há que não busque] alguma coisa [método, programa, atividade] pela qual a criatura humana, (especialmente a pessoa religiosa), em seus feitos, sua oratória, seu ânimo empreendedor, seu insaciável desejo de reforma e de revolução chegue a “melhores resultados” [segundo suas próprias deduções]? [Na realidade a pessoa chega à conclusão de que sob seu próprio prisma e perante o mundo seus “resultados” são melhores] porque sob o julgamento [que imagina segundo seus critérios pessoais] e ao qual se submete, já não

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10, 3

sente a premente necessidade de lembrar-se de que aquele que temer e amar a Deus sobre todas as coisas nada mais tem [no mundo] senão Deus! [nada mais terá para exibir; nada terá para se gloriar e nada para se justificar...]. Quando acaso esteve a Igreja a salvo da tentação de substituir a justiça de Deus por sua própria? E quando resistiu ela a essa tentação? Quando foi a Igreja diferente daquilo que a Igreja Católica é apenas mais completamente que todas as outras: a organização que visa a garantir os justificados interesses dos homens perante Deus na tentativa mais ou menos hábil de fazer mistério da verdade da predestinação divina ou de ocultá-la? Quando teria a Igreja tido o ânimo de cortar os liames que a prendem às necessidades, desejos e ambições da criatura deste mundo para apoiar-se inteiramente em Deus? Será que a Igreja consegue fazer isso? Pode ela, ao menos, supor que isto está a seu alcance? Se a Igreja não o puder. — se não conseguir realizar o que ela segundo o seu mais lídimo programa, evidentemente, deveria fazer — se o seu conhecimento [seu entendimento] de Deus se esboroar de novo e sempre na crise peculiar à criatura que se nega a reconhecer Deus por seu Deus porque dele tem medo, — então por que haverá ela de admirar-se da acusação que lhe é feita — acusação que, na verdade não procede dos homens, [nem do mundo]? Como poderá a Igreja esquivar-se de levantar, ela mesma, essa acusação contra si? Comentários: 9, 30 - 10, 3 1. Diz Barth que a Igreja poderia ser a sede da verdadeira adoração a Deus se, entre outras coisas claras e bem compreensíveis, ela também fosse suficientemente humilde para não se deixar superar por “um Kant” e suportasse com moderação (com paciência), “a humilhação que lhe impõe o racionalismo” mas, amasse e obedecesse a Deus. Parece-me que o A. quer dizer que se o próprio Kant, o apóstolo do uso da razão em substituição à revelação, encontrou limites para as possibilidades humanas, reconhecendo que Deus, a imortalidade e o universo não podem ser explicados racionalmente, maiores e mais ponderáveis motivos deverá ter a Igreja para dar a Deus o que é de Deus. Portanto deve a Igreja suportar com paciência a humilhação (segundo o mundo) que o racionalismo lhe impõe porquanto, sem fé, é impossível agradar a Deus; nunca chegaremos à fé por elucubrações mentais ou deduções matemáticas pois a FÉ nasce da FIDELIDADE DE DEUS e por ela, — não pela razão, — “O justo viverá”!

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9, 30 - 3; 4

A Luz nas Trevas

2. “A Igreja não quer parar no Cristo abandonado”. Entendo que o A. quer dizer que a Igreja não deseja ficar na renúncia; não que tomar a sua cruz; quer gozar da ressurreição sem passar pela morte. 3. “A Igreja deve buscar a sua justificação na sentença que a condena”. Entendo que a sentença que desde a eternidade pesa sobre todos homens e, portanto, também sobre a Igreja, é a sentença da predestinação. Deus elege e, elegendo, condena. Quem crer será salvo e quem não crer já está condenado. E nesta sentença que a Igreja deve buscar sua salvação: Mediante a fé!

A LUZ

NAS

TREVAS (10, 4-21)

(Barth inicia a exegese da segunda parte do capítulo sintetizando a tese demonstrada na primeira: “A culpa da Igreja constitui a sua aflição”. Então estabelece novamente o silogismo do círculo vicioso: a aflição é sua culpa e a culpa é sua aflição. Todavia, nesta proposição não parece estar em pauta a aflição que a Igreja sente pelo fracasso conseqüente do cumprimento de sua missão mas o desapontamento da Igreja porque muitos daqueles que não correm empós uma lei de justificação são justificados por Deus e outros que buscam esta justificação não a alcançam; porém não alcançam o que procuram porque confiam em suas próprias forças, seus feitos, seus méritos, sua fé. Esta é a culpa da Igreja e, por isto mesmo, a causa de sua aflição porquanto, se a Igreja renunciar a si mesma e se entregar inteiramente à fé, será semelhante aos que “sem lei” fazem a vontade de Deus ou, se possível fôra, inda mais excelente que estes e já não sofrerá da enfermidade característica da Igreja no mundo mas gozará paz com Deus. Esta paz é a luz que raia quando se definem as trevas da aflição e do reconhecimento da culpa e será tanto mais visível quanto mais densas as trevas forem; esta luz vem da fidelidade de Deus: é a luz não gerada que vem do cumprimento da lei por Jesus Cristo, na cruz, que tira a nossa culpa e nos restabelece na categoria de filhos de Deus.] Se a aflição da Igreja está na sua culpa e se esta culpa, conforme vimos na exegese precedente, consiste exatamente no fato de a Igreja não reconhecer esta sua aflição que lhe advém em conseqüência da natureza de seu dom, de sua tarefa e de seu tema, antes prefere fugir de sua missão, — o que equivale a dizer que [a Igreja] prefere fugir de Deus, — então é lógico que as coisas poderiam acontecer de forma diferente; [é evidente que a situação aflitiva da Igreja] resulta da opção que ela faz. Portanto, o fato de a Igreja não reconhecer a Deus e de tentar evitá-lo ou escapar dele, não significa que ela está [constrangida e obrigada nesta situação] como em beco sem saída; por conseguinte ela não

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A Luz nas Trevas

9, 30 - 10, 3; 4 e 5

pode alegar que se acha em contingência fatal, mas precisa assumir, ela mesma, a responsabilidade de seu procedimento. A luz brilha nas trevas! Precisamos compreender isto perfeitamente para que tomemos consciência inequívoca e ardente de que a aflição da IgreJa é a sua culpa e, mais ainda, para que nesta realidade percebamos com clareza o correlacionamento que existe entre a tribulação e a esperança da Igreja. A impossível possibilidade divina está ao alcance da Igreja e a luz eterna, que emana da luz não gerada, a ilumina. A questão resume-se em saber se a Igreja tem olhos para ver isto. Vs. 4 e 5 Porquanto o objetivo da lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que crê. Pois Moisés descreve a justiça que vem da lei com as palavras: o homem que fizer estas coisas, por elas viverá. [Barth faz ligeiro comentário dizendo que sua tradução do versículo 5, acompanha as ponderações de Zahn e Kuehl; Almeida registra: “Ora, Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei, viverá por ela”.] “O objetivo da lei — [segundo a tradução de Almeida, o fim da lei] — é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”. Há somente uma verdade, uma só [forma de] liberdade divina, [há um só critério, tanto] para “eleger” como para condenar; há uma só justiça divina [e um só juízo]. Quer esta verdade venha ao nosso conhecimento como a “justiça que procede da fidelidade de Deus”, a ser compreendida, confirmada e apropriada pela fé (1, 17), quer a encontremos na forma da justiça que procede da lei, — isto é como norma estabelecida à ação humana para orientação de seus objetivos e alvos, — ela é uma só verdade, uma mesma justiça. Invisivelmente ela é a justiça que procede da fidelidade de Deus e visivelmente ela é sempre a justiça que vem da lei; nem poderia a lei dar origem a outra justiça — por exemplo, justiça divina — mas tendo origem na lei ela [também] procede da fidelidade de Deus, pois o sentido, o significado, o “objetivo da lei” é a justiça de Deus. Não é sem motivo que a Igreja que cuida (e precisa cuidar) da lei anda empós uma “Lei da Justiça” e de uma religião do Reino de Deus (9, 31). O alvo, [a meta, o objetivo] do qual toda religião deve dar testemunho (3, 21) é Cristo. Cristo é o fim [o consumador] das necessidades [das carências], das ambições e dos anseios da humanidade, aos quais a Igreja procura satisfazer, dos quais cuida e aos quais dedica toda sua carinhosa atenção. Oxalá fosse [realmente e sempre] assim: que a Igreja fizesse isto ou, pelo menos, entendesse

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10, 4

A Luz nas Trevas

o que significa estar ativa na lei da justiça; se ao menos soubesse o que significa despertar e viver religião que seja sinal e testemunho; se ela correspondesse ao último anseio do ser humano resolvendo todos os legítimos penúltimos anseios peculiares à criatura. No decurso [e no desenvolvimento] de seu próprio programa, — [no processo de comunicação da mensagem da redenção] — a Igreja deveria deparar-se com a verdade, a liberdade e a justiça de Deus. A impossível possibilidade do surgimento do HOMEM DA FÉ dá-se somente, — este é o caso de Israel, e da Igreja, quando a possível possibilidade da pessoa religiosa, da adoração “de Deus” e do relacionamento que existe entre o temporal e o eterno, forem devidamente entendidos como o limite, [o extremo] da possibilidade humana; quando forem percebidos como aquilo que está além do [nosso] mundo, como pressuposição, como o centro visual [sobre o qual estão postos os olhos da fé]. Devoção verdadeiramente séria, ou justiça [ou retidão] humana também verdadeiramente séria, ou Igreja verdadeiramente séria, de maneira alguma pode subsistir por si só, (conforme se pode verificar em cada página do Livro dos Salmos!); qualquer dessas coisas necessariamente apontará para além de si mesma, pois em todas elas está implícito que nada mais são do que impressão humana, pontos intermediários, marcos de estrada, aviso e negação. Qualquer delas, forçosamente, — (ainda uma vez, se forem realmente sérias e se souberem o que significam!) acende o rastilho de pólvora que fará explodir os pagodes, todos pagodes que acaso estavam (ou estejam ainda) a seu derredor. [A tradução inglesa escreve: “Se a Igreja for consciente de si mesma e séria, acenderá o estopim que fará explodir toda edificação sagrada que os homens já levantaram ou ainda poderão levantar em seu redor]. Se a lei for tomada a sério cessa toda paz, toda segurança, todo descanço que não sejam a segurança, o descanço e a paz inerentes ao instante eterno da revelação de Deus. Cessa então toda “corrida ao encalço” da justiça; cessa toda procura que seja qualquer outra coisa que não busca de entendimento (10, 2). Cessa todo desejo de estabelecer “a própria justiça” (10, 3). CESSA! e sabemos o que dizemos com isto: acontece o milagre; [dá-se] o relacionamento existencial do homem com Deus e que jamais se realiza na temporalidade: acontece. A fé crê; Deus fala. Isto é devoção séria; Igreja séria! Todavia, isto está ao alcance da possibilidade humana (na qualidade de impossível possibilidade) onde a Igreja estiver; onde se tratar da penúltima possibilidade humana, isto é, onde existir a possibilidade religiosa. Também a Igreja de Esaú, a única que conhecemos, vive da possibilidade da Igreja de Jacó! 578

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10, 5

“O homem que fizer estas coisas, por elas viverá”! Com estas palavras Moisés descreve a “justiça que procede da lei” (Lev. 18, 5). Moisés sabe o que diz. De maneira alguma é ele apenas um representante da lei a referir-se unicamente as obras humanas e nada mais; de maneira alguma é ele apenas o tipo do clérigo bem informado e em hipótese alguma é ele somente o consciente representante da mais alta religião. Admitamos, todavia, que ele seja tudo isso; qual dos profetas, qual o apóstolo ou qual o reformador que não o foi? Acontece porém que como profeta, como apóstolo, como reformador, como “Moisés” — ele significa [algo] mais: ele acentua que é necessário cumprir a lei para viver pela justiça que dela procede. “Não são os ouvintes da lei que são justificados perante Deus mas os que a praticam” (2, 13). Isto é o que Moisés pensa da justiça que emana da lei. Porém, o que quer dizer ser “PRATICANTE DA LEI”? Lembremo-nos que isto significa submetermo-nos a quem outorga a lei, àquele de quem a recebemos; significa compreender que o homem só pode ser justificado pela proximidade de Deus e pela eleição divina; [portanto] ser praticante da lei significa dar, sempre de novo, nosso testemunho da majestade divina, da proximidade de Deus e da eleição eterna. Significa, pois, render toda retidão humana (TODA) a quem ela pertence e a ele (A ELE SÓ) dar a honra. Portanto, diz Moisés que o homem viverá pela lei somente [quando e] onde a lei for praticada — (REALMENTE PRATICADA!), — onde a impossível possibilidade do milagre da fé e da existencialidade de Deus não estiver apenas na superfície das coisas históricas e espirituais, não estiver somente ocupando espaço no tempo, não der oportunidade à jactância humana (3, 27 e seguintes!). Nem deixa Moisés de, ao referir-se ao FUTURUM AETERNUM [viverá] — chamar expressamente atenção ao fato de que ele não estabelece qualquer relacionamento da promessa e da condição do cumprimento da lei com possibilidades visíveis [imediatas ou] diretas mas se refere à possibilidade messiânica, escatológica. Igreja [realmente] séria [ou que ao menos tivesse a pretensão de o ser] deveria perceber que seu dom é apresentar a “retidão que vem da lei”; esta é a sua missão [e ela deveria desincumbir-se dessa tarefa] com [argumentação ou] dialética de tal maneira ampla [convincente] e vigorosa que logo ficasse claro que o alvo [o fim] da lei é Cristo; que ficasse evidente que nenhuma justificação procede da lei mas do cumprimento daquilo que a lei determina; portanto [a justificação] vem de Cristo no qual a criatura que “corre” [em busca de uma lei de justificação] é suprimida por Deus e isto mediante a fidelidade de Deus.

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10, 5-8

A Luz nas Trevas

[A tradução Inglesa escreve assim: “Servindo-se do FUTURUM AETERNUM (Moisés) não pode deixar de nos fazer entender que nem a promessa nem a condição ligada a ela é direta e observável. Ambas são usadas para indicar a possibilidade messiânica, escatológica; semelhantemente a Igreja deve apreender a retidão que vem da lei como se esta lhe estivesse entregando, (propondo) uma tarefa a cumprir e uma dádiva a distribuir: a Igreja precisa apoderar-se firmemente da verdadeira dialética — que Cristo é o fim da lei; dialética porque nenhuma retidão emerge da lei, porém da exigência da lei, isto é, de Cristo. Em Cristo, os homens que fainosamente ‘buscam’ são suprimidos e (em seguida) são exaltados para estarem com Deus. Tudo isso se dá pela fidelidade de Deus”. Parece-me que o A. não diz nem mesmo sugere que a lei entrega uma tarefa à Igreja, porém afirma que a missão da Igreja é pregar o cumprimento da lei de Deus, conforme também Moisés ensinou; isto é o que a Igreja tem para oferecer, O Cumprimento messiânico, escatológico da promessa de vida se realiza em Cristo que deu integral cumprimento à lei e que, por isto, é a meta, é o fim da lei — e a muitos justificará. Ora, o cumprimento da promessa divina em Cristo, que é o Unigênito Filho de Deus que veio ao mundo para, na qualidade de Emanuel, nos revelar o Deus desconhecido, confirma a absoluta fidelidade de Deus que não abandona sua criatura. Todavia, para que esse cumprimento em Cristo seja compreendido é necessário, ainda segundo o raciocínio do A., que a Igreja se apegue firmemente à dialética contrapondo às obras que a lei exige, o cumprimento total que lhes deu Jesus Cristo — que em tudo foi tentado como homem e não foi achado em pecado; que tomou sobre si as nossas faltas e deu a sua alma como oferta pelos nossos pecados. (Isaías 52, 13 até o fim do Cap. 53)]. É fora de dúvida que compreendendo a sua missão desta maneira, a Igreja teria (ou terá) de encarar com horror a sua mais profunda aflição pois terrível coisa é cair na mão do Senhor; todavia, [só] então a sua culpa poderá ser removida e, acima de sua aflição, raiará a sua esperança! Quando a Igreja assim estabelecer o seu programa, [então] NAS TREVAS RAIARÁ A LUZ. Vs. 6 a 8 Porém a justiça que procede da fidelidade de Deus, diz: — Não argúas em teu coração” quem subirá aos céus?” (Isto é, para trazer Cristo para baixo!) Ou então, “quem descerá ao abismo?” (Quer dizer, para levantar a Cristo de entre os mortos!) Porém, o que diz ela? “A palavra está muito perto de ti, em tua boca e em teu coração”, (Deut. 30, 12-14); (isto é a palavra da fidelidade de Deus que pregamos!)

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“A justiça que procede da fidelidade de Deus” é anunciada (conforme vimos) desde Moisés como sendo “o fim [a meta] da lei”. [Esta conclusão do A. estriba-se em sua exegese do tempo futuro empregado por Moisés: “O homem que praticar a lei VIVERA (Lev. 18, 5) e seu fundamento bíblico está em 10, 4 e Mat. 5, 17 ss]. Se a Igreja arrecear-se ou se recusar a dar a honra a Deus, então ela não deve nem pode alegar [em sua defesa] que o homem é APENAS humano e só tem possibilidades humanas. A mensagem de Deus, — o Desconhecido, o TodoPoderoso, o Criador, não é estranha nem à Igreja nem ao homem; o que é de estranhar é que [essa mensagem divina,] como limite das possibilidades humanas, não seja estranha à humanidade. [A tradução inglesa escreve: “O evangelho, sem dúvida, é estranho como limite da humanidade. Mas o que é realmente estranho é que isto nos é familiar”] Se a criatura seguir o seu próprio caminho, com seriedade até o fim [até sua extremidade], então ela se encontrará perante Deus; porém, junto com a criatura estará também a Igreja em sua possibilidade alternativa: a atitude em que, na presença de Deus, ela pode tornar-se absolutamente séria, [compenetrada de sua missão divina], abandonando de vez a corrida desenfreada em busca da “lei de justificação” (9, 31), suprimindo definitivamente o “zelo sem entendimento” por Deus (10, 2) e o estabelecimento de “sua própria justiça” (10, 3). A Igreja que assim proceder será (e terá) aquilo que o mundo nela procura e dela espera: será sede [e a fonte] do arrependimento frutífero e pleno de promessa; e nada mais! Quando a Igreja chegar [ou quando chega] a esse ponto tornar-se-lhe-á [ou torna-se-lhe] desgostosa sua convulsiva lida ora tentando subir aos céus, ora descendo ao abismo; [quando a Igreja tornar-se absolutamente seria na presença de Deus, isto é, quando puser de lado as veleidades humanas, ela sentirá desprazer na sua tentativa] de ora personificar o máximo requinte em matéria de exigências eclesiásticas e em seguida pender para o extremo oposto, com o máximo de condescendência e o mínimo de imposição. [Quando a Igreja se torna absolutamente séria na presença de Deus] ela já não pretende mais ser, ter, dizer, representar, mostrar e repartir a obra de Deus; [a Igreja deixa de] querer realizar, ela mesma, a obra divina, — a encarnação de Deus e a ressurreição do mundo — por meio da dinâmica e do diabolismo de sua palavra ou pelo refinamento estético de sua liturgia; ou então mediante a popularização de sua terminologia [eventual distorção do texto bíblico, irreverência no culto, na pregação .] ou ainda pela duplicação, triplicação e contínua ampliação de suas bases; pela crescente atividade oficial. [O crucifixo nas Repartições

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Públicas, nas salas de juri; presença da Igreja nas escolas, nos quartéis, nas cerimônias e festas do governo, tudo isso que a Igreja faz com o evidente intuito de engrandecer-se, de ganhar e assegurar prestígio ou de comprovar seu status, e que governados e governantes aceitam por conveniência política ou fato consumado, quando não por sorrateiro interesse eleiçoeiro — uns iludem (ou pensam iludir) os outros — e todos tomam o nome de Deus em vão ...]. [A Igreja realmente séria, na presença de Deus,] deixa de concordar pressurosa e solicita com toda sorte de duvidosas aspirações de seus leigos; deixa de recorrer a demagógicos artifícios teológicos e deixa de exercitar (e de por em prática) a habilidade de colocar-se sempre em cena, de acomodar-se ao “espírito da época” e de acompanhar o fluxo e o refluxo das “mentalidades” [em evidência]: o romantismo, o liberalismo, o nacionalismo, o socialismo, [ou o que quer que seja,] pois é disto que cuida [a Igreja de Esaú]. [Ao apresentar-se a Deus, em seriedade,] a Igreja saberá [ou sabe] que não se pode “encenar” a Cristo, nem “trazê-lo do céu” ou “tirá-lo de entre os mortos”. Ela saberá [ou sabe] que de forma alguma Cristo é o exaltado, o transfigurado, o ideal, mas é o Homem Novo; por isso o Natal não é a nossa muito conhecida e querida festa da bem-conhecida “mãe” e tão conhecida “criancinha”. Semelhantemente a Sexta-Feira Santa não é motivo para nos preocuparmos ainda mais com nosso sofrimento o que aliás, não deixamos de fazer; a Páscoa não é alegoria de nossa vida vitoriosa [de nossa vitória sobre a morte] e da realização triunfante de nossas aspirações [por mais nobres, mais elevadas e até sublimes que sejam] — (por exemplo, o socialismo ou a restauração da Alemanha!) — [Lembrar que o A. escreveu sob a influência da hecatombe de 1918]. A ascenção não é um símbolo de nosso idealismo que vai até os céus, e o fogo do Pentecostes nada tem a ver com nossos artifícios de “pular fogueiras”, por mais entusiásticos e genuínos que fossem. A Igreja, (inclusive toda possível igrejola que por amor à sua sobrevivência nem quizesse ser Igreja,) assim posta com seriedade na presença de Deus seria (ou será) o lugar onde, em contraste com toda sorte de outros locais [ou instituições], a distância própria (porém nunca medida!) que vai “dos mais altos céus” ao “mais profundo dos abismos” é percebida, estabelecida, e resguardada para, finalmente, ser expressa em palavras; tal Igreja seria (ou será) o local onde, com ou sem incenso, já não é preciso silenciar, porquanto a ocasião própria de calar ou de falar — (até mesmo de clamar!) — perante Deus se impõe automaticamente quando e onde a criatura percebe a alegre nova, a palavra positiva de Deus; é assim por que, quando e onde isto acontecer, (ao contrário do que se dá com todo bem-intencionado sentimentalismo e moralismo), a criatura percebe a palavra altamente negativa da cruz — e somente esta!

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É preciso que aqui se diga expressamente que na afirmação de que não devemos “tentar descer ao abismo” está incluída também a tentação (muito próxima de nós) de revestir a palavra negativa (de renúncia] que vem da cruz — a única que resta à Igreja — com a positividade humana. (Revestimos a mensagem que vem da cruz com a “positividade” das renúncias humanas [e descemos ao abismo para buscar a Cristo entre os mortos]) quando em convicção, consciência e arte substituimos o idealismo cristão usual pelo evangelho do PARE!, (do “não-faça” do “não-pode”) e da demolição; quando fazemos da radical negação de tudo quanto é do mundo, — deste sorvedouro que se abre para tragar tudo que é humano, — o apoio para alguma nova interpretação teológica [quiçá alguma doutrina nova que consideremos] plena de riqueza espiritual e altamente fecunda; cometemos o mesmo impropério quando pregamos a palavra que vem da cruz como forma e método para ganhar almas, transformando-a novamente em atitude humana e em questão moral! [Nestas diferentes atitudes de caráter passivo ou contemplativo, talvez submissos, resignados e até felizes com nossa auto-renúncia e nosso zelo, deixamos de correr em busca de uma lei de justificação, isto é, deixamos de tentar subir aos céus para de lá trazermos Cristo de volta e vamos procurá-lo entre os mortos, no nosso próprio meio, — descemos as profundezas do mundo para de lá o ressuscitarmos]. Pode acontecer que em contraste com seu costumeiro dinamismo, a Igreja passe a exibir passividade artificial; em substituição à sua extensa propaganda habitual ela agora busque a salvação numa atitude de pretensa expectativa, plena de profunda significação — nada movendo e nada tocando — atitude que, todavia, nada vale e nada representa por ser estudada, intencional e, portanto, altamente suspeita. [Em qualquer destas formas de estudada renúncia, de pretensa expectativa (como por exemplo na ansiosa espera da “eminente” volta de Cristo) ou em mística contemplação, estamos revestindo a mensagem que vem da cruz com as possibilidades que são humanas e também a Igreja o faz se nisto consentir conosco; estamos, na realidade, colocando Jesus Cristo em nosso meio, entre os mortos, e lá o estamos procurando sara ressuscitá-lo]. “A palavra está mui perto de ti, em tua boca e em teu coração, isto é, a palavra da fidelidade de Deus, que pregamos”. Isto quer dizer que [para se conhecer “a palavra”] não há necessidade de ações especiais, ou de violência; não são necessárias nem ações positivas nem negativas, nem é preciso recorrer a subversões ou artifícios; é suficiente que cada pessoa olhe em torno de si e preste atenção na aflição e na promessa da

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vida conforme se expressam em cada uma de nossas palavras e cada impulso de nosso coração. Pelo simples fato de sermos criaturas humanas achamo-nos na faixa extrema, na problemática, em que a única resposta possível é dada pela “fidelidade da palavra de Deus, que pregamos” A única exigência que precisamos satisfazer para que também nós nos apropinqüemos da “palavra” é fazermos a crítica — a mais singela, a mais sóbria, a mais realista — da vida e do modo de ser do mundo. A Igreja que estivesse disposta a abandonar suas sacrossantas alturas e profundezas e retrair-se de todos setores de suas extensas e intensas possibilidades eclesiásticas para se voltar à vida, ao ser humano, ao seu próprio lugar; que deixasse de cuidar daquilo que está longe para dedicar-se à vizinhança; (que deixasse de cuidar do que é grandioso (perante o mundo) para zelar pelo que é cotidiano humilde e modesto], que se defrontasse face a face com a problemática da existência, [tal Igreja] se defrontaria, também face a face, com sua carência (sua aflição) e sua responsabilidade. Todavia, juntamente com esta sua aflição e sua responsabilidade, ela se depararia com aquele que para ela as preparou, a fim de poder assistí-la de perto. [A tradução inglesa diz: “Uma Igreja capaz de se retirar de todas suas sacrossantas alturas e profundezas, de todas suas extensas e intensas possibilidades eclesiásticas, uma Igreja [que esteja] decidida a retroceder ao longo dos passos que a levaram a países distantes para ficar na “proximidade” da vida e existência ambígua de cada pessoa, assumiria assim sua verdadeira tarefa e, em sua própria miséria e responsabilidade encontraria aquele que dispôs as coisas humanas de sorte que nelas “ELE” estivesse próximo, à disposição”.] Reiteramos que ao nos referirmos a esta Igreja tão fortemente objetiva, que assim renuncia e assim se concentra pensamos — mais do que na “Igreja Reformada” — na Igreja de Jacó; pensamos na Igreja do milagre e da Fé; temos em mente a “impossível possibilidade”, a Igreja do Deserto, que nunca se parece como tal nem mesmo aos outros [aos de fora] e que portanto jamais pode ser objeto de algum “Movimento Novo”, de alguma “Escola” [teológica] ou Instituição, pois esta “impossível possibilidade” pode acontecer nesta, naquela e em qualquer Igreja que queira encarar seriamente a sua tarefa. [O original diz, textualmente, “que queira levar-se a sério”]. A retirada para as linhas internas [que acima preconizamos] e que deveria ser levada a efeito, não é manobra tática que deva ser planejada, iniciada [em determinado momento] e concluída [dentro de certo prazo] mas é o sentido estratégico próprio à Igreja e que ela precisa ter e preservar. Tal sentido poderia fazer-se presente ainda hoje, sem qualquer preparação, fundamentação, sem

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programação esclarecedora e sem consideração de ordem prática e, amanhã poderia acontecer novamente, como o passo que vai da esperança para a aflição e da aflição para a esperança, porquanto este é o passo eterno que dá nova qualificação e nova orientação a todos passos humanos; o passo que pode ser e deixar de ser acompanhado de todos possíveis passos da criatura; o passo que pode incitar ou impedir todo passo humano. Este recuo para a cidadela, [este retorno] entre todas as possibilidades humanas, é sempre a possibilidade totalmente diferente e por isto mesmo a possibilidade que sempre e em toda parte está aberta; é a possibilidade aberta para Deus qual ele é, — o Deus Vivo, o Deus Desconhecido. Onde se encaminhar esse retorno aí estará a Igreja de Jacó acima, por traz e dentro da Igreja de Esaú, (ainda que fosse a mais corrompida igreja clerical) pois mais uma vez repetimos: “Perto de ti está a Palavra!”, diz a justiça de Deus. (Deut, 30, 14). A palavra está à nossa disposição, para ser tomada a sério, para se fazer valer, pronta para nos afligir o mais pesadamente possível e para nos dar a liberdade no mais alto grau; ela está à nossa disposição para ser ouvida e falada todavia ela nunca será ouvida nem enunciada porque é a palavra de Cristo. Nós mesmos esperamos por ela. A problemática de nossa existência é por demais pesada para que não esperássemos pelo som da trombeta com a última pergunta e resposta, vinda do além; contudo, e justamente por ser do além, vem por entre o ruído tumultuoso das penúltimas perguntas e respostas. Semelhantemente, a “Palavra de Deus” pela qual a Igreja é [ou foi] constituída é por demais importante, significativa e transcendental (ainda que ouvida por ouvidos humanos e proclamada por humanos lábios!), para ser administrada a qualquer outro título que não seja na qualidade de trombeta da última pergunta e sua resposta. [A tradução inglesa escreve: “Não podemos suportar” (a palavra de Deus — “ainda que seja ouvida por ouvidos humanos e proclamada por humanos lábios! — salvo se for anunciada como a pergunta e resposta finais”. Talvez pudéssemos interpretar o pensamento do A. resumindo assim: a Igreja foi constituída por Cristo, o “Verbo” (a palavra) de Deus que se fez carne; embora essa palavra nos tenha sido revelada em termos humanos, só a podemos entender, aceitar e suportar se ela, de fato, representar para nós a expressão de nossa derradeira pergunta a Deus e de sua resposta]. Perto está a palavra; para onde quer que olhemos está preparada a dinamite. Todavia se apesar de tudo, nada acontecer ou, se sempre acontecer algo diferente; se não ousarmos correr qualquer risco (o que, aliás, seria o maior dos riscos); se insistirmos em preferir mil dias fora, a um só dia dentro dos átrios do

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Senhor; se jamais quisermos estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que, na realidade, somente mãos vazias podem segurar; se já temos as velas pandas ao vento e as mãos postas no leme antes de sabermos para onde navegaremos; se já iniciamos a construção da torre ou se já declaramos a guerra sem que tenhamos orçado o custo das obras ou contado nossas tropas. — então não podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi impossível; [não podemos dizer que nossa falha foi por motivo de força maior; que não estava em nós, como criaturas humanas que somos, atender e prover o que se impôs, finalmente, como elemento fundamental]. [Não podemos alegar que aquilo que deixamos de fazer foi o impossível] pois mesmo o impossível, como tal, esta próximo de nós, à nossa disposição; impõe-se a nós, quer irromper por nossas portas a dentro: é mais possível do que tudo quanto consideramos possível e viável: a luz brilha nas trevas! Vs. 9 a 11 Porquanto se com tua boca confessares a Jesus como teu senhor e creres em teu coração que Deus o acordou dos mortos, serás salvo. Pois a fé que está no coração conduz à justiça e a confissão da boca conduz à salvação. Ora, a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será envergonhado! (Isa. 28, 16). “O homem que estas coisas praticar, por elas viverá” (10, 5), é o que diz Moisés a respeito da justiça [que vem segundo a lei]. Agora vejamos o que significa “praticar” [ou fazer] “estas coisas”. Outra vez, [e sempre de novo] surge o FUTURUM AETERNUM como promessa: SERAS salvo (!); não SERÁ confundido”; poderíamos juntar também: “SERÁ a Igreja de Jacó.” Qual é a condição que a Igreja tem para “praticar” a lei de maneira a fazer jus à promessa? A resposta; “Se confessares a Jesus como senhor e creres que Deus o acordou de entre os mortos” serás salvo e, ainda: “Todo aquele que nele crer”, não será confundido. Portanto, a condição está nestas três proposições: Jesus o Senhor, a Ressurreição e a Fé. É a mesma condição que Moisés já havia estabelecido; nada mais do que a exigência de nos sujeitarmos à justiça de Deus, conforme sempre o Soubemos e de cujo cumprimento sempre nos esquivamos (10, 3). Não há outra palavra senão esta que Israel encontra em seu coração e nos seus lábios, eternamente pronta, eternamente próxima, se Israel souber o que significa ser “Israel” e quando a Igreja souber tomar a si mesma a sério (10, 6-8).

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Invisivelmente, no lado oposto à posição que a Igreja ocupa segundo a sua possibilidade própria, [nos defrontamos comi o Senhor, a Ressurreição e a fé, como sendo [a outra possibilidade,] a possibilidade de todas possibilidades impossíveis, o abismo dentro do qual ninguém pode saltar e no qual, todavia, todos temos de penetrar. O SENHOR é a impreterível e imperiosa reivindicação; a RESSURREIÇÃO é o que poderíamos designar como a componente singular, estranha e a FÉ é a livre iniciativa do momento absoluto [da força dinâmica] da justiça de Deus. E a existência real desse momento — em contraposição a todo mero idealismo— que testifica ser Jesus, em sua singularidade histórica e sua temporalidade (8, 4) esse SENHOR, o RESSURRECTO, aquele em quem se há de crer e a quem se há de confessar. Por isto, “A FÉ QUE ESTÁ NO CORAÇÃO CONDUZ À JUSTIÇA” e “A CONFISSÃO DA BOCA CONDUZ À SALVAÇÃO”. A seqüência “coração” e “boca” nada significa e nem mesmo “coração” e “boca”, (em si,] têm qualquer importância; (poderiam ter sido citados outros órgãos, por exemplo os pés e as mãos, os olhos e os ouvidos) porém o que importa é a ênfase que [a citação desses órgãos] dá à contingência, à incerteza da existência humana e do modo de ser da criatura na totalidade de sua problemática, [sua ambigüidade], contingência essa que contrasta com a existencialidade, com a realidade, da conversão que, [esta sim] responde [à incerteza da criatura neste mundo] porque se completa, se firma, em Jesus. [A tradução inglesa escreve: “A menção de órgãos do corpo humano neste contexto assegura a ênfase correta. Enfatiza a ambigüidade da contingência da vida humana, para deixar claro que essa incerteza é respondida pela correspondente existencialidade do ponto de conversão e decisão”.]. [E por ser em Jesus Cristo] esta realidade está ao alcance das possibilidades humanas, ainda que seja no seu limite extremo. O homem que isto fizer, que confessar e crer — (e não nos esqueçamos que este procedimento, esta ação, é invisível e inaudível!) — este viverá pela justiça. — Pela “justiça que vem da lei”? — Sim, porque mediante a ênfase dada à existencialidade de Jesus, pela boca que a confessa e pelo coração que nele crê, estamos também dizendo, irrefutavelmente, Lei, Religião, Historia e Alma. Todavia, ao enfatizarmos a existencialidade de Jesus como sendo a [existência real] do Senhor, do Ressurrecto, do “Credor” da nossa Fé, dissemos que a justiça que usufruiremos quando o impossível tornar-se possível não virá da lei mas da fidelidade de Deus. Portanto a exigência (ou a condição que diz respeito à promessa, na realidade, diz respeito ao seu FUTURUM AETERNUM).

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Agora, [de nossa parte] afirmamos e pensamos poder demonstrar que a exigência imposta à Igreja com referência a esta promessa invisível não é desconhecida nem irrealizável. Vs. 12 a 15 Pois não há diferença entre judeu e grego: o mesmo Senhor está acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Porém, como poderiam invocá-lo se não cressem nele? E como poderão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas como poderiam ouvir sem pregador? E de que maneira se poderia anunciálo sem ser enviado? Conforme está escrito: Quão oportuna é a aproximação dos pés daqueles que trazem boas novas! [Comparar com a tradução de Almeida, notadamente quanto às formas verbais]. Visível como o Invisível, conhecido [quiçá reconhecido] como o Desconhecido, formulando e respondendo a derradeira pergunta, — assim se apresenta [e assim é] o Senhor Ressurrecto perante todos os que o invocam. Ele não é um fundador de Igrejas e de novas religiões ao lado de outras ou em contraposição [e oposição] a outras porém, ele é a justiça de Deus; por isso é a chave que abre todas portas, é a onda que passa por sobre as edificações mais altas, é o centro focal de todas as perspectivas; na total amplidão, altura e profundeza de sua vida, ele nos fala de outra possibilidade absolutamente diversa, cuja existência testifica tratando da salvação e do cumprimento [da promessa divina] que se anuncia em sua ressurreição. É por isto que Jesus é o fim [o alvo, o cumprimento] da lei e da religião. Onde quer que se faça referência a este fato [tão extremamente] contraditório [no contexto] de nossa existência; onde sua realidade for pressentida e seu significado pelo menos investigado, aí estão presentes a lei e a religião. Existe, acaso, algum lugar onde isto não aconteça? Onde ocorreria semelhante pressentimento e desejo de entendimento sem que existisse também, potencialmente, a invocação a Deus e, portanto, a invocação do nome do Senhor que nos revela Deus como Deus? Teríamos, acaso, consciência da fatalidade da morte que oprime os homens se não tivéssemos (a incompreensível!) consciência da (impossível!) possibilidade da ressurreição? Acaso existiria a universal aflição humana, ou seria [essa aflição] reconhecida e identificada se não existisse (também) a salvação universal da qual a aflição é sombra? Semelhantemente, também não existiriam nem “Leis” nem Religiões, nem existiriam as perguntas a respeito do mais alto sentido oculto da vida que

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se manifestam [dentro da lei e da religião] se não fosse invocado o Senhor que no mais profundo reconditório é a resposta destas perguntas. Deus respondeu ainda antes que os homens o invocassem e por isto, somente por isto, [por Deus já haver respondido antecipadamente], o invocaram os homens. [Dizemos que] os homens estão enfermos em Deus porque é nele que precisam convalescer. Este é o sentido da situação entre Deus e o ser humano, conforme revelada em Jesus Cristo, que é o “Senhor” desta situação por força de sua ressurreição e que, — na aflição de nossa existência, em nosso suspirar, em nossas perguntas, em nossa procura e em nosso clamor, — revela que [justamente] a riqueza da salvação divina e de nossa convalescença [em Deus] é a raiz oculta desta aflição e desse gemer. [Ao nos aproximarmos de Deus em Cristo Jesus e à medida que formos sendo curados de nossas enfermidades, sentimos o efeito de nossa queda; então torna-se, para nós, bem patente o efeito devastador do pecado: a perda da comunhão direta; o aviltamento e a destruição da antiga imagem e semelhança a Deus. Este sentimento de perda, de culpa e o anseio pelo bem que já agora amamos todavia ainda não praticamos, é o que nos aflige e nos faz sofrer]. A situação é esta: “Não há diferença entre judeu e grego; o mesmo Senhor está acima de todos, rico para os que o invocam, porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”; (Joel 2, 32) [e, também] “todo aquele que nele crer não será confundido” (10, 11). O que significa isto tudo com vistas à Igreja, a cada Igreja, senão que toda Igreja que a si mesma tomar a sério será a Igreja de Jacó? [Todavia,] quando se diz a Israel [que] “TODO AQUELE” [que nele crer será salvo] e quando se afirma que não há diferença entre judeu e grego, trata-se de promessa ou de julgamento? Seja como for, estas duas afirmações constituem o mais expressivo comentário de Paulo aos conceitos de FÉ e JUSTIÇA pois elas atestam, — quer a Igreja goste, quer não — a ilimitada liberdade de Deus, segundo o sentido decisivo que lhes dá a morte de Cristo sobre a cruz. Vale a pena invocar a este Senhor, o “Senhor que está acima de todos, rico para todos os que o invocam”, sem distinção entre judeu e grego porquanto, ao justificar o judeu, justifica a si mesmo porém, ao assim justificar-se não se compromete com o judeu pois também se justifica ao justificar o grego, porque ele é Deus perante todos os homens. É assim que Deus se revela em Jesus, como o Senhor. Se a Igreja for sábia ela se agradará disto pois, sendo assim, ela não é excluída por este Senhor quando o invocar por quanto ele está acima de todos e

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de todos é o Senhor; se ela for sábia, ela o invocará independentemente do que possa acontecer. Mas se a Igreja for louca, então ela se desagradará dessa revelação de Deus em Jesus Cristo; — [desagradar-se-á por Deus não fazer distinção entre judeu e grego, entre o homem da Igreja — desta ou daquela igreja — e o homem do século ou de outra igreja], — pois nesta condição, [ante a inexistência de privilegiados] ela já não está automaticamente incluída [na aceitação divina], nem mesmo por força de sua invocação; se a Igreja for louca, por temor, ela deixará de invocar a este “duro” Senhor. Contudo, Deus é invocado tal qual ele é! Invocado quer dizer conhecido, crido, temido e amado existencialmente; [ de todo coração, de toda alma, de todo entendimento]. [Invocam-no] as pessoas que esperam, submissas, pela justiça de Deus, pela vida eterna (10,5) e pela salvação eterna (10,9 e 13), para não serem confundidas eternamente (10, 11). Estão (tais pessoas) na Igreja ou fora dela? Ou, acaso, são parte de alguma Igreja nova, só deles? Ora, esta pergunta é inconseqüente e é justamente isto o que preocupa a Igreja. (Ao mencionarmos aqueles que SEM LEI esperam em Deus], não nos estamos referindo aos poucos “pagãos” conversos em Roma, Corinto e Éfeso; estes poucos são apenas sinal de conversão totalmente diferente; também não nos referimos a pagãos “nobres” quais Sêneca [por exemplo] e seus pares; não nos referimos a piedosos filhos do mundo, nem a desconhecidos ateus cristãos e semelhantes, pois estes todos são apenas sinal [ou testemunhas] da luz na qual estamos em Cristo, independentemente de toda e qualquer retidão humana. Não falamos de grandeza com a qual a Igreja pudesse concorrer ou pela qual ela pudesse aferir-se, quiçá grandeza que a Igreja pudesse medir e contar por si. Falamos do REINO DE DEUS! Os gentios crentes que, dizemos, invocam a Deus, são quantidade escatológica; não são a reunião, a somatória de indivíduos psicologicamente falando mas a totalidade da grandeza potencial que abrange todos indivíduos, sem qualquer consideração quanto à vinculação que tenham com a Igreja. O Senhor conhece os seus; para estes não é coisa impossível submeterse [a Deus e à sua lei]; eles têm compreensão da realidade de que Deus os conhece e sabem o que isto significa. Esta é a gente que colocamos ante a Igreja. (Quem é parte dela? Quem não o é?) Também a Igreja pode submeter-se à ordem divina e preencher estes requisitos sem nada deles tirar nem lhes acrescentar; sem suplementar — nem anular — o mistério da predestinação por meio de alguma “ordenação de salva-

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ção” — [a precedência de uns sobre outros]; também a Igreja pode colocar-se sincera e reiteradamente na fila dos sucessores do incircunciso Abraão (4, 912) e ter forças suficientes para tomar consciência de sua fraqueza [e confessála] perante Deus. Portanto: “Como poderiam invocá-lo se não cressem nele? E como poderão crer nele se dele não tiverem ouvido? Mas como poderiam ouvir se não houver pregador? E de que maneira se poderia anunciá-lo sem ser enviado?” A invocação [ao nome] de Jesus, o Senhor, emerge do próprio lamento da criatura desde a profundeza de sua aflição, o que se manifesta pela multiplicidade das leis [religiosas] e religiões existentes [no mundo]. Semelhante lamento não existiria se a noção daquilo que é invisível e que está além de tudo quanto podemos constatar não resultasse do conhecimento que a criatura tem a respeito de Deus e que é a condição prévia que se origina totalmente [na própria liberdade] de Deus. Porém semelhante conhecimento a respeito de Deus é FÉ, em sua forma absolutamente recôndita. Esta fé, [por ser secreta, íntima, não exterior,] produz [frutos igualmente “discretos” de índole modesta, ocultos e moderados, quais sejam] o OUVIR, o PROCLAMAR e o COMISSIONAMENTO de mensageiros. Em outras palavras, esta FÉ cria a possibilidade, ou melhor, cria a realidade da Igreja de Jacó, cujos ouvidos ouvem a Palavra de Deus e cujos lábios falam a Palavra do Senhor. Sabemos de que possibilidade estamos falando: falamos do “tempo aceitável”, do tempo final, do tempo da graça e do julgamento. Falamos do tempo e da hora de Deus, quando se aproximam “os pés daqueles que trazem as boas novas”; as boas novas do Reino de Deus, do Poder e da Glória, do lançamento [da implantação] do novo sistema de coordenadas da verdade, que faz nítida separação entre o homem e Deus a fim de colocar os homens, lado a lado, perante Deus; a boa nova do NOVO ISRAEL [de Deus] ao qual ninguém pertence de direito mas, todos, mediante a misericórdia [divina]. Se Deus for o verdadeiro Deus, como não se trataria da “hora aceitável”? E se esta for a hora aceitável, como haveria Deus de deixar de enviar os seus arautos? E como não haveria de ser anunciado, ouvido, crido e invocado o nome do Senhor? Jamais — em tempo algum — houve [ou há] a mínima dúvida sobre a oportunidade do tempo aceitável para contar com a justiça de Deus e portanto, com sua ira que a todos humilha [ou] com sua misericórdia que a todos visita. (... “eis que estou à porta e bato”, (Apoc. 3, 20)... “eis agora o dia da salvação”. (II Cor. 6, 8). A dúvida que existe é [exclusivamente a respeito de nós mesmos]: Se somos as pessoas certas [para sermos os arautos de Deus].

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Não há dúvidas quanto ao brilho da luz nas trevas mas, sim, se justamente a Igreja — a descendência de Abraão — vê essa luz. Vs. 16 e 17 Todavia, nem todos obedeceram ao evangelho, pois Isaías diz: Senhor quem creu em nossa pregação? (Era preciso que a fé viesse pela pregação, porém a pregação pela palavra de Cristo!) “Todavia, nem todos obedeceram ao evangelho”: A palavra (o “verbo” que se fez carne] que é o objetivo da lei, exige obediência. “Aqueles que praticam a lei serão justificados”. Aqui se separam os espíritos. É aqui que a aflição da Igreja se manifesta como sua culpa e sua culpa passa a ser a causa de sua aflição. Então a condição universal descoberta mais acima (10, 12 ss) — [a condição da igualdade dos homens perante Deus, que não faz acepção de pessoas] —já não pode ser confundida com o universalismo racional [que pretende estabelecer] a condição da racionalização do “A PRIORI religioso”, algo que constituísse a base — ou a precedência — de todas religiões chamadas positivas ou religiões do bom senso (o que, na realidade, é conflitante com o espírito do racionalismo genuíno!) Dizemos [ou está escrito]: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”! (10, 13); portanto a universalidade da graça restringe-se a TODO AQUELE que invocar [ou melhor, somente ao que invocar] o nome do Senhor. Esta é a dispensação da graça e a revelação de Deus. A condição deste universalismo [que atinge “somente” aos que crêem] significa a DESTRUIÇÃO (e não a CONSTITUIÇÃO!) de todas religiões humanas; a proclamação da absoluta exclusão de qualquer precondicionamento em questões decisivas, a oposição a toda prioridade religiosa: Deus é livre! É por isto que o Evangelho é a boa nova da Salvação pois ele contrapõe a absoluta soberania de Deus a todas ligações, mediações e pressuposições humanas, (ainda que se tratasse dos pensamentos mais transcendentais!) Em última análise, foi com boa razão que Kant não escreveu uma “Crítica da Razão Religiosa” e não firmou conceitos sobre a religião racional, semelhantemente ao que fez em outras obras suas [entre elas a “Crítica da Razão Pura”, a “Crítica da Razão Política” e a “Crítica do Discernimento”; todavia ele escreveu “A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura” que é provavelmente a obra a que Barth se refere quando diz que, “em última análise Kant teve boas razões para não estabelecer normas ou conceitos de racionalização da religião segundo critérios do bom senso filosófico]. Do ponto de vista humano, [esta prudência, ou abstenção, de Kant] só pode ser atribuída ao reconhecimento da liberdade de Deus, por parte do filósofo

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— (reconhecimento esse que é mais pronunciado [mais vigoroso] em Kant do que em seus detratores religiosos!) Liberdade de Deus exige obediência e obediência requer arrependimento. [Para que a liberdade de Deus tenha livre curso no coração humano, a criatura precisa obedecer à inspiração divina]. Arrepender-se significa aderir à divina, oportuna e extrema possibilidade, [aceitá-la] humilhando-nos ante a ira e a misericórdia de Deus; significa estar aberto à abordagem da mais fervorosa e mais singular das reivindicações que “O Senhor” faz ao ser humano, muitas vezes na forma, quiçá, estranha da “ressurreição”; outras vezes, talvez, na inexplicável livre iniciativa da “fé”. A obediência [da criatura ao Criador existe e] subsiste quando o homem deste mundo, qual o conhecemos, encontra um ponto de penetração, um vazio, no qual a nova criatura pode respirar e viver. A obediência se traduz na compreensão do que seja próprio; na apreensão do sentido do que seja especificamente divino, do que seja o Deus totalmente diferente, o Deus — Rei, Monarca, Senhor Absoluto. [No original está “Deus Déspota”]. Obediência, portanto, significa “adesão partidária” [fidelidade e disciplina partidárias] — em qualquer circunstância: disposição para sacrificar a própria liberdade de movimento à movimentação divina; entrega de todas as coisas importantes deste mundo, de todas nossas exigências, nossas pretensões e reivindicações, à morte. [Obediência significa] estar pronto a abrir mão de tudo “isto e aquilo”, do “aqui e acolá” em que estamos envolvidos; [obedecer significa] estar disposto a abandonar empreendimentos, mudar de hábitos de trabalho, romper compromissos, afastar-se de ligações [alianças ou associações e, por que não? em casos extremos, romper até mesmo os laços de família...]; significa rejeitar [ou aceitar] riscos; deixar que o pêndulo que oscila repouse em seu ponto morto e também permitir que oscile de um ponto ao outro, percorrendo sempre de novo o mesmo caminho, para frente e para trás, sem jamais repousar; (obedecer, significa enfrentar a vida com constante e igual seriedade (e responsabilidade), qualquer que seja o ponto de nosso percurso, a situação em que nos encontremos; significa suportar os golpes que Deus nos enviar em toda sua amplitude, (sabendo em quem temos crido!), jamais esquecendo, nem perdendo a noção de que, em Deus, todas as coisas estão sujeitas ao PARE! divino [e que todas as coisas concorrem, conjuntamente, para o bem daqueles que amam a Deus!]. Tal obediência absoluta estaria de acordo com o Evangelho; porém, quem há que obedeça assim? Com absoluta certeza, nem estes nem aqueles; certamente não há cifras, (não são “tantos e tantos”).

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— [Acaso os que assim obedecessem seriam] a Igreja de Jacó, [ou] os gentios crentes que “sem circuncisão” seguem as pegadas da fé que nos legou Abraão (4, 12)? Quem são eles? Onde estão? Acaso seriam a Igreja que conhecemos, a Igreja de Esaú? — Deveria ser assim. A “Palavra de Cristo” está próxima; dele vem a mensagem que os “arautos” anunciam; pela mensagem percebe-se a fidelidade de Deus e dela deveria nascer a fé dos que são obedientes; porém, nasce ela? [Os arautos] proclamam [a mensagem] sempre estranhamente abandonados, solitários, perplexos, inúteis, intimamente perturbados, não somente perante seus ouvintes mas, verdadeiramente (e não em último lugar,) perante eles mesmos: “SENHOR, QUEM CREU EM NOSSA PREGAÇÃO?” (Isaías 53, 1). Onde (ou quando), pela ação da Igreja, é a criatura levada, em temor e tremor, ao arrependimento, ao respeito a Deus, ao estabelecimento e à preservação da distância que medeia entre Deus e os homens? Onde ou quando, [mediante a Igreja] é a pessoa levada a desmascarar o “indivíduo religioso” [como tal]? Acaso podemos dizer que a Igreja alivia [produz a relaxação] da tensão (que o “sistema” impõe [aos fiéis] ou então, por outro lado, que ela desperta aquele movimento [vivo e eficaz] que não permite [ao crente] parar, mesmo quando ele tem a “felicidade” de encontrar algum esconderijo [ou pretexto] para se acomodar? Será que a Igreja nos conduz, entre [surpresos ou] assustados e felizes, a essa permanente “escuta atenciosa” — permanente, por ser fundamental e básica? Ou então, [acaso ela nos dá forças] para suportar e resistir irreprochavelmente às perplexidades que Deus prepara para nós? Para caracterizarmos melhor a enfermidade da Igreja, convém que mencionemos alguns de seus sintomas: Acaso não está a Igreja, preferentemente, interessada em fugir ao rompimento [dos liames do mundo], interessada em evitar o salto [no vazio da fé], em [procrastinar a] renúncia e o sacrifício de nossas conveniências materiais? [Acaso não nos sugere a Igreja que procuremos agradar a todos], que acenemos à fidalguia e à plebe, às classes cultas e ao proletariado, à juventude e à burguesia, aos contemporâneos e aos circunstantes, (sondando e adivinhando o que uns e outros têm a dizer, [quando não o que querem ouvir,] o que querem fazer, se [acaso] entendem o que a Igreja prega ou se acaso não o conseguem entender?

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Neste seu afã a Igreja revela surpreendente habilidade para aplicar [e adaptar] conotações históricas e psicológicas à realidade divina; habilidade para apresentar paralelismos interessantes — verdadeiras árvores genealógicas espirituais — [relações, correlações,] dependências e diferenciações notáveis [formando e] formulando os chamados “tipos” [ou modelos] para descobertas, [deduções] e achados, fazendo “abaixar” cuidadosamente os gatilhos que [acaso] estejam perigosamente armados. A Igreja tem a elasticidade de uma bola de borracha para absorver os mais duros impactos, [os mais severos castigos] que lhe sejam impostos [e os maiores fracassos] mediante admiráveis considerações sobre a alta significação religiosa [e o alcance espiritual] de tais revezes e golpes. A Igreja consegue fazer-se tão desencorajadoramente “amiga”, “leal” e “correta” que até mesmo Elias ou Amós seriam transformados em figuras “inofensivas”, [inócuas, sem repercussão, anuladas,] se houvessem de pregar as suas mensagens nos tempos que correm. A Igreja tem fabulosa flexibilidade [e habilidade] para prontamente transformar toda — absolutamente TODA, [mesmo a mais minúscula] — fagulha da impossível possibilidade que aparecer, na possível possibilidade de “um movimento” ou de Escola [teológica ou doutrinária], em “linha” [de pensamento] ou em “círculo” [de seguidores]; [a Igreja tem “facilidade” para] transformar [a mais ínfima] fagulha, na “mais recente” ação e proclamação [da verdade divina], animada por Deus mesmo, visando à conversão [do mundo] — [ação e proclamação] — que sempre quando possível, contarão com a publicação de algum livro especial cujo título ou nome dará indicação segura da sua presunção e de seu fracasso final. A Igreja tem o “dom especial” de promover as pessoas, transformando prontamente em líder todo indivíduo que pareça perceber um pouco mais do que alguns outros, anulando-o dessa forma. Finalmente, [mas não com menos significação] a Igreja tem a habilidade de descobrir, sempre e sempre, um refúgio no qual a criatura já não precisa recear sua supressão, onde a pessoa possa ser “neutra”, onde nada mais precisa entregar [ou renunciar]; um refúgio onde, em sã consciência [o crente] possa estar satisfeito com sua própria retidão. Em tudo isto domina a idéia generalizada que a Igreja “naturalmente” não é a “última palavra”; [o crente “acha” que para ele a Igreja não constitui] um fim em si mesma e, assim pensando,] não percebe que este seu raciocínio é mera ilusão que a realidade desfaz.

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[Esta longa enumeração dos sintomas da enfermidade da Igreja é posta nestes termos pela Edição Inglesa: “Como é que a Igreja continuadamente evita a ruptura, o salto, o sacrifício que Deus demanda? “Por que fica a Igreja perpetuamente com o olho em seus contemporâneos, na nobreza, no povo, nas classes cultas, no proletariado, na juventude, na burguesia, perguntando-lhes o que têm a dizer, o que farão da Igreja, se hão de entendê-la ou deixar de a atender? “Por que é a Igreja tão incrivelmente hábil para descobrir naquilo que é divino algo que possa ser descrito historicamente ou analisado psicologicamente? “Como é fácil à Igreja achar e estabelecer paralelos interessantes! Criar linhagens de experiência espiritual, notar as diferenças e ilustrar as dependências entre uma e outra religião; revelar ou inventar “tipos” e depois esparramá-los, como se fossem os chumbinhos de um tiro de escopeta. “Que estranha elasticidade tem a Igreja quando, atingida em plena face por essa sua característica, fala complacentemente do valor religioso da reprimenda! “Quão desoladoramente correta e amiga sabe a Igreja fazer —se! Mesmo um Amós ou um Elias que surgisse como pregador moderno seria tornado totalmente inofensivo. “Com que surpreendente facilidade [a Igreja] transforma o mais leve traço da impossível possibilidade de movimento, em escola de pensamento, em ponto de vista ou em associação, — em cada um deles pretendendo que este ou aquele refrão represente o mais típico entusiasmo moderno por Deus; cada um tem a sua imprensa que faz seu comércio sob algum título indicativo de alguma acomodação do Evangelho e que também mostra o [seu] fracasso certo! “Por que tem a Igreja tanta pressa em amordaçar qualquer pessoa que mostre mais inteligência transformando-a imediatamente em líder? “Finalmente, de onde vem a habilidade que a Igreja tem de descobrir refúgios onde os homens não mais precisem temer sua dissolução, ondelibertos da necessidade de se defenderem — possam usufruir a segurança de sua própria retidão? “Tudo isto é compatível com a mui devastadora ilusão de quase todos, de que a Igreja não é a coisa suprema, nem é um fim em si mesma”.]

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[Ao apresentarmos esse quadro de sintomas] falamos da única Igreja que conhecemos — no passado, no presente — e [sempre] conheceremos neste mundo; daquela Igreja que nunca foi nem será substancialmente diferente; da Igreja que, em todos esses sintomas, apenas deixa transparecer que ela verdadeira e inflexivelmente é a Igreja de Esaú, a Igreja da incredulidade; a Igreja que é e será daqueles que “não ouvem”: falamos da Igreja (e insistimos nisto), com a qual nos declaramos solidários, (9, 1-5 e 10, 1). Todavia nem por isso podemos deixar de dizer, ou melhor, por isso mesmo precisamos dizer que a aflição da Igreja é a sua culpa e que esta sua culpa está na persistência da Igreja em passar ao largo do sofrimento a que está sujeita pelo mistério de Deus. É preciso lembrar que o sintoma de todos sintomas, [o sintoma centra] da enfermidade da Igreja,] está contido no fato inconteste de que não foi o mundo, mas a Igreja, quem crucificou Cristo. V. 18 Porém, digo eu, não haveriam de ouvir? Sim, francamente: por todo mundo se propagou o seu eco e as suas palavras até os confins da terra! (Sal. 19, 4). Deveria a Igreja ser desculpada, [sua culpa ignorada ou, pelo menos, explicada e portanto justificada] mediante a alegação de que ela “ainda não ouviu”, como se nem sequer fora possível ela já ter ouvido?! Como se a “Palavra de Cristo” a [revelação de Deus] fosse alguma novidade da qual se poderia ter ou deixar de ter notícia; fosse carisma, [dádiva divina, privilégio] de gente [de outra parte] que mora algures, em algum recanto do mundo, ou mesmo em outra rua? Como se alguém pudesse afirmar que se trata de tema absolutamente novo? Como se existisse no mundo coisa mais divulgada, [mais anunciada, propagada, de conhecimento mais generalizado] do que [a existência do Deus criador do universo, que é] o “Deus Desconhecido”?! [Que a Igreja pudesse ser desculpada] como se conhecesse outras soluções [ou alternativas que melhor resolvessem o problema de nossa vida e por isso nos levasse a ignorar a “Palavra de Cristo”] quando, na realidade apenas sabemos “que assim não pode continuar”?! [Poderia a Igreja ser desculpada] como se teríamos informação mais segura se acaso hoje descesse um anjo do céu e, batendo na mesa, em voz tonitroante nos dissesse isso mesmo que reiteradamente temos ouvido?! Não! [já] ouvimos [a Palavra de Cristo] e estamos perfeitamente enquadrados; é-nos impossível pretender que não a tenhamos ouvido. [A tradução inglesa escreve assim a exegese do versículo 18: E possível retirar a culpa da Igreja dizendo que ela não ouviu, não ouviu ainda? A PALAVRA

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DE CRISTO seria então uma novidade que alguns teriam ouvido e outros não. Seria uma dádiva dispensada aos que moram em algum canto especial do mundo, em alguma outra rua. Então existiria mais algum conhecimento que não temos ainda. Haveria mais alguma coisa que pudéssemos conhecer se um anjo descesse do céu hoje, golpeasse a mesa e anunciasse a novidade em voz de trovão. Mas não é assim. Quem quer que sejamos, ouvimos a PALAVRA DE CRISTO e estamos em foco. Descobrir que não a ouvimos é, para nós, objetivamente impossível”]. Vs. 19 e 20 Mas, digo, não teria Israel entendido? Já o disse Moisés: Farei com que tenhais ciúmes de um povo que não é povo e provocarei vossa ira contra um povo sem entendimento. E Isaías atreveu-se a ir mais longe e disse: Permiti que me encontrassem aqueles que não me procuravam e revelei-me aos que não perguntavam por mim. (Deut. 32, 21 e Isa. 65, 1). Dar-se-ia o caso que a culpa deveria ser desculpada porque, embora tivéssemos ouvido bem, não pudemos entender? O que é entender? Acaso é estar em algum estado mental apropriado? Acaso “entender” é dispor de tempo? Ou estar adequadamente amadurecido? Ou ter força moral, dotes dialéticos ou fé vigorosa? Onde estão os que assim entendem, na invisível Igreja Gentílica de Jacó? [A tradução inglesa muda ligeiramente a pergunta escrevendo: “Onde se encontra tal entendimento? Haveremos de descobrí-lo em alguma desconhecida Igreja Gentílica, de Jacó?] Existe, acaso, pelo menos um único “entendedor”? Quem há que tenha condições suficientes e disponha de tempo, maturidade, forças, dotação superior e fé, quando se trata de Deus — (quando somos aferidos e conferidos por Deus)? Acaso não conseguimos compreender que se trata, justamente, de entender que não entendemos? [Acaso não conseguimos compreender] que precisamente o povo que não é povo, o povo sem entendimento, é a nação daqueles que entendem? (Acaso não conseguimos entender) que Deus em sua insondável liberdade e em sua misericórdia incondicional permite que o encontrem aqueles que não perguntavam por ele e a esses se revela? [Acaso] é necessário ousar repetir aquilo que Isaías teve a coragem de dizer? O entendimento de que aqui se trata não é algum alcandorado cume de introspecção religiosa ainda por galgar, nem é o último impulso da fé [ou da

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crença] mas é a compreensão de que, em nossa insensatez, somos compreendidos por Deus. Não haveremos de entender isto? V. 21 De Israel, porém, ele disse: Durante o dia todo estendo a minha mão a um povo desobediente e contradizente. (Isaías 65, 2). Fazemos ponto. Culpa não é inocência. Culpa quer dizer: “Podemos, mas não queremos”! Não queremos renunciar a nós mesmos. Não queremos descer do cume que escalamos; não queremos que novo sistema de coordenadas entre em vigor; queremos permanecer nas cabanas e tendas de nosso arraial e não queremos ser conduzidos ao encontro com Deus. (Exo. 19, 17). A inclinação natural da criatura humana e da Igreja parece ser a de pertinaz e desesperançada contradição a Deus. A luz brilha; porém ela brilha verdadeiramente na escuridão. Comentários: 10,4-21 1. Onde escrevemos: “A mais corrompida Igreja clerical” o A. usa expressão pejorativa e mais dura que, aliás, já empregou em outra parte. Escreve o que talvez, se pudesse traduzir como a mais corrompida igreja de padrecos. Penso que Barth quer referir-se a igrejas minadas e dominadas por dirigentes essencialmente legalistas e casuístas; não se refere a pastores, pois também ele o é; não quer atingir aos clérigos desta ou daquela Igreja pois aqui, acolá e em toda parte são muitos os que correm em busca de “uma lei de justificação”. Parece-me que o A. refere-se exclusivamente à Igreja de Esaú, — a Igreja visível que, liderada por seus sacerdotes levou Cristo à cruz! Todavia, em tal Igreja, a despeito de sua má liderança e do ensino impróprio, se e quando nela ocorrer a renúncia às glórias e aos privilégios do mundo para cuidar apenas da mensagem da cruz, aí e então, atrás e acima dela farse-á sentir a presença da Igreja invisível. 2. Barth escreve que a Igreja prontamente anula aqueles que sobressaem de alguma forma, transformando-os em líderes. É certo que nossas Igrejas Evangélicas têm grande “vocação” para erigir os que nelas se destacam, em líderes: oficiais da Igreja, profes-

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sores da Escola Dominical, pregadores. É possível que tendência semelhante se manifeste agora — (com cursilhos, laicato, etc.) também nas igrejas católicas onde, aliás, sempre existiu na categoria de “pensadores” e “escritores”. Ora, a entrega da liderança aos mais aptos não me parece ser condenável e tal promoção não silenciará as pessoas nem as anulará antes lhes dará tribuna maior e auditório mais amplo. Estará errada, porém, se a escolha for feita pelo critério das obras, pela cultura, pela eloqüência, pela representatividade no mundo. Estas qualidades podem ser importantes e até desejáveis, como acessórias, todavia carecem de valor na seara divina e quando os crentes forem guindados à liderança, em função dessas características visíveis, o seu trabalho fica anulado; sua voz perde sonância e não ressoa. Com tais líderes, a Igreja passa a correr ao encalço de “uma lei de justificação”. “Une o meu coração ao temor do Teu nome”. (Sal. 86, 11)

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Capítulo XI

A ESPERANÇA DA IGREJA O Capítulo foi subdividido pelo Autor em três partes: • A Unidade de Deus - Vs. 1 a 10 • Uma Palavra aos de Fora - Vs. 11 a 24 • O Alvo - Vs. 25 a 36 Neste Capítulo Barth conclui o seu estudo sobre a Igreja conforme o Apóstolo a apresenta nos capítulos IX a XI de sua Epístola aos Romanos. Talvez possamos dizer que em sua exegese o A. escreve a trilogia da Igreja: sua aflição, sua culpa e sua esperança. A aflição se gera do permanente potencial de conflito entre a Igreja de Jacó e a Igreja de Esaú, aquela elevando o espírito aos páramos celestes e esta, firmemente apegada ao mundo, prega a implantação da Igreja invisível mas, a cada passo, a cada ensaio menos ou mais vigoroso para desincumbir — se de sua missão, recai ao solo para seu correspondente escândalo e seu escarmento. Prenuncia a Igreja de Jacó porém vive a Igreja de Esaú. Esta é sua aflição. Na aflição, toma vulto a sua culpa. Quer justificar-se perante o mundo e perante Deus; põe-se a ensinar; quer ser exemplo quer ser fonte de benção e, por isso tudo, busca a si uma lei do justificação. Ensina que de graça somos salvos mas sugere (e por vezes até afirma categoricamente) que somente dentro de suas quatro paredes se encontra a salvação. Ensina que a salvação é pela fé, que sem fé é impossível agradar a Deus mas, como é morta a fé sem obras, insiste nestas. E são obras de toda sorte: sociais, políticas, beneficentes, de catequese, de proselitismo, missionárias, eclesiásticas, paraeclesiásticas, ecumênicas e tantas outras. A sua culpa é que ela se esquece que uma só coisa e necessária... Todavia, a aflição vem de Deus e a culpa existe unicamente perante Deus; é por isto que a única e toda esperança da Igreja, está em Deus. É este o tema deste capítulo.

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Deus é um só, no tempo e no espaço. Para Filo (Philo) Deus não pode ter “qualidades” pois qualquer atributo que se lhe desse o restringiria, o limitaria e o materializaria. Para Barth é preciso usar de analogias humanas para explicar Deus; e Deus, que é absolutamente ABSCONDITUS, revela-se aos homens que sabem ver, ouvir e entender, mostrando sua glória, sua majestade, sua retidão, sua liberdade, sua perfeição, sua severidade, sua justiça, sua bondade, sua compassividade, de multiformes maneiras ao alcance do entendimento humano. Revela-se na grandeza das leis que regem o Universo desde o átomo ao macro-cosmos; revela-se em sua santa Palavra; na vocação de homens e mulheres fiéis a seu nome; na dádiva de seu Filho Unigênito; revela-se na dupla predestinação do homem: sua rejeição e sua Eleição. Rejeitando e elegendo a todos encerra na culpa para que vejam a maldade de seus caminhos, se convertam e voltem ao Senhor, cujo perdão é maior, mais forte, mais poderoso do que todo um universo de pecado. O mesmo e único Deus que provoca a aflição, que expõe a culpa e que castiga rejeitando, é o Deus que elege para a vida eterna. Esta é a primeira parte da Esperança da Igreja.

A UNIDADE

DE

DEUS (11, 11-24)

Vs. 1 e 2 (primeira parte) Agora digo: teria Deus banido seu povo? Impossível! Pois eu também sou israelita, do tronco de Abraão da tribo de Benjamin. A seu povo, que Deus reconheceu, ele não baniu. [A tradução de Almeida escreve: “Pergunto pois: terá Deus, por ventura, rejeitado o seu povo? De modo nenhum: porque eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamin. Deus não rejeitou o seu povo a quem de antemão conheceu”]. “Teria Deus banido [rejeitado] seu povo?” “A luz resplandece nas trevas”, O que quer dizer a segunda parte das palavras de João” “as trevas não a apreenderam”. [João 1, 5]; ou então, segundo interpretação moderna e melhor: “As trevas não a sobrepujaram”. [Almeida registra:... “e as trevas não prevaleceram contra ela”.] No entanto aquela primeira maneira de escrever parece mais próxima da realidade; acaso não é certo que precisamos ater-nos a esse duro NÃO! que, de fato, e na medida que o podemos perceber, constitui a palavra final da criatura humana? [Acaso não é certo que] a Igreja volta persistentemente ao ateísmo, que se revela como a própria essência de seu ser, toda vez que ela se vê obrigada a decidir pró ou contra seu verdadeiro tema? [Não é certo que a Igreja está sempre inclinada] a fixar-se naquele “satanismo” do Grande Inquisidor que,

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embora conhecendo a Deus — por amor aos homens — não o quer reconhecer e, assim, prefere mandar matar o Cristo para não dar livre curso à Palavra de Deus, [para não permitir que Deus fale aos que “não são” como se fossem]? Teria Deus aberto inutilmente os seus braços a seu povo? 510, 21). Acaso acontece o que é inacreditável e Deus seja traído sempre de novo na própria Igreja — [e qual a Igreja que não o trai] — deixando de ser servido justamente por aqueles que pretendem servi-lo? [Traído por aqueles que] em sua [pretensa] adoração negam e desmentem com toda a arte e força a seu alcance que Deus é Deus. Onde haverá pois, ainda, esperança? Como se poderá progredir em qualquer direção, partindo de semelhante ponto morto? Haverá alguma esperança para criaturas que trucidaram e sepultaram a esperança com suas próprias mãos? Há alguma esperança para Judas Escariotes? Na verdade, esta pergunta precisa ser feita, por mais amarga e por mais opressiva que seja; jamais pode ser esquecida; se houver alguma esperança ela precisa permanecer presente como fogo consumidor de todas esperanças ilusórias. “Teria Deus abandonado seu povo?” Sem o pano de fundo desta pergunta, a esperança não seria esperança. Como porém, haveria aqui alguma esperança? [Contudo] de onde tomaríamos ânimo para responder com um “IMPOSSÍVEL”! a essa pergunta tão aniquilantemente próxima? Com certeza não seria de algum argumento que mais uma vez falasse a favor da criatura humana; certamente não seria de alguma outra possibilidade disponível ou ambicionada semelhante às que a Igreja oferece. Portanto [o ânimo para afirmar esse “IMPOSSÍVEL”!] não virá nem de uma Igreja melhorada [quiçá reformada ou em constante reformação] nem de alguma nova Igreja. A possibilidade alternativa que os homens e a Igreja de fato têm — e cuja negligência é sua culpa — é a invisível possibilidade divina; toda esperança que fundamentarmos em coisas humanas, visíveis, [ainda que sejam as] mais aperfeiçoadas, aumentará essa culpa automaticamente e jamais a suprimirá. Este “IMPOSSÍVEL!” só pode ser baseado no próprio impossível, isto é, só pode ser firmado em Deus. Fundamentamos (este “IMPOSSÍVEL!”) quando encabeçamos a nossa argumentação com este esclarecimento: “Pois também eu sou israelita, do tronco de Abraão, da tribo de Benjamin”. (Ver também 9, 1-5 e 10, 1). Também eu sou o Grande Inquisidor, o traidor, o recalcitrante e desobediente; sou aquele que, sob o pretexto de servir a Deus e aos homens e de salvar os homens para Deus a todo custo, [como] o multidotado, ouviu e entendeu integralmente [isto é, ficou absolutamente inteirado] do que se trata e que, no entanto, utilizou e se serviu de tudo quanto entendeu e ouviu para esconder de

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si mesmo e dos outros que aqui se trata [exclusivamente] de dar honra a Deus [e a Deus somente]. Quem quer que sejamos [ou pretendamos ser,] deponhamos as armas pois [na realidade,] somos a “Igreja” e tudo quanto lhe diz respeito. Promovemos a mais duvidosa atividade e exibimos a mais suspeita marca deste ou daquele empreendimento religioso (ainda que seja [ou que fosse] a mais privativa e pessoal das religiões!). Somos pois,judeus, católicos, luteranos, ou reformados [presbiterianos] (e fazem-se insistentes advertências para que não passemos de uma confissão [da nossa] para outra). Estamos ou nos arrolamos sob toda sorte de chancelas ou de cátedras. (É igualmente bastante [é sempre muito,] tanto o que se pode dizer contra leigos e teólogos ou contra sacerdotes e professores!) Rolamos sobre os trilhos de alguma antiga e grande comunidade cristã ou, quando isto não pode ser, sobre os de alguma seita nova e pequena e então pretendemos conhecer a tragédia ou o humor de toda essa existência, suas lutas, seus frutos, sua sobrevivência, sua expectativa e sua movimentação. Compreendemos o que Kierkegaard tem a dizer contra semelhante atitude e lhe damos razão. Suspiramos [e gememos] todo dia sobre este “eu também” mas o fazemos mais pela honra e poder que ele representa do que pela Ignomínia e fraqueza que estejam [ou possam estar] subentendidas; esperamos não esquecer a problemática que ele sintetiza e pretendemos dela dar testemunho em cada palavra que proferirmos e em cada passo que dermos. Sabemos que o “eu também” não é inevitável apenas humanamente mas também, e principalmente, é inevitável por parte de Deus. A possibilidade divina só pode ser entendida (e apreendida) na catástrofe da maior possibilidade humana (e isto qualquer que seja a atitude, [a aparência, a posição — o “Gestalt”] da Igreja); não há outra forma [de entender a possibilidade divina] senão através do mais radical “APESAR DE”! (E onde se revela com maior clareza do que na Igreja que entre Deus e a criatura humana existe unicamente este “apesar de” [que segundo a percepção humana expressa a “tolerância” divina?] O homem, [por si] não pode ser justificado por Deus. Não nos libertamos do judaísmo senão como judeus, nem do farisaísmo senão como fariseus e nem da teologia senão como teólogos. [Em outras palavras não nos libertamos da Igreja se não permanecendo na Igreja]. É justamente por causa de sua particular aflição, por sua culpa e porque a Igreja, humanamente falando, não tem esperança é que ela tem a ESPERANÇA, em Deus! “Deus não baniu o seu povo que ele reconheceu” [ou, segundo Almeida, “Deus não rejeitou o seu povo, a quem de antemão ele conheceu”].

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Isto não é anunciado por quem está seguro na praia, nem é do barco que, feliz, se afasta dos destroços do naufrágio, [nem tampouco] do bote salva-vidas que se aproxima transbordante de socorros! Isto é proclamado do alto da própria nau que sossobra. Isto significa que pecar contra Deus, negá-lo e traí-lo, são atos de quem sabe que é parte integrante da Igreja [e que portanto] também ele é Igreja e tudo quanto ela representa. Se alguém não souber isto, se alguém acaso tiver para si solução melhor do que a Igreja [sofredora] e seus lamentos, ou se assim o perceber e seguir, ou se escolher para si alguma pequena trilha particular para contornar a perplexidade da Igreja esquivando-se [dessa confissão] de que “também eu sou”, então tal pessoa de maneira nenhuma conhece a aflição que Deus, como Deus, preparou para a criatura humana, nem tampouco a culpa pela qual o homem está aprisionado na presença de Deus. Portanto, tal indivíduo também está excluído] da esperança que consiste naquilo que se anuncia e se evidencia dolorosamente na Igreja, a saber: que a nossa aflição vem de Deus e que somos culpados perante ele. [Portanto, ele só, pode salvar-nos!] Como é, pois? Se é Deus que estende os seus braços todo o dia, a um povo desobediente e contradizente (10, 21)— e levamos isto tão extremamente a sério, a ponto de nem sequer procurarmos [(diligenciarmos por)] pertencer a esse povo, pois sabemos que a ele pertencemos [e dele fazemos parte] existencialmente e em qual quer hipótese, — então, [por ser a Deus que desobedecemos] por ser ele o Deus inconquistável em quem [e contra quem] nos despedaçamos, —justamente por ser este o Deus, há para esse povo desobediente, [para a Igreja] e existe para nós a insuperável, a vitoriosa esperança. Se é Deus que estende suas mãos para nós, o que pode significar a nossa desobediência, por mais satânica que fosse [ou que seja]? O que pode significar nossa contradição e que [força anuladora] representa o ponto morto a que chegamos? Qual é [ante os braços de Deus que se estendem para nós] o alcance [sobre nosso destino final] do trucidamento e do sepultamento da esperança, que perpetramos? O que representa a traição a Cristo, que praticamos? “O Grande Inquisidor” recebe sobre os lábios exangues e nonagenários o beijo do Cristo [que ele resolvera matar]. “Esta foi a sua única resposta”. É esta resposta única e total que constitui a esperança da Igreja. Esta compaixão eterna fundamenta-se exclusivamente em Deus; ela não pode, por assim dizer, ser deduzida racionalmente [pois não é demonstrável logicamente], porquanto ela excede a todo pensamento [e a todo entendimento humano]. O conhecimento que o ser humano tem de Deus, não o salva mas o traz a julgamento; todavia, o conhecimento que Deus tem da criatura a salva e a eleva. [O A. faz jogo de palavras dizendo, aproximadamente, que o conheci-

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mento que o homem tem de Deus traz o seu “justiçamento” e o conhecimento que Deus tem da criatura traz a sua “justificação”]. Deus é o princípio, [o Alfa] e, por isso também o último, [o Ômega]. Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso, também agracia. Deus leva até ao inferno e por isso também conduz para fora dele. Deus questiona a Igreja, formula a dúvida que nela irrompe e que aí se torna pública como pesada ferida na comunidade [e nas congregações] dos homens mas, por ele a haver formulado, dá-lhe também a resposta. [É fácil compreender e, portanto, aceitar que Deus seja “o Alfa e o Ômega”; é compreensível que Deus conceda a graça e seja também ele quem condene: ELE é o juiz. Talvez devamos partir dessas premissas para entender que Deus é a resposta à pergunta que ele mesmo suscita para então, juntando este novo postulado aos primeiros axiomas, aceitarmos a afirmação extrapolada de Lutero, aqui repetida por Barth, que Deus nos leva até ao inferno para então nos conduzir para fora dele. Não nos esqueçamos de que esta maneira de dizer é apenas analogia, parábola, Deus não conduz ao erro, porém o revela e destaca por contraste. Deus é luz e a luz não produz sombras, embora as projete] Deus é um só, na identidade do Deus da ira com o Deus da misericórdia; [na identidade] do DEUS ABSCONDITUS com aquele que acordou Jesus Cristo de entre os mortos; do Deus de Esaú com o Deus de Jacó. Em poucas palavras: a unidade de Deus que se revelou em sua total invisibilidade, é a nossa esperança. É por isso que, quando não houver outra esperança, quando não houver amparo, nem mediação nem transição, nem a coadjuvação de outras perspectivas, então “a luz resplandeceu nas trevas e as trevas não a dominaram”. “O Senhor não rejeitará o seu povo, por causa do seu grande nome, porquanto livremente ele vos aceitou como seu povo”. [1 Sam. 12, 22— (apud] LXX). Vs. 2 (segunda parte) a 6 Ou não sabeis o que a Escritura diz na história de Elias quando ele se queixava de Israel a Deus? — Senhor, teus profetas eles mataram, teus altares destroçaram e somente eu sobrei e atentam contra minha vida. E o que lhe diz a palavra de Deus? — “Guardei para mim sete mil homens que não dobraram seus joelhos diante da ignomínia de Baal”. Assim também ao tempo de agora existe um remanescente pela eleição da graça. Porém, por ser pela graça, não é por obras pois do contrário a graça já não seria graça. “Senhor, teus profetas eles mataram, teus altares destroçaram, e somente eu sobrei e atentam contra minha vida”.

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A Unidade de Deus

11, 3-4

A unidade de Deus, como esperança da Igreja, precisa ser crida [aceita pela fé] no seu total paradoxo e sua insuficiência. É melhor que [essa unidade] permaneça inteiramente oculta, é melhor que a Igreja não tenha esperança alguma do que, supondo que a tenha vislumbrado, procure obter [existencialmente] aquilo que só pode ser percebido pela fé. Esta esperança, — que é a derradeira, a final, a única, — precisa permanecer totalmente pura, genuína e real. É preciso que fique absolutamente claro que é Deus que questiona, [põe a Igreja em dúvida] e é ele mesmo que responde [com a sua unidade, na eleição]. É por isto que a situação da Igreja precisa ser analisada com o mais absoluto rigor. Dizemos levianamente que [o lamento do profeta] se referia à Igreja de Acab e Jesabel; que Elias se queixava dos filhos de Israel. (IReis 19, 10 e 14). Todavia, esta é a queixa que, do ponto de vista do Evangelho, se pode levantar contra [o Israel de Deus, contra] a Igreja; se não hoje, então certamente amanhã; se não neste sentido ou naquele, então com certeza em algum outro. A queixa, porém se justifica para qualquer que seja o tempo]. [A tradução inglesa escreve que “uma só falha é suficiente para justificar a queixa”.] É sabido que não pode haver qualquer conduta de compromisso entre Jeová e Baal; não se pode “claudicar entre ambos os lados.” pois quando Baal desponta, indubitavelmente, em qualquer lugar, — (por exemplo na teologia, na pregação, no posicionamento político da Igreja), — é evidente que ele passa a ser o Senhor da Casa, pois Jeová não cogita de repartir alguma coisa com ele. As acusações radicalizantes de um Kierkegaard ou de um Kutter, como tais, são justas e neste sentido não podem ser se não fortemente sublinhadas e, por mais freqüente que seja essa acusação, ela jamais será excessiva. Quando se trata de Deus — (e é de Deus que — sem dúvida se trata na Igreja), — então em cada particular [em cada detalhe] se envolve a totalidade. A maior ênfase que se der a um pormenor não é demais para chamar a atenção à problemática do todo e, nenhum merencório protesto alegando que (apesar de tudo) “a Igreja tem muito de Jeová”, pode resistir à força viva da prova de indícios que [os críticos da Igreja] conduzem [contra ela]. Portanto, nenhum [protesto semelhante] pode ser arma de defesa [ou servir de justificativa] contra a necessidade de arrependimento; aqui não se trata de ter paciência mas de assumir a impaciência dos profetas; não se trata de exibir o humor de observador mas de se empenhar em desenfreada ofensiva; não se trata de justiça [e equidade] histórica mas de entranhado amor à verdade, que jamais receie de levantar a pecha de injusto contra este ou aquele ilustre cavalheiro (afinal, nem todos sacerdotes de Baal, em Israel, e nem todos párocos dinamarqueses ou suíços eram tão maus assim!...).

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“Reservei para mim sete mil pessoas que não dobraram seus joelhos diante a ignomínia de Baal” (I Reis 19, 18). Esta é a outra face que Elias não vê. Como haveria ele de ver isto, por mais agudeza que tivesse para as sutilezas da Igreja? Na realidade [esta reserva] não é algo como um rio subterrâneo, escondido, mas é o outro lado, — o lado ou a página — completamente diferente; [é um “aspecto diferente” da Igreja]. Os sete mil não são 7.000 numéricos, por mais paradoxal e chocante que esta afirmação pareça em face ao texto. (“Não é parte ínfima da população do país” (Juelicher) ); não é comunidade de “minoria silenciosa” que Elias pudesse ter encontrado aqui e ali, os conhecesse e pudesse até nomeá-los. Ele tem razão quando diz, “eu fiquei só”! O profeta, como tal, está — por assim dizer — sempre só e [é sempre visto ou tido como] “original”. O QUANTUM de sua alma solitária não pode ser multiplicado nem diminuído. Não se trata de 7.000 indivíduos mas de uma totalidade de SETE MILHARES constituindo avassaladora multidão que, invisivelmente, defende o solitário profeta; são apenas sete mil na minoria que desaparece mas representam, invisivelmente, a totalidade do povo de Israel, na sua qualidade [individual] de objetos da eleição em meio da rejeição, semelhante à Igreja de Jacó por entre a Igreja de Esaú. Assim estão os sete mil em pé perante Deus, mas unicamente perante Deus: seu povo, que ele não rejeitou! Por isso diz a Palavra de Deus que ele não deixa de conhecer [e reconhecer] os seus. [Todavia], (não que existam alguns que acaso o conheçam!), pois a graça de Deus é infinita. (Não que os sete mil sejam agraciados!), pois a unidade de Deus triunfa na imprevisível [e incompreensível] problemática da história da Igreja; (não que existam tantos ou tantos que gozem de alguma paz consigo mesmos!). [Esta Palavra de Deus] fala [de maravilha], de milagre; fala de eleição e de Deus! Portanto, não fala de Assis (São Francisco) ou de Boll; não fala de algum Oásis no deserto (o que aliás, Francisco de Assis e Boll (de Blumhardt) nunca foram, sequer ao mínimo, nem mesmo nos seus momentos mais produtivos! [Blumhardt — ver nota na exegese de 8, 23]). Este deserto não tem oásis! É certo que a qualidade invisível da eleição se torna visível ali e acolá, nesta e naquela pessoa, contudo, mesmo quando invisível ela é maravilha, [milagre] e revelação. A ilha da verdade é submarina, conforme constatamos mais atrás (8, 18). Eu, eu retive para mim sete mil pessoas! Deus quer reservar, unicamente para si a razão e a salvação. Ele tem a razão e ele salva! [Deus reserva para si mesmo, o direito e a razão para salvar a criatura humana].

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Elias não está só e a totalidade de Israel não foi rejeitada, pois aqui Deus entra em cena; justamente aqui, onde termina toda esperança humana, porque Deus, em sua ira, esperou apenas pelo clamor do solitário Elias para provar a esse solitário e a todo Israel que ELE é misericordioso. “Assim, também, no tempo de agora existe um remanescente pela eleição da graça. Porém, por ser pela graça, não é pelas obras pois, do contrário, a graça já não seria graça”. A relação da Igreja com o seu tema é a da temporalidade com a eternidade; do homem com Deus. Isto liquida a Igreja; [a tradução inglesa escreve “isto destroniza a Igreja”]; todavia, talvez também a justifique. Dizemos “talvez” [porque a justificação pode ocorrer] se no juízo e na supressão definitiva que esse relacionamento significa [a Igreja] sentir a própria palavra divina; se a criatura, sentindo sua profunda humilhação, sua fraqueza e seu despedaçamento, tomar consciência do Poder de Deus, [isto é], quando, no instante eterno da revelação, se rompe o véu da temporalidade e Cristo, o Senhor, se inclina para o homem. Que isto acontece, aconteceu e acontecerá, — que este acontecimento é a verdade — isto é o que anunciamos como a boa nova da salvação, [como o Evangelho]. Na medida que isto acontece, Elias não está só; e a Igreja, (a totalidade da Igreja e toda Igreja), não está rejeitada. “No tempo de agora” a Igreja de Jacó já está entre a Igreja de Esaú; está, para os olhos que vêem, para os ouvidos que ouvem, para os corações atentos, onde o amor a Deus foi derramado pelo Espírito Santo; está em palavras que são mais do que palavras; está na disposição de muitos a fazer a vontade de Deus. Quem são estes muitos? Aqui também não se trata de 7.000 que sejam contáveis mas de um remanescente que, se considerado quantitativamente, está em vias de desaparecer e nem sequer pode ser considerado; podemos afogarnos novamente na ilha da verdade que emerge do mar pois toda vez que pé desajeitado tentar pisá-la ela de novo se cobre com a avassaladora caudal. Trata-se novamente da “Eleição da Graça” que diz respeito a todos porém a qual ninguém tem direito; ela se manifesta, mas não como a salvação desta ou daquela pessoa, de sicrano ou beltrano. Tais pessoas, nas quais acaso se podem perceber os pensamentos de Deus (acima de todos!), subsistem apenas pela graça; [é pela graça] que são o que são e unicamente pela graça podem ser percebidos (vistos) em sua qualidade divina. Graça (misericórdia para todos,) é também o que, pela graça, neles se pode perceber. Portanto, este remanescente não pode ser procurado onde se destacam e realçam coisas humanas, em fatos [e ocasiões] notáveis, como tempos [anos, dias, semanas] de perdão, movimentos, [com alvos específicos, campanhas],

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avivamentos, reformas e coisas semelhantes; — tudo isto são obras! [Se isto valesse,] então graça não seria GRAÇA. Se, porém, o remanescente for encontrável nessas obras, somente o será na medida em que Deus também se revelar nelas, isto é, na medida em que nas ondas desses movimentos e desenvolvimentos humanos existir a [verdadeira] obediência (10, 16). Todavia, e com certeza, não será somente aí — por mais que se escandalize toda observação direta — que se encontrará o remanescente fiel; ([aliás,] com certeza não será encontrado em tais movimentos, se aí for procurado!); antes poderá acharse nas partes baixas da curva sim, talvez justamente aí, [na anti-crista, no fundo do vale] onde nem se pensa em obras segundo o critério e o gosto dos historiadores eclesiásticos; lá onde é notório que todo tempo é apenas intervalo, [onde o tempo que passa tem apenas o significado de lapsos secundários da nossa vida e da história do mundo] e onde somente Deus abre os olhos [dos homens] para que eles o vejam; onde somente Deus pode revelar-se e dar-se a conhecer entre a miséria e a perdição humanas. [O A. diz textualmente “onde somente Deus pode re-encontrar-se e se reconhecer entre a miséria e perdição humanas”. Entendo que Barth quer dizer que somente pela infinita misericórdia de Deus pode ele reconhecer na criatura perdida aquela que ele criou à sua imagem e semelhança e aceitá-la conforme está; somente por ser ele o Deus de infinita misericórdia e incomensurável amor, pode ele ver na criatura decaída aquela que ele visitava à tarde, no Jardim do Éden!]. É o conhecimento que Deus toma, [ou tem] dos homens que decide e isto, quer a curva da história da Igreja se incline para cima, quer se oriente para baixo; ou então, quer sejam bárbaros teutões ou piedosos religiosos do século 19 o objeto de sua consideração. Deus não rejeitou o seu povo, porque ele o reconheceu. [Segundo a tradução de Almeida, “a quem de antemão conheceu”]. (11, 2). A criatura humana é eleita pela graça; esta é a mensagem humilhante [para quem confia em seus próprios méritos, quiçá para a Igreja] e por isto é a boa nova da justificação e salvação do “remanescente existente” cuja luz brilha “agora” por entre a miséria e a culpa da Igreja, cuja esperança está unicamente no fato de que Deus se justifica “agora” e agora vindica a sua propriedade. Esta esperança da Igreja é tão certa quanto Deus “agora “ se revela em Cristo como aquele que é nossa aflição e de quem ficamos devedores. [A versão inglesa escreve: “A única esperança da Igreja é que Deus deveria [ou haveria de] agora justificar-se e dar testemunho de sua própria unidade. Esta é, na realidade, a esperança da Igreja porque em Cristo Deus se revela agora como a causa de nossa tribulação e de nossa culpa”. Entendo que Barth quer dizer que:

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lº A graça exige humildade. É o coração contrito e humilhado que se torna aceitável a Deus; a mensagem (da graça) é humilhante, não porque rebaixe a criatura mas porque exclui totalmente a vaidade e a validade da criatura humana. (Porque a torna humilde). 2º A esperança da Igreja é Cristo, porquanto ELE veio para buscar e salvar as ovelhas perdidas da Casa de Israel, da Congregação que correu e corre empós a lei de justificação. 3º A esperança da Igreja, de cada um de seus membros, dos crentes, está no fato de Deus justificar sua própria exigência, dando-se a si mesmo na pessoa de seu Filho Unigênito, para que todo aquele que quiser possa beber da Água da Vida para viver eternamente com Deus, na restauração do céu e da terra, na reinstalação da criatura no convívio ameno com o Criador nas delícias do Éden Celestial, onde o homem redimido trabalhará sem aflição, sem suor, sem incertezas sobre a qualidade de seu trabalho porque Deus será nosso Deus e nós lhe seremos por filhos. Deus será tudo em todos. 4º É em Cristo que vemos a origem de nossa aflição: nosso afastamento de Deus. É em Cristo que vemos a nossa culpa: a estulta ambição de nos tornarmos iguais a Deus. Quando em Deus vemos a razão de nossa aflição e a origem de nossa culpa, achamos também a nossa fortaleza em Deus; então o sol se deterá em Gibeon e a lua no vale de Ajalom; o mar se abrirá para garantir uma via enxuta e segura; as águas do Jordão estagnarão; a criatura velha, egocêntrica, se transformará em Cristocêntrica e o Homem NOVO buscará e invocará a Deus: Aba, Pai! Já não será riscado do Livro da Vida o nome ali inscrito desde a eternidade!] Vs. 7 a 10 Como fica pois? O que Israel procurou não alcançou, porém o obtêm os eleitos. Os demais são endurecidos, conforme está escrito: Deus deu-lhes espírito de profundo sono, olhos que não vêem e ouvidos que não ouvem, até o dia de hoje. E Davi diz: Sua mesa lhes seja por armadilha, por tropeço, aborrecimento e punição. Trevosos sejam seus olhos para que não vejam e que encurves suas costas para sempre! [A tradução de Almeida, registra: “O que diremos, pois? O que Israel busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endurecidos, como está escrito: Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, até ao dia de hoje. E diz Davi: Torne-se-lhes a mesa em laço e armadilha, em tropeço e punição; escureçam-se-lhes os olhos para que não vejam e fiquem para sempre encurvadas suas costas”.]

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Para deixar absolutamente fora de dúvida que nos referimos a Deus quando falamos da esperança da Igreja, paramos para tratar mais uma vez do não que Deus antepõe à Igreja. [Literalmente do NÃO de Deus a respeito da Igreja]. Somente na luta contra este “não” pode surgir a Igreja de Jacó e a esperança ser genuína, pura, real. Este “não” subsiste no fato que precisa ser afirmado mais uma vez (9, 31): “Israel não alcançou o que procura”. Não alcança e não alcançará. Sabemos o que Israel busca: aquela justiça própria sob consciente escamoteação da justiça divina (10, 3); aquela justificação e salvação do ser humano mediante a entronização do homem religioso. Onde se acharia uma Igreja que, após curta hesitação, não voltasse sempre a fazer isso? Quem souber como as Igrejas se realizam [como se estabelecem e subsistem em sua razão de ser] acaso poderia isentar-se da culpa de semelhante busca? — Contudo, a esperança de encontrar essa justificação não pode ser satisfeita. Todas esperanças desse gênero serão sempre frustradas pela sua própria impossibilidade e na impossibilidade divina. Todavia não estará acaso a Igreja, nesta sua procura, ao encalço de algo completamente diferente, algo que ela não se atreve (buscar abertamente) porquanto esta procura não é lícita à criatura humana e se ousasse fazê-lo teria de admitir sua própria total dubiedade? Aqui não se diz que a procura, em si, não seja lícita [ou que seja culposa]. (Pelo contrário: buscai-o para que vivais!), mas a culpa está no esquecimento de que o homem não pode buscar a JUSTIFICAÇÃO; a culpa está na presunção da criatura humana que admite ser capaz de obter a justificação sem se dar conta da imprudência [e leviandade] com que abre mão e renuncia ao que já achou [aquilo que lhe foi dado pela graça] para se entregar à procura certamente inútil [e possivelmente ruinosa — sem dúvida sujeita à ira de Deus!] No limite da possibilidade humana, que coincide com o limite da possibilidade da Igreja, está o homem que não se esquece, que não é presunçoso, que não é imprudente, que se curva à justiça divina e que, assim, alcança justificação: justificação de Deus. Os eleitos alcançaram [ou a eleição alcançou] aquilo que a Igreja pretende em sua procura. Deixamos bem nítido que “eleitos” não significa estes ou aqueles nem os que estão aqui ou acolá, nem os que são denominados desta ou daquela maneira. E pela graça que o são. Eles não podem ser apontados; não podem ser incluídos em nossa programação; nada se pode começar com eles nem com eles se pode contar. Jamais serão luminares da Igreja — não farão Escola. Não

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serão fonte de inspiração a menos que o sejam na forma de impulso para a vida eterna e, assim mesmo, como escândalo. Eles estão ali e acolá mas, com certeza, não onde se clama “EIS AQUI”! Eles têm este ou aquele nome que não é aquele pelo qual são chamados. Eles são conhecidos como os desconhecidos. Eles emergem para desaparecerem novamente. Sua Eleição e sua “realização” não alcançam amplitude [repercussão] histórica, nem nas edificantes estórias da vida nem em abençoada influência na história da Igreja. [A tradução inglesa escreve assim: “Eles emergem apenas a fim de que possam ser submersos. A sua eleição e o êxito com que “ALCANÇAM” não são coisas que possam ser descritas em livros devotos nem a sua “influência” pode ser estabelecida nas páginas da história da Igreja”]. O que neles acaso pode merecer alguma menção (e dimensão) histórica certamente não é a sua eleição nem aquilo que OBTÊM; portanto a Igreja não pode reconhecer nestes portadores de sua própria esperança mais do que a ilimitada liberdade de Deus, sua invisibilidade e secretividade e, nelas, a sua graça; e somente nesta graça, a Esperança da própria Igreja. Nos eleitos a Igreja pode, também, aprender que “Israel não alcança o que busca”. “Os demais, porém, foram endurecidos”. A luz brilha nas trevas, sem ser sobrepujada! Porém, é nas trevas! Desesperança é desesperança e “ponto morto” é ponto morto; não há continuidade entre a alma de um e de outro, entre os portadores da esperança e aqueles a quem ela é trazida: rio há transferência não há “contágio”; não há influência daqueles sobre estes. A interligação [entre uns e outros] faz-se somente em Deus. Também os eleitos somente ALCANÇARÃO “em Deus” aquilo que procurarão em vão se não o obtiverem de Deus. Eles dão testemunho de Deus mas não são nem sementeira divina nem grão ou coisa parecida para os demais. (O Jesus dos “sinópticos” enviou os seus discípulos para anunciar o Reino de Deus, mas não para o estabelecer! (Mat. 10, 7)). [Todavia aqueles que dão testemunho de Deus], os Eleitos, estão sempre [reiterada e continuadamente] expostos ao único e grande risco, ao perigo mortal, de se olvidarem de Deus, [de o omitirem], deixando, assim, de ser suas testemunhas e passando a identificar-se total e absolutamente com os “outros” e, empedernidos como estes, ficarem completamente obturados à possibilidade [da graça] divina. [Ver o que está dito expressamente em Mat. 10, 28]. Disto tudo resta que não há esperança se Deus não operar o milagre — (e é milagre de Deus que se proclama [no Evangelho]). É desta maneira que a Igreja precisa compreender qual é e o que é a sua esperança.

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A Unidade de Deus

Como única verdade visível, resta esta que deve ser inscrita nos umbrais de cada porta de Igreja, no frontispício de cada livro de sermões, na primeira página de cada livro religioso: “Os demais foram empedernidos”. Assim como os Eleitos, também os DEMAIS não são quantidade numérica. Se Deus não for reconhecido como Deus, os “demais” são todos, porquanto Deus quer ser conhecido através de si mesmo; é por isto que aparecem os eleitos e também a exclusão dos “demais” que incluem os eleitos quando estes, na sua existencialidade [sua vida, sua atitude e sua conduta perante os homens e Deus] deixarem de testificar [a eleição]. [Esta última parte é expressa com conotação ligeiramente diferente na versão inglesa que, todavia, parece ter certa riqueza de sentido. Ela diz: “Enquanto Deus não for reconhecido (ou reconhecível todos são “os demais”, e o são através d’Ele. Deus precisa ser conhecido por si mesmo. Daí procede a inclusão dos “eleitos” e a exclusão dos “demais”, aos quais os eleitos pertencem na medida em que sua existência não for a sua eleição]. Toda a aflição da Igreja de Esaú consiste em que Deus a feriu com “um espírito de sonolência”; com “olhos que não vêem” e “ouvidos que não ouvem”; que da parte de Deus a “sua mesa” e todo seu procedimento têm de lhe ser por laço”, por armadilha, por castigo e por escândalo e que Deus “lhe encurva o dorso” sob a lei que não serve para justificação e salvação e contudo não pode ser evitada. Todavia este [mesmo] Deus, que tão desapiedadamente diz NÃO enquanto proclama sua misericórdia; que tão inexoravelmente exclui [rejeita] enquanto a todos atrai a si; que fica assim tão oculto e que se anuncia justamente como o Deus recôndito quando menciona o seu nome, — ELE é a esperança da Igreja. ELE é esta esperança pela sua Unidade, sua Identidade, sua Graça e sua Verdade. É assim e de nenhuma outra forma, que ELE é o nosso pai em Jesus Cristo, o que foi crucificado e que ressurgiu. Donde advirá tanta esperança à Igreja para assentar a sua esperança neste Deus? [De que outro lugar viria senão da cruz?] Comentários: 11, 1-10 À primeira vista pode parecer que Barth defende a tese de que no “grande final” TODOS se salvarão. Todavia, a análise detida da exegese desta primeira parte mostrará que não é assim, conforme aliás o confirma o contexto de tudo quanto foi dito no livro até aqui, principalmente e de modo especial nos dois capítulos precedentes. A raciocinar superfi-

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cialmente poderíamos até mesmo perguntar: se todos estiverem fadados a salvação escatológica, então por que a dupla predestinação? Todavia, não é isto que o A. diz. O Livro da Vida sempre existiu, continua existindo e existirá. Os nomes nele inscritos podem ser riscados a qualquer tempo: as varas enxertadas também podem ser cortadas; outras, cortadas, podem ser re-enxertadas e, por extensão, analogia e lógica humanas, também estas podem ser cortadas novamente. O próprio A. o afirma quando diz que ninguém esteja extremamente seguro de sua situação perante Deus; que aqueles que receberam a eleição, cuidem para permanecer nela. Se não é garantia de salvação permanecer alguém na Igreja, muito menos o é estar alguém fora dela porquanto as coisas vis não podem ser incensadas, sublimadas, pois nem as mais nobres servem para tanto! Quando Barth diz que o Deus que rejeita é o mesmo Deus que elege e que nesta unidade não rejeitará para sempre, que o NÃO divino não é a última palavra, refere-se à parte empedernida da Igreja, à parte endurecida de Israel. Refere-se àquela parte que, buscando para si uma lei de justificação cai nas profundezas da “sombra de José” — julga-se melhor aquinhoada que os demais. Na ira que pesa sobre esta “Igreja” que assim se promove, os “de fora” vêem (ou melhor, podem ver) a justiça divina e assim a Igreja cumpre a sua missão, ainda que na negatividade, (e quem não é negativo?) até que seja despertado nela o zelo de Deus. É nesta coerência de ação, nesta unidade divina que o “remanescente” será libertado de seus pecados; verá na pedra de tropeço, pela qual caiu, a mão estendida do libertador que vem de Sião e será salvo, junto com os de fora que já se apoiaram no braço estendido de quem a todos convida: “VINDE A MIM!”

UMA PALAVRA

AOS DE

FORA (11, 11-24)

Uma palavra aos de Fora é uma palavra de advertência aos que não são Israel; que não são Igreja. É uma palavra aos pobres de espírito que não têm de que e de quem gloriar-se. Talvez percebam a glória de Deus manifesta no Universo mas não acolhem a mensagem que a Igreja quer entregar-lhes; talvez até zombem dela e, com certeza, conservam-se na atitude de quem observa à distância. É uma palavra aos que não conhecem a lei, embora em suas consciências sejam lei para si mesmos e se admoestem entre si. Percebem a aflição e o fracasso da Igreja que baldadamente busca uma justificação que nem sequer o mundo reconhece e que eles, de fora, não entendem; no entanto a alcançam de Deus.

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A eles, pois, a advertência: que permaneçam na bondade de Deus; que não dêem lugar à jactância; que não se ensoberbeçam; que não desprezem seus próximos que estão na Igreja porque dela e por ela lhes é anunciada a Palavra de Deus. É na aflição da Igreja que os “de fora” encontram a paz. É uma palavra de advertência aos gentios para que, na graça que receberam, dêem testemunho dela perante Israel, a fim de que também para este soe a hora da eleição. É uma palavra de advertência aos de fora lembrando-lhes que a esperança deles é a esperança da Igreja, porque toda esperança do mundo está posta na Igreja edificada sobre a rocha que é de tropeço para os que caem mas é também arrimo, apoio e sustentáculo para que nela e por ela se levantem aqueles que caíram. A esperança da Igreja é Jesus Cristo. Acompanhemos a exposição de Barth. Vs. 11 Digo pois: acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível! Porém por sua queda tem lugar a salvação dos gentios — para torná-los ciumentos. [A tradução de Almeida escreve: “Pergunto pois: porventura tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum; mas pela sua transgressão veio a salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes”]. “Acaso tropeçaram para que caíssem? Impossível!” [A Bíblia de Lutero, escreve: “Assim, pergunto pois: “Eles tropeçaram, a fim de que caíssem? Longe disto! Antes, de sua queda a salvação veio ao encontro dos gentios para que, com isto, ficassem com ciúmes”. A RSV diz: “Assim pergunto: tropeçaram eles para cair? De forma alguma! Mas pela sua transgressão a salvação veio aos gentios, para deixar Israel com ciúmes”. A V.S.F. registra: “Observo ainda: se os filhos de Israel tropeçaram, não deveria daí resultar a sua queda? Não, certamente, pois foi em conseqüência de sua falha que a salvação foi levada aos pagãos, a fim de excitar a sua própria emulação”. A “versão interlinear” do grego, por Marshall, registra aproximadamente assim; “Digo portanto: não tropeçaram eles para que caíssem? Que não o seja; mas pela transgressão deles veio a salvação às nações, para provocar ciúmes neles”. Talvez possa parecer à primeira vista que se trata de indagar se Israel não foi induzido ao tropeço para cair e propiciar a salvação dos gentios, em raciocínio, na melhor das hipóteses, irreverente, conforme 3, 5-6 e 6, 1-2. Ou então,

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talvez com menos dolo, se pudesse deduzir dessa passagem que a salvação dos gentios veio em conseqüência da queda de Israel; ou então em outras palavras, que a salvação das pessoas de fora da Igreja resulta do fracasso da Igreja. Ora, tais interpretações estariam em desacordo com o ensino bíblico geral e os evangelhos em particular. (Apenas a título de referência, ver João 3, 16 ss e João 5, 24). Ver também a exegese de 10, 16-21. Como haveremos de entender a passagem? Talvez seja isto: Israel não foi induzido ao tropeço, nem levado à queda. A missão dada à Nação Eleita foi testificar a graça divina; preparar o caminho para a vinda do Senhor em quem seriam (foram e são) benditas todas as nações da terra. Os planos de Deus não são frustrados pela conduta humana (2, 11; Deut. 10, 17; Atos 10, 34 e seguintes; Gal. 2, 2); a missão de “nação sacerdotal” teria de cumprir-se e foi cumprida quer fosse com o coração dócil e leal de um Jó, um Moisés ou um João (o Evangelista) e tantos outros, ou fosse com a dura cerviz de um Jonas, um Faraó, ou de um recalcitrante Saulo. Israel foi de dura cerviz: Jacó lutou com o anjo do Senhor; o povo do deserto quis voltar às panelas de carne do Egito e se serviu do primeiro pretexto que lhes pareceu razoável para fundir o seu bezerro de ouro; a nação constituída preferiu um rei vistoso à liderança do Deus “invisível” de Samuel; adoraram nos “Altos”, aos astros visíveis e abandonaram o Altíssimo que talvez lhes parecesse por demais remoto e, pior do que isto, imaterial. Perseguiram os profetas e se encastelaram em sua própria retidão e justiça; decoraram a lei, viveram sua forma, sua letra, porém não praticaram seu espírito; alardeavam o cumprimento do primeiro grande mandamento e prevaricavam no segundo, semelhante ao primeiro. Negaram ao Cristo a ponto de chamarem o seu sangue sobre eles e sobre seus filhos. Mas teria sido Israel que assim procedeu? Ou foram eles como porção representativa da humanidade — nação, Igreja, autoridade eclesiástica, poder civil — o mundo dos homens naquilo que tinha e tem de mais tipicamente representativo? Na história da rebeldia contra Deus, assim como em sua culminância na crucificação, mesclaram-se sempre os reis, os governados e a soldadesca; o povo, da plebe ao Sumo Sacerdote. Acaso essa infame culminância de endurecimento, a rebeldia, seria restrita à responsabilidade daqueles que no tempo histórico da crucificação se achavam em Jerusalém? Se assim fora, então a ressurreição seria, também, só para as mulheres que encontraram o sepulcro vazio ou, quando muito, do pugilo de pessoas que viveram os poucos dias que mediaram entre a ressurreição e a ascenção.

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Mas não é assim; a graça não tem data histórica, nem lugar geográfico, nem raça, tribo ou nação e também não os tem a transgressão. O mundo todo transgrediu — transgride e transgridirá — ontem, hoje e sempre e nele estão incluídos cada indivíduo, todos os governos e a Igreja (todas as Igrejas) e os seus membros. Todavia, governos e povo não têm a missão específica de testemunhar e anunciar a graça de Deus conforme compete à Igreja e a seus fiéis. É por isso que a transgressão da Igreja, a transgressão de Israel, dá oportunidade à salvação dos gentios, dos que estão de fora, daqueles que não conhecem a lei. Como? Por que? Porque os que estão sem lei, (quando têm olhos para ver e entendimento para compreender), percebem que Deus não opera segundo critérios humanos e por acepção de pessoas; que Deus não se deixa levar por engodos, nem promessas, nem sacrifícios, nem ritos, nem iniciação esotérica ou outra qualquer; Deus não julga pelo louvor, ou pela devoção, ou pela liturgia; nem por flagelação, ou renúncias ou obediência a alguma lei, ou seita, ou denominação. Deus julga e justifica na conformidade de sua eleição eterna pelo que encontra no íntimo de cada pessoa. É pela rejeição divina à pretensa retidão humana que os “gentios quiçá mais vazios em si mesmos, vislumbram mais prontamente a Graça Divina. Talvez possamos parafrasear o v. 11(s), escrevendo que o testemunho da fidelidade (longanimidade) de Deus com a Igreja deu lugar à conversão das “pessoas de fora” e a conversão destas levou (ou leva) a Igreja à plena renúncia de sua própria retidão. Vejamos, porém, o que o A. tem a dizer.] “Tropeçaram para que caíssem? — Impossível”! Do outro lado, frente à Igreja, — de cada Igreja — vemos os pagãos, (os gentios), os “outros”, enquanto a Igreja continua razoavelmente segura de si mesma; consideramos esses “outros” em sua relativa irreligiosidade e, em relação à Igreja que nos está próxima, como aqueles que “não ouvem” e “não falam” conforme ouvimos e falamos; eles são observadores não comprometidos e testemunhas das tentações e fracassos da Igreja. Não há dúvida de que eles vêem o insucesso da Igreja: o mundo o vê e também a Igreja já o viu — há muito — embora, talvez, tenha silenciado a respeito da existência de um fracassar contínuo, um tropeçar, um correr de encontro a algum obstáculo invisível. Acaso não é certo que se nós mesmos formos apenas sofrivelmente sadios, se ainda não houvermos sido contagiados pelo romantismo, não poderemos assistir uma missa católica sem a sensação profunda que “assim não vai” e isto, se nosso sentimento não se expressar muito mais vigorosamente, nos termos do catecismo de Heidelberg?

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Se nós mesmos estivermos de alguma forma “dentro” [envolvidos como participantes] de alguma Igreja, de alguma agremiação filosófica, filiados ou adeptos desta ou daquela linha de pensamento, (o que [de certa maneira], todos estamos!), então precisamos deixar bem claro que aqueles que estão “de fora” não estão melhores que nós [pois eles na realidade estão dentro de outro grupo e pensam de nós, MUTATIS MUTANDIS, aquilo que deles pensamos]. Os eventuais “gentios” estão sempre na posição privilegiada de quem pode afirmar que não se empolga com a Igreja; que ela não lhes causa a impressão de ser coisa essencial; talvez seja honorável mas de maneira alguma digna de crédito. Eles ouvem que nela se trata da Palavra de Deus; isto eles ouvem afirmar mas não vêem a sua comprovação. Como gente de fora eles têm percepção aguda da aflição e culpa da Igreja; do NÃO divino a que está sujeita; eles vêem o espinho contra o qual os que estão “dentro” não podem rebelar-se. O que Deus tem a dizer contra a Igreja é, na verdade, dito contra ela também pelo “mundo”, não importa se este o diz com ou sem entendimento todavia, é por isto mesmo que aquilo que o mundo diz contra a Igreja, somente pode ser tomado no sentido daquilo que se pode dizer contra ela da parte de Deus e de nenhuma outra forma. Portanto, não é como se a fraqueza, a perplexidade, a profunda incredibilidade que sempre revelam a culpa e aflição da Igreja ao mundo fossem a realidade final, metafísica. A Igreja não está liquidada nem foi derrotada, ainda que os “gentios” vejam contra ela dez vezes mais [erros] do que estão vendo. Assim como Deus não abandonará o próprio mundo em sua [evidente e mais do que confirmada] aflição e culpa, assim também [ou melhor, com mais justa razão] não abandonará a Igreja que, a despeito de toda sua dubiedade, é do mundo o ponto mais alto, o seu apogeu. Mundo e Igreja são o que são, apenas em sua relatividade mútua. Como se pode sequer cogitar da exclusão total, absoluta, de uma das partes pela outra? O que é total, absoluto, é a oposição de ambas as partes juntas [Igreja e mundo] a Deus. Do ponto de vista divino porém, tanto a Igreja como o mundo estão extintos. [Vistos do ponto de vista divino] estão liquidados tanto Israel como os gentios. Portanto é impossível que [Israel] tenha esbarrado na pedra de tropeço (pedra de tropeço e rocha de escândalo, 9, 33) para que caísse. “Porém pela sua queda tem lugar a salvação dos gentios”. Aflição e culpa da Igreja constituem o “momento” (o binário) deste invisível movimento de Deus que vai da condenação para a eleição, do NÃO para o SIM, de Esaú a Jacó, de Faraó a Moisés, “momento” esse no qual Deus põe em ação a sua soberana liberdade, no qual ele mesmo se anuncia, no qual ele

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efetiva a filiação do mundo (9, 22-23); por isto (a aflição da Igreja) não é a “última realidade”, [a sua situação final e definitiva]; não se trata de fato metafísico ao lado da retidão ou da glória divina, mas é a manifestação temporal desta glória e da nuvem da ira divina que encobre a esperança da Igreja; é a manifestação do desejo divino de ajudar a todos. “A sua ira dura um instante e a sua misericórdia a vida inteira”. (Sal, 30, 5). A condenação somente existe como sombra projetada pela luz da eleição. Para a criatura deste mundo o NÃO divino é simplesmente o inevitável retorno do reverso para o anverso, para o SIM de Deus. Esaú somente é Esaú na medida em que ele não for Jacó. O empedernimento invisível de Faraó testifica o mesmo poder divino do qual dá testemunho a invisível vocação de Moisés. Aquele que recebe a revelação divina precisa, por si mesmo, tomar a posição de quem recebeu essa revelação e nela põe a sua esperança, a despeito de toda [conscientização] de culpa e [conseqüente] aflição que [tal revelação] traz consigo. [A tradução inglesa escreve: “Aquele que recebe a revelação de Deus precisa submeter-se à tribulação e à culpa que a sua posição implica, para que ele mesmo seja o guardião da revelação e da esperança que tem”]. Primeiro vem Israel: a Igreja. Em sua falha, em sua catástrofre, nasce o segundo. “Por sua queda tem lugar a salvação dos gentios: onde afluiu o pecado, transbordou a graça”. (5, 20). Eleição é a inaudita forma real e possível de salvar a criatura do inevitável fado da condenação. Unicamente mediante a reversão do NÃO de Deus pode subsistir o seu SIM. Jacó é Jacó porque ele não é Esaú. Não há vocação de Moisés que não tenha sido [ou não seja] também a vocação de um incuravelmente empedernido Faraó. É assim que pela transgressão da Igreja acontece a salvação dos gentios. Porém, como acontece? — Pela garantia da graça divina acima de toda injustiça humana. A “injustiça humana” dos gentios, que clama aos céus, se opõe menos à justiça divina, que a retidão humana” da Igreja. Esta posição relativa (e negativa) dos gentios em oposição à Igreja é o momento (o “impulso”) frutífero da gentilidade. É por isto e em nenhuma outra forma que os gentios são justificados com relação à Igreja. Enquanto Deus quer sempre mostrar (e mostra) à Igreja que unicamente ele é Todo-Poderoso [somente ele é Onipotente] e, enquanto a obra humana da Igreja se esfacela sempre de novo em Deus, volve-se a página em favor daqueles que estão de fora; enquanto a Igreja crucifica a Cristo vem a salvação dos gentios.

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“Para os tornar ciumentos”, (9, 19). A conjuntura descrita não permite que se forme a idéia de oposição entre os indivíduos psicológicos “de dentro” e “de fora”, senão por um instante, quando ela surge para desaparecer imediatamente. Ambos são portadores, objeto e instrumento da mesma obra divina. Como possibilidade divina a eleição é sempre também a possibilidade de condenação. O SIM divino brilha até nas últimas profundezas do NÃO, justamente por este NÃO ser tão profundamente radical, por ser o NÃO de Deus. A provocadora preferência dada a Jacó faz com que também Esaú se lembre do Deus de Jacó e na divina origem da vocação de Moisés também Faraó, em seu endurecimento, tem participação — ainda que fosse “por ciúmes”; [ainda que fosse] pelo profundo dessossego que provoca a existência dos eleitos o que, para os condenados, necessariamente significa a demonstração da liberdade divina e a eleição pela graça. Esse ciúme e esse dessossego, — falando como homem, — são a esperança da Igreja; a última palavra com que se pode descrever em categorias subjetivas o que acontecerá com as criaturas não eleitas. É por isto que a Igreja tropeça: para que se patenteiem seus fracassos, sua incredibilidade e o humor involuntário que a envolve; para que se revele a profundamente escondida sombra de José; para que [na Igreja] se conheça de novo na liberdade de Deus que tudo expõe à luz. É desta forma que a aflição e a culpa da Igreja têm seu fim (seu objetivo) e o final [o término], o seu cumprimento em Deus. Vs. 12 a 15 Ora, se sua queda for riqueza para o mundo e seu esvaziamento riqueza para os gentios, quanto mais o será a sua plenitude Digo-o a vós gentios! Justamente na medida em que eu sou o apóstolo dos gentios tenho por honra em meu ministério despertar os ciúmes nos que são da minha carne e assim salvar alguns deles. Porquanto, se a sua condenação dá lugar à adoção do mundo, a sua aceitação não será, se não, a vida dentre os mortos. “Ora, se a sua queda [sua transgressão] for riqueza para o mundo e seu esvaziamento [seu desapossamento, seu abatimento] for riqueza para os gentios, quanto mais será a sua plenitude” [sua aceitação, seu restabelecimento, sua completa e cabal realização]. Há plenitude de esperança em investir contra a realidade divina [esbarrar, tropeçar nela], ser aniquilado em Deus, ter de morrer nele.

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[A tradução inglesa escreve como se fora a conclusão do que está exposto no V. 12: “Tropeçar na realidade divina, ser envergonhado por Deus, ter de morrer em suas mãos é então, uma ocorrência prenhe de esperanças”]. Quem tiver esta experiência pode bem ter caído, mas apenas caído, para erguer-se novamente, apoiado no próprio obstáculo em que tropeçou. Não terá caído definitivamente; não terá tombado em sentido fatal, metafísico, inflexível, absoluto; não será algo para além do limite do tempo [para além da temporalidade]. Cair em Deus, (e porque Deus é Deus) significa a possibilidade de levantar-se novamente pela própria liberdade de Deus. Com isto precisam contar os que estão “de fora” que negam esta possibilidade e que constatam o “desapossamento” da Igreja. Este fim não é final; [não é a última palavra, não é definitivo]. Este fim [este aniquilamento] de Israel, a aflição ou a culpa da Igreja, esse “esvaziamento” conforme se manifesta na crucificação e que somente pode ser revelado ao mundo à luz da cruz de Cristo, é a “riqueza do mundo” e “riqueza para os gentios”. [Ou, em outras palavras, aquilo que constitui a salvação do mundo e para os gentios, somente pode ser revelado mediante a crucificação de Cristo que, por sua vez, constitui o esvaziamento de Israel. Israel, (vale dizer a Igreja,) para alcançar a justificação precisa esvaziar-se de sua própria justificação aceitando a plenitude da cruz (o total cumprimento da lei, em Cristo), que é também a grande oportunidade de justificação dos gentios (e aqui vale dizer dos que não estão na Igreja), que nada têm para gloriar-se]. Na catástrofe [da crucificação — e portanto no esvaziamento de Israel] e na sua contemplação, Deus nos revela que não abriu mão de sua liberdade, de sua invisibilidade, de seu “eterno poder e sua divindade” (1, 20); revela-nos que ele, ele só, quer ser Deus sobre todas as obras humanas. Onde isto for visível, onde se vir isto, seja “dentro” ou “fora” aí, nessa revelação e nessa percepção, está a eleição; aí está a mensagem do Senhor ressurrecto que “é rico para todos os que o invocam” (10, 12); é aí que, aos humildes, ele dá a graça que está além da cruz. Além da cruz está a ressurreição, (mostrada por Deus e visível aos olhos por ele abertos.). Foi aí [na cruz] que Deus se manifestou e deu testemunho de si; foi aí que Deus se fez lembrado como a origem de todas as coisas, como Criador e Redentor. Foi aí que Deus mostrou sua plenitude, patenteando na plenitude da possessão humana a queda do homem, sua negatividade, sua negação, a notória vacuidade humana; [todavia, nesta sua plenitude,] Deus revelou também a sua invisibilidade. A plenitude de Deus! Sua justificação, portanto sua positividade, sua riqueza, sua misericórdia, sua visibilidade. A vacuidade que domina a possessão

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11, 12-14

humana tem fim e o cabedal humano acaba. Não acontece assim com a plenitude de Deus; a positividade que substitui a negatividade, não tem fim. [Ora,] o fim da Igreja é o começo da plenitude de Deus que não só é infinita mas é eterna e, portanto, não é apenas a delimitação das coisas finitas que se lhe opõem à Igreja, mas também a sua supressão, mediante o que não há mais “eleitos e condenados”, “gentios e judeus”, “gente DE FORA e DE DENTRO”, porque agora todos são UM em Cristo. Se o sentido negativo que a supressão final da Igreja representa (que é o que a cruz de Cristo significa!), for a expressão do ato divino mediante o qual Deus se liberta de toda e qualquer restrição humana, [isto é], se isto significa a possibilidade e a realidade da eleição pela graça e da adoção da criatura humana como filho, [por Deus], se significar o lampejo do instante eterno dentro da temporalidade, então o seu sentido positivo (que é o que a ressurreição de Cristo significa!), será a própria Luz Eterna; será a eternidade com sua absoluta ausência de tempo, a vida [da criatura] ressurrecta, a redenção que aconteceu e que acontece; será a exclusão da possibilidade de rejeição por força da eleição. Os que [“de fora”] observam a Igreja e seu insucesso, tomem nota de que as últimas coisas terão lugar quando a Igreja chegar ao seu fim, (11, 15 e 1 Cor. 15, 26— a supressão da morte!; que tomem nota de que esse esvaziamento(!), prepara o advento de [total] preenchimento, (e este ainda mais salutar!). Somente se poderia afirmar que a Igreja “está liquidada “ com extremo temor e tremor ou antes, isto não se pode afirmar de maneira alguma, pois quem suportará saber o que será então? “Digo isto a vós, gentios: exatamente na medida em que sou apóstolo dos gentios vejo a dignificação do meu ministério nos ciúmes que eu despertar naqueles que são do meu sangue, para salvar alguns deles”. [A tradução de Almeida escreve: “Dirijo-me a vós outros que sois gentios! Visto pois que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério para ver se de algum modo posso despertar à emulação os de meu povo e salvar alguns deles”]. Justamente aqueles que “estão de fora” precisam ouvir tudo isto e ponderar a respeito. Eles são justificados através da aflição e da culpa da Igreja. O instante da rejeição dos que “estão dentro” é o momento da salvação dos que “estão fora”. [A realidade de] que a glória pertence exclusivamente a Deus, é a sentença que condena Israel e salva os gentios; a estes em sua total nudez que quase nunca é justificável e quase nunca pode ser atenuada; a estes, em sua quase inqualificável mundanalidade; a estes que não tem a seu favor qualquer motivo

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sério para merecerem a justificação pois é de esperar que para esse fim não fossem incensar as extremas fraquezas humanas. Paulo é o apóstolo dos gentios porque ele vê o Evangelho dirigido exatamente a eles cuja nudez e fraqueza são para ele analogia do desnudamento e da pobreza de toda criatura que, pondo-se perante Deus, é por ele justificada em contraposição a essa outra criatura que [sentindo-se] na sadia plenitude de sua própria retidão, todavia, não está na presença de Deus e não pode ser justificada por ele. É justamente isto que prende Paulo a Israel e o traz sempre de volta a seu povo; é por isto que ele se sente constrangido a iniciar a sua pregação [para onde quer que vá] primeiramente com Israel, conforme Lucas bem o descreve com segurança e propriedade [no Livro de Atos]. A nudez em que está o gentio e que significa a sua predisposição para Deus em contraste com a plenitude de Israel, não pode, por isso mesmo, ser outra coisa que não essencialmente a condição em que a criatura, (e também Israel), se encontra em relação a Deus; este é o ponto onde, deixando para trás sua própria justiça que é seu tribunal, entra em consideração, também para Israel, o divino PORÉM do perdão. Por outro lado onde se poderia vir a saber que o perdão é o “sentido” que está além da nudez humana, [além da pobreza] dos filhos do mundo — se não lá onde, na criação, está a mais alta e última possibilidade humana? Onde toma a criatura ciência de sua posição em Deus [e perante Deus], se não na religião? Onde, jamais, ouviu o mundo de fato, a pregação do perdão se não na Igreja, essa Igreja capitulante, [a Igreja dos fracassos, segundo a vêem os que estão “de fora”?] [A versão inglesa escreve: “Como se pode compreender o perdão como sendo o que está além da nudez humana dos filhos do mundo se o sentido total da vida terrena não for percebido na sua última e suprema possibilidade, — a religiosa? O perdão não pode ser pregado ao mundo se não pela capitulação da Igreja”.] De uma parte o mundo é o espelho no qual a Igreja precisa mirar-se para contemplar sua humilhação e, também, a plenitude de sua promessa; de outra parte, unicamente na Igreja pode o mundo ver a sua relação com Deus. Lembremo-nos porém que neste espelhamento recíproco, Igreja e Mundo não devem ser tomados como grandezas históricas mas, sim, dialéticas. Igreja e mundo são mantidos unidos, [juntos] pela infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem, que estabelece um vínculo qual grampo de aço e que, ali significa a rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna, por assim dizer, impossível dissociar a humanidade para formar os dois respectivos grupos.

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11, 13-15

Uns precisam sujeitar-se a serem desassossegados e postos em ciúmes pelos outros enquanto estes somente podem ver a sua diferenciação naquilo que também justifica os primeiros e que não se faz esperar para salvar alguns deles arrancando-os de seu endurecimento, como sinal [e prova] que também o futuro eterno deles é a eleição e não a rejeição. O “Apóstolo dos Gentios” não seria o mensageiro de Jesus Cristo se ele não se dirigisse com o mesmo empenho ao “gentio” [existente] no judeu e ao “gentio” [existente no próprio] gentio. Nem seria o “gentio” o eleito de Deus se acaso, por isso, [o gentio] insistisse que o judeu, como tal, fosse condenado, — isto é, — que a Igreja fosse liquidada. “Porquanto, se a sua condenação dá lugar a adoção do mundo, a sua aceitação não será senão a vida dentre os mortos” [ou, por outras palavras, a salvação de Israel, isto é, da Igreja, não será menos do que a vida eterna para o mundo, logicamente mediante a fé em Cristo]. A “rejeição” da Igreja se baseia na realidade de que a derradeira e máxima tentativa empreendida pela criatura humana na Igreja — a tentativa de ouvir e falar a Palavra de Deus, — é “titanismo”, [anseio de grandeza] e sua realização é impossível; [aliás,] é justamente esta tentativa que, mais do que qualquer outra, esmaga o ser humano. A prova: Cristo foi crucificado pela Igreja. A Igreja procura a Deus e o rejeita quando ele vem a seu encontro porque não quer aceita-lo e, pelo conhecimento de semelhante catástrofe, tem lugar “a filiação do mundo”. Quando o “homem velho”, alcandorado no pináculo de suas possibilidades na Igreja, perceber que é pecador e que precisa morrer em Deus, então nasce o “homem novo” que tem “paz com Deus” (5, 1). “Fomos feitos filhos de Deus pelo sangue de seu Filho, quando éramos ainda [seus] inimigos”. [5, 8-10]. De que outra forma ou onde veremos este “ainda inimigos” e esta “filiação”, senão no colapso da Igreja? Onde [ou quando] pisou o próprio Paulo a soleira do Mundo Novo senão quando abandonou o farisaísmo no tempo assinalado segundo uma seção longitudinal de sua vida física? É nesta característica da Igreja em colapso e do farisaísmo que a si mesmo suprime que eles têm a derradeira justificação de sua existência: é por este judeu que se interessa o gentio e é por esta Igreja que se interessa o mundo. E esse interesse é cabal! Por eles (judeu e Igreja), a humanidade tem a prova de que sempre há um lugar onde se vai às últimas conseqüências das possibilidades que ela recebeu, lugar esse onde, na evidente impossibilidade do mundo, se mostra a possibilidade de Deus.

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11, 15-18

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Porquanto agora sabemos que a REJEIÇÃO não é a palavra final, a derradeira, a última, nem para as experiências da vida humana (todas elas!), nem para os empreendimentos eclesiásticos — (as atividades da Igreja). Semelhantemente, FILIAÇÃO E PAZ COM DEUS, em sua significação totalmente inaudita, também não são palavras finais. Além da REJEIÇÃO aguarda-nos a ACEITAÇÃO, a absorção das impossibilidades humanas pela possibilidade divina; aguarda-nos a unidade da origem com a presente existencialidade; o revestimento do que é corruptível com a incorruptibilidade; aguarda-nos a eternização do tempo, o Novo Céu e a Nova Terra. Tudo isto espera pela... IMPOSSIBILIDADE DA IGREJA. Se é certo que em nenhum lugar fica mais patente o que seja REJEIÇÃO do que na Igreja, também é certo que em nenhum lugar fica tão claro o que seja a ACEITAÇÃO desta criatura, neste mundo, do que [nesta mesma] Igreja. Quando o homem ouvir falar a Palavra de Deus em verdade e realmente, quando o Evangelho (mas verdadeiramente o Evangelho e não “algum cristianismo” qualquer!) for pregado em todo mundo, quando o programa da Igreja for executado como o programa de Deus, então... — O que diremos “então”? — “Então” não é tempo e é qualquer tempo! Portanto, diremos “aí” para evitar que se pense em possibilidade escatológica temporal e não da possibilidade escatológica final, da qual aqui se trata; [portanto dizemos] aí, quando a possibilidade humana consubstanciada na Igreja coincidir com aquilo que essa possibilidade de fato significa e pretende ser, isto é, [quando a possibilidade humana representada na Igreja] coincidir com a possibilidade do próprio Deus e de Deus somente, aí acontece mais do que FILIAÇAO, mais do que PAZ COM DEUS; aí acontece a “VIDA que vem da morte”. Em outras palavras: a “NÃO REJEIÇÃO” da Igreja mas a sua aceitação, — a realização da Igreja de Jacó; é a mesma coisa que a manifestação da glória de Deus, da qual nos gloriamos AGORA em esperança — mas apenas em esperança — (5, 2); é a mesma coisa que a redenção do mundo por Deus. Onde há esperança, aí há também esperança para a Igreja e isto precisa ser dito a “vós, gentios”, vós que observais lá de fora, (tanto mais que, precisamente como tais, sois justificados!) Esperança da Igreja! Neste sentido, toda esperança é da Igreja, pois na esperança que há para a Igreja está encerrada [enfeixada] toda esperança. Se há lugar onde se toma o caminho para cura da enfermidade do mundo, este lugar será obrigatoriamente, [lógica e necessariamente,] no ponto onde [essa enfermidade] se manifesta [na Igreja!]. — Pelo que esperamos?

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— Esperamos ouvir e falar existencialmente a Palavra de Deus. Se existe no mundo algum acontecimento que merece a atenção geral da humanidade é aquele que, inutilmente, se empreende sempre de novo e reiteradamente dentro de quatro paredes, ouvindo e proclamando a Palavra de Deus (a despeito de, na realidade, [este exercício] sempre se fechar em si mesmo e voltar a si mesmo!). (A tradução inglesa escreve: “Se a humanidade como um todo houver de ter sua atenção voltada a esse evento existencial — [refere-se ao evento de ouvir e enunciar (proferir) a Palavra de Deus) — isto pode ocorrer apenas entre as paredes onde a tentativa de ouvir e falar a Palavra de Deus é feita continuadamente e onde continuadamente falha”.] Vs. 16 a 18 Se as primícias forem santas, também o será a massa. Sendo santa a raiz, também o serão os ramos porém, se alguns dos ramos foram quebrados e tu, como oliveira brava, foste enxertado no lugar deles e feito participante das pingues raízes da oliveira verdadeira, não te ergas acima dos ramos! Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas a raiz mas a raiz a ti. [Ver a tradução de Almeida, ligeira — mas não substancialmente diferente]. “Se as primícias forem santas, também o será a massa. Sendo santa a raiz, santos também serão os ramos”. As santas “primícias”, “a raiz” santa, é a derradeira possibilidade; a possibilidade escatológica, que é o tema e, portanto, o julgamento e a promessa da Igreja; é dela que a Igreja se forma [se estabelece] e por ela a Igreja precisa reformular-se sempre; é nesta possibilidade que a Igreja se despedaça e precisa despedaçar-se. É nela [também] que a Igreja espera não se despedaçar, quando e onde nada há a esperar. (4, 18; 5, 5; 9, 33; 10, 11). Não permitamos que a analogia das “primícias e da massa” ou da “raiz e dos ramos”, nos desvie [e nos leve] à conclusão de que aqui se trata de alguma continuidade “orgânica”, alguma relação imanente entre a Igreja com sua origem e com seu fim. Talvez, usando as palavras “primícias” e “raiz”, Paulo estivesse pensando nos Patriarcas ou então, nos escolhidos de Israel. (II, 9). Todavia, mesmo no caso dessas figuras históricas, sê-lo-á apenas como portadoras daquela possibilidade escatológica mas em nenhuma hipótese como alguma coisa tradicional “extra” ou “intraterrena”, ou como alguma conjuntura deste mundo. [O que à primeira vista parece ser claro no texto é a singela afirmação de que aquilo que é santo, que é separado por Deus pela sua livre e soberana vontade, só pode produzir o que é santificado.

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11, 16-18

Uma Palavra aos de Fora

Assim, como as “primícias da farinha” (Deut. 18, 4) separadas (santas) por Deus e para o serviço de Deus, somente poderiam produzir a massa (o pão) santificado para o Serviço do Senhor, ou assim como a seiva gerada pelas raízes só pode produzir o fruto que a seiva contém, assim também é santo (separado por Deus) quem (ou o que) Deus santificou — seja pessoa, obra ou organização. Este “assim como” não significa paralelismo nem a continuidade ou a igualdade de alguma proposição; é apenas analogia humana do paradoxo e da realidade divina: realidade porque Deus faz o que lhe apraz; paradoxo porque, nessa liberdade, enxerta o que é menos nobre no que é mais nobre, para que nenhum dos dois se orgulhe; para que ambos tenham a Deus por Deus, que a um dá segundo o que não merece: enxerto vil em tronco nobre; ao outro não dá o que pensa merecer: a primazia; para que ambos saibam que Deus não se deixa levar segundo os respeitos humanos, pois perante ele TODOS PECARAM e destituídos estão da glória de Deus]. A santidade da origem e do fim [do Alfa e do Ômega] não pode ser considerada em nenhuma analogia e a participação do “meio” [do “presente século”] nesta santidade — isto é — a ligação [ou alguma interdependência] entre a Igreja de Esaú, nossa conhecida, e a Igreja de Jacó, que não conhecemos, é totalmente impossível. A esperança da Igreja é a santidade de Deus em sua mais absoluta transcendentalidade e maravilha; é a santidade do Deus que habita em luz, onde ninguém pode chegar. Todavia, esta é a esperança da Igreja porque, — conforme acabamos de ouvir, (11, 13-15), — é justamente na Igreja [na posição que a Igreja ocupa no mundo] que a aflição e a culpa [do mundo] tomam corpo em toda sua grandeza [e extensão] todavia, se fazem presentes na qualidade de pergunta que já foi respondida por Deus: esta é a esperança que, na total falta de santificação da Igreja, [verdadeiramente] a santifica e santificará sempre de novo. “Todavia, se alguns dos ramos foram quebrados e tu, como oliveira brava, foste enxertado no lugar deles, não te ergas acima dos ramos” [legítimos] “Paulo é na verdade, um homem da cidade; Jesus, porém, do campo” (Lietzmann). Não; verdadeiramente não é por acaso que Paulo faz esta analogia tão absurda do ponto de vista agronômico; antes ele recorre a esta semelhança para chamar atenção a inviabilidade (ou ao absurdo) de que se trata aqui e que não permite estabelecer qualquer analogia humanamente lógica. O corte dos ramos da oliveira legítima: a condenação da Igreja; o enxerto dos ramos da oliveira brava no lugar dos ramos legítimos: a eleição dos que “estão fora”.

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Uma Palavra aos de Fora

11, 17-18

Uma coisa é tão espantosa quanto a outra, mas é exatamente disto que se trata: Deus não se deixa achar por aqueles que o buscam mas torna-se achável por aqueles que não o procuram (10, 20). [Não há nada que possa justificar a idéia “torna-te achável e Deus te achará” — antes os que isto praticam ou ensinam, buscam a justificação de forma (por assim dizer) ainda pior que Israel (ou a Igreja), pois tentam buscá-la e alcançá-la como que por subterfúgio, por astúcia, talvez “manhosamente”; contra tais levanta-se a ira de Deus! ...] [Isto se dá assim] porque Deus é Deus e quer manifestar-se e de fato se manifesta — como Deus a ambos [os que o procuram e os que não o buscam]. Ele é a raiz santa da árvore e, cortado dele, nem o broto legítimo pode crescer; enxertado nele, mesmo o rebento selvagem pode medrar. Não como se a vara bravia, o gentio, o “de fora”, tivesse qualquer vantagem sobre a vara legítima, sobre o judeu, sobre o “de dentro” [mas porque tira o sustento da “raiz santa”]. A arrogância (ou altivez) dos “de fora” que, em seu suposto progresso livre e selvagem olham a Igreja vendo-a de cima [tratando-a com superioridade] é sempre mais absurda do que seria a atitude inversa. Se, perante Deus, a nudez dos que estão de fora não for pior do que a dos outros, ela de maneira nenhuma será melhor do que a respeitável retidão humana daqueles que “estão dentro”. Entendamos bem: na nudez em que a criatura se torna aceitável a Deus, na inocência infantil ou na lamúria que lhe dá condição para receber a justificação divina, a ser salva por Deus, a criatura está unicamente perante Deus e não recebe [a justificação e a redenção, não goza da aceitação de Deus] por sua “gentilidade” por sua rejeição a Igreja, ou por suas características de filho do “presente século” mas, única e exclusivamente, pela misericórdia de Deus. A sua nudez é apenas analogia da nudez aceita por Deus! Nenhuma “naturalidade original” (inata) da criatura humana, nem a simplicidade ou retilineidade proletária, nem tampouco o muito louvado e muito defendido discurso “antiteológico do religioso “leigo”, nem qualquer outra consciência de fraqueza, subconsciência ou inconsciência, como também não a consciência eclesiástica, podem justificar a criatura humana perante Deus O que se passa na criatura humana desde os exercícios [piedosos] num mosteiro Beneditino até [as práticas quiçá demagógicas] no círculo ideológico da vulgar casa Social-Democrata são degraus de uma escada. Ninguém, jamais, pôde gloriar-se de ter a pobreza de Espírito daqueles que são absolutamente estranhos à Igreja, os tais que Jesus louvou como “bem aventurados” e [cuja “pobreza”] justifica os gentios perante Deus, porque eles nunca existiram. O fato de a possibilidade do perdão divino existir para os que estão fora enquanto declaradamente não está ao alcance dos que estão dentro,

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11, 18-22

Uma Palavra aos de Fora

somente pode ser considerado e respeitado por aqueles, como maravilha, [milagre] nunca porém, como seu direito ou seu privilégio, nem podem eles tomar esta realidade como vantagem sua. “Mas ainda que te levantes acima deles, não és tu que suportas a raiz, mas a raiz a ti”. Isto quer dizer que se tu acaso preferes ser ateu, observador [de fora], esteta, liberal, socialista, naturalista, ou que quer que seja de que te glories em ser, qualquer que seja o nome que dês à tua atitude de consciente autoctonia ou “autonomia” com relação a Deus, [dando lugar à razão ou ao livre arbítrio] em nada se altera a tua situação e não podes deixar de elevar-te acima da Igreja, mesmo porque, tu mesmo, já há muito pertences a alguma igrejinha! Isto não faz a mínima diferença no fato de que tu, — na melhor das hipóteses — (apenas) tenhas razão naquilo que ela — a Igreja — não a tem e que vivas da possibilidade que a Igreja torna impossível [dentro dela]. Sim, (na melhor das hipóteses!) estás dentro do SIM que tem de ser o não para a Igreja. Portanto vives daquilo que está além da tua possibilidade e da sua impossibilidade; vives daquilo que está além do teu direito e além do seu erro, daquilo que está além do teu “SIM” e do “NÃO” da Igreja. É a raiz que te suporta”. Seria mania de grandeza pensar que pudesse ser o contrário: que tu em tua autenticidade, tua pureza, tua honestidade, tua aptidão laical, pudesses ser a própria raiz, a fonte da divindade! Então, [aparentemente]poderias livrar-te da Igreja e de sua aflição; todavia, daquilo que ameaça e julga a Igreja, tu não te livras. Aquilo que tu és, somente o és na medida em que esta mesma coisa [esta aflição e culpa] agora te livra de tua [própria] exaltação! Quem se colocar acima desta libertação coloca-se com a Igreja, na mesma aflição e culpa; esse tal já não está mais “fora” mas já há muito tão “dentro” ou muito mais dentro, [do que os que estão na Igreja,] um ramo cortado — (também os ramos de oliveira brava podem ser quebrados!) — de maneira idêntica ao que acontece [ou pode acontecer] aos ramos aos quais ele quer sobrepor-se. Vs. 19 a 22 Disto há mais a dizer Tu dirás pois: os ramos naturais foram quebrados para que eu fosse enxertado! Muito certo! Por sua incredulidade foram eles quebrados, tu porém estás onde te achas pela fé. Não te ensoberbeças em teu pensamento, mas teme! Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará a ti. Vê a bondade e a severidade de Deus: a severidade para com os que caíram; para contigo, porém, a bondade divina, isto é, se tu te conservares nessa bondade; se não, [então] também tu serás cortado.

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Uma Palavra aos de Fora

11, 20-22

“Os ramos naturais foram quebrados para que eu fosse enxertado”! Esta é, evidentemente, a afirmação triunfante com a qual os “eleitos”, lá fora, sempre procuraram diminuir a posição da Igreja. Perguntamos pois: tem de ser assim? Não poderia ser de outra maneira? [Aparentemente] não pode ser de outra forma [à vista do discurso que tão freqüentemente ouvimos]: é preciso proclamar que nós, (sim, nós e hoje mesmo!) vimos a Deus; fomos arrebatados por ele, o compreendemos, o experimentamos em nossa vida; comprovamos, testemunhamos e ampliamos o seu Reino; enriquecemos nossa existência e [tomamos] a decisão. Abandonamos os caminhos antigos, quebramos as velhas lousas, vencemos o “homem de ontem”, derrubamos os ídolos que servíamos antes do “grande acontecimento”! Eis que agora se aproxima o nosso dia”! (E assim por diante). A isto só podemos responder: “Muito bem”! (Quem haveria de querer combater ou refutar semelhante discurso? Ele é a senha [ou a ladainha] que sempre se ouviu [e se ouve] quando a tiragem do sopro divino abre uma porta aqui e fecha outra acolá; quando a liberdade divina aqui liberta as criaturas e ali as oprime; quando aqui cria um vaso para adorno e mais adiante outro para a imundícia; quando cá se espalha a luz e acolá a sombra. Por isto, aquela maneira de dizer, [aquele discurso] pode, talvez, ser qual analogia da verdade substancial se, ao menos, tiver algum sentido e não for apenas, desde o seu começo, ledo engano. Por que não haveriam os “de fora” de entoar o seu “hino da temporalidade”, [o hino] “da alegria de viver”, como hino de louvor a Deus? Porém, “eles foram quebrados pela sua incredulidade; tu porém estás onde te achas, pela fé”. Este é o critério dos Eleitos que, em todo caso, recomenda cuidado. É perigoso alguém estimar sua própria posição no Reino de Deus. É perigoso o indivíduo imaginar-se como personagem da história da salvação e comparar-se com outros! É perigoso a gente saber bem demais o que e quem se é. É melhor que deixemos a tarefa de nos conhecer, inteiramente a Deus, pois é no seu conhecimento que está a decisão sobre se aquilo [que eventualmente existe em nós, ou que supomos ser] é verdadeiro ou se é mentira e mera presunção. O fundamento para a eleição é a fé e a base para a condenação é a incredulidade. Quem, porém, é crente? [Quem tem fé?] E quem é incrédulo? Tanto a fé como a incredulidade são fundamentadas em Deus, de modo invisível, imperceptível e incerto para nós. É a raiz; a raiz que o faz. E que vantagem terá [ou teria], acaso, o ramo bravo (com respeito à raiz!) sobre o ramo legítimo que foi cortado? Portanto, “não te ensoberbeças em tua mente, porém teme”!

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11, 21-22

Uma Palavra aos de Fora

“O tom de absoluta consciência da salvação, [encontrado] em 8, 28 e 29, não soa aqui” (Juelicher) contudo, soa perfeitamente! Aquilo que lá se diz, refere-se “aos que amam a Deus” e o amor a Deus brota, sempre de novo, do temor a Deus do qual aqui agora ouvimos novamente como o princípio do conhecimento [ou da sabedoria]. Fé não é alguma coisa (como por exemplo “devoção” ou piedade) de que a gente possa gloriar-se ou que alguém possa exibir e contrapor a Deus e aos homens ou então pelo que alguém possa ensoberbecer-se. A fé brota sob temor e tremor por Deus ser Deus; o que não surgir desta forma não é fé mas incredulidade e fundamenta a condenação. Certeza de salvação (se esta duvidosa expressão puder ser empregada!) não é propriedade de alguém que a pudesse trazer a campo contra (ou também a favor!) de alguma Igreja. — Não pode haver incompreensão mais terrível dos Reformadores. É Deus que decide e sua magnanimidade é semelhante à sua severidade; (tanto a magnanimidade como a severidade!) se renovam dia a dia: contemplai-as pois! A eleição pela graça vale! “Certeza de salvação” sem a mais restrita dupla predestinação, certeza de salvação segundo a interpretação que lhe dá o protestantismo mais recente, é pior do que gentilidade! [A versão inglesa escreve assim: “Certeza de salvação,” a frase é de duvidosa legitimidade, — não é possessão que se alegue pró ou contra a Igreja. Somente a completa incompreensão dos Reformadores poderia levar a semelhante opinião. A decisão é de Deus. A sua bondade e sua severidade, por serem suas, se renovam cada dia. Não nos podemos esquecer de que a eleição subsiste pela graça. Uma ‘certeza de salvação’ separada da mais exclusiva ‘dupla predestinação’, isto é, como a certeza conforme tem sido entendida no protestantismo recente, é pior do que o paganismo”.] “O espírito servil de Hagar se exalta quando recebe alguma coisa, mas este é o caminho da expulsão” (Steinhofer). Agora, pois, é necessário lembrar que o discurso já tantas vezes proferido contra a Igreja pelos que “estão de fora”, na verdade, foi sempre o sino que anunciou uma nova Igreja que, [todavia,] nunca precisou esperar muito para sentir a aflição e a culpa da antiga e que logo se reuniu com esta, entre os ramos quebrados. “Porque se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará a ti. Vê a bondade e a severidade de Deus; a severidade para com os que caíram; para contigo, porém, a bondade divina, isto é, se tu te conservares nessa bondade; se não também tu serás cortado. Precatemo-nos mais dos “leigos” que exibem sua laicidade e dos filhos deste mundo que se mostram conscientes e felizes de sua mundanalidade, do que de todos sacerdotes.

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11, 23-24

Aqueles “de fora” que são realmente eleitos, não darão semelhante senha. (A tradução inglesa diz: “Leigos que exibem o fato de o serem e homens do mundo que se mostram satisfeitos com sua mundanalidade constituem — se isto fora possível — ameaça maior do que a pretensão de um clero arrogante. O genuíno eleito que está fora da Igreja evita a linguagem de vitória”.) Vs. 23 e 24 E também aqueles, se não insistirem na incredulidade, serão enxertados. Pois Deus é poderoso para reenxertá-los. Pois se tu foste tirado da oliveira brava que é segundo a tua natureza e contra tua natureza foste enxertado na oliveira nobre, quanto mais estes, com naturezas semelhantes, serão enxertados em suas próprias oliveiras! [A tradução de Almeida escreve o v. 24, mais simplesmente e mais claramente: “Pois se foste cortado da que, por natureza, era oliveira brava e contra a natureza enxertado em boa oliveira, quanto mais não serão enxertados na própria oliveira aqueles que são ramos naturais.” A esperança da Igreja continua inabalável e inatacável. “Aquele que dispersou Israel novamente o reunirá” (ler. 31, 10). É de Deus que procedem ambas as coisas: a condenação e a Eleição. Ambas são, sempre de novo, maravilhosas, incompreensíveis e obscuras. Porém, mais maravilhosa, mais incompreensível e mais obscura que a eleição dos que sempre buscaram a Deus, é a eleição daqueles que não o buscaram; estes têm motivos para esperar exclusivamente pela graça e por isso têm razão para ter esperança com a Igreja e pela Igreja. Comentários: 11, 11-24 Acaso não se salvarão os gentios, sem o endurecimento de Israel? (Ver exegese de 11, 11). — Quem és tu, ó homem, que assim interrogas a Deus? Acaso já não aprendeste que os seus caminhos não são os nossos caminhos e os seus pensamentos não são os nossos pensamentos? Todavia, se perguntas como homem, eis a resposta do ponto de vista humano. Deus elege e rejeita ou melhor, rejeita e elege, porque maior é a eleição. Nisto está a liberdade divina A liberdade de Deus poderia ser comparada à iniciativa do oleiro que da mesma argila faz um vaso para o adorno e outro para a imundícia; Deus mostra sua liberdade preferindo Jacó e preterindo Esaú; conduzindo Moisés e endurecendo Faraó.

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11, 11-24 e 25-36

O Alvo

Por que? Para que? Porque ele é Deus e para que os homens vejam! Vejam, e voltem ao Senhor. Ora, é para isto, para que o gentio veja e receba a mensagem da eleição divina, que Deus endureceu a Israel fazendo dele o instrumento, dócil ou não, nas suas mãos. Lembremo-nos desta outra parábola; Jonas não quis ir a Nínive; todavia Deus não se sujeitou aos caprichos do profeta antes sujeitou-o e a cidade foi salva. Deus não precisa que o homem “queira” obedecer ou esteja pronto a servi-lo. Deus determina. Israel foi nomeada “nação sacerdotal”: “Tu serás uma benção ‘e’ em ti serão benditas todas as famílias da terra”. Mesmo tropeçando, a missão tem de ser cumprida. Mais feliz teria sido Jonas se houvesse partido de coração alegre, para a sua missão; mais feliz seria Israel se não houvesse tropeçado em Cristo Jesus. Mais depressa ter-se-ia arrependido Nínive e mais cedo alcançariam os gentios a sua eleição; Jonas não teria sido lançado ao mar e Israel não teria sido, parcialmente, endurecido. Mas Jonas, do abismo, clamou ao Senhor e, de Sião virá o libertador de Israel. Então raiará a aurora do dia glorioso de Jesus Cristo e se reunirão ao Rei da glória os eleitos de Deus. Israel e os gentios; os de fora e os de dentro da Igreja. Aleluia.

O ALVO (11, 25-36) Assim como a Igreja somente se compenetra de sua culpa e sente a sua aflição quando se defronta com a santidade de Deus; assim como a Igreja não tem em quem depositar sua esperança se não em Deus e em Deus somente, assim também o seu objetivo — o seu alvo — é “apressar o dia glorioso em que os remidos todos se reunirão”; é apressar a plenitude dos tempos — a segunda vinda de Cristo — o que ela só consegue em Deus e por Deus. Nele, por ele e para ele são todas as coisas. O alvo da Igreja é o seu objetivo para o além, é a eternidade, é a habitação nos tabernáculos eternos da Cidade Santa onde, todavia, já não haverá Igreja — onde ela terá deixado de ser — porque o seu Santuário será o próprio Senhor dos céus e da terra: será Deus. A Igreja visível a “Igreja de Esaú”, só pode alcançar o seu objetivo pela esperança que é sustentada pelo firme fundamento das coisas que se não vêem: pela fé! Por isto, o alvo está posto na compaixão de Deus. O alvo está posto na compaixão de Deus porque, na realidade, a ansiedade

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O Alvo

11, 25-27

do coração humano se resume no desejo, no anseio profundo de regressar ao convívio do Pai, na paz e amenidade do paraíso perdido, O alvo da Igreja é o objetivo de seus membros: a possibilidade da plenitude divina para todos os que crêem, quando enfim, na qualidade de novas criaturas, revestidos como eleitos de Deus, vinculados pela sua graça, serão todos “UM EM CRISTO” e Cristo será, eternamente, tudo em todos. Vs. 25 a 27 Porquanto eu gostaria, irmãos, que este mistério não vos passasse desapercebido — e vos emocionásseis em vossos eventuais pensamentos: o endurecimento veio parcialmente sobre Israel, até o advento da plenitude para os gentios. E nestas circunstâncias todo Israel será salvo, conforme está escrito: O Libertador virá de Sião e suprimirá as impiedades de Jacó e esta será a aliança com ele, estabelecida por mim: eu retirarei os seus pecados. [Talvez valha a pena confrontar a redação de Barth com a de Almeida, que se assemelha às demais versões aqui citadas e diz: “Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério para que não sejais presunçosos em vós mesmos, que veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E assim todo Israel será salvo, conforme está escrito: virá de Sião o libertador, ele afastará de Jacó as impiedades. Esta é minha aliança com eles, quando eu retirar o seu pecado”. A S.R.V. deixa mais claro que o “endurecimento” veio sobre PARTE de Israel até que o número pleno [completo] dos gentios “entre”. A Versão Sinodal Francesa escreve, “receando que vos tomeis presunçosos por vossa sabedoria, não quero, irmãos, que ignoreis este mistério: o endurecimento de uma parte de Israel durará até que a totalidade dos gentios seja aceita à salvação”. Todavia, Barth faz um comentário de pé de página sobre a expressão DE SIÃO — isto é, “saindo de Sião”, afirmando que Paulo cita a passagem de Isaías 59, 20 segundo a septuaginta porém com a notável modificação que antecede a palavra Sião; a citação usual em Isa. 59, 20 e “a” Sião ou “para” Sião; segundo Beza — é o A. quem o diz — teria havido descuido de algum escriba ou Paulo teria usado apenas a abreviatura da preposição original. Barth porém conclui que a despeito da firmeza e da clareza da exposição de Beza e também apesar de todos (ou aparentemente todos) comentaristas concordarem tacitamente com essa explicação, ele (Barth) não se sente à vontade para acompanhá-la simplesmente e acha que deve colocar essa interpretação, pelo menos, em dúvida; diz ainda que Calvino tinha razão ao observar que APTIUS AD PROPOSITUM QUADRABAT LOQUUTIO, QUA UTITUR PROPHETA. Se a preposição conforme transcrita for Paulina

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— e o A. não ousa adotar imediatamente a conjetura levantada por Beza, — “então lhe precisa ser feita justiça na exegese”. É o que o A. tenta fazer na exposição que segue]. “Gostaria que este mistério não vos passasse desapercebido — e vos emocionásseis em vossos eventuais pensamentos”. Chama-se ESPERANÇA ter os olhos firmemente postos para a realidade sem esperança; conhecer a sua relatividade, tendo ciência de que o alvo que a esperança busca é o objetivo invisível do além. Esta desesperançosa realidade em seu oculto duplo sentido, no retraimento e na incompreensibilidade que somente podem ser rompidos mediante o “conhecimento” [a percepção] indireto que a esperança proporciona, é o MISTÉRIO. Mistério na linguagem do Apóstolo é aquilo que designamos por PARADOXO. Mistério, é a existência do homem do pecado que impede o raiar do dia de Jesus Cristo (II Tess. 2, 7). Mistério é a perturbadora falta de simultaneidade dos vivos e dos que já adormeceram com relação à ressurreição (1 Cor. 15, 51). Mistério é a unificação — A PRIORI tão duvidosa — de marido e mulher no matrimônio (Ef. 5, 32). Mistério é, acima de tudo, o próprio evangelho, no qual palavras enunciadas por lábios humanos podem conter a Palavra de Deus! “QUOTIES DESPERATIONEM NOBIS INIICIT LONGIOR MORA, OCURRIT MIYSTERII NOMEN” (Calvino). Também a situação entre o homem e Deus, conforme ela se situa sob o ponto de vista da Igreja, é “MISTÉRIO”. Insuportável enigma é o fato de que [no mundo] conhecemos e conheceremos diretamente apenas a aflição e a culpa de Israel; somente conhecemos e conheceremos a Igreja de Esaú. [Considerando que a missão da Igreja é anunciar o Reino de Deus] é realmente um mistério que ela não seja a sede da revelação, conforme ela tanto gostaria e mediante o que ela se sentiria realizada; [mais enigmático ainda é que, paradoxalmente,] até acontece o contrário e, por toda parte e sempre, é na Igreja que se nota o total obscurecimento da revelação de Deus enquanto em outros lugares há revelação e eleição que, simplesmente, passam ao largo deixando a Igreja, toda e qualquer Igreja, de lado e para trás. Este mistério, em primeiro lugar, precisa ser entendido como tal. Não nos deve passar desapercebido, não devemos ignorar, que aqui nos deparamos com um enigma que nos foi proposto (e posto) por Deus e por isso é preciso que [neste assunto o desígnio de] Deus seja tomado em consideração. Ante esta realidade, expressões como “consolado desespero” e “conclamamo-vos a que tenhais esperanças” são manifestações do ser humano em sua extremidade e em contraposição a elas já não têm lugar os “eventuais pensamentos” e as “presunções” com que enfrentamos tão casualmente os enigmas temporais que nos são propostos.

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“Pensamentos eventuais” ante a aflição e culpa da Igreja são todas impacientes agitações auto justificativas que só podem ser explicadas subjetivamente: as irritabilidades, desilusões, tristezas, pretensões, vocação a mártir, [masoquismo], que surgem no mundo por falta de entendimento da problemática final. [A tradução inglesa escreve: “É de primordial importância que não sejamos ignorantes deste mistério [ou que não o ignoremos] pois é o enigma dado por Deus, no qual verdadeiramente o encontramos. O divino mistério da consolação no desespero, de exortação à esperança, está em oposição a todas essas palavras humanas finais, a toda essa sabedoria de nossos PROPRIOS CONCEITOS, a todos esses enigmas que propomos. Confrontadas com a seqüência real dos eventos observáveis da vida humana, nossas palavras são totalmente irrelevantes. Confrontadas com a aflição e culpa da Igreja nossas incansáveis e subjetivas explicações, nosso excitado e irritado dogmatismo, nosso desapontamento e desespero, nosso heroísmo e nossa confiança, apenas expõem os nossos CONCEITOS PRÓPRIOS, porque se originam de nossa falta de entendimento da situação real”]. Vale considerar que o contraste [o antagonismo, a incompatibilidade] entre a IGREJA e o REINO DE DEUS é infindável (9, 6). Neste contraste ninguém pode estar do lado que tem razão e ninguém pode pensar senão com temor e tremor naquele que aqui tem razão. Ninguém tem competência para desesperar do lado humano sem desesperar de si mesmo. Ninguém tem licença para não crer mais na Igreja pois isto seria como se ele estivesse, ao mesmo tempo, deixando de justificar-se. Ninguém está, aqui, em situação de não ter esperança. Estamos perante o mistério de Deus quando nos deparamos com o mistério da Igreja. É só por isto e por nada mais, que há lugar para a esperança. “O endurecimento veio parcialmente sobre Israel até o advento da plenitude para os gentios.” [Ou, em outras palavras, “o endurecimento veio para parte de Israel, até que a totalidade dos gentios entrasse”]. A catástrofe da Igreja mostra-nos uma conjuntura da qual não podemos afastar Deus em sequer um só ponto; “dele, por ele e para ele são todas as coisas” (II, 36). É Deus que torna inevitável a tarefa que a Igreja impõe a si mesma. [A tradução inglesa escreve: “É através d’Ele que a tarefa da Igreja se torna inevitável. Mas Ele é a impossibilidade que priva a Igreja de cumprir sua tarefa”]. Ele [Deus] é a grande impossibilidade que inviabiliza essa tarefa. É a ele (Deus) que [justamente nessa tarefa] a criatura humana fica devedora. É Deus que aperta o ser humano de todos os lados como se fora um grampo de aço e

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que assim se revela ao homem (se dá a conhecer) como o único Deus, como o que está além [do outro lado] da culpa e da aflição; [dá-se a conhecer como] o alvo [da criatura neste mundo e, quiçá no além]. O mesmo Deus que elege Saul, condena esse Saul para eleger Davi. Por que? Porque ele é Deus! “Minha alma está calada perante Deus, que é meu auxílio” [Sal. 62, 1]. É justamente esta obra inaudita que é divina. Obra ordenada [mandada] e mansa [silenciosa, calma, pacífica] em vista da qual se pode e se precisa ter esperança [porque ela se impõe drasticamente]. Fora essa obra menos inaudita não seria divina e à criatura humana restaria algo mais do que permanecer silenciosa e ter esperança. Velado e oculto fez-se Deus aos olhos de Israel; fez-se desconhecido e impossível para eles. A criatura (na sua qualidade de ser humano) não pode conhecer a Deus; os homens não [o] verão com os olhos que vêem nem [o] ouvirão com ouvidos que ouvem; “é inútil todo o humano querer e buscar; inúteis são as ponderações e os anseios dos homens. O ponto decisivo se perde [sempre] e precisa ser perdido. A criatura não chega ao arrependimento, nem deve chegar a ele, por causa do arrependimento verdadeiro e, “mesmo que tentem abocanhá-lo, como o cão à mosca, ele foge sempre”. (Lutero). Isto é o endurecimento e esta é a situação da Igreja de Esaú. Justamente porque a opressão de Israel é tão grande, porque ela é interminável, ela tem um verdadeiro ALÉM, um fim real em Deus — o próprio Deus — que é o ALÉM de todo ALÉM; o fim de tudo quanto é “infindável”. O “endurecimento” é, em primeiro lugar, apenas parcial, apenas relativo, porque procede de Deus. Existem sempre sete mil eleitos (11, 14), invisíveis, que já foram consolados na opressão e dela salvos, os quais se opõem à totalidade dos corrompidos. A alta muralha que sempre e por toda parte separa o ser humano de Deus, torna-se transparente (quando o milagre acontece e, portanto, nunca e em lugar algum [separa os homens de Deus]: o Senhor conhece os seus! Em segundo lugar, o “endurecimento” não é mais do que uma condição temporária da criatura. A eternidade sendo manifestamente o limite da temporalidade, é também o fim deste “endurecimento”. A eternidade é a origem de onde a temporalidade procede e é também o alvo para onde ela segue. O fim é o alvo do “endurecimento” e a possibilidade escatológica da “entrada da plenitude para os gentios”. (II, 12 e 13). Esta possibilidade [escatológica] divina precisa, manifestamente, ser precedida pela exaustão [total] das possibilidades humanas (isto é, quando já não houver mais “endurecimento”; a morte do “homem velho” precisa preceder

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ao nascimento do “homem novo” e o raiar do dia da salvação precisa ser precedido pela catástrofe da Igreja. Naquela Jerusalém onde não haverá templo, [não haverá santuário porque o seu santuário é Deus e o Cordeiro], os gentios salvos [as nações da terra] andarão à luz da glória de Deus e do Cordeiro [que é sua lâmpada]. (Apoc. 21, 22-24). Conhecendo este alvo e este fim, vale a pena conservar as vistas voltadas [em firme esperança] na desesperançada realidade do endurecimento de Israel; vale a pena permanecer em silêncio e ter esperança. “Nestas circunstâncias, todo Israel será salvo”. A salvação dos perdidos, a justificação dos que não têm justificação, a ressurreição dos mortos, precisa proceder exatamente de onde veio sua catástrofe. A Igreja é a corporificação do ser humano que recebe a revelação de Deus; porém este ser humano, como tal, está perdido, sem razão e morto. (Este é o mal de José que irrompe na Igreja). A salvação, a justificação e a ressurreição só podem ser esperadas pela criação da nova criatura mediante a revelação de Deus; [esta nova criatura] então, invisivelmente, entra no lugar da “velha” da qual é o alvo, o sentido e a plenitude, da mesma forma que esta “velha”, em seu “endurecimento”, toma o lugar da “nova” no mundo ou, pelo menos, o marca e guarda; na verdade, a “criatura velha” constantemente compromete a “nova”, por ela sofre e por ela espera. A criatura velha é a prefiguração “daquele que há de vir”. (5, 14). Esta “nova criatura” vindoura, salva pela revelação de Deus, justificada e vivificada, constitui junto com os eleitos de Israel, a gentilidade eleita em Cristo. Também aqui, achamos que não se trata de grandeza histórica, de certa soma de indivíduos anímicos, nem de conscientes ou inconscientes “cristãos gentílicos”. A existência casual de alguns “cristãos gentílicos” tem apenas sentido demonstrativo pois significa que a nudez, a cegueira, a desesperança do gentio, em contraste com a plenitude, a saúde, a satisfação e a certeza de Israel, aponta ao homem eleito pela graça, em Cristo. O Homem Novo — “Jacó” — não pode ser caracterizado mais claramente como a pessoa criada por Deus do que mediante o contraste com seu irmão mais velho — “Esaú” — este na qualidade da pessoa que “ouve” e “fala” a Palavra de Deus. Não se pode expressar mais claramente que a pessoa que ESCOLHE a Deus, precisa dar lugar à pessoa ESCOLHIDA por Deus. Isto é o que precisa ser dito e ouvido. Este é o sentido da dupla predestinação; este é o mistério de Deus e o alvo de sua sempre reiterada e preservada liberdade.

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11, 26

O Alvo

Quando isto for proclamado e ouvido completa-se a revelação de Deus aos homens e então acontece a impossível possibilidade escatológica; nesta possibilidade, aquele que a recebe [que recebe a revelação] só pode retroceder, só pode diminuir, só pode desaparecer e, assim retrocedendo, diminuindo, desaparecendo, é salvo, justificado e despertado; salvo, como aquele que se perdeu, justificado sendo indigno de justificação, despertado de entre os mortos. Este é o acontecimento impossível que se torna possível em Cristo; é Deus testificando e resguardando a sua divindade não apenas em sua ira porém, também e de forma totalmente diferente, em sua misericórdia. Em nenhuma outra circunstância (e de nenhuma outra forma) pode a criatura encontrar socorro, mesmo quando estiver no ponto mais alto de suas possibilidades, ouvindo e falando a Palavra de Deus. Não há qualquer meio de salvação, justificação e ressurreição em eventos históricos e psicológicos. Salvação existe somente no FUTURUM RESSURRECTIONIS, na contemplação da invisível existência de Deus. Isto vale para todo Israel, para a totalidade da Igreja, para cada Igreja; isto é a prefiguração daquilo que é vindouro, é o cumprimento da profecia, é o canal ao longo do qual jorra a água viva da revelação. “Só onde existem túmulos, há ressurreições”, (Nietzsche) mas há ressurreição onde sempre existem túmulos. Onde a Igreja estiver extinta (não por força do desejo — ou voto — humano, mas pelo julgamento divino!), aí ela tem o seu início; quando ela for destituída completamente da razão (da justificação), aí começa a sua razão. Onde e quando todas Igrejas estiverem liquidadas (por Deus!), aí e então todas elas subsistem; aí e então todas são indicação, soleira de entrada, flecha indicativa da outra margem do rio; testemunhas da esperança, mensageiras da filiação em Cristo, tabernáculos de Deus entre os homens. Onde [e quando] os gentios forem os missionários da mensagem da liberdade e da misericórdia de Deus junto à Igreja, com toda promessa e humilhação que essa mensagem contém, então pode ser que, de fato, tenha chegado a hora de a Igreja enviar a missão aos gentios; tal oportunidade deve, então, ser aceita e aproveitada o mais depressa possível, com a máxima alegria e com toda diligência, conforme se o pode notar no próprio Apóstolo. A Igreja assim dobrada (assim humilhada), pode e deve assumir o seu tema de fronte erguida e a Igreja perdida se tornará a portadora da mensagem da salvação. A Igreja espantada [surpreendida] pode e precisa falar do Deus com o qual se transpõem as muralhas. A Igreja, irremediavelmente consciente de suas limitações pode, então, impávida e incansável, ousar desincumbir-se de sua desalentadora tarefa, que não tem fronteiras.

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O Alvo

11, 26-27

A profecia do “segundo” Isaías sobre o servo de Deus que as nações devem ouvir surgirá então e terá cumprimento. Onde a palavra da Cruz for reconhecida e aceita como sendo a impossibilidade divina que se opõe a toda carne, aí também se reconhece que Cristo ressurgiu, e sua ressurreição vale! Aí se toma [esta realidade] como a possibilidade de Deus em espírito e em verdade. [O “segundo” Isaías refere-se ao “Profeta do Exílio” cuja mensagem começa com o Cap. 40; nesta parte do seu livro Isaías fala da promessa de Deus de libertar o seu povo enviando-lhe o Messias e a promessa da “implantação” da “Nova Jerusalém”]. “O Libertador virá de Sião e removerá as impiedades de Jacó, e esta será a aliança com ele, por mim estabelecida: eu retirarei os seus pecados.” (Isaías 59, 20 e 27, 9). [Talvez seja oportuno lembrar aqui que Barth quer dar ênfase ao de Sião, como origem, como procedência. O Libertador será alguém “natural” de Sião, originário de Sião, conforme também escrevem as demais versões que temos usado como referência diferindo, portanto, do texto análogo, de Isaías, porém coincidindo com a redação do Salmo 14, v. 7. É interessante notar que Sião simboliza a família real” de Davi e, também, a Igreja de Deus.] Por meio destas reminiscências da escatologia do Antigo Testamento queremos sublinhar que consideramos a possibilidade divina como a chave do “mistério”, como o objetivo, (o alvo) do obscuro desenvolvimento da história da Igreja, conforme o conhecemos; referimo-nos às coisas derradeiras, ao evento da própria “parúsia” [galicismo para a volta gloriosa de Jesus Cristo, no final dos tempos]. Cristo é a “plenitude para os gentios”, a maravilha do divino SIM dito à humanidade não redimida. Ele é o Redentor. Ele é a existencialidade da criatura que reunindo duas [a “velha” e a “nova”] perante Deus é UNA e, nesta [uma criatura] a rejeição foi sobrepujada e tragada pela ELEIÇÃO. Ele vem de Sião; de cima; do alicerce invisível da Igreja do qual procede, também, a sua rejeição; vem da glória do Trono de Deus; com ele [Cristo] estão a divindade e o poder da realeza; a criação é a sua manifestação e esta jamais acontece [em outra forma] porque — em todos os tempos — ela é mistério, supressão, fundamento e eternidade. É também por isso que a sua obra é inaudita: o afastamento das pecaminosidades de Jacó; a remoção do invólucro de tudo o que é impossível, limitado, desviado, feito segundo os parâmetros de Esaú; o afastamento de tudo quanto encobre, agora e aqui, a Igreja de Jacó; é a celebração da nova aliança que parte do próprio Deus, e deste só, e que subsiste na “remoção” que arranca, apaga, destrói os pecados e o pecado, restaurando a criatura humana em sua unidade com Deus a qual, aqui e agora, ela perdeu completamente. Estamos novamente no limite das palavras humanas e, por isso, paramos; mas

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11, 28-32

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este limite é o fim (o final) do” endurecimento” e é o alvo dos incompreensíveis caminhos de Deus. Vs. 28 a 32 Quanto ao Evangelho eles são, francamente, inimigos por vossa causa; porém, do ponto de vista da eleição são amados de Deus, por causa dos Patriarcas. Pois a dispensação da misericórdia e a vocação de Deus são irrevogáveis; porquanto assim como vós, então, fostes desobedientes a Deus todavia agora achastes misericórdia mediante a desobediência deles, assim também eles tornaram-se agora desobedientes mediante a misericórdia que vos foi concedida para que também eles, agora * encontrassem a misericórdia. Porque Deus a todos encerrou na desobediência, para que de todos tenha compaixão. “Quanto ao Evangelho isto é, com referência ao Evangelho, dele são] inimigos, por causa de vós; [porém, se considerarmos a sua situação] quanto à eleição, [são] amados de Deus, por causa dos Patriarcas.” Precisamos agora tentar expor o tema dos três últimos capítulos [IX, X e XI] nos termos os mais precisos, na forma a mais exata, que nos for possível. Vimos que a “Igreja” é uma realidade ambígua. Nela vêm à tona toda a dubiedade e toda a incerteza da natureza e da cultura dos homens. Na medida em que, sob o ponto de pragmática humana, o Evangelho de Cristo, de um lado, for contraposto à obra da Igreja, do outro, a Igreja se destaca, indubitavelmente, como o lugar onde a inimizade do homem contra Deus vem a público; e o lugar onde a indiferença, a incompreensão e a resistência humana encontram a sua forma mais sublime e também a mais ingênua. A Igreja é, [por assim dizer], o “ponto morto” onde nem mesmo a arrancada mais violenta produz o mínimo movimento [útil] ainda que esta arrancada se julgue movida pela maior força divina que se possa imaginar. A criatura piedosa que a Igreja cria, desenvolve e produz e que, com todo seu conhecimento (de Deus e de sua lei e mais ainda, com todas) suas obras e suas orações [se considera] justificada, parece ser, de alguma forma, o último obstáculo forte e inconquistável deste lado da barricada.

*

[Em nota de rodapé o A. diz que “já não pode” concordar com a supressão desse AGORA; diz ele que esse advérbio pertence a este lugar por força de tensão escatológica quase insuportável pois para o ENTÃO do v. 30 este segundo AGORA do v. 31 é surpreendente. A R.S.V. suprime o segundo AGORA mas anota que escritos antigos o incluem. A Versão Sinodal Francesa escreve, “por sua vez”].

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O Alvo

11, 27-32

Aliás, tudo o que o ser humano empreende para se proteger [para se defender], surge acumulado, — maciçamente concentrado — nesta criatura [religiosa] armada até os dentes. Daí a purificação do Templo! É com vistas a semelhante tipo de pessoas que a idéia de achar um caminho direto entre os homens e Deus precisa ser [combatida e] abandonada definitivamente, pois é [totalmente] inviável. Todavia, é também por causa da existência de tal tipo de pessoas, que tem lugar a possibilidade indireta do perdão e da compaixão divina. [Abre-se o caminho indireto da graça e do perdão]. O mensageiro desta via indireta, a testemunha do perdão, o vaso desta compaixão é a criatura que está em oposição [à Igreja]; é a criatura que está de fora, que é do mundo; é o gentio na total evidência de sua carência, na sua nulidade, no seu desvalimento. É nessa criatura de fora que se observa o afastamento do obstáculo [à aceitação da graça divina]. É nesta pessoa [“alheia à Igreja”] que se torna claro como Deus e o homem estão, um para o outro. Nela se glorifica a justificação forense de Deus e porque aprouve aos desígnios divinos esclarecer o seu louvor e a sua misericórdia nesta outra criatura [de fora]; (“por causa de vós”), precisa esta uma criatura, [que é “de dentro”,] que é o resultado e o alvo da Igreja, ficar como a “inimiga do Evangelho”, deste lado da linha divisória. O pecado precisa abundar para que a graça superabunde. (5, 20). [A argumentação do A. parece ser menos dedutiva que seus arrazoados habituais. A tradução inglesa põe assim a questão da ambigüidade da Igreja: “Considerados do ponto de vista humano, o Evangelho de Cristo e o trabalho da Igreja operam de formas diametralmente opostas. Na Igreja vem à tona a hostilidade do homem contra Deus porque nela a indiferença, a incompreensão e a oposição atingem suas formas mais sublimes e, também, as mais ingênuas. Na Igreja se torna visível a terra de ninguém, a zona morta entre duas forças que se opõem, pois aí o progresso das realizações humanas, ainda que se considerem investidas de poder divino é, finalmente, bloqueado. “Toda a piedade que a Igreja encoraja e atinge, toda sabedoria, trabalho e oração com que ela pretende estar justificada, são amontoados de maneira a formarem poderoso obstáculo deste lado da barreira que separa Deus e o homem. O homem de Igreja, armado até os dentes, reúne e focaliza em si tudo quanto os homens construíram para sua defesa contra Deus. Daí, a purificação do Templo! Também daí procede o abandono, por inútil, de toda conceituação de algum caminho direto entre Deus e o homem. Por isso, precisamente ao homem de Igreja, se abre a possibilidade de um caminho indireto: o caminho do perdão e da graça de Deus. É neste ponto que, no horizonte, surge o ‘outro’ homem, o homem do mundo, o de fora, o gentio que, diferentemente do homem

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da Igreja, anuncia o caminho indireto; ele aparece ante nós em visível pobreza, evidentemente abandonado e sem proteção. Ele não é obstáculo. Nele se faz conhecida a situação entre Deus e o homem conforme ela é, pois nele a justiça forense de Deus está revelada em toda sua glória. Tendo Deus resolvido revelar sua glória e sua misericórdia neste ‘outro homem’ segue-se que aqueles que personificam o propósito e a realização da Igreja, deste lado da barreira, precisam estar como os INIMIGOS DO EVANGELHO — POR AMOR (por causa) DE VOS. O pecado precisa abundar para que a graça superabunde”. Embora a versão inglesa apresente o tema de forma ligeiramente diferente da que me parece estar no original, a idéia geral é a mesma. Todavia, pelo contexto e considerações feitas nos últimos três capítulos, parece-me que, em síntese, podemos dizer: Deus se serve do próprio empedernimento dos homens para falar-lhes; porém Deus não necessita desse endurecimento nem os endurece por isso, mas consente nele; todavia se Deus “endurecer” alguém, conforme o fez com Faraó, fá-lo em seu Poder, sua Sabedoria, sua Graça e sua Justiça; fálo porque Deus é Deus. Não compete a nós, — seres humanos — perguntar por que, como e quando. O que parece certo é que Deus se agrada da fé singela, simples, sem pretensões a méritos e a recompensas; sem vantagens de qualquer espécie. Deus retribuirá a cada um segundo suas obras, mas para nossa salvação — para “agradar a Deus” — de nada valem elas, nem NOSSA ascendência, NOSSA grei, NOSSO saber, nem mesmo a fé tem algum valor quando por ela nos candidatarmos à justificação divina, pois então já não será singela e simples. Este é, todavia, o risco do Homem de Igreja, clérigo ou leigo: a Presunção. E o “gentio” que, — sendo prudente, “sabendo ver” — não se apegando às coisas do mundo e não tendo do que gloriar-se, sabendo que não tem do que se valer, que está desarmado e desprotegido, que é ignorante perante o Altíssimo, é este homem que, apesar de estar fora da Igreja, se entrega, se abandona totalmente às mãos de Deus — por não ter outro recurso, — pela graça encontra a salvação. Nesta divina justificação forense do ímpio, o homem da Igreja vê — (e quem está em melhor condição de ver que ele?) — quão grandes coisas Deus faz aos que têm o coração contrito, aos pobres de Espírito, aos mansos e humildes de coração e vendo, quiçá, se esvaziará a si mesmo e dará azo à entrada do Rei da Glória, em seu coração.] Será então necessário ser GENTIO para alcançar o Reino dos céus ou será somente pelo exemplo dele que o CRENTE aceitará VERDADEIRAMENTE a Cristo? Não, pois Deus não se deixa levar de respeitos humanos; se assim fôra Deus não seria o Deus dos judeus e TAMBÉM dos gentios mas somente o Deus dos gentios. Porém Deus é Deus para ambos. Todavia, a sua revelação é pri-

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meiramente para o judeu, para Israel, para o homem de Igreja, se este não se materializar como Esaú, quiçá procurando valer-se do seu direito nato de primogenitura; não se ensoberbecer como Faraó, confiando em seus bens materiais e seu poderio real; não buscar para si uma lei de justificação conforme o “moço de qualidade” da parábola de Jesus, mas amar a Deus sobre todas as coisas — de todo seu coração, com todo seu entendimento, com todas as suas forças — e ao próximo como a si mesmo. É por isto que Deus tem falado e fala aos homens, de muitas maneiras, também pelo endurecimento de parte dos homens da Igreja (e de alguns “de fora”), pelo tempo que lhe aprouver, para que também aqueles que não pertencem à Igreja percebam que se Deus não poupa aos que protestam e pretextam adorá-lo na exteriorização do culto, muito menos poupará a eles que nem isto fazem; e os que são da Igreja verão (também, se forem prudentes) — que se Deus usa de misericórdia para com aqueles que não confessam ostensivamente o seu Santo Nome, tanto mais se compadecerá deles, que o confessam e porfiam por servi-lo. [Resumindo: De graça somos salvos, mediante a fé; isto, porém, é dádiva de Deus]. Todavia, onde estaria a gentilidade que não fosse solidária e una com Israel, nessa abundância do pecado, nesta “inimizade” [com Deus]? [As considerações que mais acima foram feitas a respeito de Israel e da gentilidade, sobre a oposição existente entre os que estão “dentro” e os que estão “fora” da Igreja, foram segundo o ponto de vista humano]. Do ponto de vista da invisível pragmática divina, porém, o Evangelho de Cristo e a Igreja, — (a indigna mensageira da Palavra de Deus) — de forma alguma podem estar em oposição, pois o Evangelho não é senão a revelação da eleição que é exclusivamente pela graça e isto diz respeito de modo muito especial aos inimigos de Deus. (5, 10). Ora, desde que aqueles que não são justificáveis, que não são salváveis, [isto é, aqueles assim considerados por serem gentios] têm, [todavia] a promessa divina [e apesar da] totalidade de sua desobediência nela estão inteiramente sob a misericórdia de Deus, precisam [agora] honrá-lo (“por causa dos Patriarcas”,) [isto é,] pela fé que teve Abraão, o gentio — [a saber, o Abraão de antes da circuncisão], é [portanto] evidente que estes tais estão agora “dentro” da Igreja — sim, justamente eles são os “amados de Deus”; o [antigo depositário da Promessa] que como homem religioso [busca para si uma lei de justificação e] se opõe a Deus, fica agora “sacrificado” e abandonado dentro da Igreja, [mas na realidade fora dela], dando lugar à justificação forense dos gentios. A Igreja é, portanto, a comunidade dos que buscam o perdão e que, por isso, são santos; dos perdidos que, por serem tais, são salvos; dos que estão

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11, 28

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morrendo e, por isso, são vivificados. É assim que na aflição e na culpa deste homem da Igreja, — neste homem que conhece, que trabalha, que ora, — reúne-se e se concentra a mais excelente esperança do mundo, a esperança da inaudita justificação e da salvação de tudo quanto a criatura humana empreende e realiza sem saber o que faz. Ele mesmo, o homem religioso, é então o gentio. Na extremidade de todo caminho que [pretende] levar diretamente a Deus chega a mensagem do caminho indireto que dá testemunho da catástrofe da retidão humana e testifica a ressurreição; como vaso da ira, mostra o vaso da graça. [Perguntávamos mais atrás onde estaria a gentilidade que não estivesse (espiritualmente) unida a Israel. Agora dizemos:]. Onde estaria Israel se, nesta situação espiritual não estivesse, de fato, ligado à gentilidade? Se Israel ousasse colocar-se [decisiva e realmente] no campo da eleição de seus patriarcas; se a Igreja ousasse ser sustentada e impelida somente pela fé que Abraão teve e assim se sacrificasse, assim abrisse mão de si mesma, descesse, [do pedestal] para, humilde e verdadeiramente tratar [de seu tema] com seriedade, quão grande se tornaria ela no mesmo instante. Grande porque já não seria grande [segundo o mundo]; grande, unicamente pela misericórdia divina. “A dispensação da misericórdia e a vocação de Deus são irrevogáveis”. “Acaso a vossa infidelidade suspenderá a fidelidade de Deus?” (3, 3). “A palavra de Deus não falha” (9, 6). “Deus não rejeitou o seu povo” (11, 2). Mais verdadeiro do que a razão que têm os “de fora” sobre os de dentro, mais verdadeiro do que a falta de razão em que estão os “de dentro” com relação aos de fora, mais verdadeiro do que toda pragmática invisível que pareceu resultar dessa oposição entre a Igreja e o mundo, é sempre o tema [o assunto] da Igreja. [Este tema] é a invisível pragmática de que SOMENTE DEUS ATRIBUI E RETIRA A RAZÃO E A CULPA; é o tema da LIBERDADE DE DEUS, que é o julgamento e também o alento da Igreja e que significa a sua terrível purificação mas também a sua plena realização. É a verdade na qual a verdade é DEUS, e nada mais. A dispensação da graça e a vocação divina são confirmadas pela rejeição dos eleitos da mesma maneira que, em contraposição, [esses dons] não podem ser comprovados senão pela eleição dos rejeitados pois, invisivelmente, uns e outros são a mesma coisa em Deus. [A tradução inglesa escreve: “A rejeição dos eleitos não destrói seus dons e sua vocação que são tão confirmados por essa rejeição quanto pela eleição dos réprobos. Ambas essas operações são, invisivelmente, uma e a mesma coisa em Deus”.]

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11, 28-31

A humanidade procura manifestar e expressar os seus anseios na Igreja, — qualquer que seja a Igreja — e fica frustrada quando a Igreja não corresponde a essa ansiedade. A missão que tem lugar, [que se impõe] em toda parte onde as pessoas têm consciência desse desejo do mundo, é irrevogável e quem se envolve no problema é arrastado para dentro da catástrofe de toda humanidade [e passa a participar intensamente de sua ansiedade e aflição]. A possibilidade que se descerra onde e quando o ser humano reconhece que sua aflição lhe vem da parte de Deus, permanece aberta e, sem ela, não haveria esperança. Outra coisa não sabemos! “Assim como vós então fostes desobedientes a Deus, todavia agora achastes misericórdia mediante a desobediência deles, assim também eles agora tornaram-se desobedientes mediante a misericórdia que vos foi concedida, para que também eles, agora, encontrassem misericórdia”. “Ele fala agora do estranho regulamento de Deus em sua Igreja, segundo o qual aqueles que têm o nome e a reputação de Povo de Deus e de Igreja [conforme o povo de Israel) são rejeitados por sua falta de fé, enquanto os outros, que outrora não eram Povo de Deus e estavam entre os desobedientes, e agora aceitam o Evangelho, e crêem em Cristo, passam a ser a verdadeira Igreja de Deus e são bem-aventurados”. (Lutero). Sim, é estranho; é coisa de que nunca antes se ouviu falar; é paradoxal a maneira pela qual na Igreja funciona o regulamento divino. As trevas, a condenação, a atitude de Esaú, a desobediência constituem o denominador comum sobre o qual, em primeiro lugar, está tudo quanto é humano. A este “outrora” se opõe, em toda sua invisibilidade, o “agora” da revelação no seu movimento que vai daqui para o além. “Agora porém” na luz do instante eterno, na luz do dia de Jesus Cristo, “achastes misericórdia”, vós, os gentios; vós que estais de fora; vós que não, tendes cura, vós que não tendes esperança! Agora os rejeitados são eleitos e neles surge a Igreja de Jacó. Agora, no carrilhão divino, soou a sua hora. Porém, como? O poder, isto é, a divindade da misericórdia que foi ao encontro deles se comprova no seu cortante contraste com a desobediência humana; no arrancamento dos eleitos da fila dos rejeitados; na oposição da luz às trevas. Esta ação é divina porque ela se dirige aos desobedientes (e quem não o é?) expondo-os e os castigando ao mesmo tempo. [Simultaneamente expõe, castiga e se compadece e, diz o A., “é nisto e por isto que esta compaixão é divina”]. A misericórdia divina sem a manifestação da santidade de Deus, não seria divina. Falamos, portanto, da misericórdia [da compaixão] revelada na morte e na ressurreição de Cristo. Para os Eleitos acontece a dádiva divina — a

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ressurreição de Cristo; para os Rejeitados acontece a exposição e o castigo a morte de Cristo. Em Cristo também se dá a misericórdia de Deus. Por aquilo que lhe acontece Cristo pode garantir apenas os eleitos por que a causa deles é a sua própria. É por isto e nisto que a compaixão (ou misericórdia) é real e poderosa [isto é, vem de Deus], pois ela apenas expõe no desobediente (e, mais uma vez, quem não o é?) a sua desobediência, para atraí-lo a si. Sobre o rejeitado estendem-se as trevas que todavia, apenas são reconhecíveis e qualificáveis como tais à luz da misericórdia divina. (“Pela misericórdia que recebestes, tornaram-se eles agora desobedientes”). [Antes da manifestação dessa misericórdia não havia como constatar essa desobediência]. Como haveria de ser de outra maneira senão que agora no mesmo e eterno AGORA que aqui eleva e ali derruba e que num e noutro caso anuncia a liberdade e a majestade de Deus) — [sim, agora,] os eleitos, [os gentios que receberam a graça] são de sua parte a garantia para os rejeitados, [a parte endurecida de Israel] que, tendo de carregar o fardo dos eleitos passa a ter também o direito ao gozo da misericórdia que lhes é estendida. Este é o novo denominador comum para toda humanidade e que se torna invisivelmente perceptível no AGORA da Revelação. “Porque Deus a todos encerrou na desobediência, para que tenha compaixão de todos”. “Com esta conclusão consoladora e alegre termina a investigação iniciada no Capítulo IX” (Lietzmann). [A tradução inglesa menciona Juelicher]. Temos de menear a cabeça, pasmados ante semelhante observação], pois aqui nos defrontamos com o terrível e inquietante axioma no qual se poderá achar a chave de toda “Epístola aos Romanos” (e não só da Carta aos Romanos!). [Para entender] o que Paulo quer dizer — (e não somente Paulo!) — quando fala de Deus, da justificação do ser humano, de pecado, graça, ressurreição, lei, juízo, salvação, eleição, condenação, fé, amor, esperança, quando fala do Dia de Jesus Cristo; para saber com que sentido e em que classificação estas grandes palavras devem ser soletradas e empregadas, é preciso que se tenha entendido esta passagem; a sua compreensão decide sobre o sentido que lhes daremos. Esta passagem é a medida de tudo quanto medirmos; é a balança na qual tudo será pesado; ela é, à sua maneira para cada leitor ou ouvinte, o próprio critério da dupla predestinação cujo sentido final ela claramente objetiva indicar. As palavras “ENCERROU”, “COMPAIXAO” e o primeiro “TODOS” devem ser tomadas em seu sentido literal, preciso, ainda que as pessoas incluídas no segundo “TODOS” corram o risco de serem agrupadas por Calvino entre os que NIMIS CRASSE DELIRANT.

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11, 32-36

[Convém notar que a versão inglesa escreve que as referidas palavras são “prenhes de significado” o que não é precisamente o que o A. diz. Talvez a analogia gráfica entre as palavras “praegnant”, alemã e “pregnant” inglesa houvesse falseado a tradução de “preciso”, exato — que é o que a palavra alemã significa, para “prenhe”, pleno, do vocábulo inglês.] Nesta passagem está o Deus velado, desconhecido, incompreensível; o Deus a quem nada é impossível; Deus, o Senhor — e que como tal é nosso Pai em Jesus Cristo. Nesta passagem está a possibilidade divina em sua premente proximidade, em toda sua riqueza mas, também, em toda sua inescrutabilidade. Aqui está o começo e o fim; o caminho e o objetivo dos pensamentos de Deus. Nesta passagem está o objeto da fé (que, todavia, jamais pode ser “objeto”). Aqui está a substância, (a essência) do Cristianismo (que está acima de todas substâncias). A Igreja tem uma [só] esperança: é esta [que está expressa nesta passagem]; não tem outra. Oxalá a Igreja se apossasse dela. “Observai esta frase capital que condena todo mundo e a toda justiça humana, exaltando unicamente a justiça de Deus, a ser alcançada pela fé”. (Lutero). Vs. 33 a 36 Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão incompreensíveis os seus caminhos. Pois quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu conselheiro, ou quem lhe deu alguma coisa que então ele tivesse de retribuir? Pois dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Sua é a glória, eternamente. Amém. A “profundeza da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus” é, eternamente, sua insondabilidade [sua inescrutabilidade] (e isto é preciso que se diga contrariando a primeira edição do livro). O teor da Epístola aos Romanos é que o DEUS ABSCONDITUS, como tal, [o Deus velado e desconhecido,] é o DEUS REVELATUS em Cristo Jesus. (1, 16-17). Entendamos bem: apenas por ser o DEUS ABSCONDITUS o sujeito que tem o DEUS REVELATUS por predicado, é que os lábios humanos podem falar do conteúdo da Carta aos Romanos, falar de teologia e falar da Palavra de Deus; não apenas “podem” mas PRECISAM. Cuidar dessas coisas, [delas falar] com a sábia reserva de quem tem consciência de que nada se faz com tal prática, é tarefa plena de promessas. Ainda mais, o fato de este sujeito (o DEUS ABSCONDITUS) ter este predicado

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11, 33-36

O Alvo

(o DEUS REVELATUS), significa o próprio Espírito a plenitude divina, a existência do divino SIM. Isto não está escrito na Carta aos Romanos; em verdade, isto não se escreve nem se diz; também não se faz porque isto de forma alguma pode ser objeto do esforço, do trabalho, [da diligência ou do zelo] da criatura humana: se acontece, então foi Deus que falou e operou o milagre. A respeitosa referência a Deus e a seu milagre, conforme a atitude de João, o Batista, é o limite extremo da diligência e do êxito humano. “Quem tiver esta Epístola bem dentro do coração tem consigo a luz e o poder do Antigo Testamento”, disse Lutero, presumivelmente após cuidadosa reflexão, porquanto — [em contraposição] — a luz e o poder do Novo Testamento ninguém tem consigo; esta luz e este poder, como tais, não aparecem pois não se trata de “um caso” ao lado de “outros casos”. Portanto, ninguém tem o direito de, honestamente, achar que em Paulo, ou na teologia, falta a revelação, falta mais positividade, falta algo mais do que a Palavra. Aquele que assim achar pergunte, ele mesmo, a Deus por que isto não está escrito em nenhum livro, (nem mesmo nos Evangelhos sinópticos!) e por que em lugar nenhum isto é apresentado como obra humana; e seja grato se, possivelmente, a teologia conseguiu estimá-lo a, realmente, dirigir-se com esta pergunta ao próprio Deus, porquanto a invisibilidade de Deus pode ser vista quando “observada sensatamente” (1, 20) e sua inescrutabilidade pode ser “perscrutada” nas profundezas divinas. (I Cor. 2, 10). Conhecer a Deus significa estar silencioso, em adoração, perante ele — ele mesmo — que habita em luz, onde ninguém pode chegar; é estar [silente e em adoração] sempre e de novo exatamente ante a oculta profundidade de sua riqueza, sua possibilidade, sua vida, sua glória! É estar sempre e de novo ante a oculta profundidade de sua sabedoria, seus pensamentos, seus juízos e seus caminhos, da trajetória que vai daqui para o além! É estar sempre de novo ante a profundidade oculta do conhecimento pelo qual ele nos conhece antes de nós o conhecermos; o conhecimento pelo qual ele não nos abandona — a nós, que sempre estamos sem ele! “Quão insondáveis são os seus juízos e quão incompreensíveis os seus caminhos.” Por que há eleição? Por que rejeição? É o que precisaríamos e precisamos perguntar sempre, como também precisamos e precisaríamos ouvir sempre a mesma resposta: porque Deus não seria Deus se não rejeitasse de forma imperscrutável e se não elegesse de maneira incompreensível; se ele, na grande obscuridade de sua escrita, [quiçá nas suas obras manifestas aos homens e na sua Santa Palavra, a nós legada, — a tradução inglesa diz “da escrita de sua mão”], não se revelasse de vitória em vitória como Deus; como aquele que quer ter e terá misericórdia de todos!

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“Quem conheceu a mente do Senhor ou quem foi seu conselheiro? (Isaías 40, 13). “Ou quem lhe deu alguma coisa que, então, ele tivesse de retribuir?” (Jó 41, 11). [O A., entre parênteses, diz que esta passagem de Jó provavelmente se refere ao “Leviatan-crocodilo” do v.2 do mesmo capítulo desse livro]. Conhecimento direto deste Deus? — Não! Participação nas suas decisões? — Não! Possibilidade de o agarrar, o amarrar, o constranger ou obrigar, de entrar em relacionamento de reciprocidade com ele? — Também não! Não há “Teologia Federal”! [Teologia por acordo entre as partes mediante “ligas” e “convênios”; possivelmente, quando Barth escreveu, a “teologia” do Estado e, modernamente, acordos análogos]. Ele é Deus; ele mesmo, e unicamente ele. Isto é o SIM da Epístola aos Romanos. “Porque dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Sua é a glória, eternamente. Amém”. Marco Aurélio, em suas meditações diz, quase textualmente, o mesmo. A mesma fórmula foi transcrita num hino a Silene e até inscrita num anel de feiticeiro. Entre outros, Filo a conhecia; no entanto, por que o misticismo helênico que sabidamente, — conforme também o menos remoto judaísmo, — conhecia mais ou menos tudo, não deu ênfase maior a essa verdade? Por que não a souberam enunciar mais claramente, de forma que causasse maior impacto, que tivesse maior expressão profética? [Filo — ou Phylo — nasceu cerca de 10 a 30 anos antes de Cristo. Foi pensador extremamente fecundo e sério; procurou, aparentemente, introduzir o judaísmo na cultura helênica; já deveria ter falecido ou seria bastante idoso para a época] quando Paulo escreveu a Carta aos Romanos — (cerca do ano 60 de nossa era). É muito provável que Paulo conhecesse a filosofia e o pensamento de Filo. Marco Aurélio nasceu no ano 121 da nossa era e deve ter escrito suas meditações por volta da década 160-170; provavelmente conhecia as obras de Filo e não há razão para duvidar de que tivesse ouvido falar do pensamento de Paulo. Em suas meditações, no Livro IV, v. 20, ele escreve: “O Natureza, de ti e em ti são todas as coisas e para ti voltam” e completa o verso, depois do ponto, escrevendo: “O poeta diz cara cidade de Cécrope; não queres tu dizer, cara cidade de Zeus?” Ora, a primeira parte, mais do que ao enunciado Paulino, assemelha-se ao antigo e conhecido “MEMENTO, HOMO, QUIA PULVIS ES,” etc. e a referência a Zeus soa tímida, como se M. A. estivesse a se desculpar de tanta ousadia... seja como for, é aplicável aqui o que Barth disse em outra parte escrevendo sobre a simbologia do batismo cristão: O Evangelho é de tal maneira poderoso e seguro de si que não teme, nem precisa temer, “tomar emprestado” o que quer que seja do paganismo; e poder-se-ia acrescentar: o

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Evangelho é a Palavra de Deus posta na língua dos homens e pelo seu Poder, sua Pureza, sua Origem Divina, redime e santifica aquilo que usar. É a graça e o milagre da inspiração divina]. Por que será que o “empréstimo” que Paulo faz se parece tão mais como sendo original, até mesmo na planície das coisas históricas? [Todavia, aqui cabe esta observação:] De que outra maneira mais significativa poderia Paulo terminar este Capítulo, do que nesta forma tão altissonante, [até mesmo] atroadora e que suscita tanta esperança, dizendo [com o vigor da inspiração divina e com a certeza da fé] aquilo que outros também sabem? Comentários: 11, 25-36 1. Para entender o pensamento de Barth com propriedade é preciso lembrar sempre que ele freqüentemente procura dar ênfase às suas ponderações, pela violência dos contrastes (e das analogias) que estabelece em sua dialética. Assim (exegese dos vs. 25 e 26) a realidade triunfal da “Igreja de Jacó” é precedida pela “catástrofe” da Igreja visível; a Igreja RECEBE a revelação, mas não é a sede dela; ninguém pode estar “do lado de quem tem razão”, quando se trata de Deus e da Igreja, — vale dizer — ninguém pode estar do lado de Deus; quando “os de fora” forem os missionários (trazendo o “recado” da graça divina) para a Igreja, então esta pode e deve pensar em enviar missões aos “gentios”. A lógica dessas afirmações parece ser: a Igreja só pode cumprir verdadeiramente sua missão, quando ela se esvaziar de todas prerrogativas que a condição de pregadora do Evangelho lhe possa conferir segundo seus próprios critérios; quando ela perceber que nada tem de si, nada é e nada vale, se Deus não lho conceder. A Igreja precisa compreender e, quando houver compreendido, precisa lembrar sempre que é a pretensão do “homem religioso” que dá origem ao “endurecimento”. Este envaidecimento, que o A. denomina “mal de José” ou “sombra de José”, está sempre à espreita para invadir o coração crente e arrancá-lo do aconchego da graça; esta pretensão à superioridade, à retidão, à santidade, à certeza da salvação, ao privilégio da eleição pessoal, da predestinação seletiva e exclusiva, é o leão que ruge em volta da Igreja; aos “de fora” ele não ameaça (enquanto não tiverem consciência de que “também eles” são eleitos); mas tomando ciência dessa verdade eis também eles, quais os homens da Igreja, sujeitos à tentação da importância, da convicção íntima da superioridade de seu

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modo de ser com relação à religiosidade dos “fiéis” e então são, também eles, candidatos à poda do tronco ao qual foram enxertados; esta é a catástrofe que paira sobre a Igreja e da qual ela se liberta morrendo como “velha criatura” e ressurgindo em Cristo. É por isto que a Igreja fala de Deus e anuncia a “Boa Nova”, pois ela efetivamente encontrou, — vale dizer, recebeu — a revelação de Deus, Todavia, a “nova criatura” somente pode existir ressurgindo em Cristo; ele é a sede da Revelação. A Parte “endurecida” da Igreja pode ver nos “de fora” a ação da graça divina; é uma das maneiras pelas quais Deus fala e, vendo e compreendendo os caminhos de Deus ela pode esvaziar-se a si mesma, humilhar-se e dar glória a Deus; então poderá acontecer o milagre, cessar o endurecimento e a Igreja toda voltar à singeleza e pureza de sua tarefa; ela estará então em condições legítimas de levar aos de fora a mensagem da salvação, de que é portadora mas não sede; então a Igreja pode, deve e efetivamente será a missionária para os gentios. Todavia a Igreja não pode — e ninguém pode — dizer que está do lado da razão, pois só Deus a tem; pretender estar “a seu lado” é jactância, é arrogância humana; é querer ser igual a Deus. O que podemos fazer é confiar na graça e esperar que Deus nos tome quais somos, não porque o mereçamos mas pela mediação de Jesus Cristo. Alguns de nós talvez possam parafrasear o grande Apóstolo dizendo: “Combati o bom combate” porém, “sou o que sou pela graça de Deus”. É por tudo isto que ninguém pode pretender “descrer” da Igreja; seria requintada vaidade e absurda exibição de superioridade; equivaleria a afirmar que encontrou por seu tirocínio, sua acuidade, seu entendimento, um caminho mais excelente fora dos caminhos mais apertados estabelecidos por Deus; seria a expressão existencial do endurecimento que “vem de Deus” e vem dele por ser ele a pedra de toque que afere a nossa atitude. 2. “Deus a todos encerrou na desobediência para que de todos tenha compaixão”. Não entendamos daí que, para se mostrar misericordioso, Deus nos fez, a todos, maus. Antes parece ser assim: não há quem faça o bem, nem sequer um, justo. (3, 9-18). Em sua pecaminosidade os homens se excedem uns aos outros contudo, para usar de misericórdia com todos, a todos Deus encerrou (incluiu) na mesma desobediência. 3. Na exegese do v. 28 Barth afirma que tudo quanto o ser humano empreende (ou inventa) para se proteger de Deus, encontra-se acumulado na Igreja.

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— Então precisa a criatura defender-se do Criador? — Dentro da queda do homem Edênico, sim. O homem quis e não pôde fazer-se igual a Deus; por isso teve medo e se escondeu dele; voltou-lhe as costas; afastou-se dele e, nesse desvario tenta achar para si fórmulas que o justifiquem e sejam agradáveis à sua pretensão: ídolos, filosofias, teologias, liturgias, cultos, doutrinas, contemplações místicas, louvores espúrios, “intimidade” (comunhão) com Deus, — seus soldados, seus arautos, seus defensores, seus heróis. Tudo para termos ligação direta com Deus, talvez até mesmo confessando-nos seus servos leais. Estas coisas se avantajam notoriamente na Igreja!

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Capítulos XII a XV (1ªparte)

A GRANDE PERTURBAÇÃO Sob o título acima Barth faz a exegese do Capítulo XII ao versículo 13 do Capítulo XV, com a seguinte subdivisão: • • • • • • •

12, 12, 12, 12, 12, 13, 14,

139162181-

2 8 15 20 13, 7 14, 0 15, 13

-

O Problema da Ética, A Base Fundamental, Possibilidades Positivas, Possibilidades Negativas, A Grande Possibilidade Negativa, A Grande Possibilidade Positiva, A Crise da Livre Mordomia da Vida.

A PERTURBAÇÃO a que Barth se refere é o dessossego que a pessoa sente quando confronta sua conduta com a diretriz que a graça de Deus sugere; é a inquietação da criatura que percebe o dom da graça. Esta perturbação tem certo paralelismo com a aflição da Igreja que, de algum modo, é a somatória da “grande perturbação” de cada um de seus membros; assim como a aflição da Igreja se origina de sua incapacidade de se desincumbir com fidelidade da tarefa que lhe foi dada por Deus, assim o indivíduo sente a grande tribulação por não fazer o bem que quer; mas a semelhança não parece ir além dessa constatação porquanto, para as pessoas, individualmente, o conflito tem a sua causal na questão da ética que Deus apresenta aos homens; não se trata da ética divina porém, da humana; mas é a ética humana segundo os ditames divinos pois a ética verdadeira, a ética por excelência, provém de Deus, que é a fonte de todo BEM. Se houvéssemos de indicar uma “palavra-chave” para este extenso “capítulo”, talvez sugeríssemos MORDOMIA, tirada da última subdivisão desta exegese da “Grande Perturbação” e que o A. intitula a “LIVRE ATIVIDADE DA VIDA” e a tradução inglesa registra como “LIBERDADE HUMANA E DESTAQUE” (quiçá usando a palavra “destaque” para se referir ao “afastamento” voluntário do Procedimento ambiente).

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A Grande Perturbação

O assunto de Paulo — e portanto também de Barth — nesta parte da Epístola, é a consagração pessoal a Deus; é o convívio com “os de fora”, a submissão às autoridades, a conduta íntima do crente, a tolerância para com os irmãos na fé e, para tudo e em tudo isto, cita o exemplo de Cristo; é a este modo de viver que Paulo exorta os Cristãos de Roma e, com eles, os de todos os lugares e de todos os tempos, fundamentando sua exortação nas misericórdias de Deus. É mediante a voz eloqüente e forte das misericórdias que a criatura percebe sua própria imperfeição, seu enorme afastamento de Deus, sua natural pecaminosidade e entra em grande crise, na grande perturbação; essa perturbação o ser humano sentirá na sua “Grande Possibilidade Positiva” amando a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo e, também, em todas possibilidades negativas — em sua não conformação com o “presente século” — até o “Grande Dia do Senhor” quando será exaltado e viverá; porém, será exaltado e viverá em Deus e para Deus! Este não é um tema abordado apenas nesta parte quase final da exegese da Epístola aos Romanos mas, conquanto Jesus Cristo seja o único assunto de toda pregação Paulina, em nenhuma de suas cartas — soberana e divinamente inspiradas — deixou o Apóstolo de referir-se ao problema da vivência cristã e dos cristãos; e o faz de forma precisa, profunda, ampla, penetrando em todo leque das experiências individuais, cotidianas e em todos setores fundamentais da vida — lar, igreja, sociedade e em todas situações — filhos, pais, servos, senhores, leigos, pastores, governados e governantes. Em toda parte Paulo insta, ensina, recomenda e exorta, mas a opção permanece adstrita à liberdade individual de cada pessoa. É esta livre orientação da vida — que Paulo apresenta e Barth analisa — que designei por “MORDOMIA” porquanto ela diz respeito à administração da Casa que não é nossa mas pertence ao Espírito Santo. (1 Cor. 6, 19). Paulo foi obediente à visão celestial e dócil à inspiração divina. Barth ouviu-lhe a voz e a fez ressoar à essência do protestantismo segundo o viu em seus dias e conforme me parece ser ainda hoje o traço característico dos homens verdadeiramente evangélicos deste país, aqueles que não se deixaram fascinar pelas sereias do “Evangelho Social”, da tolerância abdicante e da comodidade do sincretismo religioso. São homens e mulheres tementes a Deus; acatadores das autoridades; pacientes com os que erram e tolerantes com os fracos; respeitadores de pais e filhos; fieis no lar e na Igreja; bons patriotas e bons cidadãos do mundo; bons servos e bons patrões; prudentes no falar, morigerados nos costumes, sal da terra que procuram remir porque os tempos são maus. Eles? Sim, eles, porém não por alcance deles e por seus méritos, mas pela graça de Deus: livres das peias do mundo mas servos de Cristo para servir!

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É possível que tais pessoas, com semelhante conduta se atrevam a se considerar “fortes”; acaso não o são? Talvez até se julguem “livres”, sensatos e sábios; acaso não são eles verdadeiramente livres? Não são sensatos? Não são sábios perante Deus e os homens? — Sim, são tudo isto. (Não por eles — mais uma vez o dizemos — mas pela graça de Deus é que são o que são!) Por isso trazem também, sob seus pés como lastro e sobre seus ombros como carga, a GRANDE TRIBULAÇAO: o privilégio e a responsabilidade de serem trabalhadores na grande empresa divina, a obra da FÉ despertada pela FIDELIDADE de Deus. É a mordomia cristã a que Paulo nos exorta fundamentado nas “misericórdias divinas” de cujo Evangelho é o mensageiro divinamente credenciado. (Atos 9, 15). Sob o título acima Barth faz a exegese dos primeiros dois versículos do Capítulo XII demonstrando que em seu relacionamento com Deus o homem é motivado inteiramente pela revelação da graça. É a graça que constrange; ela perturba inexplicavelmente, se assim podemos dizer, a criatura humana quando e enquanto está entregue às suas inclinações naturais, que são conforme o padrão do mundo. É pela graça de Deus e com fundamento nessa graça que Paulo se sente autorizado a exortar os romanos destinatários de sua carta, a que ofereçam seus corpos a Deus em sacrifício vivo, santo e agradável. Assim se estabelece a conduta cristã, a nova ética estruturada nessa renúncia. O sacrifício “do corpo” não se restringe aos aspectos materiais, imediatos, — quiçá mais grosseiros, — mas se estende a todos os campos das atividades humanas, mentais ou intelectuais, emocionais ou psíquicas, porém, não sem chamar a atenção à influência de Eros sobre todas elas. O A. analisa a ética partindo do pensamento como sendo o elemento preexistente gerador do ato, para concluir que a adoção da ética cristã, conforme preconizada por Paulo, somente é possível mediante a modificação cabal do pensamento de cada pessoa, o que constitui o ARREPENDIMENTO no qual a genuflexa adoração alcança a visão de que Deus quer ser adorado em cada uma das opções que o ser humano é chamado a fazer, constantemente, neste mundo ainda não transformado. Para facilitar o acompanhamento da exposição do Autor, em torno do que chama Ética Primária e Ética Secundária, talvez possamos sintetizar assim: Ética Primária: “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele servirás”. Ética Secundária: Amarás ao teu próximo (ou a “UNIDADE” com o próximo, em Deus).

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O Problema da Ética

O PROBLEMA DA ÉTICA (12, 1-2) Vs. 1 e 2 Pelas misericórdias de Deus exorto-vos a apresentar os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele; e a não vos conformardes com a condição do mundo presente porém, sim, com sua vindoura transformação, mediante a renovação de vosso pensamento, para obterdes a visão do que seja a boa, santa e perfeita vontade de Deus. [A tradução de Almeida escreve: “Rogo-vos pois irmãos pelas misericórdias de Deus, que apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século mas transformai-vos pela renovação de vossa mente para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”. Em sua tradução desses dois versículos Barth escreve os verbos “apresentar” e “conformar” no infinitivo, procurando assim evitar a idéia de que no enunciado do Apóstolo haja a sugestão de ordem ou mando. Diz Barth que à luz do significado exato do texto e ante a notória sensibilidade de Paulo às nuanças de sentido que a sintaxe pode envolver, não parece provável que ele haja escrito no imperativo; antes é de esperar que, sendo mais prático compor a frase no subjuntivo e conseqüente imperativo, é mais provável que esta sintaxe haja surgido com transcrições erradas, desvio em que algum amanuense tenha incorrido a despeito de a exortação (ou o apelo) conforme apresentado no v. 1, não permitir a imposição imperativa do v. 2. A versão inglesa escreve que “a peculiaridade da nuança Paulina da palavra EXORTAÇÃO seria destruída pelo imperativo”]. “Exorto-vos pois, irmãos”. O que mais pode significar esta nova repetição do Problema da Ética senão a grande perturbação que a própria idéia de Deus representa para toda atividade humana [já que essa idéia] acaba, necessariamente, ficando em desacordo com todo discurso que se proferir a respeito de Deus, de vez que esse discurso será sempre de pessoas insensatas e que perdem a perspectiva da questão? (E quem haveria que estivesse livre dessas deficiências?) As considerações que se fizerem sobre a ética [que Deus apresenta] defrontam-se com o percalço da falta de objetividade do tema. [O original diz textualmente: “O problema que a ética representa está na recordação e no encarecimento de que o assunto de tal dissertação não tem objetividade”]. Não tem acima dele ou por trás dele, um mundo; não se apóia em algo metafísico, nem em algum tesouro de experiências espirituais; tampouco se refere a alguma vastidão transcendental. O que há, o que existe, é a nossa vida dentro da nossa conhecida

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O Problema da Ética

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natureza e cultura, vida que também aqueles que proferem semelhante discurso precisam alimentar [intelectualmente] a cada instante, vivendo — por assim dizer — da mão para a boca, [precariedade] em que, na realidade, sobrevivem de uma ou outra forma. O surgimento [o aparecimento e a conscientização] da questão ética confirma e assegura a existência [a validade] dos conceitos dispendidos e encarecidos neste discurso [isto é, em tudo o que foi escrito neste livro,] comprovando que o refrão cansativamente repetido — “DEUS MESMO, SOMENTE DEUS!” — não é “coisa” divina, não designa algum idealismo com o qual nos deparássemos, mas é a expressão da inescrutável relação em que, como criaturas humanas, nos achamos com [ou perante] Deus. Estes conceitos e estas fórmulas [ou “frases feitas”], em sua abstração, na sua exteriorização em maneira não caracteristicamente humana e portanto estranha ao mundo, [parecendo até ingênuas, quando não irritantes, a alguns,] são tiradas do modo de SER, TER e AGIR da criatura em sua movimentação no mundo e sob a tensão em que nele ela se encontra. Não pode haver erro maior do que supor que esses conceitos pudessem ser formulados (e deduzidos) independentemente do ambiente em que vivemos e que não fossem relacionados com as coisas concretas de nossa vida cotidiana. Por isto, a quem quiser bem compreender a “Epístola aos Romanos”, recomendamos insistentemente que leia toda sorte de literatura mundana, notadamente os jornais. Cogitar, pensar seriamente, é meditar sobre-a vida e, por isso e nisso, é meditar sobre Deus. Cogitando sobre a vida o pensamento precisa percorrer intricados caminhos e vagar pelas mais remotas paragens, pois a vida transcorre em mobilidade e tensão caleidoscópicas, A vida não é simples, nem direta nem definida; inequívocas, objetivas, singelas, são apenas algumas suas aparências superficiais mas nunca e em nenhum lugar, a sua profundeza e a sua conjuntura. Nunca é simples a realidade de cuja existência a aparência fala. Todavia, é justamente no pensamento dialético que a meditação atinge sua meta, inquirindo sobre a profundeza, sobre a conjuntura e sobre a realidade da vida, para então entender o seu objetivo [o seu fim], para entender o que a vida significa e ter condições de lhe dar sentido. Se [os caminhos que o pensamento precisa percorrer] fossem diretos, menos truncados [ou menos tortuosos], se fossem mais facilmente perceptíveis em seu conjunto, isto seria a prova mais segura, [então seria evidente] que tais caminhos estariam passando ao largo da vida, [isto é, estariam ignorando a crise em que a vida está]. Não é o raciocínio “complicado” que é ortodoxo mas o mui célebre pensamento “simples” que sempre anseia por conhecer aquilo que [ainda] não conhece. É por isso que a cogitação genuína não pode ter a retilineidade

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freqüentemente desejada e é desagradável do ponto de vista humano, [o original diz, textualmente, que a cogitação genuína é “desumana”], pois é estranha ao mundo, porquanto: o pensamento puro não é função biológica [ou biofísica], mas a indagação que [por ele] se faz envolve todos aspectos da vida material e portanto encontra resposta em todas funções biológicas. Como indagação [ou perquirição], sobre a ação [ou a respeito dos atos que o indivíduo pratica no uso normal de suas aptidões biofísicas,] a cogitação é apenas suposição e jamais ação ou ato. Ora, como esta suposição não é ação, ela não subsiste por si e não pode, portanto, estabelecer a continuidade [que têm as coisas que existem]. Estas interrupções e hiatos caracterizam todo pensamento sério que, por isso mesmo, não pode escapar à crítica de ser intelectual, [teórico e sem maior objetividade]. [Isto não significa que estejamos menosprezando essa crítica,] antes, é necessário fazer-lhe justiça. A apologia do pensamento que fizemos, refere-se ao pensamento puro, à meditação sobre Deus. [Não CONHECEMOS realmente o pensamento puro, como tal]. O que conhecemos são [expressões do pensamento que, nesta qualidade, são] “atos” e portanto, logicamente são também funções biológicas (ainda que nobremente originadas de nossa cerebração...). Por isso é natural que nossas deduções e elucubrações mentais sejam vistas com desconfiança e que a sua complexidade seja atribuível ou ao acaso, [ou à pretensão nossa de atrair a atenção de outrem] ou ainda que sejam consideradas mera extravagância ou capricho e desta suspeita somente estaremos livres na medida em que nossa meditação seja realmente pura [isto é, na medida em que nos ocuparmos exclusivamente do problema Deus]. Somente assim estará a nossa cogitação protegida contra a preferência que se possa dar a arquitetações intelectuais “mais simples”. Enquanto [e na medida em que] considerarmos a Epístola aos Romanos como sendo, precipuamente, [mero] “ato de pensamento” do grande Apóstolo, não é automaticamente certo que sua dialética seja justificável como reflexo do pensamento divino, como também não podemos, de consciência tranqüila, aceitar estas ponderações como sendo meditações “sérias” sobre a vida. Se não pudermos negar que é absolutamente necessário criar uma ética especial condizente com a dogmática Paulina (o que temos tentado demonstrar), [se não pudermos rejeitar a necessidade de se criar essa ética diferente] sob a alegação de que isto seria supérfluo e nem faria sentido então, evidentemente, temos de nos conformar e aceitar a grande perturbação que o problema da ética representa. A existência desse problema lembra-nos que não é o ato de pensar que satisfaz a plenitude das exigências concretas porém, sim, a sua

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origem invisível, a sua pura proposição inicial que, justamente em seu isolamento [do mundo], dá plenitude e sentido a tudo quanto é material. [O problema da Ética] recorda-nos da verdade de Deus que, mesmo no mais elevado “ato de pensamento” jamais é elemento conhecido e lógico. Paradoxalmente, são justamente as reivindicações e os acontecimentos cotidianos que ocorrem e se desenvolvem ao redor e junto ao “ato de pensamento” que nos ensinam que o “discurso sobre Deus” não se faz por causa do discurso mas pela vontade de Deus. Assim como a meditação sobre Deus perturba todo SER, TER e AGIR dos homens, o problema da ética tem de perturbar a dissertação que sobre ela se faz, ressaltando o tema para o suprimir, a fim de lhe dar sentido e objetividade; matando-o, para que viva. É por isto que “EXORTO-VOS, IRMÃOS!” Consenti em serdes interrompidos [quebrados e descontinuados em vossos pensamentos,] vós que pensais comigo, que sois meus companheiros de peregrinação, que adorais comigo, para que vossos pensamentos sejam [agora de] meditação sobre Deus; permiti que sejais interrompidos em vossa dialética para que ela continue sendo dialética; que o vosso conhecimento sobre Deus seja interrompido para ser o que [na verdade] deve significar: a grande e salutar perturbação e interrupção que Deus prepara, em Cristo Jesus, para a criatura humana, a fim de chamá-la de volta para o lar, na paz de seu Reino! “Pelas misericórdias de Deus” eu vos exorto. Portanto, aqui não se abre novo livro; nem mesmo se vira a página. Aqui não se recomenda alguma “prática” ao lado da teoria, antes se afirma que exatamente a “teoria” da qual procedemos é a TEORIA DA PRÁTICA. Falamos das misericórdias de Deus. Da graça, da ressurreição, do perdão, do Espírito, da eleição, da fé; [são] multiformes e variegadas refrações, sempre da mesma luz, a luz não gerada. Em qualquer dessas manifestações apresenta-se sempre a questão fundamental da ética vazada na pergunta: “Como viveremos?” Ou então, “o que faremos?” Não é por mera curiosidade que nos pomos a investigar sobre problemas remotos nem é nossa meditação que nos leva inevitavelmente a isso. Há algo mais que nos induz a voltar sempre nosso olhar a esse ponto invisível, a essa luz à qual ninguém pode chegar. Contudo, o nosso ponto de partida é sempre o local onde estamos: Roma no primeiro século (1, 18) e todos os demais lugares em todos os tempos; [é desse ponto de partida] que seguimos os emaranhados caminhos de nossa meditação a que o próprio mundo nos Incentiva pois é nele que temos de agir e fazer valer nossa vontade, [aceitando ou rejeitando e tolerando ou combatendo seus processos, sua filosofia e sua pragmática]; portanto é o próprio mundo a causa imediata de nossa cogitação sobre aquilo que ele é, [o que significa] e sobre o que faremos ou como viveremos nele.

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Eis que nessa cogitação, analisando a essência do mundo, nos deparamos com essa tremenda interrogação ética dependendo de resposta que, todavia, nos é proposta em CRISTO, consubstanciando em si “as misericórdias de Deus”. Exatamente porque nos deparamos com as “misericórdias de Deus” como sendo a resposta a essa pergunta [grande e pendente!] precisamos de as receber como EXORTAÇÃO, isto é, (sendo elas ESTA resposta a ESTA pergunta!) precisam, antes de tudo, ser uma representação aguda e básica da interrogação que deu origem à nossa cogitação. Sem perderem suas qualidades transcendentais, [literalmente, suas características do além,] as “misericórdias de Deus” tornam-se o destino final de suas correspondentes qualidades materiais, [literalmente, as “características do aquém que se lhes opõem”]. [Se é certo que a pesquisa intelectual percorre caminhos complicados, também é certo que a exposição do A., particularmente na primeira parte deste Capítulo, é sobremaneira complexa. Talvez tenha sido com o intuito de aliviar a exposição original e facilitar a compreensão do texto que os tradutores ingleses introduziram algumas pequenas modificações que, todavia, deram origem (ou obrigaram) a outras adaptações e terminaram por apresentar conceito diferente do original; este conceito “novo” talvez seja válido também e, uma vez enunciado, poderá ser até subentendido em Barth. Para melhor apreciação, vejamos como a tradução inglesa escreve o ultimo trecho: “Exorto-vos PELAS MISERICÓRDIAS DE DEUS”. “Não começamos agora novo livro, nem mesmo capítulo novo. Paulo não está, aqui, dedicando sua atenção à religião prática como se fosse uma segunda coisa a par da teoria da religião. Pelo contrário, a teoria com a qual até aqui estivemos preocupados, é a teoria da prática da religião. Falamos das graças de Deus, da graça de ressurreição, do perdão, e do Espírito; de eleição e fé; de variadas refrações da luz não criada; todavia o problema ético nunca foi deixado de fora. As interrogações ‘o que faremos? ‘e’ como viveremos?’ jamais foram excluídas. Não andamos procurando coisas escondidas pelo simples gosto de o fazer. Não foi a meditação abstrata que nos levou, sempre de novo, ao ponto que está além de nossa observação, à luz a que nenhum ser humano pode chegar. Roma no primeiro século, todas as localidades em todos os tempos, — de fato, toda realidade existente tem sido sempre o nosso ponto de partida (1, 18-19). Foi correndo os caminhos do pensamento que entramos em recesso. “A necessidade de tomar decisões, a necessidade de ação, o mundo qual é, [tudo isto] é o que nos compele a cogitar sobre o que é o mundo, como haveremos de viver nele e o que faremos nele. Descobrimos que o mundo é um grande enigma insolúvel; um enigma ao qual Cristo, a misericórdia de Deus, dá a resposta e, porque as misericórdias de Deus são a resposta do grande enigma,

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somos forçados a voltar ao ponto de onde começamos e formular mais objetivamente, até mais substancialmente, sua essencial impossibilidade de solução porquanto, finalmente, elas definem o mundo qual é, sem serem, de forma alguma, deprimidas em coisas deste mundo”. Notar que o original não fala em “teoria” e “prática” da religião; pareceme que o A. quer dizer que nada se inventa. A exortação não é para seguir teoria nova, antes é feita em nome das há muito prometidas e conhecidas misericórdias de Deus, as quais o A. passa a enumerar; semelhantemente (e agora na conclusão do pensamento), não se trata de formular mais precisamente a nossa questão, porém de perceber como as “misericórdias de Deus” despertam em nossos corações a consciência de que CRISTO é a resposta que Deus tem para os homens. Entendo ser isto o que Barth está dizendo — [ou melhor, o que Paulo diz.!)]. Estamos novamente ante o problema das “características do aquém” [da temporalidade] de nossa existência e de nosso modo de ser e, agora (somos inevitavelmente lembrados desse problema) mediante as questões da vida, do querer e do agir. O sentido do além [que é] o sentido da liberdade de Deus, conforme vimos sempre e reiteradamente, é a relação de Deus para com as criaturas; é a supressão do aquém, do ser humano; é o mais radical ataque a tudo quanto se lhe contrapõe, a tudo quanto é secundário e diferente. Todavia, na totalidade de suas características transcendentais [as misericórdias de Deus] são “exortação” para o aquém, [para a criatura neste mundo]. A sede dessa exortação não pode ser qualquer dessas elevações humanas donde bem intencionados mestres-escola ditam preceitos de moral ou, donde profetas — vocacionados ou não — lançam raios dardejantes e donde pretensos ou verdadeiros mártires cuidam de derramar seus ais sobre a humanidade. Se essa sede for uma Igreja, certamente será uma Igreja consciente de sua extrema e indestrutível solidariedade com este vale de ossos secos; [será uma Igreja] que não terá outra esperança se não Deus. Quando se trata de ética, nada mais é possível senão a crítica do caráter todo, isto é, será necessário fazer um movimento profundo, básico, possivelmente rotação angular de 3600 [para varrer todo campo em derredor], e examinar cada um dos pontos da problemática de nossa vida. Ao se proceder a critica da totalidade do caráter, apreciando tanto os seus traços negativos como os positivos, é necessário manter a máxima discrição, não para evitar juízos por de mais severos (conforme se poderia supor) mas, justamente ao contrário, para não ser excessivamente complacente deixando de usar da indispensável radicalidade. O clangor que nos vem dos pontos altos do mundo, o sonido que reboa desde as torres da Igreja triunfante nunca é e jamais será a “grande tribulação”

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que aflige os homens. Este alarido é a transcendentalidade deste mundo [e não sai da territoriedade humana] pois é dos homens e por demais humano, mesmo que se comporte como se fora totalmente do além. [É preciso ter sempre presente em nossa mente que todo clamor, toda crítica, toda lamentação que se fizer ao analisar os caracteres do mundo, quer sejam típicos quer sejam excepcionais — tanto negativos como positivos — diz também respeito a nós mesmos, talvez até com desvantagem para nós; por isso,] toda pessoa que, ao pretender alçar sua voz para criticar a outrem, não se sentir concomitantemente [atingível e atingida pela sua própria critica,] anulada, liquidada, que se cale na comunidade — [vale dizer, na Igreja, pois ou não tem a necessária radicalidade ou o seu pronunciamento é irrelevante]. Dentro da problemática ética, muitas palavras de menos são melhores do que uma só, demais. Neste assunto, a palavra decisiva pode, apenas, ser a apresentação da existência efetiva desta problemática [que existe e subsiste] (em tudo e para todos). Somente é decisiva a palavra [absolutamente) radical, Semelhante palavra é totalmente objetiva, prática, (embora pareça “teórica’) e, passando por cima de todos (nossos supostos) correligionários, indica diretamente a misericórdia de Deus como sendo a única causa e razão de ser da problemática de nossa existência. Em sua radicalidade, essa palavra nos fala da misericórdia e da compreensão; diz-nos que ela é única, próxima, concreta, em sua existencialidade e seu modo de ser; por isso ela é universal, existencial, [porém,] nunca, jamais, material. É a palavra que compreende. Exortação jamais é “apenas” exigência. “Exortação” é fazer a graça valer como exigência; é fazer O QUE É, valer qual é e, por isto, é fazer “isso que é”, valer como aquilo que não é. Misericórdia quer dizer não JULGAR porque [aquilo que é ou poderia ser objeto de julgamento] já foi julgado. Misericórdia significa a existência lógica de “má consciência” dentro do desempenho do mundo mau; todavia, exatamente dentro da logicidade da existência dessa má consciência, [significa] a inaudita possibilidade da existência de consciências consoladas (embora nunca e jamais a existência de “boa” consciência!). Portanto, “exortar” significa fazer valer a graça, vê-la na pressuposição de sua existência, descobri-la e nos dirigir a ela, nas coisas que existem. (Nisto acompanhamos Lutero e Dostoiewski. contra os Franciscanos e Tolstoi). [Exortar, portanto] de maneira alguma significa [considerar a graça como] algo especialmente separado, segregado, que tenha existência especial [no mundo], ou que esteja afastado ou acima daquilo que existe. “IN MEDIO

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INIMICORUM REGNUM CHRISTI EST, UT PSALMUS DICIT”. (Lutero). Portanto apenas se pode exortar de lá onde o fariseu e o publicano estão rigorosamente na mesma linha e, ao lado dos quais, quem se atreveu a exortar, não achou separação alguma entre as ovelhas e cabras nem tem [a mínima idéia dessa] separação em mente. A exortação só pode partir de quem de maneira alguma pensa, cogita ou supõe que exista [ou que possa existir] qualquer diferenciação, qualquer linha divisória, entre as pessoas, entre fariseu e publicano, [entre fiéis e infiéis, entre bons e maus, entre eleitos e rejeitados]. A exortação só pode partir de quem não tem [ou de onde não existe] qualquer presunção de que tenha havido algum “impulso de Cristo”; na fonte dessa exortação não podem existir, sequer, reservas ou ressentimentos morais, digamos, contra algum Tirpitz, ou algum Bethmann-Hollweg ou algum Lenine. [Bethmann-Hollweg foi político alemão da época da primeira guerra mundial, de tendências radicais e despóticas; exerceu grande influência sobre o Kaiser e notabilizou-se pela tentativa de justificar perante o mundo a invasão da Bélgica neutra pelos exércitos imperiais]. Na origem da exortação deve existir a compreensão de que a chocante problemática de semelhantes vultos [e a de todas personagens mais ou menos importantes das quais discordamos com ou sem razão de nossa parte], tem o seu perfeito paralelo na problemática existencial de cada um de nós, a qual, todavia, damos menor realce ou menos projeção [ou porque não temos destaque na coletividade ou porque estamos familiarizados com nossa maneira de ser e somos insensíveis a seus aspectos possivelmente menos atraentes. Contudo,] a problemática individual, [seja de quem for,] é apenas a réplica, qual silhueta, de problemática inteiramente diferente ante cuja enormidade a criatura humana não pode, senão emudecer! Não pode haver exortação onde, quem exorta, já traz na algibeira o esboço de algum programa ou de algum instrumento de acusação. Traem-se inconfundivelmente todos supostos moralistas que do cume das altitudes humanas pregam ao povo com palavras totalmente carentes [de sentido] e que, a despeito do afetado calor de suas frases e do tom [de valor] absoluto que dão ao discurso, tem a voz crocitante, na realidade tem a voz morna e pouco convincente dos que se abrigam ao titanismo de bons e maus e, portanto, estão sob o juízo a que toda prosápia está sujeita e do qual, eles mesmos, dão testemunho, sempre de novo. A exortação somente pode existir [e surgir] onde o direito do ser humano consiste e está baseado na realidade de que “esta” criatura — [qualquer que seja, tanto aquela que exorta como a exortada,] — não tem razão e, portanto. [a

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exortação] somente [pode ser feita, recebida e entendida] “mediante as misericórdias de Deus”. “Que ofereçais os vossos corpos”, é a que vos exorto. Lembremo-nos das passagens peremptórias (6, 13 e 19) pelas quais vimos que ante o Poder da Ressurreição que a graça impõe, nada mais nos resta senão colocar nossos membros obedientemente à disposição da reação divina contra nós levantada; essa imposição é feita à totalidade do corpo em [todos] seus membros, porquanto a criatura propriamente dita, o ser visível, o homem histórico, o único que conhecemos é exatamente o corpo. Eis que agora, ao encontro [deste homem, nosso conhecido] vem o “homem novo”, para o requisitar, [para o convocar] fundamentado “nas misericórdias de Deus”; é justamente esta fundamentação, a origem e o sentido deste encargo ético [para o qual o “homem velho” é requisitado,] que confere seriedade à convocação e, não apenas seriedade mas, também Poder. Ante semelhante fundamentação o homem não pode recuar. Obediência apenas interior, [subjetiva, dita] espiritual (ou psicológica, anímica) e mental, está absolutamente excluída porquanto nesta questão, (“vistos de baixo” — [isto é, do ponto de vista do mundo] ), “interioridade”, “alma” e “pensamento”, são apenas funções do “corpo” e é impossível estabelecer uma linha divisória aceitável e válida entre as funções biológicas “inferiores” [ou “superiores” que fossem,] e as partes restantes do corpo que permanecerem [ou que permanecessem] desobedientes. Vistos do outro lado, (vistos de cima) a “interioridade”, a “alma” e o “pensamento” são nada mais e nada menos que a Nova Criatura em Cristo, em quem [e de quem] se origina a grande perturbação da qual a velha criatura deste corpo não pode esquivar-se. É nesta perturbação que se desencadeia a vista da graça e das “misericórdias divinas” — misericórdias que pessoa alguma mereceu e jamais alguém merecerá, — que se delineia e se fixa o relacionamento do homem com Deus, relacionamento que demanda obediência absoluta e constrange a obedecer. Esta perturbação é a crise a que está sujeita toda criatura e constitui sua única esperança, levando-a da morte para a vida; nela está a ÉTICA da tensão escatológica sem a qual não há ética. Graça se traduz na impaciência e carência [que a criatura sente] perante Deus. Graça significa que menos de que TUDO não é suficiente, (Mar. 12, 30 e 33). A graça é inimiga de todos arranjos intermediários, mesmo os mais imprescindíveis. Graça é o machado posto à raiz da “boa consciência” da qual com tanta satisfação se orgulha o cidadão, em sua profissão, na repartição e na política e que a humanamente amistosa frouxidão do luteranismo moderno sabe criar sempre de novo. [Isto quando Barth escreveu; e o evangelismo, de modo geral, hoje?].

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Não há engano mais absurdo do que esperar (ou temer) que a graça pudesse transformar-se em leito de repouso para “teóricos” e místicos (6, 1516). Semelhantemente, na defesa do homem com justa razão preocupado com sua vida (moral!), não há tentativa mais traiçoeira do que, sob o pretexto de evitar esse engano do luteranismo, preferir fundamentar a ética em conceitos orientados para objetivos deste mundo, em bens e em ideais, em vez de tomar como referência o conceito da negação decisiva de todas finalidades de origem humana pensando, antes, no perdão do pecado [que é a graça de Deus]. Não há degradação mais tola do que a atitude de alguns recém-conversos que, na ânsia de se lançarem ao encalço da graça, a tornam suspeita fazendo do “agraciamento” [divino] e da atividade humana coisas distintas entre si; passam por cima da graça, para irem, além dela, até ao que se pode designar por “tentar a vida”. Semelhante procedimento é a forma mais segura de devolver “ao corpo” os “direitos” que [segundo a natureza humana] lhe são próprios. Fora da graça não há qualquer forma ou maneira de despertar verdadeiro dessossego ético na criatura e o ataque absoluto que contra essa criatura é desferido — e que constitui o sentido de toda ética, — somente pode ser desfechado se o ponto de vista da graça for mantido firmemente em todas instâncias, “como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: vosso culto objetivo a ele”. À vista da situação geral [do relacionamento] existente entre Deus e os homens, que sentido pode ter esta definição de ação ética primária, [básica, inicial] de um “culto objetivo” [racional] a Deus? Isto já foi identificado mais atrás (6, 19 e 22) como “santificação”. Agora [porém,] é preciso definir este conceito com maior exatidão. Santificar alguma coisa é separá-la para Deus, coloca-la à sua disposição, apresentá-la e oferecê-la a ele, pô-la à sua disposição conforme se define com mais rigor no “conceito” de “sacrifício” — [holocausto]. Esta exortação, (feita em forma de rogativa) com fundamento nas misericórdias de Deus, diz que o CORPO, isto é, o sentido da existência [terrena], sua aparência e sua historicidade devem ser apresentados [a Deus] e postos à [sua] disposição como SACRIFICIO. Sacrifício quer dizer renuncia, abdicação; oferta feita incondicionalmente a favor de Deus. Se a própria pessoa for o objeto dessa renuncia, dessa abdicação, dessa oferta, então o seu sacrifício não pode ser senão o absoluto reconhecimento da questionabilidade e do confisco que Deus manda a seu encontro de todos os lados; é o sacrifício que a pessoa tem de fazer (permanentemente) no seu sempre renovado e nunca cabalmente realizado retorno à misericórdia e à liberdade de Deus; é o SACRIFÍCIO cuja dureza e grandeza melhor esclarecemos e apreendemos meditando sobre a dupla predestinação, conforme capítulos IX a XI.

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Em primeiro lugar, a exortação reconduz-nos àquele em cujo nome — e em nenhum outro — é possível exortar. O problema da ética é idêntico ao da dogmática: SOLI DEO GLORIA! Todo tratamento ético secundário sobre o qual, mais adiante, teremos algo a dizer, precisa estar ligado a esta ética primeira, precisa proceder dela e estar em correlação com seu caráter” vivo, santo e agradável”, como sendo o “bom” que está à nossa disposição para o extremo — (para o fim) — nesta vida (6, 23). Nisto tudo é preciso observar bem que SACRIFÍCIO não é alguma transação humana mediante a qual a vontade de Deus se muda e se faça em função da instrumentalidade de quem se sacrifica. Sacrifício é antes de mais nada, uma demonstração em honra a Deus, por ele exigida (pois demanda a honra) mas, em si mesma é ação humana, tão boa ou tão má quanto qualquer outra. (É Deus quem faz a qualificação, segundo sua onisciência, sua sabedoria, sua retidão e sua misericórdia, na conformidade do que houver no íntimo do coração de quem faz o sacrifício). Deus permanece sendo somente ele, Deus, mesmo ante o maior sacrifício e a vontade divina se cumpre segundo os seus imutáveis desígnios. (Isto precisa ficar bem claro a toda sorte de místicos e sonhadores, a todo pretenso condicionamento da vontade divina por promessas, louvor e até mesmo orações; todavia, o que dizemos, como homem o dizemos; vemos na promessa, a superstição; na gratidão pela tragédia o desvirtuamento da graça divina (“Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”), na reza a formalização do relacionamento do homem com Deus; e na oração não raro — a sonora peça oratória do ilustre fariseu. (“Graças te dou, ó Deus, porque não sou assim”...). Todavia o ESPÍRITO corrige e, transformando, torna perfeita a nossa suplica: “Pedi, e dar-se-vos-á.” Somente a oração? [— Assim como ficou sem justificação o fariseu da parábola e foi ouvida a oração egocêntrica do ladrão na cruz, talvez Deus aceite ou não aceite este ou aquele louvor; a nós é bastante lembrar que “os que não têm lei para si mesmos são lei”... Deus vê os corações!] Somente uma criança poderia julgar uma passeata de 19 de maio como sendo o movimento trabalhista do qual a passeata é mera demonstração, o que não impedirá que alguns operários conscientes da movimentação da classe, dela participem e até a considerem eminentemente necessária. Ora, o sacrifício [semelhante à passeata referida] pode ser uma demonstração necessária e até requerida; todavia, também assim o é toda ética, mesmo a primeira, a básica, a ética da linha interrompida e a genuflexa adoração ao Deus misericordioso. Não há nenhuma orientação da vida [mordomia] por mais alta que seja a qualidade de sua ética, mediante a qual as vontades divina e humana coincidam: na

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qual a vontade humana se adapte à divina ou então, inversamente, mediante a qual a vontade divina seja estabelecida pelo querer humano. A toda e qualquer atividade ou inatividade humana cabe, apenas, dar testemunho da única atividade realmente digna desse nome: a divina. Não há coincidência possível do ato com a respectiva previa concepção mental e esta é uma regra férrea, também, para a ética. Onde se vir o “Reino de Deus” em “crescimento orgânico”, ou, dito mais honestamente e, também, mais arrogantemente, onde se vir o “Reino de Deus” em construção, aí não se trata do Reino de Deus mas da TORRE DE BABEL. O que existe no mundo é a grande tentativa geral de cada um a seu modo orientar a própria vida, labuta em que todos laboramos com temor e tremor; todavia nesse afã jamais coincidem ou sequer se tocam a vontade de Deus e a dos homens, nem mesmo na proporção da espessura de um fio de cabelo. A própria pureza da ética exige que não haja qualquer mistura entre o céu e a terra (e nisto, também, concordamos com Kant), porquanto a pureza da ética está na sua origem, que precisa ser preservada, a despeito de toda pressão romântica, referindo-nos a Deus como Deus e ao homem como homem. O desengano, o descoroçoamento e a moderação que resultam [da separação entre o que é divino e o que é humano] só podem ser para o bem. Que nesse “desalento” o homem perceba (se já não o houver percebido antes) do que se trata quando o problema ético surgir. Na grande mordomia da vida só podem ser feitas demonstrações; outra possibilidade não existe: são atividades plenas de significado que dão testemunho da gloria de Deus e a testificam. Se estas demonstrações efetivamente servem à honra [à glória e ao louvor] de Deus — porquanto devem honrá-lo — é questão que temos de entregar totalmente a Deus. Ele aceita e rejeita. Ele retribuirá [o original diz “pagará”] a cada um “segundo suas obras” (2, 6) [isto é] segundo o que Deus escolher [OU acolher nessas obras] e a avaliação que lhes der. A estas demonstrações em honra a Deus pertencem, além das atividades que dizem respeito à ética fundamental, todas demais atividades secundárias. É na “aceitação” ou “rejeição” divina que está a legitimidade da ligação da ética “secundária” à “primeira”; a sua qualificação como “boa” está na renúncia do ser humano a seu “direito” e a seu “poder”; nesta renúncia ele proclama a misericórdia e a liberdade de Deus. Todavia, todas essas atividades [tanto aquelas colocadas na ética básica quanto as daí decorrentes ]. somente têm eventual valor se, em si mesmas, não forem mais do que meros apelos [ou oferendas] à aceitação ou à rejeição divina e, como tais, nunca pretenderem ser mais do que analogias (parábolas) e testemunhos, ficando até mesmo esta

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proposição sujeita ao beneplácito e ao critério de Deus pois, do nosso ponto de vista fazemos uma série interminável de sacrifícios sucessivos porém, vistos de cima eles constituem um sacrifício único e definitivo, o “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. Somente é realmente VIVO, SANTO E AGRADÁVEL A DEUS, o procedimento que jamais pretendeu ser sacrificial; quando a pessoa nem sequer imagina que em sua atitude poderia haver vestígio de sacrifício; [quando a pessoa disciplina seu pensamento, modera suas palavras e policia seus atos exclusivamente pela fé, constrangida pelas “misericórdias divinas e sem visar reconhecimento]. Tudo quanto se puder designar como dever, virtude e bem, está sobre o fio desse agudo gume; está suspenso por esse tênue fio que decide se a criatura que as pratica está realmente pronta ao sacrifício — isto é, se ela quer realmente [sobrepujar suas próprias inclinações, seus interesses e suas regalias e, tudo] sacrificando, demonstrar que dá a honra a Deus. O que for além disso [a atitude que tiver vestígios de conceitos egoístas, vaidade e interesses pessoais — até mesmo a pressuposição de estar “agradando a Deus”] procede do maligno, — [por mais grandioso ou emocionante que seja,] ainda que fosse a santidade e a pureza de alguma virgem martirizada. Para quem este Deus parecer excessivamente duro, quem não quiser [ou não puder] oferecer essa “adoração objetiva”, este que se volte para trás, pois tem bens em demasia [Mat. 19, 16 e seguintes]. Daí vê-se porque e de que maneira a ética exigida por Deus com fundamentação nas suas misericórdias tem de, necessariamente resultar na grande perturbação de TODO e CADA indivíduo. Exorto-vos “a não vos conformardes com a condição do mundo presente, porém, sim, com a sua vindoura transformação”. [A não conformação com o presente mundo] refere-se evidentemente às atividades [que classificamos como] secundárias. [Porém, se a ética consiste numa demonstração referente a alguma coisa — ou idéia] então, a que se referem e a que apontam essas atividades (ou demonstrações)? Para responder dizemos tudo, afirmando que se referem às atividades básicas das pessoas que se sacrificam, das criaturas que não são vitoriosas, nem triunfantes, nem têm razão (o que, todavia, não impede que tenham realmente a aparência de vitória, triunfo e razão!). O mundo a que a passagem se refere é o mundo do presente século, o mundo da temporalidade, das coisas e dos homens; é o único mundo que conhecemos e em que nos é concedido viver; é o mundo com o qual nos [identificamos e ao qual nos] unimos inseparavelmente por meio de nosso corpo sem

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podermos traçar a [eventual] linha divisória que nos separasse dele; a este mundo também pertenceria um [hipotético] corpo astral, por simples questão de lógica. [Possível referência aos gênios de fogo os quais povoariam o universo segundo algumas religiões ocultistas]. O mundo [que a passagem menciona] é aquele no qual o ser humano, (com todas suas possíveis e imagináveis projeções mundanas e “intermundiais”) continua sendo criatura humana. Este mundo tem determinada “postura”, determinado esquema e tem uma lei básica que se expressa na tendência de seguir a luz (criada!), de buscar a vida e a plenitude; busca o testemunho e portanto o que é testificado; em resumo: este mundo segue a própria criatura, [e esta criatura, para o mundo e segundo o mundo — e pela própria lei natural do mundo — completa-se e se realiza plenamente e idealmente em sua materialidade absoluta, nas suas multiformes manifestações]. Esse esforço para assegurar prazer, posse, sucesso, saber, poderio, razão, para chegar a ambicionada e [supostamente] atingível plenitude imaginada, deve ser a obra do misterioso centro deste cosmos na medida em que o homem for genial. (Convém aqui lembrar que a origem etimológica de “genial” sugere a idéia de casamento, [núpcias,] e gênio — ou “genius” — é o “querido EGO”). [Mais adiante Barth faz analogias entre “genial” e o que, em português, poderíamos escrever “genital”, do latim “genialis”]. Talvez não erremos muito se identificarmos “a condição do mundo presente”, intrinsecamente, com o esquema de EROS. Esta característica carregamos todos em todas nossas atividades diárias e elas nos acompanharão até o fim do mundo [ou individualmente, até o final de nossos dias terrenos]. Não tenhamos a ilusão de que existam [ou possam existir] atividades éticas que não estejam entremeadas dessa condição, que estejam livres dessas roupagens, isto é, não existem [sentimentos nobres quais] amor, probidade, pureza, coragem, etc., que não contenham a forma deste mundo e não sejam eróticas. Assim como não existe um pensamento puro em forma de ação, também não existe intenção [querer ou desejo] pura. [A tradução inglesa escreve “também não existe um puro ato de vontade”] Assim como todo ato de pensamento — como tal é suposição [opinião, ou julgamento], todo ato da vontade — também como tal — é libido e cobiça. Todavia, não subestimemos nossa situação, [ou melhor, não sejamos pessimistas]. Se não há sequer uma única pessoa que não traia [ou que em seus sentimentos e conduta, negue] a característica deste mundo, também não há um sequer que a carregue sem já estar, justamente por isso, às voltas com o princípio fundamental da ética [com a grande perturbação que fala] do sacrifício

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[santo e agradável a Deus, mediante o domínio sobre o corpo]. “A condição, [a característica e a aparência] deste mundo desaparece” (1 Cor. 7, 3 1) e o objetivo de buscar a vida [neste mundo] tem o seu fim. Em imediata oposição à procriação está a morte. O que se cria, seja um ser vivente ou seja uma obra, é criado para a temporalidade. Quando a obra ou a criatura nos fala em sua mais sublime beleza (Mozart!), fala-nos em tons da mais profunda melancolia. Quem já não o sabia? Quem já não sabia que nosso “corpo” é o “corpo da morte” (7, 24) e que na realidade nenhuma outra atividade nos resta senão a de [tentar melhorar um pouco a nossa situação e] “remediar” esta empresa (8, 13) (procurando fugir de sua fatalidade material)? [A tradução inglesa escreve, (acaso) “não sabemos que a nossa atividade não pode, senão cessar?”. Embora o verbo empregado no original possa significar também “parar”, “cessar”, “desligar a empresa”, ele significa “arrumar”, dispor provisoriamente que, aliás, é a primeira definição que os dicionários dão, e que traduzi como “remediar”; parece-me que o significado assim entendido no original é mais profundo e vai bem com a citação de 8, 13 pois implica na idéia de que existe, enquanto aqui estamos, a possibilidade de “provisoriamente” abrandarmos as condições de nossa empresa (que caminha para o colapso — para a morte), mediante o controle dos ímpetos de nosso corpo e então, pela graça de Deus, quem sabe, a salvaremos da derrocada definitiva! ...]. Quem ignoraria que essa conduta ética nos é imposta por ordenança [divina]? E quem, ao se lembrar disso, já não estaria envolvido nesse procedimento? Quem já não estaria, existencialmente, sacrificado (mediante renuncias e contenções sucessivas que, para Deus, constituem um só e definitivo sacrifício)? Para confirmar a real existência desse sacrifício é suficiente confessar a existência da profunda problemática [da grande perturbação] que constantemente acompanha nossa vida e que nos cerca de todos os lados; é suficiente confirmar a realidade da opressão que sentimos. (E quem ha que conheçamos que, acaso, não confirme essa situação? [Todavia], o Senhor conhece os seus!) Assim é que obedecemos a “exortação” e surge a atividade ética secundária, em ligação direta com a “primária” e, por sua decorrência, sucede que “não nos conformamos com a condição deste mundo mas, sim, na sua transformação”. [Esta transformação se dá] quanto as particularidades e características individuais, tais como vontades [caprichos], decisão [arbítrio], direitos pessoais do indivíduo, [prerrogativas], entram em colapso— [desaparecem, cessam de existir]. quando o indivíduo é apenas o “sacrificado” — [isto é, aquele que renunciou a sua própria vida, segundo os padrões do mundo]. — e nada mais

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— (e isto também pode, em dado momento ser a mais alta confirmação da vida, o seu (mais significativo] desdobramento!); então será o fim do mundo, a ressurreição dos mortos; e a criatura agirá eticamente. A ética de uma atitude está naquilo que a ilumina [e não da luz que dela acaso se esparge], porquanto neste assunto temos razões para não nos expressarmos senão em forma negativa. [Falamos em termos de negação, de abstenção, de renúncia, do] sobrepujamento do indivíduo porquanto a conformação [que a ética divina impõe] não se dá segundo o presente século mas é segundo o mundo transformado. Não ha nenhuma conduta que, em si mesma, não esteja na conformidade deste mundo embora existam ações que QUASE contenham em si o caráter do protesto divino contra o grande erro. Também não existe procedimento que em seu modo de ser acaso seja conforme a transformação deste mundo, embora existam atitudes que são tão extraordinariamente transparentes [cristalinas, puras] que QUASE deixam transparecer a luz do dia vindouro. Portanto, resta que toda conduta humana é somente (por que dizemos “somente”?) analogia, [semelhança, parábola] e testifica a conduta divina que, por ser divina somente (e por que dizemos outra vez “somente”?) pode ser apropriada na eternidade e jamais na presente temporalidade. É poeira levantada pela caravana em marcha — apenas poeira — que [todavia] testifica a existência da caravana; é a cratera deixada pela granada que explodiu e que nos fala de explosão que houve; é depressão na encosta da montanha que apenas nos fala do lugar onde a elevação deixou de existir. Assim também as mais peregrinas de nossas atitudes, as atividades mais amplas e de maior alcance, são sempre e insistentemente recomendadas como prova [da obra] do Espírito Santo e de seu poder [para nos levar] a produzir “obras e realidades” que sejam recomendadas e desejáveis. Se daí, por força das circunstâncias, surgirem novas ações positivas, novos pontos de vista — novos direitos, novas forças motrizes (aplicadas à antiga carroçaria do mundo) — e estas coisas aparecem imediatamente! — então essas [decantadas] atitudes e atividades não são conformes ao mundo em sua transformação mas, na realidade, gravitam em torno das coisas materiais e estão inteiramente em conformidade com o comportamento deste mundo. A criatura que se engaja nos mais sublimes feitos e realidades tanto pode ser aquela sempre vitoriosa como esta outra, do sofrimento; pode ser a pessoa no pleno gozo de seus êxitos ou a outra no duro curtimento da tragédia; tanto pode ser a que progride de ânimo alegre como a que regride melancolicamente; tanto pode ser quem de tudo tira vantagem e proveito, como quem constantemente abre mão, abdica, renuncia. [Neste engajamento, qualquer que seja a personalidade do indivíduo embalado em suas próprias cogitações de alto coturno,] ele permanece totalmente

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seguro de si mesmo, inafetado e inabalado em sua “genialidade” em cujo clímax temporal [se delicia em festim nupcial] com seu muito “amado Ego”. [É neste alcandorado enlevo que brotam e se divulgam idéias esdrúxulas semelhantes às de Nietzsche e] é suficiente aqui fazer menção das graves ponderações que contra a propagada “liberdade para o suicídio” podem ser levantadas. [Todos esses arroubos do auto-endeusamento intelectual] são de curta duração, semelhantes ao clímax de Prometeu e, na verdade, quanto mais altos forem, mais perfeita será a analogia com Prometeu. Como poderiam a seriedade e o poder da ética estar contidos em tais “feitos e realidades”? Todavia existem [também] atitudes [atividades e primores intelectuais] das quais irradia a luz do sacrifício porém, estes casos procedem de criaturas “já sacrificadas” [criaturas que renunciaram a si mesmas] e não são de homens e mulheres ostentando alguma nova forma de humanidade, quer positiva quer negativa. [Esta ética que tem em si mesma a luz da renúncia] é peculiar a pessoas que já não pertencem a si mesmas e a luz que a sua ética permite distinguir é particularidade divina e pertence a Deus; é do arbítrio divino e da justiça de Deus. Ele é o Senhor! Esta é a luz que perturba a criatura [típica] — a “pessoa-ideal” segundo o esquema Ludendorff-Lenin ou segundo o esquema Foerster-Ragaz, porque esta luz é o ataque ao ser humano por excelência; é o ataque à criatura [conforme existente] neste mundo. É o ataque à genialidade — (e quem não é genial?). É o ataque que todos tanto tememos porque é o ataque que todos ansiosamente esperamos pois bem sabemos (embora, em alguns casos, subconscientemente) que nada melhor nos pode acontecer do que ficarmos livres de nossa GENIALIDADE. [Lembrar que o A. joga com a origem etimologica de “genialis”]. [Foerster foi filósofo e pensador alemão que escreveu sobre “Ética e Pedagogia Sexual” e Ragaz escreveu sobre “Socialismo e Ética”. O primeiro era católico e o segundo protestante; ambos combateram o militarismo; Foerster foi livre-pensador e Ragaz, socialista]. [A libertação da “genialidade”] é o prenúncio da crise [da decisão] que leva da morte para a vida. Perguntamos novamente: quem está livre desta crise? Onde não existe ela? Quem há que se negue a ouvir com boa vontade, esta exortação? Quem a rejeitaria? Aqui todos atacam porque todos são atacados; todos têm razão porque ninguém a tem. Não se pode imaginar um ataque mais severo às obras de Satanás do que este, [contido na “exortação”]. Todavia, este ataque também desmorona algumas obras que são consideradas plenamente divinas.

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[Estas pseudo-obras-divinas] não ruiriam segundo a conformidade do “presente século” todavia não podem subsistir quando confrontadas com o mundo em sua transformação. O que poderíamos, de nossa parte, fazer para que em nossas atividades — [em nosso sacrifício, em nossa renúncia] transparecesse a vitória e delas irradiasse a glória da luz divina? O que faremos para que o teor de nossa conduta não seja o de cascas chochas mas de grão bom e sazonado? O que se pode aconselhar ou a que se pode convidar ou incitar alguém, para que produza tais frutos? —Já o dissemos: é responder “sim” à problemática da existência; [é confessar que ela existe], já que ela existe de fato. Pode-se recomendar a alguém a sujeição à primeira ética (aliás, não a alguém mas a nós mesmos); pode-se exortar ao arrependimento. Todavia, essa primeira atitude (a ética primeira) à qual tudo o que é secundário precisa ligarse e da qual esta ética secundária recebe o seu poder luminoso, é a “renovação de vosso pensamento para obterdes a visão do que seja a boa, santa e perfeita vontade de Deus”. — Então, outra vez o pensamento? — Sim, o pensamento. O primeiro procedimento ético é um pensamento totalmente definido, [já delineado e especificado]. Arrependimento, significa inverter o pensamento. A colocação da chave do problema ético, o tambor onde se dá a volta e que faz a fechadura girar no sentido que abre a porta ao novo modo de proceder, está justamente nesta inversão do pensamento. Esclarecemos: também o pensamento vaga na esfera das coisas relativas e, em si mesmo, ele jamais é [ou seria] justificação válida perante Deus; a idéia de que Deus poderia pensar “em nós” [ou expressar os seus pensamentos por nosso intermédio] é mui grande ilusão de filósofos românticos — ou melhor, [o pensamento] apenas pode representar a vanguarda, a demonstração da honra a Deus [assim como a “parada” cívica pode ser a demonstração de algum movimento de classe]; não há qualquer poder criativo intrínseco [no pensamento] e somente a Palavra e a Obra de Deus podem constituir o ESSE em NOSSE; portanto não se pode exortar alguém a participar do “pensamento puro”. Existe porém um ato de pensamento que contém uma promessa; é um ato de pensamento que, na realidade, não como tal mas como a supressão de si mesmo — e de todos atos — é idêntico ao “culto objetivo” mediante o qual, uma vez por todas, a genuflexa adoração a Deus — e na medida em que esta adoração se realiza e se suprime como ato — alcança “a visão do que seja a vontade de Deus”: a sabedoria da opção que por si mesma escolhe o caminho certo a cada instante. 675

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Existe a meditação sobre a idéia da graça, da ressurreição, do perdão e da eternidade. Esta meditação coincide [e é coerente] com a confirmação da existência da mais profunda problemática de nossa vida temporal. Quando mediante a interrogação sobre o sentido derradeiro dessa meditação, finalmente, reconhecemos o sentido definitivo, o fim [o objetivo] de nossa existência temporal então, no mais profundo estremecimento, passamos a meditar sobre a eternidade. É por isto que a mais profunda problemática de nossa existência é também a sua mais profunda verdade. A meditação sobre esta idéia é o pensamento renovado; é a inversão do pensamento; é o arrependimento. Sabemos que justamente na medida em que [este pensamento] é pleno em promessa, na medida em que ele suprime a si mesmo como ato de pensamento, na medida em que ele participa do próprio puro pensamento divino, isto é, na medida em que for sacrifício “vivo, santo e agradável a Deus”, na medida em que for [um sacrifício] aceito, ele apenas preenche o tempo, porém jamais acontece; contudo sabemos (também) que “acontece” porquanto ele [realmente] põe em crise todos demais pensamentos; assim, à vista da criação e da obra de Deus, das quais “são testemunhas os seus pensamentos, mutuamente se acusando ou se defendendo” (2, 15) podemos exortar as pessoas [a que façam esse sacrifício]. Não só podemos mas devemos convidar a todos e instar para que se arrependam; podemos rogar que não se esquivem da por demais conhecida crise de todos pensamentos mas meditem sobre ela, ouvindo a Palavra divina e dando lugar a Deus. E isto basta. A graça basta também para a ética! Basta, porquanto a volta dada na posição da chave indica que existe [agora] nova maneira de proceder e abre a porta a essa possível atividade [a essa possível conduta ética] que, em primeiro lugar, já traz em si o caráter do protesto divino contra o grande erro e possui em alto grau a transparência que dá passagem à luz do dia vindouro. [Esta graça divina] é suficiente para abalar o indivíduo em sua maldita segurança [mesmo que se trate do mais presunçoso intelectualista] e então guiar o seu destino espiritual como nova criatura em Cristo. [A graça] é suficiente para acordar o ser humano do “sono dos justos” e transformá-lo em ente sacrificado. Basta-lhe o “bom, agradável e aceitável”; isto é [basta-lhe] não deixar escapulir completamente [a oportunidade de exercitar] a conduta que vai ao encontro daquilo que Deus valoriza e em que transparece a luz da vitória sobre a criatura deste mundo, a luz da glória de Deus. A depreciação e as justificadas objeções do anti-intelectualismo não atingem este [novo] pensamento porquanto a meditação sobre a idéia da “eternidade”

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suprime também a possibilidade [ou risco] de pretender-se encontrar justificação em qual quer meditação. [Também] não faz sentido aborrecer-se alguém com as grosserias do intelectualismo porque nisso pecamos todos. Tanto a ética como a lógica precisam, uma mediante a outra, ser remetidas à sua origem, ao problema da existência; daí procede a necessidade de se tratar da Palavra de Deus, — de ouvi-la, de comentá-la, justamente quando se tem em vista a vida verdadeira. Porque a ética precisa voltar à problemática da vida através da lógica e porque a lógica precisa fazê-lo através da ética, é que precisamos voltar ao discurso, aparentemente ocioso, sobre Deus, ao meditarmos sobre a interrogação do que faremos. Isto se impõe porque o mundo está cheio de encargos prementes; impõe-se por causa do acidente [e quiçá também incidente] de rua; por causa do jornal diário, da Carta aos Romanos, do “Paulinismo”. Se fosse possível “fazer” alguma coisa com “atos e fatos”, conforme pessoas apressadas levianamente supõem, tudo isso poderia ser abandonado na prática. Porém, como vimos, com atos e fatos nada se faz; por isso somos exortados a renovar o pensamento, a invertê-lo e a que nos arrependamos; é uma advertência que devemos ouvir e, ao ouvi-la, fazer alguma coisa. Ante isso vamos mais uma vez firmar delimitando, ou melhor, vamos firmar sublinhando que a palavra final do ensinamento aqui necessário, tem de ser dada por Deus e por Deus somente. Deus é a grande perturbação tanto de quem cuida da ética como de quem cuida da dogmática. Comentários: 12, 1-2 A certa altura de seu arrazoado sobre o “processo do pensamento” Barth afirma que se considerarmos a Epístola aos Romanos, como sendo “ato de pensamento” do Grande Apóstolo dos Gentios, então não é automaticamente certo que sua exposição esteja na conformidade com o pensamento divino. Talvez, ainda a esta altura do livro, seja conveniente lembrar o humor irônico do A. Parece-me que Barth quer dizer que se quisermos negar a Paulo a graça da inspiração divina então não é “automaticamente certo” que a Epístola seja realmente — Palavra de Deus e que a ética que Paulo propõe seja, de fato, divina como, aliás, não se pode, a priori, afirmar que este livro seja verdadeiramente meditação séria sobre Deus. (É preciso primeiramente examinar... para reter o que for bom!). Todavia, ainda no seu humor peculiar, o A. diz que se estivermos con-

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vencidos de que é absolutamente necessário recorrer à ética nova, inteiramente, totalmente diversa dos conceitos do mundo, se não pudermos, em sã consciência, alegar que a criação de tal ética seria mero diletantismo, coisa inócua, desnecessária e até extravagante, então nada nos resta senão aceitar e enfrentar o transtorno, a perturbação, a “atrapalhação” que esta nova ética traz e impõe à vida que “poderíamos” levar segundo nossas inclinações materiais, porquanto esta ética que o “novo Apóstolo” preconiza, exige que entreguemos aquilo que temos como sendo nosso — (ou melhor, aquilo que “outrora” tivemos como sendo nosso) em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, buscando com empenho os dons mais excelentes, para que sejamos “um” em CRISTO.

A BASE FUNDAMENTAL (12, 3-8) “A Pré-suposição” é o título que a versão inglesa dá à exegese dos versículos 3 a 8. Embora o original admita essa tradução e ela seja bastante própria segundo a semântica do vocábulo em língua inglesa, parece-me que em português “presuposição” não expressa, com suficiente precisão, a idéia do Autor. O que Barth analisa nesta seção são as primícias e a premissa — é aquilo que existe, inicialmente, para provocar o arrependimento da criatura e aquilo em que se apóia a conseqüente motivação do relacionamento do homem com Deus. Essa motivação básica se dá pela realidade de que DEUS É AMOR. Porque Deus ama potencialmente, ele também requer para si o amor filial da criatura. Esta é a inicial da “grande perturbação” que acompanha o ser humano, constrangendo-o a, perpetuamente sobre a terra, confrontar e conformar a sua conduta, o seu comportamento, com o padrão de excelência que as “misericórdias de Deus” exigem. É disto que se trata nesta seção do capítulo cujo título “Die Voraussetzung” no original, foi escrito como “A Base Fundamental”. Vs. 3 (primeira parte) Assim, com fundamento na graça que me foi concedida digo a cada um de vós que não queira elevar-se em sua mente, o que não tem sentido, mas cuide ser moderado. [A tradução de Almeida escreve: “Porque pela graça que me foi dada digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com moderação”]. Esta é a grande perturbação. Ela se dá, em primeiro lugar, porque Deus é o amor que ama a criatura humana e, então, se verifica que Deus quer ser

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amado. “Francamente, Deus não é egoísta mas ele é o EGO infinito que não pode ser modificado para te agradar, porém tu precisas modificar-te para agradar a ele... Assim como a flecha desferida pelo flecheiro exímio não pode parar antes de atingir seu alvo, assim a criatura humana não encontra descanso, senão em Deus...; tão logo eu tente, em minha vida, dar expressão ao que afirmo, isto é, quando procuro pôr o Cristianismo em termos práticos, então faço explodir a vida e o escândalo assoma.” (Kierkegaard). Somente quem já esteve exposto à grande perturbação, está em condições de receber a exortação e, também, de exortar (12, 1). É nesta condição que Paulo fala (1, 1); a graça que lhe foi dada, (tanto nesta passagem como em 5, 2), é o fato paradoxal de seu apostolado, [que se evidência em] sua situação peculiar como “mensageiro especialmente ordenado [ou comissionado] para o cumprimento da mais alta missão” (Kierkegaard). Paulo dirige-se aos romanos como gente igual a ele, isto é, como gente que também experimentou a grande perturbação que Paulo traz constantemente à lembrança deles, em sua carta. É por isto que toda a Epístola aos Romanos, é uma exortação. Que Deus é Deus, constitui a base [ou o pressuposto] da ética e as proposições éticas somente são éticas, como enunciação deste fundamento que [todavia] nunca é de antemão conhecido e nunca pode ser considerado como [licença ou] permissão [ou base] para progressos rotineiros, quiçá diários, nem para que se assumam presunçosamente posições mais avançadas [ou mais ousadas]. O fato de que Deus é Deus faz-se conhecer [e impõe o seu reconhecimento] por si mesmo; é ele mesmo que urge a que se tomem novas posições e dão compasso para o desenvolvimento normal. [Entendo que o Autor quer dizer que não se pode partir do conceito de que Deus é Deus, para estabelecer uma norma de “prática diária da ética”, nem para o aperfeiçoamento progressivo de nossa conduta e, muito menos (se assim podemos dizer), tomar esse conceito como motivação e justificação para inovar métodos de trabalho, técnicas de evangelização, exercícios de aprimoramento espiritual, etc. O conhecimento de Deus é o reconhecimento de que só Deus é Deus, é revelação que está à disposição dos que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir, desde o princípio do mundo (1, 20); é revelação que está em Cristo Jesus (Heb. 1); todos são convidados, porém o convite, a revelação, vem de Deus (Mat. 11, 25 ss). Quem ouvir o apelo do Espírito Santo em seu coração e não for desobediente à visão celestial, esse achará descanso para sua alma; terá a Deus por seu Deus; a Jesus Cristo por seu Salvador; ao Espírito Santo por seu Consolador. Esse tal viverá pela fé e oferecerá os seus dotes, dons e pendores naturais a Deus em sacrifício espontâneo,

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natural, lógico — seu culto racional. Haverá progresso diário? Haverá necessidade ou oportunidade de tomar novas posições? — Vivamos pela nossa fé e o restante a fidelidade de Deus proverá!]. Quem há [suficientemente] competente para discorrer sobre ética e ouvir essa discussão? Quem pode, em primeira e última instância dizer a alguém ou aceitar que alguém lhe diga “que não DEVE ELEVAR-SE EM SUA MENTE” (porque) “ISTO NÃO TEM SENTIDO”? Sabemos qual [e o que] é esta elevação [esta presunção e autopromoção]; sabêmo-lo bem, mas nunca “bem demais”. (12, 1). Mal acabamos de apear [quer seja de quixotesco rocinante ou de fogoso corcel] ei-nos já com o pé no estribo de outra montaria; mal acabamos de ser tirados de uma situação-difícil e eis que já estamos às voltas com nova causa; ainda não acabamos de ser instruídos e já estamos a ensinar. Acabamos de nos desiludir com a história ou com a psicologia e já estamos criando novo ídolo, [talvez agora] bíblico, quiçá na forma de “deus vivo” ou, quem sabe, na “sabedoria da morte”. Quem há que observe quão freqüentemente erra? Parece mesmo que, para nossa vergonha, precisamos estar sempre em alguma dessas alturas, [dessas excelências humanas]; precisamos estar, conforme vimos, em alguma Igreja, pois ela surge onde se fala e se ouve falar a respeito de Deus, onde se trata daquilo que, da parte de Deus, há para dizer sobre a nossa vida (9, 6). Que Igreja é essa? É infinita a possibilidade de que se trate da Igreja em que a criatura humana “quer estar no alto”. Portanto, aquilo que nos deveria ser dito e que deveríamos ouvir sobre a nossa vida, da parte de Deus, será dito e ouvido, sempre, impropriamente e, pior do que isto, soará (para nós) cada vez mais apropriado e “mais essencial”. O fim desta Igreja — o fim de todos os “ALTOS”, com seus Baalim e Astartes — é a Igreja invisível, a Igreja de Jacó. Precisamos, portanto, entender imediatamente e com muita clareza que também a exortação para que cada um “cuide de ser ponderado” não visa à possível justificação humana de alguma conduta espiritual, mas ao instante eterno quando estivermos abatidos e sem justificação perante Deus, para [então] sermos enaltecidos e justificados por ele. Por isso, não é supérflua essa exortação, (ou, em outras palavras: não se trata apenas de ser moderado, modesto, humilde em nossas atitudes cotidianas ou ocasionais mas também no momento crítico e decisivo quando nos defrontarmos com Deus: que sejam “poucas as nossas razões”, quiçá nenhuma; que, se nos for possível, não falemos sequer uma vez; melhor fora que nunca houvéssemos tentado — que, pelo menos — não mais tentássemos cavalgar em grandes paradas...]

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A apropriação do conhecimento, [da sugestão ou da sabedoria contida nessa exortação], pode ter a mais alta significação para a nossa conduta ética secundária: não tem sentido nós nos colocarmos no ALTO! Enquanto nosso PENSAR, QUERER e FAZER forem titânicos [enquanto neles pretendermos ser grandiosos] e quando que os esforços humanos não tenderam para o “titanismo”? — e enquanto (e na medida que) o nosso afã estiver sob o inconfundível sinal de Caim, [isto é, sob a égide] da luta pela existência então, as bandeiras desfraldadas, as firmas estabelecidas, as torres erigidas, tudo (inevitavelmente tudo — é claro!) precisa esfacelar-se na perturbação que ameaça toda “condição deste mundo” (12, 2); tudo precisa ser anulado, [quebrado, desfeito] pela lei da morte à qual nada que pretende ser algo, consegue resistir. Pode, todavia, acontecer que não seja em vão que, ao menos, saibamos que é assim; saibamos que nada que consideremos ser importante ou sério neste mundo e pertencente ao mundo, pode resistir [à inexorável lei do salário do pecado] e que, se não deixarmos [de nos colocar sempre de novo nas ALTURAS] nos seja mostrado, também sempre de novo, e nos seja incutido como por marteladas, que não há senso em semelhante conduta, a fim de que “cuidemos de ser moderados”. Evidentemente, também é “titanismo” a virtude pagã [ou gentílica], da “moderação”, mesmo que ela se apresente envolvida de roupagens cristãs. Portanto, não é a esta moderação que se refere o cuidado a que somos exortados. Pode, porém, ocorrer o milagre de, mediante e através da atividade humana secundária (isto é, naquela atividade não direta e especificamente ligada a Deus ou, pelo menos, não pensada como tal), acender-se — pela lembrança da justiça de Deus — a luz da “conduta moderada”, luz que não procede da criatura em si, nem é deste mundo. Se obedecermos à exortação pode acontecer que a névoa da presunção, da autojustificação e da vontade de que os homens se cercam e com que a humanidade os cerca, seja desfeita; que o circo onde competimos com os outros para galgar o trapézio mais alto, subitamente se feche; que a parábola do pensamento, da vontade e da ação dos homens [finalmente] fale e que nesta criatura, na total humanidade de seu ser, Deus seja glorificado. É o milagre que, assim, acontece e acontecerá. Não podemos realizar este milagre mas podemos visá-lo; podemos, incansavelmente, considerar quão destituída de sentido é nossa existência no mais alto píncaro, se este milagre não se der.

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Este cuidado em “ser moderado” é pleno de promessa porque [nesse empenho] consideramos [e meditamos sobre] a justiça de Deus e voltamos à origem da ética de onde provém tudo. Vs. 3 (segunda parte) a 6 (primeira parte) Notadamente a rejeição ao titanismo e o retorno à origem da ética [ou à sua base fundamental] são assegurados [garantidos] pela eliminação da dubiedade do indivíduo. Exorto-vos a que cuideis, tendo em vista o objetivo da fé que Deus consignou a cada um. Porquanto, assim como em um mesmo corpo existem muitos membros, ainda que não tenham todos a mesma função, assim também nós, em nossa multiplicidade, somos um corpo em Cristo, ainda que entre nós nos conduzamos individualmente, tendo diferentes dons segundo nos foi dado pela própria graça. A analogia do corpo e dos membros, aqui empregada, não tem o sentido “romântico-conservador” que o catolicismo pretende dar-lhe, para justificar o seu conceito de Igreja [única e infalível] e das demais atividades daí derivadas, [Em lugar de “sentido” a tradução inglesa escreve “doutrina” o que, talvez, seja mais próprio]. Esse conceito [ou doutrina] tem por base [que a Igreja é formada por] aglomerado vivo constituído pela agregação de personalidades parciais que se reúnem ao todo como corpo celular onde, cada um unido aos muitos, e parcela do conjunto [para cujo caráter total contribui com a parcela minúscula de sua qualidade particular e, embora não seja decisivo para impor suas próprias características ao conjunto, para ele concorre em proporção à parte que lhe toca]. Esta interpretação, todavia, não subsiste à análise acurada do texto. Se [a interpretação católico-romana] fosse válida, então a analogia se referiria a algum fenômeno de ciências físicas e naturais ou seria psicológica, (possivelmente ainda não perceptível em toda sua clareza); e não diria respeito ao Reino de Deus, conforme é de se esperar naturalmente e até com a mais absoluta certeza, em se tratando de uma epístola de Paulo. Fôra válida a interpretação católica, então a exortação para “ser moderado” não seria coercitiva nem ética. [Para que e por que haveria de o indivíduo “cuidar de ser moderado” se isto só atenuaria o maior valor de expressão que o “conjunto” poderia ter — vale dizer, que a Igreja teria — se cada um de seus integrantes, fôra mais brilhante e mais se destacasse? Se assim fosse, todos deveriam esforçar-se na “sublime” competição de cada um ser “mais excelente”...].

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Onde haveriam de, justamente este “conceito de organismo” e a determinação orgânica de suas partes, — que [Paulo] tão claramente (pelo menos à primeira vista), descreve como sendo a vida — buscar a importância [a autoridade] para indicar ao homem as suas limitações e lembrar-lhe de Deus? De onde se tira este conceito de que a Corporação Cristã [a comunidade, a Igreja] pode arvorar-se em autoridade para representar a Justiça de Deus? De onde [ou do que] se pode concluir que a “comunidade”, a pluralidade dos fiéis, a sua massa, possa ser a instância [a sede, o foro, onde se decidem os problemas] entre Deus e os homens? Devemos desconfiar dessa interpretação, quando por mais não seja, pelo simples fato dela parecer tão lógica [e precisamos dizê-lo em refutação ao que foi escrito na primeira edição deste livro]; precisamos dizê-lo porque a doutrina do relacionamento do homem com Deus e que lhe serve por base, parece estar muito próxima [dessa doutrina católica-romana da Igreja], (tão próxima que o protestantismo dificilmente dela escapa!). [Contudo] semelhante interpretação está absolutamente fora da diretriz Paulina. Deus não delega seus direitos a pessoa alguma e a nenhuma figura intermediária [ou intercessora], por mais espiritual que ela seja imaginada. O ser humano tem de enfrentar, ele próprio, a questão divina em toda sua aflição; [agasalhar, ele mesmo], toda a esperança que a questão encerra, e não pode contornar o problema passando-o para a coletividade, [ou diluindo sua responsabilidade mediante a co-participação “de todos”] porquanto o indivíduo [perante Deus] não é PARTE e, sim, a integral TOTALIDADE. É absolutamente certo que a imoderação do indivíduo e sua “hibridez” [quiçá sua falta de genuinidade e conseqüente “arrogância”, conforme escreve a tradução inglesa], precisam ser cerceadas mas esta limitação, este controle não pode ser mediante a potenciação [ou a multiplicação progressiva] da condicionalidade de sua enteléquia natural — [de sua natural possibilidade de perfeição final]. Este controle somente pode ser feito contrapondo à semelhança do homem natural, a dissemelhança eterna de Deus. [Portanto] a analogia do “Corpo e dos Membros” não pode ter esse pretenso sentido “natural filosófico”. É claro que esta analogia deve lembrar a “comunidade” ao indivíduo, isto é, deve fazer “cada um de per si” pensar [também] em “cada um dos outros”, pois o problema da ética gira justamente em torno dessa questão “dos outros” (e se sintetiza, de certa forma), na pergunta “o que devemos fazer?”. Porém, aqui não se trata “dos outros”, considerados empiricamente — como cada um dos indivíduos “sujeito” e “objeto” da exortação; os “outros” são aqueles que na imperscrutável e impenetrável nova [ou outra] personalidade [criada e

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desenvolvida] segundo a fé, sentem-se oprimidos [e pressionados] pela aflição e pela esperança que a questão divina encerra; estes “outros” são estabelecidos como pessoas singulares [como indivíduos], em Cristo. Este “outro” significa o genuíno “EU” transcendental que, invisivelmente, é o sujeito de todo “material e visível” TU. O conceito de tempo no qual, segundo nosso conhecimento, existe este TU — o indivíduo empírico, real, o indivíduo concreto em sua unicidade [física], mostra claramente que este indivíduo é apenas uma analogia; ele pode ser apenas o “pretexto” para [representar] o indivíduo eterno, este que realmente existe. Isto não quer dizer que esta analogia, este Pretexto, não sejam reais e também não quer dizer que esse EU transcendental por ser eterno (e justamente por isto), não esteja desde já presente em todo instante da temporalidade, [coincidindo, todavia sem identificar-se, com seu “representante”]. O “bom” samaritano estava absolutamente certo: o que conta é o PRÓXIMO (13, 9-10; Marc. 12, 28-31. Luc. 10, 25-37). Todavia o próximo é “cada pessoa”, porquanto ele não é o “teu próximo” naquilo que o diferencia dos outros e também não o é naquilo em que, se diferenciando dos outros, se assemelhe a ti; ele é o teu próximo por ser o teu igual perante Deus. “Esta igualdade não estabelece condições porquanto a criatura a tem incondicionalmente”. (Kierkegaard). Agora, com vistas ao indivíduo [nosso próximo] com o qual nos confrontamos, torna-se claro o que significa [a norma], o encargo ético de “cuidar” para ser moderado no relacionamento para com os outros. Jamais e em parte alguma aquilo que é observável ou perceptível nos outros pode ter influência ética sobre o indivíduo em particular. A complexidade, a diversidade e a imponente abundância de “outras personalidades” [ou de qualidades pessoais e dons diferentes] na qual e pela qual o “outro” entra em cena, jamais pode determinar a diretriz ética do indivíduo. Jamais pode a comunidade, [a Igreja, a Congregação ou a “sociedade”], apoiando-se em sua grandeza numérica, ou em função de suas próprias exigências — [quiçá suas necessidades], pretender ter autoridade “externa” para a determinação [ou para a imposição] de [sua própria] ética; também não pode fazê-lo pelo que se possa designar como sua “autoridade interna”, mediante sua confissão de fé, [ou seu Credo], formalizado ou não; também jamais por sua ideologia ou concepção de MODUS VIVENDI, ou então por sua tradição e seu passado! (É por isso que repelimos terminantemente o conceito [ou a doutrina] da Igreja, segundo o catolicismo!). Jamais “um outro” ou “os outros” podem determinar o procedimento ético de quem quer que seja, nem exortar alguém a seguir ou a adotar certa ética.

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A pessoa se encontra com os demais — (com a coletividade) — em sua própria Congregação, isto é, nesta coletividade o indivíduo encontra “o outro”; talvez até se possa dizer que “esse Outro” seja “o próximo”, porém jamais a coletividade adquire, ou tem, o “poder de massa” (como, por analogia, a propriedade da matéria de atrair a matéria em função direta da massa acumulada ou algo semelhante ao calor desprendido pelos grandes aglomerados de partículas aquecidas, ainda que o sejam em grau ínfimo!]. Comunidade, na realidade, não é “agregado” [ou aglomerado] nem organismo; Congregação não é nenhuma forma de realidade mas, originariamente, é a síntese, a relação e o conceito de todas realidades e de todos multiformes aspectos das coisas em sua unicidade invisível e final; é COMMUNIO e, portanto, de forma alguma supressão, cerceamento, obliteração ou “apagamento” das diferenças individuais. Congregação [ou comunidade] é [mais propriamente], a incentivação das peculiaridades individuais que dá, a toda diferenciação, o sentido de sua unicidade. A congregação [ou a Igreja] é a unicidade que está além de toda heterogeneidade. Assim, a pessoa em sua singularidade — o indivíduo — nem é UM ao lado de OUTRO, nem é simples parte celular em um outro; o indivíduo é SANCTUS, [isto é, individualmente separado]; o indivíduo contém a síntese ou o teor da total diferenciação daquele UM que contrasta com todas diferenciações; ele é o elemento asséptico da comunidade; o elemento no qual ela se fundamenta e que impede a formação de hierarquias; portanto impede a deteriorização da Congregação da mesma maneira que esta fundamenta o indivíduo e o liberta de toda forma de prepotência. É a COMMUNIOSANCTORUM! Não existe outra COMMUNIO e não existem outros SANCTI, pois o CORPO não é a somatória de seus membros nem a sua recíproca contingência mas, é aquilo que se lhes antepõem, integralizando-os e os determinando como aquilo que, talvez, possamos identificar como sendo a grandeza transcendental de cada um dos membros e de todos juntos, em sua condicionalidade orgânica. Aquilo que os membros, em sua visível disparidade particular são e fazem também existe e é realizado, na transcendente e invisível UNIDADE do CORPO. (No conceito — CORPO-INDIVÍDUO encontram-se o objeto e a sua figura!) — [Isto é, um vem ao encontro do outro]. O sentido desta analogia é Justamente a unidade transcendente e invisível do indivíduo em oposição a cada um e a todos. Assim os “crentes” (as pessoas em seu relacionamento com Deus), são UM SÓ CORPO, como pessoas individuais, (não na extinção dessa individualidade mas, exatamente, em seu despertamento.). São indivíduos em Cristo. Não são aglomerado de indivíduos, nem são Corpo Coletivo, nem massas individuais, (— não são

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“O TODO”. —), porém são indivíduos; cada um é [de per si] a NOVA CRIATURA. (1 Cor. 12, 12-13). Este UM “O CORPO DE CRISTO”, é que vem ao nosso encontro na comunidade dos crentes, dentro do problema dos outros. [Talvez pudéssemos dizer, na tentativa de interpretar o pensamento do Autor, que no problema do tratamento ético-cristão, que devemos dispensar “aos outros”, na comunidade cristã, nos deparamos com a unidade do Corpo de Cristo]. Lembramo-nos de que o “Corpo de Cristo” é o Cristo crucificado (7, 4) e imediatamente ressalta a agudeza crítica (decisiva) do conceito do indivíduo como preposição inicial da ética. Se o Cristo crucificado for o “objetivo da fé que Deus consignou a cada um” (e a cada um na sua singularidade) então, com fundamento na graça (que faz morrer para vivificar), recebemos diferentes dons; trata-se pois, para cada indivíduo, (e precisamente em sua individualidade) de se “revestir do Senhor Jesus Cristo” (13, 14); trata-se da “Nova Criatura” que está sempre ao lado desse indivíduo, com o dedo erguido [em exortação] que, em sua personalidade diferente, faz lembrar daquele totalmente diferente — [do mestre, Redentor e Senhor]. A Congregação é comunidade e comunidade é unidade; é a unidade dos homens [entre si] e deles, no insondável Deus, que é Senhor sobre a vida e a morte. Quando isto acontecer — quando os homens forem “um” como Cristo em Deus Pai, e Deus em Cristo, .— [João 17, 11-21], então para cada pessoa, em sua individualidade, já não haverá mais lugar para o titanismo — [para a vaidade, para a jactância e para a pretensão de ser semelhante a Deus]. Estará excluída a idéia de ganhar as alturas; haverá o “sentido da moderação”, isto é, cada um considerará que no “Alto Monte” só Deus pode estar e isto, por assim dizer, constitui a palavra de ordem para o procedimento ético. É nessa lembrança [daquele que é totalmente diferente], que se impõe a mudança, no sentido do procedimento do ser humano e de sua absoluta materialidade; é como se fora mediante uma ordem necessária, [imperiosa] e impossível de desobedecer. Esta mudança não pode ser [ordenada ou] incentivada por qualquer maioria, nem por “imposição” ou necessidade [de qualquer outra natureza que não pelo poder da ressurreição], nem por autoridade histórica [ou por força da tradição], nem por organismo eclesial ou eclesiástico místico ou inter-mundial, porquanto é a lembrança de Cristo crucificado que muda o procedimento ético secundário, fazendo-o cuidadosamente moderado e o ligando à ética fundamental [do oferecimento do corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus], participando, assim, juntamente com [a dignificação da] ética primária, do poder e da dignidade da origem básica, [que é Jesus Cristo].

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È na demonstração da mudança da ética secundária, no sentido da moderação pessoal que se realiza o fim [o objetivo] transcendental desse procedimento e o indivíduo se encontra perante Deus. Encontra-se perante Deus, embora perturbado em sua individualidade particular, de forma nunca vista; perturbado conforme somente Deus pode perturbar a criatura porém, por isso mesmo e dentro dessa situação, passa o ser humano a existir sob o signo da vitória e da esperança. Vs. 6 (segunda parte) a 8 Temos diversidade de dons: talvez alguém tenha a Palavra Profética; (que fale na conformidade da fé!). Talvez alguém tenha o sentido de servir; (que ele o tenha para a prestação de serviço). Talvez, alguns como professores, (que seja para ensinar!). Talvez alguém como pregador (Que venha pregar!). Quem tiver de distribui,; (que o faça) com simplicidade e singeleza! Quem tiver autoridade, [que a exerça] com esmero! Quem for misericordioso [que o seja] com alegria. [A maneira de traduzir, do Autor, exige a introdução de expletivos que podem deturpar o texto original; convém, pois, prestar atenção à tradução de Almeida, que escreve assim:... “tendo diferentes dons segundo a graça que nos foi dada; se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemonos ao ministério; ou o que ensina, esmere-se no fazê-lo, ou o que exorta, façao com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria”. Notar que, na versão de Barth, estão incluídos o pregador e o que distribui e, segundo Almeida, há aquele que exorta e aquele que contribui. Embora possa haver alguma correlação entre as respectivas atividades, elas não são exatamente iguais, conforme bem o evidenciam as conclusões. Segundo Barth, o pregador que venha pregar e quem distribui que o faça com simplicidade; segundo Almeida, quem exorta, que o faça com dedicação e quem contribui, que seja liberal. As outras versões também diferem ligeiramente; A R.S.V. escreve: “Tendo diferentes dons conforme a graça que nos foi dada: se profecia, em proporção à nossa fé; se serviço, em nosso servir; quem ensina, em seu ensino; aquele que exorta, na sua exortação; quem contribui, com liberalidade; quem ajuda, com selo; quem exerce a misericórdia, com alegria. A versão Sinodal Francesa registra: “Quem profetiza, se conforme (se sujeite) a fé (ou literalmente, conforme nota de rodapé — segundo a analogia da fé); quem serve, se atenha ao servir; quem ensina, a ensinar; quem exorta, a

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exortar; quem distribui esmolas, que o faça com liberalidade; quem preside, que ponha nisso todo seu zelo; quem exerce a misericórdia, o faça com alegria.”]. Como comunidade, a Congregação é constituída por Cristo, o individual, a unidade; isto significa que a unidade dos diferentes dons se fundamenta na sujeição da criatura, em sua total materialidade, a Deus e não o contrário. A suposta “virtude da tolerância”, de cuja prática, — na verdade — nem todos estamos livres, precisa, na melhor das hipóteses, ser considerada como [simples] meio de defesa do homem contra a perturbação divina. Aquele UM no qual somos unidade, é a própria intolerância. Ele quer dominar; ele quer vencer; ele quer tudo! Ele é a perturbação do “dia da família” [quiçá do dia da reunião da família conforme se faz, por exemplo, no “dia das mães”, ou no “dia de Natal”]; ele é a perturbação de toda “Paz na Igreja”, de tudo quanto seja coletivo [e também da paz individual, segundo o mundo nô-la dá], e isto é assim porque ELE é a paz que está por cima de todo alheamento, — todo acidentalismo e todas facções. [Talvez, dizendo “acidentalismo”, o Autor queira referir-se a desuniões, rompimentos, separações, “altos e baixos” da vida]. A exortação ética — [o encargo ético] não pode ser para que “cada um cuide do que é seu”, porém, que “cada um cuide da unidade”! [A maneira de Barth expor a unidade da Congregação, em Cristo, e o conceito de que cada membro deve visar não propriamente à excelência de seu dom, mas a unidade do todo, é posta assim, na tradução inglesa: “Como Congregação (‘Fellowship’) a comunidade é constituída por Cristo, o UNO, o INDIVIDUO. Isto quer dizer que a unidade somente pode ser estabelecida na diversidade mediante a submissão a Deus e pela completa correspondência daquilo que é particular com o seu propósito final. “Não há dúvidas de que a tolerância é uma virtude sem a qual nenhum de nós pode viver, mas, apesar disso, precisamos ao menos entender que, a rigor, ela destrói a Congregação porquanto ela é a atitude mediante a qual se rejeita a perturbação divina. Aquele em quem, verdadeiramente, estamos unidos é, ele mesmo, a grande intolerância. Ele quer governar, quer ser vitorioso, ele quer ser — tudo. É ele quem perturba toda reunião familiar, todo esquema de união da cristandade, toda cooperação humana. Ele assim perturba porque ele é a PAZ que está acima de todo alheamento, de toda brecha e facção. A máxima ‘a cada um o seu’ jamais pode conduzir a procedimento ético; a máxima verdadeira é ‘a cada um a unidade’”. Entendo que o Autor quer dizer que Cristo, UNO e INDIVIDUALMENTE (isto é, ELE, em sua unicidade, e para cada um, individualmente) é o centro

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da Congregação e, somente nesta condição pode a criatura humana, reconhecendo sua absoluta materialidade — (e em toda e qualquer forma de sua exteriorização) — porém sujeitando-se inteiramente a Deus, integrar a Congregação e participar da comunidade na qual os diferentes ‘dons se fundamentam e giram em torno de Cristo, seu centro, e não o contrário, isto é, Deus aceita e TOLERA os homens, a despeito de suas qualidades (ou dons) individuais). Nesta comunidade não pode haver o que designamos como sendo a (nobre e mui digna) virtude da tolerância, — (talvez o tão decantado ecumenismo moderno, o sincretismo religioso, etc. Não confundir “tolerância” com “paciência” para com os “fracos na fé”). Não pode haver tolerância porque o próprio Cristo com quem e em quem somos UM, é a intolerância. Antes devemos ver na tolerância, “da qual nem todos escapamos”, um meio de defesa que adotamos para nos protegermos da perturbação que sentimos quando nos confrontamos com o problema “Deus”! Deus não tolera outros deuses. Ele é o dominador, o vitorioso, é tudo; é e quer sê-lo. Ele é a perturbação de todas nossas experiências e realizações de aparente paz, quer seja na sociedade, na família ou na Igreja. (“Não cuideis que vim trazer paz sobre a terra” — Mat. 10, 34 ss). Ele é inimigo da causa coletiva, (porquanto busca a criatura, individualmente, para a salvar). Ele perturba e destrói a paz na terra, porque só ele é a verdadeira paz, a paz que está acima de todos acidentes da vida, de toda fuga de Deus, de todo subterfúgio e de toda facção. Não pode haver fuga, nem subterfúgio, nem acidente, nem facção, porquanto a recomendação ética, não é “que cada um cuide do que é seu”, mas, “cada um cuide da ‘UNIDADE’ “. E Barth continua:] O que é que impedirá a ruína, a deterioração da Congregação e o que é que garantirá o “problema do outro” contra a incompreensão da luta pela existência se, enquanto formos criaturas deste mundo, a graça sempre nos vier como “dom diversificado”, se o “totalmente diferente” apenas se manifestar na outra personalidade “do indivíduo no além” se, em resumo, cada pessoa, de fato, se confrontar [exclusivamente] com o que é seu? — Qual a prova de que essa análise é procedente? — Trata-se de excelente constatação psicológica: tanto mais confirmativa será quanto mais nos aprofundarmos na questão pois chegamos invariavelmente à conclusão de que os seres humanos estão sempre em conflito entre si e que entre os indivíduos não existe (jamais) conciliação. Todavia psicologia não é ética e, tanto menos o será quanto mais honesta [mais séria] for. Neste assunto resta-nos apenas considerar e lembrar que toda

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pessoa, como indivíduo, na mais inaudita individualidade de seu ser, é semelhança — é analogia — da unidade da criatura humana em Deus e portanto, como unidade, somente pode ser, querer e fazer o que diz respeito “à unicidade, não apesar da diversificação de seu dom mas por causa dela. Esta unicidade, para cada pessoa, está no reconhecimento da crise em que ela se acha — em Cristo — (que é UNO!) e mediante a qual é conduzida da morte para a vida. Isto não se dá na fortidão mas na fraqueza; não no apossamento mas no deserdamento; não é para quem tem razão mas para quem não a tem. A experiência desta crise consiste em desgalgar os cabeços onde a criatura acaso esteja instalada junto com os seus — [com os que são de sua grei e qualquer que seja a altitude de sua elevação] — encolhendo-se e diminuindo-se para somente Deus ficar em destaque, pois só ele é Grandioso. Portanto (trata-se novamente do preceito ético-cristão da moderação e, a passagem da morte para a vida que a criatura usufrui em Cristo), também está na sujeição do procedimento ético secundário à ética primária [do culto devido exclusivamente a Deus]. Se isto for compreendido fundamentalmente — (e quando o será?) então tudo quanto o indivíduo tiver [ou possuir] como sendo “seu próprio” [sua capacidade intelectual, sua sabedoria, sua prudência, sua educação, seus bens, sua saúde, suas aptidões — tudo] estará sujeito à UNIDADE e cada um reconhecerá o seu dom como dádiva divina, colocando a sua fortidão, sua posse, seu direito, à disposição de Deus — (e onde acontecerá isto?); somente então cada pessoa, “com fundamento na “GRAÇA” poderá considerar como seu o dom que “pela graça” lhe foi concedido e, poderá acontecer—ou melhor, sejamos muito cautelosos! — TALVEZ possa acontecer que aquilo que cada um recebeu individualmente seja para a honra. Sim. Então será para a honra. Esta honra já não é exclusivamente deste um indivíduo mas, com as vistas naquele UM [que é Cristo] a honra se reparte [sem diminuir sua grandeza nas partes] sobre a pluralidade dos membros e sobre cada um deles — sobre toda a Congregação — [porém jamais como banco de méritos em depósito para socorro eventual de outros menos agraciados ou mais desgraçados, mas, serão quais “chuvas de bênçãos” celestiais]. Que formidável Congregação. É com profundo temor que, aqui, nos atrevemos a acompanhar o texto pois a esta altura às perspectiva da ressurreição fica terrivelmente próxima. A esta altura, “condutas éticas secundárias” formam peso e sentido plenos; a esta altura a demonstração altamente objetiva sobre o “cuidado a tomar” [12, 3] passa a falar de testemunhas cujo discurso é, verdadeiramente, testemunho. Nessa Congregação [a que Paulo passa a se referir nos versículos que seguem 12, 3], aparentemente só entram em consideração. (somente há lugar para) testemunhas diligentes, ativas, combativas, “bons atiradores”. [Nesta Congregação] aparentemente, os sacerdotes são fantásticos

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— e que sacerdotes. [Na tipificação dessa Congregação] nem sequer se fala nas necessidades humanas mas exclusiva e unicamente da exigência de Deus, à qual todos precisam submeter-se. Nessa Congregação cada um segue sua trajetória [segue “o dever” que lhe foi traçado] como o projétil que sai do cano da arma. Cada um tem permissão para seguir esse curso; precisa e pode fazê-lo porque cada um tem um objetivo — O OBJETIVO.Nessa Congregação ninguém faz obra parcial; nela não há disciplinas — [matérias separadas], nem tarefas pois cada um, ao fazer sua parte, faz aquela única parte que é o todo. Talvez seja como “arauto da Palavra Profética”. Precavemo-nos com razão de tudo quanto vem a nosso encontro com ares de profecia e, também, de quem tem pretensões a ser representante do “totalmente outro”. Estamos dolorosamente habituados a ver toda pretensão ruir por si mesma, o “totalmente outro” ser comprometido por algo totalmente diferente e o objetivo da santificação ser por demais material. Todavia, [e a despeito das “desilusões” que os pretensos profetas nos têm causado] permanece [em nós] o anseio de que venha alguém que nos mostre, realmente, o “totalmente outro”, em cuja identidade não podemos penetrar. Se “acaso” existir uma única pessoa que tenha submetido aquilo que é propriamente seu, — o dom que recebeu — à “eventual” possibilidade” da graça, que fale segundo a medida da fé, que dê, realmente, a Deus o que é de Deus de tal maneira que, através dela, Deus possa falar como se ela não existisse; se tal pessoa for a UNIDADE, então a sua profecia é a única alternativa ética e a par dela não há outra; esta profecia não necessitará de suplementação nem “contrapeso” porque em vista de sua unicidade significar, de fato, unidade, significa também que ela é suficiente por si e que o hibridismo da singularidade está excluído, [isto é, não existe em tal pessoa]. [Onde o original escreve o “hibridismo da unidade” e que interpretamos da forma acima, a tradução inglesa escreve “a arrogância da particularidade”]. “Talvez” alguém “tenha o dom para prestar serviço”, [tenha vocação] para ajudar [nas coisas] práticas. Paradoxalmente, é possível que a ajuda [o auxílio, a atividade de servir, a ministração de serviços] seja a única possibilidade ética [efetiva na criatura humana] e talvez só a tenha, sem qualquer jaça, aquele que é único [a saber, — Jesus Cristo]. Temos motivos para reservas ante a idéia de SERVIR!, AJUDAR!, ser PRATICO. Ela sempre nos faz pensar em Marta, que não se interessava em ouvir porém, sim, em “SERVIR”. Mas a idéia sempre implícita [na ética cristã] de que é preciso ajudar as pessoas, subsiste [e prevalece] como certa, [apesar dessa reação justificável].

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Servir significa pensar feridas temporais e manter vivo o ferimento eterno, que não se deve fechar. Servir significa cuidar do corpo para não perder a alma; significa não passar ao largo daquele que caiu nas mãos de salteadores como fizeram o sacerdote e o levita da parábola pois, justamente ao homem da Igreja, para quem o conhecimento de Deus é tudo, a pergunta “quem é o meu próximo”, já não tem justificação, [já não é mais explicável nem aceitável] já não tem mais razão de ser. Ajudar, é ver aquilo que o sacerdote e o levita não queriam ver. Prática é o procedimento que — sem vacilações — leva a pessoa a perceber a teoria e ter a visão de sua grande miséria e de sua grandiosa esperança. [Esta prática, é ajudar]. Talvez seja servo de Deus o indivíduo que nada faz senão servir aos outros, porém os serve, verdadeiramente, em suas aflições, em sua miséria e na crise de sua existência; este que assim serve, talvez tenha ouvido que também como “pessoa prática” não se pode ter razão [perante Deus]; todavia, é possível que esse tal seja “o bom samaritano”. Então, [se for assim], esse um haverá optado “pela melhor parte”, conforme o fez Maria e sua obra [quiçá] será suficiente e segura. — “Talvez” algum “como professor”. — O Evangelho de Cristo, “a Palavra de Deus, como “ENSINO”?, Teologia como ciência? Pensamos que conhecemos essas interrogações e as fazemos também. Ouvimos de Kierkegaard: “Professor naquilo em que Cristo foi crucificado”, ou então de Overbeck: Teólogos, “os retardados da sociedade humana”. Realmente parece ser impossível [defender a teologia]. Mas, será mesmo? O apego à teologia [e o seu cultivo existe e] subsiste justamente por causa da grande interrogação [sobre Deus] por quanto este ponto de interrogação é também o grande ponto de exclamação, da ressurreição. [Meditando sobre este assunto] vem-nos à mente a quase inarredável conclusão de que com a supressão da teologia a cristandade seria traída — tanto pelo nosso pronunciamento quanto pelo eventual silêncio — e isto é o que se pode “opor” a Overbeck. [Sempre a verve irônica de Barth, agora dizendo que se os teólogos são mentecaptos, se traem a cristandade tratando e cuidando do estudo das coisas que são de Deus, não será menor o dano se o assunto for encerrado e todos se calarem]. Todavia o apego à teologia persiste: em primeiro lugar pelo interesse no ensinamento bíblico sobre o sentido da Palavra de Deus no instante em que ela sai de sua fonte e passa a ser palavra humana; em segundo lugar para revelar a irreconciliável oposição da cristandade (vale dizer, dos representantes da referida “palavra humana”) — a toda forma de cultura e falta de cultura. mediante a honesta exposição histórica dos seus 1900 anos de inferioridade; em terceiro

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lugar para, se possível for, sem tumultuação e, por isso, de maneira sistemática, determinar as limitações que foram postas aos homens e, incansavelmente, estabelecer o que significa essa “palavra humana” para cada pessoa, palavra que está sempre presente [evidente ou], subjacente, a eles se apondo; [neste afã] quer também verificar o que a questão divina significa para as criaturas humanas, questão essa que elas mesmas levantam em sua limitação; finalmente, em quarto lugar, [o apego à teologia subsiste] para admoestar insistentemente a todo aquele que quiser seguir a carreira ministerial [o sacerdócio santo], que se precavenha contra as desilusões [ou que se prepare para elas], que não espere por “segurança” nem confie no “ministério humano”; que ouça a premente advertência e abandone a “objetividade” como “teologia prática”. Também a teologia, notoriarnente, poderia ser não apenas uma mas a única alternativa ética e o indivíduo que agisse “como professor”, para ensinar, poderia ser verdadeiramente a UNIDADE. — “Talvez” algum “como pregador”, como quem exorta, consola e convida. Aqui pensa-se especialmente no Pastor. — O “Pastor”, como única possibilidade ética? Quem não se admira disso? Mas o que há nisso para se pasmar? Seria de admirar [e pasmar] se o ternário [o assunto] imposto [ao pastorado] fosse, por exemplo, psicologia, moral, história sagrada, finalidades comunitárias, tradição da Igreja, ou determinadas experiências na vida. Na realidade não é assim; [o tema real do Pastor] é a perplexidade que Deus prepara aos homens e a promessa que ele faz. “Talvez” exista particularmente um que, sob temor e tremor, se tenha confrontado com o tema [peculiar ao pastorado], a quem o assunto se torna tão extraordinariamente importante que já não pode optar por outra coisa; e se tal pessoa estiver convencida de que o tópico da pregação tem de estar em torno da cruz, da ressurreição e do arrependimento, então a [sua] pregação será a única ética possível; então se tratará de fato da pregação para exortação, consolo e convite. Este tal, na diversidade que lhe coube em sua singularidade, é UM [em Cristo], vocacionado como Pastor, justificado, eleito e agradável a Deus. “Quem distribuir, o faça com simplicidade; quem estiver investido de autoridade, que a desempenhe com esmero; quem exercer misericórdia, seja com alegria”. A demonstração, portanto. vai além “do falar” das diversas testemunhas. para atingir também aquilo que a pessoa faz. Por que [se menciona] justamente REPARTIR, AUTORIDADE. MISERICÓRDIA? Graça significa, evidentemente, que coisa mais bem-aventurada é dar do que receber. Significa ainda que uma “autoridade” algo imponente, respeitável, também entra em cena.

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É claro que GRAÇA significa ter coração aberto e não mesquinho, fechado. Na Congregação a comunidade é constituída pelos indivíduos que estão informados [da existência de diferentes dons, todos operando e cooperando para a UNIDADE e, portanto], operando [e desenvolvendo] declaradamente estes dons. As “funções particulares” sugerem uma perturbação que vem da parte de Deus; sem esta perturbação, muito provavelmente a criatura humana não se desempenharia das funções citadas [segundo a ética cristã]; não cuidaria de repartir, não se esmeraria no exercício da autoridade e nem sequer cogitaria de ser misericordiosa. Não está no ser humano suportar [ou arcar com] o brilho de semelhante conduta ainda que pudesse satisfazer as exigências impostas, — porquanto tal procedimento, além de ser inteiramente questionável do ponto de vista do mundo, exige o sobrepujamento do próprio “eu”. Onde houver quem se sacrifique (12, 1) aí haverá o testemunho oral da ética cristã o qual induzirá o correspondente comportamento e este, por sua vez, levará à aceitação das “tarefas” impostas pela dispensação da graça divina. Contudo, é preciso lembrar — não que essas diferentes funções, [os diversos “ofícios” e dons em sua multiforme aparência e manifestação] existem pois a sua realidade é evidente! — porém, [sim, é preciso lembrar] que todas elas são UMA só; que as peculiaridades e particularidades diversas conduzem à mesma realidade; que tudo quanto a pessoa fizer [no desempenho e na aplicação do dom que recebeu] ela o faz unicamente para a glória de Deus e que, portanto, não está dando largas à “boa natureza” de seu coração; é preciso lembrar que todas funções [e todos dons] estão debaixo da cruz! É nestas circunstâncias que REPARTIR se faz com “simplicidade”, com aquela liberdade interior que não transforma o ato de dar em cerimônia solene, que amargura o ato de receber; antes, tanto o dar como o receber, concomitantemente, testificam a insondável simplicidade de Deus. Também é nestas circunstâncias que a “autoridade”, — que na sua determinação decisiva existe naturalmente e não precisa de se firmar como tal, — é exercida com esmero. Então a misericórdia será exercida com alegria porquanto a pessoa só pode considerar — e nesta consideração lembrará, quiçá, com alguma melancolia [que, todavia, leva ao júbilo da gratidão] — que também ela, em seu próprio abandono, precisa da misericórdia de Deus. É desta maneira e de nenhuma outra, que todas as possíveis atividades humanas adquirem a qualidade ética, isto é, tornam-se éticas à sombra da possibilidade escatológica; mas então, tornam-se imediatamente impositivas e sempre particularizantes. — Quer isto dizer que a ética se baseia na organização da Congregação, como comunidade?

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— Sim este é — na realidade — o sentido destes versículos. A Congregação se constitui pelo relacionamento dos indivíduos com Deus. Este relacionamento, porém, se realiza na unicidade da particularidade, no indivíduo. A unicidade de cada um em particular e, portanto, também a comunidade dos indivíduos, é Cristo. Não há outro posicionamento possível da ética, para protegê-la contra o titanismo que está sempre à espreita e não há outra relação possível da ética, para com Deus. Esta relação, porém é eminente, altamente qualificada, é eclesial — quer dizer tratando-se da Igreja vindoura, [invisível] da “Igreja de Jacó”. Não nos admiremos de nunca e em parte alguma a vermos; baste-nos que a Igreja [nossa conhecida], visível, a “Igreja de Esaú”, em toda sua dubiedade, esteja sob o reflexo dessa luz vindoura. Não precisa ser totalmente ocultado — nem está — que sempre onde houver uma Congregação “talvez” constituída em sua unicidade, olhando para o UM, aí se luta, aí se tem esperança, aí se sofre; e tudo isto não é em vão! Comentários: 12, 3-8 1. “Quando procuro colocar o cristianismo em termos práticos, então a vida explode e o escândalo assoma” e ainda, “só quem já esteve exposto a grande tribulação está em condições de exortar ou ser exortado” conforme o Autor afirma na sua exegese da primeira parte de 12, 3, citando Kierkegaard. Parece evidente que a vida segundo o mundo a conceitua tem de se esfacelar quando o indivíduo passa a se conduzir na sociedade de forma estranha: quando não se ira (para dar lugar a ira de Deus); quando aos outros prefere em honra; quando também entrega a túnica a quem lhe exige a capa; quando faz a segunda milha depois de ter sido obrigado a andar a primeira. Para o mundo isto é rematada loucura e constitui motivo de escândalo. Todavia, só tem “sabedoria” para discursar sobre esta ética e “entendimento” para seguí-la quem houver percebido em seu coração o real sentido das misericórdias divinas. 2. Por que não pode a base fundamental da ética — a realidade de que Deus é Deus e que nos ama — ser também a base de nosso progresso diário, rotineiro, visível a todos? Creio que é porque não se pode misturar o que é divino, espiritual, com aquilo que é humano e material. O comportamento ético tem de nascer (e somente nasce) do temor a Deus, sob o constrangimento de suas misericórdias e se expressa na forma de

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dedicação, renúncia, entrega, abdicação, esvaziamento, enquanto o “progresso rotineiro” ainda que fosse (ou seja) o mais sublime progresso “espiritual”, pelo simples fato de ser neste e deste mundo, seria (ou é) material e materializado; será (ou é) arrogante e pretencioso ou, pelo menos, convencido e autoconsciente. Por isso terá sua paga direta no mundo e não é SACRIFÍCIO, muito menos é SANTO E AGRADAVEL a Deus. Nem se tem no mundo ciência e consciência desse comportamento ético senão pela revelação da Santa Palavra de Deus! 3. Parece estranha a afirmação de que “jamais pode aquilo que é observável ou perceptível nos outros ter influência ética sobre o indivíduo em particular”, porquanto a conformação ao “costume coletivo” parece ser o fundamento de toda ciência moral prática, segundo a humanidade a desenvolve e aplica. Ser ético é proceder moralmente de forma tal que se atinja, no todo, aquilo que a sociedade, a classe ou o grupo considera ser o bem perfeito e, o comportamento moral recomendado e estabelecido em função da prática usual, mediante a rejeição de algumas de suas características e a elevação (até mesmo a sublimação) de outras. Todavia, não é assim a ética cristã; aliás, mesmo segundo a filosofia humana, a “ética teórica” (que poderíamos designar aqui, por analogia, como “ética primária-humana”) trata do dever e do fim último do homem e portanto, pelo seu tema, não pode ter por origem “aquilo que os outros fazem”, nem pode estar (ou nem deveria estar) sob tal influência; aqui é mister entrar no campo da “meditação pura” que, em última instância, volta-se à origem: Deus! Portanto, é justificável a afirmação do Autor. 4. Barth é incansável demolidor de mitos; encontramo-lo subitamente, nesta exegese, a derribar a muito louvada tolerância. Ora, a tolerância é a estrada amena que familiariza o indivíduo com o ambiente agreste. Dificilmente alguém, que tenha por norma colocar “Deus em primeiro lugar” cairá repentinamente no precipício do materialismo; poderá, contudo, descer ao fundo do fosso seguindo pela declividade coleante, suave, comoda, fácil — e sem dúvida muito respeitada pelos seus concidadãos — o caminho largo e tranqüilo da tolerância. (A tolerância é tão valorizada na sociedade humana que o próprio tradutor inglês, mesmo advertido em termos duros pelo Autor, trai o original e se revela tolerante escrevendo “que não há dúvidas que nenhum de nós pode viver sem ela”. 5. Ao tentar explicar a sobrevivência da “teologia” Barth cita, em segundo lugar, o eventual interesse daqueles que se preocupam com o problema

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Possibilidades Positivas

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“DEUS”, examinando as possíveis posições humanas que em toda história do Cristianismo sempre deixaram a Igreja em situação de inferioridade nos embates com a ciência, a pseudo-ciência e a cultura. Se a teologia, em si, tiver ou proporcionar condições e luz para esclarecer esse assunto, sê-lo-á provavelmente na forma de autocrítica e confissão de culpa porquanto é da teologia que brotam as doutrinas — os dogmas e as confissões de fé — e é manifestamente por elas que os homens” detém a verdade pela injustiça”. É bastante provável que mais prontamente e mais abundantemente erre o homem pelo muito falar todavia, erra também pelo calar. Portanto, sejam poucas as nossas razões, nossos argumentos e nossas deduções; contudo, poucas ou mais abundantes, no calar e no falar, tenhamos o cuidado de por tudo à sombra da cruz — nas mãos de Deus! 6.Diz o Autor que a “ética se baseia na organização da Congregação como comunidade”. Entendo que Barth não se refere aqui à origem da ética — que esta origem, sua Base Fundamental, é o AMOR DE DEUS — mas designa a razão de ser, a destinação da ética que o Autor designa como SECUNDARIA. Esta ética trata do relacionamento entre os irmãos e foi estabelecida por Deus para a vivência na comunidade e convivência na Congregação. Vivendo só, o homem não encontra seu próximo e, talvez, não vislumbre Deus. É na comunidade que o homem encontra seu próximo, em Deus, como indivíduo de uma e outra parte. “E PLURIBUS UNUM”.

POSSIBILIDADES POSITIVAS (12, 9-15) Barth chama de positiva a ética que o “presente século”, a cuja rejeição somos exortados, considera negativa; e a adoção das atitudes práticas, — (embora nunca totalmente praticadas por nós), — recomendadas nos versículos 9 a 13 do capítulo 12. É a conduta que decorre logicamente da dedicação e do domínio de “nosso corpo” em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, como culto racional. É o procedimento que Jesus Cristo preconiza como o “segundo grande mandamento”. Nesta exegese Barth apresenta a visão pouco usual do próximo como mensageiro de Deus, não só na pessoa do infeliz enjeitado, inferior, desprezado, (não como tal e por isso), mas também naqueles investidos de autoridade, de poder e até mesmo como eventuais perseguidores e quando, com nosso perdão e nossa benção lhes amontoarmos “brasas vivas” sobre as cabeças, realmente não os “amolecemos” ou “temperamos” ou nos vingamos de alguma forma porém evidenciamos com mais vigor o contraste da conduta do mundo em

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confronto com o amor de Deus; assim exacerbamos a aflição que este contraste gera o que dá origem a perseguição, possivelmente acirrando os ânimos e recrudescendo o ódio contra nós. Todavia, “venha daí o galardão ou a galé, vantagem ou dano, não há retroceder”; é o amor de Cristo que nos constrange! Vs. 9 a 15 O amor seja sincero! Abominai o mal, apegai-vos ao bem! Sede mutuamente afetuosos na fraternidade! Antecedei-vos em pres ta honra! Não sejais tardios em levar as coisas a sério! Ardei em espírito! Servi à tempo realidade! Regozijai-vos na esperança! Sede persistentes durante a aflição! Permanecei em oração! Participai naquilo que se fizer pelos santos! Cultivai a hospitalidade! Abençoai aos que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis! Alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram! [Convém confrontar com a tradução de Almeida que apresenta nuanças diferentes sendo de notar, especialmente, o final do v. li onde Almeida registra “servindo ao Senhor” e Barth escreve “servindo à temporalidade” — (literalmente, “ao tempo”); também existe ênfase diferente no v. 13. Em notas de rodapé o Autor explica o que chama sua maneira de ler os vs. li e 13 no original dizendo que: a) Com relação à tradução dada ao v, 11, e a despeito do protesto de Juelicher, precisa insistir nessa maneira de ler pois considera insípida a tradução “servindo ao Senhor”, porquanto a sugestão ou o convite (quiçá a insinuação) de servir ao Senhor lhe parece ser insustentável no contexto. Em Col. 3, 24 esta exortação tem sentido bem definido o que não acontece aqui e lhe parece que a passagem de 1, 1 tem ainda menos correlação com o tópico do v. 11; diz Barth que Juelicher quer defender e reforçar seu modo (convencional) de ler dizendo... “ao Senhor, somente”. Todavia, em toda essa série de exortações ou recomendações, a ênfase está sempre nos verbos e os substantivos indicam apenas o problema funcional. Seria o final do v. 11 uma exceção no contexto, como teria de ser, se tivéssemos de acrescentar o “somente” de Juelicher? Diz o Autor que a maneira de ler o original, por ele sugerida, oferece um paradoxo apropriado cuja legitimidade poderia ser comprovada exatamente pelo seu “mau gosto”, acusado por Lietzmann. É compreensível (diz o Autor) que um “copista” sem senso de humor houvesse acompanhado Atanásio; o que porém, não é compreensível é que mais tarde [outro copista] fizesse a respectiva correção em sentido contrário. O Autor acha ainda que, tendo em vista a exposição de Lietzmann sobre o assunto, não parece provável que se trate de erro mecânico.

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b) Com relação ao v. 13 Barth escreve que também este versículo foi vítima do copista que “corrigiu” o v. 11, havendo escrito o que lhe pareceu ser mais compreensível. Todavia, a passagem nada tem a ver com a veneração ou homenagem a santos porém deve ser entendida conforme a passagem 1, 9 (onde Paulo escreve que “faz menção” dos crentes em Roma em suas orações); tratase de “assistir” ou “garantir” alguém, isto é, (conforme diz Zahn), trata-se da “expressão da lembrança de prestação de auxílio amigável e eficaz”. Ética positiva (consiste no comportamento de quem quer e faz aquilo que não está na conformidade “deste século” ou, mais abstratamente (e no dizer textual do Autor), consiste em querer e fazer aquilo que tem conotação negativa para a condição do presente mundo, que não consta de seu programa, não se adapta ao esquema de EROS e lança o seu protesto contra o grande erro]. [Esta “ética positiva”, na realidade], somente pode ser encontrada naquilo que Deus quer e faz. [Como seres humanos] não conhecemos procedimento ético que seja verdadeiramente positivo, que esteja fora do quadro de Eros e que — como querer e fazer — seja genuíno protesto [contra a conduta mundana]. O que conhecemos é determinada “ética positiva RELATIVA” que, embora seja apenas uma possibilidade humana e portanto contenha as características da temporalidade na forma de sua “presente condição” — (como todas as coisas que são do mundo) — todavia, pela sua origem, por força das características inerentes à própria criação do universo e que jamais podem ser totalmente extintas, tem a possibilidade de ser analogia ou parábola, com “inclinação” ou tendência a se afastar de Eros e a protestar contra ele. Porém é necessário que nos conduzamos com a máxima cautela. É mais fácil que, [como paradigma dessa analogia] escolhamos qualidades [ou virtudes] que nos pareçam mais plenas de significação — [mais profundas] naquilo que representam, — cheias de luz interior, — em lugar de certas outras [que tenhamos por menos agradáveis, ou menos nobres]. — Por exemplo, antes escolheremos o amor do que o ódio. No entanto é possível que a grande perturbação divina esteja mais próxima das manifestações que rechaçamos. É mais provável que justamente aquelas qualidades [ou virtudes que não preferimos] estejam mais próximas do procedimento que leva àquele “sacrifício vivo” a que somos conclamados “pelas misericórdias” de Deus e no qual demonstramos a honra que lhe tributamos; antes estará [o culto racional devido a Deus] no cumprimento da segunda tábua da lei, do que no da primeira. Dizemos “mais fácil”, “antes”, “mais provável” — e é necessário que nos expressemos assim [vagamente] — porquanto a viabilidade [ou, talvez mais propriamente o requisito essencial] para a existência dessa ética “positivorelativa”, está na sua origem, na sua maneira de ser, na inteireza do que se

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estiver considerando e não em seu teor propriamente dito — (que traz sempre a forma deste mundo). Há ainda (outra razão para essa aparente falta de precisão): a possibilidade de que existam obras impostas pelos mandamentos da primeira Tábua da Lei, que entrem em conflito com as imposições normais da segunda. [Entendo que o Autor quer dizer que Deus poderia exigir para sua adoração e seu serviço (que é do que trata a primeira parte dos dez mandamentos) ações e atitudes que estejam em desacordo com os preceitos éticos secundários, como poderia, eventualmente, ser considerado o caso do extermínio dos sacerdotes de Baal. A versão inglesa traduz assim: “A possibilidade de que Deus possa, de quando em vez, ser honrado com comportamento humano que contradiga os mandamentos da segunda Tábua da Lei precisa ser mantida em aberto”]. “O amor seja sincero.” [“seja sem hipocrisia”, registra Almeida]. Ao lado de Eros está a maior possibilidade ética positiva, como essência da “segunda” Tábua da Lei, a quintessência do comportamento “relativamente” estranho segundo o “mundo em sua presente condição”. [Esta possibilidade positiva] é AGAPE, o amor como amor do ser humano ao ser humano; AGAPE como amor do ser humano a Deus é a grande obra invisível da primeira Tábua; é a obra viva de quem está sob a graça divina, seguindo aquilo que “adoração” significa no comportamento ético primário (5, 5 e 8, 28 s), [Este amor sincero do homem a Deus, essência dos primeiros quatro mandamentos do decálogo e que foi sintetizado por Jesus Cristo como o “primeiro grande mandamento” (Mat. 22, 37), não é carnal e portanto não está sob a égide de Eros, mas é derramado pelo Espírito Santo em nossos corações; este “ágape” é o amor mediante o qual e pelo qual todas as coisas concorrem para o nosso bem]. Tocando a esfera das coisas perceptíveis, [materiais], é necessário [é preciso], que a conduta ética primária tenha prosseguimento; que a demonstração em louvor a Deus, começada e sempre a recomeçar, mediante a adoração, seja traduzida em conduta ética secundária; [seja manifesta] no amor ao próximo. Isto é tão certo quanto o é que a graça é a graça do Deus recôndito e que, por isso — para dizê-lo com simplicidade — ela é a perturbação da vitalidade humana segundo a conhecemos; é tão certo quanto a realidade de que esta perturbação tem lugar no encontro do “pretenso” indivíduo deste mundo, com o OUTRO com aquele que é UNO, o real, em toda sua majestosa inescrutabilidade; finalmente, é tão certo quanto o fato de que a pessoa se depara com este “UM” e “OUTRO” quando se confronta com a enigmática realidade do “próximo”. Adoração significa amor a Deus; — (significa a orientação existencial da atividade humana segundo a imperscrutável majestade de Deus!) [Isto se dá] na medida em que nos preocuparmos efetivamente em dispensar a quem [de outra forma] nos seria absolutamente indiferente, trato que corresponda a esse amor;

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trato que se fundamenta na consideração de que essa outra pessoa [ — estranha ou não, pela qual tenhamos ou não tenhamos interesse pessoal —.] é para nós qual analogia do TOTALMENTE OUTRO; trato pelo qual evidenciemos que temos razões para ver nesse nosso semelhante o infinitamente importante próximo, reconhecendo-o como mensageiro do Deus desconhecido. [A tradução inglesa apresenta versão um tanto diferente dizendo que o amor ao próximo é analogia do amor divino. Embora Barth diga isso mesmo um pouco mais adiante e que essa interpretação seja relativamente usual, mais fácil de entender e, até mesmo, mais racional, parece-me que aqui Barth está mesmo dizendo aquilo que interpretamos; mesmo porque, a valer a tradução inglesa, não se justificaria a conclusão do reconhecimento do próximo “como mensageiro do Deus desconhecido”, frase que, aliás, (coerente consigo mesma), a tradução inglesa omite]. O PRÓXIMO é a interrogação e a resposta de Deus em termos compreensíveis à criatura humana. É infinitamente provável que AGAPE como amor à criatura humana, seja a resposta de quem sentiu a graça divina; de quem em amor, se volta (ao Deus) inacessível, vendo [nesse amor ao próximo, conforme antecipou a tradução inglesa] a analogia de sua própria eleição. Aquele que caiu nas mãos dos salteadores é o motivo (ou o pretexto) para que eu reconheça o meu próximo e somente como tal — não materialmente — é ele o meu próximo. É só o que se pode ou deve dizer. Um “próximo” generalizado, um “irmão”, ou então o amor a povos remotos, [estranhos ou exóticos, quiçá o amor a povos de raça diferente] por exemplo, aos negros, [ou deles aos brancos, aos asiáticos, etc.], não entra em consideração [na conceituação do próximo]. À vista da dupla predestinação e, lembrando que Deus, como Deus, permanece absolutamente livre, [mesmo ante o amor mais grandioso que lhe seja votado], prevalece a validade da consideração, feita com temor e tremor, de que a adoração poderá ser feita em sua plenitude [não apenas no amor ao próximo mas] também em formas visíveis, [materiais ou observáveis pelo mundo]. Neste particular convém confrontar o que dizemos com as considerações extremamente sensatas que Lutero teceu em torno do amaldiçoamento, como obra do Espírito Santo (referindo-se a 12, 14); também nós [acompanhando Lutero], não corremos o risco de contradizer a primeira epístola de João, se for entendida corretamente. “Que a Palavra de Deus seja o padrão de referência do amor ao próximo, assim como o primeiro mandamento é o paradigma para todos os demais” (Lutero). Não se trata pois de imposição obrigatória assim como, mais atrás

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(12, 3-8), não foi estatuído que se organizasse a Congregação ou que se seguisse a teologia, a profecia, etc. Estas possibilidades relativas existem e assim também o amor [ao próximo] na qualidade de maior possibilidade relativa [ao alcance do ser humano], possibilidade essa na qual se manifesta expressivamente a perturbação que Deus traz aos homens. Todavia, é preciso lembrar do significado especial, característico e crítico do amor como a mais alta possibilidade positiva na esfera da graça: ele deve conduzir-se na plenitude de sua significação; ser realmente digno do nome (emprestado!) que traz: ÁGAPE; ser realmente ética positiva; ser verdadeiramente um protesto na correnteza em que, como seres humanos, se encontram as pessoas. Isto jamais e em parte alguma será entendido por si mesmo pois, onde é que existe amor humano diferente daquele ao qual os homens, por sua origem não se deveriam submeter, isto é, [onde existe no mundo amor que não seja] na forma de Eros? Onde se encontraria adoração a Deus que não contenha, também, um pouco de adoração desse Deus conhecido dos homens? Quando [ou onde] seria o nosso amor humano [ao próximo e a Deus] totalmente puro, neutro, [desinteressado], totalmente livre das distorções deste mundo e das cobiças que o dominam, inteiramente livre do desejo de ver, de criar, de estabelecer e estruturar, de possuir? Eros não é sincero; Eros é hipocrisia; como função biológica ele oscila com excessiva rapidez entre o ardor e a frialdade. ÁGAPE, porém, é sincero; é por isso que jamais se acaba mas participa da eternidade. [I Cor. 13, 8]. O amor como graça, lembra-nos que é a questão divina do Deus recôndito que é posta em nosso caminho na realidade de nosso próximo e que a nossa conduta para com ele, em todas as circunstâncias, deve ser em honra e glória a Deus, que a pureza de nossa conduta para com nosso próximo não pode estar em nosso relacionamento mútuo mas na sua reformulação constante, na incessante renovação de suas bases; não se trata de alcançar determinado resultado (porquanto a objetivação de resultados, por mais louváveis que sejam, é sempre a meta de Eros!); [lembra-nos que nessa reformulação de nossa conduta] o sentido é sempre o do sacrifício que deve ser apresentado na pureza de quem obedece e no respeito ante aquele que o pode aceitar ou rejeitar. O amor somente será sincero se, — e na medida em que, — a ética se voltar da segunda Tábua da Lei, para a primeira, do comportamento secundário ao primário. [Este retorno fundamenta a ética secundária mediante ] a sua relação com a origem! Quando a ética secundária se volta verdadeiramente à origem atesta que no amor ao próximo não busca especificamente o outro, a quem dispensa esse amor, mas busca o único, a este serve e nele pensa, praticando o amor conforme

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está inequivocamente descrito no conhecido e freqüentemente mal compreendido “canto apologético do amor”, de I Cor. Cap. 13. “Cada um com a face inteira e firmemente voltada para Jerusalém” (Tersteegen), como o risco certo de nós mesmos e os outros “chegarmos perto demais”. [Talvez porque, olhando obcecadamente para a cruz e para a ressurreição percamos de vista o mundo em que ainda estamos e no qual encontraremos o PROXIMO, elemento de partida no retorno ao Pai]. “Abominai o mal, apegai-vos ao bem”!, isto é, ao vosso próximo. Esta distinção [entre “mal” e “bem”] absolutamente não existe no programa de Eros. Eros não é unicamente insincero mas, também, não tem senso de crítica. Eros vê no OUTRO somente aquele que ele é; nada sabe do UNICO, no OUTRO. [Eros apenas quer o outro para si — seja o cônjuge, seja a mãe, sejam os filhos, seja o amigo]. Eros ama o seu semelhante na existência não verdadeira (não eterna] dele, sem perceber que essa existência — [temporal] é justamente o “mal”. [Todavia, não é assim] o amor [— segundo a graça divina — que] faz, persistentemente, a eleição e a rejeição do outro, isto é, elege [escolhe] aquilo que o outro não é e rejeita aquilo que ele efetivamente é. (Esta personalidade que o outro não é, constitui o seu “bem” e a outra, a rejeitada, aquilo que o outro efetivamente é [neste mundo], constitui a totalidade de seu “mal”)! Note-se a sugestão contida na definição dada por Blueher para o significado do vacábulo “mal” do texto original, descrevendo-o como “sobrecarga”, como aquilo que se refere à dubiedade inerente a tudo que é psicológico pelo seu entrelaçamento na realidade material; como aquilo que não é puro, que é restolho terreno e [contudo] precisa ser suportado (ainda que) dolorosamente. Isto é o MAL. Amor é a premente pergunta dirigida ao outro: O que é o bem? O que é o mal? Amor é a crise em que também o outro está inserido. É por isso que o AMOR, por força de sua inevitável recorrência ao amor a Deus, jamais é o fenômeno aparentemente inequívoco, direto, claramente compreensível, pelo qual anseiam os sentimentalistas. O amor tanto pode desencadear o que é agradável quanto o que é desagradável; tanto pode procrastinar como pode ser inexorável; pode guardar a paz e guerrear. [Todavia], “a vontade de Deus deve governar [textualmente. “deve ter precedência sobre”] todas boas obras que eu possa fazer ao próximo e todo amor que eu lhe possa dedicar; ainda que eu pudesse tornar o mundo todo feliz, por um dia, mas isto não fosse da vontade de Deus, eu não o deveria fazer”. (Lutero). Somente o amor que tem em si forças suficientes para abominar o mal, tem também a força necessária para se apegar ao bem; para esquecer, sabendo;

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para perdoar, castigando; para aceitar totalmente, rejeitando — também — totalmente; [somente o amor que tenha verdadeiramente a força necessária para se apegar ao bem pode] entender o “outro” pelo seu “sim” (isto é pelo sim corretamente compreendido e, portanto, — na realidade pelo seu Não!), para então o tocar onde Deus já o atingiu.! [Segundo a versão inglesa, “para então o apreender onde Deus já o apreendeu!”]. Em última análise, é pelo amor [segundo a graça] que o ser humano anseia, no mais profundo do seu ser; esse é o amor que a criatura reivindica (apesar de o negar plangentemente), porquanto Eros [jamais satisfaz e] jamais pode trazer [ou proporcionar] justificação e redenção. “Sede mutuamente afetuosos na fraternidade.” Quando todos estamos perante Deus que sentimento estará mais próximo de nós do que a idéia de que todos somos irmãos? Todavia, assim como esta posição “perante Deus” não está na conformidade da “condição deste mundo” — (o único que conhecemos.) — assim também a irmandade, perante Deus, é um evento que jamais e em parte alguma, ocorre ou está à mão. “Irmandades” sem temor e tremor, sem consciência de que somente poderão ser irmãos em Deus, irmandades diretas, especiais, que não sejam estritamente para servir, estão na categoria de grosseiro abuso (1, 27.) e são um horror para Deus. “Afetuoso”, na carta aos Romanos, — entendido existencialmente, — significa “serviçal”, [prestativo], — objetivo, decisivo. Somente nesta precisão [e nesta forma resolutiva] pode a fraternidade ser demonstração [ou ser protesto] contra a condição deste mundo; somente [neste tipo de irmandade] se vencem os reveses, a negação e as desilusões que, inevitavelmente, caracterizam tudo quanto conhecemos como irmandade ou fraternidade. “Antecedei-vos em prestar honra”! Quando na “Congregação” o mistério de Deus vier ao nosso encontro, visível na pessoa do outro — (isto é, na pessoa de nosso semelhante, de nosso próximo), então também estará perto de nós a exigência de respeito à pessoa. Esta exigência choca-se com a realidade deste mundo porquanto ela usualmente é feita por aqueles que não se consideram suficientemente respeitados e isto constitui a crise em que se inscreve também este procedimento ético. Dentro da “condição deste mundo” apenas conhecemos a prestação de honra como recíprocas barretadas e mútuos cumprimentos em que cada um, disfarçadamente, considera a honra ser inteiramente sua. Somente há ética no respeito e na honra que dispensarmos aos outros quando nosso gesto [ou nossa atitude] não envolver reciprocidade [quando não tiver, absolutamente, o mínimo vestígio de expectativa de retribuição] porém,

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acontecer primeiro [quer seja espontaneamente ou por dever], pois só então o nosso respeito ao próximo significa também o respeito que devemos a Deus. Aprender a meditar sobre o que significa o respeito é o único caminho para o respeito da santidade [e não apenas dignidade] da pessoa humana e, sem esse respeito, a sociedade transforma-se em casa de loucos. “Não sejais tardios em levar as coisas a sério”. [A expressão usada no original alemão poderia também ser entendida como “não sejais tardios em passar das palavras aos fatos” Almeida, e também a Versão Sinodal Francesa e a Revised Standard Version escrevem, “no zelo, não sejais remissos”]. (Juelicher escreve que para Paulo não teria havido um só momento que não estivesse “carregado de seriedade”. Tal idéia deve, simplesmente, ser ignorada). Levar a sério, [ou ser zeloso, cuidar], (conferir com 12, 8) significa aquela imposição objetiva, aquela determinação e aquela decisão que caracterizam a pessoa que tem autoridade de fato, autoridade que lhe advém por força das credenciais que lhe são conferidas por aquele que é UM, para o representar perante o OUTRO. É claro que essa exigência [de zelar, de levar as coisas a sério] está estreitatamente ligada ao amor entre os seres humanos (mediante o qual — sob o impacto da grande perturbação [que o amor divino induz] — deveríamos erguer nosso protesto contra a desavergonhada [e irresponsável] segurança dos homens. [Para que esse protesto seja eficaz, para que tenha sentido] é preciso que ele seja feito com absoluta seriedade, [com todo zelo] a fim de que toda e qualquer refutação seja silenciada, por não ter razão de ser; é preciso que o respeito aos outros se imponha naturalmente e que [no relacionamento com mais de um indivíduo] domine, animadoramente, a neutralidade. Todavia, o que a todo instante vemos como autoridade, como “sendo” levar a sério, [como zelo], na verdade não é isso. Aquilo que vemos se adapta “bem demais” à condição deste mundo, com as suas ditaduras. Onde há [onde já vimos] alguma autoridade da qual se possa dizer outra coisa? [Contudo], toda nossa imposição [autoritária] está nas conchas da balança. “Não sejais remissos!” Ponde a valer aquilo que não sois, não conheceis nem sabeis. Não fiqueis assentados sobre vossa autoridade! Não respondais [quiçá inflando-vos em sabedoria] mas perguntai. Imponde-vos, abrindo mão de toda imposição! Não há solenidade se não a da questão (que não é vossa) [e que sois chamados a julgar!]; o instante em que a questão pronunciar o seu solene discurso e por meio dele vos colocar no gozo do respeito ético, — não será um instante. [Entendo que o Autor quer dizer que no momento em que a questão, — que é. eventualmente o objetivo da autoridade — for exposta e a autoridade a ouvir

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gozando, quiçá, o sabor do respeito ético, este não será para ela um instante, um momento; será a sensação ou, quem sabe, a realidade da eternidade]. “Ardei em espírito” — Então também o espírito oferece possibilidades de procedimento ético? — Sim, no mesmo sentido que o amor. E nesta mesma direção que apontam todos conceitos éticos aqui referidos; voltam-se a uma perturbação plena de promessa, a uma grandeza invisível que está por trás e que invade a vida dos homens. “Espírito”, aqui, evidentemente significa a motivação ou orientação subjetiva, interior, da conduta humana, em contraste com a atitude ulterior, objetiva, externa. Para expressar a fundamentação psicológica da atitude humana no relacionamento com Deus, [a que o texto se refere], talvez, em lugar de “espírito” pudéssemos dizer “consciência” ou “convicção”. Todavia, [qualquer que seja o nome que lhe dermos], é evidente que Paulo não quer dizer que o Espírito a todo instante nos impele, (conforme pretende Juelicher), porquanto, o que é “espírito”? Acaso é “aquilo” que a todo momento nos conduz? Acaso é a tepidez, ou o calor, ou a efervescência, ou a incandescência que conhecemos como “consciência” e “convicção”? Nada disso fica fora do esquema de Eros e isto os outros também sabem. “Ardei em espírito” Quando, acaso (a todo instante?!) por intuição e por necessidade interior, a motivação decisiva, direta, indiscutível, [verdadeiramente arder] então, na medida do valor da causa em questão, o golpe será tão extremamente forte que vós mesmos vos anulareis; então essa energia egocêntrica e consumidora que gastais para saber se é de um espírito que se trata, ou se do vosso espírito, ou se é do Espírito,já não tem razão de ser. Então, “seja a honraria ou seja o suplício, não vacile”. (Zwinglio). É certo; também este instante não será [apenas] um instante. “Servi à temporalidade”! É a contraposição à exortação anterior. Acaso não é a temporalidade, com suas tarefas diretamente a mão [devidamente] qualificada no instante da grande “perturbação” que vem de Deus? Acaso é a temporalidade (a história!) outra coisa que o Espírito falando objetivamente de fora? Acaso não é igualmente possível, — e até necessário — deixar que a ética seja motivada total e completamente pela “temporalidade”? Sim, porém todos servem à temporalidade! Se a nossa temporalidade — a temporalidade qualificada, o tempo presente, (8, 18 a 13, 11) — tem significado especial pelo qual podemos e devemos orientar-nos, é questão sempre aberta. Por isso, servi À TEMPORALIDADE!

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No interior da crise de nossa situação está o instante presente. É ante a penetração [nessa crise] que se chega à decisão. Por que não seria a temporalidade plena de significação na total dubiedade de sua casual determinação [ou condição]? Então servi-a; sede absolutamente obedientes; lutai para vencer todas suas casualidades e passai por elas até o seu teor crítico mais profundo. Se assim fizerdes, então também esta possível motivação é ética e vós, justamente na medida em que assim servirdes à temporalidade, não sereis nela [e por ela] conformados. “Alegrai-vos na esperança!” Esperança, acaso, é ética? — Sim, senhores. A grande esperança que Deus oferece aos homens obriga-os, por essa mesma esperança, a protestar contra os caminhos do mundo. Mas, quem há que não tenha esperança? O que é que transforma particularmente a nossa esperança em procedimento ético? [Respondemos:] A alegria! Ter esperança significa “não ver”; ter as “mãos vazias”; sofrer privação, estar perante o NÃO (8, 24-25). Em oposição a tudo isso está a ALEGRIA. Alegria é o momento presente, é posse; a alegria não espera, porque já tem! Ter alegria na esperança significa conhecer [e reconhecer] a Deus sem o ver, e satisfazer-se com isso; é esta atitude que faz da esperança uma realidade ética. Alegria na esperança é a esperança em Deus e esta esperança não envergonha [5, 5]. “Sede persistentes durante a aflição”! [Ou segundo Almeida, “sede pacientes na tribulação”]. — Também a aflição, como ética? [Esta pergunta talvez seja respondida por outra:] Onde e como poderíamos honrar e glorificar a Deus, fora da aflição? “Gloriamo-nos nas tribulações” (5, 3). Estar em tribulação [é uma forma de] ação positiva da criatura humana. Esta aflição vem de Deus, mas não simplesmente, diretamente. A aflição sobrevém a toda alma que pratica o mal (2, 9). Tribulação é a correlação negativa natural da luta pela vida e precisa ser transformada em protesto contra a tendência do mundo, mediante a perseverança. Perseverança significa amar aquele que nos manda a aflição; significa reconhecer Deus na tribulação, sem o ver e, se satisfazer com isso. É desta maneira que a perseverança transforma a aflição em ação ética e lhe empresta o sentido de um passo dado daqui para o além. Perseverar significa: aqui se crê em Deus! “Permanecei em oração”! — Então [também] oração é [uma possibilidade] ética? Mais uma vez, sim. Oração é verdadeiramente, uma obra. [E claro que dizemos isto da oração como ação secundária, isto é, ação complementar, que vem depois], como fato,

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e não nos estamos referindo à oração como adoração [que é básica, que é primária] que conhecemos como a ética primeira que fundamenta e precede todo procedimento ético [entre os homens]. O que nos resta sob a incomensurável pressão de nossa posição como seres humanos perante Deus, senão apelar a ele, clamar como os Salmistas e como clamaram a Deus todos os demais que viram as coisas quais elas realmente são? [O que mais nos resta senão] nos submetermos a ele, agradecendolhe porque ele é Deus (porém jamais sem espanto [sem temor]! ), a ele implorando que seja e continue sendo nosso Deus?! [O ato da oração] se destaca de forma estranha e nunca vista pelo mundo a dentro, passando quase a constituir uma invasão da analogia, na ação absoluta. Porém, qual outro ato humano penetraria mais profundamente na problemática de todos os demais atos? Pelo livro de Heiler [“A Oração”, de F. Heiler] vê-se consternadamente, quão profano é o “mundo da oração” e, nela, quão próximos ficamos do absurdo total. “Orar como convém, não sabemos” (8, 26). E pela permanência na oração, que ela se torna ética. “Permanecei”! Não se trata na acumulação da quantidade de nossas preces, nem no refinamento de sua qualidade, mas da permanência, da orientação e da continuidade da prece, como oração. O objetivo é Deus; [é em Deus que pensamos]; é ele quem procuramos, e ele quer que oremos. E neste sentido e nesta orientação que precisamos buscar o significado da intercessão que, em suspiros [e gemidos] inexprimíveis, por nós faz o Espírito — que não é o nosso (8, 27). “Participai naquilo que se fizer pelos santos. Praticai a hospitalidade”! A forma profundamente direta e concreta [objetiva] de todas essas “recomendações” éticas é bem patente nestas duas exortações, à luz da situação histórica de então. Na primeira delas trata-se da participação na coleta mencionada com enigmática ênfase nos capítulos 8 e 9 de II Cor., para a Igreja em Jerusalém. Na segunda, a referência é aos irmãos na fé que viajam para Roma ou passam pela cidade. O que há de comum às duas exortações é que elas encerram um aspecto estranho — (ao mundo de Roma e, por que não também ao nosso?) — um aspecto não natural, que apenas se torna “próximo” [compreensível], pela unidade da comunidade distante [incompreensível] do ponto de vista humano; por isso, precisa ser analisado mais detalhadamente. É evidente que tanto aqui como na segunda carta aos Coríntios, Paulo mostra pouco interesse pela grandeza material, pelo valor das ofertas, o que é justamente a única [ou, pelo menos aparentemente a maior] motivação nas manifestações de caridade, mais modernas. A ênfase de Paulo está na forma

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dessa manifestação de amor, no seu caráter demonstrativo, na qualidade da ação que vence a tensão [que leva a distensões], mediante o reconhecimento daquele que é UNO, na pessoa do outro. (Aqui, o outro é o estranho, [o estrangeiro, os santos em Jerusalém, é o viajor que chega à grande cidade], no sentido exato da palavra!). É nesta ênfase que estão os aspectos éticos da caridade e da hospitalidade. “Abençoai aos que vos perseguem; abençoai e não os amaldiçoeis”! A perturbação que vem de Deus, necessariamente atrai perseguição, pois ela também perturba os outros, que se sentem diretamente atingidos. Quanto mais invisível e indireto for o ataque da Cristandade à sociedade, tanto mais dificilmente ficará livre de represálias. Também a perseguição é parte lógica [natural] da situação que a graça cria; o que não lhe é concedido, é a correspondente ética pois, segundo a “presente condição” do mundo à perseguição deveria corresponder a “maldição”. Amaldiçoar é uma possibilidade prevista na Bíblia toda, mas é na forma de protesto externo, final, solene; “é Deus amaldiçoando a maldição de Satanás”. (É por isto que somos exortados a “não amaldiçoar”). “Onde Satanás, por meio dos seus, impedir a Palavra de Deus, onde a destruir ou perturbar... aí é ocasião para a fé se adiantar e, amaldiçoando, desejar que as perturbações desapareçam e que se faça lugar para a graça de Deus”, — (Lutero) — mas não no contexto [da perseguição de que se trata aqui] pois, na medida em que o perseguidor ameaça pessoalmente a pessoa que recebeu a graça, ele não é “inimigo” mas mensageiro de Deus que, como tal, vai ao encontro da vontade divina; ele é o “outro”, [o próximo], em seu mais tenebroso enigma e, portanto, apresenta também a oportunidade de fazer o que é absolutamente inequívoco: renunciar ao recurso às armas e abençoar em vez de amaldiçoar e, nessa atitude inesperada, (dessa forma inexoravelmente objetiva) aumentar sobremaneira a perturbação [que o perseguidor sente, teme e que motivou sua atitude]. A benção assim exarada em plena luta pela vida significa — e de maneira muito vigorosa para a honra e glória de Deus — que no “outro” reconhecemos o “UM”. “Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram”! Há uma última perspectiva na linha que até aqui vínhamos seguindo: se o “perseguidor’ é mensageiro de Deus, por que não o será também, quem se rejubila, ou quem chora? Acaso a alegria e a tristeza são apenas os pontos culminantes da emoção biológica (ou erótica)? Seria próprio, — acaso seria uma resposta objetiva à questão que aqui nos é proposta através “do outro”, — contrapor a alegria à moderação do estoicismo ou, a sua serenidade à dor? Não; antes, onde houver riso ou choro, há também motivo para considerar que, justamente quando as emoções humanas atingem

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seus pontos extremos, tornam-se de tal maneira duvidosas que passam a apontar, para além delas mesmas, ao seu sentido parabólico: há um rir que é vida e um chorar que é morte; portanto, é perigoso adotar posições estóicas e morais; é perigoso querer ensinar, convencer, [doutrinar]; são perigosas todas abordagens feitas por contrastes materiais. Poderia então acontecer que fôssemos encontrados lutando contra Deus, conforme aconteceu com Micail quando viu Davi dançando frente à Arca da Aliança, [II Sam. 6, 16 ss] ou conforme os amigos de Jó [quando procuravam admoestá-lo] em sua lamentação. O protesto que aqui deve ser levantado [contra o mundo] está, surpreendentemente, na confirmação da pessoa no maior êxtase de sua alegria ou no extremo de sua dor. A ética precisa, neste caso, assimilar aquela paradoxal irreconhecibilidade do Filho de Deus, na “semelhança da carne dominada pelo pecado”. (8. 3). Quem é livre, precisa submeter-se livremente; o sábio precisa sabiamente ignorar, porquanto o protesto contra a “condição do presente mundo” consiste, necessariamente, em permitir que o “outro” esqueça de que ele é “o outro” para nós e que veja [perceba ou sinta] — (por si mesmo!) — que em sua mais profunda comoção ele é, para nós, testemunha daquele UM. Há um “acompanhamento” à alegria e à tristeza da criatura dilacerada e impelida de um lado a outro por Eros — o mentiroso — que anuncia a verdade e a misericórdia de Deus. Por isso “alegrai-vos com os que se alegram e chorai com os que choram!” O quanto todas possibilidades éticas são sujeitas a uma crise derradeira se evidencia nesta exortação, em que não se dá a expressa decisão crítica e cujo enunciado tanto pode referir-se a maior das frivolidades, como a Jesus Cristo entre os pecadores; pela insegurança em que esta observação nos coloca, ela nos remete, com renovado senso de exigência, de todo procedimento ético secundário à ética primária e, por ela, para além dela, à sua primeira origem— [Deus.]. Comentários: 12, 9-15 1. O Autor sugere que só é possível respeitar a dignidade humana mediante o respeito à santidade da pessoa, isto é, mediante sua separação para a honra e glória de Deus; diz Barth que sem esse respeito a sociedade entra em caos. É o que vemos no “tempo presente” em toda forma de materialismo nos “mundos” (primeiro, segundo e terceiro) quais os conhecemos neste fim do último quartel do século vinte. A situação não mostra perspectivas de melhoria — antes pelo contrário

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— as coisas no terreno moral (e quem se atreve a afirmar outra coisa da condição material e política?), parecem seguir de mal a pior, quaisquer que sejam os sistemas políticos, as filosofias, os conceitos e os idealismos que os inspirem. Qual a nação que verdadeiramente respeita a pessoa humana? Qual respeita, não só os direitos do homem, conforme lindamente postos no papel há três séculos pelos ingleses, há dois pelos americanos e um pouco mais recentemente pela revolução francesa mas, efetivamente, respeita a pessoa humana como criatura pela qual Cristo morreu, sem olhar sua raça, suas aptidões, ou suas inclinações naturais, sem se servir dela para a explorar ou a encaminhar aos seus fins político-sociais? No entanto, os dois grandes mandamentos que Cristo referendou existem desde a remota revelação no Monte Sinai, eles só, capazes de garantir ao homem os direitos que nações, homens sérios e demagogos de todos matizes, proclamam e reclamam. Procuram os homens alimento que não é pão e nesse sustento se comprazem até que o caos sobrevenha e então, na carência, talvez busquem e invoquem ao Senhor até novamente atingirem as alturas da glória do mundo e novamente morram. Cristo, porém veio até nós para que tivéssemos vida e vida abundante. 2. “Servi à temporalidade”! Aceitando a leitura do texto grego conforme o Autor entende ser a certa, talvez pudéssemos dizer que a maneira de “servir à temporalidade” é “remindo os tempos”, que são maus. (Ef. 5, 16). 3. Onde estaria o paralelismo entre a vinda de Cristo ao mundo na “semelhança da carne” com a confirmação do indivíduo nos extremos de sua emoção, conforme a exegese de 12, 15? Talvez seja na identificação. Tanto alegrando-nos com quem se alegra como chorando com quem chora, unimo-nos ao nosso próximo como Cristo se une a nós, protestando — Cristo por excelência e nós mediante a graça de Deus — contra a condição prevalecente no mundo. Todavia Barth diz que a recomendação a que nos identifiquemos com nosso próximo nas suas emoções não tem expressão crítica, não é decisiva e gera uma incerteza que nos remete aos primeiros mandamentos do decálogo — ou seja ao primeiro grande mandamento. O chorar e o rejubilar-se, em si mesmos, representam um estado indefinido, quase mórbido, que tanto poderia ser frívolo como oscilar para outro extremo, tomando sentido verdadeiro da exortação, isto é, tendo seu modelo e sua razão de ser na própria encarnação de Deus. É esta insegurança de interpretação em nossa aproximação à ética divina

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que nos faz buscar, incontinente, a adoração pura, simples, espiritual, nela fundamentando e enrijecendo a têmpera de nosso “culto racional” e do procedimento ético, segundo a vontade de Deus. A adoração básica evidência a misericórdia divina, isto é, a fidelidade de Deus que é a fonte de nossa fé, a qual constitui a pedra de toque para a avaliação da aceitabilidade de nossas obras, por Deus e para Deus.

POSSIBILIDADES NEGATIVAS (12, 16-20) À série de procedimentos éticos relacionados nos vs. 16 a 20 deste Capitulo, Barth designa como sendo as possibilidades negativas, contrapondo-as (a julgar pelos títulos), às possibilidades de comportamento citadas pelo Apóstolo nos vs. 9 a 15. A diferença nas características dos dois grupos é, talvez, subtil. Tanto as possibilidades de protestar contra o “grande erro” deste mundo — amando-nos cordialmente uns aos outros, não sendo remissos no zelo, regozijando-nos na esperança, perseverando na oração, exercendo a hospitalidade, auxiliando na manutenção da boa causa, abençoando aos que nos perseguem, alegrando-nos com os que se alegram e chorando com os que choram, como as possibilidades de termos todos o mesmo sentimento, de aquiescer ao que é humilde, de não tornar mal por mal, de meditar naquilo que parece ser bom à vista de todos, manter a paz e não exercer vingança, são qualidades inerentes à nova criatura, quiçá ideais que, como seres humanos, jamais atingiremos, não obstante são alvo, são referência ao fim proposto. Todas essas atitudes, tanto as do primeiro como as do segundo grupo são protestos contra o procedimento do “presente século”, testificam a graça divina e apontam à transformação do mundo. A designação de positivas para as primeiras e negativas para as segundas é, antes, subjetiva, porquanto se as considerarmos com referência ao mesmo padrão ético — ao padrão divino todas essas maneiras de proceder têm a mesma qualidade: são positivas. São positivas as possibilidades de agir segundo o primeiro grupo de recomendações porquanto negam, intrinsecamente, a conduta do “presente século”; são portanto positivas com relação a ética divina. Todavia as possibilidades de agir conforme os preceitos do segundo grupo foram rotuladas como negativas porque o procedimento que preceituam opõe-se à prática corrente no mundo e é congruente com a conduta normal do mundo vindouro: logo, tais possibilidades são, elas também, positivas com relação à ética divina. Qual, então a diferença?

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Talvez seja na maneira de absorver, assimilar e expor o protesto e dar o testemunho. No primeiro caso, no procedimento que Barth designa “positivo”, a criatura parte para o ataque: ama, se regozija, persevera, hospeda, auxilia, se rejubila e se compadece. No segundo, na possibilidade do procedimento negativo, há também ação porém, ação de certa forma passiva, estática; ação de absorção e não de extroversão: aquiesce ao que é humilde; conforma seu próprio sentimento ao dos outros; sujeita-se a considerar o que a todos parece ser bom; dá lugar à ira e retribuição divinas. É isto o que Barth analisa na exegese dos vs. 16 a 20 deste capítulo. Vs. 16 a 20 Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo. Não segui as vossas eventuais presunções! A ninguém tomeis mal com mal! Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos. Naquilo que depender de vós, tende paz com todos! Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes daí lugar à ira de Deus! Pois está escrito: “É a mim que compete estabelecer justiça, eu recompensarei! diz o Senhor Porém, se teu inimigo tiver forme, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes sobre a sua cabeça”. [Conferir com a tradução de Almeida]. Designamos como procedimento “ético-negativo” o “querer” e o “fazer” que são positivos com relação ao mundo vindouro e que se ajustam à transformação deste mundo (12, 2). Semelhantemente à “ética-positiva”, também a negativa, a rigor, somente existe naquilo que Deus mesmo quer e faz; não conhecemos qualquer possibilidade humana, por mais “negativa” que seja, nenhuma abstenção, nenhum “NÃO FAZER” ou “NÃO QUERER” que, em si mesmo, seja ou tenha possibilidade de se tornar procedimento em conformidade com o “Reino dos Céus”. Todavia podem existir formas de “NÃO QUERER”, “NÃO FAZER” (assim como pode haver “QUERER” e “FAZER”) que na sua total relatividade sejam plenas de significação parabólica, plenas de poder de testemunho e de “inclinação” para o além. [Podem existir] retraimentos [abstenções] que apontem insistentemente aquilo que invisivelmente se lhe opõe, que apontem à ação [ou obra] divina, por assim dizer descolocando, tirando da praça (a obra ou) a ação dos homens (12, 8), quais raras enseadas nas praias retilíneas do procedimento

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humano, “deformações” ou reentrâncias que indicam e podem proclamar a existência de pressões de origem invisível. E muito provável que tais “deformações” [na uniformidade da ética humana] ocorram sob o domínio da graça. Não dizemos mais do que isso! Também aqui rejeitamos expressamente ao que se possa designar como sendo ética precisa, absoluta, em nosso procedimento secundário; rejeitamos terminantemente a validade de róis de coisas proibidas, pois aquilo que pudermos designar como possíveis procedimentos positivos ou negativos está sempre dentro das possibilidades humanas, que são dúbias e estão sujeitas à restrição de Deus, sujeitas à crise da morte para a vida e à instância julgadora da primeira Tábua da Lei. As diversas possibilidades são éticas justamente pela sua relação com a origem; se procurarmos a qualidade ética do próprio teor dessas possibilidades a sua característica ética fica prejudicada. “Refleti entre vós sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no alto mas consentindo em serdes conduzidos às coisas que são de baixo”. [Almeida escreve: “Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes presunçosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos vossos próprios olhos”]. Parece que aqui não se trata daquelas muitas coisas que devemos fazer ou deixar de fazer cuidando de não pensar de nós mesmos mais do que convém, “porque isto não faz sentido”, “antes cuidemos de ser moderados” (12, 3); porém, trata-se de modo muito concreto e visível do posicionamento da criatura humana frente às conhecidas elevações e depressões das eventualidades da vida e às correspondentes afirmações e negações. É preciso que agora confessemos que a desconfiança com que vemos tudo quanto “está na crista” neste mundo e a nossa inclinação favorável a tudo quanto está por baixo, são conseqüências da perturbação que nos vem de Deus. É fora de dúvida que a Ressurreição — conforme já vimos por diversas vezes — é a negação de todas afirmações e negações deste mundo; todavia, isto em nada altera a validade de que a ressurreição está — [também ela] — à beira de uma destas muitas negações [que ela anula] e que a sua analogia, conforme a podemos ver, jamais é algo que se pareça com plenitude, que se apresente como desdobramento da vida mas é [primeiramente] a morte do Cristo segundo a carne. As depressões casuais de nossa vida [os seus pontos baixos] tem relativamente mais valor — como testemunhas [da graça] — do que as eventuais culminâncias; somos mais profundos na negação do que na afirmação e gostaríamos de deixar perfeitamente claro que a compreensão desta perturbação do

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equilíbrio de nossa vida é “CONDITIO SINE QUA NON” para entendermos a Carta aos Romanos. À luz da ressurreição, tudo quanto [neste mundo vemos, consideramos e] conhecemos como vida, abundância, grandeza, elevação e altura é, primeiramente, parábola, [ou analogia] da morte; porém vistos a esta mesma luz, morte é tudo quanto significa diminuição, pequenez, fraqueza, deserdamento, [privação e renúncia] e tudo quanto em sua depressão seja relacionável a morte, é parábola da vida. “É preciso que ele cresça e que eu diminua” [João 3, 30]. Esta é a grande perturbação que cobre todas “alturas” com sombras de dúvida, de suspeição, de insignificância, e que já não pode mais ser ignorada; [esta perturbação] afeta todos aspectos da vida cotidiana e portanto não pode ser considerada apenas como [coisa geral], IN GLOBO, nem pode ser contornada [ou simplesmente descartada] atribuindo-a levianamente a circunstâncias do momento, mas tem de ser reconsiderada sempre de novo na qualidade de questão nunca respondida ainda que essa atribuição da perturbação que sentimos a eventuais circunstâncias da vida, possa parecer — e até — seja — justificável [em determinadas ocasiões]. [A tradução inglesa escreve assim: “Esta é a grande perturbação dos homens. Esta é a inegável sombra da insignificância, da dúvida e da suspeição que cai sobre toda eminência humana. Em vista de todas ocorrências diárias de nossa vida estarem sobrecarregadas com esta sombra não nos podemos desfazer dela mediante vaga generalização; em vista de ser permanente o problema que essa perturbação nos traz, não podemos, legitimamente, tratá-la como situação ou problema interino]. O Cristianismo “não cogita do que está no alto”. O Cristianismo não aprecia ouvir falar alto demais ou com excesso de confiança do desenvolvimento criativo do mundo, do seu planejamento e seu aperfeiçoamento, da implantação da ciência e da técnica, da arte, da moral ou da religião, nem da saúde corporal ou mental; nem de riqueza e de bem-estar; nem de sublimidades — seja o matrimônio, a família, a Igreja, o Estado, a sociedade. O Cristianismo não reforça eventuais “ideais”, sejam pessoais ou coletivos, regionais ou internacionais, germânicos ou ocidentais, concretos ou abstratos, sonhos de jovens ou elucubrações de gente madura. O Cristianismo permanece inalterado, tanto ante a natureza como ante a cultura; tanto ante o romantismo como ante o progresso constante. O Cristianismo não se sente bem onde quer que se levantem torres e a tais construções ele tem sempre reservas a opor. [Em todas essas obras, esses ideais e esses empreendimentos, o Cristianismo] pressente — em atitude pouco simpática ao mundo, porém com

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desconfiança altamente justificável — a ameaça da idolatria. Nessas torres o Cristianismo vê, pelo menos, a semelhança da morte. Vê o homem rico, como tal, não ainda, na morte, mas sem dúvida no hades e em tormento. Contra tais obras e empreendimentos o Cristianismo recomenda a criatura que se deixe “conduzir à depressão”; vê a verdade mais patente em o NÃO do que no SIM; vê a situação do homem, entre o céu e a terra, por demais ameaçada para se poder crer que ele se manteria em pé sobre qualquer das colunas que o mundo edifica e para que ele possa valer-se do valor dos valores que o mundo valoriza; [o Cristianismo vê a posição dos homens por demais duvidosa] para acreditar seriamente na importância de tudo quanto de importante o mundo criar. O Cristianismo quer ver o ser humano conduzido, porém, para baixo, [para o que é humilde, — e se esforça para isso], vê grande mão sacudindo tudo quanto E ou quer SER; vê o sinal de interrogação aposto a todas eminências do mundo; ouve o secreto estalido das vigas que se rompem; e não pode deixar de ver e ouvir o que ouve e vê! É por isto que o Cristianismo aprecia os pobres, os que sofrem, os que têm fome e sede; os que são tratados injustamente. É por isto que o Cristianismo pode, em seriedade, recomendar o celibato sem receio de, mediante a supressão da propagação da espécie, suprimir também a premissa básica de todo raciocínio positivo e que consiste na premissa “de que de uma ou de outra maneira a vida seja algo de valor” (Harnack). O Cristianismo sente-se, ao menos, mais próximo das estranhas diligências dos ascetas e pietistas do que da “sadia piedade popular, evangélica”; mais próximo do “homem russo” do que de seus irmãos europeus. O Cristianismo não passa ao largo de qualquer interrogação da vida, por pequena ou grande que seja, mas apenas se interessa profundamente pela interrogação que existe em cada questão. O Cristianismo está sempre lá onde ainda não foram encontradas soluções e não onde a criatura se refez e se colocou novamente em ordem consigo mesma. O Cristianismo tem certa preferência partidária pelos oprimidos, pelos que ficam aquém da meta, pelos que ainda não estão prontos. pelos que estão cheios de melancolia e tomados de revolta; por isso é que os sociaisdemocratas recebem os aplausos do Cristianismo em muitas de suas atividades. O Cristianismo vê Lázaro como pobre — não diretamente já com Deus mas, em todo caso, no seio de Abraão; o Cristianismo vê por toda parte, nas “depressões” [da criatura], pelo menos a analogia da vida porque não pode esquecer o que significa RESSURREIÇÃO. O Cristianismo nos diz que provavelmente é mais bem aventurado quem estiver na profundeza do vale do que aquele que estiver nas alturas!

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Não devemos expressar-nos de forma mais incisiva sobre este assunto porque aquela desconfiança [aparentemente dispensada às coisas que estão no alto] e esta boa vontade [com que são vistas as coisas que estão embaixo], aquela advertência e esta promessa a que talvez façam jus as culminâncias e as depressões concretas de nossa existência, têm sempre apenas o sentido de analogias e disto não nos podemos esquecer por um só instante. É justamente IN CONCRETO que é possível e é preciso que a cada instante perguntemos quais são as “alturas” das quais o Cristianismo se afasta e quais as “depressões” de que se aproxima. [Referimo-nos sempre, é claro], às “alturas” que os homens geram e às “depressões” que vêm de Deus. Na prática [pode acontecer] — e queremos mais uma vez lembrar o que foi dito quando abordamos o tema da predestinação — que os primeiros sejam os últimos e os últimos os primeiros. É, por isto, o caso de se perguntar se os supostos “deprimidos” (e oprimidos) já não passaram, há muito, para o rol dos que estão nas alturas [quiçá dos opressores] e se a humildade dos que estavam lá embaixo, já não tresandou há muito em nauseante orgulho; que a problemática seja agora um ídolo e que o quebrantamento [dos que sofrem] tenha sido transformado em tema central da mais nova das modernas concepções teológicas; que o “proletariado” tenha sido invadido pelos mais grosseiros conceitos materiais e a aversão à cultura mundana não seja mais do que capricho vazio. É o caso de se perguntar se o papel de “construtor de torres” já não tenha, há muito, passado daqueles que afirmam para os que negam; se o NAO dos que negam já não se transformou, há muito tempo, em SIM — [isto é, se tenha transformado na afirmação] da criatura que ficou segura em sua negação e de quem o Cristianismo, com tristeza, precisa afastar-se. É possível e é preciso que se pergunte se o inabalável camponês bávaro não estaria mais próximo do céu que o “homem russo” ou se um engenheiro calculista ou um comerciante não estaria mais próximo da verdade do que algum sacerdote devotado às mais profundas elucubrações sobre os mistérios de Deus; se acaso não valeria a pena ser conduzido “para fora” da depressão [em que talvez nos sentíamos tão “bem-aventurados”] para algum ponto um pouco mais alto, [onde não sejamos “vítimas” tão notórias]; algum lugar um pouco mais acima onde penetrássemos na “casa deste mundo” como se nada fora [participar da vida normal], por exemplo, casar e ter filhos, ser querido; promover a ciência, pertencer a algum partido político (inclusive não sendo socialista...) — ter a arte em grande estima, aplaudir a cultura e talvez até — para cúmulo da tragédia e do humor — ser clérigo! O mesmo Cristianismo que ali esboça a tese. contrapõe aqui a antítese. Existe todavia certo desequilíbrio [entre uma e outra] porquanto a parábola (ou analogia) da morte fala alto de mais, ainda que seja apenas parábola.

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[A tradução inglesa escreve de forma algo diferente dizendo, “as teses do cristianismo tornam-se aqui a sua antítese por quanto é possível que a parábola da morte ultrapasse a si mesma, embora seja apenas parábola”. E o texto original continua:] Também é certo que o Cristianismo pode distribuir o seu SIM e seu NÃO de uma e de outra maneira; erige e derriba; [constrói e destrói]; envia [o seu mensageiro] e o chama de volta; dá e tira; todavia tem sempre o mesmo objetivo, a mesma lógica e segue uma única regra: é contra as “elevações” e a favor das “depressões”. Está sempre conferindo CERTITUDO ao ser humano porém — para a glória de Deus e nosso consolo —já mais SECURITAS; nunca agindo cegamente de uma única maneira, nunca dando razão a alguém ou a alguns dentre nós; jamais nos concedendo descanso porque sempre mede nosso tempo pela eternidade de Deus. Acaso notamos — quiçá algo assustados — quanto, em nossas atividades, nos movemos no âmbito da relatividade? — É justamente isto que devemos observar. Ainda uma vez dizemos: relatividade quer dizer correlação. Como realidade, como atitude humana, qualquer que seja sua causa determinante, todo procedimento ético é correlato à origem; [o que diferencia] a ética cristã, o que a caracteriza como não sendo relativa mas absoluta, é o fato de na totalidade de sua essência e de seu desdobramento, ela se apresentar apenas como interrogação e subsistir em indagações e perguntas que somente Deus pode responder; na realidade é nesta caracterização da ética divina que se torna terrivelmente evidente que toda ética humana é apenas “demonstração” [ou protesto]; que a ética humana pode apenas quando muito — ter pretensões a algum significado e que neste “apenas”, [nesta limitação de possibilidades], nem sequer pode ter “apenas” um pouco de descanso — (de sossego ou de paz) — porque também este APENAS dá lugar a que nos lembremos de Deus, de onde se origina a pergunta formulada com inescapável seriedade: “O que faremos pois?”. A perturbação que o NÃO do Cristianismo desperta em nossas consciências é fundamental para nosso encontro com aquele que é UNO, através da pessoa do “outro”, (de nosso semelhante, nosso próximo) e o grau de envolvimento que ele representa, a premência do seu apoio às depressões da existência humana e a densidade da sombra em que nos coloca são a medida da grandiosidade desse encontro. “Refleti entre vós sobre a mesma coisa!”, não cogitando do que está no alto [no que está por cima] mas, consentindo em serdes conduzidos às coisas que estão embaixo, sêde do mesmo sentimento entre vós, pois justamente as grandes contradições que resultam da dialética desta norma — (do conceito SOLI DEO GLORIA) — as contradições entre a refutação e a confirmação da

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cultura, entre o entusiasmo e o realismo, entre a sabedoria do morrer e do viver, podem e devem unificar-se sempre de novo em consideração UNA e coesa da vida SUB SPECIE AETERNI e, justamente porque esta consideração jamais tem lugar, porque ninguém a tem [ou faz], ela se torna uma das maneiras de homogeneizar as pessoas e de permitir que se estabeleçam diferenças entre elas. [A tradução inglesa põe assim: “SUB SPECIE AETERNI” as grandes contradições do mundo se unificam em uma só perspectiva da vida; todavia essa unificação jamais existiu realmente, ninguém —jamais — a possui, porque não é o que os homens discernem mas é o que os distingue]. Não estamos todos enfermos no mesmo hospital? Não estamos todos sob a mesma acusação? Não fomos todos condenados pela mesma sentença? O que podemos pois fazer, senão termos todos o mesmo sentimento? Não segui as vossas eventuais presunções!” [“Não sejais sábios aos vossos próprios olhos!”]. (Prov. 3, 7). Esta é a norma negativa que resulta logicamente da atitude de deixar-se [alguém] conduzir às coisas que estão embaixo. Lá no alto, — ainda que tais “alturas” sejam duvidosas, temos eventuais presunções, [somos presumidos em nós mesmos] (11,25); orientamo-nos de uma ou outra maneira, dependendo da necessidade de nos auto-suportarmos; de nosso autodesenvolvimento, de nossa auto-afirmação e de nossa autodefesa; mas esse “auto [este reflexivo] é casual; o que [usualmente buscamos embora, talvez não o confessemos, o que] queremos, é algum gabarito [ou padrão] para a luta pela existência, que não seja crítico, [decisivo]. Confiamos ingenuamente nos conceitos [pessoais], — “eu”, “tu”, “nós” e “os outros”; temos “uma” situação ou “um ponto de vista”; (que ironia!); falamos tragicamente de “um opositor”, falamos de superioridade, de hegemonia e de vitória, todavia submetemo-nos a outros padrões, a outros parâmetros; abrimos caminho (ou não); chegamos “em cima e descemos de novo; lutamos felizes, (ou não); temos sucessos mas também insucessos, sofremos desilusões, somos golpeados, feridos, postergados [preteridos e humilhados]. É nisso tudo que desenvolvemos [e alimentamos] nossas “eventuais presunções”. Avaliamos [e julgamos a nosso favor] sob a pressão imprópria do momento presente, cada um conforme então “lhe ferver o sangue nas veias”, defendendo-se do opositor e mais ainda — até primeiramente — defendendo a si mesmo. Não nos iludamos; esta é, a rigor, a regra constante de nossa conduta: seguimos presunções eventuais! Contudo, ainda que essa linha de procedimento não seja rompida [e interrompida] definitivamente, pode [ao menos] ser truncada e fletida.

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O ataque fundamental da graça deixa suas marcas na criatura humana não pela agudeza (ou precisão) de eventuais respostas divinas (que, aliás, nunca são dadas pois a graça é sempre — e unicamente — demonstração e testemunha de que há resposta) porém justamente pelo fato de ela própria estabelecer a interrogação; é nisto que consiste a seriedade e a força da ética cristã; (ela interroga e, inquirindo remete a questão à sua origem, à fonte da própria ética] e, nesta sua relatividade a ética da graça — [a ética cristã] é o machado posto à raiz das “presunções eventuais”. Ora, a raiz de todas presunções eventuais e o segredo de toda “altura” humana são as respostas éticas absolutas com que tão bem [ou melhor] se coroam as certezas humanas; por isso a ética cristã, como a supressão de todas respostas éticas absolutas, suprime também os triunfos e os sofrimentos que nos proporcionam as passagens por esta ou aquela altitude. Para a ética cristã as altitudes humanas são apenas analogias; simples parábola é toda luta [toda oposição entre a criatura e o mundo,] ainda que essa oposição fosse (ou seja] a mais santa e a mais necessária. A verdade tira-nos a energia [ou o alento e a ousadia] para nos aferrarmos a “uma verdade”; a injustiça tira-nos o ânimo de aceitar a injustiça como se fosse um acontecimento especial; a vitória tira-nos a tensão com a qual poderíamos esperar por esta ou por aquela vitória. Acaso é isto “desanimador”? Acaso moem-se, com isso, todos nossos ossos? — Sim, é justamente isto que acontece; tudo quanto estiver aquém do arrefecimento de nosso ânimo precisa morrer. A ética que não houver passado por esse purgatório não é ética porém, vida biológica, emoção, Eros; não é necessidade mas acaso e capricho; não é liberdade mas privação dela; não é de Deus mas apenas explicável psicologicamente ou, pior ainda, apenas explicável psiquiatricamente. A ética cristã, [porém é diferente]; conquanto ela nunca e em parte alguma se corporifique, ela é dotada de ousadia a par da qual toda coragem que tivermos não passa de covardia e, rompendo todo o individualismo ela é a própria fundamentação do indivíduo. A ética cristã é a purificação transcendental de todo procedimento, expurgando-o de suas componentes biológicas. emocionais e eróticas — embora nunca e em parte alguma apareça em sua pureza; ela é o protesto direto contra toda posição de superioridade assumida pelos homens e por isso mesmo, nessa atitude ela é absoluta e anuncia o mundo vindouro. “A ninguém tomeis mal por mal !“ No sentido cristão o mal é a condição inevitável da parte perceptível, [real, material] de toda conduta humana; o MAL é a massa inerte de nosso comportamento. [Nesse mesmo sentido] o bem não é a

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alternativa para o mal mas é o seu julgamento e sua supressão; o BEM é a justificação do homem por Deus, é a impossível possibilidade da salvação do mal: “Porque perguntas acercado que é bom’? Bom só existe um”. (Mat. 19, 17). A regra [natural] de nosso relacionamento com os outros, ainda que o designemos como sendo amorável, é a da retribuição do mal com o mal, isto é, não vemos no outro o um, (o Bom!); não só deixamos de ver o “Bom”, em nosso semelhante (2, 9) mas vamos além, deixando bem claro para ele que ele é aquele que de fato é [para o mundo: a velha criatura!]. Insistindo em ver nosso próximo no seu aspecto visível qual ele mesmo se apresenta consideramo-lo, em princípio, perdido para o bem, ainda que nele vejamos toda sorte de coisas boas. Esta nossa insistência é a “retribuição com o mal!” Muito antes de entrarmos em choque com nosso semelhante pelos entrechoques “naturais” da vida — nos quais recorremos a todos os meios que estiverem a nosso alcance, e que são todos maus, — pela nossa persistência em não ver nele aquilo que [neste mundo e como velha criatura] ele de fato não é, já lhe estamos tornando mal por mal. [Por outras palavras, vemos em nosso próximo apenas o mal e lhe devolvemos o que nele achamos, não vendo nele o bem.], porquanto não conseguimos ver nele aquilo que ele não é; esta nossa incapacidade de ver é a obra do mal praticada por nós; é a ação da massa inerte que nos domina [e nos faz andar sempre na mesma direção para longe de Deus!]. Esta é a “linha reta” que, [sem desvios e] sem exceções, seguimos. Todavia, ainda que não possamos quebrar e interromper definitivamente essa linha, podemos trincá-la, — fendê-la; podemos, quiçá, abrir brechas nesse nosso procedimento, lembrando que, embora nossa maneira de proceder com relação ao mal que insistimos ver em nosso semelhante, não seja de todo injusta, nela estamos confirmando e ratificando a existência do mesmo mal em nós, da mesma forma que vendo o bem que no outro existe e reconhecendo o UM que há nele — [que ele representa] — estamos testificando a nossa própria justificação. Em seriedade, isto é, em seriedade ética, não podemos sustentar a “retribuição do mal com o mal”. Perante ninguém e nunca mais enfaticamente do que perante a máxima malignidade do “outro”, se torna mais significativa a nossa justificação [por Deus!]. Na medida em que esta conscientização crítica, [decisiva], se tornar perceptível mediante a “não-retribuição”, a “não insistência” [em ver o outro qual ele realmente é neste mundo], quando tentarmos fazer aquilo que, aparentemente, só pode significar [covardia e] fraqueza, quando realmente ignorarmos o “mal” do outro, quando nossa conduta representar estranho desvio da “linha

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reta” do procedimento humano então, talvez, (nosso procedimento ético) contenha a indicação do que é invisível, isto é, seja um sinal de que percebemos a existência do UM no outro, [em nosso próximo,] o UM que também está em mim; [talvez então o nosso comportamento ético seja a indicação de que divisamos a parábola] da divina “não-imputação e do pecado, naquele nosso próximo, — qual o vemos. Contudo, lembremo-nos sempre que não há nem pode haver quebra absoluta — interrupção plena e total da linha [do procedimento normal humano]; não pode haver atitude absolutamente boa nem se pode transformar a atitude de “não-resistência” em algo de valor absoluto porquanto então, na verdade, estaríamos destruindo nossa esperança pelo mundo vindouro. “Meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos!” [Almeida escreve: Esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens]. (Prov. 3, 4). [Os quatro primeiros versículos do Capítulo 3 de Provérbios, parecem reforçar a maneira de traduzir do Autor]. Mais uma vez nos deparamos com a ética de Kant. Determinada conduta é ética na medida em que, sendo aprovada pelo invisível UM em todos, contrasta com a conduta visível de muitos; é por isso que o comportamento ético nunca está (ou é) totalmente isento do caráter de protesto — o UM em todos protesta contra o procedimento de muitos e por isso mesmo ele é a medida [a dimensão] desse protesto. Bom somente é aquilo que o é aos olhos de todos (que sabem ver!). Se um determinado comportamento houver de significar, real e genuinamente, a perturbação que, de parte de Deus, atinge a criatura e não unicamente a despótica perturbação da criatura, provocada pela incompetência de seu semelhante, a criatura assim atingida não poderá eximir-se [da condição do “bom a vista de todos”] nem pode temer a luz do critério da validade universal; não pode recear a luz da publicidade. Semelhante comportamento não pode alegar a existência deste ou daquele paradoxo, não pode basear-se nele nem pode deixar de ter sempre presente a realidade da existência do UM no outro [seu próximo] porquanto o paradoxo ético [que se impõe ao mundo pelo seu contraste com o procedimento usual] consiste exatamente em tomar em consideração este UM invisível e, ao lado deste paradoxo, não pode haver outro (e aqui é conveniente colocar Kierkegaard na posição devida, [corrigindo-o] por intermédio de Kant). A ética divina não pode objetivar determinada espécie de felicidade (ou de infelicidade!). Quanto mais a conduta individual estiverem desacordo com a realidade histórica da sociedade — (como por exemplo a vocação do Apóstolo — 1, 1), tanto mais necessário é que ela esteja em harmonia com a verdade que

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proclama [ou representa]. A própria ação profética, por vezes em tão profundo desencontro com a sociedade a que se dirige precisa, em ULTIMA RATIO estar em harmonia com a verdade reconhecida por todos. [Quiçá, embora não aceita e até combatida precisa ser — e é — confessadamente ou intimamente reconhecida como sendo “o bom”]. Conseqüentemente, podemos abrir mão da aprovação de “muitos”, porém em nenhum instante sequer, da “aprovação” [(do consenso)] de todos. A “aprovação de todos” é o critério pelo qual precisa ser medido todo comportamento visível que não seja usual; [a este critério] sujeitam-se os heróis, os guias carismáticos, os pregadores de novas doutrinas, os ascetas, os pietistas; julgados por este critério, consideram-se tratados com eqüidade todos os “grandes personagens”, todos os super-homens, todos os artistas e todos os gênios excepcionais, qualquer que seja o seu ramo; portanto, não existe moral [ou ética] especial [ou diferente da usual] para aqueles que sobressaem [na sociedade ou entre seus pares] e conseqüentemente também não existe ética separada para os que forem [simplesmente] normais! Por isso, qualquer procedimento que admirarmos por sua ética, ou mesmo que apenas reconheçamos como sendo ético, (por exemplo, a ação de algum profeta!), torna-se, para nós, força constrangedora da qual não podemos escapar mediante justificações capciosas ou de simples fuga, dizendo, (por exemplo): “Mas isso era Lutero!” Basicamente a conduta humana somente deixa de ser normal [usual ou comum], quando se relaciona com Deus e por isso mesmo ela é absolutamente normal no seu relacionamento com as demais pessoas (pois a invisibilidade do todo proporciona o corretivo necessário!) “sem cogitar do que está no alto” e sem seguir “eventuais presunções” (12, 6), desta maneira anunciando o mundo vindouro que é a verdade do “UM” em todos! “Naquilo que depender de vós tende paz com todos!” Manter a paz pode ser demonstração perfeitamente pertinente, própria. Pode significar que a criatura é de tal maneira contida e mantida em cheque por Deus que ela não tem alento para contragolpear, por mais justos e mais bem aplicados que seus golpes fossem. Ora. o correlacionamento humano é sempre mal conduzido e, por si mesmo, gera constantemente a discórdia e está sempre predisposto a distribuir golpes à esquerda e à direita; também o nosso semelhante não faz jus a qualquer reivindicação de paz porque (por assim dizer), ele nos provoca em todas suas atitudes na qualidade de corporificação [materiaiização] do “homem” que conhecemos bem demais, sempre em novas modalidades cada qual mais irritante — em sua ignorância crassa, sua obstinação e sua absoluta desagradabilidade.

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Não se pode exigir que tratemos amigavelmente semelhante indivíduo se, para o fazermos, temos de lutar em nós mesmos para nos dominarmos, gerando enormes pressões internas. Se, porém, acontecer que, brigando com ele, aliviamos [descarregamos] em parte nossa pressão interior, por que não haveremos de lutar? Nada há mais natural do que a guerra; porém a guerra aponta para além de si mesma porque, em última análise, ela é dirigida contra o homem que conhecemos. A guerra significa que reconhecemos o homem qual ele é, em sua impossibilidade [de transformar-se] e queremos livrar-nos dele; guerra é a afirmação de que — de alguma maneira, vimos o nosso semelhante à luz do UM, que ele não é. [Guerra] é manifestação errada porquanto o conflito com nosso semelhante de maneira alguma opera a supressão ou a negação da criatura que conhecemos, ainda que a exterminemos na luta. Evidentemente, só Jesus Cristo — aquele que é UM em todos — é a negação [a anulação] da criatura que conhecemos. Portanto a luta dentro de nós e a luta com nosso semelhante deveriam cessar no instante em que reconhecermos esta realidade, por não terem mais razão de ser. Parece-nos ser impossível haver qualquer luta “em Cristo”, pois ELE É A NOSSA PAZ! Não é possível lançar nova carga sobre este ou aquele, dizendo-lhe que “ele também é criatura humana!”. Não é possível fazer do direito de Deus perante todos, o direito de um homem perante outro! Não é possível ignorar que justamente a provocação visível nos homens, testifica a sua invisível justificação divina! A guerra é o procedimento natural da criatura que, assumindo atitude radical e absoluta para com seu semelhante, quer fazer-se igual a Deus. Isto nos diz respeito, muito de perto, para que mantenhamos paz com todos, a todo e qualquer preço. De onde tiraremos a emoção e o ânimo necessários para brigar, quando houvermos reconhecido que NÃO SOMOS DEUS? Acaso não nos é necessário testificar a liberdade e a misericórdia de Deus, mantendo a paz’? “Enquanto depender de vós, preservai a paz!”. Sabemos porque, também aqui, não dizemos mais. O limite da nossa possibilidade é Deus. Nada daquilo que denominamos PAI — e nisto não podemos acompanhar Kant — pode ser, sequer, o mais remoto degrau preliminar da “paz eterna”, [a escada de] acesso ao “Reino do Bom Senso”. Quando dizemos que vemos Jesus Cristo em nosso próximo e que, por isso, na guerra vemos a paz, e que podemos e devemos efetivar essa perspectiva

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mantendo a paz tratamos, na realidade, do conhecimento de Deus e da sua PAZ. Deus, porém, jamais é conhecido; nós o reconhecemos. Deus permanece livre. Continua existindo a possibilidade de entrarmos em luta contra nós mesmos e, um pouco mais longe, que entremos em conflito com nosso próximo; existe também a possibilidade de que Deus poderia impedir-nos de ver Jesus Cristo na pessoa deste ou daquele semelhante nosso; todavia, note-se bem: falamos de uma possível reserva [e exceção] divina e de maneira nenhuma da chamada “Moratória do Sermão do Monte” que os Luteranos — [aliás, a Igreja Luterana da Alemanha, para justificar a beligerância do país, por ocasião da guerra mundial de 1914-1918], — em sua aflição e para se justificarem perante eles mesmos, inventaram. Não confundamos com possível reserva divina a eventual exceção [que imaginamos ou desejamos] para atender a possíveis dificuldades (ou circunstâncias) humanas, por mais nobres que sejam [ou que fossem]. Não usemos a (“pretensa”) reserva divina como pretexto para pregar a guerra, [como justificação] para que possamos agredir com “consciência tranqüila”. [Aliás] o homem não deve ter “consciência tranqüila”, nem na guerra nem na paz. Todavia, mesmo o mais sincero amigo da paz sabe que estamos permanentemente, não apenas na situação de não poder ver o UM no “outro” mas também, [fortemente inclinados] a detestar [quiçá a odiar] o mal que “nele” vemos, (12, 9), pois a existência do UM no “outro” não é realidade material. E nesta medida que se torna necessária a demonstração (ou o protesto) mediante a luta e, quiçá, da guerra. O conhecimento de Deus [ou o reconhecimento de sua existência] impõe-nos que, na questão da guerra, desçamos de todas “alturas” guerreiras todavia, não para que sejamos conduzidos a outras “altitudes” pacifistas. O reconhecimento de Deus conduz-nos a Deus e não a alguma ação ou circunstância humana, quer seja na guerra, quer seja na paz. A Igreja que sabe o que quer afastará de si, com mão forte, o militarismo; [porém não só ele] mas também o pacifismo, embora o faça com gesto amigo. A seriedade no cumprimento da ordem de preservar a paz esta no fato de que essa ordem se refere também ao cumprimento do primeiro mandamento e aponta, igualmente, a Deus; a seriedade dessa ordem consiste inteiramente na peculiaridade de não ser ela uma determinação precisa, absoluta; na sua condicionalidade — [“no que depender de vós” ...] este mandamento aponta à paz do mundo vindouro. “Não fazei justiça a vós mesmos, amados, antes dai lugar à ira de Deus. Pois está escrito: “É a mim que compete fazer justiça, eu recompensarei, diz o Senhor” (Deut. 3, 25). Porém se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se

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tiver sede, dá-lhe de beber! Pois fazendo isto amontoarás carvões incandescentes sobre sua cabeça”. (Prov. 25, 21-22). Detenhamo-nos mais uma vez sobre o significado [o conceito] da palavra INIMIGO. Evidentemente é na pessoa do “inimigo” que mais e melhor se patenteia o que nos é defeso fazer. O “inimigo”, conforme já vimos em 12, 14, é o OUTRO em sua forma a mais estranha — [a mais misteriosa]. Segundo o nosso ponto de vista a respeito dessa ordem [de preservar a paz], parece ser mais do que lógico que não precisamos mantê-la porquanto todo o atro enigma [da maldade e da repulsa que nos inspira nosso semelhante, conforme o vemos longe de Deus], parece aglomerar-se em nosso inimigo; todas observações que foram abafadas e todas opiniões pessimistas a seu respeito, aparentemente se confirmam e nos parece ser completamente impossível recuar do conflito em virtude do relacionamento biológico existente entre nós e nosso antagonista no instante em que ele se opõe a nós como nosso “inimigo”, seja pessoal ou nacional; por questão de princípios ou por classe social; porquanto, quem é o inimigo? — Sabiam-no os cantores dos Salmos. Verdadeiramente, [o inimigo é] não só o concorrente, o opositor, o adversário vil, o opressor, mas também, para meu horror, aquele que ante meus olhos, deliberadamente, busca a injustiça, que me faz ver o maligno no homem que conheço (12, 17) e que me põe em vias de retribuir mal com mal. Com toda razão Lutero vê seu inimigo no Papa de Roma e não apenas um inimigo mas o arquimaligno em ação. E plenamente justificável o lamento do Salmista quando vê o “inimigo” surgir qual grandeza quase absoluta perante Deus, a quem clama por [justiça e] retribuição. É o inimigo que abre os meus olhos para que eu veja o que secretamente sempre me irrita em meu semelhante; ele o mostra a mim, como sendo o “mal”; ele me mostra que, realmente, o “mal” é inerente à criatura humana e a acompanha até o fim da vida, no mundo; é através de nosso inimigo que percebemos que o mal segue o seu curso naturalmente, sem impedimento, sem contenção, sem reação e sem oposição nem interior nem exterior. E o inimigo que desperta em mim o tumultuoso clamor por justiça que seja superior, que seja compensadora, vingativa, (e que não encontro); é o clamor pedindo um juiz que julgue sobre nós dois (e que, todavia, está ausente). Quem há que me ponha em maior crise do que este inimigo? O que devo fazer quando eu tiver a experiência elementar, mas avassaladora para mim, que toda justiça “retribuidora”, está excluída? O que devo fazer quando me convencer que tudo quanto eu poderia fazer contra meu inimigo é [também] o mal, e

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está igualmente sujeito às sanções daquela justiça superior [pela qual tanto clamo e] de cuja falta eu me ressinto tão dolorosamente? Indubitavelmente aqui está, inquietantemente perto, a última e maior tentação de titanismo, a tentação de fazer justiça com minhas próprias mãos, de aceitar por minha conta (e risco) a luta pelo Direito, de colocar:me no lugar de Deus Invisível, tornando-me o INIMIGO do inimigo e o TITA para os Titãs. Se eu o fizer, quem me julgará? Acaso não estou oprimido [e angustiado], perguntando quem me fará justiça? Trata-se de avançar apenas uns poucos passos além da pergunta [absolutamente] legítima sobre o que devo fazer. Que mais devo, pois, fazer à vista do inimigo, senão assumir o lugar do Deus ausente e, por meio de palavras e atos, com o poder das leis e das armas, servindo-me de todo poderio ofensivo e defensivo do mundo, julgar o inimigo [com todo rigor] e castigá-lo com todo rancor? Se a criatura humana realmente pode e deve tomar medidas objetivas de justiça, então a luta pelo Direito é inevitável. Se tivermos de tomar a justiça em nossas mãos, então não teremos força moral para rejeitar o pensamento [os conceitos] de Tirpitz, pois nossos argumentos estarão condenados ao fracasso, desde suas bases. Todavia, não é assim; a própria perturbação, vinda da parte de Deus, que a criatura sente, põe [seriamente] em dúvida que ela deva e possa cuidar de fazer justiça por si mesma. Todavia nada nos impede a que o tentemos porém, é absolutamente certo que não poderemos realizar tal intento sem cair no titanismo e sem empunhar o cetro de Deus; não podemos ignorar que se assim procedermos estaremos nos colocando, cheios de rancor, ao lado de Deus no campo de domínio da ira divina. Este é o segredo de nosso inimigo; também ele, na essência de seu procedimento, está estendendo a mão para asir o cetro divino; também ele, de alguma maneira, deixou que lhe passasse desapercebida a existência de justiça mais alta; também ele chegou à fronteira da interrogação sobre o que deveria fazer e foi impelido [ou compelido por sua própria maneira de ver] a avançar e fazer justiça por suas próprias mãos. Mesmo o pior de nossos inimigos jamais deixou de pensar subjetivamente que estava aplicando a “sua” justiça com objetividade; é justamente nessa maneira de agir que ele fere nossa consciência de justiça; esta é a injustiça que ele pratica ante nossos próprios olhos e é desta maneira que ele se torna réu perante Deus e os homens. É por isso que, ao se deparar comigo, [meu inimigo] me afronta com seu ardente zelo por Deus, zelo que o traiu pela cobiça de seu coração. (1, 24). Acaso posso assumir a mesma atitude? Posso, também eu, tomar a defesa do que é justo, em minhas mãos?

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— Repetimos ainda uma vez: eu posso tentar fazê-lo e, talvez, até precise tentá-lo. Como haveria eu de encontrar outra possibilidade senão a de enfrentar o Titã, titânicamente? Apenas não posso, depois, admirar-me se eu tiver de reconhecer no meu próprio destino titânico, trágico, apavorante e digno de compaixão, que também eu. na intenção de fazer justiça direta, apenas cometi injustiça. É na intenção de estabelecer a justiça mais alta, que a renegamos “porquanto a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens” (1, 18), impiedade para com meu inimigo e impiedade para comigo mesmo, se eu quiser ser inimigo de meu inimigo. Esta é a situação crítica do militarismo que, de passagem, atinge também, e de cheio, o pacifismo. Quem há que dê lugar à ira de Deus e não à ira humana? Quem cuida para que a ação humana seja eliminada e suprimida pela superior ação divina? Quem há que se esforce para que na dialética da vida (que se torna particularmente viva para nós através de nosso inimigo), nada mais reste senão a indagação [o clamor], pela justiça objetiva? É isto o que nosso inimigo tem a nos dizer [na qualidade de nosso próximo e mensageiro de Deus]. Ele apenas desfaz a última ilusão de que a justiça de Deus poderia ser, para nós — criaturas humanas — algo diferente daquilo que se pode fazer [exclusiva e necessariamente] no contexto do mal; ele expõe essa ilusão, mostrando-nos que ela é estranha, remota e invisível; nele transparece a absoluta impossibilidade de que essa ilusão se torne verdadeira; no inimigo apenas vemos a justiça de Deus, manifesta em sua ira e o próprio Deus em sua qualidade absoluta de DEUS ABSCONDITUS. Que posso fazer contra o inimigo, senão abster-me de toda e qualquer retribuição, voltando-me à total abstenção e, em vez de lhe dar as respostas [que seriam cabíveis], formular apenas perguntas, desistindo de todas ações para ficar — apenas — nas respectivas pressuposições? Que gestos devo fazer, [que atitudes tomar], — desde que me é vedado contragolpear, — senão obedecer esta ordem [absolutamente absurda], totalmente impossível, pouco prática, de maneira alguma [lógica ou] racional, que diz: “Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber.”? [Ora] esta atitude somente pode significar — e de forma muitíssimo extraordinária — que ouvi este UM extremamente camuflado, na pessoa de meu inimigo — meu próximo; que entendi a imprescindível necessidade de dar a honra [e a glória] somente a Deus. “E a mim que compete estabelecer a justiça, eu recompensarei, diz o Senhor!” Como testemunho deste “a mim.” e deste “eu.”, como demonstração de que a justiça vem de Deus e de Deus somente, conforme o reconhecemos justa-

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mente na pessoa do Inimigo e, para marcar indelevelmente que o inimigo representa para nós um problema que nos oprime terrivelmente, não podemos acompanhar, impertérritos as idéias militaristas [porquanto], “se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer! Se tiver sede, dá-lhe de beber!” Podemos fazer dessas recomendações imediatas o alvo perfeitamente alcançável de nosso procedimento (de nossa conduta) podemos calcar nessas recomendações o nosso “método” e nosso desiderato. Trata-se de possibilidade prática, pragmática, perfeitamente plausível. Todavia, também conhecemos a futilidade de todas tentativas que se fazem para satisfazer essa recomendação. O amor ao inimigo (que é a expressão mais inequívoca do paradoxo ético do UM no outro) não pode ser transformado em procedimento humano, visível. Devemos amontoar “carvões incandescentes” [brasas vivas] sobre a cabeça do inimigo; isto é, nosso procedimento deve desalojar nosso inimigo de sua posição, por meio de golpe irresistível, O “outro”, que também é o UM oculto no inimigo deve ser compelido a revelar-se. Para tanto preciso reconhecêlo como aquele que tem “fome e sede”. [Comparar com Mat. 25, 35-45]. Preciso reconhecer que [este meu inimigo] nada mais é que a vítima de seu trágico destino (ainda que, visto de fora — [visto pelo mundo] — ele triunfe inteiramente); preciso ver nele a criatura batida pela ira de Deus e [preciso compreender] que a justiça objetiva que contra ele procuro, já foi aplicada. O “outro” assim batido, o inimigo fustigado por Deus, já não pode mais ser estranho para mim; na parábola da morte, ele é o UM. Todavia tal conhecimento, para ser genuíno, precisa ser alcançado praticamente; por isso, dá-lhe de comer e de beber! Tu és solidário com o [teu] inimigo, batido por Deus. Seu mal é teu mal: seu sofrimento o teu sofrimento, sua justificação, a tua justificação e, somente aquilo que o redime pode redimir a ti também. O BEM é todo procedimento que pode manifestar [ou expressar] essa correlação entre ti e ele; e todo procedimento que, pelo padrão dos atos dos titãs entre eles, só pode ser entendido como abstenção [como omissão ou ausência de ação]. Assim, quando tua conduta se elevar à altura do amor ao inimigo, ela será qual a profundeza do vale e tua atitude será. (realmente). significativa. O especial interesse da ética cristã no amor ao inimigo está cm que a interrogação sobre “o que devo fazer” esbarre na impossibilidade de uma resposta material: que a pergunta nos convença de que ela é. precipuamente. a interrogação sobre a fundamentação e sobre o objetivo daquilo que efetivamente fazemos e, assim, se transforme na pergunta para qual somente Deus e a sua obra são a resposta. Esta é a sua significação como anunciação do mundo vindouro.

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Comentários: 12, 16-20 SOLI DEO GLORIA parece ser para Barth a chave para a interpretação do preceito de que devemos consentir nas coisas que são humildes. A primeira vista essa interpretação pode parecer-nos estranha como soa estranhamente a redação que o Autor dá à passagem de 12, 16, particularmente se a confrontarmos com a tradução de Almeida. Escreve Barth: “Refleti (vós) sobre a mesma coisa, não cogitando do que está no alto”, mas consentindo que sejais levados a pensar e cuidar das coisas humildes! O que tem isso a ver com a glória que só a Deus é devida? Todavia, se acaso nos foi difícil aceitar prontamente a forma pouco familiar da redação de Barth, a introdução do conceito SOLI DEO GLORIA torna a sua maneira de escrever não apenas aceitável mas profundamente significativa; aliás esse conceito não se aplica unicamente ao versículo 16, mas aos quatro versículos aqui analisados como “Possibilidades Negativas” da ética cristã. Quando cuidamos das coisas soberbas, quando dermos asas à presunção humana, quando nos imaginamos vitoriosos, dominando os horizontes quais altaneiras águias, quando segundo nosso modo de ver — somos sábios e prudentes, estamos na realidade construindo a nossa “Torre de Babel” com todo esmero de que somos capazes e nisto não nos falece nem inteligência, nem sabedoria, nem prudência e, do ponto de vista do “presente século”, podemos sentir-nos orgulhosos de nossos feitos; estamos nos aproximando mais e mais de Deus: de sua sabedoria, dominando a matéria e devassando o Universo; de sua grandeza penetrando nos mistérios da alma e da própria geração da vida; de sua graça, dispensando tolerância que chega às raias da conivência com o mal; da sua pureza, com nosso puritanismo; da sua santidade, pela nossa sacrossanta religião! Enquanto assim subimos, enquanto somos glorificados pelos homens que vêem nossas obras quais as exibimos estamos verdadeiramente, novamente — e sempre — enfeitiçados, fascinados, irresistivelmente atraídos — e traídos — pelo eloqüente e traiçoeiro discurso da Serpente: “Sereis iguais a Deus”. É por isto que o Cristianismo vê “com desconfiança”, com reservas e quiçá, até com crítica, tudo quanto fala da grandeza humana, até mesmo de sua religiosidade quando nestes “altos montes” colocamos nossa esperança e nossa confiança. É por isto que a “sadia piedade popular evangélica” perde o lugar ao sofredor “homem russo” — quiçá conforme retratado por Tolstoi e Dostoievski — e este, — agora talvez exaltado por Marx

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e Lenine — ensoberbecendo-se em sua negatividade, cede novamente o lugar ao homem mais simples — menos presunçoso perante Deus. São os primeiros que passam para o rol dos últimos. É por isto que a ética cristã deixa de ter valor quando o fixamos em seu teor material; é por isto que o asceta em seu retiro. aparentemente sem nada de útil produzir, pode estar mais perto do reino de Deus que o diligente crente, inteiramente devotado ao construtivo trabalho social de sua paróquia ou sua comunidade. É por isto que somos todos instados a pensar e cuidar do que é simples e comum. — O que há de comum? — Sofremos todos da mesma enfermidade e fomos todos curados pelo mesmo Salvador. Rendamo-lhe pois honra e glória com absoluta simplicidade pois não temos senão mãos vazias! É interessante observar que Barth apresenta em termos bastante objetivos a “aprovação universal” como critério válido para credenciar a qualidade de nosso “pensamento” ou de nossa conduta. Seria, talvez, o critério da VOX POPULI, VOX DEI. Seria? No sentido mais amplo, talvez sim, a sujeição dos sacerdotes de Baal ao seu próprio extermínio: a adesão pronta da turba ignara e fanatizada pelas “consultas aos astros” — (haja vista os modernos seguidores de horóscopos, “bio-ritmos” e coisas semelhantes) talvez não se desse tão prontamente, tão cabalmente, se sacerdotes e povo não estivessem intimamente convencidos de que Elias estava com a verdade; mesmo quando uma grande massa clama DELENDA CARTHAGO semelhante ato não será o BEM, se não contar com a “aprovação de todos”, como jamais foram o bem os turbulentos gritos “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Portanto, “meditai sobre aquilo que seja bom à vista de todos!” É ainda sob a chave SOLI DEO GLORIA que devemos procurar a inteligência das observações do Autor sobre o celibato, sem dúvida calcadas no capítulo 7 da Segunda Carta aos Coríntios lembrando, todavia, que as diretrizes do Apóstolo são dadas não ao clero mas à Igreja em geral, segundo aquilo que ele, particularmente, considera ser o mais acertado — o mais desejável — “por causa da instante necessidade”; em vista da premente e urgente questão do momento que então vivia a Igreja de Corinto e por extensão, toda cristandade dos primeiros séculos de nossa era. Notar o cuidado do Apóstolo em destacar e ressaltar dentro de suas considerações o que é, fundamentalmente, mandamento divino. SOU DEO GLORIA

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12, 21 a 13, 7

A Grande Possibilidade Negativa

A GRANDE POSSIBILIDADE NEGATIVA (12, 21-13, 7) Barth aborda o tema da “sujeição à autoridade” com a franqueza e a agressividade que lhe são peculiares, contrapondo a ordem à rebelião e vice-versa. Se até aqui estivemos em guarda com respeito a possível colocação política do Autor, podemos agora preparar nosso espírito para depor as armas; não quer isto dizer que nossos conceitos serão referendados e nossos preconceitos justificados: pelo contrário, quaisquer que sejam nossas simpatias estaremos sempre “do lado do mal”. Se pretendermos ver o BEM na ordem estabelecida erramos pois ela apenas testifica esse BEM qual parábola e o faz, justamente, em sua péssima qualidade; é o rebelde que em sua revolta, assume o papel de “ministro de Deus” para despertar a consciência da autoridade; porém, se entendermos que o bem está na revolução erramos e agora, talvez, até duplamente, pois seremos surpreendidos lutando contra Deus de quem a autoridade é ministro e, pior do que isto, estaremos usurpando os poderes e as atribuições de Deus. Ambas, autoridade e rebelião, são más, porque ambas são possibilidades humanas; todavia, se fora possível que houvesse uma pior, por certo seria a revolução e isto precisamente porque ela mais se aproxima de Deus; ela quer. a rigor, que se faça a justiça que o “Deus ausente” não faz ou tarda em fazer; por isso ela mesma mete mãos à obra e se arvora em vingadora do mal e protetora dos oprimidos e, assim fazendo, começa por oprimir os outros para, se e quando ela mesma se instalar em autoridade, oprimir todos. Logicamente é a rebelião que exerce maior atrativo sobre os homens; apelando ao romantismo (ou ao idealismo) das almas nobres e pelo titanismo natural à raça ou melhor, não natural mas nela inoculado pela “sabedoria da morte” que é o discurso da antiga satânica serpente. A seriedade do Autor, o seu empenho em dizer aquilo e somente aquilo que lhe parece estar claro na Epístola, a sua ferrenha fidelidade ao que entende ver na Escritura Sagrada, a absoluta ausência de partidarismo, estão patentes de modo notório nesta parte da exegese. Talvez desagrade a muitos e até a todos; talvez dê ocasião a que outros, menos escrupulosos,” o (seu) falar deformem e com sua voz iludam aos que menos sábios forem” (Rudyard Kipling). Seja como for a verdade está aí clara, até mesmo para quem não queira ver. Para servir a Deus é preciso, não raro, desagradar aos homens, O Cristão há de estar sempre em minoria — é o próprio Barth que o diz, algures — e desconfie de seu (próprio) “Cristianismo” quem deixar de ser exceção no mundo. O Autor consegue desagradar a “gregos e troianos”, isto é, à Autoridade e à Rebelião. Todavia, mais vale obedecer a Deus!”

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Vs. 12. 21 a 13, 7 Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem! Toda pessoa sujeite-se às autoridades governamentais pois não há autoridade que não venha de Deus e os que presentemente a detêm foram instalados por Deus. Portanto, quem se sublevar contra as autoridades se opõe à disposição divina. Tais insubordinados, porém, trazem justiça sobre si mesmos porque os que dispõem do poder não representam qualquer susto para os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal. Portanto, se não queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até o reconhecimento dela porque ela é serva de Deus, para teu bem. Se, porém, fizeres o mal, então teme pois não traz a espada para aparentar: ela é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus contra aqueles que promovem o mal. Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por causa da ira mas — por causa da consciência. E por isso que pagais os impostos: elas [as autoridades) são sacerdotes de Deus investidos para este único fim Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direitos alfandegários, alfândega; a quem temo!; temor; a quem honra, honra. [Confrontar com a tradução de Almeida, sem dúvida mais expressiva; não a transcrevemos em substituição à versão dada pelo Autor para manter a coerência com as demais transcrições]. Tratamos agora da ordem da vida social (comunitária) cotidiana, que não deve ser transgredida porque ela é a grande demonstração a favor da ordem do mundo vindouro. Para expor e ouvir o que aqui temos a dizer, vamos palmilhar terreno acaloradamente disputado. Parece-nos pois, que não será inoportuna uma advertência endereçada a todos que estejam por demais interessados [nessa polêmica] e especialmente àqueles que estiverem na expectativa ansiosa de revelações sensacionais. Se este livro cair nas mãos de tais pessoas, que não iniciem aqui a sua leitura, pois quem não nos acompanhou e entendeu — no todo, muito menos nos compreenderá agora pelo simples motivo de dizermos o que dizemos, — nada mais e nada menos. [A tradução inglesa escreve: “Ficarão embaraçados (intrigados) com respeito ao motivo pelo qual dizemos o que estamos dizendo e porque não dizemos mais ou por que não dizemos menos]. O problema que para nós representa o “UM” oculto no “outro” — [isto é, em nosso próximo], — (problema com que nós defrontamos em sua totalidade e na forma a mais aguda possível na figura do “inimigo”,) está concentrado na inegável realidade da ordem existente.

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Ora, é certo que o instante em que nos recordamos de Deus [ou em que com ele nos encontramos], apenas pode ser considerado “eterno” na qualificação que esse encontro lhe dá; todavia, dentro de nossa temporalidade será sempre um acidente temporal, com épocas anteriores e posteriores a ele, isto é, ficará situado entre um passado e um futuro. Semelhantemente, a decisão ética [ou espiritual] que tomarmos na vida apenas poderá ser “absoluta” na medida em que se referir a algum evento que já foi suprimido ou que jamais poderá ser suprimido. [De outra forma será apreciada em termos de coisa passageira — vale dizer — relativa e já não poderá pretender ser absoluta]. Também é certo que a “descoberta” do UM no outro somente pode acontecer quando este outro for perfeitamente [identificado], determinado na realidade concreta da multitude de indivíduos, quando essa realidade representar para o indivíduo em particular o grande enigma ético que ele tem de solucionar. [Acontece porém que] quando o indivíduo quer renovar os seus pensamentos (12, 2), quando procura meditar seriamente sobre Deus, a ele submetendo as suas ponderações, reconduzindo-as à “origem”, prontamente se lhe deparam [inúmeras] qualificações do tempo, as decisões críticas “eternas” e “absolutas”já especificadas e o relacionamento ético da criatura já plenamente resolvido; o grande enigma lhe é apresentado, já decifrado. Existe [no mundo] uma pletora de “realidades éticas”, não apenas aquelas baseadas nos tumultuários experimentos pessoais [isolados e casuais], porém, muito além do mero acaso ou capricho, superabundam as [pressuposições, afirmações, qualificações e decisões] que procedem das superiores posições [ou razões] das altas esferas de objetivos específicos — Estado, Direito, Sociedade, Igreja — que dão à multitude de indivíduos a configuração de totalidade e [que pretendem já haver resolvido o problema ético]; pretendem já conhecer a resposta à pergunta sobre o que devemos fazer. Com grande desembaraço e baseados em argumentos dos mais plausíveis, apresentam a “realidade” de suas soluções ou respostas e não apenas “provam” essa realidade como afirmam que elas representam a ordem e o caminho a seguir que buscávamos desnecessariamente (por já terem sido encontrados — por eles). [Estas organizações humanas que não vêem razões para que nos mortifiquemos em sacrifício vivo — porquanto não vêem qualquer necessidade de transformação, antes entendem que já estão impondo a ética de que Deus se agrada (12, 1-2) ou então, porque simplesmente revogaram a “ética divina” e implantaram a sua própria — estas organizações são “as autoridades instituídas”]; elas exigem reconhecimento e obediência e temos de nos avir com elas, quer queiramos reconhecê-las e obedecê-las, quer as queiramos rejeitar.

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Se optarmos pela obediência então estamos, evidentemente, aceitando a legalidade da ordem vigente; se optarmos pela rejeição então claramente escolhemos a revolução. O importante, porém, é que nossa opção seja feita como demonstração para a honra de Deus. [De nossa parte] não elegeremos a aceitação conforme os mais afoitos — ou melhor — conforme os leitores “contra-revolucionários” possam desejar (pois todos tomam partido), nem tampouco decidiremos pela rejeição — que não poucos dos outros leitores da “Carta aos Romanos”, intimamente esperavam constatar — porém, pela negação desta segunda possibilidade [o que, em princípio, não implica em aprovação da “autoridade constituída” embora pressuponha a sujeição a ela]. (Por que escolhemos esta alternativa? Isso vamos demonstrar já!) Dizemos NÃO à revolução; também já dissemos, implicitamente, NÃO à ordem instituída, à legalidade — e temos razões para dizê-lo explicitamente, (peremptoriamente). Aqui estamos tratando da grande possibilidade negativa! Grande porque esta demonstração [em honra e para a honra de Deus] não se refere APENAS a determinados atos e atitudes de nosso próximo mas diz respeito ao comportamento dentro da coletividade com relação à pluralidade dos indivíduos que, por sua vez, tem também a configuração de totalidade. A possibilidade é negativa porque o motivo e o sentido dessa demonstração, verdadeiramente, não estão na idéia de que o “Estado tenha de ser, necessariamente, admitido entre as forças moralizadoras” (Juelicher) ou então, na pressuposição de que “todo poder público é exaltado pela sua origem divina” (Wernle) mas está no ataque desferido ao próprio indivíduo, isto é, à sua “cogitação pelas coisas que estão no alto” (12, 16), [à preocupação que os homens têm com as coisas que lhes podem trazer poder, honra e fama], na sua petulância de Prometeu. Não estamos interessados nas organizações (leis e disciplina) humanas — [ou das “autoridades seculares”, conforme escreve a tradução inglesa] — nem tampouco pretendemos promover [ou defender] esta ou aquela conduta individual em relação a tais ordenanças [regulamentos e determinações] — (como por exemplo “os deveres do cidadão”, segundo Juelicher) mas o nosso empenho é em não quebrar essa ordem existente, isto é, estamos interessados em que o indivíduo não se porte contra a ordem [que a autoridade representa]. E o revolucionário que se tem aqui sob a mira, para tirar-lhe das mãos o princípio [a base ou o pretexto] para [justificar] a revolução e isto, ironicamente, para fins de ensino, conselho, sem nenhum interesse material, [político, social] ou preconceito!

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— Por que justamente o revolucionário? Esta pergunta é perfeitamente justificável e cabível à vista da agressiva periculosidade dos reacionários. A estas alturas o “comboio dialético” está anormalmente penso para o lado de fora da curva e temos de nos acautelar com o baricentro do sentido textual de nossas palavras para que não descarrilemos. — Portanto, respondemos [que nos dirigimos especialmente aos revolucionários] porque é muito pouco provável que alguém se torne reacionário, tendo por base a Epístola aos Romanos. O que é mais fácil de acontecer, a ameaça que está mais à mão, é evidentemente a hibridez que possa resultar mediante a confusão das carências que a Epístola apresenta, com as possibilidades que os homens julgam ter para resolver as coisas por suas próprias mãos [isto é] entendendo que o desassossego, a indagação, a renúncia e tudo mais que [na Epístola] tem a semelhança da morte e pelo que o Cristianismo tem, de fato, decidida preferência (12, 16). possa ser (atingido. atendido e) resolvido mediante atitudes, métodos [e ações] humanas no gigantismo da derrubada, [da revolução e da anarquia], essa titânica pretensão dos homens de [em si e por si mesmos] assegurarem a renovação e a transformação de valores. É preciso que se diga que o revolucionário em seu titanismo, justamente por estar, em sua origem, tão mais próximo da verdade, é tanto mais perigoso e mais ateu que o reacionário. Portanto, podemos dizer que, em qualquer hipótese, o reacionário representa o perigo minúsculo porém, seu irmão VERMELHO o maiúsculo. Por isso, detemo-nos no perigo grande aplicando nossos esforços, com toda solicitude, para trazer o revolucionário aos trilhos (como sacrifício especialmente digno!). “Não te deixes vencer do mal mas vence o mal com o bem”. Toda e qualquer “ordem existente” apresenta-nos a questão da vitória do bem sobre o mal muito mais profundamente do que o problema do “inimigo” (12, 19-20). Em que há de a ordem já estabelecida, já encontrada, impressionar aos que buscam a ordem divina, senão como a triunfante materialização da injustiça? O que é a ordem estabelecida senão a nova apologia e o refortalecimento da oposição da criatura ao Criador’? [O que fala autoridade constituída segundo o “presente século” senão buscar meios e métodos] para assegurar o curso normal do mundo contra a intranqüilidade que lhe acena de todos os lados ante a grande dubiedade de suas bases [e seus fundamentos]? (Acaso não são as “autoridades”) É uma conspiração dos excessivamente muitos contra o indivíduo que fala, — e só pode falar — de lá onde a pai. a sabedoria e o poder dos muitos chega ao fim?

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— Ordem! O que é a ordem estabelecida? — Significa que a criatura, de forma dissimulada [ou hipocritamente], entrou em paz consigo mesma; que o covarde pode, ainda uma vez, colocar-se em lugar seguro ante o mistério de sua existência; que o tolo (ou ingênuo) pode, ainda uma vez, mendigar a prorrogação da execução de sua sentença de morte por mais um quarto de hora. Não é a má qualidade da ordem estabelecida nem é a sua maior ou menor deterioração que tem originado as acusações que lhe são atiradas desde o Apocalipse de João até Nietzsche desde os anabatistas até aos anarquistas mas, é a própria existência dessa ordem. E por ela que alguns podem impor o seu direito superior a alguém; podem regular, praticamente, a totalidade da conduta do indivíduo e até dar-lhe atribuições específicas em determinadas faixas da vida. Para tanto, estribam-se em direitos fictícios que transformam em realidade, revestindo-os com nuvens de prepotência, aliás a única realidade em tais direitos; nessa prepotência passam a exigir obediência e até sacrifícios, como se fossem o próprio poder divino. Falam de maneira já previamente ajustada como se fora a expressão da vontade do próprio “UM” [do próprio Deus], que estivesse a manifestar-se pelos lábios dessa maioria. Todavia. (ainda que esses “alguns” representassem a mais absoluta maioria democrática — a de todos contra um!), essa pretensão de falar em nome da comunidade, a pretensão de que eventual pacto ou arranjo social, inteiramente fortuito, casual, seja aceito como esteio sólido e seguro na luta pela existência e seja exaltado como sendo a paz que todos almejam e que todos devem respeitar, é a lesão, a chaga, que qualquer ordem constituída, por melhor que seja, inflige na consciência sensível à justiça. Esta chaga é a transcendentalidade de toda “ordem” que seja essencialmente imanente: “SUMUM IUS, SUMA INIURIA”. Ainda que tal justiça tomasse a forma de teocracia, a forma de capacidade espiritual superior efetivada por alguma Igreja ideal (por exemplo, a Igreja de Calvino — [a Presbiteriana.] — que em apresentação melhorada fosse expandida em Igreja da Liga das Nações — [ou modernamente na Igreja das Nações Unidas.], da qual se acercassem e em que confiassem todos os povos da terra: até esta [aparentemente a] mais alta justiça, seria a mais alta injustiça. Também este sonho terminará, necessariamente, lá onde Satanás se aproxima de Jesus e lhe oferece os remos deste mundo; termina no Grande Inquisidor de Dostoiewsky. A criatura humana não tem o direito de ter direitos objetivos contra seu semelhante e quanto maior for a aparência da objetividade da qual ela se sabe cercar, tanto maior é a injustiça que ela inflige no “outro” porquanto este “outro” espera pela justiça daquele que é “UM”.

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Todavia, quando e onde a justiça de muitos — por maior que fosse o seu número — seria a justiça desse “UM”? Onde e quando não foi esse direito “dos muitos” obtido com subterfúgios ou, simplesmente, usurpado? Qual a legalidade que não seja ilegal em sua origem? Qual a autoridade que não estabelece essa sua autoridade, na tirania? Existem deficiências na ordem estabelecida que claramente indicam ser ela má e, no indomável impulso pela liberdade, bons e maus refugam as algemas que o “sistema”, quiçá com muito boas intenções, quer aplicar; de certa forma percebemos que as razões dos muitos são quiméricas e que este tolhimento que nos impõem não é justificável. O conhecimento do mal que existe na ordem estabelecida, do mal que subsiste nela e que ela sustenta, gera o revolucionário, a pessoa que pensa livrar-se do mal e se dispõe a combatê-lo e a extirpá-lo, isto é, dispõe-se a remover a situação existente que vê como sendo a corporificação da injustiça para, em seu lugar, erigir ordem nova e justa. É um plano, por si mesmo, convincente, ao qual dificilmente poderemos negar nossa colaboração, aliás, em coerência com nossa notória conduta anterior, quando nos foi difícil não dar largas à inimizade ao nosso inimigo ou, quando entramos em conflito com nosso semelhante (12, 19). Contudo, é precisamente ao revolucionário que precisa ser dito que, quando ele se entrega a essa cogitação ele está sendo “vencido pelo mal”. (Não se trata aqui do revolucionário que recorre ao mais do que proibido derramamento de sangue. Aliás, a atividade revolucionária não se inicia com a violência sanguinária mas pelos secretos e venenosos ressentimentos contra o sistema” existente que alguns tanto mais cultivam e saboreiam quanto mais abominam a violência!). O revolucionário se esquece de que ele não é o “UM”; ele se esquece de que ele não é o “sujeito” [o autor, o agente] dessa liberdade pela qual tanto anseia; ele não é o Cristo que se defronta com o inquisidor mas é o próprio inquisidor com quem Cristo se defronta. O revolucionário faz, também, uma reivindicação que lhe é defesa: faz da justiça (do direito) um objeto. Também ele, com “sua razão” passa por cima de seus semelhantes; também ele usurpa uma posição que não é dele, que não lhe deu respeito. Também ele visa a instalar uma legalidade que é ilegal em sua origem, uma autoridade que não tardará muito a revelar seu verdadeiro caráter tirano — conforme com terror o verificamos no bolchevismo e que poderíamos mostrar em acontecimentos muito mais espirituais — [por exemplo, no fanatismo da própria Igreja, tão bem exemplificado na “Grande Inquisição”].

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Qual o ser humano que teria [ou tem o direito de apresentar ou representar algo NOVO, novos tempos, — mundo novo ou até, algum “novo espírito”? Acaso as coisas novas não se originam das coisas existentes, na medida em que vão sendo armadas pelos homens? E essa “coisa nova” não passa a ser coisa já existente no mesmo instante em que é engendrada? Quem há que, ao criar o que é NOVO não esteja ele próprio (ele!) criando o MAL? Acaso a coisa antiga que ele considera como sendo o mal e quer substituir, não foi também inventada como coisa nova e, por isso mesmo, é ela o mal? O Revolucionário é mais “vencido pelo mal” do que o Conservador e isto porque, com sua negação, ele se coloca terrivelmente próximo de Deus. [Ele quer tomar o lugar de Deus, quer fazer a justiça por suas próprias mãos...]. Esta é a sua tragédia; o mal não é resposta [ou solução] para o mal. A consciência ferida pela ordem existente não se restabelece com a destruição dessa ordem; “Vence o mal com o bem!” O que mais pode significar e indicar esta possibilidade que nos resta [de vencer o mal com o bem] senão o fim, a supressão, de todo triunfo pessoal, quer seja na ordem estabelecida, quer seja na revolução? E de que forma haveria isto de se realizar senão em misteriosa abstenção — [em “não-agir”] justamente onde e quando, como seres humanos, sentimos o mais forte apelo à ação? O Revolucionário engana-se; a revolução que ele quer é a possibilidade impossível [para ele], pois é a implantação do Reino de Deus que se faz mediante o perdão dos pecados e a ressurreição dos mortos. Esta é a resposta à ofensa que caracteriza a ordem existente; [esta é] a verdadeira revolução e seu vencedor é Jesus Cristo! Todavia, o revolucionário faz outra revolução, [aquela em que só ele — aliás o próprio mal — pode ser vencedor!]. Ele faz a revolução segundo a alternativa [que lhe é] possível, a revolução do ódio, da insatisfação, do levante e da destruição. Esta revolução não é melhor, porém pior do que a satisfação, a saciedade, a segurança e a conformação que se lhe opõem na ordem estabelecida porque na prevalência desta Deus é melhor compreendido embora seja também pior seguido. O Revolucionário imagina a revolução que estabeleça a ordem verdadeira e faz a outra, que é a verdadeira reação. (Aliás, dá-se o mesmo, [MUTATIS MUTANDIS] com o legalista que, também ele vencido pelo mal imagina impor a legalidade da qual resulte a verdadeira revolução — [aquela da qual só Cristo é o vencedor] — no entanto instiga a outra preparando o caminho para a revolta do ódio e da destruição). Aquilo que o homem quer é sempre julgado por aquilo que ele faz (7, 15 e 9).

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Se o Revolucionário reconhecer este tribunal, então será arrancado das razões visíveis e tão bem fundamentadas de sua atividade revolucionária e será remetido à invisibilidade da obra divina. Porém de que modo há de ele, agora, demonstrar a favor da obra de Deus senão deixando morrer o revolucionário que nele há no mesmo ponto onde nasceu, isto é, quando tomou conhecimento [e se convenceu] do mal que existe no “sistema” existente’? Como poderia ele agir mais drasticamente do que voltando exatamente desse ponto à fonte original da “abstenção” — [do “não-agir”] — isto é, não mais alimentar rancores, não dar lugar a ira, não agredir, não destruir? Este retorno é a ética de VENCER O MAL COM O BEM. Este preceito não diz uma única palavra a favor da ordem existente porém diz um número infinito delas contra quem for seu inimigo. Deus quer ser reconhecido [e aceito] como o vencedor da injustiça da ordem existente: isto é o que a exortação significa e este é também o sentido do Capítulo 13 desta Epístola. “Toda pessoa se sujeite às presentes autoridades governamentais”. [Almeida escreve: Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores]. “Sujeitar-se” é conceito ético puramente negativo conforme, aliás, se pode sempre verificar na prática. Sujeitar-se significa, recuar, desviar, não se rebelar, não destruir. Aquele que se rebelou contra a ordem existente, que volte e não seja rebelde. — Por que não? — Porque essa luta em que o rebelde se envolve não resulta do conflito entre ele e a “autoridade governamental” mas é [a rigor], a luta entre o bem e o mal. Ora, mesmo a mais radical das revoluções apenas pode opor à ordem existente aquilo que já existe; (mas, se o que existe é mau, como pode a revolução avocar a si o direito de representar o “bem”, servindo-se do que é mau?) É preciso que se tenha sempre presente que toda revolução, por mais profunda e decisiva que seja — e isto se aplica também as revoluções chamadas “espirituais” ou “pacificas” — não passa de REVOLTA, [isto é, de movimento intestino de agitação e modificação das disposições “nacionais” usando os recursos humanos, materiais e quiçá intelectuais e morais disponíveis quer dizer, EXISTENTES]. (Se admitimos como certo, por ser lógico e natural, que toda “situação existente” tenha em si algum bem (por mínimo que seja) e, semelhantemente, toda “revolução”, traga em seu bojo alguma injustiça (ou algum mal — ainda que seja diminuto), então veremos logo que], a revolução vitoriosa dá vigor à situação anteriormente existente fazendo sobressair o que então havia de certo

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[e se enfraquece com seus próprios erros] sem tirar qualquer benefício das falhas da situação derrubada — [das quais é feita “tábua rasa” pois, “afinal”, foi por causa delas que se admitiu a revolução!]. É por isto que a capacidade de resistência [ou melhor, de sobrevivência] da situação deposta não se quebra com a vitória da revolução porém subsiste tomando novas formas e se tornando, assim, ainda mais perigosa [quiçá fomentando, em seu rancor, nova revolução ...]. Enquanto a “ordem deposta” tende a se reorganizar e fortalecer, a tendência da revolução segue em sentido contrário pois suas energias se diluem; [ante as tarefas que a nova situação lhe impõe o prestígio se desgasta no atrito constante dos interesses em choque] e a ação revolucionária se torna inócua. Embora, na prática, a revolução sempre se proponha a ser “o julgamento” da situação que ela combateu, na realidade ela jamais chega a essa situação como rebelde, pois no instante em que a rebelião vencer, o revoltoso muda de posição; deixa de ser rebelde para ser “ordem estabelecida”. (Lembremo-nos do que] a luta em que o rebelde imprudentemente se mete é o conflito entre a ordem divina e a ordem existente, [conflito esse do qual o revolucionário passa a participar “do lado de cá” a partir do momento em que a rebelião passar a dominar a situação]. Se o revolucionário “alçar as mãos, em ânimo tranqüilo, aos céus para trazer à terra os seus ETERNOS DIREITOS que estão desfraldados lá no alto, inalienáveis e intocáveis como as próprias estrelas”, (Schiller) então ele comprova com excelente propriedade que “o poder absoluto tem limites” todavia, o seu gesto confiante para os céus de maneira alguma fixará esse limite pois, ainda que pelo julgamento da História e segundo sua sentença [na temporalidade] o rebelde tiver absoluta e plena razão, ele esta absolutamente errado segundo o juízo de Deus. Isto se comprova pelos resultados [de todas revoluções de que a História dá notícia]: “A situação original, natural, antiga], volta sempre quando o homem se opõe a seu semelhante”. A interrogação que Deus apresenta à “ordem existente”, o seu julgamento e a sua sentença — [que podem dar a essa ordem o sentido da verdadeira revolução] — ficam necessariamente [prejudicados]. suspensos. [pospostos] quando os homens passam a agir no lugar de Deus (isto é, quando a Rebelião ou a Legalidade, cada uma a seu modo. quer mudar a situação existente, qual quer que seja a modalidade ou a organização em que subsista, procurando inverter sua qualificação. Todavia, somente a invisível ação que vem de Deus pode modificar — e efetivamente mudar — a qualificação dos indivíduos e das organizações. Por força dessa misteriosa operação divina aquilo que a iniciativa

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humana remodelar ou reformar será necessariamente desfeito para ser refeito por Deus de modo que perante ele toda qualificação que os homens derem às suas organizações será nula de direito e de fato e a situação retomará sempre a sua condição original. Para representar o que ocorre com essa mudança de qualificações vamos nos valer de uma analogia matemática, simples]. Sejam, a, b, c, d, ... a situação existente: Estado, Igreja, Direito, Sociedade, Família, etc., que, em sua totalidade, pode ser expressa pela soma (+ a + b + c + d + ...) A sua supressão pela ordem divina [ou a sua transformação], pode ser representada colocando-se o sinal negativo na frente do parêntese. - (+ a + b + c + d + ...) É evidente que a mais cabal das revoluções mesmo que seja a mais absolutamente radical em seu sentido histórico — [por exemplo as modernas revoluções culturais] —jamais pode ter o efeito abrangente e definitivo desse sinal negativo aposto ao parêntese, [pois não poderá modificar todas as coisas de forma definitiva e total], conforme é o caso do poder divino; [o que a revolução, talvez, possa fazer] será, quando muito, mudar as características peculiares de grupos isolados, o que poderíamos indicar matematicamente trocando os sinais individuais dos termos. - a, - b, - c, - d. - ... ora, se novamente aplicarmos o “operador” divino teremos - (- a, - b, - c, - d. - ...) isto é, estaremos novamente na situação original (+ a + b + c + d + ...) Portanto, podemos dizer que, assim como nesse polinômio o sinal negativo do parêntese recambia, de fato, os sinais de todos termos individuais às

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respectivas características primitivas, assim também... para nossa surpresa, a característica divina repõe a sociedade e seus componentes na sua qualidade natural. Em outras palavras: a posição ou a situação dos homens no seu relacionamento com Deus volta sempre a ser o que era antigamente independentemente das medidas, [reformas e transações] que os “revolucionários” tenham implantado [ou tentado implantar]. O Legalista comete logicamente, erro idêntico, dando conscientemente o sinal positivo a cada um dos termos individuais [e nesta operação consciente, pratica a usurpação que o abuso da presunção da legalidade envolve: o titanismo! É justamente nesta prática consciente que Deus é “pior seguido” embora “melhor compreendido”, conforme o Autor o diz na parte final da exegese de 12, 21]. O sinal negativo divino, aposto ao parêntese, é o juízo divino que cancela, suprime, elimina todo autoconvencimento, todo fundamentalismo e toda pretensão a “direitos humanos” [perante Deus]; [este sinal é o juízo de Deus que] extermina todos principados, poderes e potestades, como tais. “Que toda pessoa se sujeite!”, significa que cada pessoa deve considerar o quanto é falsa, em si mesma, a avaliação humana; não podemos aplicar o sinal negativo decisivo; apenas podemos tornar patente a nós mesmos o quanto este sinal aposto por Deus invalida aquilo que — [segundo nosso conceito humano] — consideramos como sendo positivo ou negativo. Precisamos admitir francamente que não podemos solapar mais energicamente a ordem existente do que submetendo-nos a ela sem quaisquer ilusões porquanto o Estado, a Igreja, o Direito, a Família, a Ciência “conveniente”, etc., vivem do entusiasmo [quiçá da “demagogia”] dos capelães que os alimentam com toda sorte de asneiras festivas, reabastecendo a si mesmos e a crendice do povo; tire-se-lhes a emoção e certamente morrerão à mingua! Todavia, o “contra-vapor” de uma revolução alimenta e dá novo sustento a essa emoção. A “NÃO-REVOLUÇAO” é a melhor preparação para a verdadeira revolução. todavia, isto não é uma receita: “submeter-se” é, em seu melhor sentido [humano], um procedimento inócuo. Somente à pessoa obediente a Deus pode ocorrer a idéia [dessa submissão] que somente pode ter sentido nessa obediência divina porque somente pode realmente sujeitar-se à autoridade quem se houver encontrado com Deus [e se houver sujeitado a ele!]; esse tal não pode deixar de dar lugar à justiça divina o que faz sem cogitar, — nem pública nem intimamente, — se esta justiça efetivamente se faz, ou não. Daí ocorre que “não há autoridade que não venha de Deus e os que presentemente a detêm, foram instalados por Deus”.

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À primeira vista pode parecer-nos que esta assertiva representa a confirmação da ordem existente o que, porém, estaria em conflito com a recomendação de que “toda pessoa se sujeite à autoridade”; [isto é, não podemos pretender deduzir dessa afirmação que a autoridade, em si mesma, (como pessoa) seja de origem divina] pois é claro que “Deus” não pode ter, aqui, o sentido de inequívoca realidade metafísica — o que seria uma idéia estranha à Epístola, introduzida subitamente em oposição ao sentido que lhe é atribuído cm todo restante da carta. [Aliás], de que valeria guardar absoluta fidelidade ao [que “nos parece” estar] expresso, segundo a letra do texto, se com isto faiscássemos o sentido [daquilo que realmente está escrito]? (O texto não diz que a autoridade é divina mas) a “autoridade” é de Deus; [e parte do sistema cuja existência Deus permite como existe, por exemplo, a Igreja, a Família; este Deus não toma formas humanas nem delega poderes a homem algum]; este Deus é o Senhor, o Deus desconhecido e recôndito, o Criador e o Redentor; é o Deus que elege e rejeita; a “autoridade” é dele, e o que existe foi por ele constituído. [O texto] significa que esta “grandeza” que designamos como “autoridade” — como qualquer outra grandeza humana, temporal, material, — é medida em Deus; Deus é o seu princípio e o seu fim, sua justificação e o seu juízo, seu SIM e seu NÃO. Se assumirmos a posição [de oposição à ordem constituída] conforme é a do revolucionário — (e esta é evidentemente a aproximação que a Epístola aos Romanos dá ao tema, conforme inequivocamente se vê pelo encadeamento do texto que cita a “autoridade constituída” imediatamente após mencionar o inimigo [12, 20] e também pela “introdução que faz do tema, dizendo “vencei o mal com o bem” [12, 21], — então chegaremos depressa à conclusão de que a “ordem existente” — a “autoridade” constituída] — é realmente má e somente má perante Deus, se nele ela for medida. Somente Deus é o grande sinal negativo que, antecedendo o parêntese, pode suprimir [e desmascarar] a falsa positividade dos termos que o polinômio aglomera; isto é absolutamente certo e os “idealistas”, [os “românticos”, no original] precisam saber que as atividades [ou as organizações] deste mundo só podem ter características positivas genuínas se forem transformadas Pelo grande operador “negativo” divino. De nossa parte não nos é lícito tomar posse do padrão divino e passar a agir como se Deus estivesse operando por nosso intermédio. Por isso, a revolução precisa renunciar também à “flor azul” do romantismo pois com relação a Deus o mal não pode servir de motivo para nossa queixa (como não pode, o bem, ser motivo para nossa glorificação!).

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Como reação e resposta ao mal que encontramos na ordem vigente e que tão diretamente nos atinge e fere, podemos apenas curvar-nos perante este Deus que é tão maravilhosamente extraordinário e superior a todos os deuses porquanto, se Deus for o juiz, quem contenderá com ele? E sendo assim, onde não se fará justiça? Onde deixará o mal de testificar plenamente o BEM? Onde e quando deixaria a realidade — [a situação existente e a autoridade constituída] de ser referência plena ao que, originalmente, é imaterial? Como não haveria de o mundo existente ser plena parábola do não existente. [do mundo vindouro]? “Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente mas por causa daquele que a sujeitou” (8, 20). “O existente cai e desaparece como coisa existente”. Este aforismo é verdadeiro e o revolucionário parte dessa premissa, todavia ele deve [ou deveria] lembrar-se de que é perante Deus que a situação existente desaparece e cai. Se [à primeira vista] é certo que essa verdade justifica o sentimento de revolta, por Outro lado [e em seu significado mais profundo] ela conclama o revolucionário a abster-se de incitar [e emitir] julgamento; convida-o a não tomar o combate em suas mãos mas ater-se ao fato de que o mal testifica o BEM; que na verdade como sistema estabelecido, este está necessariamente em oposição à ordem, da qual dá testemunho e a qual representa, não voluntariamente porém, como sombra projetada, como silhueta, isto é, [uma realidade] “estabelecida por Deus” — por Deus, em sua qualidade de Todo-poderoso — que estabeleceu a autoridade existente nesta sua condição determinada e definida que “agora” se torna problema para ele, o rebelde. O fato de a ordem existente ter sido [e ser] instituída por Deus, é decisivo para que a rebelião nos seja mais desvantajosa do que a sujeição. Na melhor das hipóteses, este fato tira-nos o vapor, a emoção, o entusiasmo, a “vocação” para apelar às “coisas que são do alto”, isto é, [a realidade de que a ordem existente foi instituída por Deus]despoja-nos de tudo quanto nos e indispensável para “levantarmos as mãos confiantes aos céus”: “A mim pertence a vingança; eu retribuirei.” (12, 19). Nenhuma outra condição nos é imposta senão a de que não nos compete providenciar (ou fazer) justiça; [em outras palavras], a característica negativa [do nosso exemplo matemático], aposta por Deus ao parêntese que aglomera as parcelas diversas da sociedade humana, isto é, da ordem existente, não pode ser atribuída por nós mediante qualificações antecipadas, [gerais ou parciais] que nos pareçam adequadas [porque assim procedendo estaremos usurpando a prerrogativa divina], [As “autoridades existentes”] que acaso se sentirem fortalecidas com o que acabamos de dizer lembrem-se que a “revolução instalada” também é o mal que deve testificar o BEM para que também ela, [por seus representantes

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agora na qualidade de autoridade constituída] continue sem justificação e sem romantismo, quiçá sem a auréola do idealismo e já despojada das pretensões do titanismo] se transforme [ou se converta] e... deixe de ser autoridade. Quem se subleva contra as autoridades se opõe à disposição divina. Tais insubordinados, porém. trazem justiça sobre si mesmos. [Almeida escreve: “De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação”]. A revolução está sujeita a um prejulgamento, o que não acontece com a “ordem existente”. Este prejulgamento se origina do fato de que a verdadeira revolução vem de Deus e não pela rebelião dos homens; ao rebelde, a “autoridade” opõe o direito soberano do levante divino; é justamente esta autoridade constituída que ensina ao rebelde que o objetivo (o sentido) do levante divino é a ordem e não a desordem; é por meio dela que o rebelde precisa descobrir que a “descoberta” (o encontro] do UM, no próximo, não se consegue de maneira alguma por meio de atitudes e providências humanas; é pela autoridade constituída que o revolucionário deve [ser levado a] praticar a humildade sem a qual a sua noção do mal, na ordem existente, é vã concocção. Se o rebelde agir de alguma outra forma, se ele se revoltar contra a autoridade como se ele já houvesse descoberto o UM no seu próximo, [quiçá como se a defesa dos coitados e oprimidos fosse agora dever e privilegio dele], como se ele fosse algo como o introdutor de “nova criatura” [no palco da vivência humana], então ele não somente ignora [e desrespeita] a autoridade como estabelecida por Deus, mas desconsidera também o quanto essa autoridade está justificada perante ele desde o instante em que ele se arrogou o direito de rebelar-se. O direito a empunhar a espada da justiça a que se arvora o rebelde não se justifica — e nem o ato é justificável — pelo fato de a autoridade o enfrentar com essa espada; ela é foro da autoridade mas não o direito do rebelde. Por maior que fosse [ou que seja] a razão do rebelde, ele não a tem, objetivamente; no instante em que ele vai além do protesto é preciso que se proteste contra ele: “naquilo que julgas aos outros a ti mesmo te condenas, pois praticas as próprias coisas que condenas”. (12, 1). Entre os homens, a atividade do revoltoso é possível — (tão possível, por exemplo, como a da Guarda Branca.) — mas absolutamente impossível perante Deus, — (como também o é, a dessa Guarda). [A tradução inglesa explica a origem da referência à “Guarda Branca”, que o Autor faz. Seria a “contra-revolução” russa isto é, a revolução “branca” contra a “vermelha” que se instalou vitoriosa. Em outras palavras, parece-nos que Barth quer deixar bem claro que não fala desta ou daquela revolução, mas de TODA e QUALQUER rebelião contra a ordem constituída; é por isto que o

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Autor deixa bem patente que a revolução, uma vez implantada, uma vez vitoriosa, passa a ser, IPSO FACTO, ordem estabelecida]. Por trás da ordem existente — (que também pode ser a ordem recéminstalada) — está Deus, ele, o Juiz e a Justiça! A oposição — (e existe também oposição da direita.), é a oposição contra Deus. Vencido pelo mal o homem se entrega à esfera onde o mal passa a ser o tribunal do próprio mal e então, já não pode, sequer, admirar-se de seu destino. “Porque os que dispõem do poder não representam qualquer susto para os que praticam o bem mas, sim, para os que fazem o mal. Portanto, se não queres temer a autoridade, faze o bem e encontrarás até o reconhecimento dela porque ela é serva de Deus para teu bem”. O revolucionário [ou a revolta] toma alento quando a pessoa sente ferida sua consciência de justiça; quando a pressão que “os muitos”, — o Estado, a Igreja, a Sociedade, — exercem sobre os indivíduos, se lhe afigura como sendo o MAL; quando [no indivíduo ou em parcela maior ou menor da sociedade], surge o horror ante esse super-poder da justiça que [sempre] leva a palma da vitória, na ordem existente. Todavia, até que ponto se justifica esse horror? Evidentemente não o é na medida em que nosso procedimento está [ou estiver] no mesmo plano de ação daqueles que enfeixam o poder em suas mãos, daqueles que estão “exercendo a justiça” mas, sê-lo-á na medida em que opusermos ao mal o próprio mal abrigado em nossos pensamentos, palavras e atos: quando opusermos a quem designamos como autoridade, aquilo que classificamos como liberdade; quando opusermos à legalidade, a ilegalidade; à ordem relativa, a relativa desordem; ao antiquado, a novidade; quando à dureza respondermos com dureza! Nesta selva humana, a única que conhecemos e em que atacamos e ferimos nossos semelhantes, precisamos estar prontos a receber golpes e a sermos atacados e feridos; nela se sucedem as pressões e contrapressões quais as espirais de uma rosca sem fim. E nessa arena que “os que detém o poder” precisam suscitar o “horror” do revolucionário, dar motivo perene ao desapontamento; à irritação, à preocupação, ao temor, ao amargor e à resistência — [porquanto o revolucionário representa “tudo isto” à autoridade]. Este horror é compreensível, pois ele nada mais é do que o temor que a criatura sente ante sua própria maldade, que envolve e abrange toda sua conduta: é o medo de sua própria existência. [Em outras palavras, este horror] é o pavor do juízo divino sob qual está toda criatura, tanto na ordem existente como na rebelião que contra ela se levanta. Este horror [ou pavor] é o resultado do mau procedimento humano posto sob a luz do julgamento divino; e qual seria a conduta humana que não fosse [ou não seja] má?

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Todavia, é para isto que a autoridade foi “instituída”. É por isto que ela não representa qualquer “susto” para quem procede bem. E como poderia ser diferente? As autoridades não tem poder onde se faz o bem. O pensamento é livre mas a liberdade da obra invisível do UM em nós todos é totalmente diferente; nesta liberdade a criatura [a saber, a “nova criatura”] não se rebela pois, contra o que se revoltaria ela? Ela não pratica o mal [“simplesmente”] porque não é subjugada por ele; não é atacável porque não ataca; não é vulnerável porque não fere. Ela não está lá onde o mal passa a ser o tribunal do próprio mal e por isto não está sujeita à fatalidade, pois já foi julgada por Deus e justificada por ele! O que seria a boa obra [dessa nova criatura] senão esta sua permanência no campo eterno da justiça e da justificação? No seu modo de ver, o BEM é a supressão da criatura “conforme o presente século”; é a sua fundamentação em Deus; é a abstenção em todas as ações [de protesto ou de aplicação da justiça a que o “filho deste século” seja instigado por seu romantismo — seu idealismo—, seu zelo ou seu sentimento de justiça, renúncia essa] pela qual toda conduta e obra se volta à sua origem [em Deus]. Este “bom procedimento”, que jamais se materializa, não representa qualquer susto [ou motivo de receio], nem às autoridades nem à rebelião [ou à anarquia!]; antes pelo contrário: enquanto a pessoa fizer o bem está ela livre das convulsões que, inevitavelmente, assediam aos que se envolvem nessa luta de Prometeu, contra (ou a favor!) da ordem existente. [Quem pratica o BEM], verdadeiramente antevê o final [da providência divina], além das coisas antepenúltimas que pode [ou poderia] fazer, agindo na esfera do mal e assim, se torna cada vez menos visível, menos audível, de menor dimensão. [menos perceptível nesse ambiente do qual se afasta]: ele se liberta de todas emoções, de todas extroversões e de toda sua inquebrantabilidade — [quiçá de toda dureza de sua cerviz]. Quem assim procede], já não é mais um deus iracundo em luta com outros deuses mas, torna-se imparcial e encontra até o reconhecimento da autoridade que, sem qualquer suspeita [de, também ela, não ser aceitai, se compraz com o cidadão notavelmente pacífico conforme lhe parece ser a criatura cujo comportamento, na realidade, significa apenas a aceitação da justiça de Deus — pela qual [como homem deste século] tanto tem (ou teria) a opor a essa autoridade — e que, no entanto, prefere silenciar [para dar lugar à ira de Deus!]. É por isto que semelhante indivíduo será de fato um “bom cidadão” (ainda que por ironia!), pois renuncia a toda parcialidade [todo partidarismo] e todo romantismo [ou, talvez quixotismo]; tendo ficado, ele mesmo, liberto dos ídolos [políticos], tal cidadão já não precisa persistir no protesto contra eles: não precisa preocupar-se permanentemente com a evidente insuficiência das

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soluções atuais, da ordem estabelecida e dos meios que a Sociedade (ou a nação ou o Estado) adota. [Quem pratica o bem] não ignora que a sombra de julgamento que por toda parte vê, é a sombra da retidão; tal pessoa também não deixa de perceber o verdadeiro sentido de testemunho e de parábola que caracteriza todas tentativas de purificar a conduta humana. Contudo, essas tentativas são quase um “PARE!”, bradado ao despotismo humano que, no mínimo, lembra ao sacrifício racional que devemos oferecer a Deus com nossos corpos físicos — (12, 1). [Nessas tentativas de corrigir a conduta humana] pede-se a obediência que tem alguma semelhança com a graça divina. [Nessas tentativas] parece que, de certa forma, a soberania do “UM” se contrapõe ao Eros [à paixão] do indivíduo e a majestade da comunidade se contrapõe à destruição e à convulsão das massas; à luta geral pela sobrevivência se contrapõe a sublimidade da paz! [Quem se sujeita à autoridade] sabe que são extremamente duvidosas todas tentativas [de consertar a sociedade ou de aperfeiçoar a ordem existente, pela revolução e] disto não tem a mínima ilusão, ainda que “algumas delas quase funcionem”. Quem se sujeita às autoridades jamais verá nessas tentativas qualquer degrau de ascensão [ao bem] antes perseverará [e persistirá] em ver o bem exclusivamente na incomensurável superioridade de Deus e, — por maiores que sejam os sucessos dessas tentativas, — ele verá sempre a negatividade que representam, não necessariamente naquilo que realizam [ou deixam de realizar] mas naquilo que se propõem a fazer. Todavia, tal pessoa terá, em tudo isso, a paciência, a visão e o bom senso — (que semelhantes situações permitem, ou melhor, exigem) — de ver o BEM entre o mal e de reconhecer nessas tentativas a silhueta da configuração de uma situação superior que se lhe opõe, meditando seriamente nisto e até participando desse protesto como prática e demonstração que não se pode deixar de fazer. Assim é que a “autoridade constituída [modernamente, talvez, pudéssemos dizer “o sistema”] é “ministro de Deus”. (Todavia, para aqueles que essa autoridade não inquieta, [não incomoda], não disciplina, [para esses tais] o “ministro de Deus” passa a ser a Revolução). A “autoridade constituída” á ministro de Deus no sentido de que, uma vez reconhecida a negatividade de todas as coisas, estas passam a refletir o aspecto positivo da realidade imaterial, isto é, de Deus. Então as convulsões revolucionárias podem ceder o lugar às meditações calmas sobre a Justiça e a injustiça. Dizemos “calmas” porque as afirmações e queixas [feitas contra o poder constituído] já não têm razão de ser quando analisamos conscientemente as razões que estão por trás da luta do BEM contra o MAL. O universalismo e

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o humanitarismo honestos [sérios], sabem que nessa luta não se trata do combate entre o Reino de Deus e o Anticristo, — [pois sabem que] sempre onde [e quando] os homens interagem com seus semelhantes ou se opõem a eles, — seja no Estado, na Igreja ou na Sociedade, — certamente eles se enfrentarão [uns com os outros] em seu peculiar tabuleiro de xadrez. (Assim, por exemplo, a política só é possível [quando a pessoa que se dedicar a ela a considerar] como jogo de oposições, quando for evidente que não se trata — nem é possível que se tratasse — de direitos objetivos, quando desaparece o tom absoluto das teses e contrateses para dar lugar a um tom “relativo-moderado” ou, quiçá, algo como “relativo-radical”, sem tomar em consideração as reais possibilidades [e necessidades] humanas). Contudo, não esqueçamos, nem por um só instante, que o BEM não é “uma coisa” como, por exemplo, a “moderação”, que a criatura pudesse transformar em BEM; o “bem é para nos, sempre e de novo, a indagação que a conscientização crítica e decisiva daquilo que Deus [realmente] é para nós, torna inevitável; é a conscientização de que a ‘sujeição’ somente contribui para nosso bem na medida em que ela liberta a comunidade de todo romantismo afastando a idéia de que Deus tem assento na ordem rotineira existente. [Essa indagação, na realidade, jamais será respondida — segundo este mundo — e] a pergunta sobre o que é o bom procedimento continua sempre em aberto.” [A tradução inglesa escreve: “Para nós o bem há de, sempre, implicar em indagação. Sujeição, portanto, somente serve ao bem na medida em que liberta a sociedade humana do romantismo e separa Deus da vida rotineira; somente na medida em que deixa ‘o bem’ como ‘questão aberta’ mas, de modo muito vívido, expõe a grande negação e torna inevitável a lembrança crítica”]. (Por outro lado é claro que, muito longe de aqui encontrarem sua confirmação, os revolucionários devem tomar a ocasião para meditar sobre o que aqui foi dito, confrontando tudo com os seus próprios pontos de vista). “Se, porém, fizeres o mal, então teme, pois não traz a espada para aparentar. Ela [a autoridade] é serva de Deus para dar cumprimento da ira de Deus contra aqueles que promovem o mal”. Podemos ignorar a advertência contra a prática do mal e não nos enganaremos se admitirmos que constantemente a ignoramos, pois todo passo que neste mundo dermos está sob a sombra do mal, até mesmo a objetividade [ou a seriedade] com que acaso praticamos o bem no meio do mal ou então, até no paciente trabalho de reforma a que porventura nos dediquemos, abstendo-nos da revolução e nos retraindo; nada disso nos livrará da sombra do mal pois a totalidade de nossa conduta se completa na aceitação da ordem existente ou na sua rejeição e de uma ou outra forma, já estamos em erro.

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Na realidade, em nossa abstenção somente podemos ter razão, com relação a Deus. Apenas nos resta constatar o que, de fato, todos experimentamos neste reino de sombras e ouvir a advertência para que não nos adentremos por demais nesse reino. Devemos temer o reino das sombras do mal; nele encontraremos inimigos, opositores, invejosos, amigos falsos, companheiros incertos, observadores maldosos, que se alegrarão com nossos infortúnios. Nesse reino, esperam-nos os contragolpes, as paralisações, os obstáculos, os logros, os insucessos e as derrotas em seqüência que bem podemos imaginar; nesse reino existem julgamentos, conflitos, erros, confusões e envolvimentos trágicos de toda sorte. Nesse flutuador não se pode aplicar nenhum empuxo que não gere perigoso contraempuxo; não há passo [nem iniciativa] que, de alguma forma, não se volte contra nós. Não há qualquer ação possível que não nos atraiçoe, em si mesma. Estamos [inquestionavelmente] no mesmo plano da situação existente e, com ela, estamos sujeitos ao mesmo julgamento (e isto quer nosso relacionamento com ela seja amistoso ou hostil)! Temos o nosso lugar fixado, algures, nesse plano, — desde o extremo da rebelião ao outro extremo da aprovação e precisamos confessar, irremediavelmente, que todas posições que nele pudermos [ou quisermos] tomar, são apenas relativas: quer assaltemos, ataquemos ou façamos a defesa; quer construamos ou derribemos; quer lutemos ou façamos paz; quer confirmemos ou neguemos, sempre nos depararemos com um PARE! derradeiro, um último perigo ameaçador, um pesado castigo final,... por sermos criaturas humanas! Deus na verdade, responde aos homens à altura de suas transgressões; (e quando deixamos de ser transgressores?). A transgressão dos anarquistas ele responde com a “espada da autoridade” e à transgressão dos legalistas com a “espada da revolução”. Todavia, com temor e tremor, devemos ver no fado de uns e outros, o nosso próprio destino pois, de qualquer forma, a ira de Deus se estende plenamente sobre todos nós. De qualquer maneira, a espada foi desembainhada contra nós todos, “não para aparentar” somente, porém para nos golpear. De uma ou outra forma, [de uma ou outra parte material], todos somos feridos, todos nos despedaçamos em nossas tentativas de erigir ou de destruir as grandes “possibilidades” deste mundo, para nos justificarmos. [É desta justificação] que tratamos, no mundo; todavia é dela que não podemos, não devemos tratar. ”Daí a obrigação de nos sujeitarmos — não apenas por causa da ira mas, — por causa da consciência.” Experimentar a ira de Deus, apenas como sua ira, seria a morte eterna; a consciência, porém, entende o PARE, ordenado à espada sacada contra nós e reconhece a Deus na sua ira.

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[A consciência] impede-nos de considerar o mal que nos atinge como repressão ou destino e nos lembra de que nós mesmos praticamos o mal; ela reconhece a justiça da mão de Deus que nos alcança em nosso trágico destino e percebe o “ministério” que o mal nos deve prestar, “para nosso bem”. A consciência nos esclarece sobre o julgamento a que estamos sujeitos, não para nossa vantagem mas para nossa salvação. A consciência transforma o mal que nos ataca não em motivo (fundamento ou causa) de nossa justificação, mas em esperança. A consciência não nos dá licença a participar de novos levantes quando, amargurados. saímos das refregas, durezas e embates; porém exige a supressão do funesto encadeamento do mal com o mal. A consciência tira-nos para fora do ir e vir das atividades e do sofrimento humanos e nos reconduz à origem, a Deus! “Daí a obrigação de nos sujeitarmos”. A revolução é a grande possibilidade que temos de “querer fazer” o que Deus faz, e isto é impossível. Precisamos descer das “alturas revolucionárias”; precisamos nos compenetrar de que a “nossa” novidade não é novidade. E necessário que voltemos àquele ponto de origem da nossa rebelião, onde pela primeira vez reconhecemos o mal jacente na situação existente, antes de haver em nós nascido o revolucionário, antes de haver surgido o procedimento [e até antes de nos haver ocorrido] o pensamento rebelde. Então [ainda] o nosso espanto era inocente e nos uníamos a Deus em nosso horror ante o lamento da criatura; então também sabíamos infinitamente mais — muito melhor e mais profundamente, — a respeito da sua esperança. Todavia, esse “então” refere-se ao instante da mais pura introspecção na situação do homem com relação a Deus e se confunde com a “prática do bem”. Esse “instante” jamais foi um momento da temporalidade; semelhantemente, a sujeição não é um ato mas um reconhecimento de que não temos razão; não a temos, especialmente quando [julgamos que] a temos. Nesse reconhecimento se confirma que temos uma esperança: a esperança do mundo vindouro de Deus que será a um só tempo a Revolução e a Ordem. “É por isso que pagais os impostos”. É uma conclusão notável! Aí estais agindo, de certa forma, livremente: pagais os vossos impostos ao Estado. Deveis saber o que estais fazendo. Tratase de ação plena de omissão, plena de reconhecimento, plena de esperança. “São sacerdotes de Deus, investidos para esse único fim”. — Os detentores do poder, as autoridades, os representantes oficiais da situação existente — são eles sacerdotes de Deus?! — Sim, exatamente. Em todo seu ser, em toda sua prepotência. na totalidade de sua peculiar autojustificação, eles proclamam mui altamente uma única coisa: a injustiça dos homens e o Reino de Deus, como o alvo proposto.

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Acaso quereis destruir esta ordem estabelecida que fala tão eloqüentemente de outra ordem, totalmente diferente? [Evidentemente] NÃO, porém: “Pagai a todos o que deverdes. A quem imposto, imposto; a quem direitos alfandegários, alfândega; a quem temor, temor; a quem honra, honra.” É exigência banal e destituída de qualquer interesse: fazei aquilo que, de qualquer maneira, já fazeis! [Essa exigência] deixa-nos “insatisfeitos” e novamente às voltas com nossas indagações sobre os direitos da ordem existente e da revolução. Talvez precise ser assim. Além de todas coisas interessantes e grandiosas que poderíamos realizar, espera-nos a grande possibilidade negativa de Deus. Talvez na prática (naquilo que sabemos) não possamos fazer melhor demonstração a favor [daquilo que devemos fazer] do que fazendo aquilo que, naturalmente, fazemos mesmo! Comentários: 12, 21 a 13, 7 1. Barth afirma a certa altura de suas considerações em torno de 12, 21 que não há autoridade que não se estabeleça (e se firme) pela tirania. Pode parecer-nos não ser assim nas adiantadas democracias do mundo, onde a “lei das selvas” parece ter sido superada; onde sequer se admite que as nações sejam invadidas por seus vizinhos; onde o apossamento do governo por meios violentos seria um anacronismo: onde eleições facciosas ou “pré-preparadas” parecem ser impossíveis. Entendemos, por convenção, que não é tirana a autoridade que pauta seus atos na conformidade de leis sancionadas pela vontade soberana do povo. Todavia, só há uma lei que não é tirana porque se baseia no amor: “Amarás ao Senhor teu Deus sobre todas as coisas, e ao teu próximo como a ti mesmo!” Qual o Estado que sequer tentou aplicar essa lei? Qual a autoridade que já cogitou de se fazer respeitada e obedecida, recorrendo à força deste conceito ético? Parece, portanto, correta a insinuação do Autor: ”Qual a autoridade que não estabelece essa sua autoridade, na tirania?” 2. “O revolucionário não é aquele que tão terrivelmente olha por seus olhos.” Parece-nos que esta maneira de dizer se relaciona (e tem sua origem). com certa maneira de falar, na língua original. Creio que o Autor quer dizer que o revolucionário imagina um Deus vingador e feroz que deve ver o mundo conforme ele — esse revolucionário — sinceramente acha que o mundo deve ser visto: no entanto, o “verdadeiro” revolucionário vê o mundo com amor.

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Aliás, essa interpretação se impõe pelo paralelismo feito com “O Grande Inquisidor”. 3. Barth procura demonstrar que, ao dizer que “não há autoridade que não venha de Deus”, Paulo não quis afirmar que a autoridade está revestida de divindade (conforme se consideravam não poucas “casas reais” da época e, freqüentemente, os próprios Cezares romanos). O Autor se esforçou para demonstrar que a autoridade não deve ser idolatrada mas respeitada e o resultado de suas elucubrações, que procuramos expor com a fidelidade que nos foi possível, pode ser apreciado e julgado pelo leitor. No entanto, parece-me que o problema é simples e claro. Não seria o grande demolidor da idolatria que iria criar o ídolo “autoridade”. Paulo não escreveu, “a quem culto, culto — mas, a quem obediência, obediência. Existissem homens dignos desse endeusamento, outros haveria que mais o mereceriam pois foram depositários da lei, das promessas e das alianças e de entre eles veio o próprio Cristo na sua revelação humana. Porém para Paulo, só o Deus desconhecido, é Deus, e Jesus Cristo o unigênito Filho de Deus é Emanuel” — Deus conosco! E por isto, e somente por isto, que não valeria a pena tentar “ser fiel” a uma suposta interpretação “literal” do texto. contradizendo todo ensinamento bíblico.

A GRANDE POSSIBILIDADE POSITIVA (13, 8-14,0) Nesta porção de sua exegese do capitulo XIII o Autor aborda novamente o problema da ética cristã que o mundo rejeita, sintetizando todos preceitos contidos nos versículos 9 a 15 do capítulo 12, neste segundo grande mandamento: “AMARÁS A TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO”. Todavia, o faz analisando a oportunidade dos tempos, dando ao “Grande Dia do Senhor” interpretação possivelmente chocante a não poucos. — O que permanece e o que podemos concluir depois de devidamente escrutinadas as considerações de Barth? — Respondemos: o “Grande Dia” vem e não falha; esteve, está e estará sempre bem próximo de nós; mais próximo hoje do que ontem, quando nos convertemos. Não podemos dizer quando vem, como não podemos dizer quando nossa fé nasceu, porque a fé não é temporalidade, não é coisa ou matéria, mas graça espiritual divina que sempre existiu e existirá; é dom do Espírito Santo e não a podemos identificar nem situar no tempo e no espaço. Todavia,

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sabemos “em quem temos crido!” Quando? Acaso foi no caminho de Damasco? Foi na casa de “um certo Judas?” Foi no ministério de Ananias? Foi no apedrejamento de Estevão ou, quem sabe, aos pés de Gamaliel? Sim, acaso foi naquele transe amargo ou, nesta experiência gloriosa? Foi na oração fervorosa da mãe crente ou talvez, na sábia aula da Escola Dominical? Foi aquele sermão inspirado, aquele hino ou aquela passagem? — OBRA E GRAÇA do Espírito Santo, que somente Deus conhece; Assim é e será o Grande Dia do Senhor — “EIS QUE VEM COM AS NUVENS!” Quando? Só Deus o sabe. O que nos importa é não recalcitrar. O que sabemos é que AGORA é o tempo aceitável: “Eis que estou à porta e bato” Vejamos o que Barth diz. Vs. 8 a 14 A ninguém devais coisa alguma, excepto o amor mútuo! Porquanto quem amar seu semelhante cumpriu a lei. Por isso os mandamentos: “Não adulterarás.” “Não matarás.”” Não furtarás!” — e quaisquer outros mandamentos que existirem, culminam nestas palavras: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo!” O amor não causa mal ao próximo; portanto o amor é o cumprimento da lei. Fazei isto reconhecendo o momento presente; chegou a hora para acordar do sono porquanto agora a nossa salvação está mais perto (de nós) do que quando nos tornamos crentes. A noite avançou e o raiar do novo dia está chegando; deixemos pois de lado as obras das trevas e revistamo-nos com as armas da luz. Andemos com continência, como se já fora dia: nada de orgias e bebedeiras! Nada de lascívia e impudicícia! Nada de brigas e contendas! Antes imitai ao Nosso Senhor Jesus Cristo e não segui a tendência da carne para satisfação de suas cobiças. A ninguém devais coisa alguma, excepto o amor mútuo”. Não ficar devendo! [Antes do prosseguimento com o texto original, procuremos entender a que se refere o Apóstolo quando recomenda aos cristãos de Roma que nada “fiquem devendo” a quem quer que seja. Seriam dúvidas financeiras? Seriam salários retidos ou mercadorias compradas a crédito, ainda não pagas? Seria bastante ilógico e até relativamente indigno se aqui se tratasse de contas não saldadas que somente seriam dolosas se a falta de pagamento tivesse origem em má fé ou desídia do devedor; e sobre isto Paulo já estabeleceu doutrina exortando seus leitores a pagar o que for de direito a quem de direito, (13, 7). Aqui, porém, trata-se de um problema ético que se contrapõe ao AMOR; a dívida não é financeira mas é questão de retribuição. O Autor parte direta-

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mente para a análise sem entrar em qualquer cogitação sobre este aspecto do assunto, porque na língua alemã o trecho parece não deixar margem a dúvidas: “Não ficar devendo” é expressão idiomática alemã que significa “responder a cada agressão com reação igual e contrária”; significa aquilo que, entre nós, mais vulgarmente se traduz pela expressão “responder à altura” ou, “dar o troco na hora” ou ainda “não levar desaforo para casa”. Conseqüentemente, “ficar devendo” significa que a resposta não pôde ser dada na ocasião da ofensa e pretendemos dá-la quando a oportunidade se apresentar; é o equivalente a “deixe estar, que você me paga...” O que Paulo está dizendo é que não devemos cultivar a vingança, o ódio, a raiva, a ira; não devemos ameaçar nem “respirar ameaças”; nada devemos retribuir senão o amor mútuo. Repetimos pois: vejamos o que Barth tem a dizer.] Podemos expressar isto de outra forma, dizendo: Não resistais. Não busqueis a decisão no terreiro do mal, pela negação (ou renegação.). Não entreis em transgressão! Este é o sentido de todas aquelas estranhas possibilidades de “não-agir” que designamos como “possibilidades negativas” (12, 16-20) e que, finalmente, reunimos como a “Grande Possibilidade Negativa”. (12, 2 1-13, 7). EXCEPTO quer dizer que volvamos “meia-volta”; abramos uma brecha em nossa muralha e, evidentemente, saiamos da demonstração pela abstenção e enveredemos na demonstração pela AÇÃO; voltemos às “possibilidades POSITIVAS” (12, 9-15): EXCEPTO o amor mútuo! O AMOR, devemos retribuir a TODOS. Em hipótese alguma nos é permitido alegar que não praticamos o amor mútuo porque vivemos à sombra do Reino do Mal dizendo que, por isso, somente podemos testificar o mundo vindouro pelo nosso retraimento. O amor mútuo deve e precisa ser praticado neste mundo sombrio porquanto este amor — [ÁGAPE, na terminologia do Autor em outra passagem] não está sob a lei do mal. O protesto contra este mundo deve ser levantado pela prática do “amor mútuo”; portanto deve ser apresentado e não abandonado. Lembremo-nos bem: procedimento ético — positivo é aquele em que não nos conformamos com a condição do mundo presente (12, 2). (“Ética positiva consiste em querer fazer aquilo que tem conotação negativa para a condição existente no mundo em que vivemos e não consta de seu programa ‘lança o seu protesto sobre o grande erro”; e... “somente pode ser encontrada naquilo que Deus quer e faz!” [12, 9-IS]. É nesta sua forma totalmente [imaterial], invisível, que a ética positiva testifica a originalidade de Deus [e de sua manifestação que, a nós, parece tão estranha].

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Designamos o AMOR como a “Grande Possibilidade Positiva” com o mesmo fundamento pelo qual designamos a SUJEIÇÃO como a “Grande Possibilidade Negativa”. Agora, também, não nos referimos a atos isolados mas ao conjunto de todas as possibilidades éticas que (como atos de protesto!) possam ser consideradas positivas [dentro de nossa definição]. Trata-se pois, novamente, da atitude ética em seu sentido total. Designamos o AMOR como a “Grande Possibilidade POSITIVA” porque nele o “sentido revolucionário” vem à luz; porque no AMOR [mútuo] dáse, realmente, a negação e a transgressão da ordem existente. E esse amor que, definitivamente, tira a razão [isto é, a justificação] do reacionário, a despeito da falta de razão [da atitude injustificável] do revolucionário e isto porque se tivermos amor mútuo não podemos querer conservar a situação existente conforme está porquanto, amando-nos mutuamente, praticamos a novidade ética que destrói a situação antiga. Portanto, agora trataremos dessa brecha na incompreensível muralha do “não-agir”, isto é, falaremos agora dessa coisa ainda mais incompreensível: a obra do amor. “Quem amar a seu semelhante cumpriu a lei”. No ápice de nosso arrazoado sobre o relacionamento da criatura com o seu Criador, confrontamo-nos com o conceito altamente enigmático do AMOR— (5, 5; 8, 28, etc., comparando também com 12, 9). Encontramos esse conceito exatamente em oposição à possibilidade real desse relacionamento ou, pelo menos, conforme o imaginamos; portanto, o encontramos exatamente do “outro lado” da “lei” e da religião — isto é, — [não exatamente em oposição mas] além de todas exigências que uma e outra impõem ao nosso modo de pensar e nosso querer. Encontramos o “conceito do amor” como o invisível ponto de referência do mais alto anseio humano e que, por isso, é também o ponto incisivo da inversão do sentido de nossa vida — [quiçá de nossa conversão]. Ao definirmos o conceito do AMOR dissemos que ele não é produto de pensamento ou de ato humano mas é, por assim dizer, apenas aquela pressuposição psicológica, aquele derramamento do Espírito Santo (5, 5) que tomamos como realidade descritiva em contraposição à problemática da existência. O amor é a realidade por força da qual os homens conhecem a Deus, dele se apropriam e se apegam a ele, — o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, — como sendo o último SIM contido no derradeiro NÃO de toda vida humana. [A tradução inglesa diz:” Descrevemos o conceito do AMOR como essa realidade que, contrastada com a ambigüidade de nossa existência, não pode ser definida como ato da vontade ou do pensamento humano mas apenas como pressuposição de tudo quanto é analisável e observável. Na realidade, descre-

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vemos [esse amor] como “derramamento do Espírito Santo” (5, 5), isto é, como a realidade mediante a qual os homens conhecem a Deus, tomam posse dele e se apegam a ele como o Deus Desconhecido, o Deus Recôndito, como o último SIM no derradeiro NÃO de toda vida observável concreta”]. Amor é a apresentação existencial da criatura humana a Deus; é o toque da liberdade de Deus e, justamente neste toque, é o fundamento de sua personalização e “individualização”, se assim pudermos dizer). O AMOR é “o caminho sobremodo excelente” (I Cor. 12, 31); é o sentido de todos caminhos que são compreensíveis para nós e o seu ponto culminante: é a possibilidade do homem religioso, como possibilidade divina e por isso, na medida que isso se dá, é o “cumprimento da lei”. [A versão inglesa escreve: “O amor é, por isso, a impossibilidade religiosa humana — quando for apreendido como a possibilidade divina. Em outras palavras, o amor é o CUMPRIMENTO DA LEI]. O que significa isto quando verificamos que todo esse arrazoado cai por terra ao ser confrontado com a nossa existência, com a vida que temos de viver em sua singularidade e realidade, quando verificamos que no clímax de nosso discurso sobre Deus ele mesmo nos perturba com a interrogação sobre “o que devemos, pois, fazer?”. O que significa isto tudo se, mediante essa pergunta Deus novamente se encobre e se antepõe a nós como “o Deus Desconhecido?” (12, 1). — A resposta é esta: quem ama a seu semelhante põe objetivamente em prática a “Grande Possibilidade Positiva”, porquanto esse tal segue o caminho incompreensível [sobremodo excelente]: amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Lev. 19, 18). “Amarás o teu próximo.” Na realidade do próximo confrontamo-nos afinal — e no mais alto grau — com a inescrutável problemática da existência. É no próximo que nos deparamos com o enigma da natureza original: é nele que vemos a realidade do ser humano; nele nos confrontamos com nossa própria criatura [como em espelho]; as suas peculiaridades nos lembram as nossas próprias; nele vemos a nossa perdição, o nosso pecado e a nossa morte. É no confronto com o próximo que precisamos decidir [o que Deus representa para nós, isto é, se é mero produto de investigação intelectual, quiçá de imaginação ou sentimentalismo, ou se é real]; precisamos decidir se a “impossível possibilidade” divina — que está além de todas possibilidades humanas e com a qual nos encontramos sempre novamente em nosso discurso sobre Deus — não é apenas fantasma metafísico; se acaso não estávamos delirando quando confirmamos a “pressuposição psicológica” do derramamento do amor divino em nossos corações; se acaso não estávamos cegos quando “vimos” a Deus no

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último SIM contido no derradeiro NÃO; se o nosso entendimento [nosso conhecimento] de Deus não foi um “entendimento de renúncia” [de desistência quiçá por desânimo, cansaço ou por incapacidade], (Kierkegaard), ou então, — [e agora a outra alternativa] — se verdadeiramente o Deus Desconhecido nos falou através de Jesus Cristo; se de fato recebemos o toque da liberdade divina e se a fundamentação de nossa personalidade, [em Cristo] é real; se, existencialmente, estamos trilhando o “caminho sobremodo excelente!”. Essa decisão, a fazemos, [e ela se efetiva] na medida em que reconhecemos e amamos o “Deus Desconhecido” na inidentidade do próximo” que, sendo completamente diferente de nós, sintetiza todos enigmas da existência e exige nossa resposta em forma de obras. A decisão se dá na medida em que, [no “próximo”] ouvimos a voz daquele que é UM. Lembremo-nos de que o amor a Deus se torna realidade [em nós] quando esse “TU” [que nos individualiza] se torna tão inexorável que já não podemos afastar de nós a pergunta: [então], “quem sou?” Lembremo-nos também de que, nesta pergunta profunda e na sua resposta, reconhecemos — e não podemos deixar de reconhecer — que este mui duvidoso “EU” e este [incômodo] “TU” que nos pressiona e que domina todo nosso pensamento, são uma única e a mesma pessoa. Este “TU” que questiona e responde se encontra, afinal e, na sua forma mais notável, na problemática do próximo que” caiu nas mãos dos salteadores”. Se aqui eu não ouvir a pergunta e também não encontrar a resposta, se aqui eu somente ouvir a voz do “outro” e não ouvir — na voz do outro — a voz daquele que é UM, então na verdade — nada ouço! Portanto... “amarás, o teu próximo COMO A TI MESMO!” O próximo está sempre invisível, oculto no “outro” para quem já não posso ser — ou continuar sendo — [simplesmente] “outro”; ao qual preciso amar “como a mim mesmo”, tão certo quanto amo a Deus, se é que o amo. Em Cristo, que é o ponto de mudança, o ponto de inflexão, [o ponto do retorno] que vai da pergunta para a resposta, do NÃO Para o SIM, do juízo para a justificação, da morte para a vida — [sim, em Cristo] não sou apenas UM, com Deus porém (por que e na medida em que eu for UM com Deus!), sou UM com o próximo. Amor é o relacionamento [o parentesco] espiritual com o próximo (Kierkegaard), isto é, o relacionamento que se estabeleceu pela pergunta que me foi feita e pela resposta que me foi dada pelo TU (do espírito!) e que consumou a unidade, a comunhão (COMMUNIO) entre mim e o próximo, na medida e na certeza de que sou UM — [novamente] — em comunhão (COMMUNIO) com Deus.

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“Quem é o meu próximo?” pergunta o culto intérprete da lei e recebe a resposta (que ele mesmo, a contragosto, precisa enunciar!): “Aquele que usou de misericórdia para com quem caiu nas mãos dos salteadores”. — Vai tu, e faze o mesmo! Sê tu mesmo o próximo e todas tuas perguntas cessarão. (Luc. 10, 30-37). O próximo é reconhecido mediante a resposta à pergunta: Então, quem sou?” É reconhecido como o UM, que é “TU”, “EU” e “ELE”; esta é a operação e a autenticação do amor a Deus, que não vemos. Portanto, “Amarás a teu próximo!” O amor ao próximo não é o relacionamento do ser humano com seu semelhante mas de Deus com Deus; este relacionamento se fundamenta no conhecimento de Deus conforme revelado em Jesus Cristo (e por isto [não apenas se fundamenta mas] também nele se desfaz). Se este relacionamento [acaso] representa paz ou luta, se significa [para nós] aquilo que entendemos como amorável ou se, em muitíssimo maior grau, se afigura como acrimônia e aspereza, — isto é outra questão. (12, 9). O AMOR [ÁGAPE] é sempre a descoberta [o achado] do UM, no outro — neste, naquele, em qualquer outro. Podemos dizer que o amor está ligado ao seu objeto (isto é, ao seu próximo!) porque é na medida em que, de alguma forma, se antepõe a ele. O amor vê, em “cada” PRÓXIMO a semelhança daquilo que se deve amar e, — mais do que a semelhança — vê aquele que o mandamento exige que amemos; o amor vê e ouve em cada “TU” deste mundo o eterno “TU” que se lhe contrasta e sem o qual não existe “EU” (12, 3 — segunda parte até 12, 6 primeira parte). O amor se volta a esta e àquela pessoa definida, concreta. [isto é, o amor se manifesta a qualquer criatura determinada] justamente porque é na medida em que ele não representa qualquer compromisso com quem quer que seja. O AMOR [ÁGAPE] é o amor ao próximo [com quem nos deparamos] em sua total irritabilidade, sua extravagância e seu modo original de ser e agir, justamente porque — é na medida em que esse AMOR desata e solta esta originalidade que deve cair por terra qual manto que cai dos ombros (Kierkegaard). O amor [ao próximo] é “justiça equalizadora eterna” (Kicrkegaard), porque a ninguém justifica segundo o próprio desejo, o amor edifica a comunidade porque unicamente procura comunhão; o amor nada espera porque já atingiu o alvo; nada procura porque já encontrou; nada quer porquanto já realizou; nada pergunta. pois já sabe; não luta porque já venceu. O amor [ao próximo] não é Eros. que sempre cobiça, mas Ágape, que jamais acabará. E por isso mesmo que “amarás a teu próximo!”

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Tomado a sério, o amor [ao próximo] é dever da “nova criatura” e, como dever, está protegido contra todas arbitrariedades, todos enganos e todos abusos. Todos mandamentos “Não DEVES” [fazer isto ou aquilo], os mandamentos negativos: “Não adulterarás.””Não matarás!” “Não furtarás!” “Não cobiçarás!” (Exo. 20. 13-27 e Deut. 5. 17) culminam neste mandamento positivo — “DEVES” [isto é, AMARÁS!]. A criatura que, para voltar a Deus, foi compelida a toda abstenção é agora, por Deus impelida a agir novamente; é a criatura vencida, que se reergue; é o pecador, que é justificado; é o amortecido que é vivificado. Neste [impulso] imperativo toma-se visível a relampejante espada da morte e da eternidade. O amor é completo em si mesmo porque é a obra NOVA; é a obra que tem o sentido do preenchimento de toda abstenção; é o ar que passamos a respirar [é o oxigênio que nos é ministrado] quando — e na medida em que — de fato nos é tirado o fôlego no ambiente do mal [em que vivemos]. “O amor não causa mal ao próximo!” Portanto, o amor é a “obra do bem” que vence o mal (12, 21), que anula e destrói a situação existente tão certamente quanto a revolta (ou a revolução) não a consegue destruir — [embora o tente e para isso se faça]. A novidade, a originalidade do amor é ele não participar do círculo vicioso que vai do mal ao mal e da reação à revolução. O amor suprime e anula tudo quanto existe porque decidida e decisivamente reconhece [e acerta] tudo quanto está pressuposto naquilo que existe. O amor destrói os ídolos porque não cria outros. O amor é o fim de toda “imitação” de Deus, [de tudo quanto quer substitui-lo, resolver em seu lugar e exercer sua autoridade ...], hierarquias [clero], intermediação [dos “santos” e da Virgem Mãe] e autoridades [a Igreja], porquanto o amor, inequivocamente e sempre se volta ao UM, tanto no indivíduo como na coletividade. O amor não contradiz e, por isso, não pode ser refutado; não concorre e, portanto, não é vencido; não busca decisão e, conseqüentemente, ele próprio é a decisão. Na esfera do mal o amor somente pode ser definido mediante negativas (pelo que não é e pelo que não faz!) (I Cor. 13!). É por isto que o amor refuta o mal — se é que nos podemos expressar assim. [Todavia], não há nenhuma impossibilidade de se fazer o bem no ambiente do mal [que é o único ambiente nosso conhecido! Nada me desobriga do dever de amar, mas: se eu deixar de amar ao próximo] sob a alegação de estar assim protestando contra o curso deste mundo, então também não amo a Deus. Então já não há sacrifício [que é o meu culto racional] e não há renovação de pensamento (12, 3).

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Quão premente, quão inexoravelmente sério é o mandamento do amor! “Portanto, o amor é o cumprimento da lei!” “Fazei isto reconhecendo o momento presente”. Quando e como se chega a cumprir a incompreensível obra do amor na qual a criatura humana, impelida de volta a Deus pelo enigma do próximo é por Deus recambiada ao próximo para nele descobrir a si mesma? Onde e quando se realiza a impossível possibilidade do cumprimento da lei? Se quisermos examinar atentamente o problema que a exigência [de amor ao próximo] nos apresenta, não podemos encurtar distâncias [tirando conclusões apressadas]. A inaudita significação deste procedimento precisa corresponder a uma oportunidade, também, inaudita. Trata-se disto: o cumprimento da lei se dá quando o tempo presente se torna como a eternidade e esta, como o tempo em que vivemos. A possibilidade [de cumprir a lei] surge mediante “o reconhecimento do tempo presente” pois este é um “instante” que em si mesmo não é um lapso de tempo. Todavia, qualquer momento do tempo presente pode conter a dignidade desse INSTANTE, em toda sua plenitude. [Este instante] é o momento eterno, o AGORA no qual se paralisam o passado e o futuro, aquele no seu ir, e este no seu vir. Neste INSTANTE, o tempo trai o seu segredo: não é ele que vai e que vem, mas é o ser humano que FOI e SERÁ — em Deus! [E o ser humano que] morre e vive; cai e se ergue; é “quem ele é” é “quem ele não é”, quer dizer, criado conforme aquele e conforme este e criado novamente como o UM — o indivíduo em sua total unicidade e em absoluta generalidade [quiçá sua universalidade]; — sempre [como indivíduo], na qualidade de “velha criatura e [na sua universalidade], como “nova criatura”, esta sobrepujando aquela na invisível mudança dos tempos, em Jesus Cristo. “Para lá vamos, peregrinando de ano em ano”; este é o segredo do tempo revelado nesse INSTANTE eterno que existe sempre — todavia jamais existe — pois é o INSTANTE da revelação [de Deus]. [A tradução inglesa escreve: “Os homens são sempre a primeira [a velha criatura] ‘E’ a segunda; todavia são esta segunda no sobrepujamento da primeira, em Cristo; isto é, na invisível Era Nova. ‘Gastamos nossos anos como um conto que se conta’ — este é o segredo do tempo, que é revelado no ‘momento’ da revelação, nesse ‘momento’ eterno que sempre existe, “no entanto não existe”. A citação inglesa faz pensar na passagem conforme v. 9 do Salmo 90 ou em Tiago 4, 141. O irreversível afastamento do instante que passa e a inevitável aproximação do instante vindouro são qual parábola deste INSTANTE da revelação eterna [porque também este instante é irreversível]. E, igualmente, parábola do instante eterno a absoluta inescrutabilidade, invisibilidade e imaterialidade desse

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intervalo — [desse pequeno lapso de tempo que decorre entre o momento que acaba de passar e o momento que chega] — minúsculo interregno nos tempos. Analogia [ou parábola] do instante eterno é todo instante de tempo referido ao passado e futuro que, como todo momento do tempo presente, contém subjacente em si a revelação do “segredo da temporalidade” e pode, por tanto, transformar-se no instante QUALIFICADO [da revelação]. [Logo], fazei isto reconhecendo o momento presente!” [É no conhecimento do “Momento Presente” que se alcança a sabedoria para o exercício da incompreensível obra do amor ao próximo]. É somente quando compreendemos e apreendemos o instante em que vivemos, em sua significação transcendental, quando [pela nossa compreensão e mediante a graça divina] percebemos o “invisível AGORA!” da revelação no lapso de tempo presente que separa o tempo anterior do tempo vindouro, quando este “instante eterno” da revelação qualifica o passado e o futuro, somente então acontece a incompreensível obra do Amor; então “a vida e as lides do amor [ao próximo] tornam-se realidade (Kierkegaard); a fé que vê, [sente e aceita] esta revelação é o cumprimento da lei, e a obra humana [que se manifesta nesse Amor] provém do mais alto conhecimento. Quem ama ao próximo foi [movido,] tocado pela LIBERDADE DE DEUS. O retorno central [básico], final, da temporalidade para a eternidade, esse relacionamento [que assim se estabelece entre o temporal] com o que é eterno e que somente pode acontecer por milagre, dá-se quando a Grande Possibilidade Positiva se transforma em mandamento. [A tradução inglesa escreve assim: “A ação humana do amor, por conseguinte, nasce da sabedoria suprema porquanto quem ama foi tocado pela liberdade de Deus. Portanto, quando dizemos que o amor, como a grande possibilidade positiva se toma em mandamento estamos presumindo este relacionamento derradeiro e central do tempo com a eternidade — na realidade, estamos presumindo que o amor é um milagre”]. Apenas podemos fazer o que fazemos, conhecendo o INSTANTE, por isso nunca “já o fizemos” pois, quando já se fez alguma coisa “nesse” conhecimento? Apenas podemos fazer o que fazemos como testificação da vitória que aconteceu, acontece e acontecerá em Cristo; apenas com vistas ao nascimento da pessoa dentro da individualidade; é apenas no aguardo do FIM, (fim do mundo da temporalidade, das coisas e dos homens) que está [na realidade], o começo — o princípio [do novo céu e da nova terra!]. O amor não causa mal ao próximo e é o cumprimento da lei — [e o cumprimento de tudo quanto nos é defeso fazer!] — por que se mantém

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inexoravelmente à distância, porque peremptoriamente afasta de si tudo quanto já foi feito, remetendo todas as coisas ao fim que é o começo [do novo Reino]. O amor penetra no âmbito do mal para imediatamente dele se afastar; nesse território ele não constrói tendas para si; basicamente, o amor nada quer criar, na temporalidade, que seja duradouro ou permanente. O amor somente faz aquilo que realiza no INSTANTE ETERNO e, por isso mesmo, ele é o próprio ato revolucionário. “Chegou a hora para acordar do sono porquanto agora a nossa salvação está mais perto (de nós) do que então, quando nos tornamos crentes”. A noite avançou mas o raiar do dia está próximo. O instante eterno se contrapõe incomparavelmente a todos instantes [da temporalidade e deles se destaca], justamente por ser o sentido transcendental de todos eles; é a incomparável SALVAÇÃO, é o DIA, é o REINO DE DEUS de todos os tempos e deles é o cumprimento. Contudo, aqui vivemos na sucessão de instantes da temporalidade mutável e se neles [ou no transcorrer deles] não amarmos (ao próximo), então absolutamente não temos AMOR. Jesus Cristo não passou sua vida terrena algures fora desta série de momentos dos tempos mutáveis mas esteve [plenamente] inserido nela e é também dentro dela que achamos [o conhecimento para] o reconhecimento do instante eterno; nesse reconhecimento encontramos o local, o tempo e o estímulo para amar o próximo]. O reconhecimento do INSTANTE [ETERNO] precisa dar-se em algum momento da temporalidade; é preciso que, em alguma ocasião, se dê “o regresso” à eternidade. Este momento, esta ocasião, é a “hora para acordar do sono” e [isto se dá] no invisível “AGORA” inserido no intervalo dos tempos, qualificando o passado e o futuro. Nem todo tempo, [nem toda hora], nem todo instante é essa ocasião — é esse momento ETERNO; nenhum deles o é, em si mesmo; [no entanto] todo e qualquer instante de todos os tempos contém [ou pode conter] o invisível interregno do AGORA!, estranho, incomensurável, inacessível — até mesmo “aquele tempo”, “quando nos tornamos crentes”, — pois a fé não pode transformar-se em realidade (3, 28), não pode ser algo que “começou a existir” em determinada ocasião e passou “a ser” desde então. [Por isto, esse “AGORA!” é inatingível, é inidentificável, é invisível em sua absoluta realidade, isto é, mesmo “quando” COMEÇAMOS a crer.]. Este INSTANTE, [todavia] é início, maravilha, é criação a todo momento da temporalidade [e portanto] também naquele instante quando nos tornamos crentes. Tudo aquilo que esteja [ou tenha de ser] integrado na realidade da temporalidade pertence ao inqualificável tempo do “sono”, ainda que seja a crença.

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Não há crença que não precise ser lembrada da REVELAÇÃO; não existe obra que não tenha de ser lembrada de que lhe é necessário ter o respectivo conhecimento [ou saber]; nem há pessoa alguma que não necessite de ser lembrada da LIBERDADE de Deus. Enquanto esta lembrança não ocorrer — (e quando “JÁ” teria ela ocorrido?) — todos estão adormecidos: TODOS, isto é. o Apóstolo. o Santo e também aquele que ama [o próximo]; estão todos irremissivelmente entregues à temporalidade, todos jazem, quais seixos rolados, no fundo da “correnteza do tempo” cujas vagas incansavelmente chegam e fogem céleres. Ninguém é repelido de suas obras para que se abstenha ou se retraia e ninguém que esteja retraído é impelido a tomar a iniciativa ou a agir. [Todavia], cada um faz o que não deve e deixa de fazer o que deve; é por isto que o tempo QUALIFICADO, o tempo do retorno e da arremetida, o tempo para a atitude ou o procedimento ético-positivo, é o tempo que “ainda está para ser” e, enquanto ele não acontece, [enquanto ainda não for chegada a oportunidade para o instante eterno], todos os tempos diferem entre si e cada instante particularizado difere à sua maneira desse momento ETERNO que, no entanto, é igualmente estranho a todos. Há tempos próximos e outros remotos; tempos de noite e tempos do romper da alva; tempo de dormir e tempo de acordar; existem estes e aqueles — uns são e outros não são, porém, há tempo CRONOLOGICAMENTE qualificado: HOJE. “Hoje, se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos corações!” Também há tempo oposto: os dias quando “a Palavra do Senhor era mui rara e as visões não eram freqüentes”. (I Sam. 3, l[e Heb. 3, 7-8; Sal. 95, 7-8] ). “Agora nossa salvação está mais próxima que outrora, quando nos tornamos crentes”. Sempre subsiste a tensão entre o tempo de “OUTRORA” — quando ainda estávamos descansados, [descuidados] e agora, o tempo presente, — quando nos achamos sob a incomodativa lembrança daquilo que não somos; existe sempre a tensão entre os tempos da revelação “já” encontrada, das obras “já” realizadas, de quando “já” havíamos reconhecido a Deus, e os tempos da meditação, da expectativa e da introspecção na efetivação real do “já” que apenas SUPOMOS como existente, [pois este “já” somente se dará na segunda vinda, isto é], no INSTANTE ETERNO do retorno glorioso de Nosso Senhor Jesus Cristo no final dos tempos: na realização do Juízo Final, com a presença de Jesus Cristo. [O original emprega o galicismo “parúsia”. A tradução inglesa escreve: “Existe sempre certa tensão entre ‘então’, quando levávamos existência calmosa e o ‘agora’ de nossa conturbada lembrança da não-existência. Há sempre certa tensão entre ‘os tempos da revelação’ que ‘já’ ocorreu, — as obras que ‘já’ foram feitas, Deus que ‘já’ conhecemos, — e a nossa expectativa pela realização daquilo que ‘já’

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ocorreu apenas aparentemente — a nossa expectativa e o aguardo pelo ‘Momento’ eterno do Aparecimento, da ‘parúsia’, da presença de Jesus Cristo”]. Todavia, essa tensão entre os tempos (de “então” e os de “agora”) tem tanto (ou tão pouco) a ver com a célebre história da Igreja nestes vinte séculos os quais, — sabidamente — ainda “não nos trouxeram” o retorno glorioso de Jesus Cristo no final dos tempos como, por exemplo, o número de semanas ou meses que a Carta aos Romanos ficou na bagagem de Febe durante sua viagem de Corinto a Roma (16, 1) ou então, significa tão pouco quanto a soma dos minutos que se teriam escoado entre o ditado de Paulo e a escrita de Tércio, porquanto: a hora do despertamento, a “última” hora, cujo soar aqui se anuncia, verdadeiramente não significa que existe “uma hora” que venha depois; nem sequer entra aqui em cogitação a hipótese de que [ao despertamento], se siga um tempo — (cronológico.), para o cumprimento dos tempos. Não é como se a vida que vem da morte, o “NÃO-SER” que suprime tudo o que é, a justificação dos que já foram julgados, o “AGORA” que está no intervalo de todo anterior e de todo porvir, pudessem preencher, [completar] algum tempo ao lado do tempo [isto é] (ao lado e contido no tempo presente). Tempo — são os tempos do desconhecimento [da ignorância] e da lembrança [isto é, quando somos recordados de nossa condição de criatura perante o Criador] durante os quais todos somos instados ao arrependimento. O que existe acima disto, não é tempo: é eternidade. No limite de todos os tempos, ante o dominante muro de Deus que representa a supressão de toda temporalidade e seu conteúdo, está a criatura da “hora final”, a criatura que aguarda o retorno glorioso do Senhor Jesus, no final dos tempos, isto é, está a criatura ante o dia e ante a hora que ninguém conhece, nem os anjos do céu, nem mesmo o Filho, somente o Pai (Mar. 12, 32). Acaso ninguém sente o estrídulo nos ouvidos? Acaso não cessará, de maneira alguma nosso inútil discurso sobre o RETORNO GLORIOSO que “nunca se dá”? Como se daria aquilo que, segundo seu próprio conceito, não pode acontecer, de forma alguma? [Em outras palavras: como podemos dizer que “tarda” um acontecimento que não está programado? Literalmente, diz o Autor: “como haveria de “falhar” aquilo que, segundo sua própria natureza, de modo algum pode acontecer?]. Porquanto o FIM que o Novo Testamento anuncia não é evento temporal, não e um fabuloso “fim do mundo”; [o fim anunciado] nada — absolutamente nada — tem a ver com alguma catástrofe histórica, telúrica ou cósmica: o fim anunciado pelo Novo Testamento é verdadeiramente o FIM; é tanto o fim que estes vinte séculos pouco ou nada significam com respeito à proximidade ou a longinqüidade de sua realização, Este FIM é tão decisivo — e definitivamente o fim, que Abraão viu o dia e se alegrou!

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Quem há que pretenda diluir esta eterna verdade, transformando-a em acontecimento temporal pelo simples fato de somente se poder falar dele por meio de parábola? Por outro lado, se for reconhecido [e aceito] que aqui as palavras ‘são apenas analogias, quem há que pretenda acalmar-nos com este “apenas”? Quem há que. tão desavergonhadamente. pretenda transformar Deus em ídolo, deixando de o tomar a sério, baseado em nossa ignorância da realidade divina? Quem é que nos autoriza a transformar a esperança do fim, — a expectativa daquele instante em que os vivos transformados e os mortos ressurrectos, juntos, estarão perante Deus (I Cor. 15, 51-52), — nesta expectativa de espetáculo grosseiro, brutal, teatral e, [pior ainda] quando esta cena espetacular — por mui justas razões — não acontece, [quem ou o que nos autoriza ai que simplesmente nos deitemos novamente a dormir, consolados, deixando como único sinal [ou memento] daquilo que na realidade deveríamos (e de fato queríamos!) lembrar, um pequeno capítulo sobre a “ESCATOLOGIA”, encerrando um tratado de “Dogmática”?! Não é o RETORNO GLORIOSO que tarda mas, o nosso despertamento. Se acordássemos, se nos recordássemos, se completássemos o passo que vai do tempo não qualificado ao tempo qualificado, se nos assustássemos por estarmos a todo momento, (quer queiramos quer não) no ponto limite extremo, à beira do INSTANTE [que pode ser o do retorno glorioso de Jesus Cristo]; se, estando nesse limite, ousássemos amar o “DESCONHECIDO”, se reconhecêssemos e apreendêssemos o principio do fim, então verdadeiramente, nem esperaríamos esse “fim do mundo” resplandescente ou catastrófico [fazendo coro] com os mais excitados [emotivos ou neuróticos] nem acompanharíamos a piedade (ou a religiosidade) da inabalável [racional e não emotiva] cultura protestante, consolada com o FIM que não vem. Então não nos esquivaríamos — (como estes e aqueles) — da amarga seriedade, [da dura realidade] do dia “que se aproxima” porém, justamente por que o “Instante Eterno” não acontece — (nunca aconteceu e jamais acontecerá) — reconheceríamos [ou reconheceremos] a dignidade do instante temporal [do “momento presente”] que nos é concedido, sua qualificação e o sentido ético que ele impõe. Então estaremos aguardando o retorno glorioso de Jesus Cristo “no final dos tempos” ou, por outras palavras, estaremos atribuindo à nossa existência a seriedade que ela tem; estaremos reconhecendo a Jesus Cristo como Autor e Consumador [de todas as coisas]; então já não nos recusaremos a dar lugar ao arrependimento, a mudar e inverter o rumo de nosso pensamento, a meditar nos pensamentos eternos e, portanto, já não deixaremos de amar [o próximo]. Contudo, sem “conhecer” o “momento presente” nada disto acontece. Sem este conhecimento não há AMOR — [Ágape].

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A somatória e a base da Grande Possibilidade Positiva e de todas possibilidades éticas que a acompanham, consiste em agir “como se já fora dia”, isto é, reconhecendo o instante do momento presente e voltando os olhos ao invisível lapso de tempo que existe entre o ANTES e o APÓS dos dias de nossa vida e amando o próximo porque somos amados em Cristo. O Reino de Deus está demasiadamente propínquo; a avassaladora muralha da eternidade [visível] em cada rocha, cada flor, em todo semblante humano!), o limite do [nosso] tempo (MEMENTO MORI!), a presença de Jesus Cristo como a volta [a curva, a inflexão] dos tempos, [tudo isto] nos oprime de tal maneira que o traço retilíneo [isto é, a uniformidade] de nossa existência material — o procedimento humano sob a determinação [e o influxo] da vida, da emoção e de “Eros”, não pode deixar de ser perturbado [fletido, quebrado]. Na verdade, nossa conduta foi [e está sendo] perturbada: a condição, (a aparência), deste mundo desaparece e o Reino de Deus vem! O AMOR e o que este AMOR (Ágape) realiza, testifica o desaparecimento deste mundo e, também, a vinda do outro. “Deixemos pois de lado as obras das trevas e revistamo-nos com as armas da luz! Nada de orgias e bebedices; nada de lascívia e impudicícia! Nada de brigas e contendas. Não segui a tendência da carne!” Estas palavras são dirigidas aos “amados de Deus em Roma, aos que foram chamados para a santidade!” (1, 7). Acaso não é evidente que também (nós) estamos no reino dos Karamazoff, onde tais possibilidades existem? Aquilo que designamos como Reino de Deus e este outro reino [que é tão bem exemplificado no “mundo” dos Irmãos Karamazoff] parecem ser círculos que se sobrepõem em pontos diversos, de não pouca monta. Se nesse terreno existir separação claramente definida na qual as “obras das trevas” são postas de lado, então tratar-se-á de separação final [decisiva], separação [feita mediante e sob] o conhecimento do “momento presente” porquanto, o que se pode dizer se não que a linha real da existência humana nenhures e jamais é interrompida e que “a tendência da carne” nunca se muda, seja nas pessoas religiosas [ou piedosas], seja nos “filhos do mundo”? O filamento do tempo não se interrompe por um segundo sequer, [embora possam existir deformações e inflexões motivadas pelo impacto da lembrança de Deus]. Não existe nem emerge nenhuma santidade humana cognoscível [reconhecível] e imutável. O mundo é mundo e o homem é homem; são ambos sempre altamente duvidosos, não somente na sua moral a mais elevada como também na mais rude. As possibilidades santas enquadramse perfeitamente no mundo das possibilidades do tipo Karamazoff. Contudo,

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13, 12-14,0

(no conhecimento do “instante presente”) a criatura é posta em duvida por parte de Deus; é por parte de Deus que ela se torna tão inviável e tão tola. Portanto, acaso pode o ser humano admirar-se de estar sempre de novo à borda do abismo, de estar sempre tão profundamente enredado na mais profunda dubiedade? Há de o ser humano suportar estar nas profundezas da animalidade, se não suporta as altitudes morais da humanidade? Acaso é mais fácil solucionar o enigma da vida, lá embaixo do que aqui em cima? Para que [e por que] fugir do “UM” contido no “UM” do amor (ao próximo)? O ser humano é, em sua totalidade, atacado por Deus; o Reino de Deus rouba-lhe o fôlego oprimindo-o em todas suas atitudes, em todas suas cobiças. Já não é possível sanar a “grande perturbação”; ela atinge os “santos e os suínos”. A longo prazo, não teremos opção [não nos será dada alternativa] para fugir desse ataque divino e teremos de ceder à pressão de Deus ao longo de toda linha [de resistência, ao longo de toda nossa vida “normal”]. Todavia, o AMOR é o cumprimento da lei! Portanto, “revistamo-nos com as armas da luz; andemos com continência! Imitai ao Senhor Jesus Cristo!” Às mesmas pessoas [às quais foi preciso recomendar que deixassem de lado as obras das trevas recomenda-se] agora a antítese?! Dar-se-ia então o caso de estarmos todos, mesmo assim, entre os amados de Deus? — Sim, é verdade! Também esta possibilidade subsiste dentro da Grande Possibilidade Positiva, para aqueles que aceitam ser revestidos com as armas de proteção e de resistência contra o mal; também esta possibilidade celestial e eterna existe e subsiste para aqueles que aceitam as armas que só Deus pode dar [e efetivamente oferecei juntamente com a dádiva do próprio Senhor Jesus Cristo, [o seu Filho Unigênito — João 3, 161. [A tradução inglesa escreve: “Podemos ser armados com o próprio Senhor Jesus Cristo]. Quem ousará excluir um só que seja, “do conhecimento do momento presente”? E quem acaso haveria de excluir a si mesmo? [“Venha a nós o teu Reino!”] Comentários: 13, 8 - 14, 0 1. O Autor diz que no ponto culminante de nossas considerações sobre o relacionamento entre os homens e Deus e além da possibilidade desse relacionamento, (pelo menos conforme o imaginamos), encontramos o enigmático conceito do AMOR. O que quer Barth dizer?

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Primeiramente parece-me que cada pessoa imagina o seu relacionamento com Deus segundo os preceitos da religião que pratica, qualquer que seja. Para alguns será mediante as penitências, os votos, as promessas, as rezas; para outros será pela caridade; para muitos será pela mística da piedade e da própria religiosidade; para outros ainda será na esperança, pela fé nas promessas divinas ou então, talvez, pela aceitação da graça de Deus. Em segundo lugar, qual é o conceito do AMOR, segundo a Grande Possibilidade Positiva? Não é, precisamente, o amor-renúncia, nem o amor-sacrifício; de maneira alguma será o amor-condescendência, o amor-compaixão. A Grande Possibilidade Positiva — o AMOR que Barth também designa por ÁGAPE, é o amor que vê no “outro” aquele por quem Deus mandou o seu Filho Unigênito e por quem Jesus Cristo morreu na cruz. É o amor que se manifesta ao “outro” porque nesse ser estranho vê a revelação daquele que é UM. Seria enigmático, este conceito? Talvez sim porque o amor de Deus é para nós, criaturas identificadas com o mundo, impregnadas de seus interesses, de seus intercâmbios de conveniências e de seu egoísmo — procedimento absolutamente estranho e incompreensível; o preceito de amar o inimigo é anormal e, mais do que isto, é absurdo: a sua prática é enigma; a sua aceitação é mistério. Finalmente, na culminância de nossa meditação sobre Deus, dentro de nossa estruturação religiosa, se seriamente procurarmos conhecer os caminhos do Deus Desconhecido, nos depararemos com esse amor de Deus e, (em contrapartida, se assim podemos dizer,) com o amor a Deus expresso no procedimento ético do amor ao próximo pois, “quem não ama o próximo, a quem vê, como amará a Deus, a quem não vê?” Isto talvez explique a existência do enigma; todavia por que estaria o AMOR além (e, quiçá, até em oposição) ao relacionamento que a religião apresenta? Parece-me que a resposta é esta: a religião — (a mais elevada, a mais séria, a mais digna do nome) — acentua a lei; destaca o mandamento: não matarás, não adulterarás, não... e, finalmente, ainda por mandamento, AMARAS. Todavia o AMOR vai além do mandamento; AMOR é a ética do mandamento posta em prática, mas não por coação; é por isto que o AMOR revolve os fundamentos da terra e tudo quanto no mundo existe, e passa a ser a própria revolução porquanto, pelo AMOR (Ágape) tudo se faz novo. Já não há lugar para a vingança e retribuição de olho por olho e de dente por dente; nem mesmo da

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retribuição da caridade pela caridade, do amor pelo amor, mas o AMOR é em si mesmo soberano porquanto ele se origina cm Deus, na LIBERDADE de Deus, e se volta a Deus. Já não é mais “amor que com amor se paga” mas é “o próximo” que vai ao encontro daquele que, — vítima da maldade humana, — jaz ignorado à beira da estrada da vida, ferido, necessitado; ainda mais: se um inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber. Também em meu inimigo, em meu desafeto, em quem segundo o mundo vejo a maldade, a vileza, a má intenção, o dolo, a mentira, talvez a ingratidão e a falsidade, o menosprezo, a traição, EM CRISTO, vejo aquele por quem Cristo morreu. (Vejo?) Penso que Barth se refere à nossa unidade original em Deus e com Deus, quando se refere ao enigma da natureza original; unidade que volta quando “o próximo” — (o “outro”) — e eu somos justificados pela misericórdia de Deus, em Cristo Jesus. O AMOR está além (e até em oposição à) religião porque a religião “ensina” a lei; o AMOR a cumpre. 2. O AMOR suprime tudo quanto existe porque aceita tudo quanto está pressuposto naquilo que existe. O AMOR destrói a materialidade e a materialização de todos pensamentos palavras e obras porque o AMOR, por seu próprio conceito, pressupõe a perfeição que elide o que é imperfeito, porquanto o AMOR “tudo crê”, tudo sofre, tudo espera, tudo suporta; nunca falha; não se alegra com a injustiça; não é indecente, nem invejoso, nem leviano; não se irrita, não suspeita mal; não busca seus próprios interesses”. É por isto que o AMOR tudo anula e tudo supera.

A CRISE

DA

LIVRE MORDOMIA

DA

VIDA (14, 1

A

15, 13)

(Título dado a esta parte, pela tradução inglesa: “A Crise da Liberdade Humana e Destacamento” (ou Destaque). Ver a nota de introdução à “Grande Perturbação” — no início do Capítulo XII]. O fecho da “exortação” e principalmente da “mensagem” Paulina, apresenta uma advertência endereçada essencialmente àqueles que, chegando ao fim da Epístola, talvez julguem haver bem compreendido o que Paulo escreveu, ante a suposição de estarem assim confirmados seus próprios pensamentos [e autojulgamentos a respeito de seu “vigor espiritual”. A estes tais a parte final da mensagem se dirige de modo todo especial] porquanto aqui, mais uma vez, são peremptoriamente rechaçados todos os “sôfregos adesistas” e são repelidas todas mãos que se levantam [em aprovação]; e é bruscamente interrompido o discurso de todos quantos simplesmente repelem [as palavras que leram].

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— O que aconteceu? — É evidente que por entre as muitas palavras, interrogações, conceitos e análises que surgiram e submergiram teremos, todos, vislumbrado, — pressentido, [adivinhado], notado ou, talvez, até visto à distância — algum ponto onde pudéssemos estabelecer-nos e dele viver. Esse ponto que assim divisamos — próximo ou remoto, — pelas características que o acompanham, foi por nos freqüentemente designado como a LIBERDADE DE DEUS. Ora, considerando que o discurso de Paulo na Epístola aos Romanos abertamente nos incentiva [ou melhor, nos incitai a empreender uma determinada conduta — [a viver uma vida que se amolde, se sujeite e siga a diretriz que, embora com impropriedade relativa, poderíamos dizer ser condizente com a liberdade de Deus] e que se exerce mediante a liberdade que cada pessoa tem de adotar ou deixar de adotar o “procedimento Paulino”, designamo-lo como a “Livre Mordomia da Vida”. “Livre” porque tal procedimento parece resultar da descoberta da liberdade de Deus corno sendo a resposta prática e direta à grande perturbação que nos vem da parte de Deus, e que assim nos constrange [todavia não obriga]. — Quem há que ouse viver segundo essa liberdade de Deus, se nem mesmo nos atrevemos a imaginá-la? — Esta é a questão que a Carta aos Romanos nos apresenta. [A tradução inglesa escreve: “Onde está o homem — pergunta a Carta aos Romanos — que se atreverá não só a pensar na liberdade mas a, de fato, viver sob sua direção?”]. Viver “Paulinamente” é viver livre; é estar oprimido por Deus, de todos os lados, mas é, também, saber que se está por ele guardado em todos sentidos, é ser constantemente lembrado da morte mas, continuamente encaminhado para a vida; é ser desalojado do aconchego das acomodações e libertado dos compromissos e do enclausuramento das coisas triviais para, [galgando os patamares de horizontes mais amplos], consciente e em abundante vida, contemplar a eternidade. [Viver “Paulinamente”] é ver a clareza do perdão dos pecados, vendo nesse perdão [concedido exclusivamente por Deus em sua plena liberdade] a incomparável diretriz de nosso procedimento ético; é viver fundamentalmente abalado, temendo todas grandezas relativas, tudo quanto [no mundo] tem algum valor, isto é, temendo todos valores reais, estabelecendo porém, relacionamento objetivo com todos eles. Viver “Paulinamente” é estar firmemente acorrentado a Deus, gozando, por isso mesmo, da maior tranqüilidade com respeito a todas indagações, a todas exigências e a todos mandamentos que não emanem diretamente de Deus, é ser completamente independente de todas

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imposições que não sejam exclusivas e privativas de Deus — e de Deus somente — de sorte que fica assim resolvida, relativizada, toda ordem [mandamento ou regulamento], toda imposição e toda autoridade; ficam destituídas [de importância, significado e poder] todas as semelhanças divinas neste mundo — [sejam Tronos], Poderes, Potestades! [Não é de estranhar] nem deixará de ser compreensível que aqueles que vivem segundo o paradigma Paulino — e agora falamos da essência, [do próprio cerne], do protestantismo! — se considerem fortes (15, 1) [pois os que assim vivem] são os livres, os que gozam de preeminência, os que conhecem, os que suportam inconcebível sobrecarga que vem da parte de Deus e, também por isso, são os artífices de indizíveis empreendimentos divinos. Acaso todas essas possibilidades éticas, positivas e negativas, que acabamos de enumerar não apontam radicalmente para [o seu centro que é] a ousadia da “impossível” possibilidade, isto é, para a ousadia da fé? [A ousadia de crer] significa ser livre; significa não reconhecer qualquer restrição do bem e do mal, senão a grande restrição divina porquanto, evidentemente só esta assegura o bem e condena o mal. Acaso não é FORTE quem ousa avançar o grande passo da fé? Acontece porém que agora, quando já nos saúdam as luzes do porto que está próximo, quando PER VARIOS CASUS, PER TOT DISCRIMINA RERUM, finalmente chegamos à interrogação que forçosamente teria de ser respondida afirmativamente, somos barrados com um derradeiro PARE! Mais uma vez nos deparamos com esta advertência depois de, na verdade já por suficientes vezes, havermos sido advertidos. Mais uma vez somos freados, mergulhados na incerteza e postos em meditação. Evidentemente precisamos quebrar mais uma vez nosso próprio quebrantamento. E Paulo contra o “Paulinismo!” E a Carta aos Romanos contra os próprios pontos de vista particulares na Epístola! E a liberdade de Deus contra a Livre Mordomia da Vida que, inevitavelmente, resulta dessa mesma liberdade! Esta é a surpreendente volta que dá o capítulo XIV da Epístola o que, no entanto, não pode surpreender ao leitor sensato pois dizemos “contra” quando na realidade é “A FAVOR”. Os LIVRES e os FORTES apenas são o que são por força da grande interrogação que também se aplica à sua liberdade e à sua força. Não somos advertidos contra a fé mas contra a NOSSA crença; não somos postos em guarda [ou de sobreaviso] contra aquele ponto que nos é visível, sobre o qual nos podemos firmar e pelo qual podemos viver mas, contra a nossa estabilização e NOSSA vida, nesse ponto. Não somos admoestados contra a Livre Mordomia da Vida mas contra a ambigüidade de sua aparência,

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contra a segurança pela qual nos esquivamos [ou poderíamos esquivar-nos] da crítica divina em qualquer de nossos passos, em alguma atitude ou posição, em alguma presunção ou opinião, em algum caminho que, na prática dessa mordomia, nos pareça digno de ser trilhado, ou pareça permitido e justificado. A crítica em cujo conhecimento o FORTE tem a sua fortidão estende-se também a ele mesmo, ao seu conhecimento e à sua força. Ninguém é justificado por suas próprias qualidades, nem aquele que se sacrifica, — (12, 1) —, nem o seguidor de Paulo, nem o que é livre [em Deus], nem mesmo o Cristão (conforme deixamos bem claro no Capítulo 1). É evidente que a Epístola aos Romanos nos desafia a [que pratiquemos] mordomia específica, inteiramente definida, e quem a julgasse apenas como diatribe teológica (o que sem dúvida, também é!) nada teria entendido da Carta; absolutamente não a teria compreendido quem ignorasse a sua proclamação ou não percebesse esta sua sonora clarinada: “... a ti se dirige este discurso; TU DEVES!” É claro que o sentido da mordomia a que a Epístola nos conclama é a LIBERDADE: é [a Livre Mordomia] trazida por Cristo e considerada desaconselhável e perigosa pelos “Grandes Inquisidores” de todos os tempos e por eles tida como sendo a corrompida e fementida liberdade no cativeiro de Deus. Todavia, a liberdade contida nessa liberdade de Deus e o que vive nesta mordomia da vida é a “não justificação” de tudo quanto a criatura humana, [como tal], designa por vida. Se alguém, armado [e inspirado] pela Epístola aos Romanos incetasse a luta [pela livre mordomia da vida segundo os preceitos “Paulinos”] e, todavia, se esquivasse ao ataque que a Carta faz a ele próprio, esse tal — positivamente — não a teria entendido porquanto, no clímax do ataque assim desferido [sem aplicar a mesma “disciplina” a si mesmo] será afligido por sonoro “PARE” que todavia será também sua confirmação, audível aos leitores mais sensíveis, aos que melhor a entenderam, aos que estão, [por assim dizer], predispostos ao “Paulinismo”. Aqui, cada leitor é submetido à prova [e pode tirar suas próprias conclusões] segundo a medida em que suporta a idéia de ainda uma vez, atento à advertência, abrir mão de tudo quanto acreditou haver compreendido, apreendido [e aprendido] na Epístola. Se aqui não se manifestar a “Grande Perturbação”, se esta não se tornar crítica [decisiva] para todo conhecimento — (até para o conhecimento cujo teor é exatamente este dessossego!) — [se nesta contingência e nesta provação] não restar [para o leitor] senão Deus e somente Deus, o Deus desconhecido e oculto, como única fortidão dos FORTES, então tudo [quanto tal leitor pensa

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haver compreendido e apreendido] não passa de mero bronze que soa e címbalo que tine. No desfecho da Carta aos Romanos, (de maneira algo semelhante aos epílogos dos romances de Dostoiewski) somos novamente postos ante a Impenetrável problemática da vida — (também da vida dos cristãos e de suas comunidades!). Não achamos saída (ou solução) para essa problemática e temos de recomeçar sempre [do mesmo ponto de partida], — vendo e sofrendo a aflição que nossa meditação sobre Deus gerou [e gera]. Ainda uma vez temos de nos defrontar com a realidade de nosso semelhante e que se expressa na Grande Tribulação. — o problema ético que o próximo representa. Vs. 1 a 4 Mantende comunhão com os fracos na fé e não susciteis dúvidas em suas convicções! Pois um crê que de tudo pode comer porém, o fraco prova apenas legumes! Aquele que come não despreze aquele que não conte. Aquele que não come não julgue ao que come, pois Deus mantém comunhão com ele. Quem és tu, para condenares o servo de um estranho? E para o seu Senhor que ele está em pé pois o seu Senhor tem o poder para o suster [Confrontar com a tradução de Almeida, talvez menos expressiva]. “Mantende comunhão com os fracos na fé!” A livre mordomia da vida é uma das formas de mordomia de vida [entre outras muitas] e, por sinal, é a que menos se destaca das demais e a que mais facilmente desaparece; se não for assim, então algo está errado com sua suposta liberdade porquanto o sentido desta liberdade não pode, em hipótese alguma. ser a conduta do indivíduo, como tal, mas há de ser o procedimento do UM, [portanto a invisível obra daquele que é invisível] no indivíduo; por isto, [e aparentemente de maneira paradoxal], o seu sentido é a comunidade. Toda atitude especial [extraordinária] que [essa livre mordomia] adota, põe em risco o seu sentido básico. A coisa extraordinária dessa mordomia livre consiste em ela não tomar atitudes excepcionais. Ela se estabelece com [plena] consciência de que é a única alternativa possível, ao lado de outras, corno se tais houvesse. É por isto que a pessoa [que adota essa livre mordomia para sua vida e se orienta por ela] é forte embora tenha essa fortitude como se não a tivesse, temendo imensamente sua eventual explosão. [O indivíduo que segue a livre mordomia da vida que Paulo prega] é, ele mesmo, a própria agitação — [o dinamismo a eletrização do ambiente], — por isso ele não entra nessa agitação [que tudo revoluciona e transforma, tudo faz novo]; quando muito será o seu

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motor — [quiçá o elemento catalítico que provoca a reação, o levedo que fermenta a massa, o propulsor dos outros] mas então, será também, e com toda certeza, o seu freio, [o elemento moderador]. Até ao “Paulinista” genuíno — (de passagem, note-se que se nem mesmo Paulo foi sempre [“Paulinista”] genuíno, o que diremos de nós?!) — falta o necessário empenho e capacidade suficiente para se diferençar dos outros, mesmo quando estes, mui zelosamente, teimam em ser diferentes dele; tal “Paulinista” não se apresenta [ou não se apresentaria] como acusador ou fustigador dos demais, antes procura [ou procuraria] participar de seus pontos de vista, indagando a respeito dos mesmos. O genuíno “Paulinista”, muito antes dos “outros” despertarem, já foi o seu próprio opositor. O genuíno “Paulinista” está convicto de que podem existir inúmeras alternativas éticas divergentes dos moldes “Paulinos” todavia, as leva a todas, [indiferentemente aos seus eventuais possíveis méritos], tão pouco a sério que evita escrupulosamente acentuar as incompatibilidades [que as caracterizam] e até mesmo prefere não defini-las. Se ele o fizesse estaria perdido porquanto a sua posição não é moldada segundo determinado ponto de vista [isto é, a sua ética não resulta de dedução ou erudição filosófica] e ai dele se consentir em ser levado a essa arena onde a cada ponto, honradamente, se contrapõe outro ponto [igualmente erudito e, quiçá, lógico], séria, — e solidamente — alicerçado. O verdadeiro “Paulinista”] é ainda mais reservado que os filósofos socráticos porquanto ele nem sequer procura despertar no seu interlocutor qualquer dúvida sobre a certeza de sua convicção; para o “Paulinista” verdadeiro, o outro deve seguir o seu caminho até o — fim (porquanto a pressuposição [da existência] do UM no outro é absolutamente fundamental. A [ética da] livre mordomia da vida não se impõe [às demais formas de comportamento humano] esgrimindo sucessivamente contra cada convicção, mas reconhecendo o objetivo comum a todas elas. Aquele que é FORTE está muito longe de praticar a “tolerância” que abandona cada um a suas próprias convicções mas está também igualmente distante da “intolerância” que procura extirpar do outro as convicções que acaso tenha. Quem é FORTE aprecia a seriedade dos diferentes caminhos [e procedimentos éticos] humanos, porém apenas na medida em que considera, [analisa e vê] a crise da qual todos procedem; até mesmo o seu modo peculiar de agir tem sua origem no fato de que ele não olvida essa crise, antes medita sobre ela. Tal pessoa tem razão apenas na medida em que não a pretende ter. Ela age conforme deve — [conforme lhe é pertinente, isto é,] socraticamente, [quiçá reservadamente] desvendando [abrindo, arejando, ventilando] todas formas

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de mordomias, dissolvendo-as [dissecando-as] de forma crítica, [decisiva], porém, como o faz? Fá-lo não abandonando a comunidade [dos fiéis], não a confundindo, não a bombardeando, porém nela pressupondo a existência da comunhão, que busca e mantém. [Tal pessoa — assim designada FORTE —] lidera sem inventar coisa alguma; rompe [e abre as passagens], nada destruindo; brilha sem se tornar visível, [conspícuo ou notável], vence, sujeitando-se, traz [consigo] a grande perturbação divina não sendo, absolutamente, perturbadora. Para que alguém cumpra tal programa [para assim se conduzir e agir dessa maneira] é mister descer discretamente de todas alturas que houver escalado, até mesmo das culminâncias que eventualmente pensar haver galgado pela [leitura e estudo da] Carta aos Romanos! “Pois um crê que de tudo pode comer”. Quem não percebe a dureza do humor [ou a ironia] dessa afirmação? Trata-se aqui da mesma FÉ (descrita nos Capítulos III e IV da Epístola) que aceitamos [e defendemos] porém [subentendendo] a condição de que [seja racional], que venha ao encontro do bom senso, seja conforme nossa convicção inteligente, sábia, [culta, quiçá liberal, como por exemplo] a “crença de que podemos comer de tudo” (!!), a crença de que o sabor da carne e a delícia do vinho não são pecados; a crença de que ninguém alcança a bem-aventurança pelo ascetismo e de que não se constrói o Reino de Deus mediante reforma da vida; que para o cristão não há caminhos, métodos ou esquemas obrigatórios nem há solicitações ou obrigações que sejam absolutas; a crença de que não podemos elaborar diretrizes ou regras normativas para o procedimento dos cristãos em sua peregrinação neste mundo, baseados no exemplo da vida de Jesus conforme nô-la relatam os evangelhos sinóticos e nem mesmo tirados dos ensinamentos contidos no “Sermão do Monte”; a crença de que — para citar apenas um exemplo [de natureza política] — nem mesmo a proibição do poderio militar para o domínio dos povos estaria perfeitamente definida [ou clara] na Escritura Sagrada (12, 18)! — A fé? Em que crê essa crença? Acaso será “nas grandiosas elucubrações que a ilimitada autonomia da consciência dos crentes proclama?” (Juelicher). Este é, na realidade, um “grandioso” ponto de vista já de longa data ajustado a todo “cidadão liberal” e a seu sacerdote, destituído de opinião própria! [A tradução inglesa resume, escrevendo: “ [Acaso] é isto fé? Se for, em que acredita o crente? Juelicher responde: Crê magnificamente no conceito da consciência livre”]. Valerá realmente à pena crer que se “pode comer de tudo”? Alcançar fortitude é assim, tão barato? O que acontecerá se adquirirmos essa força? O que acontecerá se tivermos consciência de que estamos maravilhosamente livres 777

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de toda autoridade, tradição, regimentos [e constituições] de Igrejas, etc.? Acaso isto mudaria, o mínimo que fosse, a situação da criatura entre o céu e a terra? [Seria] um paraíso assaz discreto [ou modesto], ante o qual sentiríamos saudades, até de um mosteiro! Todavia, quando se pergunta como se apresenta a livre mordomia da vida, em que atividade ou retraimento nosso, ela se realiza e se obtém como resposta, (quiçá) como no moderno protestantismo, que devemos contentarnos em fazer apenas perguntas [sem esperar respostas] — o que haveremos de designar como nossa “liberdade de consciência” e (como “explicar”) nossa crença “de que podemos comer de tudo”? Semelhante pobreza não deveria tornar-nos sobremaneira sensatos? Não deveria daí resultar claro para nós que o conceito do FORTE realmente não tem fundamento ou então, que ele é a pior das ilusões? Todavia, e em contraposição: “O fraco apenas come legumes”. Este é, francamente, um critério que pode ser entendido. Os incultos [os ignorantes], os “Não-Paulinos” sempre gozam da vantagem de que sua dubiedade não é óbvia, antes parece que entre eles sempre “acontece” alguma coisa. Entre eles vemos Igrejas fortes, seitas e facções aptas a viver; entre eles produzem-se algumas coisas; ocupam-se cargos [e tomam-se posições definidas], delineiam-se perfis marcantes, existem “atos e fatos” e há campo fértil para biografias. Entre os cristãos de Roma que apenas se alimentam de legumes vemos os incontáveis seguidores de Orfeu, da mística dionisiana, vemos “neopitagoreanos”, terapeutas, filopansas da antiguidade, a confraria das Ordens Mundiais da Idade Média, os batistas dos tempos da reforma, os abstinentes, os vegetarianos, os idealistas do ar livre [os ecologistas (?) dos tempos modernos]. [Poderíamos juntar inúmeros nomes a essa lista curiosa: Macrobióticos, Iogas, Astralistas para não incluir nomes mais próximos da grei protestante...]. Vemos [entre esses cristãos de Roma que recorrem aos legumes] a mordomia de vida do catolicismo — que falando com toda seriedade, deve ser considerada grandiosa — o rigorismo da Reforma e também Tolstoi, com boa parcela de socialistas e pacifistas religiosos. Somos levados a meditar sobre como essa mordomia surge (e sempre continua surgindo) organizando-se verdadeiramente em profunda seriedade e respeitável perplexidade, com liberdade e disposição ao trabalho e ao sacrifício. É com tributo de louvor que pensamos na longa lista de heróis, santos, mártires e profetas cujo SER e QUERER cresceu [e se desenvolveu] nesse solo. Sem dúvida, entre toda humanidade, os vultos mais dignos de honra, — de uma ou outra maneira — pertenceram à linhagem daqueles cristãos de Roma que se alimentavam com legumes somente.

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Com respeito à tragédia que inevitavelmente acompanha este quadro Idos fracos], já no final da Epístola, não vamos gastar mais nenhuma palavra. Apenas AO FRACO, — (que na verdade, tanto histórica como psicologicamente nada mais é do que FRACO!) — contrapomos o FORTE para também a este lembrar de sua tragédia e para lhe perguntar se, realmente, a sua fortitude “crendo que pode comer de tudo” é tão superior à crença do fraco que apenas come legumes, a ponto de justificar que possa segregá-lo de seu convívio em vez de manter com ele comunhão! Não seria o caso de reavaliar e contra-avaliar os pontos de vista de um e de outro? [Acaso] não poderia acontecer que o ponto de vista católico, ou o dos batistas, ou de algumas de suas variantes levasse vantagem, pelo menos em confronto com o “protestantismo moderno”? Acaso a realidade paradoxal de que a fortidão do forte consiste exatamente na marcante ausência de caracterização, não o deveria impedir de alimentar e ressaltar as características individuais que exibe? Em qualquer hipótese, a mera lembrança da absoluta inutilidade de sua condição de fortes, quando contrastada com a posição dos fracos não deveria ensinar-lhes a não procurarem suas forças na fortitude? Dizemos: “Não desprezeis” “Vale dizer: “Não julgueis!”. Parece não ser prudente opor a “liberdade de consciência” ao “rigorismo” ou vice-versa; pelo menos, de modo algum, contrapor a liberdade ao rigorismo pois, nessa polêmica os FORTES nunca poderão ter razão. Nessa discussão se focaliza sempre o desprezo ao intelectualismo, ao entusiasmo, ao “farisaísmo” do lado oposto e o homem reformista [rigorista] é vezeiro em responder ao homem espiritual com redobrada energia, acusando “a carne que vive mansa e suavemente em Wittenberg”. [A tradução inglesa traz nota explicativa sobre esse trecho, informando que a referência do Autor é ao título de panfleto publicado por Thomas Muenzer — “o Anabatista”, em 1524, O título completo desse panfleto é “Defesa e resposta altamente provocadas pela carne que desespiritualizada e mansamente vive em Wittenberg e que, de forma errônea, mediante o furto da Sagrada Escritura, enxovalhou tão lamentavelmente a infeliz cristandade”]. [Podemos inferir que “a carne” seja Lutero(!)]. Trata-se de “CÍRCULO VICIOSO”. Ambos os acusadores (O Fraco e o Forte) têm razão; (o que come legumes tem vantagens aparentes) porém, somente na acusação. De nada adianta prosseguir nessa polêmica. O FORTE, se realmente o for, deverá saber isto. A esta altura as partes não estão em pé de igualdade, o que o FRACO, todavia, não tem condições de saber. Todos “reformistas” são fariseus; falta-lhes o senso de humor [ou o bom senso] e não podem deixar de condenar os outros. Retire-se de um abstinente,

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de um verdadeiro socialista religioso, de um homem de Igreja ou de um pacifista, a emoção [ou a paixão] da indignação moral e ele cairá por terra com a espinha dorsal partida. Aquele que come legumes vive — (e nisto encontra o consolo de sua pacífica maneira de se alimentar) — do seu protesto íntimo ou público contra a loucura do mundo, sobre ela meneando sua cabeça; vive de sua segregação dos demais porque ele próprio não conhece a tragédia da vida humana que, por sua imensidade, deveria fazer toda boca calar-se. Todavia não é do FRACO que agora temos de nos ocupar [conforme já foi dito mais atrás], mas do “Paulinista” que faz de sua liberdade uma “causa”, comprovando assim que é mais fraco do que os FRACOS. Este “Paulinista” deveria saber aquilo que seu opositor — (a quem ele nem deveria considerar como opositor) — não sabe: “Deus mantém COMUNHÃO com ele” — [a saber], com o OUTRO, [em qualquer dos casos]. “Quem és tu que condenas o servo de um estranho?” Se soubesses o que significa JUSTITIA FORENSIS então não exibirias teu conhecimento contra os que não sabem. ELE fala por eles! “Para seu Senhor estão em pé ou caem.” Acaso a invisibilidade de Deus, sua justificação livre de qualquer motivação [humana], não seria também a favor dos “fracos na fé”, dos incultos, dos “não-Paulinistas”? Acaso alguém que tenha tido — ainda que — apenas um vislumbre [uma pálida percepção] dessa inaudita verdade de que Deus mantém comunhão com o ser humano exclusivamente por misericórdia, poderia desprezar um outro porque este não percebeu esta verdade mas, em seu otimismo, continua prosseguindo, esperançoso, nesta constante e íngreme rampa moral? Acaso está fora da possibilidade divina ter comunhão — não apenas com publicanos e meretrizes — mas também com fariseus?! “Todavia ele permanecerá em pé porque o senhor tem poder para o suster”. Acaso o “Paulinista” não se transforma em antifarisaico fariseu e se põe em falta no mesmo dia, — ou melhor no mesmo instante em que “despreza” o moralista? Ao desprezar o fariseu que acolá acusa um terceiro, ele — (o “Paulinista”), também está acusando e, fraco, — muito fraco, — é quem consente em ser levado à posição de acusador. Quem é senhor? Quem deve julgar? Quem tem condições — para derrubar ou para manter em pé? — Será o homem, ou Deus? O FORTE deveria sabê-lo! Então, quem sabe o que sabemos — Deus o sabe — O FORTE nada tem de antemão! Quem julga ter qualquer vantagem, “não sabe o que sabemos!” Só há uma antecipação, e esta é desde a eternidade, desde o começo dos tempos para

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o gênero humano]: é a Eleição divina. Desta “antecipação”, porém, (podem participar todos); nela pode ter parte um ingênuo vegetariano de hoje em toda sua inquebrantabilidade e eventualmente até com vantagem sobre alguém que conheça de cor a Epístola aos Romanos, da frente para trás e de trás para frente. Deus pode ter mais prazer em qualquer ato de monasticismo do que na segurança do teu protestantismo, oh néscio! “Deus mantém comunhão com ele” e “tem poder para o suster em pé!” Na verdade, esta possibilidade deveria animar-nos a também manter comunhão com aquele [que goza até do privilégio da comunhão divina]. Se não o fazemos, se queremos ser fortes “a toda prova”, então certamente estamos fracos. Se não tivermos sabedoria suficiente para descermos da altura de nosso conhecimento imediatamente após a havermos atingido, então evidentemente não somos sábios. Se quisermos novamente ser plenos de “caráter” então, nesta mesma intenção certamente renunciamos ao CHARACTER INDELEBELIS. Vs. 5 e 6 Unia observação secundária: Um também faz diferenciação entre dias e outros consideram todos os dias iguais. Cada um esteja contente com sua própria convicção. Também aquele que come, para o Senhor o faz, porquanto nisso dá graças a Deus; e aquele que não come, deixa de o fazer para o Senhor; também ele dá graças a Deus, nisto. [Em nota de rodapé o Autor refere-se ao primeiro “também” do v. 5, observando que este advérbio não deve ser omitido e diz que “os vs. 5 e 6 (conforme Zahn e Kuehl) contêm rico ‘ensinamento paralelo’ mediante o exemplo de práticas alternativas (a versão inglesa escreve, ...! mediante a ilustração de falta de uniformidade!) na cristandade, como diversificações reconhecidas e permitidas na mordomia da vida”]. Existem, evidentemente, diferenças que são toleradas mutuamente; nelas o forte compreende o rigor do fraco, inda que não se submeta a esse rigorismo. Ele silencia, considera e espera. Ele sabe que não se trata de dizer apressadamente o que pensa com convicção, contra o ponto de vista ou o procedimento] do outro ou, de combater o outro, porém trata-se de ter consciência e estar certo de que seu próprio modo de ver e examinar a questão são corretos perante Deus porquanto “neles há, não raro, mais flexibilidade [quiçá mais caridade cristã e comunhão com o próximo], do que [agindo apenas] pela consciência claramente informada” — (Steinhofer). [Quando o FORTE assim age é porque] percebe que o “RIGOR” é exercido “para o Senhor” e por trás desse rigorismo existe a perplexidade que se origina em Deus, mesmo que mal compreendida; ele

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considera [e conclui] que “o navio navega bem melhor em mar aberto todavia, se preciso for, também pode singrar em canais estreitos”. (Bengel). Entendendo o FORTE melhor o que se dá com o FRACO do que aquilo que se dá com ele mesmo, seria o caso de estender as situações isoladas a conjunturas mais amplas, generalizando-as talvez: “Ele agradece a Deus, nisso”. Esta referência a Deus é que decide sobre o valor ou o desvalor do procedimento humano; ela é a balança na qual se deita o rigor do rigorismo e também a liberdade dos livres. “A criatura humana, em sua oscilante constituição espiritual, está na inteira dependência do gesto divino sem se atrever a mover, sequer, um dedo. Esta é a lei básica de nossa existência”. (Calvino). Todavia, a aplicação dessa regra, por sua própria natureza, é invisível aos outros. O que faremos se os “FRACOS” pretenderem afirmar a existência de Deus por seu fanatismo e, mui especialmente, se for absolutamente claro para nós que seu relacionamento com Deus se fundamenta em processo idólatra? (Contudo, ao ponderarmos sobre isto precisamos lembrar-nos de que] é possível que nessa “afirmação” dos FRACOS eles tenham Deus em suas mentes, que o teor do seu procedimento — realmente — faça sentido e tenha significação e pode, até mesmo, ter o sentido de demonstração necessária e conveniente em honra a Deus, conquanto nem se pode admitir que para Deus o “comer” — [que “alguns” entendem ser sinal de fortitude cristã”] — seja mais agradável do que o “não-comer” [que os fracos defendem]. É a consideração sobre a “predestinação — da qual o fraco sequer tem noção— que estimula [e ensina] ao forte a se colocar na mesma fila dos FRACOS. Vs. 7 a 12 Agora uma observação básica: Porquanto nenhum de nós vive para si mesmo e ninguém morre para si mesmo. Pois se vivemos, para o Senhor vivemos e quando morremos, para o Senhor morremos. Por tanto, quer vivamos quer morramos, somos do Senhor Foi por isto que Cristo morreu e tornou a viver: afim de que seja Senhor sobre os mortos e sobre os vivos. Tu, pois, o que acusas em teu irmão? Pois todos compareceremos perante o tribunal de Deus, conforme está escrito: Tão verdadeiramente quanto vivo, diz o Senhor perante mim se dobrará todo joelho e toda língua me confessará! Portanto, cada um de nós precisará prestar contas de si mesmo. Ser FORTE significa reconhecer que a criatura humana, como tal, se encontra em crise que de forma alguma pode ser evitada. Nenhum de nós vive para si”; “se vivemos, para o Senhor vivemos”. Não há vida em si; só há vida

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referida a Deus, [vida] que está sob o julgamento e ante a promessa de Deus; esta vida é caracterizada pela morte mas é também qualificada pela esperança da vida eterna, mediante a morte de Cristo. E isto o que a crise da “livre mordomia da vida” e do “rigorismo”, representa; [a crise é uma só pois] tanto a “liberdade” como o “rigorismo”, evidentemente, objetivam a vida. Porém a VIDA, na vida, está na liberdade de Deus o que para nós, é a morte, pois somente vivemos para o Senhor. Acaso esta destinação da livre mordomia da vida seria menos crítica [menos decisiva, quiçá mais complacente] do que para os “RIGORISTAS” porque os primeiros objetivam conscientemente a vida eterna enquanto para estes o conceito de “vida” que procuram ainda não foi acrisolado [isto é, ainda] está contaminado pela desconfiança de que se trata apenas de vida biológica? Contudo, a “consciência” (dos FORTES) acaso não é também vida biológica? Como poderia [ainda que fosse] o mais poderoso [o mais forte, o supremo] “ato de pensamento” ter latente em si a segurança e a justificação para a criatura humana, [qualidades essas] que justificassem a superioridade [desse “ato de pensamento”] sobre os demais? [E o que podemos nós reconhecer e fazer valer como “ato de pensamento”?]. Somente o Senhor é a segurança da promessa. [Ele só é o avalista!] “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem”. Acontece porém que, em todas circunstâncias, o Senhor é também o juiz e nossa esperança somente é viva, mediante a morte de Cristo. Inversamente, “ninguém morre para si”. Quando morremos, para o Senhor morremos”. Não há morte em si; só há morte referida a Deus; é a morte que nos cerceia e enquanto assim nos cerca e prende, dá-nos saída para Deus; esta é a morte daquilo que designamos vida e que é qualificada pela ressurreição de Cristo como o sinal de nossa adoção [por Deus, como filhos seus]. Também esta morte está no teor da crise, tanto para o “Rigorismo” como para a “Livre Mordomia da Vida” pois ambos esses procedimentos, cada um a seu modo, têm a morte em mira. Porém, a MORTE na morte, está na liberdade de Deus, o que para nós é a vida, pois somente morremos para o Senhor. Aqui, novamente, precisa o FRACO purificar-se da desconfiança de que nessa negação relativa, nessa supressão, nesse debate que consubstancia sua mordomia de vida, se trate simplesmente de morte biológica, enquanto o FORTE, com circunspecção e maior tranqüilidade, sabe que a morte que temos de buscar é aquela qualificada pela ressurreição e nenhuma outra; todavia, nem pôr isso a referência à realidade da morte é menos crítica para ele porquanto o que mais pode ela fazer valer, se não um determinado conhecimento

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que tem a expressão de simples analogia (ou parábola) ante sua efetiva morte biológica? De que maneira poderia a nossa meditação sobre as coisas eternas justificar-nos e de que forma a nossa aceitação da reconciliação mediante a morte nos reconciliará com Deus? Somente o Senhor é o fiador da ressurreição. “Quando o Senhor não guarda a casa, em vão vigiam as sentinelas”. Todavia [ainda uma vez], em qualquer circunstância o Senhor é também o juiz; e o sentido da cruz, sob o qual todos estamos, somente é dado pela ressurreição de Cristo. Por isso, “quer vivamos quer morramos, somos do Senhor. Foi por isto que Cristo morreu e tornou a viver: a fim de que seja Senhor sobre mortos e sobre vivos”. Ser forte significa reconhecer a Deus em Cristo mas, isto, na crise derradeira e inevitável de nossa vida e de nossa morte, nesse ponto onde nada mais existe senão a misericórdia de Deus. Ser FORTE significa temer e amar a Deus sobre todas as coisas, conforme ele vem ao nosso pensamento na mais alta categoria dialética: como o SENHOR. Se estivermos cientes [e conscientizados] de que “para o Senhor vivemos”, então reconhecemos que não podemos pretender obter qualquer justificação — (por exemplo a auto-justificação) — pelo nosso SIM nem pelo nosso NAO, ao lado da justificação que só Deus pode dar, [ou que pudesse ser igual ou semelhante a essa]. Nem nossa vida, nem nossa morte; nem nosso SIM, nem nosso NÃO; nem o “Rigorismo” nem a “Livre Mordomia da Vida” fazem jús à justificação divina; isto não o sabe o FRACO e é o que constitui a sua fraqueza; por isso mesmo o FORTE precisa sabê-lo tanto melhor e portanto, na hora de agir, quando chega a ocasião de curvar-se (e render-se) ante o mistério divino, não pode esperar pelo FRACO porém, compete-lhe dar o primeiro passo, o passo da humildade, sabendo que nada sabemos, porque sabemos que Deus o sabe! “O que condenas, pois?” Ou então, perguntando muito mais objetivamente: “O que desprezas tu? Aquele que desprezas é “teu IRMÃO!” Não há qualquer razão (ou pretexto) para destruir a comunidade e existem inúmeras [ou todas] para a manter e preservar. “Para o Senhor” é a grande verdade crítica sob a qual. como criaturas humanas, estamos no mundo. (Esta verdade não diz respeito a FRACOS ou FORTES mas a todos, reunidos em Cristo que está perante Deus, como nosso IRMÃO!) Esta verdade crítica aponta a uma só coisa: “Todos compareceremos perante o tribunal divino”. Acabamos de ouvir que o SENHOR é o Juiz sobre vivos e mortos. Precisamos examinar isto sob todos aspectos.

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Porque o FUTURUM AETERNUM desse comparecimento é a realidade decisiva de nosso SER e ESTAR; porque todos compareceremos perante o tribunal de Deus, haveremos todos de comparecer quais somos: uns como fortes e outros como fracos. Todos, — espantados com esta realidade final [da Epístola], de que “somos do Senhor” — tentamos, de uma ou outra maneira, fazer a vontade de Deus, organizando a “mordomia” de nossa vida. (Isto não significa, porém, que nesta tentativa estejamos agindo sabiamente ou não). No mesmo mistério proclamado, na mesma perplexidade e na mesma esperança separam-se os caminhos. Um segue para a liberdade e outro para o rigorismo. Uns são os FORTES e outros os FRACOS, porém todos compareceremos perante o tribunal de Deus; porque o julgamento divino e a dupla predestinação são a realidade decisiva de nossa vida e de nossa morte. Trata-se da indubitável eleição dos primeiros e rejeição dos últimos porquanto o sentido da liberdade de consciência é declaradamente o reconhecimento da liberdade de Deus e de sua obra enquanto o sentido do rigorismo é, também declaradamente, o reconhecimento do aprisionamento da criatura e de suas próprias obras. Porém, em vista de estarmos perante o tribunal de Deus, porquanto estamos decisivamente sob a realidade de que é Deus quem elege ou condena, a situação não confere nenhum direito — nem o mínimo sequer, — aos FORTES (“aos eleitos”) sobre os FRACOS (os “rejeitados”), — [nem estão estes em desvantagem com relação àqueles]. A fidelidade de Deus justifica pela fé; e o conhecimento humano é verdadeiro na medida em que for conhecimento de Deus; semelhantemente, a esperança de nossa salvação é esperança em Deus e também o amor é o caminho mais excelente sendo o amor de Deus. Portanto, jamais se gera qualquer direito ao amor na esperança, no conhecimento ou na fé, antes: “Perante mim se dobrará todo joelho e toda língua me confessará!” (Isa. 45, 23). Quando e na medida em que o ser humano colocar a sua própria “piedade” [ou religiosidade] no lugar de Deus e da liberdade divina, a ética daí resultante — qualquer que seja — terá a rejeição de Deus. A conduta humana apenas (“eventualmente poderá”) alcançar a eleição divina na medida em que [genuína e existencialmente] renunciar vantagens, direitos, prerrogativas e renunciar à idolatração desta ou daquela determinada “religiosidade” [ou santidade]. É por isto que “cada um de nós precisará prestar conta de si mesmo”, pois o que sabemos da renúncia dos ‘outros”? Vemos apenas o modo de agir de cada um, a sua “religiosidade”. Como saberemos se ele, acaso é eleito justamente naquilo em que pensamos ver sua condenação? Como saberemos se ele. acaso é FORTE em sua aparente fraqueza?

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No “outro” somente podemos ver a pessoa julgada ou a ser julgada por Deus, isto é, vemos a pessoa que esta perante Deus além de tudo quanto possa ter algum significado para a conduta humana, portanto também além dos contrastes entre eleição e rejeição. Somente podemos ver o FORTE em Cristo e no FRACO somente podemos ver nosso irmão. A pergunta socrática, [quiçá a pergunta investigadora e detalhadora] sobre o Cristo e a pessoa de nosso irmão na figura do FRACO somente pode ser formulada [e examinada] por nós se renunciarmos [existencialmente] a todas as vantagens de que real ou supostamente gozamos ou que “houvermos adquirido”, mesmo aquelas oriundas da renúncia fundamental que nos tornou FORTES. Tudo quanto de antemão pudéssemos ter de vantagem sobre os outros é duvidoso, isto é, não é ganho líquido e certo. [A tradução inglesa escreve: “Toda nossa suposta superioridade sobre os outros é duvidosa”]. Temos de apresentar, de nós mesmos, a mais pesada prestação de contas por isto, todo julgamento feito segundo critérios históricos ou psicológicos (Mat. 7, 1), é improcedente, e isto se estende até à dúvida que a respeito da validade de tais ou quais critérios têm os membros mais tímidos das igrejas, os sectários mais severos, os fervorosos religiosos-sociais e, com eles, toda sorte de fariseus da liberdade. É improcedente a interrogação sobre a salvação da alma do “outro”, sob qualquer aspecto e [é indevida] a tentativa de julgar o relacionamento de alguém com Deus, de onde quer que essa tentativa venha, porquanto TUDO está sujeito ao juízo de Deus. Não julgueis! Esta é a única possibilidade que, todavia, não é uma possibilidade, não é receita, não é norma de conduta porém é a atitude em que nos colocamos sob o juízo que nos espera, na esperança da impossível possibilidade da misericórdia de Deus — esperança essa para a qual, [na realidade], — não temos qualquer fundamento — [senão a promessa divina — de Cristo: “Quem crer em mim, de maneira alguma morrerá!”]. Esta advertência sobre a disposição teórica da Livre Mordomia da Vida em confronto com o rigorismo, precisa ser analisada também em relação à sua exeqüibilidade “prática”. Vs. 13 a 15 Por isso não nos acusemos mais mutuamente porém comprovai vossa aptidão para julgar não ofendendo nem escandalizando o irmão. Porquanto eu bem sei, e estou firmemente convencido no Senhor, que nada

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é impuro em si mesmo e que [as coisas] somente são impuras para quem assim [as] considera. Se, porém, por teu comer teu irmão ficar em constrangimento, então já não procedes na conformidade do amor Não destruas por teu comer aquele por quem Cristo morreu. O ponto de vista da Epístola aos Romanos, como tal, é o ponto de vista de Deus. Julgar alguém, à luz desse ponto de vista, seria condenar essa pessoa em nome de Deus, [declarar a sua condenação por Deus], acarretar-lhe a ofensa e o escândalo que vêm de Deus. A simples lembrança disto deveria esmorecer em nós toda e qualquer pretensão a julgar [o próximo]. [A análise da exeqüibilidade prática do exercício da “Livre Mordomia da Vida”, a que mais atrás nos referimos] não trata da assimilação do “ponto de vista” de Deus que a Carta aos Romanos apresenta, porém, de tê-lo em mira sob todos os ângulos para sobre ele meditar e viver nessa meditação. Julgar, significa “declarar culpado” [ou, eventualmente, “declarar inocente”] e envolver determinada atitude em ira (ou, ainda em contraposição, cobrí-la pela aceitação ante sua própria inocência ou pelo perdão, que é ação “subjacente” no ato de julgar]. [No relacionamento da criatura com o Criador] o julgamento [com todos os atos a ele correlatos ou dele decorrentes] é indubitavelmente prerrogativa exclusiva de Deus, sempre continuadamente por ele praticada e, como obra sua, constitui invisivelmente uma única peça, (uma só coisa), ao lado do perdão e da justificação. Por outro lado, o julgamento que fazemos é desastrosamente unívoco; não temos a liberdade divina de condenar e eleger [e o que é ainda mais terrível para quem se atreve a avocar a si o privilégio divino — não temos meios para penetrar nos recônditos mistérios da fé ...]; onde e quando pronunciamos a condenação, nela nos fixamos e nessa atitude erigimos o ídolo da ira divina [isto é, fazemos da “ira de Deus” um ídolo]. Esta é a forma de julgamento a que o FRACO, em seu monasticismo [ou seu fanatismo], se entrega permanentemente; toda via, também o FORTE o faz quando pelas suas recriminações — e talvez, ainda mais, pela sua comiseração — provoca os que comem legumes, tornando-se assim “menosprezador”, quer dizer, acusador — é portanto, [também ele], FRACO, [verdadeiro] fariseu da liberdade. A “Capacidade do Discernimento” que o FORTE, como tal, sem dúvida possui, tem de se manifestar de outra maneira; [esse discernimento] há de aplicar-se [primeiramente] contra ele mesmo, precatando-se para de forma alguma considerar ou dirigir-se a seu irmão como se este fora o objeto da ira

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de Deus (porquanto tal ajuizamento, conforme o FORTE bem deveria saber, não compete ao ser humano!). Desta maneira, a “capacidade de discernimento” não apenas protege a quem a tem contra a prática do julgamento como também contra o risco de suscitar “ofensas” e “escândalos”. [Todavia], essa conduta [de moderação e prudência], também, apenas é divina sendo de Deus pois, como obra humana (por ter então sentido exclusivo, unívoco) é completamente impossível;) [inviável e contraproducente]. “Escandalizar” ou “ofender” significa induzir ao erro, ofuscar, obstinar, separar de Deus, suprimir as possibilidades de arrependimento. É fora de dúvida que Deus faz isto. (9,33). Todavia, [novamente aqui], no teor da invisível obra divina tal procedimento [tal tropeço] está intimamente ligado [e constitui peça única] com o seu oposto. [O próprio versículo citado diz: Todavia, “quem crer não será confundido.”]. Enquanto Deus, pela ofensa e escândalo que gera, põe em ação sua sentença condenatória, também aceita a criatura. Há a promessa e existe a esperança, [também], onde Deus condena e obstina (Cap. XI!). É da mesma pedra na qual tropeçam os rejeitados que se diz: “Quem nela crer não será destruído.” (9, 23-33). É diferente se a pessoa, colocando-se no lugar de Deus, causar ofensa: não provocará libertação mas, obstinação; oprimirá e não descerrará; matará e não vivificará. Acaso aqueles bem intencionados que em seu rigorismo alimentam-se de legumes somente, obtiveram algum outro resultado se não, possivelmente, ode que muitos tivessem seus olhos fechados, fossem amargurados e ficassem privados do arrependimento? O mais nobre farisaísmo jamais agiu senão [como fator] negativo e de obstinação. Todavia, também o farisaísmo da liberdade de consciência — a crença de que podemos comer de tudo, age negativamente quando não houver “capacidade de discernimento”, quando não houver liberdade na liberdade, nem possibilidade de, — talvez apesar da própria fé — não comer de tudo. Vê se então novamente que o maior direito é também o maior erro se o tomarmos como nosso direito. “Eu bem sei e estou firmemente convencido no Senhor Jesus que nada é impuro em si mesmo”. O ponto de vista do qual parte o “irmão” é errado e é de antemão invalidado por Cristo. Monasticismo e reformismo da vida — [rigorismo] — têm seu valor como semelhanças [analogias ou parábolas] porém não têm valor em si mesmos. Jamais — e em nenhum sentido — são degraus de acesso ao Reino dos Céus. Assim como existe um só bem também só há um único mal; assim como só há uma coisa pura também só há uma única coisa impura, a saber: tudo [o

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que é do mundo] é impuro para Deus; conseqüentemente nada é particularmente impuro e todas constatações de que esta ou aquela coisa específica seja impura se originam da ilusão, íntima ou declarada, de que nem tudo seja impuro perante Deus ou então a recusa, também íntima ou publicamente confessada, à prática do arrependimento. A [honestidade ou a] seriedade de propósitos dos ascetas e de todas pessoas empenhadas na reforma da conduta dos indivíduos precisaria crescer muito para que ficasse à altura do problema do mal [que com seu rigorismo pretende resolver]. “Todavia [as coisas] somente são impuras para quem assim [as] considera”. Admitamos que alguém, errando, (conforme já o demonstramos) adote semelhante ponto de vista [isto é, considere alguma coisa como sendo impura] e que essa pessoa se tenha firmado nessa conclusão errônea sentindo, portanto, repulsa por algo específico. Parece-nos, então, evidente que o modo de ver dessa pessoa ou o encaminhamento de seu raciocínio é diferente daquele que nós seguiríamos pois a conclusão a que chega deve ser justa e certa segundo seu modo de pensar e não pode ser contestada. A tabuada pela qual tal pessoa opera certamente é correta; o erro está nos valores atribuídos às cifras. A seriedade e o discernimento de sua repulsa são justos [e até excelentes]; apenas é fatal a arbitrariedade na escolha de seu objeto. Por isso, tal pessoa precisa ser reconduzida à sua origem: como foi que ela se fez? Sob o ponto de vista humano foi, evidentemente, pelo mesmo sadio dessossego da vida que dá origem à liberdade de consciência do FORTE; foi da mesma premente consternação que a derradeira questão suscita também neste, e da mesma ânsia de alcançar a justificação de Deus que este cultiva. Portanto. se agora quem assim se fez precisa ser reconduzido à origem, o dessossego, a interrogação consternadora e o anseio, [comuns às duas evoluções], precisam ser resguardados [preservados]. A liberdade na qual cada pessoa está — mui particularmente no instante de sua mais profunda aflição, — não pode ser perturbada. Todavia, quando a pessoa é obrigada a abandonar a conclusão a que suas deduções anteriores a levaram sem ver e reconhecer o seu erro, fatalmente surge essa perturbação, endurecendo a pessoa, [não como obstinção mas como insensibilização, isto é, esse “endurecimento” nada tem a ver com o de Faraó, por exemplo, antes deve ser entendido como indiferença, desinteresse e, neste sentido sim, recusa obstinada em aceitar; em outras palavras] a firmeza e a decisão [com que a pessoa outrora defendia o rigorismo”] deixam de ter razão de ser e ela se torna leviana, indiferente, imprecisa [justamente naqueles pontos] onde antes era ponderada, severa, definida; em vez de se radicalizar e com

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seu antigo vigor e rigor romper com o passado e ir ao encontro da liberdade de Deus onde “todas as coisas são puras, para os puros” (Tit. 1, 15), [o rigorista “humanamente” reconduzido à origem corre o risco de entrar no marasmo das acomodações e, depois de se haver escandalizado com a ostentação, com o ‘Titanismo” dos “FORTES”, seguir tropeçando nas pedras postas no caminho pelos sábios e iluminados ensinamentos dos modernos sustentáculos das igrejas — (quiçá pelos paladinos da tolerância, do ecumenismo e do evangelho social) — e assim, de pois de muito haver tropeçado e algumas vezes caído, finalmente, “nem quente nem frio” será lançado fora ou... quem sabe? “Também a este Deus o receberá!”] A possibilidade de arrependimento de cada pessoa está condicionada a que percorra seu caminho até o fim porquanto o arrependimento é o único procedimento que, como fim da criatura humana [no mundo] e seu novo começo em Deus tem, por assim dizer, [as características dai individualidade, unicidade e originalidade que ninguém pode tirar do outro. [O arrependimento será, necessariamente, a última etapa do caminho para o retorno a Deus]. “Se porém, por teu comer, teu irmão ficar em constrangimento, então já não procedes na conformidade do amor”. Constitui constrangimento ao próximo todo ato [ou procedimento] pelo qual perturbo sua caminhada; [todo comportamento ou exemplo] pelo qual o estimulo a fazer o que ele, [no seu próprio conceito] não faria [ou pensa que] não deveria fazer; [toda atitude ou ensinamento] mediante o qual abafo e neutralizo a inquietação que sua teimosia e seu capricho (seu rigorismo), escondem; em que o ajudo a alcançar uma paz, [um sossego, uma segurança] que ele, absolutamente, não deve sentir. [Constrangimento ao próximo] é toda ação [exemplo, ensinamento ou pregação] que dele afaste a necessidade [e a urgência] do arrependimento. Se assim eu o vencer, eu o conquisto, porém pelo seu desencaminhamento. Combato o titanismo de sua atitude moral, conforme a vejo, sem procurar o motivo dessa posição, [sua origem] mais profunda e conseqüentemente o lanço em titanismo inda mais perigoso — [a presunção] da liberdade. — no qual eu mesmo [em minha fortitude] estou entalado. Mostro-lhe uma liberdade que é, para ele, o pior dos cativeiros. Transmito-lhe um conhecimento de Deus que mais propriamente se chamaria “conhecimento de Satanás”. Talvez esteja eu, assim, a preparar-lhe o escândalo que Deus, inevitavelmente lhe deparará — (é necessário que venham escândalos). Talvez aquilo que lhe impinjo até seja o “final do caminho” [e que portanto eu não esteja perturbando sua marcha e, quem sabe até estou ajudando . ..] e nisto lhe seja dada a possibilidade do arrependimento. Talvez ao induzí-lo à

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tentação eu o esteja afastando de sua própria pessoa, e o esteja levando além da inquietação de sua vida à presença de Deus. Contudo. — [“ai daquele homem por quem o escândalo vem” Mat. 18, 7], — o que posso eu saber “e conhecer” disso tudo? Como haveria eu de me atrever a agir nessa hipotética possibilidade divina? Já “não estarei andando segundo o amor” se na fraqueza do próximo eu esquecer a existência do meu irmão em meu semelhante; do UM, no outro; e de Cristo, nesse [e em qualquer] “próximo”. Não sou justificado porque tenha razão nem porque Deus a tem. Portanto, “não destruas pelo teu comer aquele por quem Cristo morreu.” Cristo morreu POR ele; eu, porém, como CONTRA ele! [Cristo, por ele, se entregou à cruz; eu, contra ele, me entrego ao prazer da mesa!...] Isto é o impossível absurdo da minha mais alta possibilidade — a saber, o absurdo da minha religião [intelectualizada]; é o erro da minha suprema retidão. Nenhuma vitória da minha liberdade de consciência — minha crença de que “de tudo me é lícito comer” — me justificará a partir do momento em que, assentado sobre o trono de Deus passo a “ofender e escandalizar” trazendo confusão a meu irmão em vez de dar lugar à ira de Deus: nesse instante cessam minha liberdade e minha fé e todo meu saber passa a ser como se eu nada soubesse. Vs. 16 a 18 Vosso bem não deve ser blasfemado porquanto o Reino de Deus não consiste no comer e no beber mas na, justificação, na paz e na alegria, no Santo Espírito. Quem assim serve a Cristo é agradável a Deus e aceito pelos homens. Estamos ante a barreira eril que se contrapõe à força dos fortes: a crise daquilo que designamos como “nossa liberdade”. Alegramo-nos com a liberdade que temos [para administrar nossa vida] considerando-a o próprio “BEM”; todavia ela somente será o “BEM” se for a vivência do Reino de Deus. Está isto claro? [Para facilitar — ou, quiçá, encaminhar a análise do problema no intuito de esclarecê-lo vamos propor algumas questões, fazer certas indagações:] Acaso esta liberdade de consciência de que tanto nos regozijamos é apenas a liberdade que Deus toma e deve ter em nosso procedimento — quer quando agimos ou quando deixamos de agir [no caso do exemplo objeto do discurso de Paulo, — quer quando comemos quer quando não comemos], ou trata-se da liberdade que, em seu nome, gostaríamos de ter?

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Sabemos que o valor de nossa liberdade está no fato de que nela Deus demonstra a sua liberdade, ou entendemos que nossa liberdade tem algum valor intrínseco? Quando demonstramos nossa fortidão acaso é alguma expressão de “justificação”, paz e alegria, ou é a demonstração de nossa força “pelo comer e pelo beber”? Podemos fazer o que devemos, ou devemos fazer o que podemos? Estamos interessados na “autonomia” da verdade [como um todo], ou buscamos meios para implantar “a verdade que conhecemos”? Se [nestas alternativas todas] a nossa posição se identificar com a segunda hipótese então o nosso BEM já foi blasfemado por nós mesmos e abandonado à blasfêmia dos outros de pleno direito. Quão duvidoso, quão comicamente presunçoso — ou melhor quão hipócrita e perigoso se parece subitamente o “Paulinismo” quando ele fica sujeito a esse grande equívoco (conforme sem dúvida acontece no protestantismo moderno (!)) [e que consiste na idéia da] justificação da criatura humana mediante o conhecimento do mistério de Deus. Para chegar a tal conclusão não seria necessário perlustrar a Epístola aos Romanos. Se este tema fosse tudo o que a Epístola contivesse (e qual o “Paulinista” que esteja — ainda que por um só momento — a salvo do perigo de agir como se isso fora, realmente, tudo!), quanta razão não teria então o coro dos “fracos” com as incriminações que desde sempre levantam contra a Carta!? Quão certo estaria o “Grande Inquisidor” em suas ponderações [(então)] verdadeiramente bem fundamentadas contra a liberdade que Cristo trouxe! Teriam então razão todos esses vastos exércitos de moralistas, pedagogos, psicólogos, sociólogos, todos os que analisam o mundo pela história, todos os que estão seguros de que são retos e práticos [objetivos] e todos os que se interessam pelo bom senso geral! De um só golpe, teriam todos absoluta razão; subitamente a profunda insensatez [de toda essa gente] nos pareceria desculpável pela sua inocuidade, ou melhor, nos pareceria bem fundamentada e justificada. Teríamos então urgente necessidade de nos sujeitarmos a qualquer lei que estivesse mais prontamente a nosso alcance; havendo avançado longe demais em nosso exame, poderá parecer-nos mui agradável voltar aos braços maternais da Igreja Católica. [Talvez seja conveniente abrir aqui um parêntese para ventilar e procurar entender o que o Autor quer que se torne realmente “claro”. Primeiramente, o que “devemos e podemos fazer” e o — que “devemos fazer se pudermos”? Os sentidos usuais que damos a esses verbos não parecem definir com precisão as alternativas em vista. Parece-me porém que ao afirmarmos que

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“podemos fazer o que devemos” estamos dizendo que sabemos qual o nosso dever mas somos livres para cumpri-lo segundo os ditames de nossa consciência, segundo a expressão e a opção de nossa vontade. Todavia, na expressão de que “devemos fazer o que podemos” estamos nos submetendo à obediência de disposições superiores na qual não deixa de haver certa dose de oportunismo e porção maior ou menor de acomodação. Em seguida, o que é o mistério de Deus em torno de cujo conhecimento o protestantismo procura (ou procurava quando Barth escreveu) encontrar a justificação da criatura? Talvez a expressão “justificação” não tenha (ou não deveria ter) aqui o sentido total da justificação de Deus que é segundo a fé, mas o sentido de justificação da conduta do “crente”, quiçá “Paulinista”, perante os seus irmãos; trata-se, talvez, de lhe dar a devida razão do ponto de vista humano, embora essa aceitação possa, implicitamente, ser estendida à justificação divina. Se assim entendermos a “justificação” que o Autor diz ser inerente ao protestantismo de seu tempo, talvez ainda encontremos amplos vestígios dessa característica no protestantismo de hoje; (e seriam somente vestígios?). Então é evidente que o “mistério de Deus” é a liberdade de consciência consoante o ensinamento da Epistola aos Romanos, liberdade essa que desde os primórdios do cristianismo todos os leguleios e os legalistas religiosos — de qualquer denominação ou seita, — sempre reprovaram e lamentaram, sendo seu modelo exteriotipado no “Grande Inquisidor”. Todavia, essa liberdade tem também a sua barreira: “Que não seja blasfemado o vosso ‘BEM!. Tudo posso, mas nem tudo me convém!” A minha liberdade de consciência dá-me o direito de “comer e de beber” mas me dá também o direito de deixar de comer e de beber. Esta negação não é uma ordem peremptória, uma lei “dos Medos e dos Persas”, mas é a lei do amor; se eu constranger meu irmão, se eu o escandalizar, quer bebendo ou comendo, quer me abstendo de o fazer, já não estou mais agindo segundo a lei do amor. É por isto que o dilema é terrível; é por isto que (para minha comodidade, meu “apaziguamento”), seria melhor apegar-me a qualquer “lei” que esteja a mão, lei que me proíba a fazer isto e aquilo e me imponha critérios definitivos, circunstanciados, para minha conduta; se isto me traz a paz, então melhor me fora entregar-me aos braços da chamada Santa Madre Igreja Católica” que resolve meus problemas temporais (temporariamente, é certo), com seu confessionário, com suas penitências e, a médio prazo, com o purgatório e as intercessões da “Igreja”]. Todavia, é a própria justiça de Deus que nos leva a esta crise [isto é, à crise da delimitação da liberdade dentro de nossa liberdade]. Se esta crise não

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for reconhecida como o próprio Reino de Deus, ela se transformará em nosso tribunal. Servimos a Cristo “no Espírito Santo” e nunca jamais “em nosso espírito!” Se optarmos por esta segunda possibilidade então a liberdade de mordomia de nossa vida passa a existir em honra ao nosso espírito e já não nos podemos admirar de não sermos “agradáveis” a Deus nem “aceitáveis” perante os homens. (Quem há que não esteja [permanentemente muito] próximo da possibilidade de servir a Cristo em seu próprio espírito?!) [A tolerância com que o Forte acolhe o Fraco que cuida do “comer e do Beber” como testemunho de sua fé, pode ser aceitável perante Deus na medida que essa condescendência tiver fundamento legítimo na segunda parte do Grande Mandamento — “Amarás a Deus de todo teu coração e ao próximo como a ti mesmo”; portanto o gesto é um amorável Ágape, e só pode ter lugar em Cristo, isto é, no Espírito Santo. Todavia se o Forte houver sido impulsionado por outras considerações, ainda que sejam nobres e até mesmo espirituais, é possível que ao invés de Justificação alcance condenação, pois eventualmente estará agindo em seu próprio espírito, erigindo a si mesmo em Deus.] Vs. 19 a 23 Assim, aspiremos pela paz e pela edificação mútua. Não destruas a obra de Deus por amor à comida. Tudo é limpo mas, quem come provocando escândalo procede do maligno. E melhor não comer carne nem beber vinho nem fazer coisa alguma que escandalize teu irmão. Tens fé? Tem-na em ti mesmo, perante Deus! Bem-aventurado aquele que não precisa condenar-se naquilo que faz. Porém, quem come duvidando é condenado à morte ao fazê-lo, porquanto este tal não procede conforme a fé e, tudo quanto não for pela fé é pecado. [O Autor comenta que no original grego o v. 22 escreve “Tu o qual tens fé”; diz Barth que deve tratar-se de engano de copista que, talvez não notando tratar-se de frase interrogativa, inseriu este “o qual”]. Será que nossa argumentação deixou clara essa linha duplamente partida, — o caminho estreito da mordomia “Paulina” da vida, que jamais é evidente por si mesma? Vamos (tentar) sintetizá-la mais uma vez, [porém de forma diferente]: “Devemos aspirar pela paz” todavia, não pela “primeira boa paz” que encontrarmos, na qual mais obedeçamos aos homens do que a Deus. [Portanto, voltando ao nosso longo parêntese de mais atrás, nada de abraçar sofregamente a “primeira” lei que nos aparece à mão ou de voltar, — conformado ou acomodado — aos braços da” antiga” Igreja...] Na liberdade de Deus [na liberdade de consciência], “PAZ” pode significar guerra com todo mundo. Portanto, a consciência independente [e esclarecida]

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seja o sol do teu procedimento ético [de tua moralidade]. Sim; mas há outras condições: a consciência independente, em Deus; a PAZ é a paz de Deus que está acima do melhor critério humano; a PAZ na liberdade, que é também a liberdade do próximo e, finalmente, não há paz sem edificação mútua. Agora, pois, prossiga no teu caminho! “Não destruas por causa da comida, a obra de Deus!” Vemos o “BEM”, o que é divino, em perigo; vemos como a humanidade sofre e reconhecemos a necessidade de atacar, de oferecer holocausto e de fazer alguma coisa. Verdadeiramente não é para a afirmação ou confirmação de sua própria liberdade que alguém há de destruir a obra de Deus. Sim, pois “TUDO é PURO”. Tudo! Este [tudo] é o ponto final de todo arrebatamento moral; é a terminação básica, fundamental, de todo procedimento direto [a saber, é o fim, é o termino de toda ação humana que tem determinado fim em vista como por exemplo alguma renúncia, abstinência, a reformação da vida; este tudo] é a proclamação da liberdade de consciência de todos! [Este “tudo” confirma que] o protestantismo está irrestritamente certo. Todavia há uma segunda consideração: [o “comer de tudo”] “procede do malígno para quem come escandalizando seu irmão”. Isto quer dizer que se o meu próximo está em aflição, eu a aumento usando da minha liberdade [de comer]; que ele está em tentação e eu estou a empurrá-lo mais para dentro dela; que ele deveria seguir o seu caminho sem se desviar [e sem se distrair de seu objetivo] e eu o detenho. Posso fazer isso? [Se de fato posso, o que — como possibilidade — é evidente] preciso realmente “QUERER FAZER” o que posso? Posso desprezar a ação direta, (objetiva, a ação de comer), isto é, posso deixar de a praticar? (Ou então, ainda) baseado em minha liberdade de consciência, posso passar ao largo daquele que caiu nas mãos dos salteadores [isto é, posso deixar de atender a meu irmão que está em aflição e “comer” (ou proceder) conforme estou convicto que seria “legalmente” aceitável por Deus, tendo em vista que sou “realmente” FORTE?]. Vamos adiante: “E melhor não comer carne nem beber vinho nem fazer coisa alguma que escandalize teu irmão”. O Santo Espírito é o direito objetivo e não o direito que tenho. Vês as pedras que apontam no meio da correnteza? Não te demores sobre nenhuma delas senão o tempo necessário para nelas apoiares o pé para o passo seguinte pois só dessa forma chegarás à outra margem! “Tens fé?” Sim, [é bom] que a tenhas; porém, “tem-na para ti mesmo” e “perante Deus!” Podes crer apenas por ti mesmo e perante Deus. Estás inteiramente a sós com Deus, em tua fé, inteiramente preso a ele e lançado sobre ele; ninguém

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mais é teu juiz nem teu Salvador e, “bem-aventurado é aquele que não precisa condenar-se naquilo que faz!” Está perfeitamente certo: porém, também aqui há uma segunda consideração: é coisa terrível estar assim a sós com Deus; saber que só ELE é o “Bem”; que não se pode zombar de Deus que tudo exige de nós e tudo suprime [e anula pela nossa total imodéstia, nossa presunçosa liberdade de consciência e nosso “Titanismo”]. Nesta proximidade de Deus chegamos todos à duvida se naquilo que fazemos resta alguma coisa que se firme na fé pois o risco de que muito pouco ou mesmo nada reste é muito grande e está infinitamente próximo de cada um de nós e... “quem come duvidando é condenado à morte ao fazê-lo, porque este tal não procede conforme a fé e tudo quanto não for pela fé é pecado”. Quem há, então, que seja justificado? Quem ousa dizer: tenho fé? Quem se atreve a assumir a responsabilidade [de responder à perguntai por si mesmo ou pelos outros? Quem há que se atreva a jactar-se de sua independência e liberdade (neste terreno)? Portanto, nesta tétrica incerteza, apega-te a este único fio: Deus! E quem haverá de apegar-se [a Deus] se não for sustentado? Vs. 1 a 6 Porém nós, os fortes, temos o dever de suportar os fracos, os destituídos não vivendo para nossa própria satisfação. Pois também Cristo não viveu para agradar a si mesmo porém, conforme está escrito: as injúrias daqueles que te injuriaram caíram sobre mim! (Porquanto o que foi escrito, o foi para nosso ensino, para que alcançássemos esperança pela perseverança e o consolo inerentes aos cristãos). O Deus da perseverança e do consolo, porém, vos conceda um mesmo espírito, com vistas a Cristo Jesus, a fim de que com um só ânimo e em uníssono, louveis a Deus — Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. (Confrontando com a tradução de Almeida notamos que Barth escreve “perseverança” onde Almeida registra “esperança”. Todavia Barth faz extensa digressão explicando porque deixou de incluir os vs. 25-27 do Cap. XVI juntamente com 15, 1-6 conforme o fez na primeira edição. Diz Barth que, então, assim escreveu os vs. 26-27, acompanhando Tholuck, Hoffmann e Zahn: “Porém aquele que tem o poder para vos fortalecer — (Zahn diz ‘para vos firmar’) — segundo meu evangelho e a proclamação de Jesus Cristo segundo a revelação de um mistério — (Lietzmann escreve ‘em’ e não ‘segundo’ nos dois casos acima) — que foi silenciado por tempos eternos porém foi agora revelado pelos escritos proféticos por ordem do eterno Deus, (Zahn escreve: ‘Pelos escritos

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proféticos e pelo aparecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo!) — e foi dado a conhecer por intermédio de Jesus Cristo, para ser obedecido pela fé, por todos os povos, o Deus que — só ele — é sábio, a quem seja (frase que Zahn omite) honra de eternidade em eternidade!” — (Zahn escreve apenas, “em eternidade!”). Barth escreve que à vista das críticas que desde então se seguiram ao texto, feitas por Corssan, Lietzmann e Harnack e também com fundamento em novas exegeses (“que devem aqui ter a última palavra conforme Zahn, com razão, afirma”), julga que sua primeira posição precisa ser corrigida, justificando-se como segue:] “Ficou demonstrado [nas referidas considerações] que provavelmente por volta da passagem dos séculos 2 para 3 e, talvez até antes, existiam em circulação nas igrejas regulares [não cismáticas] latinas, compêndios das cartas Paulinas que não incluíam os capítulos XV e XVI da Epístola aos Romanos. A razão dessa omissão, especialmente em vista de o assunto tratado no capítulo XIV continuar com todo ímpeto no capítulo XV, quais as causas ‘externas’ ou ‘internas’ que poderiam ter influído para que isso acontecesse e, sobretudo, que relação há entre essa omissão e o texto de Marcion (sobre o qual Orígenes informa AB EO LOC: UBI SCRIPTUM EST ‘OMNE AUTEM QUOD NUM EST EX FIDE, PECCATUM EST’ USQUE AD FINEM CUNCTA DISSECUIT) — são pontos totalmente obscuros. Baste-nos pois que essa provável omissão (não somente nos textos marcionistas e, sem relação comprovada com estes, também nos textos eclesiásticos) é tão notável que, ainda que não possamos penetrar na sua razão, temos de contar com sua realidade. “Admitindo-se esta extraordinária omissão, então a necessidade de ‘um grande epílogo de efeito litúrgico seria apropriada à seqüência da leitura da Epístola no serviço religioso’ (Lietzmann) e o atendimento dessa exigência mediante a introdução de semelhante doxologia [idéia que o Autor, outrora, combateu], já não parece estranha. “A falta de unidade de que se ressentiam os Capítulos XIV e XV já não pesa sobre a correspondente liturgia mas, faz carga contra quem publicou o texto mutilado. “A passagem de 16, 25-27 é uma doxologia e eu — [diz Barth] — não deveria ter seguido a hábil demonstração de Hoffmann, aliás refutada por Zahn; as primeiras palavras do v. 25 — ‘agora aos que sendo hábeis’ não poderiam ser tomadas como objeto direto das primeiras palavras de 15, 1 — ‘deveríamos assim’ — (conforme Hoffmann pretende); esse arranjo gramatical é tão horrível que jamais deveria ter sido aceito o que, demais

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a mais, torna-se perfeitamente claro comparando a passagem com as que lhe são paralelas em Ef. 3, 20, Jud. 24 e 25 e também, embora com menos precisão, em Mart. Polic. 20. [Provavelmente a carta do ‘Mártir’ Policarpo, bispo de Smirna, aos Filipenses]. Em todas essas passagens trata-se de invocação independente da frase seguinte. Se for assim, então a inserção de 16, 25-27 entre 14, 23 e 15, 1 provoca inaceitável quebra de continuidade, com o que Hoffmann concorda. Nessas condições, o mínimo que se poderia dizer é que seria difícil compreender a razão de ser desse hino [dessa doxologia, nesse lugar] pois mesmo aceitando a idéia [geral] de Hoffmann, não se pode admitir que a passagem seja ‘importante elemento’ na exposição do pensamento Paulino [conforme Hoffmann pretende], porquanto se este ‘elemento do pensamento’ se referir à fundamentação da necessidade de cuidar dos ‘fracos’ será, sem duvida, uma fundamentação muito peculiar e forçada. Todos argumentos empregados para justificar tal interpretação estribam-se na ênfase dada à expressão ‘para estabelecer! [Almeida escreve ‘para vos confirmar’]. E de notar que se adotássemos esta interpretação ficaríamos em flagrante contradição com o texto de 15, 3-12 o qual segue 14, 23 naturalmente, enquanto 16, 25-27, neste ponto, soa esdrúxulo, dispensável, quase impróprio, inteiramente fora do contexto e apenas explicável como fecho litúrgico destituído de qualquer outra correlação. Se 14, 23 não for o final da Epístola — e não é fácil aceitar que o seja embora aí houvessem terminado os referidos antigos manuscritos — então a doxologia de 16, 25-27 não cabe neste ponto. Todavia, ela também não cabe no fim do Capítulo XVI — conforme já o dissemos no comentário da primeira edição. De que serviria ela, então? Seria ‘psicológica! (Kuehl) para ser lida no final dos cultos [solenes ou] festivos? Mas a carta aos Romanos nada tem de tais características, antes é ela objetiva [prática]; vai ao desfecho com a pequena discussão de 16, 17-20, conclui com as saudações enviadas pela gente de Corinto e, encerra com a bênção de 16, 24 conforme convém — e esta sim, não pode ser suprimida. “A idéia de que Paulo fosse criar após a ‘bênção’ nova ‘figura litúrgica’ parece ser fora de propósito; ainda que isto fosse possível, é preciso notar que esta passagem de 16, 25-27 difere consideravelmente do estilo corrente de Paulo, notadamente se a confrontarmos com a doxologia de Efe. 3, 20-21, em comparação com a qual a passagem discutida soa desagradavelmente empolada; a construção gramatical forçadamente rebuscada; inegavelmente, os grupos conceituais são estranhos e, para completar [o aspecto negativo desse ‘hino’!], há ainda a observação de

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Harnack a respeito do cunho marcionista que caracteriza estas poucas linhas, indicando as ‘correções’ que Marcion teria introduzido para tornálas aceitáveis à Igreja Regular [de então] e que, por isso mesmo, se tornaram Intragáveis. “Tudo isto leva à conclusão de que esta passagem não é de Paulo. Ela foi acrescentada aos primeiros 14 capítulos como conclusão litúrgica e depois foi transcrita na Epístola completa — já com os 16 capítulos, — por vezes no mesmo lugar do seu ‘enxerto’ original entre os capítulos XIV e XV; outras vezes foi transferida para o final do capítulo XVI — ‘sufocando! 16, 24; algumas vezes foi até transcrita nos dois lugares. Todavia, também existem transcrições que excluem totalmente a ‘doxologia! de 16, 25-27. “Esta é a transcrição que considero ser a original, certa”. Somos “FORTES”. O que nos torna “fortes” procede da crise que, sem esmorecer. irrompe sempre de novo em nossa fortidão: não buscamos outro caminho senão aquele que segue no meio de dois precipícios; não queremos outra passagem para transpor a correnteza senão aquela onde podemos apoiar o pé por um momento apenas; não queremos outro repouso senão Deus. Todavia, a crise subsiste: tudo quanto for auto-afirmação; liberalidade; conquistas econômicas, políticas e intelectuais; direitos; reivindicação de nossa crença ou fé; — [sim, tudo isto nada tem a ver com a nossa fortitude. Se a nossa Livre Mordomia da Vida, secretamente, tiver tal objetivo, então é melhor que passemos ao arraial dos “Rigoristas”, dos “fracos”, pois é destas coisas que eles cuidam. Porém, o que nos resta então? Visivelmente, nada. Apenas podemos concluir que, na qualidade “dos que sabem”, dos “prudentes”, “como aqueles que são livres”, também nós somos fracos; apenas podemos igualar-nos a eles. Conseqüentemente, será tanto melhor para nós quanto menos desprezarmos quem quer que seja; quanto menos nos destacarmos; quanto mais deixarmos de liderar. “Temos o dever de suportar as fraquezas dos destituídos”. Acaso só aparentemente? Apenas por condescendência ou dissimuladamente, estando intimamente satisfeitos com nossa fortitude e nossa liberdade? — Não. Isto não seria “suportar”. O Novo Testamento não nos propõe papéis teatrais. Este “suportar” é absolutamente existencial: é ser, realmente. fraco com os fracos porquanto estes não se consideram fracos antes, para eles, a sua fraqueza consiste no fato de que supõem que suas forças estão se desenvolvendo; a nós compete carregar [ou suportar] aquilo que eles não podem ou não querem carregar. Trata-se de toda aquela sobrecarga do dessossego que Deus prepara para os homens. Temos de ser aqueles que sabem que não nos podemos desnvencilhar dessa carga, nem pelo rigorismo nem pela liberdade de

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consciência; nem pelo catolicismo nem pelo protestantismo; nem pelo asceticismo e reforma da vida, nem pela crença de que “tudo nos é lícito”. Sabemos que no extremo da aflição humana, toda saída está bloqueada exceto aquela única porta que Deus abre. Os fracos também têm ciência de que existe gente que é sacerdotal, que suporta e que sabe. Seja esta a nossa livre mordomia da vida porém, “não vivendo para nossa própria satisfação” porquanto no instante em que assim pensarmos (ou pretendermos) “teremos perdido a batalha”. Pelo amor de Deus, nada de “delírio protestante”, nada de “luta contra Roma!” Nossa força consiste em “suportar” de tal maneira que nós mesmos não apareçamos [nem compareçamos], senão como os que pensam e devem ser considerados. A melhor porção do Paulinismo é aquilo que nele não é manejável nem apresentável; também no protestantismo, a sua melhor parte está naquilo em que ele é estranho ao mundo, aquilo nele que não é prático nem popular. No instante em que o Protestantismo procurar ser uma grandeza que tenha influência [na sociedade, na política, na história, no mundo ...], no instante em que ele passa a ser fator [ponderável], quando ele passa a desempenhar um papel, ele realmente se entrega, se rende. A crise do protestantismo se origina unicamente de sua relutância — [talvez comum à ortodoxia protestante dos tempos de Barth — em tomar posição definida, tida como avançada na cultura secular. Dessa forma perde a ocasião de interrogar — questionar — e eventualmente aplaudir esta ou aquela tendência deixando, conseqüentemente, de ser o fator decisivo na sociedade, conforme lhe competeria. Todavia contrastando com essa posição de alheamento, de afastamento, o protestantismo insiste em ser alguma coisa, competindo com os romanos que se alimentam de legumes. [A versão inglesa escreve: “A crise do protestantismo se origina em sua recusa a ousar colocar-se no extremo da civilização e da sociedade, da cultura e religião do mundo, e ser aí o humilde (contudo decisivo) ponto de interrogação e de exclamação. O protestantismo é julgado porque resolve ser algo a todo custo, a projetar-se como rival dos romanos que comem legumes”]. “Cada um de nós viva para ser agradável ao próximo, com vistas ao bem, para a edificação”. Este é o sacrifício, a renúncia, a jornada através do deserto, que se requer do forte. Este sacrifício tem em mira o próximo; lembramos que o “próximo” é o UM em cada pessoa; nessa lembrança cessa toda competição e toda variedade [ou peculiaridade] de mordomia de vida; o forte está em pé porque não se opõe a ninguém e porque vem depois — atrás — de todos. Ele não

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procura adiantar-se, [não se apressa para isso]; [o “FORTE”] espera mas não dorme; não critica, pois vê-se em situação por demais crítica para se atrever a tanto, todavia, tem esperança; ele não educa [não se atreve a ensinar] mas ora, (isto é, intercede) e, enquanto ora, efetivamente educa. [O FORTE] não avança por sobre os outros, antes dá-lhes lugar. [O FORTE] não tem uma posição específica para estar e onde possa ser encontrado, mas está em todo lugar [onde possa servir desinteressadamente, sem oprimir o próximo de maneira alguma e, sem proveito para si mesmo]. “Porquanto também o Cristo não viveu para agradar a si mesmo”. Lembremo-nos de tudo quanto de Deus está revelado e oculto em Cristo (ver Capítulos III e VIII). É disso que aqui se trata. Também na ética, é assim; [em Cristo se oculta e também se revela a ética divina]. “Ele não clamará nem se exaltará e sua voz não será ouvida nas ruas.” É por isto — [por que se trata da ética divina] — que as coisas não acontecem conforme, [do ponto de vista humano] possa parecer natural ou lógico. Não acabará de quebrar a cana partida nem apagará o pavio que fumega”, (Isa. 42, 2-3); “não teve por usurpação ser igual a Deus” (Filip. 2, 6). O Reino de Deus que ele proclama é realmente a liberdade de Deus por isso, sua vida inteira é sacrifício, renúncia e retirada constante. “Os insultos daqueles que te injuriam caíram sobre mim” (Sal. 69, 9). E assim que ele passa como o Grande Sofredor [o Grande Varão de Dores.], (Isa. 53!), através da história da antiga aliança; para nós, ele é o CRUCIFICADO! “Isto foi escrito para nosso ensino”. Esta figura é plena de perseverança” e de “consolo” e é muito mais do que figura porquanto o Deus da perseverança e do consolo está por trás e não apenas ensina mas nos concede aquilo que é incompreensível dando-nos, a despeito de sermos humanos, a despeito de nossa total heterogeneidade e nossa desarmonia, a possibilidade de sermos “do mesmo parecer” e que, por entre os choques dos múltiplos pensamentos tomemos uma e mesma coisa [que é o UM] para o centro de nossas cogitações e que, na dissonância das vozes dos membros da comunidade percebamos a comunhão; “que com um só animo e em uníssono, louvemos a Deus — Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Vs. 7 a 13 Portanto, mantende comunhão uns com os outros conforme também Cristo vos concedeu comunhão para honra de Deus, pois quero dizer isto: Cristo se tornou servo dos circuncisos por causa da verdade [por amor à verdade] de Deus afim de que se efetivassem as promessas feitas aos pais. Os gentios, porém, louvam a Deus por causa da misericórdia, conforme

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está escrito: por isso, entre os gentios confessarei e cantarei ao teu nome! e, em outro lugar; alegrai-vos, vós gentios, com o seu povo! e, outra vez: todos os gentios, louvai ao Senhor e o louvem todos os povos! Novamente diz Isaías: Haverá uma raiz em Jessé e por aquele que se levanta para reinar sobre os gentios, por esse os povos esperarão. (Sal. 18, 50; Deut. 32, 43; Sal. 117; Isa. 11, 10). O Deus da esperança vos preencha de abundante alegria e paz na fé afim de que vos enriqueçais na esperança e no poder do Santo Espírito. [Ver a tradução de Almeida que, embora semelhante, todavia, não é exatamente igual, sendo que no v. 7 Almeida registra:... também Cristo ‘NOS! recebeu para glória de Deus” e Barth escreve... “conforme também ‘VOS’ concedeu comunhão!, etc. Em breve nota de rodapé o Autor diz que esse “NOS” foi uma generalização posterior e que, aqui, Paulo está se dirigindo, mais uma vez, especialmente aos “fortes”]. Cristo é a crise da livre mordomia da vida; ele dá força aos fortes para a glória de Deus e, também para a glória de Deus, os reconduz aos fracos. Ele é o Cristo de Israel, da Igreja; e por isto, por mais carente que seja o testemunho que, a seu favor, dêem os fracos, esse testemunho não deixa de ter algo de objetivo, algo que diga respeito a alguma verdade sobre Deus. Todavia, ele é também o Cristo dos gentios, o Cristo do mundo; ora, a misericórdia divina descobriu [achou] os fortes quando ainda eram fracos (5, 6) e a misericórdia e a verdade, conjuntamente, mantêm juntos judeus e gentios, Igreja e mundo. Quem é forte? Quem é fraco? Aqui está o “Deus da Esperança” à frente, por trás e acima de toda mordomia da vida. Ao encontro desse Deus, reunindo suas vozes, vão jubilosos todos os que foram achados por sua verdade e sua misericórdia. Deus vê a fraqueza no FORTE e a força no FRACO e, com seus próprios olhos vê os que participam do bem-aventurado mistério de sua liberdade, de seu Reino, quer estejam no degrau mais alto, quer estejam no mais baixo. Comentários: 14, 1 a 15, 13 1. Diz Barth que ousar crer significa ser inteiramente livre sem reconhecer qualquer espécie de restrição, senão a “grande restrição divina”. Que restrição é essa? Dentro do contexto da exegese de 14, 1 — 15, 13 parece tratar-se da liberdade de restringir a nossa liberdade de usar da liberdade que Deus nos dá, ao procedimento ético que não escandalize nosso irmão.

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2. Mais uma vez encontramos o estilo dialético do Autor em pleno vigor: “A vida que há na VIDA é contudo a liberdade de Deus que, para nós, é a morte — pois vivemos somente para o Senhor’ e. logo adiante: “A morte que há na MORTE é contudo a liberdade de Deus que, para nós, é a vida — pois morremos somente para o Senhor!” Na realidade, aqui, este jogo dialético não nos deveria surpreender por quanto o próprio Apóstolo o emprega: “Se vivemos, para Deus vivemos; se morremos, para Deus morremos!” O que Barth acrescenta é a conceituação aberta da liberdade divina que está apenas implícita na afirmação Paulina. Deus é livre e em sua liberdade rejeita a vida qual a temos e na qual temos de morrer, passando a viver exclusivamente para o Senhor, porquanto, ainda em sua absoluta liberdade, nessa morte Deus nos concede ressurreição e vida pois efetivamente, para o Senhor morremos embora aqui não se trate necessariamente da morte biológica mas também desta morte como analogia e símbolo. 3. Diz Barth que se não reconhecermos a crise da liberdade, a limitação que ela mesma nos impõe no respeito devido à pessoa de nosso próximo — então essa crise se transforma em nosso tribunal. Portanto, se dela fugirmos, quer seja “buscando qualquer lei que esteja à mão” ou “voltando saudoso — à antiga Igreja” ou às “panelas de carne” inda que fossem do cativeiro, a necessidade da delimitação da liberdade dentro da liberdade se levantará contra nós, para nos julgar. Como? Por que? Para responder como, é suficiente responder porque. Porque “bem-aventurado é o homem que não se acusa naquilo que faz”; porque Deus julga pelo que há no íntimo do coração; porque de Deus não se zomba; porque o pecado contra o Espírito Santo não tem perdão. Ora, Deus é soberano e livre; é justo, misericordioso e é fiel: Não quebrará a cana trilhada! Quem ousa dizer que não peca?... Mas o justo viverá pela fé e... eu sei que meu Redentor vive!

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Capítulos XV (2ª parte) e XVI

O APÓSTOLO E A COMUNIDADE V. 14 Eu porém, meus irmãos, estou por demais persuadido de que tendes pleno conhecimento e estais aptos a vos aconselhardes mutuamente sobre o que convém. A Carta aos Romanos não contém alguma verdade nova, estranha ou de caráter particular mas a verdade antiga, conhecida e universal; ela não pretende ser original, profunda e cheia de riqueza espiritual mas, também não é possível ignorá-la por causa dessa despretensão; não é um tratado de dogmática e, por isso mesmo, não pode ser refutada nem atacada com tiradas antidogmáticas. A Carta não proclama a autoridade de Paulo mas nem por isso pode ela ser descartada sob o pretexto de que se trata “apenas” de Paulo porquanto o fato de Paulo “não ser o Cristo” é corriqUeiro — não constitui novidade, — e coisa banal que não causa qualquer impacto. Cristo “não está em livro algum” e quanto a alguém acreditarem quem escreveu a Epístola aos Romanos ou naquilo que nela foi escrito, isto jamais entrou sequer em consideração. Somente se pode crer em Deus! Esta é, justamente, a tese da Epistola, a tese do “Paulinismo”, que anula qualquer objeção que lhe possam mover seus opositores mesmo antes de eles, timidamente, se apresentarem aos olhos do mundo. Quem, apesar de tudo, exaltar-se contra o Paulinismo como “sistema”, investe contra moinhos de vento e mostra, apenas, que nada aprendeu e nada esqueceu. A Carta aos Romanos não apela à crença em alguma autoridade superior ou em alguma riqueza de pensamento construtivo; nem tampouco fala em “mundos superiores” ou “recomenda” determinadas experiências [de natureza espiritual ou psíquica]; não se volta a “consciências esclarecidas” nem a qualquer tipo de sensibilidade religiosa porém. apela ao SENSUS COMMUNIS. ao “sentimento geral da verdade” (Oetinger), à ingenuidade infantil (sim senhores!) daqueles que observaram [e sentiram] toda a suposta simplicidade de nossa geração e estão saturados dela.

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[A Carta aos Romanos] apela à honestidade dos gentios e à sua disposição de não se esquivarem totalmente da observação objetiva da situação humana; [para não deixarem de analisar com seriedade a condição da criatura no contexto de eternidade]. A Epístola fala aos “irmãos” referindo-se a todas as pessoas às quais ela é endereçada, isto é, ao um que existe em todos e conta com a participação, a compreensão e a cooperação que não será recusada por ninguém que, contrariando todas ideologias, realmente e com seriedade, deseje aceitar as coisas com a simplicidade que nelas vê. A carta enuncia aquilo que todos já ouviram e diz o que cada um pode dizer a si mesmo; ela põe a descoberto aquilo que sempre e em toda parte foi [e é] a verdade. Ela ensina aos doutos e tem mensagem para as pessoas de conhecimento; ela admoesta aos homens de boa vontade; quando entra na arena anula seu oponente, toma posse do campo, porém, apenas como analogia, (como parábola, para depois do fato consumado retrair-se como se nada houvesse acontecido. Quem, contradizendo a Carta, quiser ter razão [ou razões] contra ela, está inteiramente livre para assim agir — [procedendo, todavia,] por sua própria conta e risco, [porquanto] “estou plenamente convencido de que estais cheios de bondade e tendes plena posse do conhecimento”. Portanto, caro devoto, não te incomodes; fecha os ouvidos às perguntas que te fizerem enquanto o puderes! Acontece que, “falando sério”, estamos muito mais de comum acordo do que pensas. Todavia [lembra-te], explosões de ressentimentos contra a ortodoxia não podem mais ser consideradas senão como manifestações de humorismo. Vs. 15 e 16 Em parte vos escrevi com um pouco mais de ousadia para vos lembrar por força da graça que me foi concedida por Deus para ministração do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios afim de constituirem oferta aceitável e santficada pelo Espírito Santo. Na verdade, o “ponto de vista” da Espístola é “em parte” um tanto ousado Em outros vergéis vive-se mais pacificamente do que à sombra das possibilidades que a Epístola nos mostra; nela o fitilho do “consciente desconhecimento” é assustadoramente tênue; o caminho que somos instados a seguir está inquietantemente próximo do abismo e a alternativa de opção que nos é proposta é extremamente aguda. É necessário que seja assim? É preciso aceitar esse ponto de vista extremo, tão perigosamente exposto que, aliás, nem sequer é um “ponto de vista”? E acaso necessário excluir de

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nossa cogitação tudo quanto não for resposta definitiva, restrita, precisa, exata? [E preciso ser necessariamente ou uma coisa ou outra, a vertente norte ou a vertente sul, a leste ou a oeste, sem que jamais os filetes que do divisor escorrem se encontrem e sejam algum dia ou de alguma forma, iguais, sem que sejam. desde agora. equipotenciais!]. Acaso é forçoso rejeitar todos os caminhos amistosos, pacíficos, práticos, históricos, e psicologicamente esclarecedores [pelo simples fato de serem] caminhos intermediários? A adesão a essa linha divisória tão pronunciada, (a permanência no “gume do cutelo”), é [assim tão absolutamente] obrigatória? Respondemos: Certamente não! Estamos longe de querer afirmar que a ética, as possibilidades e os métodos que são também visíveis na “Carta aos Romanos”, sejam normais mesmo porque, em toda seriedade apenas podemos prevenir [a todos] contra a adoção de [outros] “caminhos, éticas, e métodos” [que sejam considerados] “normais” [pelo mundo]. Repetimos ainda uma vez que também o “Paulinismo”, no fim, condena a si mesmo [e só pode condenar-se] porquanto mesmo o mais escarpado divisor de águas que ele configurar e em toda vasta série de possibilidades que apresenta, não é mais do que simples analogia. [Talvez seja conveniente lembrar aqui que o “Paulinismo” que o A. considera não é obra de Paulo e muito menos obra divina ou ensinamento inspirado da Palavra de Deus, mas é a interpretação dada pelos crentes, — (particularmente por aqueles que se julgam fortes) — às palavras ao ensino e a exortação do grande Apóstolo dos gentios, este sim, divinamente inspirado pelo Espírito Santo]. Todavia, também sabemos avaliar [e apreciar] as demais possíveis situações, “mais relativas” e menos prejudiciais; sabemos o que significam e que frutos podem produzir. Temos as condições e a aptidão necessárias para conviver com católicos e também para travar relações com pessoas “do pensamento positivo”, ou então [e até simultaneamente com] a alta cultura protestante; com os teólogos da Liga das Nações [quiçá modernamente, das Nações Unidas, ou do Conselho Mundial de Igrejas (e de quem não?)] e dizer-lhes o que tanto anseiam por ouvir e o que tanto os acalma: tendes razão! porém sob a inquietante condição suplementar de que “também não a tendes”. É aqui que se inicia nosso discurso “em parte com um pouco mais de ousadia” [e começa a manifestar-se nosso] premente interesse em que não sejamos silenciados. [Não valeria a pena seguir pelo difícil caminho das opções decisivas] se ao falarmos sobre Deus [isto é, se em nossa teologia, nossa pregação e nosso testemunho] apenas pretendêssemos consolar-nos e nos ajudar [ou nos animar,

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a nós mesmos ou mutuamente, entre os “irmãos”]; se quiséssemos discorrer sobre Deus “para dizer de nosso progresso religioso” (Wernle), ou tratar de assuntos com os quais “pudéssemos começar alguma coisa” ou ainda para discursar sobre aquele “X”, aquele “algo” metafísico de que fizemos o esteio de nossos postulados. [Se essas forem as nossas razões é melhor buscarmos a porta larga e o caminho amplo pelo qual andam muitos. Todavia,] vale a pena palmilhar impertérrito o caminho estreito que medeia entre os dois abismos, se realmente ansiamos por ouvir e por falar de Deus — o Deus conforme ele vem ao encontro da realidade de nossa vida, autenticamente interpretado em Jesus Cristo — (quer isto seja ou não de nosso agrado e aceitável para nós;) — vem como o Deus desconhecido o Deus Santo, o Senhor da vida e da morte. [Vale a pena seguir pelo caminho difícil das opções decisivas] se afinal, a despeito de todas especulações contemporizadoras ou inofensivas, também se tratar da indagação séria sobre a existência humana; se o objetivo de todo discurso ouvido e proferido sobre Deus for o de lembrar-nos do Deus Desconhecido que havíamos esquecido, da verdade libertadora de que não nos recordávamos — sim, neste caso, (e sob todos pontos de vista.) — é preciso usar de “certa dose de ousadia” conforme o faz a Carta aos Romanos; então é preciso atirar bem ao alvo; então é válido formular a pergunta das perguntas sem a mínima consideração [de eventuais conveniências], falando com toda objetividade, (com a firme intenção de não deixar um só de nossos vizinhos escapar do crivo, sendo até impiedosos nesse ataque, testificando o paradoxo de nossa salvação naquele que foi crucificado — mas ressurgiu! Então vale a pena, desfraldar a pergunta de todas perguntas, fazendo tudo — absolutamente tudo — depender exclusivamente do fio solitário da fé, [conscientemente] desvalorizando, rejeitando, abandonando tudo mais isto é, todos possíveis meios imagináveis de auxílio [ou socorro], todas representações, [todas pretensas soluções], todas “aldeias de Potenkin”, todas realidades aparentes. [Quando nosso interesse for realmente existencial pelo verdadeiro Deus desconhecido] então já não haverá condescendência com “obras de carregação”, [com contrafacções da obra divina] nem haverá concessões [a representantes plenipotenciários de Deus — à Igreja, e seus sacerdotes ou a seus mortos] pelo receio de conseqüências mais perigosas. Então ‘ardei em espírito!” (12, 11). Sabemos muito bem que não há propriamente “discurso ousado” sobre Deus mas apenas — discurso “em parte um pouco ousado”; sabemos que o acontecimento existencial da “recordação” não acontece na forma de ato ao lado de outros atos; sabemos que [esta recordação j em nenhuma circunstância pode ter a configuração de acontecimento, no sentido absoluto das palavras,

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porquanto isto seria o final de todas as coisas — o que não nos devemos atrever a tomar em nossas mãos. Contudo, ao lado dessas considerações ordeiras, regulares [quiçá pragmáticas], “burguesas”, existe a possibilidade absolutamente excepcional, fora de ordem, irregular, — a possibilidade “revolucionária” de cometer infração. (Aliás esta possibilidade inesperada e surpreendente não existe propriamente ao lado das alternativas normais mas — com nuanças de tragi-comédia, — esperamos que exista [subjacente] no bojo de todas alternativas regulares. Esta “infração” é, [na realidade a “ousadia” dai teologia que a Carta aos Romanos comete, em seu discurso sobre Deus. [Esta “infração”] se dá entre todas demais alternativas possíveis [e como um caso todo especial] “por força da graça que me foi concedida por Deus, na ministração do seu Evangelho como pregador de Cristo Jesus aos gentios a fim de constituírem oferta aceitável e santificada pelo Espírito Santo”. É [portanto], caso excepcional, não regular, quer dizer, é “um caso revolucionário”. Ora, também aqui se trata apenas de analogia! Sempre apenas parábola. A teologia trata da graça do “Momento Absoluto” servindo-se da dialética voraz do “tempo” e da “eternidade” com a qual as demais ciências souberam colocar-se em segurança — com mais ou menos sorte, pois esta dialética ameaçou a todos. Na conta que esta dialética abre, figura o seu posto, que — aliás — não é posto nenhum pois a impossível possibilidade divina ameaça desfazer a conta a todo e qualquer momento. Este posto, [lembrando sempre que estamos analisando o teor da “Carta aos Romanos,] é o serviço sacerdotal, [é o ministério] prestado aos gentios, ao qual [o Apóstolo] está votado, dirigindo-se a determinados indivíduos — visíveis, historicamente existentes, concretos, — a fim de ensinar-lhes que cada um deles é o um que está invisível e desnudo perante Deus. [Isto é Teologia]. Este ensinamento se destina ao gentio, isto é, ao gentio que há no próprio gentio e também naquele que não é gentio. O que interessa nesse ensino é, exclusivamente, a pessoa na medida em que ela pode e deve ser trazida a Deus, como “sacrifício”; [interessa] exclusivamente a santificação da [pessoa] pelo Espírito Santo, o rompimento de suas algemas, sua redenção, sua liberdade em Deus. É um empreendimento que, absolutamente, não é prático e que está totalmente fora de [qualquer] conceituação religiosa porque trata do aspecto usual e objetivo de todos anseios e do sentido (que vai além!) de toda religião. Com a maior previdência [possível] e com a mais alta consciência dos resultados, a teologia precisa, todavia, proceder sem a mínima intenção [de qualquer espécie] e não pode aceitar qualquer resultado eventual, como tal; até

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mesmo a extrema ousadia humana — [quiçá a ousadia de ocasionalmente falar com alguma ousadia] deve a teologia manter sob cuidadosa vigilância, pois todo arrojo humano apenas pode ser demonstração e analogia. Todavia, a teologia é o que é, exatamente por causa dessa característica de ousadia extrema na qualidade de “santo ministério do Evangelho de Deus”; se ela não for isto, se ela não ousar ser o que é — [ou o que deve ser] então será melhor que desapareça completamente — não amanhã, porém hoje mesmo. Somente a esta sua qualidade característica de ter de ousar a “ousadia extrema” examinando a “tentativa excepcional e revolucionária — deve ela sua existência histórica e a posição que usufrui na UNIVERSITAS LITERARUM. Esta posição somente pode ser garantida pela ousadia e pela tentativa [de afirmar e avançar] (e não pela utilização da teologia a serviço da Igreja e, muito menos, pela sua grande e inevitável inclinação à ciência histórica!). Ciência significa objetividade que, em teologia, se expressa em termos de respeito absoluto ao tema escolhido: a criatura em sua extrema aflição e esperança; a criatura perante Deus. Teologia objetiva é arrependimento; é inversão da maneira de pensar; é “pensamento renovado”. (Observe-se como este conceito é abordado em 12, 2). [Teologia] é o ponto de interrogação e de exclamação que está na órbita mais exterior da Universidade, posição que, de certa forma, corresponde à da Igreja que deve desempenhar seu papel na franja mais extrema da cultura humana. (Na verdade, qualquer pessoa sensata situará a teologia nessa faixa periférica [avançada] da universidade!). É sempre muito própria a pergunta “se acaso não seria, de fato, melhor que teologia e Igreja deixassem de existir”, tendo em vista que, [na prática] nenhuma das duas tem o ânimo necessário de ser o que são [ou devem ser]. Todavia, se [pelo menos] tivessem suficiente ânimo para não fecharem; então, a despeito de todas sufocantes considerações sobre a indiscutível banalidade das obras humanas, não será [a teologia] banalidade excessivamente grande — pelo menos — não será banalidade vitoriosa, porquanto, lembrando da passagem que fala de discurso “em parte algo ousado”, feliz aquele que não precisa tomar tais atitudes. Contudo, ai daquele que, estando nessa situação, não sabe o que fazer [ou não se atreve a ousar.] Vs. 17 a 21 Tenho pois minha glória em Cristo Jesus, a sabe, perante Deus. Porquanto não me disporia a falar de coisas que Cristo não houvesse realizado por meu intermédio, para trazer os gentios à obediência, por palavras e obras, por força de sinais e maravilhas, pelo poder do Espírito

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Santo, de sorte que completei a pregação do Evangelho da Salvação dando a volta de Jerusalém até a Ilíria, tendo por questão de honra não pregar onde o nome de Cristo já era conhecido a fim de não construir sobre bases alheias porém, como está escrito: aqueles, aos quais ainda nada dele se anunciou, deverão ver e aqueles que ainda nada ouviram hão de entender! (Isa. 52. 15). [Confronte-se o texto com a tradução de Almeida, bastante diferente em detalhes] Acaso a “glória” Paulina, ou a “pretensão” aqui manifestada, projetaria alguma sombra sobre o conteúdo geral da Epístola ou serviria de pretexto para rejeitá-la? Estas linhas falam, efetivamente, de presunção. Porém presunção de quem? De Paulo? Sem dúvida, é de Paulo que se trata. Contudo, como haveria de ser de outra maneira? Quando uma pessoa fala de Deus [ou sobre Deus] com tanta veemência, a consciência da sua própria posição também há de vir perturbadoramente à tona em abundância de palavras. [A tradução inglesa escreve: “Quando uma pessoa fala de Deus tão expressamente, conforme Paulo o faz, como poderia ela dar a seu convencimento ênfase excessivamente grande ou perturbadora?”]. Todavia, por força do “Perdão dos Pecados” pode dar-se o caso de neste “convencimento” humano estar espelhado convencimento inteiramente diferente; pode aqui acontecer que a crítica e os anseios dos que são “despretensiosos” se choquem contra rocha granítica; que Paulo nem sequer esteja onde imaginam encontrá-lo, [pois] tem sua glória em Cristo Jesus, perante Deus. Quem é Paulo? — Paulo pode ser abandonado; o ponto alto onde acaso possa estar, não é por demais notável. O que Paulo “experimentou”, o que sabe, o que disse e o que fez, “disto não me disporia a falar”. Paulo nada é; todavia, não será justamente [nesta renúncia,] neste retraimento, deixando de falar de sua própria pessoa [para referir-se exclusivamente ao que Cristo fez por sua instrumentalidade] que Paulo se torna [“sério”] — perigoso, [no modo de dizer do Autor]? Talvez esta glória a que Paulo se refere e que soa tão mal [aos ouvidos de certas pessoas] seja apenas o sinal da glória que subsiste “em Cristo, perante Deus”, cuja luz não pode ser escondida de todo, debaixo do “alqueire”. Talvez seja esta glória o fator que tanto provoca [e irrita] os modestos atrevidos que consideram tão insuportável tal manifestação Paulina. Talvez este

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fato deva ser destacado para o julgamento da missão histórica de Paulo e do Paulinismo, em sua totalidade. É evidente que este Apostolo, por seu convencimento, não foi pessoa particularmente simpática, conquistadora; a quem ele houver convencido, o terá conseguido a despeito de si mesmo e, jamais, por si mesmo. Também é assim o seu Evangelho: um elemento perturbador na história do Espírito, que poderia fácil e gostosamente ser suprimido do desenrolar dos fatos porquanto está em toda parte qual grão de areia [no sapato] e, não raro, qual cascalho entre os dentes lisos das engrenagens. Por isso a sua incontestável eficácia — que a historia registra, — precisa ser procurada em alguma grandeza incomensurável, totalmente diversa que, forçosamente, teria de ser “terrivelmente” bem compreendida por seus interlocutores: [essa grandeza é] Jesus Cristo! [Algumas manifestações pessoais de Paulo que talvez possam ser consideradas como] expressões do “orgulho” do Apóstolo podem bem constituir a característica mais significativa e menos amável do Paulinismo. [Algumas dessas manifestações:] Na recusa aparentemente orgulhosa de construir sobre bases alheias; [nesta atitude] o Apóstolo evidentemente não pensa em termos históricos (pois ninguém haveria de querer refutá-lo alegando seu posicionamento com relação ao Antigo Testamento!) Paulo, de maneira assaz hostil, recusa-se a apoiar as práticas cristãs e se nega a dar prosseguimento mesmo às mais honradas tradições. Ele não diz um SIM direto às grandezas históricas, por maiores que sejam nem à maior delas: Cristo segundo a carne! Ele exibe sua peculiar e irônica suspeição por todas “colunas já existentes”. — (Gál. 2, 9). Ele não consulta carne e sangue e, por motivos altamente fundamentados, não subiu a Jerusalém mas partiu para a Arábia. (Gál. 1, 16-17). Ele se arroga o direito de afirmar cabalmente que não recebeu nem apreendeu seu Evangelho de qualquer homem. (Gál. 1, 11-12). Conseqüentemente, todo golpe que, a qualquer tempo, a “mentalmente” sadia, teológica e medíocre Igreja desferiu contra os “exaltados e entusiasmados” que “não têm senso histórico”, acertou também em Paulo, quer tenham ou não tenham tido essa intenção. Esta maneira “estranha” no procedimento (do Apóstolo), em si mesma, não tem maior importância por tratar-se de fenômeno histórico tão claro quanto outro qualquer. Todavia, talvez essa conduta tenha algum significado; talvez

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seja testemunho de fato estranho, bem diferente e, então, seria extremamente supérfluo e perigoso ficar discutindo o assunto. Neste caso, melhor faria a teologia em seguir a indicação que aqui lhe estamos dando. Vs. 22 a 29 Por isso fui reiteradamente impedido de ir até vós, agora porém, que não tenho campo nestas paragens e porque há muitos anos tenho pedido para ir ter convosco e seguir viagem para Espanha, espero ver-vos de passagem e encontrar entre vós companheiros para seguir até lá, — depois de eu me haver recreado um pouco convosco. Contudo, agora viajo para Jerusalém. As igrejas de Macedônia e Acáia deliberaram enviar um auxílio em beneficio dos necessitados entre os santos de Jerusalém. Elas o resolveram e lhes devem isso pois se os gentios receberam o auxílio deles nas coisas espirituais, são seus devedores para lhes servir também nas coisas exteriores. Quando eu houver resolvido isto e lhes houver entregue com segurança o produto [da coleta] então irei à Espanha passando por vós para que quando eu aí chegai; seja na plenitude da graça de Cristo. [Barth comenta que a expressão “MUITOS ANOS” poderia ter parecido exagero a algum copista que, por isso, teria transcrito “muitas vezes”]. A aproximação, e o contacto pessoal objetivo com a comunidade, [com a Igreja,] são coisas muito bonitas e devem ser procurados com alegria pois constituem uma atitude simpática no ministério (1,9-13). [Todavia] o pequeno desvio Corinto-Jerusalém deve ser tomado em sua perspectiva peculiar: é preciso fazer a entrega da coleta, já anunciada (12, 13), aos cristãos de Jerusalém, exatamente como expressão prática da mensagem da unidade entre gentios e judeus, entre os que estão perto e os que estão longe, entre os conhecidos e os desconhecidos; — [esta mensagem] é o tema da Epístola. O plano seguinte do homem, que já quase não encontra “campo” [para as suas atividades] “deste lado da Itália”, é a viagem à Espanha, uma iniciativa que demonstra a universalidade final [do cristianismo]. Neste plano, na realidade muito mais apocalíptico do que racional, está também encaixada a possibilidade de o autor e os leitores da carta se verem e se reverem pessoalmente. Vs. 30 a 33 Admoesto-vos porém, irmãos, por nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espírito Santo, que batalheis ao meu lado, orando por mim a Deus para que eu seja salvo dos infiéis da Judéia e que meu ministério seja

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bem aceito pelos santos de Jerusalém, para que então eu chegue a vós com alegria e, se Deus assim quiser recobre ânimo convosco. O Deus da paz seja com todos vós. Amém. Esse desvio não parece fácil e livre de perigos. Em qualquer hipótese. o Apóstolo prevê uma “batalha”. Judéia — Jerusalém — é, sob todos pontos de vista, a cidadela da Igreja. Existem as ameaças das chicanas dos judeus e, a “boa receptividade dos Santos”, — não obstante a coleta que lhes será aportada,— de forma alguma parece ser muito certa a ponto de, também por isto, ser preciso orar. Quem vai aí chegar [nessa Jerusalém da Judéia] será nela estrangeiro e falará como tal; [por isso] ele conclama a todos que peçam pelo seu bem e que, perante Deus, dele se lembrem, participando de sua terrível solidão. Vs. 1 a 16 Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que é também(1) ministro da igreja de Cencréia, para que a recebais no Senhor conforme convém entre os santos e que a ajudeis em todos negócios em que ela necessitar de vós. Ela mesma socorreu a muitos e também a mim. Saudai a Prisca e Áquila, meus cooperadores em Cristo Jesus (e que por minha vida arriscaram suas cabeças o que não somente eu lhes agradeço mas, também, todas igrejas gentílicas) — é a igreja que se reúne em sua casa. Saudai meu querido Epêneto que é a primícia de Cristo na Ásia. Saudai Miriam(2), que muito se esforçou por nós(3). Saudai a Andrônico e a Júnias, meus conterrâneos e coprisioneiros, que gozam de bom nome entre os Apóstolos e já foram cristãos antes de mim. Saudai a Ampliato, que me é caro no Senhor Saudai a Urbano, nosso companheiro em Cristo e meu querido Estaquis. Saudai a Apeles, aprovado no Senhor. Saudai aos que são da criadagem de Aristóbulo. Saudai a meu conterrâneo Herodião. Saudai aos cristãos da criadagem de Narciso. Saudai a Trifena e Trifosa, nas suas canseiras no Senhor Saudai a Rufo, esta excelência no Senhor e também a sua (e minha!) mãe. Saudai a Asíncrito, Flegonte, Hermes, Pátrobas, Hermas e aos irmãos que estão com eles. Saudai a Filólogo e Júlia, a Nereu e sua irmã, a Olimpas e a todos os santos que com eles estão. Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo. Saudam-vos todas as igrejas de Cristo. (Em nota de rodapé o A. comenta: 1) o “TAMBÉM” que no original dá ênfase à função de Febe na Igreja, não deve ser suprimido, usando-se o mesmo critério adotado em 8, 24.

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2) Dada a maneira (ou forma) em que o v. 6 está escrito no original, somente se pode transcrever “Minam”. 3) Ainda com referência ao v. 6, é de notar que não se poderá escrever “VÓS” mas será “NÓS”, pois louvar esta mulher por seus trabalhos em prol dos destinatários da carta seria incoerente e até mesmo algo excêntrico.] Aqui surge perante nós um pequeno mundo de sofrimento, de destemor e de valor (no Senhor!); [mundo de] auxílio e alta estima recíproca (também) no Senhor! Seria o caso de indagar sobre fatos e obras que correspondam aos termos [ou à ética] da Epístola porquanto aqui se encontra a “vida simples” tantas vezes mal compreendida [ou perdida]. Todavia, a essa indagação os próprios leitores (da Epístola) — (cada um a seu modo), poderão responder, até o dia de hoje. [A lista de pessoas saudadas pode suscitar diversas questões e] os problemas que tenham algum mérito ou que sejam interessantes quanto à antigüidade desse rol, e outras informações a seu respeito, podem ser encontrados nas obras de Zahn e Lietzmann. [Existe] suposição de que estes nomes sejam parte de outra carta, endereçada à Igreja de Éfeso e, inadvertidamente, juntada à Epístola aos Romanos; esta hipótese não é “simpática” pois parece ser mais agradável supor que a “carta” aos Romanos foi endereçada especificamente a determinadas pessoas, com fisionomias conhecidas e nomes certos; uma mulher — membro da Igreja — foi sua portadora de Corinto até Roma, nos meados da década 50 do primeiro século; os destinatários da carta são homens e mulheres gregos, romanos e judeus; senhores e escravos. A possibilidade de que Trifena e Trifosa e os outros leigos (e também toda sorte de “teólogos” desta longa lista) não entendessem “assim” — [isto é, não considerassem a carta como tendo sido endereçada a eles] — parece não ser provável. O que transparece, — [e isto é válido até mesmo admitindo a hipótese de que a lista se refira a membros da Igreja de Éfeso!] é que houve outrora um público ao qual se pôde dirigir [semelhante] carta e para cujas interrogações a Epístola continha respostas; [um público] que, de alguma maneira, soube avaliar o teor da carta e para o qual a teologia (a teologia da Epístola.) era, sem dúvida, assunto atual. Parece [e, ainda uma vez, transparece] que os problemas daquele público começavam onde os problemas de “outros públicos” (e também de não poucos teólogos.) parecem terminar. Contudo, temos a impressão que aqueles espíritos [os dos destinatários da carta], eram muito livres, tinham visão muito larga, e se estendiam amplamente [nos mais variados aspectos do relacionamento da criatura com o Criador].

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Admiramo-nos mais deste público do que dos eventuais problemas históricos que a carta possa suscitar. E não nos admiramos [por isso mesmo] de que entre essa gente até o ósculo santo era possível. Vs. 17 a 20 Exorto-vos porém, irmãos, a que sejais vigilantes contra os que provocam divisões e escândalos, contrariando o ensino em que fostes inst ruídos; — afastai-vos deles! Porquanto estes não servem ao nosso Senhor — o Cristo, porém a seu próprio ventre e, com suas eloqüentes frases e palavras beatas confundem os corações dos ingênuos, pois a vossa obediência é conhecida por todos e, agora, me alegro por vós. Gostaria, porém, que fôsseis sábios para o bem e símplices com relação ao mal. O Deus da paz em breve porá Satanás debaixo de vossos pés. A graça de nosso Senhor Jesus seja convosco! Um último e premente apelo; na realidade não se trata de corpo estranho à Carta, porém [está] na súmula de sua polêmica — (e onde não é ela polêmica?). Acautelai-vos contra os enganos especialmente [vindos] daqueles que estão mais próximos de vós e [que vos parecem ser] mais esclarecidos. Acautelai-vos da “feira religiosa do ano”, com seus negócios de barracas reluzentes. Estais no meio delas e não tendes outro critério para vos separardes e segregardes daqueles que “não servem ao Senhor mas ao ventre”, senão pela, recordação de que fala 15, 15. Acautelai-vos para vosso próprio bem! Na “recordação” está a força para aquela sabia franqueza e para aquele retraimento simples que não permite que a pessoa se afogue completamente no turbilhão das opiniões. ETIAM CULTORES SAEPE VERITATIS EA, QUIBUS HAUD ASSUEVERE, TARDIUS ADMITTUNT. CUM PRIDEM AUDIERUNT: HOC EST! QUAERUNT DENIQUE: QUID EST? CUMQUE DEMONSTRATIO DEFLUXIT, POSTULATA SIBI PROPONI QUERUNTUR NONNULLI OBITU DEMUM SUO VERITATI, IN PARTE NON AGNITA, OFFICERE DESINUNT. VERUNTAMEN NON FRUSTRA LABORATUR: DUM ALII PRAETER OPINIONEM DESUNT, ALII PRAETER OPINIONEM SE DEDUNT VEL DEDENT. LUX CRESCIT IN DIES: PER ADVERSA AD VICTORIAM ENITITUR VERITAS. (Bengel). “O Deus da paz verdadeira, não da entorpecente, tem de fazer o melhor e o faz multas vezes a curto prazo quando se tem, pelo menos, um pouco de paciência e não se acorre apressadamente demais com os aplausos a si mesmo — [com auto-elogio] “— (Steinhofer).

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16, 21-24

Vs. 21 a 24 Saúdam-vos Timóteo, meu cooperador Lúcio, Jason e Sosípatro meus conterrâneos. Eu, Tércio, que escrevi a carta, saúdo-vos no Senhor Saúda-vos Gaio que é o anfitrião meu e de toda a Igreja. Saúdam-vos Erasto, O tesoureiro da cidade, e o irmão Quarto. A graça de nosso Senhor Jesus Crista seja com todos vós, Amém [O A. lembra em nota de rodapé que o v. 24 deve ser conservado porém não a doxologia de 16, 25-27]. Comentários: 15, 14-23 e 16, 1-24 1. Como e onde a Carta aos Romanos entra em polêmica para dominar a situação e, em seguida, retirar-se sem fazer alarde e sem alegações? Parece-me que só pode ser no seu ensino; na ética que sugere e que recomenda; no oferecimento do corpo natural, — das forças, dos dons, da inteligência e até dos eventuais recursos em bens materiais, — em sacrifício a Deus, através do próximo, sabendo que nada temos de nós mesmos, que tudo vem de Deus; que dele é a eleição e a rejeição e é ele quem valoriza o que há de ser valorizado. Nada temos a alegar nem do que nos gloriar. E por isto, me parece, que a Epístola vem, vê, vence e se retira sem vantagens e sem glórias, pois quem se gloriar, glorie-se no Senhor! 2. O que quer o A. dizer quando se refere à impossibilidade de um “discurso absoluto” sobre Deus? Talvez seja a realidade de que em nossa imperfeição não podemos falar de forma absoluta sobre o ABSOLUTO, nem poderíamos ver a glória de Deus, que nem o homem do éden pode contemplar face a face! 3. Barth termina a exegese da Epístola tecendo comentários sobre a personalidade do homem Paulo e em correlação com o assunto dá à “Teologia” (e portanto aos teólogos) sugestão que, todavia, não formula com precisão. Talvez Barth tenha razão com o que diz respeito à personalidade do Apóstolo. E possível que Paulo não tenha sido pessoa simpática a seus contemporâneos e talvez até existam razões de ordem superior — quiçá de alcance transcendental, para que assim fosse. Também é possível que a sugestão deixada pelo A. aos teólogos e aos pesquisadores da verdade tenha a sua razão de ser e, embora seja na vitória plena que a verdade resplandece em seu verdadeiro fulgor, também é

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certo que a luz cresce com a aproximação do dia e que a pesquisa, ainda que abandonada em meio, não será de todo perdida. Por que teria o Apostolo tido “tão estranho” procedimento se o seu objetivo era “ganhar as pessoas” para Cristo? É evidente que sequer se pode imaginar que Paulo cuidasse de “ganhar amigos e influenciar pessoas”; esta mercadoria sempre esteve e está à venda e se adquire com certa “flexibilidade” que não fica bem a pessoas de “responsabilidade” nem sua aplicação se coadunaria com o caráter do Apóstolo dos Gentios. Contudo, ele tinha amigos: quem pode hoje contar com pessoas que “pelo amigo” arrisquem “suas próprias cabeças”? Que Paulo conhecia bem o valor da leal amizade, o epílogo da Carta aos Romanos bem o atesta com sua longa lista de saudações, onde cada um é apreciado de maneira objetiva e pessoal. E que dizer das demais cartas de Paulo, particularmente as escritas a Timóteo, a Tito, e aquele bilhete sobre Onésimo? Em nenhum lugar há lisonja ou agrado mas, sempre respeito à pessoa. Todavia, o que mais impressiona nas Epístolas Paulinas e mui particularmente na Carta aos Romanos — talvez seja isto que a teologia devesse descobrir e esmiuçar — é a clarividência espiritual que o Apóstolo revela. Seria fácil explicar humanamente a relativa rejeição das “colunas da Igreja”; o retiro para a Arábia contra a informação abundante em Jerusalém; seria compreensível que Paulo não quisesse perder tempo ceifando onde outros semearam, e é justo que quem se gloriar, gloriese em Deus: que novidade há nisso? Foi Jeremias que ensinou assim... Insistir sobre qualquer desses pontos seria perder tempo e tentar esconder a luz debaixo do alqueire. O que Paulo prega, o que Paulo ensina, o que defende, é que só DEUS É DEUS. Que não é licito ao homem ocupar o trono de Deus, quer pessoalmente, quer entronizando representantes seus na forma de imagens, conceitos, doutrinas, dogmas, organizações ou o que quer que seja; não é lícito ao homem usurpar o trono de Deus, nem tampouco lhe é permitido fazer-se seu íntimo mensageiro, ou seu profeta, seu arauto — para “falar em nome do Senhor”. Tais posições uma pessoa pode ter se para tanto for vocacionada, impelida por Deus mas delas se desincumbirá com temor e tremor” Qualquer coisa que alguém fizer além dessa vocação restrita, obscurecerá a verdade divina com a injustiça, com a prepotência e com a auto-suficiência humanas e estas coisas estão debaixo da ira de Deus.

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Paulo ensina que não há acepção de pessoas, nem pela família, nem pela raça, nem gela fé, nem pelo conhecimento, nem por coisa alguma. Deus é Deus tanto de gregos como de bárbaros; de judeus e de gentios; de membros da Igreja e de não-membros da Igreja. Ele é DEUS. Paulo ensina que mais convém agradar a Deus do que aos homens e que não há agrado possível a Deus senão mediante a fé que vem pela própria fidelidade de Deus e que por esta fé o justo viverá; que este Deus nos avalia segundo seu exclusivo critério na conformidade daquilo que abrigarmos no recôndito de nossos corações. Paulo insta que, inspirados na liberdade de Deus e servindo-nos da liberdade de opção que seus nos concede, adotemos a ética da renúncia, — que não exerce vingança, não se deixa levar pela ira, não se justifica a si mesma, nem atribui a si qualquer mérito, antes serve a Deus na força de sua natureza material: sua inteligência, sua instrução, sua capacidade física e assim procedendo, amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, socorrendo-o, dando-lhe de comer e de beber, mesmo que este próximo tenha a virulência de inimigo mordaz ou a vileza de amigo falso; que não o escandalizemos, se ele nos parecer “fraco” na fé, com gestos e atos que possam ser pedras de tropeço para ele. Paulo ensina que não sejamos preguiçosos em nós mesmos e perante Deus. Que não pretendamos julgar a Deus, porquanto unicamente ele é justo e reto; mesmo quando consente que sejamos tentados o faz em sua infinita sabedoria e graça: são insondáveis os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos; infinita é a sua ciência e o seu saber. Quem pode compreendê-lo? É por isto tudo que Paulo anuncia a Cristo, somente a Cristo, o Cristo crucificado, de cujo Evangelho não se envergonha. Não seria também por isto tudo que Paulo se recusou ostensivamente e até por vezes hostilmente, a prestigiar todas as tradições, “mesmo as mais dignas de honra”? Não seria por isto que ele repudiou todas as materializações, até mesmo as que, em si mesmas, fossem condizentes com a história? Não seria esse um motivo para enfatizar que devia a sua vocação ao Senhor Jesus e não a este ou àquele homem? Não seria por tudo isto que o Apóstolo se tenha referido da forma que o fez, às “colunas” da Igreja nascente?

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Não teria sido a “conduta pessoal peculiar” de Paulo uma reação e advertência, inspirada, contra a materialização que já ensaiava seus passos na Igreja do primeiro século e que se tornou tão grotescamente patente no seio do cristianismo (de todas “confissões”) nestes 2.000 anos de história da Igreja? Ora, — contemplando a materialização da Igreja que se deu a despeito deste “estranho” procedimento pessoal do Apóstolo e apesar de o Evangelho conforme ele o apresenta ser “um grão de areia” no sapato e “cascalho” nos encaixes lisos das engrenagens, — seria o caso de indagar o que teria acontecido se houvera sido outra a atitude do Apóstolo, se ele houvesse também procurado “agradar aos homens” sem praticar as apontadas rejeições, hostilizações e repulsas; sem anunciar o Evangelho segundo o recebeu de Deus mas, suavizado para atender, pelo menos, as tradições mais honradas e “consultar” também “o sangue e a carne”. O que teria então sobrado do sossobro provável da “evangelização dos gentios”? Foi no século I que Paulo escreveu aos Romanos e sua voz ecoou poderosamente na Cristandade; no século XVI sua voz reboou novamente, desagradável a muitos: DE GRAÇA SOIS SALVOS! — É o dom de Deus. A mesma voz nos fala hoje e cada leitor há de responder qual o eco que ressoa mais fortemente em seus ouvidos. Uma coisa, porém, é certa: “Esta maneira estranha no procedimento (do Apóstolo que) “em si mesma não tem maior importância”... talvez seja testemunha de infinita misericórdia de Deus e sua providência para que o Evangelho, anunciado por Paulo aos gentios de seu século, viesse aos gentios do todo mundo, até o dia de hoje! É em Cristo Jesus que Paulo tem a glória de também “entre nós” ter preparado “oferta aceitável” porquanto já agora podemos individualmente repetir como o grande Apóstolo, ao afirmar sua fé: “Eu sei em quem tenho crido e estou bem certo que é poderoso para guardar o meu tesouro, até o dia final”! Amém.

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...e, demais disto, minha filha, atente: “Não há limite para fazer livros, e o muito estudar enfado é da carne. “De tudo quanto se tem ouvido o fim é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque este é o dever de toda criatura”. (Eclesiastes). maio, 1981

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ÍNDICES 1. Índice de Citações Bíblicas (1A e 1B) .................................................... 823 Contém as citações do Antigo e Novo Testamentos na ordem em que os livros aparecem na Bíblia, sendo que as citações da carta aos romanos estão reunidas separadamente (Índice 1B). No texto os livros estão citados com suas abreviaturas usuais; as passagens da Epístola são indicadas apenas pelo capítulo e respectivo versículo, sem menção do livro. (O registro do cabeçalho e os versículos seguidos da Epístola não estão incluídos no índice). 2. Índice Alfabético de Nomes .................................................................... 835 Contém o nome dos autores, filósofos, teólogos, etc., citados ou referidos no texto original e nos comentários, inclusive o de Barth (Karl), quando são feitas referências específicas a ele. Nomes de personagens bíblicas foram incluídos no índice remissivo. 3. Índice Geral Remissivo ........................................................................... 839 Contém verbetes que sintetizam idéias e, portanto, assuntos semelhantes são reunidos sob um mesmo registro. 4. Índice Geral Progressivo ......................................................................... 849 Dá a seqüência das diferentes partes do livro.

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CITAÇÕES BÍBLICAS ÍNDICE 1 CHAVE: 18: 384; (10) 534; (17-19) 207 Indica: Citaçao do cap. 18 na pág. 384 e dos respectivos versículos, (10) na pág. 534 e (17-19) na pág. 207. Citações sucessivas de um mesmo capítulo são separadas por; e páginas sucessivas de uma mesma citação são separadas por vírgula; s e ss indicam “seguinte” e “seguintes” (em todos os índices).

Índice 1A GÊNESIS Cap. 11: (26) 508 3: (13) 393; (15) 192; (17) 508; (22) 268 12: (1-3) 220; (2-3) 192; (7) 220 13: (4) 127; (16) 220 15: (1) 553; (1 ss) 220; (5) 224; (6) 149; 187; 199; 210 17: (5) 187; 217; 219; (10) 199; (17) 225; 18: 384; (10) 534; (17-19) 207 21: (12) 532 22: (18) 203 25: (23) 536 28: (17) 62 32: (25) 539; (36) 531 ÊXODO Cap. 3: (2) 259; (6 e 11) 62; (13-15) 497; (14) 39; (14-15) 505 4: (24-26) 552

7: 9: 13: 16: 19: 20: 25: 33:

(2) 526 (16) 545 (14) 39 (3) 396 (17) 599 (13-27) 761 (17-21) 158; (22) 158 (16-20) 543; (21-23) 544

LEVÍTICO Cap. 16: (14-15) 158 18: (5) 579, 581; (15) 579 19: (18) 758 26: (12) 120 NÚMEROS Cap. 7: (89) 158 DEUTERONÔMIO Cap. 3: (25) 725 5: (17) 761 825

Citações Bíblicas

6: 10: 18: 30: 32:

(5) 111, 503; (13) 506 (17) 617 (4) 628 (14) 585 (12-14) 580; (21) 598; (43) 802

JOSUÉ Cap. 10: (12) 138 I SAMUEL Cap. 3: (1) 765; (9) 364 4: (4) 158 12: (22) 606 II SAMLEL Cap. 6: (2) 158 (16ss) 710 I REIS Cap. 19: (9-14) 556; (10) 607; (14) 607; (18) 608 II REIS Cap. 22: 528 23: 528 JÓ Cap. 3: 6: 7: 9: 14: 19: 23: 31: 38: 40: 41: 826

(23) 492 (4) 492 (1) 492; (12) 492 134; (2-3) 133; (11-21) 135; (33) 492 (4) 129 (29) 492 130 130 131 131 (4) 133; (6) 81; (7) 131 (11) 651

42: (3) 154; (6) 154; (7) 131; (710) 494 SALMOS Cap. 5: (10) 129 8: (5) 270 10: (7) 129 14: (1-3) 129; (7) 641 18: (50) 802 19: (1-4) 176; (4) 597 22: (5-6) 247 25: (20) 247 30: (5) 620 32: 196; (1-5) 193 36: (2) 129 39: 401 44: (22) 503 51: 114; (4-6) 119; (10) 73; (17) 344 62: (1) 638 (10-13) 85 69: (9) 801 80: (1-2) 158 82: (6) 435 86: (11) 600 90: (9) 762 95: (7-8) 766 103: (14) 303 104: (28-29) 496 106: (20) 62 116: (10-14) 119; (13-14) 119 117: 802 139: (1-12) 452; (12) 245 140: (4) 129 143: 134; (2) 133 PROVÉRBIOS Cap. 3: (4) 722 24: (12) 85 25: (21-22) 726

Índice 1A

ECLESIASTES Cap. 12: (12-13) 821

AMÓS Cap. 7: 219

ISAÍAS Cap. 1: 6: 8: 10: 11: 27: 28: 29: 40: 42: 45: 49: 52:

HABACUQUE Cap. 2: (1-3) 43; (4) 38, 47, 149

53: 55: 59: 64: 65:

(9) 554; (18) 142 (5) 391 (14) 569 (22-32) 554 (6-9) 510; (10) 802 (9) 641 (16) 569, 586 (16) 550 641; (13) 651 (2-3) 801 (9) 550; (23) 651 (4) 285 (5) 102; (13 ss) 580; (15) 811 580; 801; (1) 594; (4) 398; (5) 398; (10-11) 286 (11) 118 (7-8) 129; (20) 635; 641 (7) 550 (1) 598; (2) 599

JEREMIAS Cap. 1: (6) 79 7: (4) 77 9: (23-24) 192 20: (7) 403 31: (10) 633 DANIEL Cap. 2: (24-35) 157 OSÉAS Cap. 2: (1) 554; (23) 554 JOEL Cap. 2: (32) 589

MALAQUIAS Cap. 1: (2-3) 538 MATEUS Cap. 3: (5-9) 220; (9) 205 4: (6-7) 440; (10) 386, 506 5: 227; (11-12) 24; (17ss) 581; (39) 93 6: (6) 112 7: (1) 786; (35) 76 9: (2) 315; (5) 315 10: (7) 613; (28) 613; (34ss) 689 11: (1-4) 157; (5-6) 157; (25ss) 679 12: (30) 108 16: (17) 147; (19) 172 17: 18: 19: 22: 24: 25:

(5) 174; (26) 174 (7) 791; (18) 172 (16ss) 670; (17) 721 (37) 111; 700 (5) 313; (35) 140 (14-30) 114; (35-45) 729; (37ss) 543 26: (63-68) 174 27: (39-43) 438 28: (19) 207 MARCOS Cap. 1: (11) 442 3: (29) 430 8: (34) 48; 96 10: (17-22) 103; (18) 408 12: (28-31) 431, 648; (30) 666; 827

Citações Bíblicas

(32) 766; (33) 666 16: (15) 70 LUCAS Cap. 1: 2: 5: 6: 10: 12: 16: 17: 23: 25:

(43) 422 (29) 542; (34-35) 160 (8) 404 (26) 24 (25-37) 684; (30-37) 760 (2-3) 84 (13) 333 (24) 446 (35) 438 (21 e 23) 109

JOÃO Cap. 1: (1-5) 174; (5) 174; (12) 149 3: (1-15) 317; (3) 236; (3-5) 185; (16) 70, 97, 148, 149, 337, 769; (16ss) 617; (18) 557; (30) 715; (36) 149 4: (24) 386 5: (18-27) 174; (24) 617 6: (47) 149 8: (32) 122; (32-26) 333 10: (10) 344; (24-39) 174 14: (13) 378; (27) 76, 129, 352 17: (11-21) 686 20: (29 ss) 152 ATOS DOS APÓSTOLOS Cap. 2: (2) 428; (6) 70; (11) 430 4: ( 24ss) 542 7: (53) 283 9: (5-6) 62; (15) 657 10: (34) 617 11: (18) 219 16: (27-31) 399; (30-31) 350; (31) 84 17: (22-23) 144; (23) 39; (23-28) 828

369; (23-31) 143 (24-25) 39; (27-28) 56; (28) 144 19: 445 22: (10) 399 ROMANOS – Ver Índice 1.b. pág. 833 I CORÍNTIOS Cap. 1: (31) 192 2: (10) 501; 650 6: (2) 120; (19) 656 7: (31) 672 8: (2-3) 316; (3) 498 9: (16) 31 11: (23-29) 104 12: (12-13) 686; (23) 66; (31) 367, 395, 492, 758 13: 703, 761; ( 1ss) 520; (4) 395; (7) 500; (8) 493; (9) 405; (12) 316; (13) 493 14: (1) 395 15: 312; (9-10) 240; (22) 257; (25-28) 479; (26) 260, 623; (28) 502; (34) 67; (45) 258; (45ss) 266; (47) 487; (5057) 154; (51) 636; (51-52) 767; (54) 280, 502 II CORÍNTIOS Cap. 1: (3-11) 498 3: (17) 441 4: (10) 301; (12) 243, 257; (16) 243; (16ss) 302 (18) 484, 500 5: (1ss) 160; (2) 280, 343; (4) 280; (17) 257; (19) 159; (19-20) 498 6: (8) 591; (16) 120 7: 731; (5) 243 8: 708

Índice 1A

9: 10: 11: 12:

708 (17) 192 (31) 514 (9) 303

GÁLATAS Cap. 1: (11-12) 812; (16-17) 812 2: (2) 617; (9) 812 4: (4) 284, 360, 422; (9) 316 5: (5) 145; (6) 493; (22) 460 6: (7-8) 97; (15) 120; (17) 301 EFÉSIOS Cap. 1: 227 2: (12) 514 3: (1) 403 (4) 403; (20) 798; (20-21) 798 4: (1) 403; (30) 431 5: (9) 460; (16) 471; (32) 636 FILIPENSES Cap. 1: (15-18) 108 2: (5-11) 174; (6) 801; (6-7) 440 3: (10) 301, 497; (20) 300 COLOSSENSES Cap. 1: (13) 441; (24) 301 2: (14) 360 3: (3) 154, 300; (24) 698 II TESSALONICENSES Cap. 1: (12) 513 2: (7) 636 II TIMÓTEO Cap. 1: (8) 403; (12) 136 4: (8) 84; 349 TITO Cap. 1: (15) 790

2: (13) 513 FILEMON Cap. 1: (9) 403 HEBREUS Cap. 1: 679; (1) 174; (3) 153 2: (7) 270 3: (7-8) 765 10: (17) 310 11: 568; (5) 127; (6) 211 12: (2) 147 13: (13) 450 I PEDRO Cap. 1: (25) 140 3: (18) 314; (19) 251 TIAGO Cap. 2: (23) 344 4: (14) 762 I JOÃO Cap. 5: (13-20) 174 JUDAS Cap. 1: (24-25) 798 (único) APOCALIPSE Cap. 1: (6) 338 2: 519; (9) 560 3: 519; (5) 267, 339; (20) 591 5: (11-13) 174 7: 207 20: (11ss) 80 21: 207; (1) 138; (2) 428; (22-24) 639; (27) 267 22: (17) 149 829

CITAÇÕES BÍBLICAS EPÍSTOLAS AOS ROMANOS ÍNDICE 1B Chave: (5) 35, 240, 447 Leia-se: O versículo 5 do capítulo referido está citado nas páginas 35, 240 e 447 (Os números das páginas estão separados por vírgulas). CAPÍTULO 1 (1) 37, 77, 142, 240, 258, 679, 698, 722 (1-7) 31, 174 (2) 55, 126, 133, 143 (3-4) 259, 280 (4) 34, 40, 43, 45 (5) 35, 240, 447 (6) 34 (7) 768 (9) 699 (9-13) 813 (10) 37, 260 (14) 35, 276 (16) 50, 55, 96, 139, 142, 155, 245, 258, 545 (16-17) 649 (17) 51, 577 (18) 41, 63, 121, 124, 125, 137, 139, 141, 191, 213, 239, 245, 266, 267, 324, 377, 502, 661, 728 (18-19) 662 (18ss) 75, 261 (19) 487

(19-20) 490 (20) 60, 64, 79, 171, 245, 248, 391, 447, 478, 483, 622, 650, 679 (22) 68 (22, 32) 121 (22ss) 139, 214, 238 (23) 76, 86 (24) 41, 727 (25) 513 (28-31) 66ss CAPÍTULO 2 (1) 132 (1-2) 86, 269 (1-13) 355 (3) 187 (3-5) 269 (4) 88, 92, 99, 161, 185, 553 (5) 266 (6) 89, 94, 101, 123, 134, 167, 185, 190, 669 (9) 245, 707 (11) 190, 617 (11-12) 272 831

Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos

(12-13) (13) (14) (14-15) (14-19) (14-29) (15) (16) (17) (17s) (17-20) (19) (19-25) (20) (22) (29)

269 86, 91, 278, 281, 300, 579 88, 118, 131 515 355 563 134, 677 113, 134, 161, 190, 336, 500 242, 514 269 45 125 116 132, 233 242 89, 185

CAPÍTULO 3 777, 801 (1) 120, 132, 135, 173 (1-2) 45, 514 (1-4) 120, 126 (1-20) 355, 380, 407 (2) 99, 131, 269 (3) 116, 646 (3-5) 291 (4) 530 (5) 122, 132, 540 (5s) 548 (5-6) 616 (5-7) 123 (5-8) 124, 125 (6) 120 (8) 524, 547 (9-18) 653 (10) 268, 281 (10-18) 129, 132, 133 (14-20) 269 (19) 170 (20) 137, 161, 218, 285, 380, 408 (21) 163, 180, 197, 239, 254, 276, 296, 365, 447, 472, 532, 577 832

(21-22) (22) (22-23) (23) (24) (24-28) (25) (25-26) (27) (27-30) (27-31) (27ss) (28) (29) (29-30) (30) 564 (31)

31 161, 295 205, 241 170, 243, 268 159, 295, 481 276 163, 169, 191, 250, 552 553 242, 565 197, 355 183 579 187, 191, 316, 471, 533, 764 96, 183, 514, 515 204 86, 171, 250, 278, 300, 515, 197, 208, 218, 283, 355

CAPÍTULO 4 355, 777 (1) 217, 222 (1-8) 180 (2) 187, 242 (3) 198, 316, 471, 533 (4-8) 200 (5) 136, 191, 200 (6-8) 198 (9) 200, 564 (9-12) 180, 355, 591 (11) 99, 294 (12) 594 (13) 209, 241, 278, 468 (13-17) 180, 355 (13ss) 227 (14-15) 218 (15) 269, 285, 328, 364, 389 (16) 296, 515, 532 (17) 136, 227, 231, 236, 297, 300, 452 (17ss) 227 (18) 136, 163, 627 (20) 187

Índice 1B

(21) 187 (25) 236 CAPÍTULO 5 (1) 89, 162, 249, 284, 301, 341, 625 (1-2) 247 (1-11) 256 (2) 163, 243, 253, 626, 679 (3) 498, 707 (3ss) 302 (5) 238, 243, 491, 627, 700, 707, 757, 758 (6) 245, 497, 802 (6-8) 440 (8) 248 (8-10) 625 (9) 250, 274 (9-11) 341 (10) 238, 249, 251, 274, 645 (10-11) 299 (11) 276 (12) 41, 126, 199, 273, 275, 279, 288 (12-14) 125 (13) 285, 328 (13-14) 279, 282, 376 (13-20) 355 (14) 256, 285, 639 (15) 275 (15-17) 274, 279, 290, 333 (16) 277, 442 (16-17) 276, 277 (17) 277, 281, 300, 324 (17-19) 86 (18) 268, 278, 279, 280, 288, 442 (18-19) 256, 281 (19) 260, 276, 280, 300 (20) 214, 261, 278, 328, 400, 525, 620 (21) 260, 264 CAPÍTULO 6 (1) 292, 305, 308, 547

(1s) (1-2) (1-12) (2) (2ss) (3) (3-5) (4) (4-5) (5) (6) (7) (8) (9) (10) (11) (12) (12-23) (12-31) (13) (14) (14-15) (15) (15s) (15-16) (17) (18) (19) (22) (23)

548 616 368 292, 297, 300, 301, 305, 388 161 302, 337 303 309 278 300, 307, 367, 444, 473, 497 322, 332 297 300, 314, 315, 440, 503 280, 341 316 301, 533 275, 362 368 365 453, 666 300, 343, 364 355 334, 525, 547 548 667 327, 338 334 326, 346, 349, 364, 365, 453, 666, 667 361, 362, 368, 454, 667 264, 356, 668

CAPÍTULO 7 (1) 358, 361, 364, 371, 415 (4) 362, 686 (6) 371, 399, 464 (7) 394, 396, 398, 399 (7-13) 363, 561 (7ss) 270 (8) 270, 271, 379, 383 (8-11) 398 (9) 383, 739 (10) 264 833

Citações Bíblicas - Epístola aos Romanos

(11) (12) (13) (14) (14-17) (14ss) (15) (16) (16-17) (17) (18-19) (18-20) (19) (20)

270 283, 399 400 408, 409, 480 402 270 739 409 410 447 402 402 114, 127, 241 317, 447

CAPÍTULO 7 (24) 319, 344, 426, 427, 448, 672 (25) 319 CAPÍTULO 8 801 (1) 444 (2) 166 (3) 444, 447, 463, 497, 710 (4) 587 (5-9) 457 (10) 451, 452 (11) 463 (12) 462 (13) 672 (14) 473, 498, 515 (15) 472 (16) 473, 485, 532 (17) 301, 472, 473, 503 (18) 469, 533, 608, 706 (19-22) 509 (19ss) 245, 262 (20) 490, 745 (22-23) 490 (23) 608 (24) 329, 481, 535 (24-25) 707 (26) 59, 368, 378, 708 (27) 708 834

(28) (28-29) (28ss) (29) (29-30) (31) (38)

245, 503, 632, 757 632 700 632 504 503 63

CAPÍTULO 9 (1-5) 597, 603 (2) 531 (4-5) 45, 99 (6) 637, 646, 680 (12) 573 (13) 573 (15-18) 51 (18) 573 (19) 550, 551, 561, 621 (22-23) 620 (23-33) 788 (31) 570, 572, 577, 581, 612 (33) 619, 627, 788 CAPÍTULO 10 (1) 597, 603 (2) 96, 578, 581 (3) 578, 581, 586, 612 (4) 581 (4-5) 89 (5) 586, 590 (6-8) 586 (9) 590 (11) 589, 590, 627 (11-14) 513 (12) 622 (12ss) 592 (13) 590, 592 (14-15) 45 (15) 169, 455 (16) 610 (16-21) 616 (17) 147

Índice 1B

(20) 629 (21) 603, 605 CAPÍTULO 11 788 (2) 610, 646 (9) 627 (11) 633 (12) 638 (13) 638 (13-15) 638 (14) 638 (15) 623 (25) 719 (25-26) 652 (28) 654 (30) 643 (32) 105 (36) 637 CAPÍTULO 12 (1) 679, 680, 694, 746, 749, 758, 774 (1-2) 734 (2) 35, 681, 713, 734, 756, 810 (3) 690, 695, 714, 761 (3-6) 760 (3-8) 678, 702 (6) 723 (8) 713 (9) 721, 725, 757, 760 (9-13) 697 (9-15) 712, 754, 756 (11) 698, 808 (13) 698, 813 (14) 701, 726 (15) 711 (16) 730, 736 (16-20) 713, 756

(17) 726 (18) 777 (19) 738, 745 (19-20) 736 (20) 744 (21) 743, 744, 753 (21 a 13, 7) 756 (31s) 367 CAPÍTULO 13 740 (7) 755 (9-10) 684 (11) 706 (12) 236 (14) 686 CAPÍTULO 14 797 (23) 798 CAPÍTULO 15 797s (1) 773, 798 (1-6) 797 (3-12) 798 (15) 37, 816 (17) 163 (20-22) 37 (30) 35 CAPÍTULO 16 797ss (1) 766 (6) 815 (17-20) 798 (19) 34 (22) 236 (24) 798, 799, 817 (25-27) 796ss, 817 (26) 47

835

ÍNDICE DE NOMES ÍNDICE 2 A Agostinho 126, 449s Angelus Silesius 165 Anselmo 275 Arnd Joh. 406 Atanásio 698

255, 266, 290, 295, 392, 402, 413, 421, 423, 473, 477, 483, 540, 542, 550, 635, 648, 737, 782 Cohen, H. 15, 54 Corssan 797

D B Dostoiewski 93, 182, 189, 223, 285, Barth, Fritz 13, 255, 294 339, 357, 392, 433, 458, 547, 549, Barth, Karl (Excertos para esboço da 664, 730, 737, 775 personalidade) (13,20), (22, 23 itens 1 e 2), (49, item 3), (68/69, E itens 2 e 3), (89, item 1), (106, item Edwyn, Sir 2 1), (169, primeira parte), (358, in El Greco 410 fine) Erasmo 214 Beck 373, 453, 513 Bengel 46, 152, 255, 782, 816 F Bethmann – Hollweg 665 Feuerbach 363, 487 Beza (Bèze) 636 Filo 602, 651s Bismark 15 Foerster 674 Blueher (Hans) 550, 703 Francisco de Assis (São) 78, (106, item Blumhardt (pai e filho) 30, 78, 342, 1), (357, in fine) 392, 433, 565, 608 Blumhardt J. C. (pai) 325, 358, 481 G Boll 608 Gellert 95 Godet 303, 316 C Goethe 413, 451, 476 Calvino 15, 118, 225, 239, 241, 253, Gouvêa, Ricardo Quadros 5ss 837

Índice de Nomes

Gruenewald 182, 203, 223, 248 H Harnack 347, 716, 797, 799 Hegel 219 Heiler, Fr. 485, 708 Heráclito 258 Hiller, Ph. Fr. 160 Hoelz 460 Hoffmann 248, 403, 513, 796s Holderlin (Hoelderlin) 547 Holz, Arno 460 Holtzmann, H. 297 Huss, João 239 J Jean Emile Charon 429 Juelicher 274, 514, 525, 608, 632, 648, 698, 705s, 735, 777 K Kant 413, 460s, 567, 575, 592, 722 Kierkegaard 15, 27, 30, 43, 78, 148, 180, 182, 214, 219, 236, 392, 401, 421, 433, 436s, 526, 604, 607, 679, 684, 692, 722, 759, 760, 763 Kuehl 239, 357, 364, 513, 577, 781, 798 Kutter 239, 339, 607 L Lao Tse 394 Lenine 465, 674, 731 Lessing 413 Lhotzky 372 Lichtenberg 413 Lietzmann 236, 247, 265, 328, 451, 513s, 628, 648, 698, 796s, 815 Ludendorff 460, 674 838

Lutero 15, 28, 43, 50, 59, 78s, 103, 141, 149, 161, 182, 215, 223, 244, 258, 264, 270, 273, 285, 293, 298, 324, 393, 397, 407, (416, it 1), 423, 432, 440, 445, 446, 450, 458, 462,. 465, 471, 474ss, 490, 501, 528, 568, 606, 638, 647, 649, 650, 664, 701, 703, 709, 726 M Marcion 372, 374, 389, 799 Marco Aurélio 651 Martensen 214, (219, item 1) Marx 20, 23, 730 Melanchton 492 Merechkowski 238 Miguel Ângelo 385, 388 Mota, Jorge Cesar 1, 153 Mota, Otoniel 1 Mozart 672 Muck Lamberty 547 Mueller, Johannes 372s N Nietzsche 15, 152, 215, 221, 229, 475, 477, 479, 541, 547, 640, 674, 737 O Oetinger 453, 805 Orígenes 797 Overbeck 30, 44, 151, 165, 183, 215, (219, item 1), 252, 313, 392, 414, 421, 692 P Platão 54, 117, 176, 223, 434, 451 Plotino 175 Polícarpo 798 Poradowski, Miguel 21ss

Índice 2

Potenkin 101 Preiswerk S. 150 R Ragaz 372s, 674 Rothe 453 Rousseau 271 Rudyard Kippling 732 S Schiller 741 Schlatter 29, 305, 316, 537 Schlegel, Fr. 402 Schleiermacher 346, 351, 401, 404 Seume, R. 271 Sócrates 176, 182, 426 Steiner 453 Steinhoffer 247, 541, 632, 781, 816 Stinnes 460s, 541, 632, 781, 816 Strauss, Dr. Fr. 65, 438 T Tersteegen 465, 703

Tholuck 796 Thomas Muenzer 779 Tirpitz 16, 665, 727 Tolstoi 78, 79, 93, 694, 730, 778 Tomás de Aquino 10 Tristan Tzara 298 Troeltsch 297, 313 V Vasconcelos C. C. 23 W Weinel 254 Weiss, B. 513 Wernle 297, 735, 808 Wettstein 513s Z Zahn 86, 287, 325, 403, 451, 513, 577, 781, 796s, 815 Zinzendorff 238 Zuendel 27, 51 Zwinglio 103s, 423, 433

839

ÍNDICE GERAL REMISSIVO ÍNDICE 3

A “Ab Extra, Ad Rem” 22-25 Abraão (Abrão) 104, 107, 127, 143, 181ss, 187ss, 196ss, 210, 218, 434 “Actus Purus”291 Adão 127, 265, 287, 338 Ágape 493, 545, 700ss, 756, 759ss, 767 Alvo, O 634s Ama-Xosa 486 Amazias 214, 191 (item 1) Amor 489s, 702, 755ss, 770s Amor a Deus 238, 248, 253, 491ss, 757ss Amor ao próximo 700, 757s Amor de Deus 148, 169, 241, 388s Amós 214, 220 Anabatistas 737 “Ananke”51 Antigo Testamento (ver testamento) Antinomia 556 Apóstolo (ver Paulo) Árvore do Bem e Mal 270, 384, 386s, 388s, 392s Autoridade 27s, 98s, 686, 694ss, 705, 732ss, 744ss, 752ss B Babel, Torre de 669, 730

Barthianismo 15, 89 (com. 3), 206, 266 Base fundamental, A 678 Batismo 69, 136, 199, 203, 220, 289, 295ss, 303, 364 Bíblia 13s, 83, 169, 171, 180, 197, 207 Bíblia (Traduções da) 12 (com. 2 e 3), 38 C Carta a um pastor 9s, 24 Catecismo de Heidelberg 10 Catolicismo 30, 21s, 69, 106 (in fine)s, 127, 149, (in fine)s, 165, 169, 172, 206s, 265s, 268, 422, 516 (in fine)s, 575, 618 (in fine)s, 684s, 761, 792 (in fine)s, 121, 807 “Centrum Paulinum” 45, 68 Comentários 37 (in fine)s, 48s, 57ss, 68ss, 89ss, 106ss, 173ss, 196s, 205ss, 219ss, 231ss, 287ss, 317ss, 349ss, 368ss, 399s, 416s, 448s, 488s, 527, 555ss, 575s, 599s, 614s, 633s, 652ss, 677s, 695ss, 710ss, 730s, 753ss, 769s, 802s Comunidade (O Apóstolo e a) 805ss Concílio de Trento 23 Condenação 96 Confissão de fé do Westminster 267 Consciência 95, 664, 725, 751, 791 841

Índice Geral Remissivo

Conselho Mundial de Igrejas 807, 664s “Creatio ex nihilo” 153 Crer 44 Criação do homem 175 Crise 34, 40, 47, 122, 136, 161, 172, 185, 233, 331 D Daniel 127 Davi 127 Decisão 425 Desator (e ator) 172 Deus 28, 29, 46, 50s, 52, 56, 97, 106, 114, 118, 122, 124, 170s, 186s, 197, 223s, 370s, 389s, 432, 463, 514, 541, 808, 817 Deus de Esaú 539 Deus de Jacó 527 Desconhecido, O 39, 54, 180, 221s Deus (Relacionamento com) 51, 55, 63, 66s Deus (Unidade de) 602 Dia de Jesus Cristo 145, 147, 155s, 235s, 287, 365, 464, 473, 483, 494, 512, 527, 634, 647, 656, 673, 676, 755 Direito das Pessoas 737s, 749s, 789 Direitos Humanos 711 “Disangelho”10 Dogmática (de Barth) 10, 19, 89 (com. 1), 422s Dor 507 Doxa 187 Dualismo 274, 291, 340s, 347s E Ecumenismo 22s, 41, 689, 790 Editorial 31 Ego 121, 248, 343 Eleição 32, 48 (com. 1), 82, 200, 266s, 490ss, 534ss, 570, 609s, 612ss, 842

619ss, 622s, 631, 541, 650s, (ver Predestinação Elias 127, 556, 606s, 731 Enoque 127 Epístola aos Romanos 2ss, 38, 648ss, 659, 677s, 679, 715, 735, 744, 772, 775, 779, 787, 792, 797s, 805s, 815 Epístola de S.João (I) 701 Eros 66, 657, 671, 699s, 706, 710, 760 Esaú 285, 556, (ver Igreja de Esaú) Escândalo 44, 49, 80, 89, 148, 151, 155, 160 Escatologia 61(in fine), 85, 95, 137, (in fine), 154, 241, 365, 388, 527, 579s, 590, 694, 764s Escravo 63, 77, 131 Escrituração 80 Esperança 32, 241, 298, 276, 482, 646, 707 Esperança da Igreja 605, 610s, 613 (in fine), 626s, 636 Espírito 425ss, 428s, 441ss, 450, 452, 463, 482, 485ss, 668, 706 Espírito Santo 30, 247s, 404 Espiritismo 334 Espiritualismo 453 Essência do cristianismo 648 Ética 251 (in fine)s, 349, 460s, 464, 506, 655, 657ss, 673, 695, 602, 807 Ética cristã 718s, 720, 730 (ver 657, in fine) Ética divina 722 (in fine)s, 801 Ética negativa 713 Ética positiva 997s, 756s Ética primária 657 (in fine), 668 Ética problema da 657, 678 (comentários) Ética secundária 657 (in fine), 690s Evangelho 29, 38ss, 55, 75, 79, 96, 142, 258, 346, 389, 541, 790 Evangelho social 525

Índice 3

Evangelismo 664, 790 Eucaristia 103 Explicações Preliminares 2 F Fanatismo 78, 738, Farisaismo 28, 63s, 83s, 151, 164s, 214s, 220, 556s, 604, 625s Fatalismo 124, 303, 341, 492 “Fata Morgana” 17, 434, 471 Fé 28, 32, 43ss, 47s, 71, 74, 77, 79, 81, 85s, 88, 91, 105, 112, 136, 143, 147s, 151, 154, 158, 159s, 162, 166, 170s, 174, 177ss, 187, 193, 197, 199, 202s, 206s, 209, 215, 220, 227, 230, 236s, 240, 247, 258, 282, 294, 309s, 316, 353, 466, 534, 566, 577, 586, 591, 630, 649, 651, 763, 773, 777, 820, (ver fidelidade de Deus) Fetichismo 63 Fidelidade de Deus 32, 34, 36, 38, 44, 47, 49, (com. 4 e 5), 71, 112 (in fine), 114, 113, 118, 124, 130, 133, 142, 146, 147, 155, 160, 164, 166, 178, 197, 201, 210, 218, 223, 296, 318, 344, 353, 370, 417, 657, 785, (ver “Fé”) Filiação (em Espírito) 238, 250, 293, 303, 320s, 344, 360, 464, 492, 497 Final dos tempos 765ss Fruto proibido 393 (ver árvore do bem e do mal) Fundamentalistas 87, 335 “Futurum Aeternum” 293, 301, 365 “Futurum Ressurrections” 300, 306, 310, 314, 315, 317, 326, 340, 343s, 640 G Genialidade 671, 674 Glória 151 (in fine), 811, 817 (com. 1), 811

Gnosticismo 126, 179 Graça 29, 31, 58, (com. 5), 80, 150, 153, 155, 169, 218, 275s, 286, 289, 306s, 320s, 326s, 335, 345, 352, 355, 360, 367, 371, 374, 416, 530s, 609, 657, 666s, 693s Graça, Salvação pela 68s, 396 (in fine) (ver “Salvação”) Guerra 774 H Heroísmo 105, 115, 118, 127s, 147, 183, 187, 205, 779 Hierarquia 113, 151 História 13, 20, 29, 55, 74, 78, 80, 85s, 98s, 113s, 118, 124, 126, 129, 132, 136, 137s, 142, 143s, 147, 151, 155, 159, 161, 162s, 178, 180, 184s, 189, 192s, 197, 201, 213s, 218, 221s, 225s, 230s, 268, 300, 312s, 387s, 367, 409s, 433s, 479, 491, 516s, 677, 786s História antiga 182s, 221, 265, 364s, 453 História da Igreja 78, 103, 139, 198, 313, 365, 433, 566, 765ss História da Redenção 78, 95, 107, 183, 192, 204s, 209, 212s História da Religião 28s, 115, 181s, 189s, 200s, 312s História Sagrada 116, 139, 197 História da Salvação 78, 433 (ver “Salvação”) História da Verdade 191 História (Utilidade da) 221 História (Voz da) 177 Homem Novo 155, 161, 168, 235, 298, 303s, 326, 338, 354, 358, 415, 666 Homem Velho 297s, 303s, 338, 666 Hóstia 77 843

Índice Geral Remissivo

I Idealismo 65, 94, 583, 744 Ideologia 100, 113, 805 Idolatria 24, 32, 38, 41, 49, 51ss, 65s, 124, 169 Ídolo 51, 58, 62, 68, 423 Igreja 17, 90, 149s, 199ss, 206, 270, 515, 518, 521, 527, 529ss, a 545, 571, 573, 575s, 578, 581s, 584ss, 589, 594ss, 597, 599ss, 601ss, 612, 620s, 625s, 632, 637, 640, 643, 645, 652, 663, 680s, 690, 737 Igreja (Aflição da) 531, 544, 555 Igreja (Alvo da) 635s, 642s, 647 Igreja Congregação dos Santos 690s Igreja (Coroa da) 530 Igreja Crise do Conhecimento 559ss Igreja (Culpa da) 559, 597 Igreja (de Esau de) 531, 570, 578, 597, 614 Igreja (Esperança da) 17, 601, 611ss, 618ss, 623, 626, 636 Igreja de Jacó 531, 594, 639 (in fine), 680 (Igreja) Luz nas Trevas 559, 576, 592, 602, 613 Igreja (Palavras aos de fora da) 616s, 629, 632s Igreja Reformada 516s, 584 Igreja (Tributação da) 511, 536 Igreja (Unidade da) 602ss, 607, 609s Imaculada Conceição (Dogma da) 268 Imagens 41, 61 Imanência 163s, 171, 180, 214 Imediação 263ss, 284s, 323, 339s, 350, 355s, 371s, 376, 386, 388s, 433s, 497, 520ss, 525 Impostos 753 Índia 63 Indivíduo 173, 180, 758, 762s Inimigo 726s, 733s 844

Inovação 19 Inquisidor, O Grande 307, 602ss, 737, 715, 792 Instante Crítico 31s, 35, 44s, 164, 168, 180, 191, 195, 217, 257, 292, 310, 472, 610, 623, 647, 762, 766s, 769, 802 Intelectualismo 658s, 606s Interrogação divina 390 Interrogação sobre Deus 42, 264 Intolerância 333s Introdução 27 Ira divina 50, 55s, 63, 74, 77, 79, 83, 86, 89 (com. 2), 96, 114, 139, 142, 191, 253, 328, 334, 353, 553, 787 Irmãos Morávios 239 Isaías 107 (com. 2), 129, 598 Israel (História de) 207s, 212, 217s, 230s J Jacó 285, 553 (ver “Igreja de Jacó”) Jeremias 77, 107, 182, 410 Jesus 137 Jesus Cristo 433s, 437s, 585s Jesus Deus 174 Jesus Filho de Deus 249, 284, 331, 433, 764 Jesus histórico 29s, 112, 159, 249, 284, 311, 764, 777 Jesus homem 29, 112, 145s, 148, 156, 161, 174 Jesus nosso Senhor 29, 54 Jesus o Cristo 30, 39, 112, 145s, 174, 433 Jesus Profeta 249 Jesus Sacerdote 249 Jesus Rei 249 Jesus (o verbo) 385, 524 Jó 28, 50, 54, 129s, 143, 159, 246s, 262, 391, 401, 469, 472, 492, 498

Índice 3

João Batista 117, 402 Jonas 127, 634 José (Mal de) 615, 621, 637, 652 Judas (Iscariotes) 603 Juiz, O 73, 116, 245s Julgamento 47, 50, 55, 74ss, 80s, 85ss, 90ss, 98, 112s, 116, 122ss, 130, 183s, 185, 244s, 277s, 567, 784 Justiça 431, 561, 577 Justiça divina 29, 45s, 47, 51s, 74, 80s, 95, 112ss, 122, 130, 142, 153, 160s, 164, 184, 190, 197 (com. 4), 209, 218, 281, 341s Justiça humana 94, 155 (in fine), 164, 185 (ver “Retidão Humana) “Justificatio Forensis” 17 “Justitia Forensis” 141, 780 Justificação 169, 180, 188, 195, 199s, 285, 294, 338 Justo 47s K Kapporeth 158, 552 L Laicismo 372, 630, 632 (in fine) Lei, A, 111s, 131 (in fine), 135, 269s, 285, 332, 353, 362, 370, 374, 381, 403, 411s, 416, 431s Liberdade da criatura 338s, 360ss, 364ss, 380s, 384ss, 398 (in fine), 400 (in fine), 415, 772s, 785s Liberdade de consciência 584, 664, 718, 788 Liberdade de Deus 331 (in fine), 353ss, 367, 380 (in fine), 398ss, 359, 416, 532, 546, 589, 592 Liberdade para pecar 329, 338s, 381, 384 Liderança 777, 799 Línguas estranhas 69s

Livro da vida 189 Lógica 121, 123, 408, 677 Logos 222, 381 Louvor 668 Luteranismo 666 (in fine), 725 Luz 146s Luz nas Trevas 576 M Mãe de Deus 421 Magia 295 Mal 721s, 726, 728, 738s, 748, 750 Mandamento 389s Maometanismo 354 Maravilha 81s, 88 Marcionismo 372, 797 Maria 422 Mariologia 268, 422 Martírio (sacrifício) 250, 777s Marxismo 21ss, 85, 207 Máscara 21ss, 190 Materialismo 24, 65, 190 Mediador 51 Mensageiro 10, 28, 31s, 35, 38, 40, 69, 108s, 119, 646, 728 Mensagem 38, 79, 107ss, 118s, 132, 150, 169 Mentira 116, 119, 105 (in fine), 120, 122, 252 Méritos (excedentes) 69 Método 76s, 81s, 105 (in fine), 149, 164s, 166, 211, 216, 728s, 734, 788 Milagre 39, 61, 71, 81s, 87, 90s, 141, 154, 178ss, 182, 191, 194, 227, 308, 343, 566 Militarismo 725, 728, 771 Ministério 693, 809 Ministro 521, 524, 572 Misericórdias (de Deus) 656, 661 Missão 93, 98, 100, 107, 150, 169, 562s 845

Índice Geral Remissivo

Missão da Igreja 636, 640, 647, 652s Misticismo 32, 81, 165, 222, 298, 301, 330, 372, 401, 486, 651, 668 Mito 30, 212, 222, 295, 385 Mitologia 222, 383, 385 Mitras 410 Moisés 107, 117, 143, 178, 579 Momento (binário) 167, 169 Momento crítico (ver instante crítico) Monasticismo 69, 301 Moral 60, 95, 129, 330, 333s, 345, 715 Morávios, Irmãos 239 Mordomia 656s, 669, 771ss, 781, 787s, 799ss Mordomia (A crise de) 771ss Morrer (em Cristo) 163 Morte 179, 260, 264s, 289s Mortificação 461 Muenchhausen (Barão de) 407 Mundo 17, 32, 43 (in fine), 59s, 96, 137 Mundo Novo 86, 90, 256ss Munus 48, 69 Munus Triplex 249, 311 N Nação sacerdotal 201, 617 “Não-Deus” 46, 51, 53s, 63, 67, 71, 73, 76, 80, 83, 97, 112, 121, 125, 130, 245, 261, 357 “Não” divino 42s, 48, 50, 55, 59, 65, 71, 79, 91, 106, 114, 129, 138, 143, 152, 165, 168, 169, 180, 191, 194, 218, 243, 275, 286, 290, 305, 347 Natal 157, 183 Noite 48s, 50, 57, 59 As trevas 59 A origem 48 Nova criatura 97, 105, 168, 235s, 241s, 254, 293, 306, 314, 317, 312, 338, 341, 348, 427, 431, 554 (in fine), 625 (in fine), 639, 666 846

O Obediência 32, 35, 86 (in fine), 123, 146, 281, 319s, 336 (in fine)s, 330 (in fine), 593 Obediência (Poder da) 319ss (ver sob “Poder”) Obras (de Deus e humanas) 55, 164ss, 168, 549s, 716 Oleiro (analogia) 551 Opção 45, 49, 51, 57, 71, 80, 89, 96, 161 Oração 35, 81 (in fine), 131, 326s, 486s, 668 Origens 15, 121, 129, 137, 141, 151, 153, 197, 203, 219, 221s, 261, 321 Ortodoxia 201ss P Palavra 10, 28, 118, 146, 151, 171, 195 Palavra aos de fora 616ss Palavra de Deus 226, 433, 435, 528, 566, 585, 626, 650, 677, 701 Panteísmo 331, 335, 453, 517s Papa 172, 410, 726 Parábola 519, 541, 749 (ver semelhança) Paradoxo 27, 30, 50s, 59, 65, 76s, 79, 81, 142, 147, 151, 159, 163, 170, 174, 178s, 184, 185, 195, 239, 258, 308, 397, 435, 516, 636, 647 Parúsia 242 Pastor 20, 693 Paulinismo 772, 792, 800, 805, 812 Paulo 27, 107, 241, 286, 290, 330, 338, 350 (item 1), 401, 403, 407 (in fine), 416, 472, 498, 522, 589, 625, 628 (in fine), 650, 654ss, 661s, 677, 679, 683, 690s, 705, 722 (in fine), 755, 772, 805ss, 818 (ver Apóstolo) Paz 77s, 80, 129, 142, 238, 243, 276, 284, 724

Índice 3

Pecado 161, 179, 190, 193s, 260, 269s, 280, 281s, 374, 381, 398, 400s, 435 Pecado original 263s, 265 (in fine), 287ss, 291s, 306s, 390s Pedro 172 Perdão 42, 81s, 96, 140, 142 (in fine), 145, 146 (in fine), 161, 293, 307, 329, 331, 337, 339, 346, 348, 361, 389 Perturbação 655s, 661, 667 Pessimismo 126, 130, 152, 243s, 328s, 355s, 477 Pietismo 164s, 240, 392, 433, 465, 525, 715s Poder da obediência 319s, 326 (in fine), 328, 333 (in fine), 337s, 345, 350, 352, 360s Poder da ressurreição 289, 292, 299, 316, 328, 336, 345, 350, 361 Poder de Deus 39, 45, 50, 55, 58, 141, 345 Policarpo 798 Ponto central 48, 149, 249, 257 Ponto crítico 40, 53 Possibilidade negativa, A grande 732ss Possibilidade positiva, A grande 755ss Possibilidades negativas 712ss Possibilidades positivas 697ss Predestinação 10, 70, 90, 190, 219, 266, 273, 277, 280, 336s, 375, 378s, 381, 383, 385s, 389s, 497, 532s, 536s, 546s, 550s, 554s, 573s, 577, 579, 591s, 602, 632, 667, 717, 781, 785 Prédica 160, 339, 520, 525, 562s, 692s Prefácios de Barth 14ss, 16ss, 20s Prefácio Geral 6ss Pregador 407 Prerrogativas 629s Profecia 28, 143, 150, 273, 433, 458s, 522s, 566

Profeta 83s, 89 (com), 115, 143, 249, 282, 376, 381, 408 Professor 692 Profissão de fé 199, 203, 295 Promessa (de Eleição) 534, 668 Propiciação 143, 158 Protestantismo 16, 18, 23, 69s, 103, 149s, 169, 217, 334s, 345, 351, 516, 632, 649, 656, 667, 683, 766s, 772s, 778, 792ss, 794 (in fine)s, 800, 807 Protesto 756 Próximo 683s, 695, 700s, 703, 708s, 727s, 757s, 800s Psicologia 74, 78s, 86, 98s, 118, 129, 147, 149, 175, 195s, 303, 399s, 436, 463s, 481, 785 Q Qualificação (por Deus) 666s, 741 Qualis ab Incepto 416s Queda (de Adão) 41,88, 143, 151, 275, 280, 281 (in fine), 386, 390s Questões de fôro pessoal 34 R Racional, Culto 667 Racionalismo 432s, 575 Radicalismo 128 Reacionário 136, 756 Recompensa 52, 58 Reconciliação 157, 163 Recordação 98s, 137, 175 (com 3) Redenção 139, 143, 157, 161, 163, 168, 196, 224s, 263, 296, 307s, 344, 360, 621 Reforma (Religiosa) 126, 498, 528, 632, 778s Reformadores 330, 408, 416 Reino das sombras 751 Reino de Deus (Expressões do) 31s, 35, 39, 75s, 92, 113, 115, 131, 136s, 138s, 150, 154, 159, 217s, 241s, 847

Índice Geral Remissivo

257331s, 336, 342, 438, 461, 515s, 565, 591, 614, 677, 682s, 713s, 724s, 737, 763, 766, 777s, 791, 801s Reino do Mal 756 Religião 16, 31s, 39s, 45s, 49, 52, 54s, 61, 64s, 76s, 81, 83, 85s, 89, 92s, 94s, 100s, 125s, 128s, 131, 135s, 138s, 143s, 145s, 147s, 150s, 164ss, 170s, 180, 194s, 197s, 201ss, 212ss, 281ss, 284s, 290s, 293s, 301s, 327s, 330s, 333s, 337, 345, 350s, 353ss, 387, 391s, 394, 400s, 411s, 430s, 432s, 441s, 446s, 465s, 482s, 501s, 533s, 565s, 611s, 624s, 661s, 785s, 810 Religião (limite da) 355 Reliião profética 777s Religião (realidade da) 400 Religião (significação da) 145, 376 Religiosidade 45, 102, 281s, 322s, 325s, 327ss, 345s Religioso social 269s, 525, 567s, 733s, 778s Reminiscência do Éden 175 (com 3) Renúncia 163ss, 182s, 194s, 202s, 204s, 223s, 295s, 330s Resposta de Deus 295s, 330s Ressurreição 30s, 34, 41, 50, 141, 145, 178, 191, 223, 231, 234, 354, 361, 368, 389, 662, 714 Retidão divina 73, 113, 121s, 139ss (ver “Justiça Divina”) Retidão humana 73, 85ss, 89, 93s, 102ss, 114s, 126s, 129s, 135s, 163s, 188s, 269s, 341s, 345ss Revelação 29s, 49s, 87s, 90, 98s, 114s, 118s, 131, 134s, 138s, 193s, 146s, 197s, 200s, 340ss, 347s, 375, 433s, 439s, 514s, 532s, 537s, 551s, 562s, 578, 605s, 636s, 639s, 653ss Revolta 53 848

Revolução 734ss, 744ss, 754s Riquezas 84ss Ritos 295s Romantismo 60s, 77s, 135s, 214s, 238, 254, 261, 215s, 298s, 334s, 338s, 345s, 400s, 412s, 433s, 451s, 523s, 547s, 566s, 618s, 682s Russianismo 339s, 715s S Sábado 69 Sabedoria (Apócrifo) 550 Sabedoria humana 412s Sacerdotes 690s, 752s Sacramento 103, 116, 119s, 201s, 294s Sacrifício 249s, 667s Salmista 129, 143 Salmos 566, 726 Salomão 28, 54 Salvação 87s, 106, 113, 117s, 123s, 143s, 150s, 244s, 307s, 622, 763s Salvação universal 614s Sangue 157s, 163s, 169s, 191s Santa Ceia 102s Santidade divina 53s, 240s Santidade humana 31s, 39s, 58s, 68s, 77s, 89, 103, 202s Santificação 341s, 345s, 348s, 667s, 684s, 712, 767s (vos “Nova Criatura”) São Francisco 78, 107, 357 Satanás 709, 730, 790 Satanás, Sinagoga de 560 Secreto 73, 95s, 108s, 114, 127s Semelhança 34s, 50, 62, 91s, 114, 131s, 144s, 162s, 183s, 200s, 252, 265s, 300, 311, 323s, 339s, 344s Septuaginta (LXX) 119, 135, 158, 193 Ser Humano 41 Servir 692 Sião 641

Índice 3

Símbolo 295 “SIM” divino 42s, 47s, 59s, 128s, 138s, 142s, 163s, 167s, 169s, 191s, 204s, 217s, 242s, 276s, 284s, 290, 304, 308s, 346s, 356s Sinal 294s, 302s, 337s Sincretismo 656s, 688s Síntese da Epístola 31s Sistema político 736ss, 742ss, 749ss, 805 Socialismo 65s, 117, 214, 339, 412, 525, 716 Sofisma 77, 123, 125 Sofrimento 469, 472s, 481s, 508s Solidariedade cristã 35, 152, 512 Sublapsarianismo 266 Suicídio 461, 674 Superlapsarianismo 266 T Tábuas da lei 700, 702, 714 Temas centrais 48, 249 Temas da Epístola 813 (ver “Centrum Paulinum”) Tema da Igreja 535, 627, 641, 646 Temor do Senhor 128s, 131, 437 Templo (Purificação do) 643 Tempo aceitável 591 Temporalidade 706ss, 711s Tempos 765s Teocracia 737 Teodicéia 243, 469s Teologia 16, 98s, 363s, 386, 498s, 648s, 692s, 696s (com it 5), 679s, 809s Teologia moderna (1925) 346, 437ss, 631s, 667ss, 716ss, 767, 777, 790ss Teosofia 214s Testamento (Antigo) 28, 149, 158, 183, 193, 208, 218, 374, 526, 641, 650

Testamentos (Novo) 149, 374, 650 Testemunhas 690s Tirania 120s Titanismo 42, 162ss, 291s, 362s, 372, 377, 381, 440, 548s, 625, 654, 665, 674, 678 (in fine), 686ss, 695, 724s, 732, 736, 740, 772ss, 789s, 790, 794 Tolerância 333, 656, 688, 696, 775s Torre de Babel 669, 730 Torquemada 357 Tradição 69, 208 Transubstanciação 103 Trevas (sabedoria das) 60, 68 Tribunal 83, 94, 101, 104, 122, 135, 180 Trilogia (da Igreja) 601 Tropeço 790 U Unidade 688 Universalidade 144ss V Verbo (Palavra) 140, 148ss, 155s, 159ss, 195, 207 Verdade 135, 142, 145s, 155, 172, 179, 186, 218, 450s, 570s, 577 Vida 146, 154, 794 Virgem (Mãe) 69, 421s Vocação 79, 99, 107, 117 Vontade divina 35, 107, 209 Voz (de Deus) 54, 82, 119, 139, 159, 176, 209, 233 W Wittenberg 779 Z Zacarias 194 849

ÍNDICE GERAL PROGRESSIVO ÍNDICE 4 EXPLICAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................. 1 PREFÁCIO - KARL BARTH E SUA “CARTA” ..................................................... 5 PREFÁCIO DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO .............................................................. 13 PREFÁCIO DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO .............................................................. 15 PREFÁCIO DO AUTOR À 6ª EDIÇÃO .............................................................. 19 AB EXTRA, AD REM ............................................................................................... 21 APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 25 Capítulo I .................................................................................................................. 27 Paulo a seus Leitores (1, 1 - 7) ..................................................................... 27 Comentários: 1, 1-7 .......................................................................................... 32 Questões de Fôro Pessoal (1, 8-15) ............................................................ 34 Comentários: 1, 8-15 ........................................................................................ 37 O Tema da Epístola (1, 16-17)...................................................................... 38 Comentários: 1, 16-17 ...................................................................................... 48 A Noite .................................................................................................................. 49 A Origem (1, 18 - 21) ...................................................................................... 49 Comentários: 1, 18-21 ...................................................................................... 57 A Atuação da Noite (1, 22 - 32) ................................................................... 59 Comentários: 1, 22-32 ...................................................................................... 68 Capítulo II ................................................................................................................ 73 O Juiz (2, 1-13) .................................................................................................. 73 Comentários: 2, 1-13 ........................................................................................ 89 O Julgamento (2, 14-29) ................................................................................. 90 Comentários: 2, 14-29 .................................................................................... 106 851

Índice Geral Progressivo

Capítulo III ............................................................................................................. 111 A Lei (3, 1-20) ................................................................................................... 112 Jesus (3, 21-26) ................................................................................................ 137 Somente pela Fé (3, 27-30).......................................................................... 162 Comentários: 3, 1-30 ...................................................................................... 173 Capítulo IV ............................................................................................................. 177 Fé é Milagre (3,31 a 4,8) ............................................................................... 177 Comentários: 4, 1-8 ........................................................................................ 196 Fé é Começo (4, 9-12) ................................................................................... 197 Comentários: 4,9-12 ........................................................................................ 205 Fé é Criação (4, 13-15(a)) ............................................................................ 207 Comentários: 4, 13-17a .................................................................................. 219 Da Utilidade da História (4, 17a a 25) ..................................................... 221 Comentários: 4, 17-25 .................................................................................... 231 Capítulo V ............................................................................................................... 235 O Novo Homem (5, 1-11) ............................................................................ 235 O Mundo Novo (5, 12-21) ........................................................................... 256 Comentários: 5, 1-21 ...................................................................................... 287 Capítulo VI ............................................................................................................. 289 O Poder da Ressurreição (6, 1-11) ............................................................ 289 Comentários: 6, 1-11 ...................................................................................... 317 O Poder da Obediência (6, 12-23) ............................................................ 319 Graça (6, 1-23) ................................................................................................. 350 Comentários: 6, 1-23 ...................................................................................... 350 Capítulo VII ........................................................................................................... 353 O Limite da Religião (1, 1-6) ....................................................................... 354 Comentários: 7, 1-6 ........................................................................................ 368 A Significação (o Sentido) da Religião (7, 7-13) .................................. 370 Comentários: 7, 7-13 ...................................................................................... 399 A Realidade da Religião (7, 14-25) ............................................................ 400 Comentários: 7, 14-25 .................................................................................... 416 852

Índice 4

2ª Parte QUALIS AB INCEPTO .......................................................................................... 421

Capítulo VIII .......................................................................................................... 425 A Decisão (8, 1-10) ......................................................................................... 425 Comentários: 8, 1-10 ...................................................................................... 448 A Verdade (8, 11-27) ...................................................................................... 450 Comentários: 8, 11-27 .................................................................................... 488 O Amor (8, 28-39) ........................................................................................... 489 Comentários: 8, 1-39 (O Espírito) .............................................................. 505

Capítulo IX ............................................................................................................. 511 Solidariedade (9, 1-5) .................................................................................... 512 Comentários: 9, 1-5 ........................................................................................ 527 O Deus de Jacó (9, 6-13) ............................................................................. 527 O Deus de Esaú (9, 14-29) .......................................................................... 539 Comentários: 9, 1-29 ...................................................................................... 555

Capítulo X .............................................................................................................. 559 A Crise do Conhecimento (9,30 a 10,3) .................................................. 560 Comentários: 9, 30 - 10, 3 ............................................................................ 575 A Luz nas Trevas (10, 4-21) ......................................................................... 576 Comentários: 10,4-21 ..................................................................................... 599

Capítulo XI ............................................................................................................. 601 A Unidade de Deus (11, 11-24) ................................................................. 602 Comentários: 11, 1-10 .................................................................................... 614 Uma Palavra aos de Fora (11, 11-24) ....................................................... 615 Comentários: 11, 11-24 .................................................................................. 633 O Alvo (11, 25-36) .......................................................................................... 634 Comentários: 11, 25-36 .................................................................................. 652 853

Índice Geral Progressivo

Capítulos XII a XV (1ªparte) .......................................................................... 655 O Problema da Ética (12, 1-2) .................................................................... 658 Comentários: 12, 1-2 ...................................................................................... 677 A Base Fundamental (12, 3-8) .................................................................... 678 Comentários: 12, 3-8 ...................................................................................... 695 Possibilidades Positivas (12, 9-15) ............................................................ 697 Comentários: 12, 9-15 .................................................................................... 710 Possibilidades Negativas (12, 16-20) ........................................................ 712 Comentários: 12, 16-20 .................................................................................. 730 A Grande Possibilidade Negativa (12, 21-13, 7) ................................... 732 Comentários: 12, 21 a 13, 7 ......................................................................... 753 A Grande Possibilidade Positiva (13, 8-14,0) ........................................ 754 Comentários: 13, 8 - 14, 0 ............................................................................ 769 A Crise da Livre Mordomia da Vida (14, 1 a 15, 13) .......................... 771 Comentários: 14, 1 a 15, 13 ......................................................................... 802

Capítulos XV (2ª parte) e XVI ....................................................................... 805 O Apóstolo e a Comunidade ...................................................................... 805 Comentários: 15, 14-23 e 16, 1-24 ............................................................. 817

Índices ..................................................................................................................... 823 Citações Bíblicas (Índice 1A) ...................................................................... 825 Epístolas aos Romanos (Índice 1B) .......................................................... 831 Índice de Nomes (Índice 2) ........................................................................ 837 Índice Geral Remissivo (Índice 3) ............................................................. 841 Índice Geral Progressivo (Índice 4) .......................................................... 851

854