Apologia Ao Caos- I - Verdadeiro

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Prólogo Caos. Essa é a palavra de ordem. Sei que soa de forma contraditória, mas, por incrível que pareça, é a mais pura verdade. Pense em todas as coisas do universo, organizadas de maneira aleatória, formando uma combinação única. A disposição de pêlos espalhados pelo seu corpo, dos planetas espalhados pelo espaço, das “bolinhas” espalhadas pela sua blusa de lã. O número de folhas varia de árvore para árvore; de células varia de corpo para corpo e a ordem de bases nitrogenadas varia de DNA para DNA. Tudo bem, não pretendo me deter demais nas diversas implicações caóticas. Pretendo enfocar uma em especial: a linha do caos que rege nossas vidas. Quase nada é uniforme ou linear, e a minha vida, assim como a sua, não foge disso. Tente se lembrar de quantos planos você fez que não deram certo, desde a escolha da sua profissão até o que comer no jantar. Há quatro anos atrás, você esperava estar onde você está hoje? Nossas vidas são repletas de frustrações, de oportunidades inesperadas e, principalmente, de adaptações. O improviso é a arte de viver. No entanto, quando somos jovens, somos excessivamente radicais (ou temos a radicalidade na medida certa, se você gostar de excessos), e o nosso romantismo eleva nossos ideais num patamar inatingível, tornando-os imutáveis. E, se alguém, diante de adversidades inesperadas, muda sua conduta, efetuando as adaptações necessárias, é tachado de traidor pelo resto do grupo (normalmente formado por outros jovens sonhadores). Sei que essa minha fala parece não ter muito nexo no momento, mas tudo ficará mais claro mais adiante, quando eu começar a contar a minha história, e você perceber que nada faz mais sentido do que o caos. Talvez você ache que eu sou um sujeito vulgar, porque eu não vou medir as minhas palavras. Farei algo muito arriscado, vou expor aquilo que todos procuram esconder ao máximo, privacidade. Na intimidade, não há heróis. As pessoas tentam parecer perfeitas somente na vida pública e social, e são elas mesmas apenas quando estão sozinhas. A intimidade é extremamente constrangedora. Você não concorda? Então imagine se você descobrisse hoje que, desde quando nasceu, você está sendo filmado(a) no seu banheiro e as imagens estão sendo editadas em rede internacional. Agora parece constrangedor, não parece? Provavelmente, você nunca mais teria coragem de sair de casa. Sabe por que isso acontece? Porque estamos acostumados a fazer nossas “cagadas” escondidos, se é que você pegou o trocadilho. Mas eu resolvi abrir a porta do meu banheiro para você (que analogia barata, hein?!). Então, sem mais delongas, bem vindo(a) ao meu banheiro, só não se assuste se você não encontrar flores no “vaso” (não acredito que fiz essa piada horrível!).

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I O telefone tocou sobre o criado-mudo ao lado da cabeceira. Até hoje ainda me sinto um pouco perdido quando acordo num lugar assim. Uma suíte que daria uma casa de médio porte, lençóis de seda, uma cama tão grande e resistente que suportaria o casal mais gordo do mundo e mais uns três filhinhos movidos a McLanche Feliz. Tá, a questão é que consegui me situar, Hotel Hilton, no qual, além de hóspede, também sou um pequeno acionista. Atendo de uma vez o bendito telefone que não parava de tocar; não sei se você é como eu, mas uma das coisas que me irrita é um barulho repetitivo. - Alô? - Alô, senhor Prometeu? Eu preciso abrir um pequeno parênteses para explicar esse nome. Na verdade, eu não me chamo realmente Prometeu. Eu sei que você deve estar pensando, “já começou com aquelas “viadagens” de pseudônimos”. Mas não é bem por aí (talvez seja). A questão é que resolvi não usar meu nome verdadeiro. Talvez porque eu não goste muito dele; talvez porque eu queira me poupar um pouco; talvez porque eu goste dessas “palhaçadas” de pseudônimos e sempre quis ter um. Talvez você pense: “Não tinha nenhum melhor do que Prometeu?” Eu já estou te dando mais explicações do que deveria, mas, lá vai, eu sempre gostei da história de Prometeu. Sabe, aquele cara que roubou o fogo dos deuses, na mitologia grega, e entregou aos homens. Como castigo, ele tinha o fígado comido por águias, como se isso já não bastasse, o fígado se regenerava outra vez e lá vinham os pássaros comê-lo novamente. Segundo a lenda, isso deveria se repetir por toda a eternidade. Isso sim que é martírio, hein? Eu sempre gostei de mártires, eles parecem um meio termo entre os homens e os deuses. Além do mais, se você fizer anagramas com a palavra “Prometeu”, vai encontrar um bem interessante. Tá bom, chega de explicações, vamos recomeçar: - Não, é o Pablo Neruda. Pra onde você ligô, caramba?! (Eu não costumo ser grosso assim). - Desculpe, senhor, mas o senhor me pediu para acordá-lo às dez. Perdoe-me se fui inoportuno. - Não, não. Eu que peço desculpas. Depois eu te dô uma pequena remuneração, como forma de agradecimento. - Não é necessário, senhor. Deseja mais alguma coisa? - Não, brigado. - Então, tenha um bom dia. - Você também. Eu sempre fiquei intrigado com esses recepcionistas de hotéis. Será que são seres de outro planeta, sempre gentis diante de grosserias? Todavia, no fundo, eu tenho certeza que, quando desligam o telefone, eles comentam com o colega algo do gênero: “Aquele babaca da presidencial acordô com aquela bunda gorda descoberta de novo!”. Não tire conclusões precipitadas, eu não tenho uma bunda gorda, é só uma força de expressão. O cúmulo do azar deve ser proceder de uma forma estúpida com um recepcionista que teja no seu último dia no cargo. O sujeito deve aproveitar e descontar toda a raiva contida nesse cliente infeliz. Chega de devaneios, vamos ao que interessa. Depois de ficar um tempo deitado, tentando, em vão, me lembrar do que tinha acontecido na noite anterior, eu fui até o closet pegar uma roupa. Peguei uma das poucas camisetas que encontrei no meio daqueles ternos e camisas. Era uma camiseta de alguma

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banda que eu não me lembro ao certo. Agora só faltava encontrar uma calça que não fosse social, o que parecia uma missão impossível. Até que, num golpe de sorte, eu olhei pra trás e vi uma calça jeans jogada no chão, perto dos pés da cama. Era a minha salvação. Virei ela do lado certo e vesti com um pouco de pressa. Em seguida, calcei um Nike desses que, de tão confortáveis, chegam a gerar um certo desconforto. Não sei explicar ao certo, é como se o chão deixasse de ser chão, é como se você estivesse pisando numa plataforma de silicone, sei lá! Também não vou ficar desfazendo o tênis, afinal, eu tenho uma boa parcela de ações na Nike. Fui ao banheiro, escovar os dentes, lavar o rosto e pentear o cabelo. Derrubei um pouco de pasta de dente na camiseta, quase sempre faço isso, mas não ficou aparecendo porque ela era branca mesmo. Passei um desodorante e desci. Eu podia ter tomado um farto café da manhã no térreo, podia ter feito isso no meu quarto mesmo, bastaria ter solicitado. Mesmo assim, deixei o hotel de barriga vazia (não esqueci da gorjeta do recepcionista, faria isso mais tarde, para limpar de vez a consciência). Fui até a barraquinha de cachorro-quente de um senhor oriental bastante simpático, Seu Omura. Detesto fast food. Nunca como no McDonald’s. Aqueles hambúrgueres sem gosto cobertos por um monte de condimentos de sabor indefinido. Quando não tinha nada pra fazer (absolutamente nada), ficava me perguntando se o McDonald’s não fazia parte de uma ligação conspiratória com alguma indústria farmacêutica ou com algum grupo de cirurgiões cardíacos ou oncologistas. Aquilo é uma máquina de formar obesos e entupir artérias. Além de boatos que circulam sobre diversos outros distúrbios. Chega de discorrer sobre as “lendas” a respeito do McDonald’s. A propósito, eu tenho inúmeras franquias da lanchonete espalhadas pelo mundo, além de ser um notável acionista. Você já deve tá de saco cheio de me “ouvir” falando dessas ações. Não confunda as coisas. Eu não tô querendo me gabar, como um garotinho que vê um carro importado e fala pro colega: “Meu pai tem um desses também”. Acontece que esse negócio me deixa um pouco confuso, eu ainda não me habituei direito com isso. Quase todas as marcas multinacionais que vejo (não tô exagerando) estão ligadas a mim. Tenho ações de quase todas as indústrias de quase todos os setores. Mas deixemos essa história mais pra frente. Retornemos ao cachorro-quente. Só um último esclarecimento, quando eu disse que não gosto de fast food, não pense que sou um daqueles caras que almoça em restaurantes franceses e paga mil dólares por uma porção de comida que não serviria nem como aperitivo. Comida francesa não mata a fome. Parece que ela não chega ao estômago, é como se evaporasse no esôfago. Eu gosto mesmo é de comida caseira. Agora, retornemos definitivamente ao cachorro-quente. Sempre como nessa barraquinha quando estou hospedado nesse hotel. Meu dinheiro é mais útil ao Seu Omura do que a rede Hilton. - Bom dia, Seu Omura! - Seu Prometeu?! Quase não o reconheci sem o terno. Como vai o senhor? - Bem. Melhor agora que o senhor disse que quase não me reconheceu (esqueci de mencionar, graças a minha veia artística, conquistei uma inoportuna fama. Até hoje não entendo qual é a utilidade de um autógrafo). - O senhor vai querer o de sempre? - Vou sim. Levei a mão ao bolso para pegar a carteira e tive aquela desagradável surpresa. Sempre esqueço a bendita carteira no bolso de alguma calça que nunca é a que eu visto. - Seu Omura, o senhor vai ter que esperar um minutinho. Eu esqueci a carteira... -3-

Nisso apareceu um sujeito: - Você é quem eu estou pensando? - Acho que sim _ respondi com pouco ânimo. - Não acredito! Quase não o reconheci! “Maldito “quase”! _ pensei comigo mesmo.” - Pode deixar que eu pago o seu cachorro quente _ se dispôs o cara. - Você faria isso pra um “camarada revolucionário?”. O sujeito tava usando uma camiseta do Che Guevara, mas, sem dúvida nenhuma, ele caberia melhor num Armani. Vê-lo usando aquela camiseta era algo tão destoante quanto imaginar o próprio Che Guevara de terno. Imagine o Bill Gates com uma camiseta do Bob Marley e você vai ter uma idéia do que eu estou falando. - Tá brincando? Eu sou seu fã. Ninguém vai acreditar se eu contar que paguei um cachorro-quente pro Prometeu. - Obrigado. Mas é que eu tava pensando em jogá uma partida de sinuca depois do cachorro-quente. Então, vô ter que pegá a cartera de qualqué jeito mesmo. - Que isso?! Eu também estava querendo jogá uma partidinha mesmo. Imagine poder falar que te paguei um cachorro-quente e uma partida de sinuca?! - Eu não quero te explorá (foi aquele típico argumento por educação que, na realidade quer dizer, insista mais uma vez e eu cedo). - Por favor. Acredite, se você me deixar pagar, a gentileza será maior da sua parte do que da minha. Ele não quebrou o protocolo e eu também não quebraria. Depois de fingir pensar um pouco, acabei concordando: - Tá certo. Seu Omura nos deu dois cachorros-quentes e nos dirigimos até um barzinho que eu conhecia e sabia que tinha umas boas mesas de sinuca. O sujeito não levava jeito nenhum pra comer o cachorro-quente. Ficava escapando salsicha por todo o lado. Tentando quebrar o silêncio, perguntei qual era o nome dele: - Desculpe, mas qual é o seu nome mesmo? - John. Eu devia ter presumido. Ele tinha “muita cara” de John. Não sei se é por causa do John Lenon, mas todo o cara de óculos redondo que eu vejo parece se chamar John. Mas do John Lenon ele só tinha os óculos. Trazia o cabelo curto e a barba bem feita e devia ter mais ou menos a minha idade, entre 27 e 30 anos. Ele tava muito concentrado tentando comer o cachorro-quente pra conseguir dar seqüência à conversa. - E aí, John? Você também acha que eu sô um traidor do movimento? (aproveitei pra quebrar aquele ar de norma culta da conversa). Falei isso por que o primeiro livro que eu publiquei (não o primeiro que escrevi) era num estilo bem pop. Não pop “POP” mesmo. Sei lá, escrevi uma coisa que vendesse mesmo, que fosse agradável de ler. Já o segundo (não o segundo que escrevi, o segundo que publiquei), eu escrevi pra me realizar, sem compromisso de venda (se bem que, depois de um best seller, qualquer coisa que você escreva vai vender). E a crítica, que não tinha sido muito generosa com o primeiro (não o primeiro que eu escrevi, o primeiro... (tô brincando, não duvido tanto assim da tua inteligência, apesar de você ter comprado esse livro) ( tô brincando de novo) (será que eu fechei todos os parênteses?)), aclamou o meu segundo, que se chamava: “Ensaio sobre o Comunismo”. Eu tentei fazer uma adaptação, desde o socialismo -4-

científico de Marx até o utópico de Proudon, das principais idéias socialistas para a sociedade contemporânea. E, como eu vivo atolado no capitalismo, não é incomum eu ser chamado de “traidor do movimento”, principalmente pelos meus amigos de juventude, nas raras ocasiões em que nos encontramos. - Não, não. Longe de mim! _ disse o John _ Eu sei que no fundo você também é um revolucionário _ disse ele batendo no Che que tinha no peito. _ E, um dia, a sua foto também vai virá estampa de camisa. Eu soltei um riso meio espontâneo e olhei pra aquele cara. Ele devia tá sendo irônico, mas não tava. Como é que ele podia tá falando sério? Eu, ao lado do Bill Gates, era um ícone do capitalismo. Ascensão rápida e multiplicação de capital, era assim que definiam a minha biografia. Tudo bem que eu havia escrito algo sobre o comunismo, mas ser comparado com Che Guevara era algo absurdo e chegava a ser constrangedor. As minhas empresas exploravam a economia de diversos países. Os esquerdistas me chamavam de “porco” cada vez que me encontravam. - John, você tá brincando, não tá? _ perguntei. - Não. Eu li o seu livro. Aliás, li todos eles, mas me refiro ao “Ensaio sobre o Comunismo”. - Cara, quando eu escrevi esse livro, eu realmente acreditava em tudo aquilo. Acreditava em mudanças e tudo mais. Mas... mas... agora eu mudei. E, se você for vê bem, a revolução é inviável. Depende de muita gente, depende de gente que não tá preparada e de gente que não qué. Ele continuou “se batendo” com aquele cachorro-quente como se eu não tivesse dito nada. Eu achei melhor não insistir. Finalmente a gente chegou no barzinho. Quando eu tava na cidade, costumava freqüentar o lugar, por isso eu conhecia uns caras ali. Tinha duas mesas vazias e, Graças a Deus, o John já tinha acabado o cachorro-quente. Era só começar o jogo. Foi quando dois sujeitos que estavam no balcão se levantaram e vieram na nossa direção. - O que vocês acham de um desafio? _ disse um deles. Olhei pro meu companheiro, esperando uma resposta e me surpreendi com a sua naturalidade: - Claro. Eu já tinha jogado contra aqueles caras e, no mano a mano, podia ganhar deles sem maiores dificuldades. Mas, sinceramente, eu não confiava muito no John. O que esperar de um cara que mal consegue dar conta de um cachorro-quente? (sem querer ser preconceituoso). - Claro _ respondi também. - A gente não precisa fazê valendo nada _ disse um dos sujeitos. _ Eu só quero ganhá de você em alguma coisa _ disse se dirigindo a mim. - Por quê? _ perguntei intrigado. - Cada vez que você aparece na TV a minha mulher fala: “Eu queria ter casado com um homem assim!”. Eu quero podê dizê pra ela que, pelo menos na sinuca, eu sô melhor que você. O comentário do cara não inflou o meu ego não. Todo mês, nos meu vários endereços, chegavam centenas de cartas apaixonadas. Eu não sei como elas conseguiam encontrar o meu e-mail e me passavam várias mensagens dizendo o quanto nós tínhamos em

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comum. Não quero ser rude, mas isso é natural quando o seu patrimônio chega na casa do bilhão. Voltando ao jogo, eles começaram “estourando” e mataram duas bolas. Depois foi a minha vez e eu não fiz feio, encaçapei três e dificultei o lance seguinte pra eles. A minha jogada deu certo, eles não conseguiram “matar” nenhuma. Finalmente, chegou a hora que eu tanto temia, a vez do John. Ele pegou o taco e ficou passando o giz sem pressa. Pelo menos isso ele sabia fazer direito, mostrava mais familiaridade com o taco do que com o cachorro-quente. Sabia até se posicionar pra dar a tacada! Mas, se eu já tava surpreso até aí, nem sei o que falar do que veio depois. É até um pouco constrangedor pra mim... o fato é que... que... o John matou todas as bolas que restavam, inclusive a preta. Pronto, falei! Como pode um cara daqueles jogar sinuca daquele jeito?! É quase a mesma coisa que você chamar o papa pra jogar futebol e ele te dar um “elástico” (comparações e analogias não são o meu forte). Jogamos mais três partidas e vencemos as três. Depois, fizemos uma pausa pra tomar alguma coisa. O John pediu uma Pepsi, eu achei melhor pedir outra coisa. Nunca gostei de dar o meu dinheiro a quem não “precisa”. E você deve compreender que a Pepsi não precisa do meu dinheiro. Afinal, quem gasta milhões em propagandas com astros pop e esportistas famosos não tá com falta de dinheiro, tá? Antes de eu... eu... “adquirir capital” (digamos assim) e me tornar um grande acionista, eu sempre achava que esses investimentos em propaganda eram desperdício das grandes empresas. Mas, depois de entrar nesse meio, me surpreendi com o que uma “carinha famosa” pode fazer, basta falar: “Beba Pepsi” e as vendas vão à estratosfera. Eu sei o que você deve tá pensando: “É a iconografia dos jovens, fazendo de figuras questionáveis ídolos, exemplos a serem seguidos”. É inegável que os adolescentes são mais fáceis de serem persuadidos (acredito que isso deva ser explicado até mesmo por fatores biológicos), mas tem um monte de “tiozinho” que cai nessa da propaganda. Também não quis pedir uma Coca, dizem que ela apela mais pra subliminaridade. Vai dizer que você nunca ouviu falar das famosas mensagens relâmpagos que aparecem durante filmes, dizendo: “Beba Coca-Cola”. Dizem que de tão rápidas, elas só são percebidas pelo seu subconsciente. Se é verdade ou mito, isso eu não sei, mas sei que a Coca vende 50.000 produtos por segundo (não é exagero, é verdade mesmo) e, portanto, não precisa do meu dinheiro. Você deve tá se perguntando: “Não vai dizê que é acionista da Coca e da Pepsi, vai?” Não, não vou dizer porque achei melhor parar com isso. Deixemos isso mais pra diante. A questão é que entre Coca e Pepsi, optei por uma roleta russa (não literalmente, óbvio). Resolvi pegar um daqueles refrigerantes que você nunca ouviu falar na vida. Definitivamente, aquela companhia precisava mais do meu dinheiro. Abri a lata (engatilhei a arma), levei à boca (levei à cabeça) e tomei um gole (puxei o gatilho). Não deu outra. Nunca fui um cara com sorte nesse tipo de coisa. Se eu realmente tentasse uma roleta russa com uma arma com capacidade pra seis balas, acho que eu não teria uma chance em seis da arma disparar, acho que seria ao contrário, uma em seis de não cair na única bala do tambor. Tá, cansei de tentar bancar o altruísta (não sei se esse é o termo mais apropriado a ser usado aqui) e pedi uma Heineken bem gelada (pelo menos eu já conhecia o gosto). Olhei pro lado e vi o John com uma cara de contente. Presumi que fosse por ter me surpreendido na sinuca e me ajudado a vencer (ajudado não, o cara praticamente ganhou sozinho). Pedi mais três cervejas, fiquei conversando com aquela figura e me surpreendi mais uma vez. Depois de -6-

quase não conseguir dar conta de um cachorro-quente e de jogar sinuca num estilo profissional, o cara se mostrou inteligente pra caramba. Eu fiz o que sempre faço quando tô conversando com esses executivos numa festa ou num jantar de negócios ou esse tipo de coisa. Comecei a abordar um assunto diferente a todo momento. Geralmente, esses “senhores engravatados” não entendem de muita coisa não. Só informação que possa gerar lucro (lucro na visão deles é só dinheiro mesmo). Mas o John não. Ele entendia um pouco de tudo. De futebol americano à economia paquistanesa. Só que depois da última cerveja precisei ir ao banheiro. Sabe como é, tudo que entra tem que sair. Nunca gostei de urinar nesses mictórios, eu não acho interessante fazer nenhuma necessidade fisiológica em grupo. Já pensou se houvesse um defecatório, onde todos fizessem suas fezes um ao lado do outro, não seria agradável, seria? Tá, então eu entrei num sanitário e fechei a porta. Tudo estava incrivelmente limpo. Levantei aquela segunda tampa antes de urinar (sei que muitos homens não têm esse hábito). Passada aquela sensação de alívio, eu tava indo embora quando notei que tinha uma frase escrita na porta (pelo lado de dentro). Sempre leio essas frases, gosto de me surpreender com a criatividade humana. Uma vez, eu li uma que dizia o seguinte: “Diarréia é igual pênis de viado, nunca endurece”. Que tipo de cara usa o termo pênis numa frase como essa?! A frase que tava escrita nesse banheiro era a seguinte: “Tem um viado sentado no vaso”. É por essas e outras que eu tenho certeza que morro e não vejo tudo. “Pela altura, aposto que você tava sentado quando escreveu _ pensei comigo mesmo”. Eu tava na pia, lavando as mãos, quando me senti um pouco tonto. “Tô ficando fraco _ pensei”. Afinal, ficar tonto com três cervejas não é algo tão comum. Aproveitei e inclinei um pouco a cabeça pra lavar o rosto, foi quando apaguei completamente. Não sei ao certo o que aconteceu comigo enquanto eu tava inconsciente.

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II Acho que antes de eu te contar o que aconteceu quando eu acordei, devo falar um pouco sobre minha juventude. Ah, tava quase esquecendo! Lembra quando eu tava falando do meu pseudônimo? Pois é, eu falei que você poderia encontrar um anagrama bem interessante na palavra “Prometeu”. Você não levou isso a sério, levou? Eu tava só brincando, não tenho saco pra esse negócio de ficar formando anagramas. De qualquer forma, peço desculpas. Se você ficou muito revoltado, pode fechar o livro e parar de ler, você já pagou por ele mesmo. Calma! Foi só uma brincadeira. Não sou tão porco capitalista assim. Agora que já esclarecemos um pouco as coisas, vou finalmente falar sobre a minha juventude (não que eu ainda não seja jovem). Vou explicar como sucedeu a minha rápida ascensão. Talvez você ache essa história fantástica demais pra ser verdade; mas, acredite, quando você ouvir uma história extremamente incomum (sem pé nem cabeça) essa história só pode ser verídica. Lá vai um breve (brevíssimo) resumo das minhas origens. Vim de uma humilde família européia. Meus bisavós eram vinicultores, meus avós eram vinicultores e meus pais eram vinicultores. Vinicultura artesanal, com baixíssima margem de lucro (financeiro), mas extremamente agradável de se praticar. Quando eu era pequeno, costumava amassar as uvas com os pés, nunca vou esquecer daquele cheiro. Vou parar com esse saudosismo antes que comece a chorar e fuja da linha desse livro (que não tem linha nenhuma). Jamais ficaríamos milionários, mas conseguíamos levar uma vida relativamente tranqüila. Distribuíamos nosso produto nos estabelecimentos da nossa cidade e de algumas cidades vizinhas. Tudo corria bem até que o mercado foi invadido por dezenas de marcas de “vinho”. Explicarei o motivo das aspas que acabei de usar. Acontece que aquilo não era vinho de verdade. É, eu não estou exagerando. O preço da garrafa deles era metade do preço da nossa. Como será que eles faziam esse milagre? A resposta é simples, eles adicionavam ácido fosfórico na mistura, reduzindo o PH (deixando a solução ácida), depois era só aumentar o mosto adicionando água e corante (e mantendo o teor alcoólico) e pronto, estava feito o milagre da multiplicação. É óbvio que o produto deles era bem inferior ao nosso, mas como a maioria da população não optava pela qualidade, nossa família acabou indo à falência. Meu pai vendeu nossa propriedade (um sítio) que vinha passando de geração em geração, e foi trabalhar numa outra indústria vinícola; como esta ficava numa região meio isolada, fui mandado à cidade para dar seqüência aos estudos. É aqui que acaba essa breve introdução e começa o ponto no qual eu queria chegar. Cheguei numa cidade estranha, muito maior do que aquela na qual eu vivia. É estranho este paradoxo dos grandes centros urbanos, apesar de haver uma grande concentração de pessoas, elas parecem muito distantes umas das outras. Sempre com o olhar fixo no vazio, mostrando uma imperturbável indiferença ao que se passa ao redor. Talvez isto soe de forma um pouco grotesca, mas assemelham-se a um rebanho desorientado, pelo menos, foi esta a minha primeira impressão. Seguindo as instruções que meu pai havia me dado (e até um esboço de mapa), finalmente cheguei naquela espécie de pensionato para estudantes. O lugar não era próximo do centro, mas também não era tão longe assim. Uma senhora cheirando a óleo de cozinha (aquele típico cheiro de fritura) me indicou onde eu ficaria. Era um estabelecimento bem pequeno, tinha um quarto, um banheiro e uma cozinha, que também poderia servir de sala,

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mas cada peça era minúscula e o banheiro nem tinha porta, a privacidade era garantida por uma cortina estampada. Antes de sair, a senhora me ensinou alguns truques como, por exemplo, dar umas “batidinhas” no chuveiro elétrico pra ele ligar e ainda empurrar o fio da caixa de descarga depois de acioná-la, para que a bóia voltasse ao lugar e a água não ficasse vazando. - O almoço tá incluído no aluguel _ disse ela. _ Ah, já tava quase me esquecendo, tem um orelhão aí na frente. Se você quisé que alguém te ligue, o número é: 263-83-63. Depois que ela caiu fora, comecei a desfazer as malas. Tinha algumas mudas de roupa, alguns cobertores... (e aquilo tudo que tem em malas) e dois livros, dois ótimos livros, Crime e Castigo e Admirável Mundo Novo. Não tive ânimo pra acabar de desfazer as malas. Deitei naquela cama sem me preocupar em pôr lençóis, sem me preocupar em trocar de roupa. Eu não deitei pra dormir, deitei pra sentir dor. Toda aquela dor que eu fingia não sentir, que tentava esconder de mim mesmo, deixei que ela transbordasse. Então eu chorei. Chorei como nunca havia chorado antes; chorei até que minha alma secasse e não houvesse mais lágrimas. Pensei ter ouvido um barulho lá fora e fiquei com receio. Talvez aquela senhora pudesse ter esquecido alguma coisa e tivesse voltado. Ela não podia me ver daquele jeito. Claro que podia. Eu não tinha mais nada pra esconder. Quando não há amor próprio, não há vergonha. Por um momento, torci pra que fosse ela. Eu abriria a porta e ela diria: “Trouxe algumas toalhas, pensei que você fosse... (aquela pausa em que o cérebro processa uma informação nova e aparentemente absurda) Oh, Meu Deus! O que aconteceu? O que é isso?” “Isso? Isso é minha dor, que já não cabe dentro de mim e agora escorre pelos meus olhos até inundar o mundo”. Infelizmente (ou felizmente, não sei), o barulho parou, não era ela. Devia ter sido um gato no telhado ou algum rato no forro. Permaneci deitado, inerte, deixando minha mente vagar por todas as minhas frustrações. Opressão. Foi isso que senti primeiro. Depressão. Foi isso que senti depois. Revolta, foi tudo que consegui encontrar, e a única coisa na qual consegui me apegar. Vou esclarecer melhor as coisas, vou explanar como surgiu a opressão. Tudo começa com os sonhos. Alguns bobos e infantis, como, por exemplo, fazer a cesta da vitória no último segundo da partida final da NBA, ou, fazer o gol da vitória numa final de Copa do Mundo. Aos poucos, os sonhos vão mudando, se tornando (pelo menos na nossa concepção) algo mais palpável. No meu caso, o futuro estava mais do que planejado, eu o tinha definido, tinha certeza de como as coisas aconteceriam. Tinha uma garota que estudava comigo, ela era a síntese da perfeição. Ah, como ela era linda! Aqueles olhos tinham um brilho, uma inocência, eu não sei o que eles tinham ao certo, mas tinham tudo que eu queria ver. Ela tava muito além da beleza; era aquela pureza, aquela alegria, era isso que me fascinava. Se os meus planos tivessem saído como eu imaginava, eu não estaria escrevendo este livro agora, eu estaria com ela e com o casal de filhos que teríamos, estaríamos no sítio que pertencia ao meu pai, amassaríamos uva e iríamos brincar na cachoeira nos fins de tarde. Mas esses sonhos românticos foram feitos para nos frustrar. Você não entende, eu tive essa vida. Só dentro da minha cabeça, mas tive e depois senti a dor de tê-la roubada de mim. George. Era esse o nome do cara que estudava comigo. Eu não gostava dele. Ele nem sabia que eu existia. Era o típico cara que ia a festas pra depois ficar contando como tinha bebido tanto que nem lembrava quando os amigos tinham encontrado ele quase afogado na poça do próprio vômito. Auto-afirmação adolescente, quem não conhece? Tá, você deve tá -9-

pensando: “E aí, o que que esse cara tem a vê com a história?”. O George é um desses caras que não deviam ter nascido, sabe? Um desses filhos da puta que vêm pro mundo só pra foder (é estranho escrever essa palavra direitinho, ninguém fala ela assim) com a espécie humana, pra jogar a nossa raça na lama (desculpa o vocabulário, mas até hoje eu me excedo quando me lembro daquele porco). Enfim, o George era a carniça em decomposição, numa cor azulada e coberta de beronhas, que você encontra no meio do jardim mais bonito que já visitou. Provavelmente, hoje eu nem me lembraria dele se não fosse por um motivo. Ia ter uma festa no colégio. Fazia uns seis meses que eu tava apaixonado por aquela menina de quem eu falei. Aquele era o momento de eu me declarar. Peguei um dinheiro com o meu pai e fui numa loja comprar um colar de coraçãozinho. Aquele colar era a cara dela, pensei isso desde a primeira vez que eu vi ele. Comprei o colar e voltei pra casa. Passei o resto da tarde tomando coragem e imaginando o que eu ia dizer pra ela. Era mais ou menos isto: “Eu sei que você não me conhece direito, mas eu sei que nós dois somos iguais. Eu sei que tem algumas coisas que só acontecem uma vez, e sei que na minha vida intera só vô encontrá uma pessoa como você. Você é a coisa (passei horas procurando um sinônimo pra “coisa”, sei lá, achei que a palavra “coisa” não caía bem, mas acabei deixando ela mesmo) mais perfeita, mais maravilhosa que já vi na minha vida. Olha, comprei isso pra você”. Aí eu tirava o colar do bolso, ela estendia a mão e eu colocava o coraçãozinho na palma da mão dela. Ela me olhava com os olhos meio úmidos e via que eu não tinha vergonha dos meus olhos estarem úmidos também (ah! Essa é uma das partes mais difíceis de contar de todo esse livro, tenho certeza disso). Então ela me dava um beijo, tão suave, tão delicado como eu tinha certeza que só ela poderia dar. Eu vou parar por aqui mesmo, mas cheguei a imaginar até a nossa filhinha, correndo com aquele colar no pescoço (não tô inventando, imaginei mesmo). Finalmente a tarde tinha chegado ao fim. Eu tinha me arrumado todo e passado um perfume do meu pai. Minha mãe me disse que eu tava lindo (que mãe que não diz isso, né?). Meu pai ia me levar de carro até o colégio (a festa ia ser lá), na hora de ir embora, eu ligaria pra ele me buscar. A gente tava saindo quando percebeu que o peneu tava furado. Tudo bem. Só ia levar uns dez, quinze minutos pra trocar. Que diferença esse tempo poderia fazer? Talvez pudesse. Como eu já devo ter falado, eu morava num sítio com a minha família. Devia levar uns 35 minutos de carro até o colégio, acrescente os 15 do peneu e mais uns trinta do atraso habitual (quase ninguém chega na hora numa festa). É, eu estava uma hora e vinte minutos atrasado, mas arredondemos pra uma hora e meia (aliás, por que será que sempre arredondamos as coisas, hein? 11:57 não é 12:00, senão o relógio passaria direto de 11:55 pra 12:00; a propósito, tem gente que arredonda até 11:55 pra 12:00) (tá, tô abrindo dois parênteses consecutivos sim; só para explicar que, se você não percebeu, os horários anteriores foram tomados ao acaso, portanto, não possuindo nenhum vínculo direto com a história). Enfim, cheguei ao colégio. Tava um pouco nervoso. Meu pai nem percebeu, ele tava com a cabeça num jogo que ia passar na TV e já tava quase começando. Desci do carro e, no portão, já encontrei um amigo meu com uma lata de cerveja na mão. Entramos na festa e tudo estava como deveria estar. O som alto, tocando aquelas músicas horríveis, adolescentes se agitando freneticamente e pessoas, até então, ligeiramente embriagadas. Definitivamente, eu só estava ali por causa dela, mais nada naquele lugar me atraía. Comecei a correr o olho pelo ambiente, depois, comecei a circular, mas não encontrava ela de jeito nenhum. Por um momento, temi que ela tivesse ficado em casa. Se - 10 -

isso tivesse acontecido, eu teria que ficar pelo menos uma hora matando tempo antes de ligar pro meu pai, ainda assim ele ficaria fulo (aposto que você não esperava esse “fulo”). Mas, de repente, eu enxerguei ela numa rodinha junto com as amigas. Ela tava praticamente do outro lado do salão, que tava lotado, não seria fácil de chegar até lá. No afã de chegar depressa, eu fui trombando com todo mundo e, quando eu tava quase chegando, adivinha quem chegou primeiro. É, o George. Ele surgiu do nada e começou a conversar com ela. São estranhas essas ironias do destino, não são? Eu já fiquei muito tempo me perguntando se elas são apenas obras do acaso ou se eu realmente era um desgraçado, se tinha alguma coisa conspirando contra mim, mas, no final, eu concluía que isso era megalomania, eu não era tão importante assim. Retornando ao caso, as amigas dela dispersaram, deixando os dois sozinhos, o que definitivamente, não era um bom sinal. Eu fiquei a uma certa distância, esperando a hora daquele palhaço cair fora e eu poder falar com ela. Tentava me convencer que aquele imprevisto tinha seu lado positivo, eu poderia pensar melhor no que iria dizer. Você sabe, quando algum plano dá errado, sempre tentamos nos consolar dizendo para nós mesmos coisas do tipo: “Ainda não era a hora”; “Há males que vêm pra bem”; “Oportunidades melhores virão”; mas, no fundo, todos nós sabemos que isso é só uma tentativa desesperada de nos sentirmos melhor. Só “não era a hora” porque não deu certo, se tivéssemos conseguido, aquela seria a hora; Há males que vêm pra bem?! Se viessem pra bem então não seriam males; Oportunidades melhores virão? Convenhamos, nós não temos essa certeza. Eu não estou sendo pessimista, estou sendo realista, o que dá praticamente no mesmo. O fato é que eu passei horas encostado na parede, esperando os dois pararem de conversar. Eu não tirava os olhos deles, era como se sentisse que, se parasse de vigiar por um momento, o pior poderia acontecer. Sei que parece tolice, mas era o que eu sentia. De repente, uns amigos meus (que haviam passado de ligeiramente embriagados pra completamente embriagados) chegaram pra conversar comigo. Começaram a perguntar por que eu tava tão parado; por que eu não tava dançando; por que eu não tava bebendo e toda aquela encheção de saco. Quando me livrei deles, não consegui mais encontrar ela e, o pior, também não tava encontrando o George. Fiquei desesperado. Comecei a circular por aquele salão igual uma barata tonta (que expressão mais desgastada! Desculpe, mas me faltou criatividade). Eu andava, andava e nada. “Como eles podiam ter sumido assim tão rápido?” Então, continuei andando. Cada vez mais desesperado. Até que, finalmente, encontrei eles, perto do banheiro. Antes não tivesse encontrado. Antes tivesse ligado pro meu pai ir me buscar e tivesse ficado esperando do lado de fora. Eu chegaria em casa, deitaria na minha cama e me convenceria que ela tinha cansado de ouvir aquelas besteiras do George e, não encontrando outra maneira de escapar dele, tinha ido embora. Tá, no fundo eu saberia que esse era um consolo que eu tinha inventado pra me sentir melhor, como as pessoas que dizem pra si mesmas: “Há males que vêm pra bem”, mas não teria sido tão dolorido como foi aquilo. Eles tavam perto do banheiro, se beijando. Eu devia ter passado umas cinco vezes por eles, mas ela tava de costas e eu nunca imaginaria encontrar ela beijando alguém. Sabe, é como se o príncipe chegasse pra beijar a Branca de Neve e encontrasse ela atracada com um anão (com o Zangado, pra ser mais exato, já que ele é o mais chato de todos) (uma breve observação, eu não tô querendo insinuar que eu sou um príncipe, foi só uma analogia). Alguma coisa aconteceu comigo naquela hora. Eu acho que morri pela primeira vez. Nós não temos só uma vida e não morremos só uma vez. Não, eu não acho, eu tenho certeza - 11 -

que morri. Aquela dor entrou pelos meus olhos e chegou ao meu estômago. Senti vontade de vomitar. Só não vomitei porque teria que ir ao banheiro e passar ao lado deles. Depois de gravar aquela cena na minha cabeça, fiquei catatônico. Eu havia morrido. Toda aquela vida que eu já tinha experimentado (eu falei dessa vida, o casal de filhos, os passeios nos fins de tarde até a cachoeira...) acabou de uma hora pra outra. Eu havia sido atingido por uma bala perdida que tinha endereço certo, o meu coração. E ainda seria atingido por muitas outras balas e morreria várias vezes. Sempre nos momentos de maior expectativa, de maior esperança, uma dessas balas vinha e me derrubava. Por que nos falam que o príncipe vai chegar lá, beijar a Branca de Neve, ela vai despertar e eles vão viver felizes para sempre? Por que fazem isso? Definitivamente, não é isso que acontece. Se fosse na realidade, o príncipe teria sorte de não encontrar ela numa “festinha” com os sete anões. Eu não tinha mais nada pra fazer naquela festa. Liguei pro meu pai me buscar e fiquei esperando do lado de fora (o que devia ter feito antes de encontrá-los). Chorei um pouco. Fiquei lembrando daquela imagem e imaginando que ela estaria se repetindo lá dentro. Meu pai chegou. Entrei no carro. Não conversamos quase nada até chegar em casa. Ele tava tão sonolento que nem percebeu que eu não tava normal (talvez, se não tivesse sonolento, ele também não percebesse). Deitei na minha cama e obviamente não consegui dormir. Fiquei remoendo tudo aquilo. Lembrando de cada detalhe. Depois disso, veio a hora de procurar um culpado. Quem eu culparia? Se eu tivesse chegado alguns segundos antes, talvez nada daquilo tivesse acontecido. Logo o pneu deveria ser o melhor “bode expiatório”. Mas, como culpar um pneu? Talvez eu devesse culpar o meu pai, por estar rodando com um pneu muito velho (mas o pneu nem era tão velho). Talvez devesse culpar a Bridgestone, por ter feito um pneu que furou no dia da minha festa. Talvez eu devesse culpar a garota, por ter caído na lábia de um suíno como o George. Ou, talvez devesse culpar o George, por ter nascido e com isso acarretado uma série de problemas ao mundo. Talvez eu devesse culpar o próprio mundo, que, sempre tão injusto, faz os piores sujeitos se darem bem. Ou ainda, talvez devesse culpar Deus, por nunca ter me recompensado e parecer preferir caras como o George. Enfim, depois de formular diversas hipóteses, acabei aceitando que eu era o culpado, pelo mesmo motivo que o George (ter nascido). Mas o episódio não acaba aí. Depois que o fim de semana passou, retornei à aula como se nada tivesse acontecido. No intervalo, vi que o George tava numa rodinha de caras. Resolvi me aproximar pra ouvir o que ele tava dizendo. O desgraçado tava contando (usando as palavras dele) “como teve que falar um monte de merda pra enrolá a garota”. Isso já me deixou revoltado, mas não parou por aí. Ele disse que tinham ido além dos beijos e começou a falar um monte de detalhes imundos. Eu sentia o fedor de cada palavra que saía da boca dele, mas fiquei ouvindo tudo até o fim. No final, simulei uma tosse pra disfarçar os olhos marejados e fui até o banheiro lavar o rosto. Não sabia se o que ele tinha dito era verdade, mas senti vontade de matar ele. Definitivamente, eu podia ter matado ele. Talvez você não acredite, mas poderia ter feito com as minhas próprias mãos. É claro que cogitei outras possibilidades de dar cabo dele (ainda no banheiro). Minha consciência permaneceria tranqüila. Eu não sentiria remorso. Remorso do quê? De tirar um parasita do mundo? (se você acha que estou sendo rude ou desumano, lembre-se de que, no começo do livro, eu disse que abriria a porta do meu banheiro e que talvez não houvesse flores no “vaso”).

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Você vai me dizer que matar é um crime e que existem leis que devem ser respeitadas? Ora, por favor. Qualquer um que pare pra pensar por um segundo sabe que essas leis são uma piada. Pense nas indústrias de cigarro, elas matam milhões por ano e ninguém as impede de continuarem funcionando (o George fumava, mas ia demorar muito pros efeitos se manifestarem). As leis só servem pra nos dar uma ilusão de segurança (os advogados, juízes e promotores que me perdoem, mas a verdade deve ser dita). Tá, talvez elas sirvam pra conter aquelas pessoas mais bestiais, que possuem instintos animais e, se não temessem alguma coisa, sairiam por aí, matando todo mundo. Mas, qualquer um que tenha um pouco de bom senso sabe que tem o direito de infringi-las. Eu sei que se tivesse matado o George eu seria preso, sei que seria injusto, mas quando e onde é que há justiça? Se você ainda acha que as leis devem ser respeitadas pra haver justiça, por favor, não seja tão inocente. Eu tenho uma má notícia pra te dar, sabe aquela história da cegonha que traz os bebês, pois é, mentiram pra você. Tá chega de sarcasmo. Tudo bem, só quero saber uma coisa, que justiça? Ah, você tem razão, vivemos num mundo justo, onde tudo está em perfeito equilíbrio (desculpe, falei que pararia com o sarcasmo, vamos acabar com essa história da justiça por aqui). Aliás, nem sei por que eu comecei a contar essa história do George e dessa garota. Bom, pelo menos eu economizo com o analista. Não, eu contei isso pra explicar um ciclo que se iniciava enquanto eu tava deitado na cama daquela espécie de pensionato (opressão, depressão e revolta). E essa história foi apenas uma das várias que passaram pela minha cabeça. A “vida que temos” está sempre oprimindo a “vida que queríamos ter”. Eu não queria estar ali, naquele pensionato. Mas eu não queria ter feito muitas coisas que tive que fazer, e queria ter feito muitas que não pude. Opressão. A história que contei foi só um exemplo entre tantos que me vieram em mente (acho que já falei isso) enquanto eu morria naquela cama. Eu já havia morrido várias vezes, mas tinha certeza que aquela seria minha última morte antes da biológica (acho que eu tinha dito justamente o contrário poucas páginas atrás; sei lá). Desilusão completa, uma espécie de Nirvana da sociedade contemporânea. A única diferença era que, em vez de encontrar um vazio que me trouxesse paz, eu encontrei uma dor que me trazia tormento. Foi aí que a opressão deu lugar à depressão. Perdi a vontade de ter vontade, o desejo de desejar. Eu tava naquele lugar pra estudar. Mas pra que estudar? Pra me formar em uma coisa qualquer e trabalhar dez horas por dia, seis dias por semana. Eu estaria preso a minha profissão. Talvez tentasse me satisfazer (ou só justificar o meu trabalho), comprando roupas de grife, carros importados, perfumes caros... Eu seria engolido pelo tédio dia após dia. Talvez no final do ano eu fizesse uma viagem de férias, daquelas que são tão monótonas e previsíveis quanto um dia de trabalho. Tudo isso pra quê? Qual seria a recompensa? Se você ainda não sabe, eis qual é a tão almejada recompensa: ser classificado(a) como uma pessoa normal. Ah, você acha que estou enganado. Você não trabalha pra isso? Eu garanto que isso (ser classificado(a) como uma pessoa normal) é mais importante no seu trabalho do que o próprio salário. Sim, você passa a fazer parte do grupo, é encaixado na sociedade e não fica à margem. Convenhamos, você depende disso. Nada te assusta mais do que ser marginalizado(a). E é exatamente aí que o consumismo estabeleceu um de seus baluartes. Pra ser normal, você precisa ter pelo menos um carro (da Wolksvagen, Ford, Chevrolet, Renault...), um telefone celular (da Nokia, Motorolla, Siemens...), uma televisão (da Philco, Philips,

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LG...) entre tantos exemplos. Enfim, pra ser normal, você precisa consumir. Pra ter status, você precisa consumir em alto padrão. Ou seja, você precisa ser um escravo das grandes corporações. E, muitas vezes, ainda tem orgulho disso. “Olha minha calça nova da Calvin Klain”. “O que que achô do meu óculos HB”. “Você tem que vê a minha tela plana da Gradiente!” Pra mim, isso era o mesmo que dizer: “Você viu minhas algemas novas? São de aço cromado”; “Você tem que vê os novos grilhões que eu arranjei”; “O que que achô do meu nariz de palhaço, eu pareço ou não pareço o maior otário do mundo?” Calma aí, não coloquemos a carroça na frente dos bois, ou, os cavalos atrás da Ferrari (tá, eu sei que foi péssima). Eu estava falando sobre os estágios pelos quais passei: Opressão, depressão e revolta. Fazendo uma breve recapitulação, a opressão consiste, resumidamente, em querer alguma coisa que, em tese, está ao nosso alcance. E, algum tempo depois, descobrir o significado do “em tese”. E a depressão era o estágio pelo qual eu estava passando. Eu perdi um pouco a noção do tempo, mas creio que devia ser a manhã seguinte do dia em que eu havia chegado no pensionato. Havia passado a noite refletindo sobre as minhas frustrações e, nesse momento, estava atingindo o meu “Nirvana Contemporâneo” (aquele sobre o qual falei momentos atrás). Apatia completa. Eu não pensei em suicídio. Pensei em ficar deitado naquela cama, enquanto minha vida se esvaía pouco a pouco até acabar por completo. Olhei pro lado e vi os livros que havia trazido, eu era o Raskólnikov (do livro Crime e Castigo), sem nada a me apegar, sem razão pra procurar uma razão pra me apegar a algo. No íntimo, sabia que se permanecesse deitado naquela cama, eu não acabaria morrendo. Não, o destino nunca havia sido tão amistoso comigo e não seria diferente desta vez. Provavelmente, se eu ficasse sem comer por muito tempo, teria meu estômago atrofiado e, nos momentos que precedem a morte, seria encontrado por alguém. Seria levado a um hospital. Os médicos conseguiriam me salvar, mas o dano ao meu estômago seria irreversível e eu teria que passar o resto da minha vida me alimentando com uma sonda ou algo equivalente (eu realmente não sei se sonda se aplica a este caso; só quis dar uma idéia de algo desagradável). Eu tinha certeza que eu era o tipo de cara que, se atravessa a rua sem olhar para os lados, não é atropelado por um caminhão. Não. Ele passa com a roda apenas sobre o pé, o pé direito (que é o que tem um vínculo com a sorte). Ao ser levado pro hospital, esse tipo de sujeito recebe a trágica notícia de que terá seu pé amputado. Fica desconsolado, mas, como sempre, acaba se conformando. Após a cirurgia, ao voltar da anestesia, ele olha pra baixo e não vê mais seu pé esquerdo (aquela pausa em que não acredita que nem mesmo com ele pode acontecer algo daquele gênero). Amputaram seu pé errado! Aí ele acorda. Ele tá realmente num leito de hospital. O episódio com o caminhão realmente tinha ocorrido. Apesar da situação trágica, ele sorri, pois a perda do pé errado havia sido um sonho. Se dá conta de que está voltando da anestesia. Olha pra baixo e... e... não vê as duas pernas! Uma enfermeira se aproxima. Ele pergunta a ela o que está havendo. Ela olha com uma cara de surpresa e compadecimento e diz: “O senhor não era o caso de trombose?” (acabou de me ocorrer uma piada de humor negro (se é que se pode chamar isso de humor) que acho que devo compartilhar, lá vai: O que aconteceu com o paciente que foi levado ao hospital com elefantíase? Morreu de trombose). Sei que essa história foi meio esquisita, foi só uma tentativa de ilustrar a sorte que eu julgava ter. Talvez você ache que eu tô levando esse negócio de “Nirvana Contemporâneo” a - 14 -

sério demais e tô querendo me julgar um novo Buda, mas o fato é que a dor que eu senti não era só minha. Eu senti a dor do mundo. Primeiro eu pensei nas crianças. Eu sempre simpatizei bastante com elas por vários motivos, mas acho que devo citar um deles. Trata-se de uma interpretação que fiz (acho que é bastante lógica) da frase mais popular de Rousseau: “O homem nasce bom, a sociedade o corrompe”. Sempre achei que isso fazia bastante sentido. Sei que parece meio piegas, mas achava que todas as pessoas eram boas por natureza (tirando os “Georges”) (tudo bem, talvez até levar aquela palmada após o nascimento, o George ainda fosse bom), mas aos poucos, fossem sendo corrompidas pelo convívio social (talvez por isso eu tenha sido meio antisocial). Vamos a minha interpretação, se as pessoas nascem boas e vão sendo corrompidas pela sociedade, quanto menos tempo tiverem de convívio social, melhores serão. Ou seja, as crianças levam uma grande vantagem. Eu pensava em todas as crianças miseráveis que nunca teriam acesso a brinquedos e brincadeiras banais, que jamais provariam alegrias simples, que desde o nascimento estavam fadadas à miséria até o dia de suas mortes (muitas vezes, extremamente precoce). É impossível levar a sério aquela balela de que o seu futuro só depende de você, que com empenho e força de vontade, qualquer um pode ser um vencedor (a propósito, o que é ser um vencedor na concepção de quem diz isso?). A realidade é um pouco diferente se você nasce com AIDS numa tribo africana. Eu pensei em todas as crianças que sofriam os efeitos horríveis da quimio e radioterapia e que sentiam vergonha de ir ao colégio porque tinham perdido todo o cabelo. Pensei nas crianças que apelam às drogas, pra esquecer o quanto a realidade pode ser cruel, e que são duramente discriminadas por isso (como se fosse uma simples questão de opção). Pensei nas crianças que sofriam abusos de seus próprios familiares e que não tinham ninguém a quem recorrer. Pensei nas crianças extremamente ricas, que são privadas de inúmeras coisas por já terem uma imagem a zelar e que vêem a sua liberdade sucumbir ante um destino traçado pelos pais. Pensei nas crianças exploradas pela mídia, como veículo de propaganda e comoção popular (quem sabe, você esteja pensando se esses exemplos não caberiam melhor no estágio de opressão. Talvez, mas, a partir de um determinado momento, os estágios de opressão e depressão se mesclam, já que as frustrações geradas pela primeira fornecem a tristeza que alimenta a segunda. Além do mais, o meu período de opressão está mais relacionado com experiências de cunho pessoal, nas quais eu tinha a ilusão de poder traçar o meu próprio destino; já diante das questões recém citadas sempre me senti completamente impotente). Pensei na hipocrisia e indiferença social, que condenam como uma atrocidade abominável a formação dos guetos no período nazista e que vêem com naturalidade as favelas que se espalham ao redor do mundo. Pensei em todos os maus caráteres, inescrupulosos e corruptos que jamais responderiam pelos seus atos, que riam despreocupadamente porque tinham certeza de que sempre sairiam ilesos. Pensei em todas as pessoas boas (ou que pelo menos tentavam ser boas) que viam a sua bondade e suas boas intenções servirem como um trunfo nas mãos dos aproveitadores, e suas convicções serem destruídas pelos estúpidos que jamais compreenderiam seus princípios. Pensei em tudo isso. E depois pensei em mais. Não posso precisar por quanto tempo fiquei pensando nessas coisas, mas não foi pouco. Houve um momento em que os - 15 -

pensamentos se misturaram, lembranças da infância, lembranças de coisas sem sentido e coisas que nem sei se realmente havia vivido. Eu continuava deitado da mesma forma que no dia em que havia chegado. Quanto tempo teria passado? Um dia, dois, três? Talvez apenas algumas horas... a verdade é que eu não fazia idéia. Sentia um pouco de fome. Levantei e fui ao banheiro (a única coisa que faria eu me mover era as minhas necessidades fisiológicas). Depois de... enfim, fazer o que se faz no banheiro, tomei alguns goles de água (na pia do banheiro mesmo). Certifiquei-me de que a porta tava trancada (não queria que aquela senhora aparecesse de uma hora pra outra e me encontrasse deitado). Voltei a deitar. Não sei direito quando tava acordado e quando tava dormindo. Sei que fiquei na cama por muito tempo. Levantava algumas vezes para ir ao banheiro e tomar água, apenas pra isso. Minhas aulas ainda não tinham começado e eu não tinha nenhum compromisso que pudesse me tirar daquele quarto. A senhora do pensionato devia ter julgado que eu não tava ali, mas, como um mês havia sido pago adiantado, provavelmente, ela julgou que eu voltaria. Quando você fica algum tempo sem comer, sente uma fome intensa. Mas, se esse tempo vai se prolongando, a fome vai diminuindo... diminuindo. Como já disse antes, perdi a noção de tempo, sei que houve um momento em que eu já não sentia falta alguma da comida. Devo ter ficado mais de uma semana naquele quarto, levantando só pra ir ao banheiro urinar e beber água (se você pensou: “só urinar?” Sim, só urinar, meu intestino tava vazio). Um dia lavei o rosto e olhei minha cara no espelho. Quase não me reconheci. Meus olhos pareciam ter penetrado mais nas órbitas, pareciam opacos. À contrapartida, as maçãs do rosto pareciam saltadas. Meus lábios tavam da cor da cútis, que tava mais pálida que o azulejo daquele banheiro, que um dia havia sido branco. Meu cabelo já havia passado a fase de despenteado havia muito tempo. Percebi, no trajeto cama-banheiro, banheiro-cama, que eu tava ficando tonto, o que era natural. Eu estava definhando. “Depressão, o mal do século _ pensei comigo _ Por quê? Por que é cada vez maior o número de pessoas atingidas pela depressão? Não é vírus. Não é uma bactéria. É um distúrbio psicológico (algumas vezes hormonal, eu acho). Certamente não é um distúrbio genético, os números são muito altos pra terem “estourado” assim numa geração”. Depois de pensar um pouco, eu concluí que só poderia ser o meio. Um ambiente hostil e opressor. Mas eu precisava ser mais exato, não bastava dizer: “é o ambiente”. Eu tinha que identificar melhor. Então, baseado nas minhas próprias experiências (frustrações, pra ser mais claro) comecei a definir melhor o problema. Dinheiro. Competitividade. Convencionalismo. Exclusão. Manipulação cultural. Enfim, esses foram alguns dentre tantos exemplos que me ocorreram. Todos eles pareciam interligados, mas não sabia em que ponto (na verdade, eu sabia, só não queria dizer a mim mesmo, até pela própria obviedade). O sistema (num primeiro momento, me senti constrangido. Eu não queria ser um hippie ou um desses punks que querem ser rebeldes e, não encontrando nenhuma causa, se revoltam com o sistema (certamente, o próprio sistema havia feito eu criar esse tipo de preconceito)). Tudo estava absurdamente claro. Todos os frutos podres que eu encontrava pertenciam a uma única árvore: Capitalismo. Eu sabia disso, eu havia feito severas críticas ao capitalismo no meu primeiro livro (desta vez, é ao contrário, o primeiro que escrevi, não o primeiro que publiquei), ou melhor, meu projeto, visto que até então eu não havia publicado. Minha revolta cresceu ainda mais quando pensei nisso. Pra publicar, eu teria que passar por aquele sistema burocrata, dependeria de uma corporação e, não importava o conteúdo, qualquer um sabe que o pessoal dessas editoras só pensa numa coisa: dinheiro. Eles só - 16 -

querem saber se é comercial, se vai dar retorno, se o escritor já é conhecido, se o assunto é bem aceito e toda essa merda. Acho que os caras que avaliam os livros eram aqueles alunos que no colégio liam um parágrafo sim, um parágrafo não, sabe? Aqueles caras que decoravam o nome de alguns personagens só pra enrolar a professora na avaliação oral. Sinceramente, acho que eles não lêem boa parte dos projetos que chegam lá. Eu via cada porcaria sendo publicada que chegava a me revoltar (tudo bem, se o pessoal da editora que for publicar este livro se sentir ofendido, dane-se, eu não vou cortar essa parte só pra agradar vocês). Tá, essa parte da editora era só um dos casos de opressão que eu havia esquecido de citar antes. A questão é que toda a revolta que eu sentia explodiu dentro de mim. Eu odiava o capitalismo e tinha que viver dentro dele, impregnado por ele, e o odiava ainda mais por isso. Senti uma fúria que deu vida ao meu corpo fraco e abatido. Amaldiçoei a Revolução Industrial, que fazia de mulheres e crianças escravas que trabalhavam 20 horas por dia por uma gratificação miserável. E odiei aquilo tudo ainda mais, porque no colégio eles passavam vídeos sobre o nazismo, o fascismo e não mostravam vídeos sobre os operários que eram explorados de forma desumana nas recém surgidas indústrias. A produção em massa, o Taylorismo, o Fordismo. Desejei que Henry Ford fosse vivo pra que eu pudesse acertá-lo com o pára-choque do seu primeiro veículo produzido em série, o famoso modelo T. Revolta. Eu disse que havia me apegado a ela, mas não foi isso. Eu era a revolta. Ela entrou no meu corpo e deu um significado à vida que eu havia descartado. O capitalismo havia me usado como se eu fosse uma prostituta, mas ele não sairia sem pagar. Não, ele pagaria algum preço. Se era bastante ou pouco, eu não sabia, mas faria de tudo pra que ele pagasse o máximo. Bem, o primeiro passo era sair daquela cama. Ali, deitado, eu não consumiria, mas isso não é propriamente atingir o sistema. Eu precisava ir além. Era um fim de tarde. Elaborei rapidamente um plano na minha cabeça. Na hora do almoço, eu me apresentaria àquela senhora (que mais tarde descobri ser a dona daquele pensionato, ou seja lá o que fosse aquilo) e exigiria a refeição a qual tinha direito. Sabia que viriam perguntas inoportunas (esteja certo disso, elas sempre vêm) então, já tava meio preparado. Diria que havia tido que ficar internado por causa de uma intoxicação alimentar, que havia ficado dias no soro e que tinha chegado na noite anterior (como os estabelecimentos eram independentes e eu tinha a chave do cadeado do portão, podia muito bem chegar sem ser notado). Peguei uma roupa na minha mala ainda não desfeita e fui tomar um banho. Eu tava fraco, mas sempre fui muito resistente e sei que os efeitos de tanto tempo sem se alimentar poderiam ser piores. Fiquei um bom tempo embaixo do chuveiro, só parado, deixando a água cair, sem me esfregar com sabonete nem nada (mesmo porque eu nem tinha sabonete, a minha mãe devia ter colocado algum dentro da mala, mas eu não ia procurar). Tava debilitado fisicamente, mas há tempos que não me sentia tão forte. Agora, eu tinha uma razão pra viver, revolta (que mais tarde chamei de Revolução). Quando eu tinha chegado naquela pensão, tinha notado que havia uma lanchonete ou panificadora ali por perto. Decidi que iria até lá comprar alguma coisa pra comer, mais pra testar como o meu estômago reagiria ao alimento. Esperei ficar mais tarde um pouco (pra que ninguém me visse saindo). Fui ao banheiro dar uma olhada no espelho. Eu tava horrível. Lavei o rosto e dei uns tapas na minha cara, pra ela ficar um pouco mais corada. Conferi a minha carteira (que numa incrível exceção, tava no bolso da calça que eu havia vestido!) (aquele era um bom sinal), e saí, já - 17 -

tomando cuidado com os ringidos da porta; mas o grande desafio seria o portão. O que era aquilo? Um portão com um incrível dispositivo de segurança, que seria perfeito se este também não lograsse atingir os hóspedes, ele poderia cair em cima de qualquer um que tentasse abri-lo. Bom, pelo menos pra mim, que estava completamente revoltado com o capitalismo, ele tinha um aspecto positivo: devia ter sido feito antes da Revolução Industrial. Finalmente cheguei no grande obstáculo. Pensei que talvez, se eu o pulasse, fizesse menos barulho, mas seria arriscado demais. Primeiro porque eu tava fraco, segundo porque havia sérias chances daquele portão cair, e um cara como eu era um sério candidato a ter um fim como este. Imagine que morte honrosa: “Morreu pulando um portão”. Talvez os amigos mais chegados justificassem: “Mas não era qualquer portão não, pertenceu a um senhor feudal no século XIII (isso foi só uma piada, ou, pelo menos, era pra ser)”. Certo, tirando essas possibilidades, aparentemente (frisemos bem esse “aparentemente”), mais remotas, havia o risco de todo mundo acordar com uma eventual queda do portão e eu não ter como me justificar. O que eu diria? Eu sô sonâmbulo? (não, essa nem pensar, nada é mais clichê do que isso). Talvez eu dissesse: “Bem, não sei ao certo por onde começá. Sei que vai sê um poco difícil de acreditá (um pouco?!), mas, lá vai. Tudo começô na minha infância. Eu e meu amigos jogávamos bola e ela sempre ia pará na casa do vizinho. Alguém sempre tinha que pulá o portão pra pegá a bola, e, o que começô como uma brincadera, acabô se tornando um hobbie (eu não diria isso!). Tá, vocês devem tá se perguntando: “Por que você quis pular esse portão?” (eu disse vocês porque o barulho teria acordado todos no pensionato). Já pensaram, eu podê voltá pra minha terra natal e dizê: “Pessoal, pulei um portão do século X!”. Sei que, pelas características ele deve sê do século XIII (eu não falaria isso pra dona do pensionato!), mas, sabe como é, a gente sempre aumenta um poco pros amigos, né?”. Uma outra opção seria dizer: “É difícil pra mim confessá, mas eu tentei roubá-lo. Acabei descobrindo que esse portão pertenceu a Luís XV, era o portão do seu estábulo (não, estábulo não porque ia desmerecer o portão da mulher) (se teve algum engraçadão que disse, ou pensou: “Portão da mulher ou do pensionato?” eu queria dar-lhe os meus parabéns e dizer que você é realmente engraçado ou inteligente, ou sei lá o que você tentou ser!) (tá, só quero esclarecer pro cara que perguntou: “Portão da mulher ou do pensionato?” que eu tava sendo sarcástico, eu não te elogiei realmente; é que um cara que pergunta: “Portão da mulher ou do pensionato?” deve precisar de explicações mais detalhadas) (eu não quero insistir demais nesse assunto, mas eu tava pensando, um cara que pergunta: “Portão da mulher ou do pensionato?” não deve entender o que eu quis dizer com “deve precisar de explicações mais detalhadas”, portanto, se você fez tal pergunta, eu quis te chamar de burro mesmo), ou melhor, do seu jardim de inverno (você deve tá se perguntando: “Portão de jardim de inverno?”. Você deve se lembrar que eu estaria improvisando e as coisas saem assim mesmo. Além do mais, na hora ninguém ia se tocar. Talvez você se pergunte: “E se se tocasse?” Bem, aí eu inventaria alguma besteira do tipo que, na época, portões como aquele eram comuns em jardins de inverno, ou sei lá. Talvez você se pergunte ainda: “E se tivesse algum professor ou aluno de História no meio dos hóspedes?” É, aí eu confirmaria que eu realmente era um cara azarado, então eu sairia correndo ou mandava uma daquelas tipo: “Que lugar é esse? Onde que eu tô?” e acabava apelando para aquela do sonâmbulo mesmo, apesar de que apelar pra do sonâmbulo é sempre uma vergonha) Chega de falar besteira. A questão é que o portão não cairia porque eu não tentaria pular ele. Abri o cadeado e tirei a corrente com cuidado pra não fazer muito barulho. Levantei um pouco o portão (com muito esforço) e o empurrei. Meu plano de erguê-lo tinha - 18 -

dado certo, ele não arrastou no chão e fez bem menos ruídos do que provavelmente faria. Achei melhor não trancar ele novamente, afinal, eu não demoraria a voltar. O ar fresco da noite parecia ter afastado um pouco minha tontura. Vez ou outra, um carro passava por mim, aquele bairro não tinha muito movimento, era agradável de se caminhar ali. Um casal de namorados seguia na minha frente. Eu não conhecia eles, mas sabia que eram completamente diferentes de mim. Pode ser loucura minha, mas sempre achei muito esquisito esse negócio de pessoas tão distantes estarem tão próximas fisicamente. Tinha certeza que aquelas pessoas não dividiam a minha mesma melancolia, que não davam tanta importância a determinadas frustrações e que, principalmente, não dividiam a minha revolta. No íntimo, sem deixar que eu mesmo percebesse, eu sentia inveja deles, porque eles dividiam o amor, uma das poucas coisas que aquele sistema ainda não havia conseguido macular e que fazia as pessoas se sentirem bem sob quaisquer circunstâncias. Não importa se são oprimidas, discriminadas, exploradas, nada disso importa pra elas se amam alguém. O amor as transporta pra um outro mundo, faz com que se sintam livres mesmo dentro de qualquer prisão (Meu Deus, como estou meloso! Pareço narrador de radionovela!). Tentei me convencer de que eu era mais inteligente do que aquelas pessoas. Não uma inteligência lógica e nem mesmo bagagem cultural, mas eu conseguia ver o que elas não viam, eu conseguia perceber a realidade (se bem que esse negócio de realidade é muito relativo, como Kant já disse) (não citei Kant pra bancar o intelectual, espero). Tá certo que eu e eles estávamos sendo explorados, a diferença era que eu sabia disso (tentava me convencer de que saber era melhor, mas a ignorância às vezes é muito doce). “Amor _ pensei comigo enquanto os observava caminhando abraçados _, o que é isso? Só um monte de hormônios liberados pela hipófise (glândula pineal, ou sei lá o quê) que os mantém completamente alienados. A paixão é capitalista. Se pudessem, eles a venderiam em frascos, pra nos fazer de idiotas. Seria um dos maiores trunfos deles, ao lado daquelas merdas que eles passam na TV”. Eu sei que eu tava amargo, mas o compreender era amargo, e ser o único a compreender era revoltante. Não sei se era pela falta de glicose ou se isso não tinha nada a ver, mas uns pensamentos doidos passaram pela minha cabeça. De repente, senti uma enorme vontade de ir a Disneylândia, até aí seria natural (seria natural o caramba!), mas eu queria ir lá pra bater no Mickey. Agora tenho consciência de que eu só acertaria um pobre coitado dentro de uma fantasia, mas, naquela hora, não sei por que, eu achava que espancaria o verdadeiro Mickey Mouse. Finalmente cheguei na panificadora. Eu tava meio ressabiado. Era a primeira vez que eu entrava num lugar claro diante de pessoas com esse novo aspecto. Por sorte, o lugar tava quase vazio. Tinha só dois fregueses, pagando no caixa, que saíram passando pelo meu lado sem nem reconhecer a minha existência. “Indiferença _ pensei comigo. _ Um dos produto desse sistema. Eu poderia cair morto diante deles que eles simplesmente pulariam por cima do meu corpo pra chegar em casa antes que seus pães-de-queijo esfriassem”. Fui até a prateleira dos biscoitos apanhar uma bolacha de “água e sal” (eu já havia decidido comprar isso antes de sair do pensionato), minha mãe sempre me dava esses biscoitos quando eu tava com diarréia ou vômito; ela também me dava um chá (chá preto mesmo, eu acho). Foi bom eu ter recordado disso, aproveitei e comprei uma caixinha de chá, se não tivesse lembrado, ia ter que beber água pra acompanhar as bolachas.

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Bem, achei que aquela seria uma refeição saudável (não sei se “refeição saudável” é a expressão certa, porque a gente só come isso quando tá doente). Finalmente eu travaria diálogo com uma pessoa novamente. Eu devia ter ficado uma semana naquele quarto, mas parecia que fazia um século que eu não falava com ninguém. Tinha uma mocinha no caixa. Fiquei observando ela por um período bem curto. Ela parecia realmente entediada. Eu nunca trabalhei no caixa em nenhum tipo de loja, mas sempre achei que devia ser um saco. Aqueles preços quebrados que fazem você ficar calculando o troco, e depois ter que contar todas aquelas moedas; tudo bem, isso não vem ao caso. Retornando à mocinha do caixa, ela tava roendo a unha, ou, talvez, tirando o esmalte. Imaginei que ela devia tá aliviada, afinal, a panificadora tava quase fechando. Se fosse pra eu presumir, diria que ela era filha dos donos do estabelecimento, ou, tava na universidade e trabalhava pra ajudar a se manter (se a segunda opção fosse a correta, ela deveria morar em alguma kitchenette tipo a minha). Peguei o biscoito e o chá e me dirigi ao caixa. Fiz aquele “ham-ham” pra limpar a garganta, já que a minha aparência tava horrível, pelo menos a minha voz tinha que parecer normal. - Oi! - Oi _ ela tentou parecer natural, mas vi que tinha me olhado com uma expressão meio esquisita. Fui colocar o chá e o biscoito em cima do balcão e só então percebi que tava tremendo e, como tudo que tá ruim pode piorar, derrubei a caixinha de chá no chão. Abaixei pra pegar, e aquele sobe-desce (ou melhor, desce-sobe) repentino trouxe de volta a minha tontura. Me segurei no balcão pra não cair, mas aí, qualquer intenção minha de parecer normal já tinha ido pro espaço (quando você se segura no balcão, a coisa tá feia), eu parecia um senhor de 60 anos de idade com labirintite crônica. Sei que parece fala hollywoodiana, mas ela disse (disse mesmo) (a propósito, me lembrei de fala hollywoodiana porque no caixa tinha vários maços de cigarro da marca Hollywood, são estranhas essas conexões que os nossos cérebros fazem): - Você tá bem? Não qué um copo d’água, um café...? Pela cara dela, parecia que ela tava querendo realizar um último desejo. Eu realmente devia tá parecendo um sujeito em estado terminal. Aproveitei pra testar aquela história da intoxicação alimentar: - Não, não. Eu tô bem. É que eu tive uma intoxicação alimentar. Na verdade, eu cheguei na cidade há pouco tempo, mas acabei dando azar. Logo na chegada, na rodoviária, comi uma coxinha estragada. Mas também, eu banquei o doido, coxinha de rodoviária é roleta-russa (você deve ter presumido que eu gosto dessa analogia da roleta-russa; você deve ter presumido, também, que eu sou um mentiroso descarado. Mas não é verdade, detesto mentiras, menti pouquíssimo durante toda a minha vida, porém, às vezes, a gente tem que apelar. O que você queria que eu fizesse? Que eu dissesse: “Não, não tive nenhum problema de saúde. Eu tô assim porque fiquei uma semana sem comer nada, vegetando numa cama, porque descobri que esse mundo é uma merda e a vida é uma bobagem sem limites, que acaba se tornando um fardo pesado demais”? Na realidade, eu tenho um amigo (pelo menos ele costumava ser meu amigo) que diria exatamente isso com a maior naturalidade. Ele é uma das figuras mais interessantes que já conheci, você também vai conhecer ele em breve). - Nossa, que azar! Mas você já tá melhor? - Tô sim, por incrível que pareça, já tive pior. - 20 -

Ela deu um sorriso e entregou o troco, dizendo: - Quando você quisé comê algum salgado, compre aqui na panificadora. É tudo fresquinho. - Ah, tá. Brigado, mas acho que vô ter que ficá um tempo sem comê coxinha. Tchau _ disse pegando a sacola. - Tchau! Voltei pro pensionato. Tudo continuava quieto como antes. Abri o portão, erguendo um pouco novamente, e entrei quase que silenciosamente, coloquei a corrente, fechei o cadeado e, enfim, entrei na casa. É, eu havia conseguido. Tava me sentindo muito fraco, sentei um pouco numa poltrona que tinha por ali. Esperei me recuperar um pouco e fui colocar uma água pra esquentar numa chaleira que tava em cima do fogão. Ela devia tá limpa, nem examinei. Comecei a examinar os armários. Quando abri uma porta, vi que algum inseto correu lá dentro, mas não liguei pra isso, o principal era que eu havia encontrado as xícaras. Peguei a que, aparentemente, tava menos empoeirada, passei a camiseta pra tirar o “mais grosso” e coloquei um saquinho de chá dentro dela. Lembrei que eu não tinha açúcar, mas não dei importância. Despejei a água quente e comecei a abrir o pacote de bolachas. Eu tava revoltado com o capitalismo, mas tinha que admitir que aquelas fitinhas vermelhas nos pacotes (com uma instrução de “Abra Aqui”) eram uma grande tacada das indústrias. Tinha ficado muito mais fácil de abrir as embalagens, não precisava ter unha comprida, nem tesoura, nem faca. É, concluí que qualquer corporação era um oponente de peso. Levei o primeiro biscoito à boca e, após uma longa mastigação, engoli. Devo admitir que foi estranho. Eu podia sentir o alimento descendo dentro de mim, percorrendo o esôfago e quase ecoando ao atingir o estômago completamente vazio, talvez eu tenha exagerado nesse “quase ecoando”, mas houve um grande barulho dos, até então, “adormecidos” movimentos peristálticos. Aquela bolacha foi uma nova hóstia, que simbolizava a minha ressurreição, e o nome dessa hóstia era: “Revolução”. Tomei um gole do chá, que, com certeza, não ficava ruim sem açúcar. Comi mais umas quatro bolachas, sem pressa, esperando que uma descesse pra, só então, comer a outra. Achei que aquilo já tava de bom tamanho, na realidade, parecia que o meu estômago já tava transbordando. Acabei de tomar o chá e fui deitar, tava me sentindo bastante cansado, acho que foi devido à caminhada até a panificadora. Deitei na cama e apaguei. Dessa vez, eu soube que dormi, não foi aquela sensação meio surreal que sentia antes. Não lembrei de nenhum sonho, acordei com a movimentação do pensionato, que, agora, parecia mais clara e intensa do que antes. Fiz outro lanche pela manhã, depois de tomar um banho (dessa vez, com o sabonete que tinha trazido. Não sei se foi só impressão, mas a minha aparência já parecia um pouco melhor). Esperei até a hora do almoço e fui ao encontro da senhora que eu julgava ser a dona do pensionato. Era uma espécie de cozinha ampla e arejada, com algumas mesinhas de plástico espalhadas. Era 11:47 (nada de arredondar desta vez), tinha quatro pessoas no lugar (contando a senhora eram cinco). Como sempre, ninguém notou a minha presença. Cheguei até a senhora e falei: - Oi. - Oi _ disse ela, sem se voltar, mexendo numas panelas. - A senhora disse que eu tinha direito ao almoço, tô certo? Finalmente, ela se virou pra mim e disse: - 21 -

- Ah, você é o sumido! O que que hove? Não te vi mais por aqui. Achei que você tinha viajado. De repente, me ocorreu uma coisa, não tinha me comunicado com a minha família. Quando cheguei, tinha ligado da rodoviária, mas, depois disso, fiquei uma semana sem dar sinal de vida. - Pois é, houve um problema aí. Tive uma infecção alimentar. - Alimentar? _ frisou ela. O que será que ela tava querendo insinuar com esse “alimentar”? Será que ela tava insinuando que eu usava drogas; era só essa que me faltava! Não. Eu tava sendo paranóico. Era só aquela típica pergunta retórica na qual sempre se frisa a última palavra, veja este exemplo: - Meu pai trabalha no hospital, ele é bioquímico. - Bioquímico? Quando a pessoa pergunta “bioquímico”, ela não tá insinuando que você tá mentindo e, na verdade, seu pai pode ser médico ou enfermeiro, ela tá só confirmando a informação, apesar de ter ouvido claramente na primeira vez (por isso, não entendo essas perguntas retóricas, acho que deve servir como uma pausa de assimilação, tipo quando te pedem pra fazer uma coisa e você pergunta outra vez; tudo bem, lá vai outro exemplo: - Pedro, vai levá o lixo lá fora! - Lá fora? Tá bom, chega de exemplos, vou fechar este parênteses). - É, eu acho que comi uma coxinha estragada na rodoviária. Tive que tomá soro e tudo. - Santa Maria! Que locura, menino, comê coxinha de rodoviária... - É, eu não devia tê arriscado, mas a fome falô mais alto. - Você ainda tá pálido, rapaz. Emagreceu tanto. Pode í pro teu quarto que eu levo um arroz com bife pra você. - Não _ me senti culpado por ter desconfiado que ela tava desconfiando de mim; mesmo porque, na verdade, eu não tava falando a verdade _, não precisa. Eu posso esperá aqui mesmo... - Que nada, rapaz. Vai já pro quarto, xô, xô! _ disse ela, me afastando gentilmente. - A senhora não precisa se preocupá tanto, eu já tô bem melhor. - Pare de besteira, já levo um bife quentinho. Parecia que o meu estômago tava voltando a ativa; eu tava com bem mais fome do que no dia anterior, e aquele cheiro de bife pareceu acentuar essa fome ainda mais. O fato é que, após um tempo, voltei a comer como eu comia antes. Devo dizer que eu realmente me senti culpado por ter mentido pra senhora do pensionato (aliás, acho que, a partir de agora, vou chamar ela assim, “senhora do pensionato”). A verdade é que eu sempre tive uma saúde bastante forte e me recuperei bem rápido (bem rápido mesmo). Eu não quero ser o cara mais chato do mundo (não quero tá nem entre os cinco) (você deve ter estranhado essa, mas eu lembrei que, na minha juventude, eu e meus amigos usávamos essa expressão, por exemplo: - Ir ao dentista não é a melhor coisa do mundo. - É, não tá nem entre as cinco (entre as cinco melhores) (esse “entre as cinco” não era algo convencionado, o número podia variar pra “entre as três”, “entre as vinte” ou qualquer número que se desejasse)).

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Recapitulando, como eu não quero ser o cara mais chato do mundo (e não quero tá nem entre os cinco), não vou narrar as partes monótonas em que eu fiquei me recuperando ou que aproveitei pra conhecer melhor a cidade, porque, encher o teu saco nunca foi a principal meta deste livro (apesar de muito provavelmente já tê-la alcançado).

III Eu fiquei um bom tempo pensando em como organizar a Revolta. Não basta você pensar, “vou me revoltar com o capitalismo” e depois ir ao shopping, pensando: “Tá, tô no shopping, mas tô revoltado com o capitalismo”. É preciso ter um plano, traçar metas, mas eu não conseguia pensar em nada relevante. As poucas idéias que eu tinha eram inviáveis, principalmente, por questões financeiras. A minha faculdade já tinha começado (acho que eu ainda não havia dito, eu tava cursando Artes Plásticas), e eu não encontrava ninguém interessante, ninguém que pudesse me ajudar em algum projeto. Foi numa noite em que eu não conseguia dormir, que eu tive uma idéia. Achei que era uma idéia besta, quase não cheguei a colocá-la em prática, mas, foi a partir dela que tudo começou. Eu sabia que eu não conseguiria fazer nada sozinho, mas não conseguia encontrar ninguém que dividisse a minha ideologia. Então, resolvi elaborar pequenos cartazes, com a intenção de me comunicar, porém, eu não podia colocar: “Vamos começar a Revolta, ataquemos o capitalismo”, mesmo porque, não adiantaria nada. Comprei o material necessário e elaborei os cartazes, eles continham a seguinte mensagem: “Pra falar comigo, tire “SSARRO” de “COSERVADORES”. Peça pra falar com Hermes, ele tem uma mensagem dos deuses pra você”. Depois, pedi pra senhora do pensionato que fizesse o favor de me chamar se alguém ligasse pedindo pra falar com Hermes (eu disse que era o meu nome do meio). Mesmo assim, fiquei atento ao toque do orelhão, que não ficava longe da minha kitchenette.

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Se você tirar a palavra “SSARRO” da palavra “CONSERVADORES” sobra CNEVDOE, como no telefone cada número corresponde a três letras, o número correspondente seria: 263-83-63 (ou seja, o número do orelhão). Durante a noite, colei cartazes próximos a universidades e colégios de ensino médio (que eram os lugares que eu julgava serem os mais férteis pra minha busca). Eu os colava em postes, muros e paredes. Eles não ficavam fixos por muito tempo, caíam sozinhos, alguém os tirava ou ainda escrevia alguma besteira. Coloquei um perto da minha universidade, mas não foi muito produtivo, como eu já esperava. Vi um grupo de caras analisando o cartaz e me aproximei pra ouvir o que eles diziam: “- Que coisa mais retardada!” “- Não tem nexo nenhum. E o cara ainda por cima nem sabe escrevê; escreveu sarro com dois “S”. “- Dois “S” no começo, ainda!” É, e aquela era a elite pensante na qual eu procurava apoio! Fazia uns três, quatro dias que eu tinha colado os cartazes e já tava completamente desiludido. Comecei a pensar em alguma outra coisa, não me vinha nada em mente. Eu tava deitado na minha cama quando a senhora do pensionato bateu na minha porta me chamando. Levantei todo desanimado e fui ver o que ela queria. - Tem alguém no telefone que qué falá com você. Pediu pra falá com Hermes. Eu não disse nada, mas pensei: “Caralho, alguém ligô!” (ainda não sei se coloco “caralho” ou caraca, caramba, carácoles ou carambola, porque eu não sei se este é um livro de palavrão ou de palavrão disfarçado. Se eu colocar “caralho” é um livro de palavrão. Se eu colocar este parênteses, definitivamente, é um livro de palavrão porque, só nele, eu já coloquei “caralho” duas vezes (três com esta). Vejamos pelo lado bom, se eu deixar aquele caralho inicial e mais este parênteses, com certeza, este livro vai ficar “do caralho!”) Se teve alguma vez que eu fiquei surpreso, com certeza essa tava entre as três (sei que essa frase ficou estranha, eu quis dizer que me surpreendi pra caramba). Não consegui falar nada pra senhora do pensionato, fui direto ao orelhão. Já pensou se o cara cansasse de esperar e desligasse! Peguei o telefone todo ansioso e disse: - Alô? - Alô, Hermes? Analisando as vezes que mais me surpreendi, com certeza, essa também tava entre as três. Era uma voz de mulher! - Hermes, você tá aí? - Sim, sim. Pode falá. - Eu queria sabê se você vai fazê alguma coisa hoje à noite? - Como? _ disse, cada vez entendendo menos o que tava acontecendo. - Alô, Hermes? _ disse agora uma voz de homem. - Alô, o que que tá acontecendo? - Relaxa, cara. Eu só quis te sacaneá um poco. Aposto que você não esperava que uma garota fosse te ligá, né? Sei lá, mas achei que você devia pensá que as garotas não ficam tentando decifrá aquele tipo de mensagem que tinha no cartaz, então, resolvi te surpreendê um poco e pedi pra minha irmã falá primero. Foi bestera minha, acho que quis revertê o controle da situação...

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Analisando as vezes que mais me surpreendi, definitivamente, aquela tava entre as três. - E aí, cara, fala alguma coisa _ insistiu ele. - Realmente, você me surpreendeu. - Foi mal. Mas fala aí, o que que o Zeus manda? - Como? - Você não disse que tinha uma mensagem dos deuses? Pode falá. - Ah, sim, claro (na verdade, eu achava tão remota a possibilidade de que alguém ligasse que eu nem tinha pensado em mensagem nenhuma). Eu achava melhor que a gente se encontrasse pessoalmente, pode sê? - Beleza, onde? - Que que cê acha daquele barzinho da Hope Street, perto do HSBC e da universidade? - Beleza, e como que a gente vai se identificá? - Não sei. - Eu tenho uma camiseta bem excêntrica. Tá escrito: “Quem ler é boboca”. Eu posso í com ela. - Aí você me pega de novo, porque eu vô ter que lê e ser um boboca. - É, a gente tem que fazê alguns sacrifícios, né? Só tem uma coisa, eu não gosto de sê o cara identificado. Sabe como é, você pode ficá me olhando de longe e me analisando... - É, a gente tem que fazê alguns sacrifícios. - Tá certo, tá certo. Que horas então? - Pode ser hoje às sete (sete da noite)? - Claro, pode sim. Então, vamo cronometrá os relógio, você tá com o teu aí? Tô brincando, não sô tão loco assim, talvez seja, sei lá. Vô pará de falá merda, até às sete então! - Até! Aquela tinha sido a conversa mais doida que, até então, eu já tive no telefone. Não, aquela tinha sido a conversa mais doida que, até então, eu tive na minha vida. Primeiro aquele negócio do cara colocar a irmã dele pra falar, só pra me surpreender (e, realmente, sem nenhum preconceito, eu nunca esperava que a pessoa que me ligasse fosse uma garota). Eu me surpreendi ao falar com a irmã dele, mas me surpreendi mais ainda pelo fato dele ter tido essa idéia. Ele disse que queria reverter a situação (porque tava ligando pra um desconhecido pra tratar de um assunto que ele não sabia o qual; supõem-se que eu saberia, apesar de eu também não saber, e, supõem-se também, que teria pelo menos consciência do que se passava). Ao colocar a irmã dele, perguntando o que eu faria à noite, fiquei sem saber o que tava acontecendo (apesar de já não saber antes). Tá, isso já tinha sido bem doido (não vou nem mencionar o fato do cara ter uma camiseta escrito: “Quem ler é boboca” (não se preocupe, você não é um boboca por ter lido essa frase duas vezes)), mas, depois, ele veio com aquela história de que, se ele fosse o identificado, eu poderia ficar observando à distância, pra tentar traçar algum perfil. Achei isso doido porque foi bem o que pensei em fazer. Eu fiquei empolgado, parece que finalmente encontraria alguém interessante. Comecei a pensar qual seria a “mensagem dos deuses” que eu daria. Acabei concluindo que eu deveria dizer a verdade, ou seja, eu tinha idéias, mas nada concreto. Quando a hora foi chegando, fui ficando nervoso, não queria decepcionar o único “possível aliado” inteligente

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que eu havia encontrado. Não podia ficar me enrolando por muito tempo, fechei a kitchenette e fui ao barzinho. Quando cheguei lá, faltavam dez minutos pras sete. Sentei numa mesa meio do canto, não queria ficar muito à vista. Afinal, como ele mesmo tinha presumido, eu queria analisá-lo. Não tinha ninguém com uma camiseta com aquela mensagem. Eram 7:03 no meu relógio quando ele entrou. “Quem ler é boboca”, só podia ser ele. Se aproximou do balcão, pediu uma cerveja e um maço de cigarros. Sentou numa mesa bem no centro, procurando ficar bem exposto. Abriu a cerveja e o cigarro e começou a beber e a fumar. Parecia muito tranqüilo. Decidi fazê-lo esperar um pouco, pra ver se aquela tranqüilidade continuava. Ele começou a olhar pros lados, como se estivesse procurando por mim. De repente, se levantou e veio na minha direção, mas passou direto e foi ao banheiro. Por um momento, achei que ele fosse sentar na minha mesa, isso seria improvável, contudo, qualquer um sabe que coisas improváveis acontecem. Ouvi a cadeira ao meu lado ser arrastada, o improvável aconteceu: - E aí, Hermes, que mensagem os deuses têm pra mim? - Hermes? Do que você tá falando? O cara já tinha sentado na minha mesa, parecia estar certo de quem eu era. - Desculpe, achei que você fosse otra pessoa _ disse ele, se levantando. - Tô brincando. Senta aí. Como você descobriu? - Do jeito que você tava me olhando, pensei, ou ele é o Hermes, ou ele é gay. Resolvi arriscá. - Tá certo. - Cigarro é uma droga. - É _ falei meio sem entender _, faz bastante mal. - Não, eu tô falando que é ruim mesmo, que não tem graça. Tanta gente fuma, achei que fosse melhor. Você me viu fumando, não viu? - Vi sim. - Pois é, aquele foi o primero cigarro que eu experimentei. Quando passei por você pra í no banhero, tinha ido jogá a cartera no lixo. - Sério? Por que você decidiu fumá hoje? - Eu pensei, que tal se eu tenho uma morte estúpida do tipo: se afogá com uma batata no almoço. Enquanto eu tivé agonizando, provavelmente, vô lembrá de alguma coisa que eu não fiz. Então, resolvi í eliminando essas coisa aos pocos. O cigarro já eliminei. Agora, a próxima é dançá pelado num barzinho com música ao vivo (disse ele, se levantando e ameaçando tirar a camisa). Tô brincando. Não sei qual é a próxima. Fala aí, por que que a gente tá aqui afinal? Não, não. Antes adivinhe por que eu tô aqui. - Eu tô cansado de ter que ficá enrolando nessas conversas. Tipo almoço em família, tá ligado? - Claro que tô, eu também não agüento mais tê que ser conveniente. - Então vô ser sincero desde já. Acho que você veio aqui porque não tinha porra nenhuma pra fazê. - Acertô. Foi por isso mesmo. Agora, posso ser sincero também? - Claro. - Acho que você não tem porra nenhuma pra me falá. Tipo uma “mensagem” mesmo. - Acertô também (aquela era a conversa mais franca que eu já havia tido). Na verdade, eu tenho umas idéias em mente. Mas só isso. - 26 -

- Isso é o principal. Você é um cara esperto, aquilo de eu tá aqui porque não tenho nada pra fazê, você mandô bem. Fala aí, que idéia que você tem em mente? Não, não, antes, diz aí, qual que é o teu nome, ou Hermes é o teu nome verdadero? - Meu nome é Prometeu (é óbvio que eu não disse “Prometeu”, falei meu nome verdadeiro). E o teu? - Meu nome é Robspierre, mas pode me chamá de Robs. Vou abrir mais um parênteses pra explicar esse nome (ou melhor, esse pseudônimo). Na verdade, antes de conhecer o Robs, eu achava que eu era o cara mais incorruptível do planeta. Pensava comigo mesmo: “Tenho que conseguir poder, porque eu sô o único que não pode ser corrompido”. Depois que conheci ele, mudei de idéia. O cara era, de fato, a pessoa mais incorruptível deste planeta. Se ele ganhasse cinqüenta milhões, quinhentos e vinte sete mil, oitocentos e dezoito dólares e vinte e cinco centavos na loteria; cinqüenta milhões, quinhentos e vinte e sete mil, oitocentos e dezoito dólares e vinte e cinco centavos iriam pra Revolução, ele não hesitaria nem por um segundo. Foi por isso que escolhi esse pseudônimo pra ele. Sabe, o Robespierre? Aquele da Revolução Francesa. Acho que ele era um líder jacobino, e era conhecido como: “O Incorruptível”. Qualquer um que fosse suspeito de traição, ele mandava pra guilhotina. O cara guilhotinou quase todo mundo. Mas aí, o pessoal que sobrou guilhotinou ele, com medo de ser guilhotinado. A questão é que contei pro Robs a minha história. A minha teoria da Opressão, Depressão e Revolta. Contei pra ele, resumidamente, como tinha passado por esses estágios e como surgiu a idéia dos cartazes. - ... Revolta. Foi isso que me salvô. Tô vivo porque me revoltei, e, agora, quero organizá uma Revolta estruturada, você qué me ajudá? - Claro. Mas não vamo fazê uma revolta, vamo fazê uma Revolução. Nunca gostei dessa merda de capitalismo e, ainda por cima, não tenho nada pra fazê mesmo. As pessoas podem dizê que fazem algumas coisas por um monte de motivo, mas, na verdade, o motivo principal é o ócio. - Como assim? - É, Alexandre, O Grande; Marco Pólo; Cristóvão Colombo; Thomas Edson e todos esses caras só fizeram o que fizeram porque não agüentavam mais ficá “coçando”. Foi o tédio que começô tudo. Pegue as guerras, epopéias e aventuras. Vão te dizê que elas aconteceram por ideologias e objetivos, mas a verdade é que os cara não tinham nada pra fazê e resolveram fazê alguma coisa interessante. Nós, até hoje, somos atraído por esse tipo de coisa, Hollywood sabe disso. Só que, em vez de iniciá uma Revolução, por exemplo, a gente vai no cinema. E se contenta em vê uma história que nunca vamo tê, nossa grande aventura é vê um filme. - Interessante. Acho que você tá certo mesmo. Tudo começa no tédio. - É isso mesmo. Só não aconteceu nenhuma Revolução de verdade até hoje por uma razão bem simples, chega até a parece engraçado... - Que razão? - Televisão. Ela disfarça o nosso tédio. Em vez de fazê alguma coisa útil, nós assistimo Fórmula 1, ou um jogo de futebol, ou um programa de fofoca. Ela mantém a gente inerte. Tá ligado a Guerra do Ópio, aquela em que os britânicos davam ópio pros chineses pra mantê eles alienado? - Tô sim _ respondi acompanhando o raciocínio. - 27 -

- Pois é, o capitalismo nos dá a TV. Estamos chapados, mas a nossa droga é: Sony, Warner, NBC, E! Entertainment, BBC, ESPN, FOX, HBO... Ele fez uma pausa no seu discurso, aí disse: - Você já teve uma infecção urinária, Prometeu? Respondi que não com a cabeça e ele prosseguiu: - Dói muito quando você urina. No meu caso, era quase insuportável. Eu podia senti a dor de cada gota. E isso me revoltô tanto, aquela maldita dor. Sabe o que eu fiz? Fui até a geladera e bebi uns dois litros de água pra que eu pudesse mijá até que aquela dor explodisse. Esse era o Robs. Nós já estávamos ali há um bom tempo, conversando e bebendo cerveja. E ficamos mais. Ficamos falando sobre vários assuntos até que o dono do bar viesse dizer: - Desculpem; mas o bar tá fechando. Espero que vocês não me levem a mal, mas nós já devíamos ter fechado as portas há umas duas horas... Só restava a gente no lugar. Diferentemente do habitual, o Robs aceitou sem reclamar e deixamos o bar com o dia quase clareando. - Pra onde você vai agora? _ perguntou ele. - Acho que vô dá uma passada em casa e vô pra faculdade. - Beleza. Se você quisé dá uma passada lá em casa mais tarde, pra me ajudá a quebrá a minha televisão. - Quebrá a tua televisão? - É. Lembra daquela parada do cigarro? Pois é, eu tava pensando, acho que quando eu tivé agonizando, vô lembrá que nunca quebrei uma TV. Sempre quis sabê se o tubo de image explode. - Beleza, eu passo na tua casa então (o Robs era definitivamente um cara diferente). Fui pra faculdade, que tava a mesma encheção. Professores arrogantes fascinados com a própria inteligência; uma meia dúzia de alunos querendo bancar os intelectuais (esses caras que querem bancar os intelectuais sempre me fizeram rir; eles dizem ter um gosto bem underground, detestam tudo que é popular. Mas, se você resolve conversar com eles sobre algum assunto, acaba descobrindo que eles não sabem porra nenhuma sobre nada. Aquele bom gosto elitizado é só uma maneira deles se afirmarem), e a grande maioria dos estudantes quase dormindo (aqueles típicos que fazem faculdade só pros pais não dizerem que eles não tão fazendo nada, aliás, não sei se todos que fazem faculdade não se encaixam nessa categoria). Quando a aula acabou, fui pro pensionato almoçar. Depois de comer e dormir um pouco (bem pouco mesmo) eu perguntei pra senhora do pensionato se ela sabia onde ficava o endereço que o Robs tinha me passado. Ela me explicou mais ou menos. Ficava longe pra caramba! Mas ia ser bom, assim aproveitava pra conhecer um pouco melhor a cidade (típico consolo de derrotado, estilo: “Há males que vêm pra bem”). Comecei a caminhar, eu iria a pé. Nunca gostei de transporte coletivo, mas não é aquelas frescuras de não gostar de se misturar. A verdade é que não agüento lugares muito lotados e, quando fico muito tempo parado, costumo ficar “meio viajando”, o que não é muito bom se você tem que ficar esperto pra descer no ponto certo, ou esse tipo de coisa. Então, andei pra caramba; aí, andei mais ainda. A casa do cara ficava do outro lado da cidade. Eu já tinha andado tanto que nem os “consolos de derrotado” faziam mais efeito. Foi quando finalmente cheguei, confirmei o número e apertei a campainha. Pode-se dizer que a casa era espaçosa e bem localizada.

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O Robs chegou pra abrir o portão. Ele tava de chinelo de dedo, bermuda e sem camisa. - Entra aí. Cê tá morto, caminhô bastante? - Nem me fale, atravessei a cidade. - Eu sei que que cê deve tá pensando: “Esse cara é um burguês”; mas não é por aí. Meu pai já teve dinhero, mas agora ele tá quebrado. Pelo menos sobrô algum patrimônio, essa casa e mais alguma coisa. E ter um patrimônio é essencial; esse é o grande golpe da classe média e da média alta. Se você tivé alguma coisa, você tem crédito e pode fazê um empréstimo. O empréstimo tem que sê o mais alto o possível. Depois, você transfere os teus bens pro nome de alguém de confiança, um parente ou um amigo, não paga o empréstimo, eles não podem te tomá nada e você fica com o dinhero e o patrimônio. Sei que é manjado, mas é o bom e velho estelionato que nunca falha. Ele abriu a porta da casa e entramos. Eu me surpreendi novamente, tudo tava muito organizado. - Você mora sozinho? _ (foi a primeira pergunta que me ocorreu). - Não, não. Eu não ia consegui mantê essa ordem, moro com a minha irmã, lembra? Aquela que te ligô. - Ah, claro. Como que eu fui esquecê?! - Moramo só eu e ela. A gente veio pra cá pra estudá também, nossos pais moram em outra cidade. - E o que vocês fazem? - Eu faço psicologia, minha irmã faz direito; tô no terceiro ano, ela começô agora. Acho o ensino superior uma palhaçada, ter uma merda de um diploma na parede e se sentir importante por isso, mas é melhor estudá do que trabalhá com o meu pai. Chega de enrolação, tô ansioso pra quebrá de uma vez essa TV. - Onde que ela tá? - Na sala. - E a tua irmã? - Já deve tá chegando da faculdade, vamo quebrá antes que ela chegue. - Você vai quebrá onde? - Na rua. Os vizinho que se danem. Eu paguei por ela, eu não, o meu pai, mas não é da conta deles se eu vô assisti o Titanic ou se eu vô moê ela na rua. Eu me surpreendi quando cheguei na sala. A TV era uma 29’’. Eu não esperava, mas tudo bem. Ajudei ele a pegar a TV e a levar ela pra fora. Colocamos ela na calçada, a rua era bem tranqüila, quase não passava carros. Ele me perguntou: - Qué me ajudá? - Acho que você deve tê a honra sozinho, pra no caso de se afogá com uma batata no almoço, não lembrá que nunca quebrô uma TV sozinho. Você deve tá se perguntando, “Mas se ele lembrá que nunca quebrô uma TV junto com alguém?”. Acho que isso seria pouco provável, porque, pelo que eu entendi, as experiências eram mais de cunho individual, como fumar um cigarro, por exemplo. Acredito que ninguém se lembraria de que nunca havia fumado um cigarro junto com alguém (tá bom, sempre há alguém que lembraria). - Tá certo. Não vai sê fácil quebrá esse negócio sozinho, mas... Ele tava se preparando pra erguer a TV quando voltou atrás.

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- Sei que parece palhaçada, mas antes acho que vô fazê um discurso, tipo aqueles cara que falam umas merda antes de batizá um navio, quebrando nele uma garrafa de champanhe, tá ligado? - Tô sim. Manda a vê. - Então, lá vai. Nós somos a geração mais culta que esse mundo já viu. Nossos pais liam gibi, nós lemos Dostoievski, Kafka... Nossos pais sonhavam com uma TV 29’’; nós sonhamos com a Revolução, e já a teríamos feito se não fosse esse lixo cultural. Eu e você fazemo parte de uma elite que vai tê que fazê a diferença. Sempre foi assim, o planeta intero permanece inerte e uma camada, uma fina camada, faz História. Enquanto jovens como eu e você, pouquíssimos jovens como eu e você, agimos, os outros ficam em casa, jogando videogame, ou no computador. Enquanto nós mudamos o planeta, eles ficam falando bosta nesses bate-papo pela internet. E você sabe que é só pra isso que essa porra de entretenimento eletrônico serve, pra mantê o pessoal alienado e fortalecê essa merda de sistema. Eu e você, Prometeu, vamo tê que mudá a órbita do mundo, usando as nossas mãos _ disse ele erguendo a televisão _, e sabe de uma coisa? Nós vamo consegui. E o Oscar vai para... puta que o pariu _ disse ele concluindo e jogando a TV no chão. O barulho foi forte, um estalo daqueles que dá um desconforto no ouvido. A caixa de plástico havia se quebrado, mas o tubo de imagem continuava intacto. O vizinho da frente saiu na janela pra ver o que tava acontecendo, e o Robs gritou: - Programação explosiva! _ depois ele virou pra mim rindo e disse _ Que fala de filme da década de 80. Não é que essa porcaria é forte mesmo? Mas a gente tem que quebrá o tubo. Não quebrá ele é a mesma coisa que comê um bolo e dexá a cobertura. - Será que essa parada explode? _ perguntei. - Sei lá! O que que cê acha? - Não sei, cara, mas se explodi pode voá caco na gente... - Acho que não é tanto assim; mas, se for, a gente pode processá a Panasonic. Nós falamo que a gente tava assistindo TV e, de repente, ela explodiu e vôo caco pra todo lado. - Acho que esse processo não ia dá certo. - Eu também... vamo tentá a sorte _ disse ele erguendo o tubo. - Mande no meio fio, assim quebra de vez. Ele ergueu o tubo bem alto e, quando tava quase jogando, abaixou dando risada. - Caramba, dá um gelo... mas dessa vez vai. Ele ergueu de novo e, sem pensar mandou direto no meio fio. Então, a gente ouviu o som da decepção. Sabe quando você sopra na extremidade de um cano? Sai um som, não sai? Acho que na física chamam isso de tubos sonoros; tubos abertos, pra ser mais específico. Foi esse som que saiu. É, esses tubos de imagem são como as lâmpadas incandescentes, eles são a vácuo. O barulho que ouvimos foi do ar entrando dentro dele. - Que merda! A gente esperando uma explosão... - Acho que esses tubo são a vácuo, o barulho foi do ar entrando. A chance de explodi já passô. - Beleza, vamo comê alguma coisa então. Deixamos a TV 29” destruída na frente da casa e entramos pra comer alguma coisa. Aquele não era um programa normal pra se fazer numa tarde. Mas nós havíamos optado por não sermos normais, ou já havíamos nascido assim. Estávamos comendo quando ouvimos um barulho no portão. - Minha irmã _ disse ele. Em seguida, um barulho na porta e exclamações: - 30 -

- Meu Deus, Robs! O que que é aquela televisão moída na frente de casa? Você tá doido? Ela entrou na cozinha e, por uma fração de segundo, pude perceber nela aquele típico constrangimento de quem entra em casa gritando sem saber que tem visita. - Oi, tudo bem? _ disse ela ao me ver. - Tudo bem e você? _ respondi. - Esse é o Prometeu. Lembra? O Hermes do telefone. - Acho que a gente já teve uma breve conversa _ falei. - Ah, claro, no telefone. Desculpa, é que o meu irmão me faz dizê cada coisa. Eu não sou o tipo de cara que sai assobiando ou gritando elogios (se é que dá pra chamar aquilo de elogios) de gosto duvidoso pras mulheres que passam pela minha frente. Mas eu sei o que é beleza feminina, e, definitivamente, isso não faltava à irmã do Robs, aliada a uma voz aveludada. Eu sei o que você deve tá pensando, mas não, aquilo não foi uma paixão instantânea; o vazio que eu sentia havia sido preenchido completamente pela Revolução, porque ela havia entrado em mim. Quanto à irmã do Robs, só estou me mantendo fiel à verdade. - Não precisa se desculpá, eu nunca tinha tido uma conversa tão interessante ao telefone. - E aquela TV lá fora, Robs? O que foi aquilo? - É a nossa liberdade _ respondeu ele com a boca meio cheia. - Como assim _ perguntou ela ainda mais desorientada. - Eu tô libertando a gente dessa merda de mídia. - Até agora eu tava me recusando a acreditá, aquela é a TV da sala? - Sim, “era” a TV da sala. - Meu Deus! Eu não acredito! Você enlouqueceu de vez; como eu vô assisti filme agora? - Lixo hollywoodiano. Você sente falta no começo, mas, aos pocos, vai se desintoxicando. A estante tá cheia de livro que você nunca leu, é uma boa oportunidade. Quando você tivé lido todos, a gente compra mais. - Vá se fudê, Robs _ disse ela deixando a maleta numa poltrona e entrando no quarto. - Que boca suja! Eu te amo, Gorda _ eu já elogiei a estética dela, sei que é até um pouco redundante, mas ainda assim, vou explicar. Ela não era gorda realmente, esse devia ser um daqueles típicos apelidos de infância que perduram entre os familiares. _ Viu por que eu sabia que você se surpreenderia se uma garota te ligasse. Elas preferem ficá vendo o Brad Pitt do que fazê uma Revolução, sem querê sê machista. Além do mais, isso não se aplica a minha irmã, não exatamente dessa forma. Ela gosta de vê essas porcaria... - Tá falando de mim? _ disse ela, num som inconfundível da acústica de um banheiro. - Falando bem, como sempre. - Como se não bastasse quebrá a TV, você ainda dexô as tuas ropa jogada no banhero, como sempre. Na agüento mais catá as tuas cueca espalhada pela casa! - Como eu dizia, ela gosta de vê essas porcaria, mas não é só por causa de um ator ou de um orçamento milionário; ela assiste essas historinha mais relevante, sabe? - Sei sim. Eu não sô preconceituoso com esse tipo de coisa. Até Hollywood pode fazê alguma coisa que preste. Eu não sô daqueles cara que dizem gostá de alguma coisa só porque ninguém gosta, pra se senti o intelectual incompreendido, tá ligado? - Se tô! Esses cara sobram nas universidade, né? São uns “pé no saco”. - Nem me fale! - 31 -

- Qué dá uma olhada nos meus livro? - Quero sim. Nós entramos numa outra sala, com duas estantes, uma mesa e uma escrivaninha. - Eu e a minha irmã usamo essa sala pra estudá, lê, escrevê... - Qual é o nome da tua irmã mesmo? - Ah é, eu nem falei. O nome dela é Helena. Acho que você já deve ter presumido o que significa este parágrafo, não deve? É, outro pseudônimo. Mas, se eu preservo a minha identidade (nem sei se há como preservá-la realmente, mais pra frente, veremos isso; mesmo assim, como já falei, gosto de pseudônimos), por que devo expor a dos outros? Além disso, ela mesma me pediu pra não colocar o nome dela de verdade (novamente, você vai entender mais pra frente). Fiquei um tempo em busca de um pseudônimo relevante pra ela, até parei de escrever pra pensar em um. Depois de um tempo, acabei concluindo que só poderia ser Helena mesmo. Baseado naquela mulher de incomparável beleza, que roubou o coração do príncipe Páris, de Tróia, e gerou o lendário conflito entre gregos e troianos (não tire conclusões precipitadas, ela não foi pivô de nenhum conflito, usei esse pseudônimo baseado só na parte da “incomparável beleza”). - Os livros tão aí _ disse o Robs _, já leu algum? Comecei a examinar os títulos dos exemplares e fiquei ainda mais certo daquilo que já tinha me ocorrido, eu e o Robs éramos quase idênticos. Estar diante dele era com estar diante daqueles espelhos (que você encontra em circos ou parques temáticos), que modificam um pouco a tua imagem (te deixam mais magro, mais baixo, mais gordo, aumentam a tua cabeça...), mas que conservam a base da tua fisionomia. É estranho como o acaso pode moldar o destino. Se não fossem aqueles cartazes (que eu mesmo cheguei a achar uma besteira), talvez nunca houvéssemos nos encontrado. Os autores dos livros que ele tinha eram os meus favoritos, Dostoievski, Kafka, Platão, George Orwell, Marx, Hemmingway... - Acho que já li quase todos _ falei depois de examinar. - Sério? Você tem bom gosto, hein?! - Por quê? Você acha que você tem? - Pra falá a verdade, acho. - Então, por que tá usando essa bermuda? Como que numa reação involuntária, ele olhou pra bermuda estampada que tava vestindo. - Tô brincando! _ eu também gosto de surpreender. - Mas, às vezes, as brincadera têm um fundo de verdade. Nunca tinha reparado nessa bermuda. Que desenho que é esse! Parece um ovo cozido cortado no meio... - Olha a minha ropa então _ falei, tentando me redimir de alguma forma. - É, a tua também não é das melhores... - Não mesmo. - Não tá nem entre as cinco (foi aí que surgiu a expressão que venho usando). - Como? - Não tá nem entre as cinco melhores. Não ligue pra essas expressão que eu uso. Eu falo uma coisa mais sem sentido que a otra. Às vezes, a minha irmã qué me matá. Mas vamo vê pelo lado bom, pelo menos, minha bermuda não é de nenhuma marca famosa ou multinacional. - A minha calça e a minha camisa também não. - É? E esse tênis da Adidas? - 32 -

- Ah, tá. Assim também não vale. Você só tá de bermuda e chinelo, eu tenho bem mais chance de tá usando alguma marca. Mas, se você for vê bem, esse tênis é tão velho que quando ele foi fabricado a Adidas não era famosa e nem multinacional... - Também não precisa apelá... e a cueca? _ disse ele. Foi aí, nesse momento, que o destino mostrou mais uma de suas ironias. Mostrou que aquelas correntes pessimistas (que dizem que se há uma chance em mil de uma coisa ruim acontecer, ela vai acontecer) podem estar certas. Que se você derruba um pão com margarina no chão, o lado da margarina sempre cai pra baixo (se, nesse instante, você lembrou de alguma vez que a margarina não caiu pra baixo, parabéns! Você é um cara de sorte!) (não fui irônico nesse comentário); que se você tem algum machucado no corpo, é sempre em cima dele que você vai bater; que se você esquece de trancar a porta do banheiro uma vez em toda a sua vida, você será pego sentado no vaso (ao contrário do que você possa ter presumido, nunca fui pego sentado no vaso sanitário, nada contra quem já foi, não é nada disso. A propósito, se você já foi pego sentado no vaso, minhas sinceras condolências). Esses foram apenas alguns entre tantos exemplos. E o episódio que ocorreu naquele dia, foi mais uma dessas “armadilhas do acaso”. Eu não conheço ninguém que saiba a marca da cueca que tá vestindo (se você sabe, você não é normal). Pois é, então, quando o Robs disse: “e a cueca?”, ambos fomos conferir no mesmo instante. Para fazer isso, puxamos os elásticos (eu o da minha calça, ele o da bermuda) pra frente e olhamos pra baixo simultaneamente (cada um pra ver a marca da sua própria cueca, que isso fique bem claro). Então, nesse exato momento, a irmã dele abre a porta e entra na sala. Que situação constrangedora! - Desculpem _ disse ela com um risinho no rosto _, eu devia ter batido. Achei que vocês já tinham passado dessa fase de “medir” e “comparar”. - Não, não é nada disso _ tentei explicar. - O meu, do jeito que tá, deve tê uns 15 cm. E o teu, Prometeu? Não precisa tê vergonha, pode falá na frente dela mesmo... O desgraçado do Robs sabia como me constranger. Eu morrendo de vergonha da irmã dele e, em vez de esclarecer o que tava acontecendo, ele ferra com tudo ainda mais. Os dois desataram a rir, e eu disse: - A gente tava vendo a marca das cuecas _ que papel ridículo que eu tava fazendo _; fale a verdade, Robs. - Ah, claro _ disse ele de forma irônica _, a marca das cueca! Esse é um costume comum entre os homens, todos comparam... (ele fez aquela pausa sugestiva, aquela maldita pausa sugestiva) a marca das cueca. Nos banheros públicos, isso é bem comum, quando a gente tá nesses mictórios, sempre dá uma olhadinha pro lado pra compará... (aquela maldita pausa outra vez) a marca da cueca. A Helena quase morreu de tanto rir. E eu desisti de tentar explicar, ainda mais com aquela ajuda que o Robs tinha dado. Ela tava ainda mais linda do que antes, tava acabando de sair do banho, enrolada em uma toalha e com outra enrolada na cabeça (não sei por que, mas sempre fui fascinado por mulheres enroladas em toalhas, principalmente, quando tão saindo do banho), rindo de nós até perder o fôlego. - Não, não. Vô falá a verdade, a gente tava conferindo a marca da cueca mesmo _ disse o Robs. - Sei... sei... _ disse ela com um ar irônico, ainda se recuperando dos risos. - É sério, sua tonga. - E o pior é que a minha ainda era Calvin Klein _ comentei desolado. - 33 -

- Capaz?! Bom, eu não posso falá nada, a minha é Ralph Lauren. E a tua, Gorda? - No momento, eu tô livre das marcas... - Às vezes, ela pega as minhas samba-canção. - Sério? - É bem mais confortável que calcinha. E também, no verão, não tenho muitos shorts, mas só uso pra dormir. Eu comecei a rir e quase esqueci o que eu tinha vindo fazê. O que que você fez do pente? - Que pente? Desde de quando eu uso pente?! - Ah, o que será que eu fiz daquele pente?! Bom, vô dexá vocês à vontade de novo, querem uma régua? _ disse ela, rindo e saindo da sala. - Que sacanage! _ falei assim que ela saiu. _ Você devia tê falado a verdade pra tua irmã. - Ela sabe que eu não ia ficá medindo... e esse negócio de marca, apesar de parecê meio absurdo, pra quem me conhece que nem a Gorda passa a ser lógico. Tô sempre falando pra ela que essas porcaria de marca tão em todo o canto. Mas, voltando ao assunto dos livro, você já leu quase todos então? - É, eu li a maioria. - Se você quisé algum emprestado... - Beleza. Falando nisso, se você quisé lê um livro que eu escrevi... - Tá brincando! Você escreveu um livro mesmo? - Não, tava só brincando. - Ah _ disse ele desapontado _, quase acreditei! - Não, eu escrevi mesmo, tava brincando quando disse que tava brincando. - Você só me sacaneia, hein?! - Perto daquela do telefone e daquela do “meu tem 15cm”, não foi nada. Ele deu uma risada meio que admitindo que eu tinha razão e falou: - Tá certo, vô me controlá mais com essas palhaçada. Mas e o livro, então você escreveu mesmo? Como que é o título? - É “Ensaio sobre o Comunismo”; mas, na verdade, não é um livro, é um projeto, porque eu ainda não consegui publicá. - Mas você já tentô? - Já mandei pra umas editora, mas elas recusaram. - Isso não qué dizê nada, essas editora são umas merda, só publicam essas porcaria pop; se elas recusaram, é um bom sinal. Mas e quem leu gostô? - Bom, eu gostei. - Como assim? - Eu fui o único que leu. - Sério?! Por quê? - Os meus amigos nunca gostaram muito de leitura, o meu pai e a minha mãe também não... - E você nunca ficô curioso pra sabê o que alguém achava? - Fiquei, mas pra quem eu ia pedi? E depois das editora recusarem... - Manda ele pra mim que, se eu gostá, leio bem rápido; se eu não gostá, vô ser sincero, não vô ficá te enrolando, beleza? - Claro, é isso mesmo que eu quero, sabê a verdade. Quando a gente se encontrá de novo, eu te passo ele.

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- Então tá. Eu quero conversá com você a respeito da Revolução, vê se a gente acha alguma coisa mais impactante pra fazê do que quebrá uma TV no asfalto, mas é melhor a gente falá disso mais tarde; senão a Gorda vai ficá entrando aí e atrapalhando a conversa. - Eu não quero ser chato _ falei, olhando pra um relógio que tinha na parede _, mas eu acho que tenho que ir embora. - Capaz! Passe a noite aí, tem lugar. Amanhã é domingo, não tem aula mesmo. - Não sei, não quero incomodá. - Sem essas frescura, cara, eu não faço nada por conveniência, se você fosse incomodá, acredite em mim, eu não teria te convidado. - Então, tudo bem. Eu fico. - Poxa, tão rápido assim! Pensei que você fosse insistir mais, estilo; “Tem certeza que não vai ser incômodo mesmo?” ou “Não, não, eu não quero atrapalhá” ou “Eu ronco muito...” - Por quê? Eu deveria? - Não, foi bem melhor assim; é horrível ter que segui esse tipo de protocolo. Se você ficasse se fazendo, eu ia tê que ficá insistindo... - E, se eu não quisesse ficá, eu ia mandá uma daquelas tipo: “Tenho que dá comida pro meu cachorro (podia variá pra gato)”... - “Dexei a janela destrancada”... _ disse ele, dando seqüência. - “Tenho que tomá o meu remédio”... - “Tenho que carneá um boi” _ não contive o riso. Essas mais improváveis são as que parecem mais verdadera. - “Tenho que í na missa”. - Essa foi foda. Vamo pará de falá merda e vê se a Helena já se vestiu pra gente jogá um pôquer, cê sabe jogá? - Sei sim. - Tá a fim? - Pode ser. A gente foi pra cozinha. A Helena já tinha se vestido e tava colocando um leite pra esquentar, ela ia fazer um café instantâneo. - Sabe qual é uma das marcas do capitalismo? _ falei, meio que sem me dirigir especificamente a nenhum dos dois. - Hã? _ disse o Robs. - Lá vem aquelas conversas do Robs... Não sei bem se aquele comentário dela tinha sido uma desaprovação, mas dei seqüência mesmo assim: - O instantâneo. É tudo instantâneo. Café instantâneo, macarrão instantâneo, foto instantânea... (acho que foto não foi o melhor exemplo, mas mesmo assim passou). - A gente gasta menos tempo com a gente _ disse o Robs _ pra dedicá mais tempo pro sistema. - Tá, mas eu tô fazendo café instantâneo porque se eu for fazê do outro jeito fica horrível, não tem nada a vê com sistema. - Tá, mas a gente não tá falando de você, Gorda. A gente tá falando de manera generalizada. O café instantâneo serve pra ganhá tempo, ou você acha que a indústria se mantém só com os “sem noção” assim que nem você, que não sabe nem fazê um café convencional.

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- Disgraçado! _ disse ela, rindo e batendo nele com um pano de prato. _ Olha quem fala, eu só não tenho que mastigá a comida pra você... - Tá bom, se não fosse eu, o que que ia ser dessa casa? - Ia ser limpa. Sempre gostei desses pseudoconflitos entre irmãos (talvez eu até tenha algum complexo porque nunca tive irmãos). Um aponta um defeito do outro, mas sem nenhum tipo de maldade, a coisa toda só serve pra render boas risadas. Sempre achei que rir é uma das melhores coisas que existem; não sei se você já percebeu (não sei nem se é assim com você), mas, quando estamos rindo, não pensamos em nada, nossa mente fica vazia e temos alguns momentos de paz (talvez isso tenha soado de forma melancólica, mas não era a intenção). - Pare com esse pano! _ disse o Robs, se encolhendo pra escapar das investidas da Helena. _ A gente veio aqui pra vê se você não qué jogá um pôquer? - Ele sabe jogá _ disse ela, se referindo a mim _, ou é igual a você? - Meu Deus! É por isso que eu sô meio doido, morando com uma menina dessas... - Tô brincando. Você joga bem? _ disse ela se dirigindo a mim. - Eu sô horrível. Mas a partir dessa afirmação, você já sabe que eu gosto de blefá. - Que convencido... _ disse ela rindo. O Robs pegou um baralho numa gaveta e disse: - Vô pegá as minhas moeda; pegue as tuas, Gorda. - Você ainda tem moedas? _ perguntou ela, de forma sarcástica. Eu fiquei sentado à mesa até que eles retornassem, cada um com um pacotinho de moedas. De longe, já dava pra ver que o dela era bem mais polpudo (aposto que você não esperava esse “polpudo”) que o dele. - Acho que você deve imaginá quem ganha mais _ disse ela, colocando o saco de moedas sobre a mesa. - Claro. Ela tem medo de apostá; daí, pra tê graça, eu tenho que í sempre que ela vai, senão a gente não joga nunca. Aproveite que você tem mais e divida as tuas com o Prometeu. As moedas eram de 10 centavos. Ela tinha um pouco mais de 30 moedas, ou seja, 3 dólares e pouco. - Vamo começá com 15 moedas cada um _ disse ela, repartindo comigo. - Não, você pode ficá com mais, não precisa me dá a metade. - Pare de frescura. A gente começa com 15 e dexa o Robs começá com todas as dele, pra dá uma chance. - Ótimo! _ disse o Robs, acabando de contar as moedas dele. _ Então eu começo com 13, porque é tudo que eu tenho. Empresta duas aí, no final do jogo eu te pago. - Sei... _ disse ela, jogando pra ele duas moedas. Finalmente começamos a jogar. Era pôquer fechado. No começo, todo mundo com um certo receio, apostas pequenas pra conhecer o adversário. Mas, devagar, eu fui pegando a manha de cada um. Não quero bancar o experiente, mas, num jogo de pôquer, a melhor coisa a se fazer é permanecer calado, falar o mínimo possível, e procurar manter a mesma postura quando se possui cartas e quando se está blefando (aposto que o cara que perguntou, “Portão da mulher ou do pensionato?”; deve ter perguntado: “Então quem blefa não tem cartas?” Se essa pergunta realmente ocorreu, prefiro não me manifestar a respeito dela). Até o meio do jogo, a atitude crucial do Robs era a seguinte, se ele cobria uma aposta e aumentava, ou então, apostava alto desde o começo, algumas vezes ele usava uma expressão do tipo: “Que cagada!” ou “O que que eu tô fazendo?”, se ele fazia isso, significava que ele realmente não tinha nada, estava blefando (você pode ter achado que a atitude dele era estúpida, mas não - 36 -

era. Na maioria das vezes, quando alguém usa expressões do gênero: “Que cagada!”, essa pessoa tem cartas boas e tá tentando iludir o adversário. Mas esse era um truque muito barato e eu sabia que o Robs não usaria ele; quando ele dizia: “Que cagada!”, queria que eu presumisse que ele tinha cartas boas e estava querendo disfarçar. Se ele queria que eu achasse que ele tinha cartas boas, era porque estava blefando). Da metade do jogo em diante, quando ele percebeu que eu havia percebido qual era o seu truque, ele passou a agir de forma diferente, quando ele dizia: “Que cagada!”, ele tinha cartas boas (o Robs passou a agir dessa maneira porque sabia que quando lamentava na hora de blefar, eu percebia que ele queria que eu achasse que tinha cartas, quando não tinha. Então, passou a fazer isso quando realmente tinha cartas boas). Talvez você tenha se cansado um pouco com essa minha definição do estilo de jogo do Robs, mas sempre gostei de fazer esse tipo de coisa. Eu prometo que o perfil da Helena é bem menos complicado. Primeiro, era preciso olhar a expressão dela quando recebia as cartas (é claro que ela não dava gargalhadas quando saía com cartas boas, mas dava pra notar a diferença). Ela raramente blefava, mas o seu blefe estava caracterizado por uma breve vacilação. Quando realmente tinha cartas boas, ela colocava as moedas direto no centro da mesa; quando tava blefando, ela fazia um pilha com as moedas antes apostá-las. Sei que isso vai parecer meio arrogante (é apenas a verdade), mas, resumidamente, o jogo acabou em meia hora e eu fiquei com todas as fichas da mesa. - Você não disse que era jogador profissional _ disse a Helena, frustrada pela derrota. - Eu devo tê esquecido. Tô brincando, eu tava com sorte hoje. - Você tava vendo as minhas carta de algum jeito _ disse o Robs _, você sempre sabia quando eu tava blefando. - Tá _ falei, empurrando as moedas pro meio da mesa _, dividam elas meio a meio, pro jogo começá equilibrado da próxima vez que vocês forem jogá. - Não _ disse a Helena _, você ganhô, elas são tuas. - Não, não. Brigado, pra caminhá de volta até a minha casa, é melhor carregá o menos peso possível. - O Prometeu vai posá aqui em casa hoje, Helena. - Tá bom, eu vô arrumá uma cama pra ele então. - Tá _ disse o Robs _, mas não precisa ser agora. O que que vocês acham da gente í naquela pizzaria nova que abriu aqui perto? - Por mim, pode ser _ disse Helena. - Por mim, também. - Só vô troca esse pijama. - Não, vai assim mesmo. Você tá linda, não tá, Prometeu? - Claro, você tá ótima. - Tá bom, então, vocês vão arrumados e eu vô de pijama? - Quem tá arrumado aqui? Só se for o Prometeu, porque a única peça que eu tô vestindo, tirando a cueca, é essa bermuda que parece ter um ovo cozido desenhado. - Tá, mas não precisa tirá a cueca _ disse ela. - Como? _ perguntou o Robs, sem entender nada (eu confesso que, num primeiro momento, também não entendi). - É que você falô, “tirando a cueca...”; nada, dexa pra lá, essa foi péssima. - Meu Deus! _ disse o Robs rindo. _ Por favor, Gorda, não tente ser engraçada, você não leva jeito. Depois dessa, vá trocá de ropa de uma vez então. - Nem foi tão ruim assim! _ falei. - 37 -

- Viu? _ disse ela. _ O Prometeu gostô. - Tô brincando, foi horrível mesmo _ completei. Ela riu, me deu um tapinha no ombro e foi trocar de roupa. Como o Robs tinha dito, ela tava linda daquele jeito mesmo, qualquer coisa que ela vestisse ficaria bem nela. Mas qualquer coisa é mais provável do que uma mulher ir jantar fora vestindo um pijama. Depois que ela se arrumou, o que não foi a coisa mais rápida do mundo (não ficou nem entre as cinco), fomos à pizzaria. Fomos andando mesmo, ficava só a alguns quarteirões de distância. Uma pizzaria geralmente é um lugar bem mais descontraído do que um restaurante, mas aquela era do tipo mais refinada, e eu já fui preparando a minha carteira. - Ixxeee... _ disse o Robs _ pelo jeito, essa pizzaria é cheia de frescura. - Vamo sentá naquela mesa lá _ disse a Helena _, naquela lá, perto da janela. - Pode sê. Gorda, cê sabe o que que o ceguinho disse pra mulher dele quando entrô na pizzaria? - Dexa eu pensá... não sei. O quê? - Não sei, se eu soubesse, não tinha te perguntado. Depois de rir um pouco, eu falei: - Eu sei. - O que que ele falô então? - Ele falô: “Tô com fome, e você?”. Sei que parece uma coisa estúpida, mas rimos bastante. Nada jamais me fez rir mais do que piadas sem sentido ou piadas bestas, dessas que, aparentemente, não tem graça nenhuma. Quando sentamos à mesa, perguntei: - O que que o mudinho disse pra mulher quando entrô na pizzaria? - Essa eu sei _ disse a Helena toda animada. _ Ele não falô nada, porque mudo não fala. - Não _falei, acabando com a alegria dela. _ Ele disse: “Milagre! Tô falando!”. A gente riu mais dessa vez; rimos até saírem lágrimas dos nossos olhos e algumas pessoas ficarem nos olhando. - Essa foi horrível _ falei. _ Inventei agora. - Essa foi boa _ disse ela, ainda rindo um pouco. - Foi boa mesmo _ disse o Robs. Um garçom veio nos atender. Pedimos o rodízio. - E pra beber? _ perguntou ele. - Vamo pedi um vinho _ disse a Helena _, não agüento mais bebê refrigerante e suco. - Tá bom então. Traz um vinho pra gente. Traz desse aqui que não tá muito caro _ disse o Robs, apontando no cardápio, provavelmente, porque não sabia pronunciar o nome. Até hoje, quando bebo um vinho ou só quando ouço a palavra, tenho recordações boas e más. Lembro de alegrias e frustrações; mas, se não tivesse acontecido tudo que aconteceu, eu não estaria aqui hoje (não tô falando isso no sentido “hoje sou um vencedor”; só acho que estou exatamente onde deveria estar, depois de refletir muito, cheguei a essa conclusão). - Você gosta de vinho _ perguntei à Helena. - Ah, eu gosto sim. E você? - Eu gosto bastante. Minha família tinha uma vinícola, eu amassava uva com o meu pai e com a minha mãe. Fazê vinho era maior alegria do meu pai, ele gostava mesmo do que fazia; não era por obrigação. Sempre achei que esse é o sentido da vida, fazê o que a gente - 38 -

gosta. Acho que se as coisas fossem assim, o mundo daria certo. Nunca vô esquecê do meu pai amassando uva... sei que eu ainda sô muito novo, mas já posso dizê que a minha infância foi a melhor época da minha vida. O meu pai tinha umas parrera, de um tipo raro de uva pra nossa região, com a qual ele fazia um vinho especial. Ele não dexava ninguém pegá daquelas uvas. Mas, quando ele tava dormindo ou quando ele saía, eu ia com a minha mãe até as parreras e comia até não agüentá mais. Acho que o meu pai devia sabê, mas ele nunca dizia nada. Por isso que eu não consigo imaginá alguma coisa melhor que a minha infância, sei que se eu comesse aquelas uva hoje, elas não iam tê o mesmo gosto... Bom, vô pará de falá antes que vocês durmam. - Não, continua. Eu tava gostando de ouvi _ disse ela. _ Sempre morei na cidade, mas sempre quis morá no campo. - Eles não têm shopping lá, Helena _ disse o Robs, dando uma risadinha. _ Eu também sempre quis morá no campo. Às vezes, eu vô nesse bosque, ou floresta, sei lá o que é isso, que tem a uns 30 minutos daqui. Eu acampo lá, pra senti como é a vida de verdade, não esta vida artificial. Uma vez, a Helena até foi comigo... As pizzas começaram a chegar e a conversa parou um pouco. O vinho chegou também, e eu confesso que tava curioso pra experimentar. Ele não era nenhuma maravilha, mas, pelo preço, acho que tava bom demais. No geral, tudo seguia normalmente, a não ser por um detalhe. Tinha um garçom, acho que ele servia pizzas doces, que sempre passava batido pela gente e ia à mesa ao lado, que tinha um cara engravatado e uma senhora toda emperiquitada. Eu sei que passar batido por uma mesa ou outra é comum nesses rodízios, mas não com a freqüência que ele fazia; não parando sempre na mesa ao lado. Quando ele passou por nós e parou na outra mesa de novo, o Robs chamou ele: - Psiu! Ei! Com licença... - Pois não? _ disse o garçom. - Por acaso, esse senhor aí dessa mesa é teu pai, teu padrinho, teu tio... já sei, ele é o teu patrão de algum otro emprego. Acertei? - Desculpe, senhor, mas não estou entendendo. Tenho que continuar servindo _ disse o cara, caindo fora na maior cara-de-pau. - Que filho da puta! _ disse o Robs. _ Fica se fazendo aí..., mas, na próxima vez, se ele passá batido, ele vai vê. Não deu outra, o garçom veio com as pizzas e passou direto sem parar na nossa mesa; e o pior, parou de novo na mesa do cara ao lado (se tem uma coisa que me enoja até hoje, é a maneira como você é tratado se você não tem nada e é um desconhecido, e a maneira como você é tratado se tem status e dinheiro. Eu já recebi os dois tipos de tratamento; e confesso que não conseguia olhar na cara daqueles que nem reconheciam a minha existência e depois vieram dizendo que sempre souberam que eu teria sucesso. Depois que você ganha dinheiro, as gentilezas chegam a te cansar, as pessoas se tornam muito amáveis (isso me revoltou no começo), e as oportunidades chegam a te deixar confuso. Na adolescência, eu só queria expor as minhas idéias, faria isso de graça, mas não tinha uma única chance; depois do dinheiro e da fama, me convidavam pra dar palestras por 200.000 dólares a hora. É triste, mas é verdade: não te tratam pelo que você é, te tratam pelo que você tem). O Robs pegou um guardanapo que tinha na mesa, dobrou no formato de uma gravata e pendurou na gola da camisa; a Helena (que pelo jeito não era forte com as bebidas e já se mostrava alterada com uma taça de vinho) pendurou dois guardanapos nas argolas dos brincos que tava usando, na

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tentativa de reproduzir os brincos gigantes da senhora da mesa em que o garçom sempre parava. - Ei, garçom! _ chamou o Robs. _ Agora eu tô usando gravata também _ disse ele, mostrando o guardanapo _, e a minha irmã também tem uns brincos bem grandes. Será que você pode servi a gente agora? - Desculpe, senhor, mas o senhor está sendo inconveniente. - Inconveniente é o caralho. Não quero sabê se você é paga-pau de engravatado. A gente pagô pra comê essa pizza e você não passa aqui. Se a gente tivé que sentá na mesa desse “tio” pra você servi a gente, acredite, a gente vai sentá. Agora, por gentileza, será que você poderia trazê a bandeja até a nossa mesa? Finalmente, o cara veio até a nossa mesa (e, depois dessa, ele sempre vinha até a nossa mesa pra ver se agente não queria nada). Eu sei que você deve tá achando que o Robs foi rude demais. Mas, se tem uma coisa que eu não tolero, é preconceito; e aquele cara tava sendo preconceituoso. A gente, ou melhor, o Robs podia ter conservado a postura e ter ficado sem comer, mas estávamos fartos de sermos convenientes e sempre acabarmos levando a pior. Bastaram algumas palavras e agora tínhamos pizza doce. - Eu quero uma de chocolate branco _ disse a Helena. - Chocolate branco pra mim também _ falei. - Eu quero a de brigadero. Pedimos mais um vinho. Dessa vez, eu pedi. Era alguns dólares mais caro, mas era muito melhor. Quando acabamos de beber, pagamos a conta e fomos embora. No caminho, o Robs me perguntou: - E aí, Prometeu, tá cursando Artes Plásticas por quê? - Eu tinha que fazê alguma coisa, e não consigo me imaginá num escritório, de terno e gravata (mais uma ironia do destino, acabei assim, num escritório, de terno e gravata). E eu também sempre gostei de arte. E você, tá cursando psicologia por quê? - Sempre quis entendê como as pessoas agem e pensam e, como eu tinha que fazê alguma coisa... lembra do tio Bill, Gorda? - Nem me fale! O que que tem ele? - Uma vez, eu tava deitado no meu quarto e ouvi ele falando com o pai: “Então esse menino disse que vai fazê psicologia, é? Esse teu filho, hein?! Ele tem que fazê administração, pra cuidá dos teus negócio; pode dexá, eu vô conversá com ele”. Eu fiquei esperando; só Deus sabe como eu tava ansioso pra ele vir falá comigo. E, um dia, ele veio. Ele mal abriu a boca pra tocá no assunto, e eu falei: “Claro, tio, só que eu queria dizê uma coisa pra você também. Você passa a maior parte da tua vida engordando feito um suíno na frente da TV, se entupindo de cerveja e amendoim; e eu nunca fui na tua casa dizê que porra você tem que fazê da tua vida; então, não se meta na minha. Tá bom?” Ele foi embora e nunca mais falô nada. Foi aí que eu percebi que, às vezes, é preciso ser grosso pra ser respeitado. Se você é bonzinho, você é explorado. A gente caminhou um pouco em silêncio, aí eu perguntei: - E você, Helena, tá fazendo Direito por quê? - Pra falá a verdade, eu não sei. Rimos um pouco, aí ela continuou: - É sério, eu não vô mandá aquelas palhaçada do tipo: “Pra que a justiça seja cumprida”; “pra manter a ordem” ou “pra fazer as leis vigorarem”. Falando sério, não sei por que eu tô cursando.

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- Vocês querem sabê por que realmente a gente tá cursando uma universidade? _ perguntou o Robs. - Lá vem ele com aquela história de sistema... _ disse a Helena com um ar de desaprovação. - Certamente, se eu fizesse todo o caminho inverso, ia acabá chegando nele. Mas, olhando de uma forma simplista, o negócio é o seguinte. Nossos pais tão num churrasco ou numa confraternização qualqué. Aí, chega aquele amigo parcialmente embriagado que já não tem mais nenhum assunto e pergunta: “E o teu filho, tá fazendo o quê?”. Os nossos pais não podem dizê que a gente não tá fazendo nada, isso ia sê muito constrangedor pra eles. Então, nós estudamo pra eles poderem dizê: “O meu filho tá na universidade”. Acima de um lugar no mercado de trabalho, esta é a principal função da nossa universidade, os nossos pais poderem dizê pro amigo parcialmente embriagado que a gente faz alguma coisa. - Ou seja _ completei eu _, pela mesma função que a gente vai casá e arranjá trabalho. Quando os nossos pais encontrarem novamente o bom e velho “amigo parcialmente embriagado” e ele perguntá: “E o teu filho, o que que anda fazendo?”; eles vão podê respondê: “O meu filho tá encaminhado, casô e arranjô um emprego bom”. Ter uma vida como a deles, ou parecida, na concepção deles, é o melhor pra nós. - É, Gorda _ completou o Robs _, é triste, mas é verdade, estudamos, basicamente, pro nosso pai ter uma resposta pra dá a algum “amigo parcialmente embriagado”. Tem algo mais nobre do que isso? - Vocês tão exagerando. Eu não estudo pra isso. - Negação diante da verdade incontestável, mas é melhor assim, é melhor pensá que você estuda pra contribuí com a sociedade ou pra, um dia, melhorá o mundo. - E se eu pensá que tô estudando pra, um dia, podê pagá um apartamento e não tê que morá mais com o pentelho do meu irmão? - Aí seria um caso de esquizofrenia _ disse o Robs. - Por quê? - Porque, pra ter um irmão pentelho, você precisaria tê um irmão imaginário. - Muito engraçado... Logo chegamos na casa. A Helena arrumou uma cama pra mim na sala. Ela era quem tinha ficado mais abalada com o vinho. - Eu tô meio atordoada, não sei se arrumei direito a tua cama. - Tá ótima. Não precisa se preocupá. Brigado. - Esse colchão é meio esquisito, não sei se você vai gostá... - Se você visse a cama onde eu durmo, não sei o que é mais grosso, o lençol ou o colchão. - Então tá. Acho que é isso, boa noite. - Boa noite. - Se você tivé com fome e quisé alguma coisa, pode pegá na geladera, isso se tivé alguma coisa nela. Acho que você sabe onde é o banhero... - Sei sim. - Se precisá de alguma coisa é só chamá, não sei se esse cobertor chega? - Tá ótimo. Brigado, mais uma vez. - Então, boa noite. - Boa noite. O Robs saiu do banheiro. Acho que ele tinha ido tomar banho. Eu não tinha deitado ainda, tava esperando pra ver se ele ia querer conversar. - 41 -

- E aí, o que que achô da cama? - Ah, tá ótima. - Se quisé ficá com a minha, eu durmo na sala. - Beleza, eu fico com a tua então _ falei com a maior naturalidade. Eu vi a cara de espanto dele e percebi o cérebro assimilando a frase que eu tinha dito. - Tô brincando, não sô tão folgado assim. Sei que o Robs tava empenhado naquele negócio de Revolução. Sei que ele apreciava a ideologia comunista, mas eu também sabia que aquela oferta tinha sido por pura educação, a única resposta que ele esperava era uma recusa. - Você tava me testando, né? Queria vê se eu tava falando sério. - Talvez... _ falei rindo. _ E aí, sobre aquele otro assunto, teve alguma idéia? - Era sobre isso que eu queria falá. Será que a nossa conversa pode ficá pra manhã? A gente tem o dia intero... - Claro. - Eu só não queria que você pensasse que eu tô fazendo poco caso; eu tô levando esse negócio de Revolução a sério (se tinha alguém que levava a Revolução a sério, esse alguém era o Robs), só que, quando eu tô com sono, eu viro um lixo... - Não precisa se justificá não. Eu também tô precisando dormi (eu havia dito pro Robs que não agüentava conversas de conveniência, mas ser conveniente é um vício que não se abandona de uma hora pra outra; na verdade, eu não tava com nenhum pouco de sono), a gente conversa amanhã. - Beleza. Boa noite. - Boa noite. Eu não tava conseguindo dormir. Tava pensando como a vida era estranha; às vezes, ela é completamente linear e, de repente, dá uma guinada surpreendente. Há poucos dias atrás, eu definhava numa cama, sem colocar nenhuma comida na boca. Agora, eu tinha acabado de comer numa pizzaria com o meu melhor amigo (que, a propósito, eu tinha conhecido no dia anterior) e tinha achado a irmã dele incrível (tá, eu disse que ia ser sincero; eu confesso que ela era realmente incrível, apesar de que fico com a impressão de que “incrível” não é o adjetivo ideal, mas não encontrei outro). Já era madrugada, ouvi o inconfundível barulho de alguém fazendo ânsia no banheiro. Depois, ouvi o som de passos se aproximando e, finalmente, vi a Helena, passando e indo à cozinha. Levantei e fui ver se ela tava precisando de alguma coisa (por favor, me poupe de comentários maldosos, eu teria feito a mesma coisa se fosse o Robs que tivesse passando mal (acho que teria...)). - Você tá passando mal? _ perguntei. - Tô, meu estômago tá revirando _ disse ela, pegando uma água na geladeira. - Você vomitô? - Não, mas tô com bastante enjôo. - Essa é a pior fase. Pior que o vômito é o enjôo, pior do que a diarréia é a cólica. Ela deu um riso curto e disse: - Você é tão... - Inconveniente? Desculpe, não quis ser rude. - Não, não. Você é direto, parece que fala o que pensa, assim como o Robs. - Não sei se sô tão direto como o Robs. Não falei quando eu precisava... você acha que foi o vinho? - Tenho certeza. - 42 -

- Você não ia ficá assim se fosse com o vinho que eu fazia... Quando eu vir o meu pai otra vez, eu trago uma garrafa de vinho da vinícola em que ele trabalha. Eles fazem vinhos de verdade lá também. - Não posso nem ouvi falá em vinho agora... - Acho que a água vai te ajudá a melhorá, você não tem nenhum daqueles antiácidos efervescentes? - Não. A gente ficou um pouco em silêncio até que ela disse: - O que era aquilo? Aquele negócio do cartaz... que mensagem que você tinha afinal? - Pra falá a verdade, não sei ao certo. Mas acho que... que, resumidamente, a mensagem era Revolução. - Revolução? - É, mudança. Sei que falando assim parece algo meio infantil, meio romântico, parece que eu sô um sonhador. Mas quem vendeu a idéia de que uma Revolução é impossível? Foram aqueles que temem que ela ocorra e que sabem que ela é inevitável; mais cedo ou mais tarde, ela vai acontecê. Então, o que esses cara falam? “Não adianta nem tentá, você não vai consegui mudá nada. Aproveite a tua vida e esqueça essas bobagens...” - Eu não entendo isso. Por que uma Revolução? Não tá bom assim? O que que você qué mudá? - Sabe qual é o problema, Helena? Eu sei que as coisas não devem tá assim tão ruins pra você e, dependendo da forma que se olha, não tão ruins pra mim. Mas e os otros? Lá fora, tem bilhões na miséria; tem pessoas com boas condições financeras, mas insatisfeitas consigo mesmas; lá fora, tem dor...; tem desigualdade. Quanto vale uma pessoa pra você? - Como assim “quanto vale?”. - Um preço. - Uma pessoa não tem preço. - Era assim que deveria ser; é isso que eu quero. Eu só quero que as pessoas tejam acima do dinhero, só isso. Só quero que ninguém valha menos do que um tênis, um carro, uma ropa... Somos nós que damos valor a essas coisas, não elas que dão valor pra gente. Uma vez, eu devia ter uns dez, onze anos; eu tava sentado na varanda da minha casa, desde pequeno sempre fiquei pensando em certas coisas, mas, naquele dia, me ocorreu uma que me dexô bastante triste. Naquele dia, não sei por que, me ocorreu que a minha mãe ia morrê um dia. Quando ela morresse, eu não sabia o que ia acontecê com ela depois, mas aqui, nesse mundo, a gente só tem um ao outro e, se não tivé isso, a gente tá sozinho (eu senti a melancolia que emanava da minha voz; até hoje, não sei por que resolvi falá isso pra ela). Vô pará de falá antes que eu comece a te assustá... - Não. Achei o que você disse interessante... acho até que você deve tá certo. - Você, passando mal, e eu falando dessas coisa. Preciso me controlá. - Eu acho que a água tá ajudando mesmo. Parece que o enjôo tá passando. A gente ficou um pouco em silêncio até que ela disse: - Bom, acho que vô aproveitá que o Robs não tá roncando e vô vê se consigo dormi um poco. Às vezes, ele ronca tão alto que eu escuto do meu quarto... - Acho que eu também vô tentá dormi. Se você não tivé bem... é só falá. - Tá bom, brigada. - Boa noite. - Boa noite.

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Voltei a deitar um pouco arrependido de ter dito certas coisas; certas coisas que eu vinha guardando há muito tempo e que, de repente, como numa erupção, jorraram de mim. Mas, ao mesmo tempo, senti um certo alívio e acabei conseguindo dormir. Acho que a Helena não levantou mais nenhuma vez naquela noite, se levantou, eu não vi. Só fui acordar na manhã seguinte, com o toque do telefone, que ficava na sala, e com o Robs quase pisando em cima de mim. - Foi mal _ disse ele quando quase me pisoteou. Acordei meio desorientado e vi ele, atendendo o telefone. Vou ter que usar um pouco de imaginação nessa parte porque, como todos sabem, numa conversa no telefone, se você não estiver ouvindo na extensão ou algo do gênero, você só pode ouvir uma das pessoas falando. Mas isso não foi problema porque eu tava ouvindo o Robs e a sua interlocutora não teve muitas chances de falar. Bem, então, vou começar pelo Robs: - Olha, eu não quero ser grosso, mas, só nessa semana, já me ligaram três vezes da New Net me oferecendo um serviço que, eu não tenho dúvida, deve ser ótimo. Na primera vez, eu falei: “Não, brigado”, e o sujeito ficô insistindo, mas eu agüentei. Na segunda, eu falei: “Eu já disse que não, mas que droga!”; na terceira vez eu falei: “Vai tomá no teu cu!”. Eu pensei, não vai haver uma quarta vez, mas, como nós sabemos, houve. Eu vô dizê pra você o seguinte, olhe no teu monitor, ou sei lá onde você olha, e decore bem o número do meu telefone, você olhô? - Sim, senhor. - Decorô? Qual é o teu nome? - Sarah Tuddor, senhor. - Ótimo, agora eu sei o teu nome e o teu sobrenome; então, não brinque comigo, Sarah. Qual é o meu número, Sarah? - 266-38-67. - Perfeito, Sarah. Agora você vai pegá essa porra desse número e vai mostrá pra todos os teus colega, não quero sabê se são vinte, cem ou mil. Você vai mostrá pra todos eles e dizê pra nunca, sob hipótese alguma, discarem esse número outra vez. Porque, se alguém fizé isso, esse alguém vai pagá. E, se eu recebê otra ligação da New Net, mesmo depois desse aviso, você vai pagá também. E, acredite, Sarah, eu sei como se cobra. Você entendeu? - Sim, senhor. - Então, diga rápido, qual é o meu número, Sarah? - 266-38-67, senhor. - Por que a demora? Você já tinha esquecido? Você não tá me levando a sério? Qual é o meu número? - 266-38-67. - Mais rápido, Sarah! - 266-38-67. - Mais rápido, caralho! - 266-38-67. - Ótimo, perfeito. Tenha uma boa tarde! Lembranças ao pessoal da New Net. Essa pode não ter sido a vez que me surpreendi mais (por motivos que veremos mais pra frente), mas certamente, tá entre as cinco. Eu tava completamente estarrecido e, meio sem ter o que falar, disse: - Esse pessoal da New Net deve ter enchido o teu saco. Quantas vezes você disse que eles ligaram mesmo? - Na verdade, eu menti pra mocinha. Essa foi a primeira vez que me ligaram de lá. - 44 -

Fiquei ainda mais surpreso e, apesar de não ter dito nada, meu silêncio falou por mim. - Mas não pense que eu sô um cara mau. Você não pode brincá com essas operadora de telemarketing, principalmente, com provedor de internet. Esses cara da New Net são provedor. Uma vez, uma companhia de provedores me ligô umas cinco vezes numa semana. Depois disso, elaborei essa tática, já tenho essa fala meio decorada, uso com qualqué companhia que liga pra cá pentelhando. A jogada principal é descobri o nome do sujeito que te ligô; aí, ele acha que tá correndo risco e te leva a sério. Eu queria podê dizê: “Não, obrigado, dispenso os seus serviços”; mas os cara não entendem, ou melhor, não querem entendê. Se você é bonzinho, se aproveitam de você. Se eu quisesse ser conveniente, teria ouvido o tio Bill e feito administração; teria dexado barato aquele negócio com o garçom e não teria comido as pizza a que eu tinha direito e teria contratado os serviços da New Net só pra me vê livre dos cara. - É, acho que você tá certo; pra esse pessoal, ser gentil é a mesma coisa que ser babaca. Espero que isso acabe um dia. - Não se preocupe, vai acabá sim; nem que a gente tenha que fazê isso. Falando nesse assunto, a gente podia aproveitá pra conversá agora, que a minha irmã tá dormindo e não vai ficá atrapalhando. - Falando na tua irmã, ela não tava passando bem ontem... tava com enjôo. - Deve ter sido o vinho _ disse ele, com um risinho no rosto. _ A Gorda é muito fraca pra bebida. Mas não foi nada, daqui a pouco ela já tá aí, enchendo o saco. Vamo comê alguma coisa. O Robs colocou algumas coisas na mesa. Pão, manteiga, queijo, chocolate instantâneo (mais um instantâneo! Tinha esquecido de citar o chocolate) e leite. Enquanto a gente se servia, aproveitamos pra conversar. - Fala aí, Prometeu, cê teve alguma idéia? - Eu fiquei um bom tempo pensando e acabei concluindo que a gente vai tê que começá de baxo mesmo... - Não tem problema, mas o que você tem em mente? - Não sei, cara. Eu confesso que eu mesmo tenho um certo preconceito com essa idéia, mas... - Pode falá, manda aí. - Eu tava pensando em pichá. O Robs fez uma pausa na mastigação da torrada que tava comendo. Foi uma pausa de assimilação, a cabeça dele deve ter procurado as definições da palavra pichar. - Por mim, pode ser. Acho até que é uma boa. - Tá, mas tem que tê algum sentido, não pode ser vandalismo banal, tipo saí por aí pichando sigla de gangue ou esse tipo de coisa. Tem que ser uma coisa desconcertante. Eu tava pensando em pichá propaganda de uma empresa em uma concorrente... - Ótima idéia! Já sei! Aqui perto de casa, tem um monte dessas loja de pirua, tá ligado? Dessas que vendem um par de meia por cem dólares. A gente pode pegá e pichá propaganda de uma só loja em todas as otras, o que que cê acha? - Beleza! É só arranjá um spray... Fiquei mais um tempo conversando com o Robs, acertando alguns detalhes. A Helena demorou um pouco pra acordar, acho que ela não tinha conseguido dormir direito à noite. Eles insistiram pra que eu ficasse, pelo menos pro almoço, e eu acabei cedendo. Ao contrário do que eu esperava, ela cozinhava bem; surpreendentemente bem. Apesar da hospitalidade, parti logo após almoçar. - 45 -

- Parabéns, Helena, o almoço tava ótimo! - Brigada. Faz tempo que eu não recebo um elogio... _ disse ela, olhando pro Robs. - Ah..., se eu fosse te elogiá cada vez que você faz uma coisa boa... Você sabe que eu não vivo sem você, Gorda. - Você já melhorô completamente do enjôo? _ perguntei, mas não foi aquela típica pergunta por conveniência, eu realmente tava interessado em saber. - Ah, sim. Já tô bem melhor, quase cem por cento recuperada. - Acho que já tô indo embora... - Já?! _ disse a Helena. _ Não qué ficá mais um poco? - É, tem certeza que já qué í? - Não, brigado, já fiquei muito. Eu preciso í mesmo. - Bom, você que sabe. Se você qué í, a gente não vai ficá te enchendo o saco _ disse o Robs. - Brigado por tudo. Sei que esta frase parece clichê, mas há muito tempo eu não me divertia tanto. - Não precisa agradecê... - É, a gente também não se divertia assim há bastante tempo. Eu ri muito... pra você ter uma idéia, o ápice da minha diversão era assisti TV. - Não se preocupe _ disse o Robs com um risinho nos lábios _, assisti TV não vai ser mais o ápice da tua diversão. - Você esqueceu que eu ainda tenho uma no meu quarto? - É mesmo! Como eu fui esquecê?! Bom, Prometeu, pelo menos agora a gente já tem o que fazê no próximo final de semana. - Muito engraçado! A gente vai vê o que que o pai vai dizê quando soubé o que aconteceu com a TV da sala... Eles me levaram até a sala, onde houve aquela tradicional segunda despedida. - Então, brigado mais uma vez. - Que isso... Você precisa voltá mais vezes, pra uma revanche no pôquer. Da próxima vez, eu vô jogá sério. - Essa é nova, hein, Gorda?! O primero passo pra uma revanche é aceitá que foi derrotado. - Ah, é? E você é o mestre Miyagi agora, é? _ disse ela. - Sô sim, por que que cê acha que eu falo pra você lavá a loça, limpá o chão e essas coisa? Um dia, tudo vai tê serventia. - Fala nada, eu só limpo pra não morá num chiquero. - Mas eu tenho que í _ falei, interrompendo eles. _ Qualqué dia eu volto pra uma revanche. Eu te ligo então, pra falá daquele assunto... - Tá certo. - Tchau! Tchau! - Tchau! - Tchau! Quando saí passei pelos cacos da TV. Eles ainda não haviam sido recolhidos, mas, provavelmente, não tardaria pra que isso acontecesse. Enquanto retornava ao pensionato, a única coisa que passava pela minha cabeça era as possíveis maneiras de executar aquela que seria a primeira missão da nossa Revolução. Eu avaliava os prós e contras. Talvez você teja achando que essa missão era algo irrelevante. Eu não quero bancar o senhor da verdade ou o sujeito experiente, mas, posso dizer que uma coisa aprendi, você precisa se concentrar ao - 46 -

máximo naquilo que tá fazendo; precisa começar com algo que esteja realmente ao teu alcance (não adianta elaborar planos fantásticos que solucionariam todos os problemas, mas que são completamente inviáveis); é preciso agir (se você deixar sempre pra amanhã, nunca fará nada); é preciso se arriscar (qualquer coisa tem uma parcela de chance de dar errado); é preciso evoluir (você não pode ficar estagnado(a), tem que saber qual é o seu objetivo principal e progredir até alcançá-lo); é preciso dedicação (nada acontece do nada, não espere milagres ou soluções improváveis, seja otimista, mas, acima de tudo, seja realista, pra evitar decepções desnecessárias) (vou parar por aqui, antes que este livro acabe na prateleira da auto-ajuda). Essa foi uma breve síntese do sucesso, sei que parece conversa fiada, mas, se você conseguir colocar em prática os itens anteriores, você conseguirá alcançar seu objetivo (é óbvio que não tô falando apenas sobre uma Revolução, mesmo porque, acredito que este não é o objetivo da maioria das pessoas). Após uma longa caminhada e, por conseguinte, uma longa reflexão, cheguei à pensão, que tava mais calma do que o habitual, por ser domingo. Enquanto eu abria a porta da minha kitchenette, fui abordado pela senhora do pensionato: - Resolveu dá uma passeada? - Passei a noite na casa de um amigo (será que agora ela ia querer controlar a minha vida?). - Ontem ligaram duas vezes perguntando por você. - Por mim? (perguntei, na típica pergunta de assimilação, na qual se enfatiza o final da frase anterior, já falei sobre isso). - Um rapaz ligô pedindo pra falá com o Hermes; falando nisso, você é mais conhecido por esse nome, é assim que te chamam na universidade? - É... _ respondi com a mente longe. _ A senhora disse que ligaram duas vezes? - Foi. - Será que foi o mesmo que ligô a segunda vez? - Pela voz, parecia ser. - Ah, tá... brigado por me avisá. Se, por acaso, ligarem de novo, a senhora poderia me chamá? - Claro. - Brigado. “Caramba! _ pensei enquanto entrava em casa. _ Tomara que ele ligue de novo (essa foi a primeira coisa que me ocorreu). Será que não é mais uma palhaçada do Robs...? Não, definitivamente, não. Quem será esse sujeito?”. Confesso que eu já tinha descartado completamente a possibilidade de que alguém me ligasse; tava certo de que seria apenas o Robs e pronto. Talvez porque já considerasse um milagre que uma pessoa tivesse ligado. Mas a minha curiosidade aumentou ainda mais porque, nos dias que se seguiram, ninguém retornou a ligação (isso só viria a acontecer algum tempo depois). Liguei pro Robs já no outro dia e contei pra ele o que tinha acontecido. Ele me garantiu que não tinha sido ele quem tinha ligado e também ficou bastante curioso. Mas acabamos deixando isso pra lá. Falei pra ele sobre os meus planos e trocamos algumas idéias. Nos falávamos quase todos os dias, principalmente por telefone, mas também nos encontrávamos pessoalmente. O meu contato com o pessoal da universidade, que já não era lá uma maravilha, ficou ainda pior. Eles achavam que eu era tímido, era melhor assim (a verdade é que esse equívoco sempre ocorreu comigo com bastante freqüência, as pessoas costumavam achar que eu era - 47 -

tímido, mas a verdade é que eu não suportava aquilo que eu chamava de “conversas improdutivas”. Não pense que eu só queria falar de coisas sérias; não, as besteiras sem sentido que me faziam rir eram indispensáveis, você poderia julgar que elas também eram improdutivas, mas, se me faziam rir, de certa forma, eram produtivas), eu não suportava ouvir nem os professores dando aula. O único assunto que me interessava era a Revolução, e desse assunto, no momento, eu só podia tratar com o Robs. Após uma semana tediosa e uma longa caminhada, eu chegava novamente na casa do Robs. Confesso que fiquei com um pé atrás, “E se o cara que ligô semana passada só pode ligá no sábado? _ pensei”. Mesmo assim, os assuntos que eu tinha pra tratar eram urgentes e não podiam ficar pra depois (eu já falei disso, lembra? “é preciso agir, se você sempre deixar pra amanhã, nunca fará nada”). Tá, a questão é que cheguei na casa do Robs. A Helena veio abrir o portão, eu havia esquecido o quanto ela era bonita. - Oi, tudo bem? _ disse ela, sempre com aquele sorriso. - Tudo, e você? - Parece que finalmente vô podê ter a minha revanche... Franzi a testa, confesso que havia esquecido. Eu andava tão absorto pensando naquela que seria a nossa primeira missão. E o pior é que não pensava em nada muito conciso, mas, se parava pra pensar um pouco, era sempre a primeira coisa que passava pela minha cabeça. - No pôquer _ esclareceu ela. - Ah, claro. Mas sem vinho dessa vez. - Nem me fale; que vergonha... - Não precisa ficá com vergonha, a culpa foi do vinho. Tô falando sério. Toda essa artificialidade, nosso vinho não é mais feito de uva; nossos sucos não são mais feitos de frutas; não sei nem se as frutas ainda são frutas de verdade... acho que me empolguei. E o Robs? - O Robs tá lá na biblioteca. Biblioteca! Falando assim até parece... tá lá na sala em que a gente guarda os livros. - Que não dexa de ser uma biblioteca. Mas entendi o que você quis dizê, falando biblioteca dá uma impressão de “burguesia”, né? - É, parece que a gente mora naquelas mansão. Parece que, entrando na casa, vai tê um mordomo de gravata borboleta a nossa espera e eu vô dizê: “James, leve o convidado até a biblioteca” _ rimos um pouco e ela concluiu. _ Vô pará de falá bestera. Você sabe onde é, né? Eu já tinha me distanciado um pouco quando ela comentou: - Já escondi a minha televisão. Me limitei a rir. A Helena era encantadora. Ela tinha senso de humor, era linda (como já disse várias vezes), inteligente, simpática, simples (apesar de ter sido criada numa camada social relativamente alta, ela não queria bancar a elitizada), delicada (eu sempre apreciei a delicadeza numa mulher, pra mim, é isso que define o feminino)... enfim, não vou nem tentar enumerar as diversas qualidades da Helena; digo apenas que, certamente, só por ela (digo até mais, digo que só por aquele nosso curto diálogo na entrada) a minha, não curta, caminhada já teria valido a pena; mas certamente era por aquela “conversa produtiva” com o Robs que eu tinha esperado a semana inteira. Você sabe, precisamos ter alguma coisa pra nos fazer suportar a semana, cada vez que me frustrava, pensava comigo: “No sábado vô vê o Robs; a gente vai conversá e dá seqüência à missão”. Esse era o meu consolo semanal. E eu tava prestes a encontrar ele. - 48 -

Finalmente abri a porta da “biblioteca” (se eu tivesse narrando essa história cara a cara pra você, eu sinalizaria essas aspas, que acabei de usar, com os dedos. Sempre achei engraçado sinalizar aspas com os dedos, acho porque quase todos os caras que sinalizam aspas com os dedos são completamente sem graça). Pra variar, o Robs me surpreendeu outra vez. Ele tava sentado numa poltrona, pensando, com um livro a tiracolo. Sei que isso parece uma coisa natural pra se estar fazendo numa biblioteca, por isso mesmo, eu não esperava isso dele. Eu esperava encontrar ele temperando um peixe; escovando os dentes ou fazendo qualquer coisa que não se faz numa “biblioteca” (eu sinalizaria com os dedos novamente). Na minha concepção, o Robs era o tipo de cara que não ia a um restaurante pra comer; que não ia ao cinema pra assistir um filme. Na minha concepção, o Robs era o inesperado e, ali, sentado com um livro a tiracolo, ele provava isso definitivamente. - E aí, beleza? - Beleza, senta aí _ disse ele, conservando a mesma expressão distante. - Posso te perguntá sobre o que você tava pensando? - Se eu te contá, você não vai acreditá. Religião, era sobre isso que eu tava pensando (definitivamente, o Robs era o inesperado). Só então, percebi que o livro que ele tinha em mãos era o Tao Te King, do famoso pensador, filósofo, não sei ao certo como definir ele, Lao-tsé. - Religião? _ perguntei sem esconder a surpresa. - É. Nunca fui muito ligado nisso. Quando eu e a minha irmã era criança, nossos pais levavam a gente na missa; família católica, de origem irlandesa. - Minha família também é católica, mas não é de origem irlandesa. Bom, pelo menos, se diz católica, já que ninguém vai na missa. - Sabe de uma coisa, os pais não deviam forçá os filhos a irem na igreja, ao templo, seja lá o que for. Devia sê uma coisa livre, se o cara quisesse, ia buscá algo quando tivesse pronto, ou quando tivesse vontade... - O desespero de aproximá só acaba afastando _ falei. - Nada que é obrigatório é bom. Se fosse bom, não seria obrigatório... mas não era sobre isso que eu tava pensando. Eu comecei a pensá em religião quando eu tava pensando num dos combustíveis do capitalismo, vaidade. - Vaidade... _ disse, assentindo com a cabeça. - Sabe como é, “Eu quero ter um terno caro, um sapato caro, um carro último tipo...”. Vaidade, vaidade, vaidade. A indústria de cosméticos deve movimentá bilhões, o índice de cirurgias plásticas é estratosférico... - E você refletia que todas as religiões mandam a gente controlá a nossa vaidade, acertei? - É isso mesmo. Sabe _ disse ele com um sorriso estranho nos lábios _, eu olho pra essa merda toda e quase chego a achá engraçado, só não acho porque eu também tô atolado nela. Sabe como é? É como se você visse aqueles vídeo de família, sabe aquelas gravação casera? Pois é; você tá assistindo a um vídeo desses, o negócio é bizarro e, quando você tá quase morrendo de tanto ri, você se enxerga na gravação. Você se vê a uns sete anos atrás, e o que era engraçado se torna desconcertante. É assim que eu me sinto, eu olho pra essa piada desse mundo e sinto vontade de ri, mas aí eu me lembro que faço parte dele. - É... é interessante esse negócio filosófico que existe nas religiões, de certa forma, todas mandam a gente controlá nosso ego, que nos vejamos como iguais, de certa forma, todas são socialistas.

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- E eu olho pro mundo e vejo o quê? No ocidente, uma adaptação grotesca do cristianismo ao capitalismo; capitalismo e cristianismo são opostos, enquanto um diz: reparta; o outro diz: acumule. Como que isso funciona? “Jesus disse, ame o próximo, a gente faz isso aqui dentro da igreja, mas, lá fora, é cada um por si e Deus por todos; e se você quisé se destacá, ou melhor, se quisé sobrevivê, você tem que pisoteá o teu vizinho”. E no oriente? O pessoal entra no templo falando em desapego material, e como eles querem alcançá a iluminação? Saindo do templo e entrando num Toyota ou Honda e tirando um Nokia do bolso. Muita teoria, nenhuma prática. - Sabe, às vezes, quando eu pensava em fazê a Revolução, eu pensava se as pessoas tavam pronta, se elas realmente queriam mudá. E eu não falo só das camada alta, mas também das baxa que, supostamente, não iam tê nada a perdê. Eu não sei se elas iam consegui se vê como iguais, se iam consegui controlá a vaidade. Então, me perguntava se valia a pena. - Vale sim. Nem que seja só por mim, por você e pela Helena. Só por nós já valeria a pena; a gente não tem culpa se nasceu no mesmo mundo que eles. A gente tem o direito de querê alguma coisa melhor. Depois disso, a gente ficou um pouco em silêncio, o que ele havia dito tinha sido bastante forte. Eu sabia que ele não achava que era só eu, ele e a Helena que merecíamos um “mundo novo”, um mundo melhor, mas sabia que ele tava querendo dizer que era uma minoria. Na visão dele, a maior parte das pessoas conseguia se adaptar a um determinado “estilo de vida” e muitos até gostavam dele (tá, se você não entendeu, esse determinado “estilo de vida” é aquele puramente capitalista. Resumindo em pouquíssimas palavras, é o capital acima do humano) e o defenderiam. Pelo menos na minha visão, o Robs não achava que essas pessoas deveriam ser excluídas caso a Revolução ocorresse, ele só achava que elas não mereciam ela. Aliás, acho que agora cabe relatar algo. O Robs sempre sentiu uma certa mágoa em relação às massas; ele achava que elas já deviam ter revolucionado o mundo, mas, ao invés disso, permaneciam inertes. No fundo, a revolta dele era mais com a ignorância das pessoas, mas com freqüência ele dizia: “Ignorância... ignorância... isso não justifica. Até um animal sabe quando tá sendo maltratado. Pra mim, é covardia, só isso”. Tenho certeza que ele não achava que era só covardia, sei que ele sabia que a covardia não era sequer um dos motivos. Mas ele precisava extravasar de alguma forma. - Hitler, Mussolini, Roma, Alemanha, Napoleão... todos os grandes caíram por vaidade, todos sucumbiram porque achavam que nunca iam sucumbi _disse o Robs. _ O capitalismo vai ser o próximo. - A única coisa que me preocupa, é que o capitalismo se nutre da vaidade e a vaidade se nutre do capitalismo. Novamente houve alguns segundos de silêncio. O Robs sabia que o que eu tinha dito era um problema, e um problema sério. - Então é preciso vencê a vaidade _ disse ele consigo mesmo, como numa reflexão. - Você tá lendo Lao-tsé, é? _ falei, mudando de assunto. _ Não pensei que esse negócio de moderação combinasse muito com você. Nada de extremos... - E não combina mesmo. A moderação deve existi quando já tivé um certo equilíbrio... agora, a balança tá pendendo pra um lado, nós temo que sê o peso que faz pendê pro otro. Vamo pará de viajá um poco. Eu quero mostrá umas coisa pra você.

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Ele abriu uma gaveta da escrivaninha e pegou um caderno, era um típico caderno escolar, com uma típica capa de caderno escolar, nada de especial. Ele me mostrou um mapa (pelo menos era pra ser um) de um pedaço do bairro dele. - Olha, eu sei que tá horrível, mas aquelas planilhas bonitinhas, com aqueles cara indicando cada ponto com uma vareta, vareta não é o nome certo, esqueci o nome daquilo, enfim, isso é coisa de filme. Você vai tê que usá um poco de imaginação. Olha _ disse ele, apontando na folha _, isso aqui era pra ser um quadrado, e todos esses quadrados eram pra ser quarteirões. Beleza? - Beleza, não precisa exagerá, dá pra entendê. - Aqui fica a minha casa, e essa aqui é a butique da qual a gente vai fazê a “propaganda” (ele não sinalizou estas aspas com os dedos). Não sei se é coincidência, mas essas loja ficam bem próxima uma da otra. São sete no total, como eu já tinha falado (ele tinha mencionado isso ao telefone). A gente pode se separá, você pode pegá essas três, que ficam meio agrupada, e eu posso pegá essas quatro. Também pode ser ao contrário se você preferi. - Pra mim, tanto faz. Não importa quem vai pichá mais, desde que a coisa saia bem feita. - Beleza então. Não tem nenhum vigia, a segurança é por monitoramento eletrônico, só aparece alguém se quebrá a vitrine ou arrombá alguma porta; não tem câmera externa; a partir da meia noite, o bairro fica parado, mas, pra garanti, é melhor a gente í lá pela uma e meia. O que que a gente vai escrevê mesmo? - Só “Compre na Elegance”. Claro, objetivo e mais seguro pra gente, por sê uma mensage curta. O Robs deu um risinho que, confesso, fez surgir em mim uma espécie de medo. Aquela foi a primeira vez que eu vi ele sorrir daquele jeito. Era um sorriso sem som, no qual ele mal mostrava os dentes, mas que me deixava mais apavorado do que qualquer gargalhada diabólica. - Sabe _ disse ele _, ia ter uns retardado que iam falá que o que a gente tá fazendo é vandalismo, que não é certo. E vendê pele e coro de um monte de animal que podia tá vivo é certo? Tá, não quero confundi as coisa, não é por isso que a gente vai pichá, pelo menos não principalmente, a gente não é o Greenpeace. Pra mim, fazendo isso, é como se a gente acertasse a vaidade; como se a gente acertasse a futilidade e também a estupidez, porque uma não anda sem a otra. Ia ter um monte de gente que ia falá que isso é bestera, mas a gente só tá dando o primero passo; por enquanto, é só um manifesto simbólico... - Claro. A coisa ainda vai aumentá (realmente aumentaria), mas é preciso começá de algum ponto. - É, e ainda por cima não é uma coisa sem sentido. Imagine, você tem uma loja e, de repente, o nome do teu concorrente aparece pichado na frente dela. Você ia ficá intrigado, não ia? - Certeza! E imagine pro dono da loja que tem o nome pichado nas otras... O Robs riu, dessa vez não foi igual aquele riso que eu tinha mencionado, e falou: - Vai sê desconcertante. É óbvio que, no começo, qualqué suspeita vai caí em cima dele. - E, no dia seguinte, quando ele ou ela soubé do que aconteceu, vai ligá pros dono das otras loja: “Não sei o que aconteceu, foi um mal entendido...” - Aposto que alguém vai xingá o cara. Quem sabe, até processem ele...

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O Robs tava muito otimista com essa história de quem “sabe até processem”, mas a empolgação era natural. Que a suspeita ia cair em cima do dono da loja, isso ia. Mas a falta de sutileza ia ser até um álibi. Quando os donos das outras lojas parassem pra pensar, veriam que o sujeito teria que ser muito estúpido pra pichar o nome da própria loja e assumir a culpa. Sei lá, talvez nem se dessem conta disso... - Eu quero te mostrá otra coisa. Chega aí no quarto. Fomos até o quarto. Ele abriu um pequeno armário e tirou dois pares de botas pretas (espécie de coturno). - O que que cê acha? Essas são tua. São de coro, sem nenhuma marca, comprei num negócio tipo uma sapataria, trabalho artesanal. Esta aqui tem o cano mais curto, é mais leve e melhor se a gente tivé que corrê, então, é melhor você usá ela no dia que a gente for pichá, mas é você que decide. Eu fiquei um pouco surpreso, mais gostei das botas. - Brigado, cara, valeu mesmo... - Calma aí, tem mais coisa. Ele abriu o guarda-roupa, pegou um cabide e colocou em cima da cama; eram roupas pretas. - O que que cê acha? Pode ser tipo um uniforme, cada vez que a gente for fazê uma coisa... claro que não vai ser obrigatório... comprei o tecido e mandei fazê as ropa, também sem nenhuma marca, sem nenhuma etiqueta. - Eu gostei... gostei sim... - Essas são tua também. Peguei as roupas pra examinar mais de perto. A calça era inteira preta, bem simples. A camiseta tinha um pequeno emblema em vermelho, na altura do peito, só que mais pra esquerda. Era aquele “A” dentro de um círculo, que se tornou a marca símbolo da anarquia e de alguns movimentos. - Você que fez? _ perguntei, me referindo ao emblema. - Não, sempre fui descoordenado pra essas coisa, foi a Helena. - Então, ela já sabe de tudo? - De tudo não... eu falei alguma coisa pra ela. Mas isso não tem importância. - Tá certo. Achei bem interessante essa tua idéia; dá a impressão de uma coisa mais organizada. - É. É bom organizá. Apesar de ainda ser só nos dois... falando nisso, e aquele cara que tinha ligado? Não ligô mais? - Não, não. Até agora não. - Estranho. - É, também acho. - Mais tarde, vamo dá uma conferida nas coisa; vamo saí pra vê os lugar e defini bem certo. - Beleza, é melhor ter uma noção boa de como vai ser. - Enquanto isso, o que será que a gente faz? Vamo jogá um pôquer? - Pode ser, a Helena queria uma revanche mesmo. - Como você pode vê, aqui em casa tem muita opção de diversão, ou é pôquer, ou é pôquer. - Que isso, melhor que assisti televisão. - Certeza. Vamo vê se a Helena vai querê jogá.

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A Helena tava no quarto dela, assistindo TV. Ela ficou bastante animada com a idéia de jogar baralho e, como de costume, trouxe as moedas; eles não tinham jogado mais depois daquela noite. Repartimos as moedas entre nós, novamente, cada um ficou com 15. Tudo corria normalmente até que o Robs soltou uma “bomba”; na medida do possível, me habituei com isso (na verdade, se habituar com isso é até algo meio impossível, é como dizer que você se acostumou com um choque elétrico, por exemplo. Se a sua profissão envolve eletricidade, você pode se acostumar a levar um choque, mas não com o choque em si; um choque sempre vai produzir o mesmo efeito em você, mas levá-lo pode se tornar algo mais natural. Ou seja, se habituar com as “bombas” do Robs era algo meio impossível, mas cabei me acostumando a recebê-las). - Prometeu, a Helena disse que te achô bonito... - Cala a boca, Robs. (Meu cérebro processando informação; sei que você deve tá de saco cheio desse negócio de “parada em que o cérebro processa informação”; mas elas ocorrem, garanto que ocorrem. Podem ser alguns segundos ou até uma fração de segundo, mas, se algo é realmente surpreendente, você demora pra digerir. Tá, não deu tempo de formar frases na minha cabeça, mas, se desse, seriam: “Eu ouvi direito?” (sei que parece clichê, mas essa frase ia se formar); “Ele falô que a Helena gosta de mim?” (talvez, nesse momento, eu teja duvidando dele); “Será?” (esse “será” engloba tanto o “ouvi direito” quanto à possibilidade de ele estar mentindo); no final, encerra-se com uma interjeição: “Caralho!” ou “Caraca!” (obs: usaria caraca se o livro fosse de palavrão disfarçado). - Mas ela falô que não é só isso... ela disse que você tem alguma coisa especial. - Pare! Se você não pará eu paro de jogá. - Tá vendo como ela tá irritada, é porque eu tô falando a verdade. A Helena fez menção de se levantar. Eu não sabia o que fazer, esse tipo de coisa é meio embaraçosa; eu devia tá com uma cara igual a do sujeito que esquece de trancar a porta do banheiro e é pego sentado no vaso. - Tá bem, tá bom. Eu paro, eu paro _ disse o Robs quando percebeu que ela tava saindo. Depois disso, o jogo seguiu num clima meio estranho, um silêncio intenso. Acho que o ambiente tava realmente como deve ficar depois de uma bomba de verdade. Eu sabia o que tava acontecendo (quer dizer, sabia mais ou menos), o Robs só queria observar o nosso comportamento, o passa-tempo favorito dele era observar o comportamento das pessoas diante de situações inusitadas. O que de certa forma é um pouco compreensível, já que ele estudava psicologia. Mas eu não podia saber se ele tava falando a verdade, se aquele negócio da Helena ter dito aquelas coisas não era só invenção dele pra testar a gente de alguma forma meio doida. Mas, independente disso, eu não gostava nenhum pouco de ter um comportamento induzido, de me encontrar numa situação manipulada. De repente, outra bomba. - O Prometeu falô que você até que é ajeitadinha... só que não tem bunda. - Eu já falei pra você calá a boca, Robs! Não tem graça _ disse a Helena, um pouco exaltada. Eu não falei nada pra ele com a minha boca, falei com os meus olhos. Tenho certeza que naquele olhar ele ouviu mais coisa do que já tinha ouvido na vida inteira. Continuei com o olhar firme, fixo, sem a vacilação que ele esperava, até que ele teve que desviar os olhos.

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- Eu gosto do teu senso de humor, Robs _ falei (o tom da minha voz era algo que discrepava completamente da minha frase. Era algo que não combinava, como o papa contando uma piada ou um apresentador de telejornal usando camisa regata). Novamente silêncio. Acho que o Robs também tinha sido afetado de alguma maneira, não se via mais toda aquela segurança até um pouco arrogante (aliás, isso era uma coisa extremamente rara de se ver, o Robs sempre foi muito seguro de si, sempre pareceu estar no controle da situação. Se ele fosse espancado por um cara, era como se ele caísse e dissesse: “Tudo bem, agora tô caído no chão; exatamente onde eu queria tá, eu só usei um babaca como você pra me ajudá”. Parecia que ele nunca perdia realmente). Mas, pelo menos um dos objetivos ele tinha alcançado, venceu o jogo; fez com que eu e ela nos desconcentrássemos e ganhou a partida. O radicalismo dele foi aumentando de uma maneira surpreendente com o passar do tempo. Um dia, um certo tempo depois, ele me disse: “Essa porra de capitalismo não prega uma lei da selva? Uma coisa meio que de Maquiavel? Então, eu também tô na selva. Alguns são leões, alguns são antílopes. E eu? Eu tô no topo da cadeia alimentar, não, eu tô acima dela. Eu alcanço qualqué objetivo, não importa como. Não sô leão, nem antílope. Eu não tenho fome, mas eu sô um caçador; não preciso comê, mas preciso caçá”. - Vocês não ficaram bravos comigo, ficaram? A resposta foi o silêncio, e ele tornou a perguntar: - Tô falando sério... - Capaz! _ falei. _ A gente sabe que é só palhaçada tua. - E você, Gorda? - Você é muito chato, Robs. - Oh, desculpa, Gordinha _ disse ele, abraçando ela e dando um beijo na testa dela. O Robs era assim, o que ele precisava ser. Acho que essa é uma boa definição dele: ele era o que precisava ser. Era chato quando queria; carismático quando queria; grosso quando queria; simpático quando queria; persuasivo quando queria... (só uma coisa ele era o tempo todo, inteligente). Decidimos comer alguma coisa. Mas sem ir a lugar nenhum. Primeiro, achamos que o melhor seria pedir uma pizza mesmo, mas, depois de pensar um pouco, acabamos optando por comida chinesa. - Eu adoro comida chinesa _ disse a Helena, já de bom humor. Ficamos conversando até que o entregador chegasse. Eu insisti em pagar o pedido, mas acabou que eles não me deixaram pagar nada. Acabei achando aquilo meio constrangedor; mas ia ficar mais ainda se eu ficasse insistindo em pagar (mesmo porque, eu tinha certeza que eles não aceitariam). Depois de comermos (a propósito, a comida tava ótima; acabamos pedindo comida naquele restaurante várias vezes, viramos fregueses), eu e o Robs fomos dar uma verificada nos lugares. A Helena não perguntou nada quando saímos (acho que ela já sabia de alguma coisa). As lojas ficavam a poucos quarteirões da casa do Robs. As ruas não tinham nenhum movimento. Conversávamos alguma coisa banal, acho que falávamos sobre música (tínhamos um gosto musical parecido) até que ele falou: - É aqui que a gente vai se separá. Já que você vai ficá com aquelas três, eu vô te acompanhá pra te mostrá o trajeto. Não tem segredo, elas são bem próxima uma da otra... Caminhamos mais alguns quarteirões e logo as encontramos. Elas realmente não ficavam longe umas das outras. Uma delas ficava logo em frente à outra, e a terceira ficava a menos de um quarteirão de distância. O objetivo da nossa missão não parecia ser difícil, as - 54 -

ruas eram desertas. No caminho de volta, um sujeito veio na nossa direção e disse algumas coisas ininteligíveis, estava bêbado como um gambá (a propósito, de onde surgiu a expressão “bêbado como um gambá”? Os gambás bebem? Não sei, só sei que sempre quis usá-la e nunca tive uma boa oportunidade, finalmente, ela surgiu). Era um pobre coitado, desses que bebem porque acham que a única saída é esquecer dos problemas, como se essa não fosse uma fuga temporária. Enfim, voltamos pra casa. A Helena tava sentada na sala (na verdade, ela tava meio deitada no sofá), lendo alguma coisa. - Viu como a falta de TV já surtiu efeito _ disse o Robs. Acho que ela quis fazer de conta que não tinha ouvido o comentário, mas não conseguiu esconder um risinho. - Você não arrumô a cama pro Prometeu? - Não, mas eu já arrumo. - Não. Não precisa _ interferi _, eu não tô com nenhum poco de sono. - Você que sabe. Você não leva a mal se eu for deitá? Porque eu tô morrendo de sono. - Pode í; não vô exigi que você fique acordado até a hora que eu resolvê dormi. - Tá certo então. Boa noite. Boa noite, Helena, depois você arruma a cama pra ele? - Pode dexá... _ disse ela sem retirar os olhos do livro. Ela continuou lendo mais um pouco, como quem tá acabando um capítulo ou uma página, e então se virou pra mim. - Qué que eu prepare a cama? - Não. Não precisa ser agora. Ou melhor, pode dexá que eu mesmo arrumo. - Que isso? Pare de bestera. Qué pegá algum livro então, pra dá uma olhada até ficá com sono? - Não, brigado. - Senta aí. Eu sentei no sofá. Ela ficou um tempo calada, como quem analisa se realmente deve dizer aquilo que tá pensando, por fim, disse: - O Robs me falô o que vocês querem fazê. - É? E o que que você acha? - Eu já avisei os donos das lojas, eles disseram que vão ficá alertas. Por um momento, achei que pudesse ser verdade. Mas a Helena tinha herdado do irmão aquele excêntrico (não sei se excêntrico é realmente a palavra certa) senso de humor, que consistia em surpreender sempre que possível. - Tô brincando! _ disse ela. _ Mas não sei ao certo o que eu acho. - É, não é fácil se desligá de algumas coisas... eu mesmo cheguei a pensá que fazê isso podia sê errado. Eu não quero te dá nenhuma lição, mesmo porque, eu não sei se isso que a gente qué fazê é certo, mas você tem que vê as coisas sob o teu ponto de vista; não da forma que te ensinaram a vê até hoje. Eu não tô dizendo que você não tem opinião própria... - O que que você tá querendo dizê então? - Eu tô querendo dizê que é preciso reformulá a nossa opinião própria. O Tio Patinhas, por exemplo. - O que que tem o Tio Patinhas? _ disse ela, rindo. - Pra você, ele é bonzinho ou malvado, mocinho ou vilão? - Bonzinho.

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- Será? O cara é um porco avarento, mergulha nas moedas de oro, mas não gasta com nada. Só pensa em acumulá, acumulá... Aquela moeda da sorte, ou moeda número 1, sei lá; pra ele, aquela moeda tem mais valor do que os próprio sobrinho. Você assistia Duck Tales? - Assistia sim. Por quê? _ disse ela com os olhos meio arregalados, parecendo meio assustada. - Você tem certeza que qué que eu continue? Não tá achando muita locura? - Não, não. Continue. - Então tá, Duck Tales era um dos meus desenhos favoritos, eu torcia pela turma do Tio Patinhas, você não torcia também? - Nossa, eu adorava Duck Tales! Na minha infância, eu ficava me entupindo de Doritos, Ruffles... e assistindo desenho. Lembra do Capitão Boing? - Lembro sim. Rimos um pouco. Eu tava querendo falar mal dos desenhos animados, mas a verdade é que sempre conservamos uma simpatia por eles (e, lembrando do Capitão Boing, ela pegou pesado). - Tá. Dexa eu recuperá a linha do meu pensamento. A verdade é que, talvez tirando o Capitão Boing (convenhamos, o Capitão Boing é um personagem carismático), aquela turma não presta. - Por quê? _ disse ela num tom mais de decepção do que de surpresa. - Pense comigo, o que eles fazem? Viajam pelo mundo todo, robando os tesouros dos povos nativos, será que isso é certo? Eles são um símbolo do capitalismo, do neoliberalismo. Eles representam as indústrias multinacionais, as transnacionais, que se instalam em diversos países e robam as riquezas destes povos. Ensinam as crianças a gostarem disso, a torcerem por isso; mas será que isso é certo? Ela ficou com uma cara meio triste. Com cara de criança que descobre que Papai Noel não existe. Eu confesso que me senti um pouco culpado. Sempre pensei se o melhor era viver numa realidade dura, ou numa espécie de ingenuidade alienada. Até hoje não sei. - Eu não sei nem se o que eu te disse é verdade, não sei se os personagens do Duck Tales são malvados; não sei se é realmente dessa forma que eles agem, ou, se agir dessa forma é errado. Só acho que você deve formá a tua própria opinião, você deve decidi quem é mocinho e quem é vilão. Ninguém deve fazê isso por você. - Eu nunca tinha pensado desse jeito... _ disse ela. Ficamos um pouco em silêncio até que ela disse: - Aquilo que o Robs falô é verdade? - O quê? Esse “o quê?” foi uma pergunta retórica, mas não foi uma daquelas perguntas de assimilação em que se frisa a última palavra até “cair a ficha”. Foi uma pergunta pra ganhar tempo. Eu já sabia a resposta, ou melhor, já tinha quase certeza de qual ela seria; mas com esse “o quê?”, o meu cérebro ganhou mais alguns segundos pra analisar a situação. - Aquele negócio de eu não tê bunda _ disse ela, visivelmente constrangida. Que família! Já não bastavam as “bombas” do irmão, agora ela mostrava seu arsenal. Você deve ter pensado: “Mas, se você já sabia qual seria a resposta, deve ter tido tempo pra formular a contra-resposta”. Lembremos que o meu tempo se resumiu a míseros segundos. E o negócio é que sempre há aquela dúvida na cabeça da gente. Expressando de uma forma bem besta (bem besta mesmo!), digamos que esses segundos que eu ganhei tenham sido gastos num diálogo entre os meus neurônios. Um falou pro outro: “Nossa, uma dinamite!”; o outro argumentou: “Não, é só uma vela colorida”. O primeiro insistiu: “O pavio de velas não - 56 -

queimam desse jeit...” Antes que o neurônio acabasse a frase, a dinamite explodia nas minhas mãos. O que eu diria pra ela? “Eu devia saber que pavios de vela não queimam daquele jeito?” (é óbvio que tô brincando, mesmo porque, como já disse, esse negócio do diálogo entre os neurônios foi só uma expressão figurada) (não sei por que dei essa explicação ridícula, quem acharia que realmente houve um diálogo entre os neurônios? Me desculpe, eu não tava duvidando da tua inteligência; é que inteligência foi o que me faltou). - Claro que não. Você devia sabê que ele tava inventando. - É que o que ele falô que eu tinha dito sobre você era verdade. Nova explosão! Outra “bomba” ou “dinamite”, ainda mais inesperada do que a primeira e, como conseqüência, ainda mais devastadora. Eu não sabia o que dizer. Então, seguiu-se aquele habitual silêncio, que não é só constrangedor, mas que se torna incômodo. - Acho que eu vô prepará a tua cama _ disse ela se levantando. - Eu te ajudo a pegá as coisas. Ajudei ela a carregar o colchão. Depois, ela trouxe a roupa de cama. - Pode dexá que eu arrumo _ me dispus. - Que isso?! Você é o hóspede. Ela preparou tudo sozinha, não me deixou fazer nada. - Eu acho que eu não devia ter dito aquilo. Só serviu pra dexá a gente constrangido... _ disse ela. Eu me aproximei dela. Afaguei um pouco seus cabelos, passei alguns fios por trás de suas orelhas e, enfim, beijei seus lábios. - Ninguém precisa se constranger por ser sincero; ninguém precisa sentir vergonha do que é bonito. Agora, vá dormi, sem constrangimentos (sei que essa frase ficou meio estranha, parecia que eu era um sábio dando um sermão, mas, sei lá, foi um negócio espontâneo). Boa noite. Dei mais um beijo nela. Ela só respondeu: “Boa noite!” e foi deitar. Acho que ela ainda tava surpresa com aquilo tudo. Assim como eu. Mas, como eu disse no início desse livro, improvisar e adaptar são duas coisas indispensáveis nas nossas vidas. Aceite isso. As coisas não saem como você espera, e, se saíram até agora, um dia, não sairão. Por isso é preciso improvisar e adaptar. O improviso é uma coisa natural, alguns o dominam, outros não. Eu sempre improvisei bem, muito bem (se você tá me achando um convencido, você não é a pessoa mais inteligente do mundo, não tá nem entre as cinco, porque desde o início eu deixei claro que a franqueza ia ser a base deste livro. Provavelmente, através dessa narrativa até este ponto, você já encontrou vários defeitos na minha pessoa, não é verdade? Sei que parece incrível, mas eu também sei fazer algumas coisas direito, os mais generosos chegam até a chamar isso de “qualidades”). O Robs dizia que dava pra separar as pessoas em: aquelas que se adaptam às coisas, e aquelas que adaptam as coisas a elas. “Os fracos _ dizia ele _ se adaptam porque não têm corage de enfrentá desafios, porque são covardes. Os fortes transformam aquilo que é incômodo até que se torne confortável. Enfrentá ou acovardá, essa é toda a diferença”. Tá, não vou me dispersar mais. Eu estava prestes a escrever que havia sido naquela noite que havia começado o meu relacionamento (digo, relacionamento conjugal) com a Helena, mas, por sorte, ponderei melhor. Nosso relacionamento começou no primeiro momento em que nossos olhares se cruzaram. Esse negócio de que um namoro começa com um beijo é uma convenção ocidental (sei lá se é só ocidental, mas eu quis colocar assim; achei que ficava bem), uma besteira.

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Mas não vou enfocar muito meu relacionamento com ela. Por quê? Porque eu não quero, há alguma razão melhor? Se você esperava que ia ter início um romance meloso, me desculpe. Isso não combina comigo. Na minha vida, tudo sempre foi muito seco, muito cru. Qualquer romantismo sempre foi abafado por uma realidade “depravada” (se você não pegou, estas aspas, as quais eu sinalizaria com os dedos, foram usadas pra deixar claro que a palavra está no sentido metafórico) (não sei por que dou estas explicações bestas, é claro que você tinha entendido). Eu queria narrar esse início, essa formação de vínculos, principalmente entre eu, o Robs e a Helena, de uma maneira mais detalhada. Agora vou dar uma acelerada, vou expor as coisas de uma forma mais compacta, colocar o essencial. Mas, antes, gostaria de me permitir uma fuga. Para esclarecer algumas coisas futuras, vou usar algumas páginas pra narrar uma passagem da vida do meu bisavô. Meu bisavô chegava em terras estrangeiras, contando apenas com a inextinguível bravura. A convicções que trazia no peito eram a bússola que o guiaria em terras estranhas e, muitas vezes, hostis. Tô brincando! Desculpa aí, mas eu tava querendo fazer alguma palhaçada. Fala a verdade, te deu um desânimo quando eu falei que ia usar algumas páginas pra contar uma passagem do meu bisavô (sei que esse negócio tá esquisito e que você deve tá meio perdido(a), mas foi só uma brincadeira, não tem nenhuma história do meu bisavô). Tá bom, vamos voltar pra história, eu vou dar a tal resumida porque tô com preguiça de escrever muito (mas já começo a achar isso inevitável). A verdade é que eu tô com uma preguiça violenta de continuar escrevendo agora. Acho que eu vou dar uma enrolada (não se assuste, não é uma enrolada na narrativa; talvez acabe sendo), se você estiver com preguiça de continuar lendo, dê uma enrolada também. Você sabe como é, aquelas típicas enroladas que a gente dá quando tem que fazer alguma coisa chata (não tô sugerindo que escrever, ou ler, este livro seja uma coisa chata), tipo fazer um relatório. Pois é, se você estiver cansado(a), pára um pouco e vai comer alguma coisa (um biscoito, um pão, um bolo...), ou então vai tomar um banho, tomar um chá, um suco, um café... Já sei! Por que você não conta uma piada? É, tô falando sério. Aposto que você nunca contou uma piada enquanto tava lendo; uma piada pra um livro (bom, se você já contou, eu não quero dizer nada, mas... deixa pra lá!). Vai lá, não precisa ficar inseguro(a); eu já disse que eu não gosto de ter que ser “conveniente”, mas independente do “potencial hilariante” da piada, se eu tivesse aí com você, eu diria: “Essa foi ótima! (dando um sorriso espontâneo, ou, pseudo-espontâneo). Saiba que, no futuro, eu não vou dividir os meus leitores entre os que captaram alguma mensagem e os que não captaram; não vou dividir entre os que gostaram do livro e os que odiaram. Eu vou dividir entre os que contaram e os que não contaram a piada (como se você tivesse ligando pra minha divisão, mas conta, por favor, vai ser engraçado). Tá, sei que já tô insistindo demais. Se você não contou ainda, eu vou contar uma; depois, você conta a tua logo em seguida, lá vai: “Você conhece a piada do ursinho sem bunda? (eu presumo que você disse não, e respondo) Foi sentar e deitou (há quem classifique isso como piada). Chega de enrolar. Vou retomar a narrativa (se você contou a piada, obrigado e saiba que você está classificado entre “os que contaram a piada”, por mais que isso não signifique grande coisa). Na manhã seguinte, como eu havia sugerido, não ficou nenhum clima constrangedor entre eu e a Helena. Quando tive a oportunidade de ficar a sós com o Robs novamente, contei - 58 -

pra ele o que tava acontecendo. Ele manifestou uma espécie de apoio que beirava à indiferença. Eu e a Helena não tínhamos muitos programas de namorados. Algumas vezes (raras vezes), fazíamos alguma coisa só nós dois, mas, na maioria das vezes, saíamos nós três, eu, ela e o Robs; mas não nos incomodávamos com isso. Éramos uma família. Nossos vínculos foram ficando cada vez mais fortes com o passar do tempo, mas não quero me adiantar demais. Terminado aquele fim de semana, retornei pra pensão com um ânimo diferente. Se você se “ferra” demais a tua vida inteira, você descarta a possibilidade de que um dia as coisas possam melhorar, então, o realismo se confunde com um pessimismo melancólico. Digamos que eu tava envolvido por esse pessimismo melancólico, mas, de repente, as coisas começaram a dar certo. Eu pensei que aquele sujeito podia ter tornado a ligar, mas isso não aconteceu, nem mesmo durante a semana que se passou. A propósito, minha semana foi frustrante, uma droga mesmo, a única coisa que me fez suportar ela com mais tranqüilidade era a missão que me esperava no sábado. Mas agora as minhas idéias já vagavam à procura de uma nova missão. Me encontrei com o Robs algumas vezes durante a semana, cheguei até a ir na casa dele, assim eu aproveitava e via a Helena. A nossa missão era bem simples, portanto, não tinha muito o que esquematizar. Enfim, o fim de semana chegou. A Helena ficou com a gente até mais ou menos meia-noite e meia. Com certeza, ela tava muito mais nervosa do que nós, mas não se atreveu a sugerir que abortássemos a missão (por mais que não lhe tenha faltado vontade, suponho eu). Começamos a nos aprontar com calma. Era a primeira vez que eu vestia aquelas roupas (e tornaria a vesti-las várias vezes). O Robs certamente já havia experimentado elas, mas se vestir pra entrar em ação é outra coisa. Creio que aquele era o nosso ritual, vestir as roupas pra entrar em ação (mais tarde, quando o grupo aumentou, ficou bem claro que ninguém era obrigado a vestir aquelas roupas, mas ninguém, absolutamente ninguém, as dispensava). Colocamos os cordões nos coturnos (naqueles que tinham os canos mais curtos e eram mais leves, pra caso precisássemos correr) e apanhamos os sprays que eu tinha levado. Não faltava nada. Também levávamos um capuz no bolso, que colocaríamos somente quando fôssemos realmente agir. A Helena tentou parecer tranqüila, mas no “Tenham cuidado”, que ela disse quando saímos, havia uma tonelada de preocupação. Ao contrário, eu e o Robs permanecíamos tranqüilos; sempre fomos muito frios pra esse tipo de coisa, não sei qual de nós era o mais frio (sei que essa missão não era a mais arriscada, mas nós poderíamos desmontar uma bomba com a tranqüilidade de quem desmonta um Lego). Mais tarde, quando nosso grupo aumentou, nós dois continuávamos sendo os mais frios; ensinamos até meditação transcendental aos outros integrantes, pra que melhorassem o autocontrole. Mas, não tinha jeito, quando a situação realmente exigia frieza, éramos nós dois que resolvíamos o problema. Até hoje me pergunto por que éramos tão frios; concluo que era devido ao fato de não termos amor-próprio, não tínhamos nada a perder. Já havíamos experimentado o pior, acho que procurávamos pelo inferno, pela provação máxima; desafiávamos o mundo pra que mostrasse o seu pior, mostrasse algo pior do que já havíamos provado. Talvez você se pergunte, “o que vocês experimentaram assim de tão ruim?”. Nós experimentamos o pior e, tenho certeza, você também já experimentou, o tédio. Quando penso nos piores momentos da minha vida, não penso numa dor intensa, ou, numa grande - 59 -

decepção, pois nisso há sentimento, há vida, há experiência (talvez a palavra experimentação caiba melhor). Quando penso nos piores momentos da minha vida, penso nas tardes que passava deitado, olhando pro forro ou assistindo a um programa de auditório na TV (isso é o pior, isso é o maior crime que podemos cometer conosco e com toda a natureza humana; não estamos matando uma pessoa ou um milhão, estamos matando a própria vida). A pior coisa que podemos experimentar não é a extremamente desagradável, nem a extremamente gloriosa; a pior coisa que podemos experimentar é a mediocridade. Pior do que o calor infernal, pior do que o gelo glacial é o morno. É uma indiferença barata e, aparentemente, confortável, inerente aos medíocres. O Robs definiu isso bem uma vez: “Pior do que aqueles porcos capitalistas, do que esses que manipulam as massas, que detém as grandes corporações, que iludem as pessoas conscientemente; pior do que todos esses é aquele sujeito a quem você expõem tudo, absolutamente tudo, da forma mais clara o possível e no final ele fala: “Pra mim, tanto faz capitalismo, anarquismo ou comunismo; pra mim, dá no mesmo”. Cada vez que eu encontro um bosta desses _ dizia o Robs _, eu fico uma semana sentindo o fedor dessa mediocridade”. Tá, não quero me perder demais, eu dizia que a nossa frieza era devido a nossa ausência de amor-próprio, ao fato de termos provado o pior (o morno) e ao nosso domínio psicológico. Além disso (talvez isso se encaixe na ausência de amor-próprio), não estávamos nem aí pra nossa imagem, pouco nos importava o que os outros iam falar de nós; a opinião deles realmente não tinha relevância. “O resto do mundo _ dizia o Robs _, é só o resto. Eles são a produção em série, nós somos únicos. Eles são os coadjuvantes, nós somos os principais. Este mundo é nosso e de todos aqueles que souberem que também são únicos, e estes, um dia, vão acabar se juntando a nós”. Finalmente, retomemos a nossa missão (eu havia prometido ser mais direto e realmente serei, mas algumas escapadas são inevitáveis pra esclarecer melhor as coisas). As ruas estavam desertas. O único som que ouvíamos era o dos nossos coturnos tocando o asfalto. Aquelas lâmpadas amarelas dos postes pareciam um sol em miniatura, iluminavam pra caramba! “Maldita iluminação de bairro de burguês _ pensei”. Não trocamos quase nenhuma palavra até a hora de nos separarmos. Não era apreensão, era concentração. A seriedade, às vezes, se faz necessária. Antes de nos separarmos, conversamos um pouco. - Não tem mistério _ disse o Robs _, você faz o que tem que fazê e volta pra casa, provavelmente, você vai chegá primero. Não vai acontecê nenhum imprevisto. - E se acontecê? Eles são imprevistos porque ninguém prevê (argumentei, mas eu não tava com um pingo de receio, o negócio era mais filosófico). - A gente prevê os imprevisto, e você sabe disso. Dei um sorriso e falei: - Até daqui a poco. - Até! Agora era só eu. Enquanto caminhava, eu olhava ao redor. Ninguém. Comecei a achar que andar de madrugada era algo agradável. Trazia uma tranqüilidade meio peculiar, não sei descrever. Logo cheguei na primeira loja. Me certifiquei de que não havia ninguém por perto. Coloquei o capuz (devia ter feito isso antes, eu acho), tirei a lata do bolso, dei uma sacudida e escrevi. Fiz em letras grandes. Dei uma conferida, havia ficado legível. Não coloquei nenhuma vírgula a mais do que o necessário. A coisa se passou do mesmo jeito na segunda loja. Só aconteceu algo diferente na terceira. Eu tava no meio da frase quando senti uma presença atrás de mim. Por alguns segundos me senti completamente humano novamente. Parece que o meu coração bombeou - 60 -

todo o sangue do meu corpo, numa só batida, direto pra minha cabeça. Eu senti os vasos sanguíneos da minha cabeça se dilatando pra que uma quantidade anormal de sangue pudesse passar. Tudo isso foi muito rápido. Logo a imagem de um cachorro se formava na minha retina. Um cão de rua. Não conseguiria definir a cor dele nem durante o dia (quer ver cor difícil de se definir, olhe pra um cão de rua), imagine só à noite. Ele havia sido o responsável pelo meu susto. Sei que é uma coisa meio infantil, mas, na hora daquela raiva meio misturada com alívio, tive vontade de pichar o cachorro (não pichar ele inteiro, só jogar um pouco de tinta pra ele se afastar), mas consegui conter o meu ímpeto e me limitei a bater o pé no chão com um pouco de força, o que foi o suficiente pro coitado sair em disparada. Acabei de escrever a mensagem e dei uma conferida; tava perfeito. Retornei pra casa, onde a Helena esperava ansiosa. Ela me abraçou e a fisionomia dela passou de preocupada à aliviada, isso durou pouco tempo, e logo voltou novamente à preocupada, devido o Robs ainda não ter voltado. Expliquei a ela que era natural que ele demorasse um pouco mais, já que havia ficado responsável por quatro lojas e elas ficavam um pouco afastadas umas das outras. Não sei se foi por causa do nervosismo dela, mas acabei ficando preocupado também, até que, finalmente, o Robs chegou. Tudo tinha saído exatamente como o esperado. No dia seguinte, conferimos as lojas e ficamos bastante satisfeitos, não havia nenhum erro ortográfico (o que seria compreensível, tendo em vista que poderia haver um certo nervosismo na hora de pichar), tinha ficado legível e num tamanho bom. Ainda naquela manhã, antes que tomássemos café, antes que a Helena acordasse, o Robs sugeriu uma nova missão: - Você tem alguma idéia pra uma próxima missão? _ disse ele. - Eu tenho pensado, mas não consegui encontrá nada que fosse acessível (me referia ao dinheiro) e relevante. - Eu também andei pensando e achei que a gente podia prolongá um poco esse negócio de pichá, mas empregando de uma forma um poco diferente. Não sei se você vai gostá... - Fala aí. - Tem algumas figura aí na cidade, figuras ilustre, e todas elas têm algum podre. O prefeito, por exemplo, vive querendo bancá o “bom homem”, mas todo mundo sabe que ele trai a mulher dele com qualqué uma. - E o que que você pensô? - Eu pensei em torná isso desconcertante pra ele. Eu pensei em pichá no muro da casa dele: “Eu traio minha mulher”. - Tá aí uma idéia boa! - É, eu achei que podia sê relevante; e eu conheço mais alguns deslize do pessoal. É coisa besta, mas que constrange, que abala psicologicamente.

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IV Um dos passatempos do Robs (sei que não é nenhum pouco normal, mas, convenhamos, o Robs não se enquadrava como um sujeito normal) era assistir a julgamentos. Eu não acho que isso seja tão estranho assim, afinal, um tribunal é um bom lugar pra observar o comportamento psicológico das pessoas. Tá, mas não é essa a questão. O negócio é que, durante as sessões, o Robs observou um comportamento um pouco anômalo do juiz, esse comportamento não tinha muito a ver com psicologia. O juiz, durante o julgamento, perdia alguns segundos com quase metade do indicador “atolado” dentro do nariz. É isso mesmo, o Robs disse que parecia que o cara entrava numa espécie de transe, não se importava com as outras pessoas, às vezes, fazia isso com o tribunal lotado. Ele disse que chegava a ser cômico quando o juiz encontrava uma “meleca” um pouco mais teimosa. Ele também falou sobre um padre, da catedral, que tinha uma certa queda pelas bebidas (na verdade, ele falou que o cara era um bêbado mesmo). Dizem as más línguas (há a possibilidade de ser apenas uma lenda), que uma vez ele foi celebrar a missa completamente embriagado. Dizem que não dava pra entender quase nada do que ele dizia e, dizem ainda, que ele falou uma celebre frase: “Hoje vô acabá a missa um poco mais cedo porque vai passá um jogão na TV” (eu sei; eu também me recusei a acreditar nessa, mas demos boas risadas quando ele me contou). - 62 -

Ele também falou de um respeitado pediatra, casado, com três filhos, que seria pedófilo. Dizem que ele foi pego numa maca numa relação um pouco mais “íntima” com um dos seus pacientes. Os detalhes são tão sórdidos que eu prefiro me abster de me aprofundar mais no assunto. Há ainda a história do delegado que queria bancar o machão; sabe, o típico cara que pega pesado nos interrogatórios, que não admite gracinhas dos subordinados. Pois é, ele também era devidamente casado; também tinha filhos; não dava gargalhadas histéricas; não soltava agudos característicos quando levava sustos e não tinha as articulações do pulso excessivamente maleáveis; mas afirmavam que ele era bissexual. Dizem que concedia certas regalias aos presos que soubessem ser “gentis” com ele. Só falei tudo isso porque, uma semana depois da “propaganda” da loja, pichávamos no muro da casa do juiz: “Eu como meleca” (na verdade, ele só tirava a meleca do nariz, mas essa frase ficou mais impactante). No muro da casa do prefeito, colocamos: “Eu traio minha mulher”. Na clínica do nosso respeitável pediatra, pichamos: “Pediatria rima c/ Pedofilia”. Quanto ao nosso padre, que pregava um “jogão na TV”, escrevemos no muro de sua casa, que ficava ao lado da catedral: “Sou bêbado”, e, por último, o nosso delegado machão, pra ele, elaboramos um trocadilho (queríamos pichar na delegacia, mas aí já era brincar com a sorte, então, colocamos no muro da casa dele): “Prendo todos os pau no cu”. Sabíamos que essa missão era mais arriscada que a anterior, por isso, não nos separamos na hora de realizar ela. Nas frases mais curtas, um ficava vigiando enquanto o outro pichava, já nas mais longas, trabalhávamos em equipe. Não é muito fácil pichar uma frase junto com alguém, os espaços entre as palavras podem ficar muito grandes ou pode até faltar espaço. Pra superar esse problema, eu pichava a palavra que vinha na frente, começando a escrevê-la do final, assim, o espaço entre a palavra seguinte já ficava determinado e o Robs já podia começar a pichar. Nossas táticas funcionaram bem e novamente não tivemos nenhum problema. No dia seguinte, fomos ao tribunal assistir a um julgamento. Tava lotado, parece que era um caso relativamente importante. Quiseram barrar a nossa entrada, mas o Robs inventou alguma história, não lembro direito, lembro de ele ter falado: “Por favor, o senhor não tem esse direito; o senhor não sabe o que esse desgraçado fez comigo e com a minha família _ seguiram-se alguns gritos histéricos _ Oh, Deus! Oh, Deus!” (é incrível o que as pessoas fazem pra evitar um escândalo; pra sair de uma situação constrangedora, elas cedem a qualquer apelo). O segurança acabou deixando a gente entrar. Nossa atenção estava toda centrada no juiz; observávamos atentamente o comportamento dele. Certamente, ele havia visto a mensagem no muro da sua casa. Ele levava a mão em direção à narina (fiz questão de colocar “narina” aqui, parece ser um termo mais técnico do que nariz; e, sempre que você usa um termo técnico, parece que você sabe o que tá fazendo) e, nitidamente, hesitava, como se recordasse de algo. Quando isso acontecia, eu e o Robs não conseguíamos nos controlar e riamos abertamente. Todos nos olhavam com um olhar repreensivo, chegamos a ser ameaçados de sermos expulsos se não nos controlássemos. Sei que é meio improvável, mas acho que o juiz sabia do que estávamos rindo. Sabe como é, se você tá inseguro(a) quanto a alguma coisa, você se torna meio paranóico(a). Por exemplo (é um exemplo bem estúpido), você detestou o teu corte de cabelo, você sai na rua e acha que todos estão reparando e tecendo comentários. Se você parasse pra pensar por um segundo, concluiria que ninguém tá nem aí pra você, muito menos pro teu corte de cabelo (salvo ocasiões extremas). Mas, no caso do juiz, se ele desconfiou da gente, não tinha nada a ver com paranóia.

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Tudo bem, se os risos já serviam pra deixar o nosso bom e velho (você já parou pra analisar o termo “bom e velho”? Geralmente, o usamos com pessoas que não são boas, nem velhas. No caso do juiz, ele era relativamente velho, pelo menos) juiz constrangido, o que falar do que veio depois? Falando sinceramente, o que se seguiu foi algo que havíamos premeditado. O coitado não resistiu e acabou “atolando” o indicador no nariz. Foi nesse momento que o Robs gritou em alto (muito alto) e bom som: “Tira o dedo do nariz... (as atenções se dividiram entre o Robs e o juiz, que tava naquela situação constrangedora) ... Prometeu (concluiu ele, um longo e sugestivo tempo depois)”. Conforme o combinado, ele se voltou pra mim, e eu tava com o indicador na narina. Ninguém engoliria aquela. Todo mundo sabia que a gente tava sacaneando com o nosso saudoso juiz; mas o Robs ainda fez questão de complementar: “Tire esse dedo do nariz, caralho, o que que o juiz vai pensá de você?”. Em meio a alguns risinhos e a estupefação geral, nos levantamos das nossas cadeiras (a estagnação era tanta que nem os seguranças atinaram de nos expulsar) e saímos lentamente. Quando eu tava no meio do corredor formado pelas cadeiras, me virei, ainda com o dedo grotescamente “atolado” no nariz e falei: “Desculpe, meritíssimo, eu sô um sem modos mesmo”. Aquela cena foi pitoresca. Quando saímos do tribunal nos entregamos às gargalhadas. Éramos o cúmulo do inoportuno, do incômodo, do inconveniente (éramos tão incomodativos quanto uma grande e dolorida espinha no nariz, se é que você pegou a analogia barata). Sei que isso já seria o suficiente por um dia, mas, se nos apressássemos, ainda pegaríamos a missa. E conseguimos. Quando chegamos na igreja, a cerimônia já havia começado. Sentamos no fundo. Há muito tempo que não assistíamos a uma missa. E assisti-la me fez lembrar o quanto às vezes o tempo demora a passar (algumas vezes, eu concluo que o mundo tá às avessas (sei que, analisando bem, isto que eu vou expor não tem sentido) porque sempre as coisas chatas (me desculpe, mas, convenhamos, uma missa não é a síntese da diversão) sempre parecem demorar uma eternidade pra passar, e as agradáveis parecem passar num piscar de olhos. Deveria ser ao contrário, as coisas boas deveriam demorar uma eternidade e, aproveitando a deixa, o pão deveria cair sempre com a margarina pra cima). Eu e o Robs estávamos sendo engolidos pelo tédio (sinceramente, eu não ouvia mais o que o padre falava), quando finalmente chegou a hora pela qual tanto esperávamos. A hora de comungar. O padre apanhou o cálice (nesse momento, eu e o Robs nos levantamos) e levou até a boca. Enquanto ele tomava um demorado gole, eu gritei (essa era a minha vez de falar): - Chega! O meu grito ecoou pela igreja. Os fiéis se voltaram pra nós com uma cara de surpresa semelhante àquela que havíamos visto momentos atrás no tribunal, todos ao redor estavam completamente estáticos, enquanto eu e o Robs andávamos apressadamente em direção ao padre. - O que... o que... o que que que é isso? _ gaguejou o padre, com um espanto que chegava a dar pena. Tomei o cálice das mãos dele (ele estava atônito). Cheirei a bebida e provei um ínfimo gole (eu tava com um ar daqueles policiais de filme, que provam uma apreensão pra confirmar se é droga mesmo). - O que é isso?! O que é isso digo eu, padre! _ falei, ainda fazendo as palavras ecoarem pela igreja. _ O senhor havia nos dito: “Oito semanas e três dias sem pôr álcool na boca”. Como o senhor explica isso? _ disse, erguendo a taça com um ar inquisidor. - Eu nã... não sei do que você tá falando... - 64 -

- Qué dizê então que aquele negócio de ter substituído o vinho por suco de uva era só papo, é? _ completou o Robs. _ O senhor havia nos garantido isso na última reunião. E agora? O que que eu vô falá pro nosso grupo de ajuda? - Que grupo? _ disse o padre com cara de quem ia ter um piripaque. - Já chega, Robs, acho que é o suficiente, vamo embora. Quanto ao senhor, padre, quando o senhor realmente assumi que tem um problema, o nosso grupo estará esperando de braços abertos. Força de vontade e fé, esse é o caminho _ disse me retirando. - Aleluia! _ gritou o Robs como conclusão. Se realmente existia inferno, sabíamos que estávamos fadados a parar lá depois do que aconteceu na igreja, mas, se isso acontecesse, pelo menos, seria uma coisa intensa. Não seria aquele morno mórbido que já não conseguíamos suportar. Assim que saímos da igreja, rimos e parabenizamos um ao outro pelas atuações. Não éramos mais a inércia, o comodismo e a alienação. Éramos o cúmulo do inoportuno, do incômodo e do inconveniente (a dor de cabeça que gerávamos era muito mais intensa do que a de um vinho suave vagabundo) (caramba! Tô me superando, essas analogias são mais mal feitas do que as piadas deste livro) (se você não pegou, essa última analogia foi uma piada, porque eu falava de “analogias”, fazendo uma analogia; e, se a piada foi horrível, o que dizer das analogias, que eu afirmei serem ainda piores). Eu já disse que não gostava de transportes coletivos, mas, dessa vez, pegamos um ônibus. Conversamos um pouco, relembrando tudo que tinha acontecido. De repente, ficamos em silêncio. Eu olhei pela janela, vi uma matilha e comentei com o Robs: - Essa cidade deve tê mais cachorro do que gente. Aquele dia que a gente tava pichando as loja, um quase me matô de susto. Tive vontade de pichá o fuço dele... Fiquei um pouco meio que refletindo, meio que olhando o nada, até que surgiu uma idéia na minha cabeça. - Acho que acabei de tê uma idéia pra uma próxima missão. Cachorro garotopropaganda. - Cachorro garoto-propaganda? - É. Ou cachorro-propaganda, ou ainda, cachorro antipropaganda. - Não leva a mal, mas acho que ainda não entendi o que você tá querendo dizê. - Pega a Hugo Boss, por exemplo. Pra fazê propaganda de qualqué coisa, eles vão metê aqueles cara de boa aparência, físico atlético... Por quê? Pra gente associá a marca a eles. Agora, se a gente escrevê: “Hugo Boss”, num cachorro, o pessoal vai associá a marca a um cão de rua. Ainda que não associem, vai ficá um negócio irônico. - Tá aí, gostei da parada. Mas como que a gente vai escrevê nos cachorro, o que que a gente vai usá? Não dá pra chegá e pichá um cachorro... - Pois é, sei lá. Depois de pensar um pouco, falei: - A gente pode usá tinta pra cabelo. Se não faz mal pro coro cabeludo, não vai fazê mal pros cachorro. - Beleza então. É só a gente comprá a tinta e arranjá uns cachorro. Antes de eu fazer um breve resumo sobre o episódio com os cachorros, devo relatar o que aconteceu alguns dias depois do ocorrido com o padre e com o juiz. Quanto aos outros (o pediatra, o delegado e o prefeito) a gente não podia fazer nenhuma “averiguação” e, se podia, nós achamos melhor deixar pra lá. Eu tava saindo do pensionato, precisava resolver algumas coisas na universidade, quando o orelhão tocou. Eu já tinha passado por ele, mas resolvi voltar e atender: - 65 -

- Alô? - Alô, eu queria falá com o Hermes. - Hermes? (demorei uma fração de segundo pra recordar que eu era o Hermes). É ele mesmo, pode falá. - Ah, então eu consegui decifrá a mensage do cartaz. Pois é, eu liguei aí faz um tempo, mas você tinha saído. Depois eu precisei viajá... mas isso não vem ao caso. No cartaz, você dizia que tinha uma mensage, e aí? - Eu acho melhor falá pessoalmente. Você conhece aquele barzinho próximo ao HSBC e à universidade? - Aquele que tem música ao vivo? - Esse mesmo. Você pode aparecê lá? - Posso sim, que horas? - Às sete tá bom pra você? - Beleza. - Você tem relógio de pulso? - Tenho sim, por quê? - Que horas ele tá marcando? Exatamente, sem arredondá. - São 3:37. - Então atrase 3 minutos, no meu são 3:34; sabe como é, a gente marcô às sete em ponto... Houve aquele silêncio do outro lado da linha, deixei que ele durasse um pouco até que falei: - Tô brincando, tô brincando. Não sô tão loco assim (de certa forma, eu havia emprestado essa do Robs). - Achei que você tava falando sério. - Até às sete então. - Até. Fiquei segurando o telefone por uns cinco segundos e falei: - Por que você não desligô ainda? - Não sei, acho que tava esperando você desligá. - Você ligô pra mim, eu tenho a preferência (me referia à preferência de desligar por último; eu confesso, tinha inventado essa na hora). - Tá bom, até mais. - Até! Ele finalmente desligou. Eu resolvi deixar pra lá aquele negócio da universidade e fui até a casa do Robs. Achei melhor irmos juntos encontrar o sujeito. O Robs não tava em casa. Tava só a Helena. - Você veio vê o Robs? _ disse ela depois de me dar um beijo. - Você, é claro; e o Robs também. - Sei, você só vem aqui por causa dele. Não dô dois minutos você vai perguntá, “O Robs tá por aí?”. - O teu irmão tá por aí? Viu, foi diferente. - Ah, ah... muito engraçado. Você é o comediante do ano. - Que malvada! Eu sei que eu não sô o cara mais engraçado do mundo, não tô nem entre os cinco, mas não precisa me sacaneá. - Não adianta enrolá, na verdade, você qué sabê do Robs, né?

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- Eu quero; na verdade, eu preciso. Mas não precisa ter ciúme, ele é teu irmão, ia ser pior se fosse irmã... Eu sempre gostei de ficar sozinho com a Helena (me poupe de insinuações) (nada contra o Robs também, mas, às vezes, eu gostava de ficar só com ela) (se você insistiu com as insinuações... bom, nem vou dizer nada), mas, dessa vez, eu não parava de olhar o relógio. Tava com receio de que ele não chegasse a tempo. Mas finalmente ele chegou. Mal teve tempo de entrar em casa, já fiz ele sair. Disse que explicava no caminho. Contei toda a história pra ele; ele ficou meio animado. Chegamos no bar uns quarenta minutos antes das sete. Ficamos tomando cerveja, falando bobagem e relembrando a primeira vez que havíamos nos encontrado ali. Não demorou muito e um sério candidato a ser o cara que tinha ligado entrou no bar. Deu aquela tradicional olhada em volta, procurando por alguém. - O que vocês combinaram como identificação? _ perguntou o Robs. (Parada em que o cérebro analisa uma merda que fizemos, em seguida, uma interjeição que sintetiza essa merda): - Caralho! Esqueci de combiná isso... - Relaxa, pelo jeito que o cara olhô em volta, é a mesma coisa que ele tivesse segurando um cartaz: “Sou o cara do orelhão”. A não ser que ele tenha marcado algum encontro por aquelas parada de “disque namoro” ou namoro virtual e teja procurando alguém. É, realmente, aquelas olhadas dele beiravam à indiscrição. Devia tá meio aflito porque, provavelmente, havia lembrado que tínhamos esquecido de combinar uma identificação. Chegou a olhar pra mim e pro Robs, mas era impossível ele tirar uma conclusão (acredito que ele procurava por uma pessoa jovem, em idade universitária, e essa era a faixa etária de quase todos os freqüentadores do lugar). Esperamos mais um pouco, ficamos observando ele mais algum tempo, até que o Robs disse: - Definitivamente, é ele. - Também acho. Vamo passá pra fase do guardanapo? - Vamo. Bom, eu sei que havia me comprometido a dar uma resumida (e, por incrível que pareça, estou resumindo), mas acredito que devo pôr algumas das possíveis mensagens que pensamos em colocar no guardanapo. Enquanto esperávamos chegar o horário combinado, levantamos estas hipóteses (se você não quiser ler, não precisa; pode pular esta parte que não perderá nada relevante pra história, ainda assim, elaborei esta lista porque considero algumas das possíveis mensagens um tanto cômicas). Segue-se a lista das “possíveis mensagens” a serem colocadas no guardanapo, e entre parênteses o respectivo autor. Todas continham a mesma introdução: “Mensagem de Hermes para você (que seria o suposto segredo que eu teria para revelar)”: 1 – “Oi” (eu). 2 - “Extintores são vermelhos” (Robs). 3 – “Tenho uma bicicleta” (eu). 4 – “Meu nome é Hermes” (eu). 5 – “Não tem mensagem nenhuma” (eu). 6 – “O que leva você a vir encontrar um cara chamado Hermes?” (Robs) (os Hermes que me desculpem, essa idéia foi dele).

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7 – Crio aqui um conjunto, no qual se encaixam desde “vai pra puta que o pariu” e vai tomá no teu cu” até “vai catá coquinho” e “vai plantá batata” (Robs e eu). 8 – “Teu cadarço tá desamarrado” (Robs). 9 – “Hoje é sexta-feira” (Robs). 10 – “Gelo ajuda a retirar chicletes grudados em roupas” (eu). 11 – “Coma verduras e frutas 5 vezes ao dia e beba de 6 a 8 copos de água” (Robs). 12 – “Tudo que sobe tem que descer” (eu). 13 – “Filie-se ao grupo gay, se você leu esta mensagem, é porque aceitou” (Robs). 14 – (sugestão do Robs) “Escreva um monte de rabisco sem sentido, pra ele achá que é um código ou que tá em otra língua”. Tudo bem, essas foram algumas das hipóteses que formulamos, já um pouco embalados pela cerveja. Acabou que chamamos o garçom e pedimos que ele entregasse o guardanapo ao sujeito com a seguinte mensagem: “Parabéns, você foi o primeiro a cair na nossa brincadeira; não há mensagem alguma. Pode ir embora”. Se ele fosse realmente o sujeito que tava me procurando, seria uma mensagem louca, se não fosse, seria mais louca ainda. Ele ficou um tempo olhando pra aquele guardanapo, meio desolado. Até que, após uma última olhada ao redor, ele fez menção de ir embora. Se levantou e tava saindo, como teria que passar perto da nossa mesa pra chegar à saída, esperamos um pouco. - Relaxa aí, cara _ disse o Robs. Ele olhou pra gente com uma cara que equivalia a uma indagação, então, falei: - Você tava procurando pelo Hermes? - Tava sim. - Então, você encontrô. Aquele negócio do guardanapo foi só uma brincadera besta. Senta aí. - Sacanage, hein! Eu já tava caindo fora _disse ele, esboçando um sorriso. - Foi mal _disse o Robs _, a gente gosta de fazê essas brincadera meio doida. Explicamos pra ele tudo que tava se passando. Tudo que havíamos feito (o que não era muita coisa), nossa próxima missão e nosso principal objetivo. Ele pareceu ter gostado do que ouviu. O Indy também não era um sujeito normal (“Indy” é uma abreviação de Indiana Jones, este era o codinome dele dentro do nosso grupo, vou explicar melhor esta história mais adiante. Quanto a eu dizer que ele não era um sujeito normal, não considero isso um comentário negativo, pelo contrário, analisando o que se tem como normalidade atualmente, considero até um elogio). Ele não tava cursando nada no momento, mas já tinha cursado um pouco de várias coisas: engenharia química, engenharia de computação, sociologia e parece que tinha alguma outra coisa que não consigo me lembrar. Ele deve ter gastado uns três anos nesse rodízio de cursos, os pais dele quase enlouqueceram. Agora ele tava há um ano longe das universidades; tava se revezando em empregos, chegou a ter três ao mesmo tempo. Já havia trabalhado desde em farmácias e hospitais até açougues e supermercados. Ele queria aprender um pouco de cada coisa. Saber um pouco de tudo. Também era um hacker, contou com orgulho os sistemas que já havia invadido. Eu e o Robs fizemos uma cara de surpresa e assentimos com a cabeça. Eu não sabia merda nenhuma do que ele tava falando e, mais tarde, o Robs me disse: “Que porra era aquela que ele disse que tinha invadido? Não conheço nada daquilo”. O Indy tinha uma caminhonete. “Os utilitários são mais úteis (disse ele, fazendo um trocadilho horrível)”. Eu e o Robs não achamos graça nenhuma, mas demos uma risadinha

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por piedade. Mas a verdade é que o carro dele realmente veio a ser muito útil, já na nossa próxima missão. Explicamos pra ele quais eram os planos e ele gostou da idéia. Acabamos concluindo que aquela missão deveria ser feita aos poucos; ninguém tinha um espaço pra conservar os cães de rua (o Indy morava numa espécie de apartamento), deveríamos apanhá-los e soltá-los no mesmo dia. O Indy conhecia um tipo de spray que não era tóxico, então abandonamos a idéia da tinta pra cabelo. Saíamos à noite. Poderíamos apanhar os cachorros nos bairros, mas queríamos aqueles que circulavam no centro. Foi aí que a caminhonete se mostrou útil pela primeira vez. Usávamos uma espécie de coleira-laço pra apanhar os cães. Modéstia à parte, eu era o melhor na laçada. Não poderíamos lotar demais a carroceria, senão os filhos da mãe quase se matavam lá atrás (sem falar na sujeira, o cheiro era realmente desagradável). Com o passar do tempo, pegamos algumas manhas, como não pegar cadelas no cio (mais tarde, nos tornamos especialistas, as reconhecíamos pelo cheiro; tudo bem, eu tô exagerando), pegá-las era briga garantida entre os cães. Também não pegávamos os com muita sarna e os que pareciam se desintegrar na mão (tô falando sério, tinha uns que desmanchavam aos poucos, “Prometeu, por que você escreveu “cravos” nesse cachorro, você gosta de flores?”; “Não, eu coloquei escravos”; “Então, um pedaço dele já caiu”. Tá, eu exagerei nessa, não era tanto, mas, se os cientistas quisessem descobrir novas doenças, deveriam examinar os cães de rua), nem os muito hostis (tivemos algumas experiências desagradáveis com alguns cachorros). Um tempo depois, primávamos pelos maiores e mais claros, nestes podíamos escrever mais e as mensagens ficavam mais evidenciadas. Como já disse, tivemos alguns contratempos. O Indy e o Robs chegaram a pegar sarna nas mãos e nos braços (por sorte, me safei dessa), isso antes de adotarmos as luvas. Um segundo contratempo foi a invasão das pulgas. Não aprontávamos os cães em nossas casas, fazíamos isso num lugar que eles conheciam (uma espécie de fábrica ou galpão abandonado). Mesmo assim, por mantermos um contato direto com os cães, as pulgas passavam pras nossas roupas e, depois, se alojavam em nossas casas. Fiquei com pena da Helena (isto é inegável, por mais que haja homens sofrendo, sentimos mais pena das mulheres). - Não consigo dormi à noite (disse ela, toda picada, não sei se picada é o termo certo, de pulgas). Não sei da onde surgiram esses bichos... Eu contei pra ela de onde as pulgas haviam surgido. Ela ficou um pouco revoltada na hora, mas foi só na hora. A Helena sempre foi extremamente compreensiva (principalmente comigo e com o Robs). Mas eu não era tão compreensivo assim comigo mesmo. Me sentia muito culpado quando algum dos nossos planos afetavam ela de alguma maneira. Sempre falei muito com o Robs a respeito disso: “A Helena tem que ficá sempre de fora disso”. Não era só porque ela era minha namorada, faria a mesma coisa pra proteger qualquer pessoa que tivesse um vínculo com a gente e não pertencesse ao nosso “grupo”; mas, no caso, a Helena era a única pessoa (e uma pessoa única; perdoe o trocadilho, mas a Helena era realmente especial). Retornando ao assunto, o Indy já havia trabalhado numa firma de dedetização (sei que parece incrível, mas ele realmente havia trabalhado, falo isso porque, até então, nunca havia conhecido ninguém que houvesse trabalhado numa firma de dedetização) e conhecia alguns produtos, os quais também não eram nocivos à saúde. Usamos esses produtos em nossas casas e o resultado foi quase imediato. As pulgas acabaram.

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Também empregamos uma ducha de alta pressão logo após o contato com os cães (havia alguns canos naquela espécie de fábrica abandonada, fizemos algumas alterações e instalamos um aparelhinho desses de lavagem a jato, que era ligado numa bateria), o jato era tão forte que chegava a ser meio dolorido. Separamos uma roupa, como se fosse um uniforme, para executar aquela atividade. Isso acabou de vez com o problema das pulgas (aposto que o cara que perguntou: “Portão da mulher ou do pensionato?”; deve ter perguntado: “Problema das pulgas ou de vocês?”). Algum tempo depois (um tempo considerável), quando circulávamos pelo centro, de ônibus ou a pé, nos deparávamos com os nossos cães antipropaganda. Eles traziam várias inscrições, algumas marcas usavam os dois lados, como “Coca-Cola”, por exemplo; de um lado estava escrito “Coca”, do outro “Cola”. Eles eram a antipropaganda das mais variadas marcas, colocamos neles as marcas de todas as multinacionais que lembramos, seja de veículos, alimentícia, de roupas e calçados e até farmacêutica. Enfim, quando acabaram as marcas, apelamos pra algumas célebres personalidades. Algumas usavam os dois lados dos cães também. Como “Prefeito” “Carter”, por exemplo. Colocamos mais alguns cidadãos da cidade, mas a escolha era livre. Eu fiz questão de colocar os nomes de alguns apresentadores de TV (sabe, aquelas porcarias de programas de auditório). Se existe alguma coisa realmente nociva ao ser humano, essa coisa é “programa de auditório”. Os apresentadores se julgam espertos, pensam: “Tudo bem, tô enganando o povo e fazendo um papel ridículo (bota ridículo nisso!), mas tô faturando muito. Eu sô esperto pra cassete!”. Esperto? Será que eles realmente são espertos? Primeiro, chamar um apresentador de programa de auditório de esperto já é uma coisa contraditória por si só (de inteligente, então, é uma coisa absurda! Pode parecer que tô sendo muito radical, mas só tô falando aquilo que eu acredito que seja a verdade); segundo, os coitados são tão manipulados quanto o povo que eles acreditam estar manipulando (eu poderia passar o resto do livro explicando por que os apresentadores de TV não são espertos, mas não farei isso). Uma vez, o Robs disse: “O meu sonho era ir num desses programas de auditório (a princípio, achei que era mais uma das suas bombas)”. “Você tá de sacanage comigo _ falei. _ Esses programa são a vergonha da humanidade, a degradação da espécie. Se um dia eu fosse numa conferência intergaláctica (sei que eu viajei nesse exemplo, mas na hora saiu), e um alienígena me falasse...” “Um alienígena?! _ interrompeu ele.” “É, o Doutor Spoke, por exemplo; por que tanta surpresa? O que você esperava que eu encontrasse numa conferência intergaláctica? (eu já tava me superando) Se o Doutor Spoke me falasse: “Você não vem daquele lugar em que há bombas nucleares, miséria, corrupção...?” Tudo isso eu aceitaria; mas se ele falasse: “Você não vem daquele planeta que tem programas de auditório?” Aí eu não ia suportá a vergonha, acho que eu fugia ou atirava em mim mesmo com um laser desintegrador, ou qualqué uma dessas coisa que você encontra numa conferência intergaláctica”. “Calma. Calma... _ disse o Robs. _ Era só isso?” “Não _ respondi. _ Acho que, antes de me desintegrar ou fugir, eu dava um “peteleco” na orelha do Spoke, deve ser muito bom dá um “peteleco” naquela orelha (convenhamos, a orelha do Doutor Spoke é ideal pros praticantes do “peteleco”; se você não conhece, o “peteleco” é aquela divertida brincadeira na qual você segura o dedo indicador com o polegar, exercendo com o primeiro a máxima pressão possível até soltá-lo abruptamente de encontro ao tecido cartilaginoso auricular de outrem) (se você não pegou, - 70 -

esse negócio de “tecido cartilaginoso auricular” foi uma maneira enrolada de dizer orelha; eu já disse que gosto de usar linguagem técnica, parece que eu conheço o assunto sobre o qual tô falando)”. Rimos um pouco, acho que eu me excedi nas palhaçadas, mas, enfim, o Robs completou seu raciocínio: - Tá bom _ disse ele, ainda rindo _, eu concordo com você, até na parte do Dr. Spoke. Mas você não dexô eu completá. Eu queria í num desses programas de auditório, que fosse ao vivo, pra falá o máximo de palavrão que eu pudesse antes dos cara cortá. Antes eu ia fazê uma lista dos palavrão que eu conheço, ia começá do mais forte. Acho que antes de eles se tocarem dava tempo de falá alguns... eu queria fazê isso e olhá pra cara de otário do apresentador. Essa seria por todas as horas que eles robam das vidas das pessoas. Se eu nunca aparecê na TV e você for famoso um dia, podia fazê isso por mim. - Pode dexá, acho poco provável que eu seja famoso um dia, mas, se eu for, coloco em prática a tua idéia. Estávamos relativamente satisfeitos com o nosso desempenho, mas concluímos que precisávamos recrutar mais pessoas para o grupo. Eu não conhecia muita gente. O Robs conhecia bastante, mas não mantinha muito contato. O Indy era quem tinha mais conhecidos (também, pelo número de cursos e empregos pelos quais ele havia passado, não podia ser diferente). O nosso plano era o seguinte, chamaríamos aqueles que no nosso conceito estavam entre medianos e bons para o grupo (não havia nenhum ótimo). Esses caras seriam entrevistados por um de nós, menos por aquele que o indicou. Nós três entrevistávamos. As entrevistas eram feitas no apartamento do Indy. Cada um elaborava suas próprias perguntas e usava seus próprios critérios de avaliação. Conseguimos encontrar um número relativamente grande de candidatos (as pessoas estão cada dia mais doidas pra fazer parte de alguma coisa, elas se sentem inúteis). Eu fazia as minhas entrevistas na sala; o Robs na cozinha e o Indy usava o quarto dele. Como já disse, cada um elaborava as suas próprias perguntas, eu seguia um certo protocolo: - O que você está fazendo aqui? - Tem algum grande sonho, um grande objetivo? - Diga o seu maior defeito e a sua maior virtude (essa é clichê pra caramba, né?). - Você odeia alguém? Quem? - Você tem preconceitos? Quais? - Responda sinceramente, você tem um preço? - O que tem mais valor pra você do que a Revolução? (a essa pergunta, recebi algumas respostas curiosas, como: “minha mãe”; “revistas pornográficas”; “que Revolução?”; “foda-se a Revolução, nada tem importância pra mim, eu não tenho importância pra mim”). Acabada essa primeira fase, eu dava exemplos de algumas situações e perguntava que atitudes o cara tomaria. “Você tá num lugar público qualquer e sente que tem uma incômoda meleca, querendo cair do seu nariz. Você vai ao banheiro tirá-la ou tira na frente de todo mundo?”. “Você tá num elevador lotado e sente uma vontade incontrolável de peidar. Você tenta se segurar o máximo possível; você peida naturalmente; ou faz um esforço pra que, ao sair, os gases façam o maior barulho possível?”. “Você tá no colégio, na universidade, no trabalho, numa fila, numa palestra, reunião ou qualquer coisa do tipo. De repente, você desconfia que algumas pessoas tão rindo de você. - 71 -

Você fica quieto e tenta se convencer de que é só paranóia; você tira satisfação com as pessoas; você acha que elas estão certas, você realmente é digno de riso; ou você parte direto pra agressão?”. Devo admitir que essas entrevistas foram algo realmente engraçado. Mas, um dia, aconteceu uma coisa inesperada. Como já mencionei, não sabíamos quais eram os métodos de avaliação um do outro. Já mencionei também que o Indy e o Robs tinham muito mais conhecidos do que eu; mas, pra não se tornar algo muito constrangedor, chamei uns três caras da universidade pra fazerem a entrevista (não sei se esses caras podiam ser classificados entre medianos e bons para o grupo, acho que chamei eles só pra dizer que também tava colaborando). O Indy entrevistou dois deles, o Robs ficou encarregado de entrevistar um (ele entrevistaria um sujeito que chamarei de William, esse não era o nome verdadeiro dele, como sempre, aquele negócio de preservar as pessoas). Eu tava fazendo uma entrevista na sala quando vi o Will (tô dando uma abreviada) sair correndo da cozinha (lugar onde tava sendo entrevistado) e gritando coisas do tipo: “Você é loco!” “Vocês são loco!”. O cara tava realmente apavorado. Ele saiu correndo do apartamento. Saí atrás dele. Alcancei ele nas escadas; segurei ele pelos ombros e falei: - Calma, cara. O que que tá acontecendo? Só então percebi uma coisa que eu preferia não ter percebido. Foi uma das situações mais constrangedoras que eu já vivi (diria que foi a mais constrangedora). Olhei pra baixo e vi uma roda molhada entre as pernas do Will. Ele havia urinado nas calças. Fui abordado por uma sensação que era uma mistura de surpresa e pena. Franzi as sobrancelhas e entreabri a boca. Ele viu a piedade estampada na minha cara e se sentiu ainda pior. O meu cérebro procurava freneticamente por uma frase de consolo, mas não encontrou nada. Ele olhou pra mim com os olhos marejados e disse: - Qual é o problema de vocês, cara? Vocês são doente... Ele se virou e foi embora. Não tive como argumentar. Lembra quando eu falei das “bombas” do Robs. Pois é, essa havia sido uma nuclear. Havia deixado um vácuo dentro de mim; havia contaminado a minha alma com a radioatividade. Senti a parte mais interna do meu ser se tornar doente. Senti uma doença transcendental. Subi as escadas sem pensar em nada. Não sabia o que ia dizer ao Robs, mas sabia que ia dizer. Entrei na cozinha. Ele tava sentado, tomando uma xícara de chá tranqüilamente. Quando me viu, ele deu aquele risinho sobre o qual eu já falei. Um riso sem som, no qual mal mostrava os dentes; algo que assustava, mas não naquele momento. - Qual é o teu problema, cara? _ perguntei, quase sussurrando. - Muitos, você qué que eu enumere? - Sem bancá o cínico _ disse, agora quase gritando. _ Tô falando do que você fez com o Will. - Nesse caso, o problema não é comigo, é com o teu amigo. Não tenho culpa se ele tem algum tipo de incontinência... - Cala a boca! Você se sente bem com isso, né? Se sente bem em humilhá as pessoas ao extremo... - Eu só apontei pra ele uma arma de brinquedo. Era pra ele achá que era de verdade, mas não era pra ele se mijá. - Você é um merda de um megalomaníaco. Você se acha especial. Você se acha único, um predestinado. Você não é. Você é só um projeto de um merda de Hitler, um loco que se achava um gênio, mas que, pra mim, era só um retardado que chegô ao poder por acaso. A gente devia combatê esse tipo de ideologia. E o que que eu vejo? Você se tornando - 72 -

um projeto de Hitler. Cê acha que consegue? Vai lá, tenta, quem sabe o acaso sorria pra você também; você tem uma chance em um bilhão. Você tá doente. Eu tô doente. Tudo que eu falei soou muito sem nexo, mas as coisas vinham brotando e eu colocava pra fora. - Calma. Já acabô? Tudo isso por causa de uma mijada? Vai vê o cara tomô muita cerveja... - Você se acha o melhor, né? Eu queria vê a tua cara se você tivesse mijado... - Você queria vê? Você tá vendo. Eu não tô mijado, mas a cara ia sê a mesma, por que mudaria? Você me chamô de megalomaníaco, de projeto de Hitler de merda, mas isso não é verdade. Eu concordo com você. O nazismo é a coisa mais ridícula que já existiu; uma piada, de humor negro, mas uma piada. Daquelas que ia causá riso se não fosse no nosso mundo. E, também concordo, o Hitler tava mais pra retardado do que pra gênio. Tudo que eu fiz foi apontá uma arma de brinquedo pro cara, pra vê como ele ia reagi numa situação extrema. Descobri e vi que ele não serve pro grupo, só isso. Você disse que eu sô megalomaníaco, mas eu não sô. Você qué sabê o que eu sô? Olha, essa porra de capitalismo não prega uma lei da selva? Uma coisa meio que de Maquiavel? Então, eu também tô na selva. Alguns são leões, alguns são antílopes. E eu? Eu tô no topo da cadeia alimentar, não, eu tô acima dela. Eu alcanço qualqué objetivo, não importa como. Não sô leão, nem antílope. Eu não tenho fome, mas eu sô um caçador; não preciso comê, mas preciso caçá (eu já citei um trecho dessa fala dele anteriormente). Eu fiquei um pouco em silêncio, olhando pra ele fixamente, e finalmente falei: - O que que você tá dizendo? Que você é uma coisa sem propósito? Você tá completamente loco, Robs. Sabe o que que é assim? O desnecessário que atua, o dispensável que age? Isso é uma doença; isso é câncer. Um monte de célula, aumentando descontroladamente até destruí o doente e acabá com elas mesmas. - Que seja! Que eu seja um câncer, e daí? Eu pensei que você já tinha se livrado daqueles pensamento ridículo: “Papai e mamãe são santinhos; Papai do Céu ajuda os bonzinhos; quem desrespeita as leis é malvado”. Acorda, cara! Eu não sô um porco igual o Malthus, mas e se não fossem as doença, como que ia sê? Não ia tê espaço pra todo mundo. Eu sô um câncer sim, sô uma merda de uma célula desse sistema, se multiplicando descontroladamente, se tornando cada vez maior, mais forte, até afundá todo esse “corpo” do qual faço parte. Sô a doença que corrói o velho pra que o novo possa nascê. Eu não disse mais nada, só saí da cozinha. Aquela foi a primeira vez que a idéia de que estávamos extrapolando passou pela minha cabeça. Saí do apartamento. Não agüentaria continuar entrevistando depois daquilo; não agüentaria ficar ali depois daquilo tudo. Comecei a caminhar meio que sem destino. De repente, me dei conta de que tava indo pra casa do Robs. Essa parecia ser a minha sina, havia acabado de discutir com ele e tava indo pra casa dele, mas eu tava indo lá pra ver a Helena. Sabia que ela era a única coisa no mundo que podia fazer eu me sentir melhor. Eu tava certo, bastou vê-la e já me senti um pouco mais leve. - O que foi? Que cara é essa? _ disse ela, abrindo o portão. - O que você acha de a gente saí um poco, dá uma caminhada, sei lá...? - Pode ser, só tenho que fechá a casa, tá bom? - Tá. Esperei que ela trancasse as portas e as janelas, o que não demorou muito. - Aconteceu alguma coisa? _ insistiu ela, dessa vez, fechando o portão.

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- Não vamo falá sobre mim; a gente sempre fala sobre mim. Vamo falá sobre você, como foi o teu dia? - Falá sobre mim... tudo que acontece comigo é tão chato, tão previsível. - Ora, coitadinha _ falei, brincando. _ Pode ser chato pra você e ser interessante pra mim. Fala, como que foi o teu dia? - Tá, eu quase dormi em duas aulas horríveis, que eu acho que foram feitas pra gente dormi mesmo... pra onde a gente tá indo? - Sei lá, acho que a gente tá indo pro parque, mas continua contando. - Tá, eu quase dormi nessas duas aulas, depois conversei com as minhas amigas... - O que vocês conversam? - Bestera, você não ia querê ouvi... - Por que você acha que não ia querê ouvi? Eu não me importo só com esse negócio de Revolução; eu me importo com você, com o que acontece com você _ quando eu disse isso, acho que tava tentando convencer a mim mesmo. _ Eu sei que, às vezes, não parece que é assim, mas... mas... sei lá. Desculpa; acho que não vô consegui continuá falando. Acho que tô só confundindo mais... - Calma, pode dexá que eu falo então. Você qué sabê o que a gente conversô? A gente conversô sobre unha, cabelo e essas coisas. Depois a gente falô sobre as notas de uma prova, que tava difícil pra caramba. Acho que foi isso... depois, na última aula, o professor deu a nota dessa prova que eu falei. E aí... não sei, eu tenho vergonha de falá isso, parece que eu tô querendo me gabá... - Fala, não precisa tê vergonha de mim. - E aí eu tirei a nota mais alta da sala. Oh, acho que eu sô um gênio! _ disse ela, ironizando. - Não entendo por que vergonha de dizê isso. Você não devia tê vergonha de dizê nada pra mim. Acho que a culpa é minha, eu me mantenho meio distante. Acho que até o Robs sente receio de me dizê algumas coisas às vezes (já tava eu colocando o Robs na conversa!). - É paranóia tua. Eu tava com vergonha por bobera mesmo. A gente conversou mais um pouco até que chegamos ao parque. Sentamos na grama. Eu coloquei a cabeça no colo dela e fiquei olhando o céu, que por sinal tava bem bonito. Ela ficou afagando o meu cabelo e olhando as águas do lago. Sei que a Helena até hoje não esqueceu daquele dia, mas aposto que ela acha que eu esqueci. Como eu poderia ter esquecido?! Apesar de tudo que aconteceu depois, ainda assim, ela não podia achar que eu simplesmente esqueci certas coisas. Logo a Helena, que foi a pessoa que me tratou da forma mais humana até hoje; que fez eu me sentir mais humano (no sentido bom da palavra). Às vezes, eu me pergunto o que eu me tornei. O que restou de mim, além de meia dúzia de boas lembranças (tá, chega de crises existenciais). - Às vezes, me pergunto por que eu quero mudá tanta coisa. Sempre critiquei, comigo mesmo, os casais que ficavam por aí, levando uma vida normal. Pra mim, isso era uma falta de percepção aliada à, ou oriunda da, ignorância. Agora eu sinto que isso não importa, só importa que é bom e faz eu me senti bem. Você é o meu, o meu... Diasepan. Desculpa. Eu falei que tô meio confuso. É o cúmulo do romantismo mesmo, compará a namorada com um calmante. - O que que aconteceu? Você não quis me falá...

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- Eu discuti com o teu irmão, pelo menos, acho que discuti. Aconteceram algumas coisas que fizeram eu me senti mal. Eu chamei o Robs de megalomaníaco, mas, na verdade, o megalomaníaco sô eu. - Você não é megalomaníaco. - Será? Você não precisa me consolá. Não tô falando isso só pra ouvi você dizê que não é verdade. Eu me auto-elegi a pessoa que vai mudá o sistema vigente no mundo intero, e acredito piamente que sô capaz disso. Nunca parei pra pensá se os otros querem mudança ou se querem continuá vivendo assim. Eu quero a mudança porque eu acho que é o melhor; mas nunca considerei a possibilidade de eu tá errado. Se Deus aparecesse aqui, agora, e me dissesse que é melhor dexá as coisas como tão, eu não ia aceitá isso. Ia teimá com Ele. - Você tá exagerando... - Às vezes, eu não queria sê assim. Eu tô falando pra você o que eu sô de verdade, não tô escondendo nada. Alguma vezes, eu acho que essa minha obsessão por mudança é só uma forma de eu testá o meu poder. Sei que parece meio ridículo, você pode pensá: “Poder? Que poder?”. Mas o que eu quero dizê é que escolhi o maior desafio só pra prová pra mim mesmo que eu posso atingi qualqué objetivo. Sabe, Helena, tem horas que eu não quero nada, absolutamente nada, a não ser uma mudança. Tem horas que eu realmente posso senti a dor que atinge os otros e isso parece que vai me dexá loco. Tem horas que eu só queria levá uma vida normal, assim, com você. Mas, às vezes... eu sei que isso vai parecê meio doido, mas... às vezes... às vezes, eu queria ter tudo. Sei que isso é estranho, não tô falando de ter um carro, uma casa, uma ropa ou esse tipo de coisa. Eu queria tê absolutamente tudo, o mundo intero. Nem eu sei como explicá isso; mas sinto como se esse mundo tivesse sido feito pra mim. Viu como você não precisava senti vergonha de falá que tirô a nota mais alta da sala; há coisas bem piores que podem ser ditas. - Calma, você cobra muito de você mesmo. Se você se sente mal quando pensa essas coisas, isso só prova que esses pensamentos não são o que você realmente é. Eu sei que eu sô só uma menina meio boba, mas eu consigo entendê o quanto deve sê difícil pra você falá essas coisas pra alguém. E você não sabe o quanto eu fico feliz por você tê escolhido a mim pra contá os teus segredos. Enquanto todo mundo só tenta parecê perfeito, tenta vendê uma imagem, você se mostra pra mim como você realmente é. Nada é mais bonito que isso, que essa sinceridade. Eu te amo por isso. Porque você é único. Você não é megalomaníaco, você só enxerga a verdade. Esse mundo intero ainda seria poco pra você, porque eu confio em você e só em você. Porque eu sei que, nas tuas mãos, as coisas ficam da melhor forma possível. - Brigado, Helena. Eu... não sei o quê dizê... brigado. O que ela tinha me dito parecia com o discurso do Robs, mas as razões dela eram completamente diferentes. Muitas vezes, ele não acreditava no que dizia, falava apenas pra aliciar membros pro grupo. Já a Helena não. Eu via nos olhos dela uma sinceridade que me comovia. Ela tava impressionada comigo, por alguma razão, estava encantada por mim. Eu tinha dito pra ela que eu sempre achava que eu tava certo, mas ela agia da mesma forma. Ela nunca acharia que eu tava fazendo alguma coisa errada; no máximo, ela acharia que talvez não tivesse entendendo os meus motivos. Levei a Helena em casa. Eu não gostava de retardar algo que fosse inevitável. Eu sabia que teria que me encontrar com o Robs novamente, então, que fosse o mais breve possível. O clima entre nós ainda tava meio pesado, mas conversamos como se nada sério houvesse ocorrido entre a gente.

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Ele me disse que era melhor encerrar as entrevistas. Disse que um grupo grande demais seria muito difícil de se controlar no momento. Novamente, procedíamos com aquela mesma frieza (aquela de desmontar bombas como se fossem Lego). Concluímos que eu deveria me certificar de que o Will não diria nada a respeito do nosso grupo (você sabe, como uma espécie de vingança). Eu sabia como fazer isso, e o Robs sabia que eu sabia. Encontrei o Will na universidade e disse pra ele: “Ninguém precisa sabê de nada do que aconteceu, de nada”. Ainda visivelmente constrangido, ele assentiu com a cabeça. Era como se eu tivesse dito a ele: “Você fala do nosso grupo, e eu conto que você molhô as calças” (é impressionante o quanto qualquer um teme que esses constrangimentos pessoais venham à tona). Pronto, o problema tava resolvido. Agora, definitivamente, éramos um grupo, composto de seletos (talvez não tão seletos assim) membros. Eu posso não ter aprovado algumas atitudes do Robs, mas, sem sombra de dúvidas, nós três sabíamos como peneirar apenas o melhor. Tínhamos um time. E, dentro dele, cada um tinha um codinome. Éramos os ícones do capitalismo (tá, talvez alguns não fossem tão símbolos capitalistas assim), lutando contra o capitalismo. Éramos o cúmulo da ironia. Eu era o “Tio Sam”. O Robs era o “Papa”. Cada um escolhia o seu próprio codinome. Havia o já conhecido Indy (que vem de Indiana Jones, eu disse que esse pseudônimo seria esclarecido), o Peter (de Peter Pan), o Mickey, o Don (de Donald), o Bono (de Bono Vox), o Rambo, o Rock (de Rock Balboa), o Bill (de Bill Gates), o Pluck (de Pluck Duck), o Bond (de Bond, James Bond), o Homer, o Bart, o Krusty... Nossa primeira missão em um grupo mais amplo seria algo um pouco mais agressivo, pelo menos, sob o meu ponto de vista. Como sempre, eu e o Robs havíamos planejado tudo, tivemos alguma ajuda do Indy. Concluímos que um dos símbolos do capitalismo eram os caixas automáticos (pra falar a verdade, concluímos que as agências bancárias em geral eram símbolos capitalistas, mas os caixas tavam mais ao nosso alcance). Então, eles se tornaram um alvo em potencial. Sempre tentávamos fazer as coisas da forma mais sutil possível; não entraríamos num banco com uma marreta e arrebentaríamos os caixas. Depois de refletir um pouco, achamos que uma boa solução seria inserir cartões (não precisava nem ser cartão bancário, desde que entrasse na máquina) com cola instantânea. Deduzimos que, mesmo que os cartões não ficassem realmente presos, a cola estragaria os leitores. Achamos que seria mais prudente atuar somente nos caixas 24hs, dessa forma, poderíamos agir num horário mais tranqüilo e correríamos menos risco de nos depararmos com algum outro cliente enquanto agíamos. Combinamos toda a ação para uma única noite. Alguns dos nossos, após introduzir o cartão com a cola, chamaria o pessoal da segurança e denunciaria que a máquina estava com problemas. Isso serviria para deixá-los confusos, para atrapalhar uma possível investigação. Esse tipo de caixa, normalmente, tem alguma câmera de segurança, portanto, não podíamos apenas introduzir o cartão e sair de mãos abanando, se fizéssemos isso, estaríamos assumindo a culpa. Pra superar esse problema, levávamos dois cartões em mãos, um era o que ficava na máquina, o outro era o que simulávamos estar retirando. Talvez você pense, bastaria que o cliente seguinte denunciasse o problema e seria possível encontrar o responsável. Porém, além de alguns não denunciarem, aplicávamos a tática que já mencionei (a de nós mesmos denunciarmos), o que, como já disse, complicaria uma possível investigação. Além do mais, não é nada fácil identificar a fisionomia de uma pessoa pela imagem daquelas câmeras, e estou quase certo de que ninguém se empenharia tanto pra encontrar um possível suspeito. - 76 -

V Finalmente, havia chegado o dia. Eu, o Robs e o Indy havíamos conversado particularmente com cada um dos membros. Havíamos feito algumas recomendações, repassado tudo pra que não houvessem mal entendidos. Agiríamos numa única noite. Tínhamos em foco as maiores agências, mas algumas eram inviáveis devido ao movimento contínuo. Uma noite, quando partíamos pra nossa primeira missão, o Robs me disse que não havia imprevistos, que nós prevíamos os imprevistos. Sei que isso soa meio arrogante, mas acho que, de certa forma, ele tava certo. Na manhã seguinte, tínhamos dez caixas eletrônicos, pelo menos temporariamente, inutilizados. Tudo bem, alguns falharam. O Homer havia colado os dedos no cartão e se atrapalhou todo. O Bill disse que o caixa dele tava muito movimentado e tinha um segurança olhando pra ele de um jeito meio estranho, então, acabou hesitando. Confesso que preferia bem mais esse tipo de prudência do que um comportamento de risco, em que se tenta bancar o herói e acaba pondo tudo a perder (devo confessar que esse era o meu tipo de comportamento). De um modo geral, o número de missões abortadas havia sido insignificante (falando assim, parece que eu era do serviço secreto, ainda mais que tinha um cara com o codinome Bond, James Bond) e havíamos dado uma grande dor de cabeça a algumas agências bancárias. Aquilo não era vandalismo (bem, talvez fosse, já que a palavra vandalismo é oriunda daquela tribo bárbara, os Vândalos, e, de certa forma, nós tentávamos derrubar uma nova Roma), era manifestação. Se havia algum crime aos nossos olhos, esse crime era instalar agências no mundo todo, se infiltrando em várias economias e desestabilizando vidas em prol do acúmulo de capital. Esse crime era cobrar juros incabíveis, se apossar de propriedades pela metade de seu valor, entre outras coisas. Tudo isso numa disputa desleal, sendo um gigante que sempre terá a lei ao seu lado (uma coisa eu aprendi por experiência própria, se você tem o dinheiro ao seu lado, não há nada, ou melhor, quase nada, contra você). Talvez estivéssemos equivocados, mas isso era um crime para nós. Uma das coisas que embrulhava o meu estômago era uma hipocrisia fedida que punia uma formiga que pegasse uma folha e que fazia vista grossa pra um gigante que roubasse uma floresta inteira (até hoje não gosto de pensar nesse tipo de coisa, eu brinquei quando falei sobre os programas de auditório, a pior coisa do nosso mundo é a hipocrisia; nada é mais incorreto do que o politicamente correto).

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Como havíamos presumido, não houve uma investigação mais aprofundada. O pessoal da segurança havia ficado muito confuso (exatamente como havíamos planejado). Definitivamente, aquela havia sido nossa investida mais audaciosa até então. O nosso grupo era bastante eclético, os componentes eram de variadas raças, exerciam diversas atividades, mas havia duas coisas que indiscutivelmente tínhamos em comum: a faixa etária (éramos todos jovens, dos 18 aos 25) e o objetivo. Era fácil para os membros do grupo reconhecerem uns aos outros circulando pela cidade. Depois de um certo tempo, quando não estávamos em ação (que era quando usávamos as botas e a roupa negra), passamos a vestir camisetas promocionais (dessas que os postos de gasolina, supermercados, enfim, qualquer empresa distribui aos clientes) e calças compradas em bazares por dois dólares. Calçávamos alpargatas rústicas com solado de cordas ou uma espécie de sandália feita artesanalmente. Certa vez, o Robs me disse: “Não entendo esses jovens que querem fazê algum movimento e calçam tênis All Star, uma marca multinacional”. Se o Robs não compreendia esse tipo de pessoal, o pessoal da universidade também parecia não compreender a maneira como eu me vestia. Mas eu não me incomodava com isso; eu já disse o que eu era, eu era o cúmulo do inoportuno, do incômodo e do inconveniente. Um dia, um professor disse com um ar sarrista: “Turma, o que vocês acham da gente fazê uma vaquinha pra comprá umas roupas novas pro nosso colega?”. “Eu não quero o teu dinhero _ falei. _ Não quero o dinhero de nenhum de vocês, guarde o teu dinhero pra fazê um implante”. O professor era calvo. A careca dele não me incomodava. Só quis retribuir a inconveniência. O Robs havia me dito que, se você é bonzinho, não é respeitado, e, a cada dia que passava, eu compreendia isso com mais clareza. Falando no Robs, como já mencionei antes, com o passar do tempo, ele foi ficando cada vez mais radical. Um dia, o Indy mencionou que nem as carnes escapavam da artificialidade, ele disse que elas eram coloridas artificialmente, ou tinham as cores reforçadas, com sulfito e nitrato de sódio (se isso é verdade, eu não sei, só sei que ele disse). Depois disso, o Robs decidiu comprar uma arma. Se a carne que lhe vendiam não era “carne de verdade”, ele a caçaria. Comprou uma Winchester calibre 22 com luneta, o Indy também comprou uma. Em alguns finais de semanas ou feriados, íamos ao bosque próximo à cidade caçar veado. Colocávamos a caça na caçamba da caminhonete e tomávamos um caminho secundário pra não passar por nenhum posto policial. O Indy já havia trabalhado num açougue de supermercado e sabia o básico de como separar as carnes. O Robs tinha um freezer em casa. Ou seja, já não precisávamos nos preocupar com o sulfito e o nitrato de sódio. Além do mais, esse não era o grande problema, não gostávamos de sermos enganados, não gostávamos daquela artificialidade. Por alguns instantes, enquanto espreitávamos uma caça, deitados sobre as folhas secas, nos sentíamos humanos novamente. Sentíamos uma busca pela sobrevivência que não tinha o dinheiro como atravessador. De volta às origens. Sentíamos que esse era o ápice do progresso, uma espécie de regressão, na qual ele forneceria os instrumentos, mas não roubaria a essência. Como você já sabe, eu trabalhei numa vinícola, ao lado dos meus familiares, portanto, conhecia o processo de fermentação. Desconfiei que isso poderia interessar ao Robs e dei pra ele algumas dicas. Não tínhamos matéria-prima de qualidade; as frutas que encontrávamos nas feiras não eram as melhores que existiam. Ainda assim, fizemos alguns fermentados, mas logo concluímos que o melhor seria destilá-los. Foi então que montamos um destilador caseiro. Tratava-se de uma mangueira de cobre, em espiral, que passava por dentro de um - 78 -

recipiente metálico (uma panela velha) e escapava por um buraco, que depois era devidamente vedado. O recipiente apresentava ainda mais dois orifícios, conectados a duas mangueiras (dessas de jardim) distintas. Uma delas era ligada à torneira e servia para a entrada de água, a outra dava na pia e servia para o escoamento. A circulação da água era indispensável para o resfriamento da mangueira de cobre, esta, por sua vez, era conectada na tampa de uma panela de pressão (no lugar da válvula). O líquido fermentado era colocado dentro da panela e era aquecido. Como os álcoois são mais voláteis do que determinadas substâncias, na outra extremidade da mangueira de cobre, tínhamos bebida alcoólica. Esse processo é muito antigo, apenas o adaptamos para um formato caseiro. Talvez você pense, “não era mais fácil ir a um bar ou supermercado e comprar uma garrafa?”. Fazendo ao nosso modo, sabíamos (mais ou menos) o que estávamos ingerindo. Além do mais, aquela era uma forma de aproximar o Robs de seu sonho: auto-suficiência. “Às vezes _ dizia o Robs _, fico olhando pra um jardim ou bosque e fico invejando as plantas fotossintetizantes. Auto-suficiência é independência”.

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VI Um mês havia se passado desde a nossa primeira ação num grupo mais amplo, a primeira missão que teve repercussão na mídia. A sabotagem nos caixas foi noticiada em alguns jornais de circulação estadual e até recebeu um pequeno espaço num de circulação nacional. Além de também ter sido noticiada num telejornal regional. Definitivamente, aquela havia sido nossa missão mais impactante, e havia sido somente a primeira da nossa nova fase. Decidimos dar um tempo, esperar a poeira baixar um pouco. Falamos para os “novos” a respeito dos cães antipropaganda, dissemos que o galpão abandonado estaria à disposição deles caso quisessem dar seqüência ao trabalho, mas nós (leia-se: eu, o Robs e o Indy) não nos empenharíamos mais nisso. Acho que o Krusty, o Rock e o Bill chegaram a preparar alguns, mais como distração do que como qualquer outra coisa. Enquanto algumas pessoas fazem artesanato, aeromodelo ou qualquer coisa do tipo para se livrarem do stress, eles preparavam cães antipropaganda. Nesse meio tempo em que ficamos sem agir, o Robs e o Indy fizeram uma coisa que me surpreendeu, primeiro, por não terem me avisado nada; segundo, pelo ato em si. A idéia foi do Robs e ele fez praticamente tudo sozinho. Nós costumávamos caçar de vez em quando. Acredito que, a partir daí, ele teve a idéia. Ele pegou um dos veados que haviam sido caçados e tirou todo o seu couro. Até aí era normal, porque isso faz parte do processo de carnear. Então, ele deixou que o animal apodrecesse; eu não sei onde ele o deixou, mas sei que devia ser longe de qualquer casa (seria possível sentir aquele cheiro a quarteirões de distância). Depois disso, ele e o Indy levaram o veado até uma loja que vendia roupas de grife e esse tipo de coisa (semelhante àquelas que havíamos pichado, só que mais no centro da cidade). Não sei como eles fizeram para não serem vistos, mesmo agindo de madrugada, o movimento naquele setor da cidade não parava nunca. Deixaram aquela espécie de carniça com as víceras à mostra ao lado do próprio couro. A cabeça ficava separada do corpo, a uns três passos de distância, encostada numa placa que dizia: “Vista-me!”. Depois que tudo foi feito, foram me apanhar no pensionato, para que eu visse a “obra de arte”. Quando ouvi a buzina da caminhonete do Indy àquela hora da madrugada, realmente fiquei preocupado. Eles mandaram que eu entrasse no carro, queriam me mostrar algo. Assim que me aproximei da caminhonete, senti um cheiro horrível. Mas aquilo não foi nada perto do que estava por vir. Eles passaram lentamente em frente à loja, vi aquela cena e, no mesmo instante, um cheiro de podre entrou pelas minhas narinas e meu estômago embrulhou. Fiz um esforço repetitivo para conter o meu estômago, que se contraía continuamente como forma de repulsa. Aquilo me causou náuseas no sentido mais amplo da palavra. Os dois se olharam e deram um curto riso, pelo jeito, a obra deles tinha surtido um efeito melhor do que o esperado. Como eu disse, isso foi nesse meio tempo da nossa pausa e, como eu dizia antes ainda, havia se passado um mês desde a nossa última atividade organizada em grupo. Estava na hora de agirmos outra vez, e sabíamos disso. Eu e o Indy estávamos reunidos na minha apertada residência, esperávamos o Robs. Se fazíamos parte de um corpo revolucionário, definitivamente, nós três éramos o cérebro. A

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reunião seria pra decidir a próxima ação. Enquanto bebia meu whisky, sentia que estava falando mais do que o natural, minha boca agia de forma mais rápida do que meu cérebro, na maioria das vezes, para rir. O mesmo acontecia com o Indy. E tínhamos bastante “combustível da alegria”, as caixas de whisky quase não serviam na minha pequena cozinha. Por sorte, o Robs chegou enquanto ainda estávamos lúcidos. Assim que abri a porta, caí num ataque de riso sem causa, a estranha reação se estendeu ao Indy (não tão estranha assim, levando em conta o que já havíamos bebido). - Que merda é essa? _ disse o Robs. _ Vocês tão doido? Que chero de bebida! - A gente tá relaxando um poco _ disse o Indy. _ Qué um gole? - Não acredito! _ disse o Robs, pegando uma garrafa e olhando no rótulo. _ Jhonie Walker? Vocês se venderam mesmo, hein?! E tem caxas aqui. - Calma, calma. Não tenho culpa, se eu tomo daqueles mais vagabundo, fico com dor de cabeça. Além do mais, o Seu Jhonie Walker não levô um tostão nosso _ falei. - Seu Jhonie Walker? _ disse ele franzindo a testa. Eu e o Indy rimos um pouco. - É. Lembra que o Indy tinha trabalhado num mercado? Pois é, ele “esqueceu” (falei sinalizando as aspas com os dedos) de entregá o uniforme e o crachá quando saiu do trabalho. Ele ainda lembrava mais ou menos os dia das entrega. Os cara das bebida chegaram em dois, um ficô no caminhão, o otro tava descarregando. Enquanto o que descarregava saiu, o Indy chegô no cara do caminhão, de uniforme e crachá, e disse que tavam chamando ele na gerência, ele inventô uma história qualqué... - Mais respeito com a minha história _ disse o Indy, rindo. - Cala a boca. Ele falô pro cara que não precisava se preocupá, ele cuidava do caminhão. Curiosamente, eu tinha estacionado a caminhonete logo atrás. A gente achô que umas caxa não iam fazê falta... - Não acredito! Meu Deus! Vocês robaram whisky?! - A gente não robô; os cara do mercado me sacanearam na hora de fazê os acerto _ argumentou o Indy. - Pelo o que eu tô vendo _ disse o Robs _, aqui tem um ano do teu salário em whisky. - Boa observação _ disse o Indy _, o salário era injusto. Eu e ele rimos, enquanto o Robs parecia não achar graça nenhuma. - Ótimo, eu vim pra uma reunião e vocês dois tão bêbado. - Calma, a gente só tá um poco alegre; ainda tamo lúcido. - Por que será que os whisky têm dois nome? _ disse o Indy. _ Jhonie Walker, Cheevas Reagal, Jack Daniel’s… - Quanta lucidez! _ disse o Robs. - Isso não me preocupa tanto _ falei. _ O que me preocupa são as metonímia. - O quê? _ falaram os dois juntos. - É. Uma figura de linguage. - Você ainda disse que tava lúcido. Você se preocupa com figura de linguage?! Então, vamo iniciá um movimento em prol da gramática _ ironizou o Robs. - Tô falando sério _ prossegui. _ Essas marca tão invadindo, tão invadindo não, já invadiram as nossas vida. A gente não vai ao mercado comprá uma lâmina de barbeá, a gente compra uma Gillete; a gente não toma iogurte, toma Danone; não compra palha de aço, compra Bom Brill... isso é metonímia. - Agora entendi _ disse o Indy.

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- Tamo sendo consumido pelo consumismo. Não agüento mais isso, tudo pelo consumo. Sabe qual é o vermelho mais porco que já existiu? - Stalin? _ disse o Robs. - Não _ falei _, Papai Noel. O Indy não resistiu e caiu na gargalhada. O Robs só deu um riso de desdém, sacudindo a cabeça. - É porque ele tem o saco de brinquedo? _ perguntou o Indy. - É sério. Não tem uma jogada de venda mais discarada do que essa, e todo mundo cai. Por que o Papai Noel não dá presente nenhum pros miseráveis? - Essa eu sei. Sabe por que o Papai Noel não deu presente pras criança da Etiópia? Porque elas não comeram direito. O Indy ria sozinho da própria piada. - Coelho da Páscoa _ insisti. _ Um coelho que bota ovo de chocolate. É grotesco. - Agora é minha vez _ disse o Robs. _ O ovo é de chocolate porque ele só bota uma vez por ano; o resto do tempo, ele fica fazendo cu doce. O Robs olhou pro Indy e os dois desataram a rir. - Eu desisto. _ falei. _ Não tem como conversá. Vamo falá sobre os plano então. Você falô pra eles qual é a sigla? - Falei _ disse o Robs. - E aí? Eles gostaram? - Adoraram. O Robs havia me dito que os novos membros queriam um nome pro grupo; eu detestei a idéia. “Um nome? Por que isso agora? Não precisa de nome nenhum _ falei”. “Eu sei. Também concordo. Mas eles sentem necessidade de fazê parte de um grupo; acho que um nome sintetiza isso pra eles”. “Manda eles entrarem pra um time de futebol”. “Prometeu, não custa nada. A gente dá um nome qualqué, só pra acalmá eles”. Depois, o Robs me disse as sugestões horríveis que eles tinham dado. Os caras tavam desesperados por uma sigla (o que era algo deprimente) e tinham uma idéia pior que a outra. Eu disse ao Robs que eu até podia aceitar algum nome, mas que eu mesmo pensaria em um. Não queria nenhum que envolvesse “Forças Revolucionárias...” (não agüentava mais ouvir falar em grupos com esse tipo de nome), nem “Exército” de alguma coisa (nunca simpatizei muito com nada que fosse militar, e exército dava uma idéia de hierarquia e militarismo). Decidi que o nome começaria com “Movimento”, mas não fazia idéia do que colocaria depois. Não queria colocar nada que fosse muito clichê. Comecei a rabiscar alguns nomes numa folha, mas nada me agradava. Até que finalmente achei uma coisa interessante, consegui formar um palíndromo (aquelas palavras ou frases que se pode ler tanto da esquerda para a direita quanto da direita para a esquerda). Depois me desanimei um pouco, achei que não se enquadrava muito bem como um nome para um movimento. O palíndromo era o seguinte: “Soa Como Caos”. De qualquer forma, foi o melhor que eu encontrei e não estava disposto a ficar muito tempo procurando, então, nosso grupo tinha um nome: “Movimento Soa Como CaoS (achei melhor deixar o “S” do final maiúsculo por uma questão de simetria)”. Apesar da minha insatisfação (tanto por colocar um nome, quanto pelo próprio nome que coloquei), o Robs gostou. “Ótimo, ficô perfeito!”. A sigla ficaria “MSCC”, sugeri que ficasse “MSC2” (a pronúncia ficava MS dois). O Robs brincou: “Fica MC2, igual à Teoria da Relatividade. Energia igual a Movimento Soa - 82 -

Como CaoS”. Eu e ele até compramos aquelas conhecidas camisetas que têm a cara do Einstein e a fórmula E=MC2, só que fizemos uma pequena alteração, colocamos um “s” ao lado do “M”, ficou: E=MsC2. Uma pessoa ou outra fazia alguma observação, dizia que a fórmula tava errada, dizia não lembrar do “s” ou perguntava o que ele significava, mas, de um modo geral, a alteração passava despercebida. Mas isso não vem ao caso, vamos retornar onde parei. Eu e o Indy ligeiramente embriagados, e o Robs sentado numa poltrona daquele seu jeito desleixado, servindo-se de uma dose: - Bom, já que vocês garantem que o “Seu Jhonie Walker” não recebeu um tostão por isso, acho que não faz mal eu experimentá um gole. - Então, os cara gostaram mesmo da idéia do nome? _ insisti. - Acharam perfeita; e realmente ficô boa. - Tá, acho que já chega dessa conversa fiada _ interveio o Indy. - Que moral é essa, hein?! _ disse o Robs rindo. - O Indy tá certo _ falei. _ Vamo falá do que interessa. Vocês tiveram alguma idéia? - Pra falá a verdade, não _ disse o Indy. - Não _ disse o Robs enquanto tomava um gole do seu whisky. _ E você? - Tem alguma coisa que incomoda vocês mais do que a televisão? - Não _ disse o Robs. - Guarda de trânsito _ disse o Indy. _ Não, tô brincando, a televisão tá no topo. - A televisão é uma porra, eu sei. Mas você ainda pode desligá, ou quebrá _ olhei pro Robs e dei uma risadinha. _ Mas, se tem uma coisa que eu não suporto são essas merda de outdoor. Pra qualqué lugar que você olha, tem um cara de cueca, ou uma mulher, tentando parecê natural enquanto expõe uma bolsa... eu detesto outdoor. - Bem lembrado _ disse o Robs _, eu também odeio outdoor. Cada vez que eu paro no semáforo, fico olhando essas merda e me perguntando quantos devem ter na cidade. - Não me fale em semáforo _ disse, lembrando de um dos meus pensamentos fixos _, mas uma coisa de cada vez. - Mas, e aí, qual é a tua idéia? O que que cê tá pensando em fazê? - Tô pensando em apelá pra um russo, mas, não se preocupem, não é o Stalin, e o Papai Noel é da Finlândia. - Russo? Que merda é essa? Do que que você tá falando? _ disse o Robs. - Vocês gostam de whisky, não gostam? O que vocês acham de coquetel? Molotóv, esse é o nome do russo. - Coquetel Molotóv? Nos outdoor? - Isso _ confirmei. - Fantástico! _ disse o Indy. - É óbvio que a gente vai podê atingi um número limitado de outdoors, porque alguns ficam em zonas muito centrais ou não são feitos de materiais inflamáveis. - É, realmente parece interessante _ disse o Robs. - A gente pode dividi novamente em grupos de dois. O custo vai sê baxíssimo. A gente só vai precisá de combustível, pedaços de tecido e garrafa vazia; as garrafa a gente já tá produzindo agora. - Tá aí _ disse o Robs, depois de refletir mais um pouco _, gostei da idéia. Agressiva e viável, exatamente como deve sê.

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- Na Primeira Guerra Mundial, os russo usavam os Coquetéis Molotóv pra pará os tanques alemães, eles abriam a escotilha e metiam pra dentro. Agora, a gente vai usá pra pará os tanque capitalista. - Fechado _ disse o Robs. _ Pra mim, tá ótimo. Se vocês concordarem, daqui a uma semana, a gente faz uma reunião com todo o MS2 (eu já expliquei que a pronúncia ficava assim) e, daqui a duas, a gente põe o plano em prática. - Ótimo. A gente organiza tudo primero, vê quais outdoors são mais viáveis e explica bem pro pessoal. Não tem erro. Agora, vamo começá a esvaziá as garrafa _ disse o Indy, se servindo de mais uma dose _, afinal, faz parte da missão. Eu não sei se você conhece direito os Coquetéis Molotóv (com certeza, pelo menos, você já viu alguém atirando um pela TV), mas trata-se de um explosivo bem simples. Consiste em uma garrafa cheia de combustível (geralmente, gasolina, mas também pode ser querosene, óleo de motor...) com um tecido na ponta (que serve de pavio) embebido num combustível menos explosivo (usávamos querosene). Esse pavio só deve entrar em contato com o combustível que está dentro da garrafa quando esta for quebrada. Realmente, achei que havia sido a minha melhor idéia, acho que, em parte, porque eu detestava profundamente os outdoors. Uma semana depois, eu participei da reunião com todo o MS2. Só nesse dia, me dei conta de que eu e o Robs (o Indy também, mas nem tanto) éramos idolatrados por aqueles caras; e descobri também que isso não era nenhum pouco confortável pra mim. Eles se aproximavam de mim com um olhar meio admirado, me olhavam como se eu fosse uma lenda viva (eu me perguntava que histórias fantásticas já não teriam surgido a meu respeito) e mediam as palavras cada vez que se dirigiam a mim. Eu detestava aquele respeito, e essa revolta também se estendia a eles por me respeitarem mais do que eu merecia. Eu tinha vontade de dizer: “Vocês têm algum problema? Desculpem decepcioná-los, mas eu sô humano igual a vocês, eu arroto e peido também, e as balas não ricocheteiam ao acertarem o meu corpo”. Por não me sentir muito à vontade entre eles, deixei que o Robs falasse. Dava pra ver que, ao contrário de mim, ele gostava de fazer aquilo. Explicou tudo detalhadamente (às vezes, quando ele esquecia de mencionar algo, eu era obrigado a falar). Houve algumas perguntas por parte do pessoal, mas somente pra esclarecer dúvidas simples; ninguém se atreveria a questionar a viabilidade ou a utilidade da ação. Acabada a reunião, faltavam poucas coisas a serem acertadas. Eu particularmente tinha uma preocupação em especial. Alguns outdoors eram feitos com uma espécie de compensado bastante fino, eu tinha receio que as garrafas batessem neles e não se quebrassem, se isso acontecesse, não haveria explosão e a missão já era. Falei sobre isso com o Robs e o Indy, e decidimos que o melhor seria realizar alguns testes. O local escolhido foi aquela fábrica abandonada, na qual preparávamos os cães. Levamos uma das garrafas vazias de whisky, passamos no supermercado e compramos mais algumas bebidas (algumas nem eram alcoólicas, não queríamos beber, pegamos aquelas que pareciam ter os cascos mais finos). Também compramos combustível, testar a garrafa vazia é diferente, precisávamos ter uma noção exata do que poderia acontecer. Enfim, chegamos à fábrica. Lá havia algumas chapas de madeira, estavam um pouco deterioradas, podres, mas ainda serviam pra uma simulação de impacto. Colocamos elas em pé, fizemos algumas escoras para que fossem sustentadas. Em seguida, preparamos um Molotóv, usamos a garrafa de whisky. Eu tive a honra de ser o primeiro. Fiquei a uns dez

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passos da placa, tomei mais um pouco de distância pra pegar embalo para o arremesso. Dei aquela tradicional corridinha e gritei: - Molotóv! (devo admitir que sempre quis gritar “Molotóv!” durante um arremesso, faz parte do ritual; imagine arremessar uma granada sem gritar “Granada!”, ou, derrubar uma árvore sem gritar “Madera!”, seria a mesma coisa). Consegui acertar a placa de madeira (o que também não foi um feito incrível, mas a cena se tornou grotesca porque a garrafa não quebrou. Realmente, o meu receio se confirmou, o buraco na camada de ozônio de fato sugere que estamos cada dia mais propensos a adquirir câncer de pele, tô brincando, a garrafa realmente poderia não quebrar (perdão pela brincadeira estúpida, mas a narrativa já tava se tornando muito séria)). Minha primeira reação foi correr até ela e pisar no pavio, ainda poderíamos aproveitar o combustível. Tínhamos levado mais algumas garrafas vazias, a próxima a ser testada seria uma de vinho, e o próximo arremessador seria o Robs (o Indy cedeu gentilmente). Ele tomou distância e repetiu o mesmo processo (é óbvio que ele também gritou “Molotóv!”). Dessa vez, houve explosão. Teria sido perfeito se ele tivesse acertado o alvo, porém, a garrafa passou direto e acertou o muro (o Robs investiu demais na força, o que prejudicou a direção). Mesmo assim, ficamos empolgados com o que vimos (aquele era o primeiro Molotóv que eu via explodindo, talvez fosse o deles também). Agora era a vez do Indy, só tínhamos mais uma garrafa vazia, e parecia promissora (era a de casco mais fino até então usada). Preparamos o coquetel, e eu disse: - Não se esqueça de gritá “Molotóv”, se não, não é a mesma coisa. O Indy tomou distância, correu, gritou, e tínhamos o primeiro resultado positivo, o primeiro casco aprovado. Constatamos que, pelo menos, era possível que alguma garrafa se quebrasse ao bater numa placa de madeira. No entanto, tínhamos um outro problema, tínhamos algumas garrafas para esvaziar e tínhamos esquecido de levar outros recipientes pra colocar o líquido (já mencionei que nem todas as bebidas eram alcoólicas, ainda assim, era muita coisa para bebermos, mas não tínhamos outra alternativa, não queríamos jogar nada fora). Começamos leve, com uma água tônica (concluímos que poderíamos dar seqüência ao teste usando água em vez de combustível, mas eu e o Robs também queríamos nossa explosão). A garrafa não foi aprovada, resistiu ao impacto sem se quebrar. Tínhamos mais algumas de água mineral e suco, bebemos tudo e demos seqüência. Mais um resultado positivo, dessa vez, eu fui o felizardo, o casco era de água mineral. O Robs era o único que continuava arremessando, pra também poder sentir o gosto de uma explosão (ele já tinha conseguido, mas, acertando o muro, não é a mesma coisa). Havíamos iniciado a fase das bebidas alcoólicas. Eu e o Indy bebíamos mais, pra que o Robs não tivesse seu desempenho atrapalhado pelo álcool. Tínhamos um maior número de garrafas de vinho, se não me engano, eram três. Aí, tínhamos uma de conhaque e uma de Martini. Iniciamos pelo vinho. A experiência com a primeira garrafa não foi bem sucedida, então, demos seqüência. A segunda também não surtiu o efeito desejado e não estávamos mais muito sóbrios. O mesmo aconteceu com a terceira, quando, definitivamente, não estávamos mais muito sóbrios. Era a hora de partir para as outras bebidas. Até tentamos beber o Martini, mas ele era muito doce e nossos estômagos já não eram mais os mesmos do início da “operação”. Apesar de hesitantes, fomos obrigados a jogar fora o Martini. Pelo menos, não foi em vão. O Robs finalmente conseguiu sua explosão. Portanto, tínhamos três garrafas aprovadas; mas ainda restava o conhaque. O Indy disse que não o jogaria fora, mas não agüentávamos beber mais. - 85 -

Ele entrou na fábrica e pegou um pequeno tambor. Apesar da sua questionável sobriedade, ainda teve a idéia de enxaguá-lo antes de despejar dentro dele o conhaque. Preparamos o último Coquetel Molotóv, despejar o combustível pela boca da garrafa já não era mais algo tão fácil de se fazer, mas, de certo modo, conseguimos. Nós três tentamos explodir o Coquetel, mas não tava dando certo (não sei se pela garrafa ou pela condição em que nos encontrávamos). Acabamos jogando contra o muro mesmo, só para ver uma última explosão. Passado o teste com as garrafas, só mais uma coisa me incomodava, uma última dúvida. As missões deveriam ser efetuadas individualmente ou em duplas? O nosso grupo era composto por pouco mais de vinte integrantes, se fosse individualmente, poderíamos atingir um grande número de outdoors. Por outro lado, corríamos um risco bem maior, o indivíduo poderia errar o outdoor, a garrafa poderia não se quebrar, um único coquetel poderia ser pouco para iniciar a queima... Se a ação fosse em duplas, esses riscos seriam atenuados. Expus o problema ao Indy e ao Robs, e acabamos concluindo que deveríamos fazer uma seleção. Selecionaríamos aqueles que, no nosso conceito, fossem mais capacitados, estes seriam incumbidos de missões individuais. Cada um de nós escolheria três. - Eu escolho o Bill, o Don e o James _ disse eu. _ Eu tava pensando, vocês dois poderiam formá uma dupla... _ brinquei. - Muito engraçado! _ disse o Robs. _ Se quisé, pode mandá dois outdoor pra mim que eu dô conta. - Se quisé, pode dexá a missão intera pra mim que eu dô conta _ disse o Indy, sem querer ficar pra trás. Demos seqüência à lista: - Eu escolho o Homer, o Pluck e o Rock _ disse o Robs. - Droga! Você pegô quase todos os meus, agora, vô tê que pensá mais um poco. Dexa eu vê... eu escolho o Peter, o Bono... e o... e o Rambo. Depois disso, escolhemos as duplas. Concluímos que seria melhor entregar os últimos dados da missão (o local do outdoor, o nome do eventual parceiro e o horário) em envelopes lacrados. O apartamento do Indy quase ficou pequeno pra receber todos os integrantes. Instruímos que cada um só abrisse o envelope quando estivesse sozinho. Ninguém deveria comentar nada com quem quer que fosse (fizemos tudo isso para evitar que um possível delator pusesse tudo a perder, por mais que acreditássemos que não houvesse nenhum entre nós). Se o sujeito fosse realizar a missão em dupla, só encontraria seu parceiro na hora e no local determinados, já saberia o codinome de quem encontraria para evitar maiores surpresas e até mesmo alguma confusão, mas não deveria manter contato com este antes da ação. Eu, o Indy e o Robs demos as últimas explicações, cronometramos os relógios (dessa vez era sério, achamos que, até por questões de segurança, todas as missões deveriam ser realizadas no mesmo horário; obviamente, se houvesse algum imprevisto, o sujeito poderia adiar quanto tempo fosse preciso), distribuímos os coquetéis (o combustível usado foi óleo de motor, pra haver uma queima mais prolongada) e desejamos boa sorte a todos. Toda a ação estava marcada para às 11:47 daquela noite (fizemos isso só para não arredondar para horário nenhum). Depois da reunião, eu passei o resto da tarde sozinho na minha kitchenette. Eu não nego que tava um pouco ansioso, a responsabilidade colocada sobre mim era grande, eu, o Robs e o Indy éramos os exemplos para o resto do grupo, e havíamos selecionado para nós os outdoors mais difíceis. Antes de decidir quem ficaria com qual, havíamos averiguado todos - 86 -

eles. O meu e o do Indy eram considerados difíceis porque ficavam numa zona central. O do Robs ficava num ponto complicado, dentro de um terreno baldio, cercado por um muro alto (a questão era, se ele jogasse do lado de fora do muro, a distância era grande e o coquetel poderia não explodir, ou nem acertar o outdoor). O horário tava se aproximando, eram 9:30. Eu tava ansioso, eu nunca ficava ansioso antes da ação, fato que me deixava mais ansioso ainda. O Robs havia dito que prevíamos os imprevistos, estaria eu prevendo que ocorreria algum imprevisto? (sei que a frase soou de forma absurda). Comecei o ritual, tirei as roupas que me ligavam a um presente insuportável, tedioso, e coloquei as que me ligavam a um futuro idealizado (por mais que eu não tivesse uma idéia muito concreta de que futuro seria esse). As já tradicionais roupas negras; eu não quis colocar sigla nenhuma (MS2 havia sido criado pra manter os leigos e superficiais, mas, infelizmente, indispensáveis), conservava apenas a letra “A”, símbolo de anarquia, que a Helena havia colocado. Passei os cadarços nos coturnos e, em seguida, calcei-os. Me sentia como um guerreiro prestes a entrar num combate épico, e gostava disso. Eu havia nascido para as batalhas, para guiar os soldados (eu disse que não gostava de militarismo, mas não consigo encontrar outra palavra que não “soldados”) nobres rumo à vitória; eu havia nascido para o heroísmo, para dar meu sangue por uma causa. Não tinha culpa por estar numa época de ócio improdutivo, por fazer parte de uma geração fadada a se tornar sedentária e obesa. Eu tinha uma vida e não podia me conformar em desperdiçá-la, sendo só mais um número nas estatísticas. Os meus sonhos não eram um carro do ano e uma aposentadoria aos 60 e, sinceramente, não estimava muito quem sonhava com isso. Estava prestes a agir e isto fazia eu me sentir bem, a única coisa que me desagradava um pouco era aquele receio que eu estava sentindo, aquela espécie de pressentimento. Mas, no fundo, eu gostava até disso, desse receio, dessa incerteza; eu sabia que qualquer coisa era melhor que a inércia. Peguei a maleta (dessas que têm uma alça comprida que passa pelo ombro) que continha o Molotóv e deixei a kitchenette. Meu coração tava acelerado, o que era incomum. Eu seguiria a pé até o metrô, enquanto caminhava, recordava do último discurso do Robs: “Sabe o que nós somos pra esse sistema lá fora? Pros caras que controlam essa porra? Nós somos isto (disse, mostrando uma garrafa de refrigerante vazia), descartáveis.” “Nós somos sugados todos os dias, somos moralmente estuprados, somos torturados. Sabem o que eles dizem que pensam da gente? Que somos uma burguesia metida à revolucionaria, jovens que cansaram de rachas e agora querem bancá os comunistas. Sabem o que eles realmente pensam da gente? Que somos o inevitável, o amanhã, que a comodidade nos incomoda, que preferimos passar fome do que comê sempre a mesma coisa.” “Nós, todos nós que estamos aqui, tivemos um segundo útero, uma lata de lixo. Um útero no qual fomos obrigados a entrar e do qual estamos prestes a sair. E, acreditem, nós sairemos, nasceremos outra vez.” “Alguns dizem que somos vândalos. Eu pergunto, isso nos atinge? Que sejamos então os novos vândalos dessa “Nova Roma”, a qual, assim como a antiga, vai sucumbi em breve. Alimentemos o nosso ódio dessa “Roma”, desse império que tá ruindo, nos alimentemos do medo desses “novos romanos”, que sabem que os seus dias de manipulação e injustiça estão contados. Façamos hoje (disse ele, levantando um Coquetel Molotóv), um brinde à queda da “Nova Roma”. Dai a César o que é de César, e aos limpos o que é dos limpos!”.

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O Robs havia lido o meu livro, “Ensaio sobre o Comunismo”, e disse que havia adorado. Ele tinha até um projeto em mente, queria fazer algumas cópias pra que todos os membros do MS2 também pudessem ler. “Agora _ dizia ele _, é preciso acabá com o que tá instaurado. Depois, a gente pode instaurá alguma coisa parecida com o que você escreveu”. Às vezes, toda aquela convicção dele me assustava, apesar de ser parecida com a minha (eu também me assustava comigo mesmo). Assim como eu, ele tinha certeza que o capitalismo iria cair; fazia planos para o que viria depois. Se analisarmos o que o capitalismo se tornou depois da Guerra Fria, com o surgimento da Globalização, nosso pensamento sova de forma completamente absurda. Saí do metrô e comecei a caminhar em direção ao meu ponto. Caminhava devagar, ainda faltava um pouco mais de uma hora para o horário determinado (eu detestava relógio, mas, dessa vez, não tinha escolha). Quando cheguei ao outdoor, eram 10:53, ou seja, eu tinha que matar tempo. Comecei a circular pra averiguar o movimento, para ter uma noção de quais riscos eu corria. O outdoor não ficava no centro da cidade (não seriamos tão loucos a ponto de pegar um no centro), mas ficava num bairro central. O movimento de pedestres não era grande, nem se aproximava disso, mas o tráfego de carros era contínuo. Como a avenida era rápida, as pessoas que passassem nem notariam a minha presença, ou, se notassem, não tomariam nenhuma atitude (talvez você conclua que seja excesso de otimismo imaginar que uma pessoa atirando um Molotóv passaria despercebida, mas era o que eu esperava). O que eu receava era que passasse algum policial no momento da minha ação. Sei que pode parecer paranóia, mas, sempre que eu temia o pior, ele acontecia. Eu não gostava de ficar esperando pra agir, começava a levantar muitas hipóteses que só aumentavam a minha ansiedade. Concluí que não deveria continuar circulando muito, apesar de acreditar que ninguém se daria ao trabalho de fazer um retrato falado de um sujeito que atirou um Molotóv num outdoor (se bem que a hipótese não era absurda, já que, no dia seguinte, não seria apenas um, mas vários outdoors atingidos por Coquetéis Molotóv), não gostava da idéia de ficar expondo o meu rosto (e circular com o capuz seria absurdo, só o usaria no momento exato). Fiquei parado numa esquina, olhando no relógio e numa determinada direção, como se estivesse esperando por alguém. Tentei esvaziar minha mente, como numa meditação, mas meditação era algo impossível de se praticar num lugar como aquele, com carros desfilando com sons superpotentes e o pior tipo de música já produzida. Eu estava tenso e ansioso como pouca vezes estive em toda a minha vida. A freqüência com que eu olhava para o relógio era uma demonstração do meu estado de espírito. O tempo parecia se recusar a passar. Às 11:30, não resisti mais. Havíamos combinado que, por motivos de força maior, o horário poderia ser alterado. E, ao meu ver, eu tinha um motivo de força maior. Passei em frente ao outdoor e fui até a outra esquina (mais para matar tempo do que para qualquer outra coisa). Retornei e parei diante dele. Fiquei um tempo contemplando aquela obra desse “Renascimento”, ou “Assassinato Cultural”. Tratava-se de um casal jovem, o rapaz segurava a mocinha pela cintura, esta, por sua vez, arqueava-se pra trás, dando à cena um ar meio libidinoso (é redundante dizer que os dois tinham boa aparência). Sobre eles, estava escrito “COLCCI”; não havia nenhum slogan, creio que a imagem falava por si. Conferi o relógio mais uma vez, 11:37. Era a minha hora, dez minutos de antecipação. Uma vez que eu colocasse a mão dentro da bolsa, teria que ser rápido e não poderia voltar

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atrás. Esperei que o movimento desse uma cessada. Nenhum carro passando, não haveria oportunidade melhor. Enfiei a mão dentro da bolsa e tirei primeiro o capuz, coloquei-o rapidamente, em seguida, peguei o Coquetel. Soltei a bolsa no chão, o isqueiro tava no meu bolso. Agora, eu não via mais nada, era só eu e o outdoor. Puxei o isqueiro e ateei fogo no pavio, tudo corria perfeitamente. Eu tentava ser rápido, mas não podia me precipitar, aquele era o movimento decisivo. Prendi a respiração, dei três passos à frente e atirei. Perfeito! Aquela explosão foi como 10mg de Diazepan injetável. Senti todo o meu ser se tranqüilizando. Acertei num ponto quase central, tinha sido um ótimo arremesso. Aparentemente, o fogo logo se espalharia. Mas, num segundo, toda aquela recém adquirida tranqüilidade deu lugar a uma descarga de adrenalina. Meu sistema nervoso, central e periférico, tornou-se uma pista de impulsos elétricos, ouvi o som de uma sirene. Assim que olhei pra trás, avistei uma moto da polícia, vindo em minha direção, na hora, era impossível, e incabível, medir sua distância (acredito que ela deveria estar a uns 40 metros de mim). Tudo que fiz foi sair correndo, desesperado, exigindo dos meus músculos mais do que eles tinham a oferecer. Cheguei à esquina, que não estava muito distante, e virei na contramão, na tentativa de dificultar um pouco as coisas para o policial. Eu ouvia aquela sirene se tornando cada vez mais forte e sabia o que isso significava. Por um instante, me senti de volta aos primórdios da humanidade. Me senti como um longínquo ancestral, correndo de forma instintiva, e quase insana, para escapar de um predador faminto. Eu era um Homo Erectus, fugindo do novo leão da modernidade. Entrei num terreno baldio, que foi muito oportuno, eu tinha que dar um jeito de tirar a moto de cena. O mato chegava quase à altura do meu joelho. Não precisei olhar pra trás pra saber que continuava sendo seguido, pude ouvir o som da moto parando e o barulho de alguém amassando o mato atrás de mim. Eu corria em direção a um muro e pulei-o numa velocidade que hoje me espanta. Isso me provocou algumas escoriações no braço, que na hora passaram despercebidas. Eu tava no quintal de uma casa (sem cães, por sorte) e tinha minha melhor oportunidade de despistar o policial. O muro que pulei era bastante alto, fato que, por alguns instantes, me mantinha fora das vistas de meu perseguidor. Eu tinha três opções, podia continuar correndo em linha reta e pular a grade da frente, que dava acesso à rua; podia pular o muro da minha esquerda, ou ainda, o da minha direita. Optei pela esquerda e continuei nessa direção. Quase caí dentro de um canil, os cães não pareciam ferozes, mas eu não queria conhecer eles de perto. Uma garotinha brincava no balanço e não pareceu se assustar quando me viu passar correndo pelo seu quintal. Quase parei pra conversar com ela, sobre qualquer coisa. Sempre gostei de falar com crianças, não parei por muito pouco. Devo ter passado por uns dois, três quintais até que finalmente cheguei na rua. Sentia que, pelo menos temporariamente, eu havia despistado o policial, mas isso não era o suficiente para que eu parasse de correr. Usava toda a potência que meus músculos podiam oferecer. Eu me aproximava rapidamente de uma esquina, o policial não tava mais me perseguindo, ainda assim, resolvi que atravessaria aquela rua direto, não pararia, não reduziria o meu ritmo, mesmo se tratando de uma avenida rápida. “Sei que vô atravessá, meu destino não pode sê tão irônico assim _ pensei”. Como você já deve ter presumido, meu destino realmente não foi tão irônico (pelo menos, não nesse caso), consegui atravessar ileso. Sei que fui imprudente, mas acho que isso deve ser até um pouco natural. Cada um de nós se julga o protagonista deste mundo, acredita - 89 -

que ele não pode continuar sem a gente; mas talvez a verdade seja um pouco diferente. Talvez a minha história pudesse ter acabado ali, naquela rua, no pára-choque de um carro qualquer. Quem sentiria falta de mim? Talvez minha família, a Helena e meia dúzia de amigos. Só isso. O mundo continuaria funcionando, por mais que isso ferisse meu ego (se é que eu ainda teria um ego), as pessoas não ficariam de luto por minha causa. Mas eu já estou quebrando uma promessa, prometi que daria uma resumida e não é isso que está acontecendo, portanto, vou tentar não me exceder demais nos pormenores. O fato é que, depois de correr alguns quarteirões e ficar completamente acabado, consegui chegar à estação de metrô. Algumas pessoas me olhavam de um jeito meio estranho, acho que porque eu tava ensopado de suor, mas esse tipo de atitude por parte dos outros não era incomum (tanto pela maneira como eu me vestia quanto pela qual eu agia). Enfim, cheguei ao pensionato. Depois de tomar um banho, deitei na minha cama e senti uma satisfação incrível. Eu me senti vivo como há muito tempo eu não me sentia, me senti forte, útil. Todos aqueles que haviam virado as costas para mim levariam uma marretada na nuca. Isto era eu, a própria “marreta” nas “mãos” da Revolta. Eu me sentia o protagonista do mundo e tava de saco cheio dos coadjuvantes. Dormi um sono tranqüilo e profundo, não fazia idéia do que me esperava no dia seguinte.

VII

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Desculpe, mas, na verdade, não tinha porra nenhuma me esperando no dia seguinte, só quis fazer aquele típico suspense de final de capítulo. Nós até fizemos uma reunião depois da ação, mas não foi nada que merecesse destaque. O resultado da “operação” foi melhor do que eu esperava, não que eu não confiasse nos outros membros do grupo, mas nunca gostei de criar muitas expectativas para evitar decepções. Óbvio que alguns falharam, se não me engano, foram quatro, mas não houve problemas graves, parece que a garrafa não explodiu ou algo do gênero. Ninguém, além de mim, encontrou a polícia durante a ação. Algumas vezes, eu me considerava um desgraçado por esse tipo de coisa, por o pior insistir em acontecer comigo. No entanto, com o passar do tempo, mudei um pouco de opinião (não é aquele clichê ridículo de “agora tô mais maduro e enxergo melhor as coisas”), percebi que eu até queria que algumas dessas coisas “inoportunas” acontecessem. Fugir desesperado do policial naquele dia, por exemplo, foi algo muito bom. Talvez você me ache meio doido por isso, mas é verdade. É como se, a cada provação que eu passava, eu me tornasse mais forte, como se fosse o meu exercício psicológico. Depois de apanhar muito do mundo, eu ria a cada tabefe que ele acertava na minha cara. Ria porque eu sabia que ele podia bater o quanto quisesse, nada podia fazer eu me sentir pior. Quando eu ficava pensando, deitado em minha cama, de vez em quando, surgia a idéia de ter algo, uma espécie de “acaso inteligente”, conspirando contra mim. Eu sinceramente achava engraçada essa idéia. Primeiro porque, levando em conta a minha insignificância, se esse “acaso” insistia em ferrar comigo, já não podia ser considerado um “acaso inteligente”. Segundo porque só eu mesmo seria tão otário pra elaborar uma teoria de “acaso inteligente” e “acaso estúpido”. Como sempre, depois da ação, veio a calmaria. Alguns dos novos membros diziam conhecer pessoas com potencial, que, eventualmente, poderiam entrar no MS2 (óbvio que éramos eu, o Indy e o Robs que avaliaríamos). A proposta parecia interessante, para ser analisada com bastante cuidado, ainda assim, interessante. Os Coquetéis Molotóv haviam chamado bastante a atenção da mídia e da polícia, portanto, um pequeno recesso, pra deixar as coisas esfriarem um pouco, seria bem oportuno. Além do mais, no momento, não tínhamos nenhuma nova idéia. Sempre achei o ócio um grande aliado do surgimento de novas idéias, mas também achava que a entrevista para aliciar novos membros parecia bastante promissora. Sempre me senti atraído pela psicologia, e a oportunidade de explorar um pouco a psique desse tipo de pessoa era bastante atrativa. Dessa vez, mudamos um pouco o processo seletivo. Incluímos um teste físico, que ocorreria antes da entrevista. No decorrer das missões, aprendemos que ter um condicionamento físico razoável pode fazer a diferença. Como a minha fuga do policial, por exemplo (por favor, sem sarcasmo, eu não tô querendo bancar o atleta), se eu tivesse sido apanhado, além de eu me ferrar, talvez todo o grupo acabasse pagando por isso. Eu, o Robs, e o Indy marcamos uma reunião com todo o pessoal. Dissemos que faríamos um teste para avaliar possíveis novos membros, cada integrante poderia indicar no máximo três. Pedimos que tivessem bom senso na hora de indicar os candidatos, que não sugerissem ninguém que pudesse vir a pôr em risco todo o grupo. Os caras deveriam comparecer num parque local, onde realizaríamos o primeiro teste. Deveriam estar usando roupas que permitissem a realização de atividades físicas.

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No dia marcado, apareceram mais ou menos uns vinte e cinco. À primeira vista, não havia nenhum que pudesse ser descartado de imediato (mesmo porque, na minha opinião, descartar alguém de imediato é estupidez, o único critério usado é o preconceito). Quando comecei a escrever sobre esse novo processo seletivo, tava disposto a relatar tudo detalhadamente, mas mudei de idéia (o fator principal dessa mudança foi a preguiça mesmo). A coisa toda ia se tornar muito monótona e não agüento ler, muito menos escrever, narrativas monótonas. Conclusão, vou dar uma boa resumida (resumida mesmo!). Dissemos pros caras que apenas um novo membro engajaria no grupo, pra que eles se empenhassem ao máximo. As primeiras provas, obviamente, seriam as físicas, e a primeira seria a de resistência. Dariam o maior número de voltas que agüentassem ao redor do parque. Todos eles mandaram bem, houve uns cinco que se destacaram mais, mas ninguém fez feio. No dia seguinte, o teste era flexões, abdominais e exercícios do gênero. Teve uns dois ou três que deixaram a desejar e uns dois ou três que me surpreenderam. Mas o critério físico não era o de maior importância, o que decidia se o cara seria aceito ou não, eram as entrevistas. Até fizemos umas provas, que eram um pouco parecidas com as missões que realizávamos, mas não era nada muito interessante (talvez até fosse, mas já disse que não tô disposto a narrar tudo nos mínimos detalhes). Tudo bem, retomando o rumo, o ponto alto eram as entrevistas. Eu realmente me divertia nessa fase, apesar de o número de entrevistados ser menor dessa vez. Pra compensar, eu fiz algumas alterações, acrescentei novas perguntas e novos métodos. Também não vou detalhar muito isso (na verdade, talvez detalhe, sei lá! você vai descobrir). Eu contava uma piada pro sujeito e via qual era a reação dele (a piada era completamente estúpida, dessas que a maioria das pessoas acha sem graça, mas que eu acho as melhores). A propósito, vou explicar por que eu acho essas piadas engraçadas e talvez você me dê razão (ou pelo menos me compreenda). Por que achamos uma piada engraçada? Por vários motivos, mas eu diria que há um principal. As piadas em geral costumam ter uma linearidade inicial, que culmina num final surpreendente. É a surpresa, o desfecho inesperado, que nos faz rir. É aí que entra a minha teoria. Se já esperamos um final surpreendente, que contrarie as expectativas criadas pelo início, esse final já não será tão surpreendente assim. Quando eles tinham que contar alguma, também era engraçado (na maioria das vezes, não pela piada). Uns ficavam atônitos, “Piada?! Eu não sei... nunca fui bom nesses negócio...”; outros ficavam indignados, “O que que tem a vê?”. Um contou uma piada gigante, deve ter durado quase meia hora, talvez até fosse engraçada, se eu não tivesse “viajado” e me perdido na metade. Um ou outro compreendeu bem o estilo da minha piada e contou uma mais ou menos parecida, o que rendeu bons risos da minha parte. Eu fazia outros tipos de perguntas também, mas tava claro que eu queria me divertir. Perguntei pros caras qual foi a situação mais inusitada e a mais constrangedora pela qual haviam passado, e confesso que houve algumas realmente surpreendentes (não vou citar exemplos). O Indy e o Robs faziam perguntas mais sérias, perguntavam se os caras sabiam fazer bombas caseiras; se conheciam alguma arte marcial; se haviam servido ao exército ou participado de algum outro treinamento e etc. No final, acabamos selecionando uns cinco ou seis. Dissemos aos outros que era inviável mantermos um grupo muito grande, mas que, assim que fosse possível, eles seriam - 92 -

convocados para integrar o MS2. Eles realmente tinham a preferência, todos eram bons, havia sido muito difícil escolher. Não houve nenhum tipo de cerimônia de integração, não gostávamos dessas coisas. Os recém integrados eram praticamente iguais a nós, não havia um posto mais alto ou mais baixo. Sei o que você deve tá pensando: “Se não existia hierarquia, por que você, o Indy e o Robs ditavam as regras?”. Pensando bem, talvez você teja certo. No entanto, qualquer um poderia sugerir uma missão, mas não vou bancar o hipócrita, a missão teria que ser aprovada por mim, pelo Indy e pelo Robs antes de entrar em prática. Pode parecer que eu só tô querendo argumentar e encobrir a verdadeira situação, mas acredito que exercer uma espécie de comando não significa ser mais importante. O que seria mais eficiente numa guerra, um exército sem voz de comando, ou um comandante sem um exército? De qualquer forma, eu considerava que todos nós éramos de igual importância (óbvio que havia um que era mais eficiente que o outro) e acredito que esse negócio de liderança é uma coisa meio natural. Os caras se sentiam bem com a gente dizendo o que deveria ser feito. Se alguém não se sentisse e quisesse dar alguma opinião, nós o expulsaríamos do grupo. Tô brincando! Calma! Se alguém tivesse alguma opinião pra dar, é claro que nós o ouviríamos, afinal, o que nós mais detestávamos era a falta de oportunidade, uma falsa liberdade que só faz oprimir. Enfim, depois de escolher alguns novos integrantes, eu e o Robs nos reunimos na minha kitchenette pra conversar. Eu ainda tinha várias garrafas de whisky e, com um copo na mão, a conversa fluía melhor. Ele começou a me falar sobre umas receitas de bombas caseiras, e havia várias, mais tarde (não naquele mesmo dia), testaríamos todas. Havia uma que era feita com raspas de cabeças de fósforos, dentro de uma bola de tênis; o negócio era simples, era só encher a bola com as raspas. Quando você jogava a bola contra uma alvo, com o impacto, as raspas atritavam e você tinha uma considerável explosão. Depois de alguns copos de whisky, a conversa acabou mudando de rumo: - Detesto filósofos _ disse o Robs. _ Todos eles. - Por quê? - Arrogantes, assim como eu. Por isso que eu detesto eles. Um cara arrogante sempre detesta outro arrogante, porque não admite que possa haver alguém melhor que ele. - Arrogantes...? _ falei sem entender direito. - Porcos arrogantes. Todos. Por isso eu detesto e tenho pena e vergonha deles, e desse monte de paga-pau que se acha inteligente por citá uma frase feita e o nome de um autor. Eu não. Eu tento esquecê aquele monte de merda que eu li. Eu odeio Nietzsche, Sartre, Platão, Descartes... - Ainda não entendi. Por que você odeia esses cara afinal? - Já falei, porque eles são igual eu, um bando de porco arrogante. Todos eles, se você for vê a fundo, procuram uma suposta “verdade”; tentam desvendá um suposto “mistério”; procuram explicá determinados “comportamentos”... e todos têm uma teoria. Até aí tudo bem, se eles não tivessem certeza que a teoria deles é a certa. Eles acreditam que descobriram as resposta pras pergunta que faziam. Você entende o que isso qué dizê? Se você é humano, você não encontra resposta pra essas pergunta. Eles se achavam algo acima do humano, se achavam deuses, numa definição simples. - Mas e se eles acharam as resposta? - Eu já pensei nisso, mas cê sabe que eles têm um monte de teoria divergente. Cada um diz uma coisa, e cada um acha que a teoria dele é a certa. Isso qué dizê que, se alguém

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encontrô alguma “verdade”, o que eu acho poco provável, foi um só; o resto é um monte de babaca. - E por que cê acha poco provável? - Opinião pessoal, meio romântica, meio besta. É que eu penso que, se existe algum “mistério”, alguma “verdade”, e não tá ao alcance de todo mundo, é porque não foi feito pra sê exposto, pra sê explicado. E se algum cara fosse capaz de desvendá esse mistério, ele ia entendê isso e ia guardá a descoberta dele só pra ele. - Faz sentido. - Faz e me dexa loco. Me tortura idéia de que alguém pode sabê algo maravilhoso que nunca vai chegá a mim. Sinceramente, não sei se é porque seria uma coisa incrível que podia mudá a minha vida, todo o meu ser, ou se porque seria a prova definitiva de que alguém tá muito à minha frente, a prova de que alguém foi tão melhor que eu que eu não vô tê nem capacidade pra comprová isso. Depois de ficarmos um tempo em silêncio, eu falei: - Eu acho uma merda esse negócio de ídolo. - É, é uma merda mesmo. - Um ídolo mais babaca que o otro, idolatria fidida. Mas eles sentem necessidade disso, de achá que existe alguém melhor que eles. - Porque conhecem a si mesmos. Sabem qual é a sua natureza, mesquinha, superficial, manipulada, passagera... e precisam acreditá que alguém não é assim. Aí, em vez de se autointitularem semideuses, dão esse título pro primero babaca que seja aclamado por um grande grupo, ou seja, pro primero famoso que encontram. - Fazê isso deve salvá muita gente da depressão. Imagine quantos cara devem tê dado um novo sentido à vida sonhando encontrá o ídolo. Por outro lado, acho que é isso que leva os cara famoso à depressão, sabê que eles não têm nada de extraordinário, ainda assim, são idolatrado. - Pode sê sim, mas isso pros mais lúcido, porque tem uns que acabam achando que são semideuses mesmo. Eu nunca consegui idolatrá ninguém, acho que pela minha própria arrogância mesmo; ia sê impossível, pra mim, achá que um cara é tão melhor que eu a ponto de se torná meu ídolo, meu modelo. É deprimente vê esse monte de adolescente tentando imitá uma celebridade qualqué; por isso, é sempre bom sabê qual é a moda do momento, assim, você pode se afastá de todo mundo que acompanha ela. - Mas isso não pode sê aplicado de uma forma geral, se não, acaba virando uma forma de preconceito. - Quando eu digo moda, me refiro mais à manera de se vesti, mas também se aplica à música. Esses disgraçado da mídia te fazem uma lavagem cerebral com esse monte de merda comercial. - Mais de uma vez já senti vontade de arrebentá uns alto-falante. É uma tortura, eu me sinto violentado com esse monte de porcaria entrando pelos meus ovido e, muitas vezes, não tenho como escapá. - Maravilhas modernas. Na Idade Média, as pessoas temiam saí de casa à noite por causa de bruxos, monstros, lendas... nós, por causa de música pop, eletrônica... As coisas pareciam (atente bem para esse “pareciam”) tá voltando completamente ao lugar na amizade entre eu e o Robs. Voltávamos a conversar como antigamente e realmente gostávamos de conversar um com o outro. No fundo, admirávamos um ao outro. Um dia, numa reunião já com os novos membros do MS2, o Robs citou uma passagem do meu livro, “Ensaio sobre o Comunismo”: - 94 -

“Sabem o que me dexa puto? É essa porra de manipulação, de condicionamento. A gente tem que dançá segundo a música deles. Por mais que você se olhe no espelho e diga: “Não, eu sô um cara esclarecido, tenho minhas próprias opiniões”. Bestera! Você é um cara “esclarecido” formado por eles, com os esclarecimentos que eles te deram. Todo o tipo de informação, de opinião que chegô até você, só chegô porque eles permitiram. E você ainda acha que tem suas próprias opiniões? Tudo é penerado por alguma grande corporação. Você pode argumentá: “Não, mais eu vi aquela reportagem”. Que passou por qual agência de notícias? “Eu vi aquele filme”. Que passou por qual estúdio? “Eu li aquela revista (ou aquele livro)”. Que passou por qual editora? “Eu ouvi aquele CD”. Que passou por qual gravadora?” “Por mais que você busque e encontre uma produção independente, onde o autor pôde se inspirá senão no meio? Senão naquilo que permitiram que chegasse até ele?” “Eu sei que o que eu tô falando pra vocês parece desesperador, angustiante, mas é a verdade. O nosso mundo é desesperador e angustiante. Então, vocês devem pensá: “Se é assim, o que a gente pode fazê?”” “Eu acho que há duas possibilidades: Podemo esperá um messias, alguém que traga a Verdade e a Saída direto da fonte, de uma fonte imaculada, pura; ou podemo acreditá que esse sistema não é perfeito, que é falho, então, podemo atacá aquilo sobre o que ele se fundamenta”. “Mas não podemos nos esquecer de que, apesar de mais concreta, a segunda alternativa é a mais arriscada. Talvez, estejamos novamente sendo manipulados. Talvez, o Sistema quer que acreditemos que ele é falho, talvez queira que acreditemos que ele se fundamenta sobre isso ou aquilo. Talvez, ele até queira que organizemos uma Revolta”. “Por quê? Por que ele iria querer isso? Pensem da seguinte forma, usando um exemplo ridículo, vocês tão brincando de “Caça ao Tesoro” e têm certeza que interpretaram uma pista da forma correta e tão no caminho certo. Vocês olham pro lado e percebem que um adversário se confundiu, tomou um caminho completamente errado. O que vocês fazem? Vocês olham pra ele e falam que ele é um idiota que não soube interpretá a pista, ou simplesmente dexam que ele pense estar certo e demore muito tempo pra percebê o equívoco?” “Como vocês vêem, as alternativas são incertas, os caminhos são obscuros. Mas nós não temos otra opção, senão, acreditá que há uma chance e dedicá todas as forças numa determinada direção. Eu acredito que todos aqui já sabem que o Prometeu escreveu um livro, não é mesmo? Pois é, nesse livro, ele colocô alguns tópico que eu acho de grande relevância”. “Os 7 Pecados Capitalistas. Para a sua auto-sustentação, o capitalismo precisa se estabelecer sobre uma plataforma bem moldada. Essa plataforma nada mais é que a sociedade, e como uma sociedade é composta por pessoas, faz-se necessário atuar sobre cada indivíduo _ Não me recordo direito das palavras do Prometeu, por isso, vô sê direto e citá os pecados, fazendo a explicação mais fiel possível; por favor, se eu cometê algum equívoco, me corrija, Prometeu”. “1o Ócio. Não se pode dar tempo livre às pessoas, é preciso mantê-las ocupadas, ou pelo menos preocupadas; é necessário que trabalhem, estudem ou se entretenham com algo para preencher o tempo. À noite, antes de dormirem, devem pensar de forma delimitada e individualista (contas a serem pagas, suprimentos a serem comprados, projetos a serem entregues...), é preciso que seus universos sejam pequenos e impossibilitem uma visão ampla”.

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“2o Consciência. A consciência é uma inimiga perigosa. Quando se é, ou está, consciente, a insatisfação é praticamente inevitável. Como de forma generalizada a consciência surge da reflexão, remetemos ao primeiro pecado e ao preenchimento do tempo livre. Para manter as pessoas alienadas é indispensável o uso do entretenimento. Quando se manipula a mídia, manipula-se toda a sociedade. Assumindo o controle dos veículos de comunicação de massa, é possível determinar o que será discutido, tanto nas mais altas cúpulas, quanto no mais ordinário quiosque. Não importa se irão concordar ou discordar, debaterão aquilo que lhes for imposto”. “3o Igualdade. O indivíduo não deve se contentar com a igualdade. Ele deve procurar destaque, deve tentar, independente de que atitude seja necessária, ser o primeiro, o melhor. Deve se contentar, e até mesmo contribuir para a incapacidade e o infortúnio dos outros, pois isto realçará o contraste com a sua capacitação e prosperidade. Quanto pior forem os outros, melhor você será”. “4o Altruísmo. O altruísmo deve ser banido da sociedade, pois reforça o pecado anterior (igualdade) e sugere insanidade por parte do praticante. Que pessoa em sã consciência ajudaria um adversário em potencial? Que pessoa ajudaria o mais fraco até que este ficasse forte a ponto de equiparar-se a ela, ou até mesmo derrotá-la? Que fique claro que nesta ordem mundial todos (independente de laços familiares) são adversários em potencial. Ninguém é tão forte a ponto de ser insuperável. Apenas uma coisa detém o poder indissolúvel e intransitório, o Capital”. “5o Harmonia. É impossível para o sistema capitalista se manter num mundo em harmonia, visto que esta sugere equilíbrio e estabilidade. A economia necessita estar em movimento, portanto, a insatisfação torna-se um combustível. Para que o capitalismo se mantenha, é preciso que haja guerras, doenças, criminalidade e até mesmo catástrofes”. “6o Liberdade. O livre arbítrio sobrevive na sociedade atual apenas como um ideal utópico. O homem moderno não tem o direito de escolha. Seus passos estão prédeterminados. Não se pode negar que ainda lhe são apresentadas opções, mas algumas das alternativas o levariam a autodestruição ou à margem. A competitividade crescente e a necessidade pré-estabelecida determinam o futuro do indivíduo”. “7o Revolta. Dos “pecados” que ameaçam o sistema, esse é o mais grave. É através dele que todos os outros (incluindo os que aqui não foram citados) se manifestam e clamam por mudanças na base instituída. A Revolta reflete o descontentamento de determinadas pessoas e por si só sugere que outros “pecados capitalistas” foram cometidos. Todavia, num primeiro momento, ela não é motivo para alarde e muito menos para pânico, tendo em vista que pequenos focos jamais abalariam as bases do sistema, as quais estão muito bem estabelecidas. De certa forma, estas pequenas revoltas podem até apresentar um lado positivo para o capitalismo, partindo do princípio que mantém os indivíduos integrantes num trabalho improdutivo. Que mal haveria em se deixar um garotinho esbofetear as vigas de um arranhacéu? Ele acabaria destruindo os próprios punhos e, num determinado momento, perceberia que tal atitude não surte efeito algum e acabaria desistindo”. VIII Eu tava agonizando de novo, o que não significava que eu tava realmente morrendo. Estar agonizando era sentir a cada movimento respiratório a angústia e a agonia que eu creio que deva se sentir no último. Era viver a cada segundo a agonia derradeira sem ter o alívio final. E eu sabia o motivo disso tudo. Era o meu ego, inflando outra vez. Não quero bancar o monge budista, mas é impossível ter paz com um ego inflando. - 96 -

Vou explicar melhor como esse processo ocorria comigo. Às vezes, eu começava a me achar uma ótima pessoa, não sei por que, mas eu me achava uma pessoa muito boa, talvez a melhor do mundo (meu ego inflando) (obs: se você ficou com raiva de mim por eu dizer que me sentia a melhor pessoa do mundo, isso sugere que seu ego esteja inflado também). Segunda etapa, me sentia muito injustiçado, por eu ser tão bom e poder fazer tão pouco, por não ter nenhum reconhecimento, por só receber “bofetada”. Última etapa, eu entrava numa crise profunda (pense numa crise profunda mesmo) de autopiedade. Meu Deus, como eu tinha pena de mim mesmo! “Eu nasci no mundo errado _ dizia a mim mesmo. _ Sô uma pessoa boa demais pra sê um ser humano como os otros. Eu devia tê nascido num mundo melhor (sei que o simples fato de eu pensar assim, já leva a crer que eu não poderia ser uma pessoa tão boa quanto eu imaginava, mas eu tava cego pela minha autopiedade)”. Eu me sentia o maior de todos os mártires, porque eu sequer teria o meu martírio reconhecido. Morreria no anonimato, sem ter minhas virtudes (hoje me pergunto que virtudes seriam estas) reconhecidas. Eu tava sentado na sala da casa do Robs. A Helena tava tomando banho. Ele tava sentado numa poltrona, de frente pra mim, e me falava de um novo tipo de bomba que ele tinha aprendido a fazer. Era uma bomba feita a partir de uréia. “Se você fervê a tua urina _ dizia ele _, você consegue isolá a uréia. Você pode comprá ela isolada, mas aí não tem a mesma graça”. Se não me engano, ele disse que era preciso misturar a uréia com hipoclorito de sódio (mas não tenho muita certeza), a partir daí, não ouvi mais nada. Eu tava morrendo de piedade de mim mesmo. Meus olhos lacrimejavam e eu tentava disfarçar, esfregando-os com os dedos. Minha garganta doía (o popular “nó na garganta”) e sentia um desconforto em meu estômago. Eu era o protagonista de um filme que ninguém nunca assistiria, e sabia disso. Por sorte, o Robs tava muito empolgado com a tal bomba e nem percebeu a minha situação. Mas a Helena tava saindo do banho e eu precisei me conter. Ela era muito esperta, por mais que eu tentasse disfarçar, tinha certeza que ela perceberia que algo estava errado. E foi o que aconteceu. Naquela noite, saímos só nós dois. Íamos ao cinema. Não tínhamos andado nem um quarteirão e ela já me perguntou: - O que que tá acontecendo, Prometeu? - Como assim? (típica pergunta pra se ganhar tempo). - Você tá meio esquisito, alguma coisa tá errada. Aconteceu alguma coisa? - Eu nasci meio esquisito. - Você tá enrolando. Fala logo, o que que aconteceu? Eu não sabia ao certo o que falar. Na época, eu não percebi de imediato que o problema era o meu ego inflando (eu me achando o melhor sujeito do mundo). Pra mim, aquela era uma esquisitice espontânea (talvez eu até soubesse o motivo, mas quisesse escondê-lo de mim mesmo). - Você tá feliz? _ perguntei, me surpreendendo um pouco com a pergunta. - Como assim? Feliz com o quê? - Com a vida, com tudo, sei lá... - Tô feliz sim. Por que, você não tá? - Agora eu tô me sentindo bem sim, mas tudo que eu consigo são alguns momentos. Eu não sei ao certo o que é felicidade, mas o fato é que não me lembro de ter me sentido “feliz” por um dia intero. Como você sabe se você tá feliz? O que seria um dia feliz pra você? - 97 -

- Um dia feliz, pra mim, seria te bejá do primero ao último segundo. Sabe por quê? Porque eu te amo. Essa era a Helena. A pessoa mais encantadora que conheci (talvez eu só achava ela tão encantadora assim porque ela me idolatrava tanto quanto eu). Se tinha uma coisa que fazia eu me sentir feliz, era ouvir ela dizendo que me amava. Esse era eu. O semideus, a pessoa “boa demais pra ser humana”; no final, necessitando de um pouco de afeto, de atenção; no final, sendo igual a todo mundo. As outras lembranças felizes que tenho envolvem minha mãe, parreiras, uvas e minha infância. Mas tudo parece tão distante, como se fosse uma outra vida, um outro mundo. Eu detesto falar em cifras, mas, se eu pudesse, eu trocaria toda a minha fortuna por um dia feliz (acredite, seria uma quantia considerável, mas eu não pensaria duas vezes). Esse dia teria um céu azul; cheiro de uvas, de terra molhada e de pão assando no final da tarde; teria um pouco da Helena, um pouco da minha mãe e da minha infância. Eu só falo isso pra você não cometer determinados erros (eu tinha colocado “certos erros”, mas aí ficou estranho, como um erro pode ser certo?!), não se preocupe muito em ganhar dinheiro, achando que é garantia de felicidade. Sei que essa é a conversa mais antiga e manjada do mundo, mas o dinheiro realmente não traz felicidade (merda! Depois dessa, definitivamente fui parar na auto-ajuda, ou meu livro foi tachado de água-com-açúcar). O fato é que, a menos que a Helena ficasse o tempo todo dizendo que me amava, eu não conseguiria me sentir bem. Fui dominado por uma angústia profunda, por um tormento incessante que me torturava cruelmente. Me via novamente na mesma situação em que havia estado dias atrás. Depressão. Não tinha ânimo pra fazer absolutamente nada. Não suportava a presença de ninguém, não suportava ouvir minha própria voz e nem mesmo meus pensamentos. Então, iniciei outro período de hibernação. Foi exatamente naquela noite, após me despedir da Helena. Me tranquei no meu quarto na tentativa de me afastar do mundo que havia lá fora, um mundo que me fascinava; um mundo que me apavorava; um mundo grande demais pra caber em minhas mãos, mas pequeno demais pra que eu coubesse nele. Outra vez eu estava perdido no tempo. Não tinha por que saber que horas eram, ou que dia, ano, século ou milênio. “Que diferença faz? _ pensava comigo mesmo. _ Seja que dia for, não é o “meu dia””. Quanto mais tempo eu passava deitado, mais razões encontrava pra não levantar. Me assombrava a capacidade de interação e integração entre as pessoas; todas elas. O Homem realmente era um animal sociável. Menos eu. “O que eu sô afinal? Eu sô o estranho no ninho. Bem ou mal, eles convivem. Sô eu o porco arrogante que acha que eles não são dignos da minha presença e, por isso, não sô digno da presença deles”. Eu me sentia a inutilidade personificada. Tava no mundo pra consumir oxigênio e alimento. E também pra iludir alguns jovens, na tentativa de iludir a mim mesmo (mas nem isso eu havia conseguido direito). Apesar de decadente, por pior que ela fosse, as pessoas faziam parte de uma sociedade. A Sociedade do Anel (tô brincando! Me perdoe pela brincadeira sem sentido). Não lembro de muita coisa dessa segunda vez que me isolei. Lembro do frio, de algumas lágrimas mornas rolando a princípio, lágrimas que achei que não iam parar nunca, mas que acabaram parando. Lembro de uma vontade desesperada de sonhar com coisas boas, de ter o melhor sonho do mundo, um sonho que durasse pra sempre. Lembro de me levantar algumas vezes pra ir ao banheiro; depois de algum tempo, deixava que a urina morna

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escorresse por minhas pernas e encharcasse minhas roupas e lençóis, e depois tudo ficava gelado, provocando um contato que me dava arrepios. Também me lembro dos calafrios e dos tremores, era como se estivesse o tempo todo com uma febre incessante, como se estivesse preso a um eterno delírio. Lembro vagamente de alguns sonhos. Sonhos estranhos, na maioria, desagradáveis. Lembro de ter sonhado que estava deitado em minha cama, exatamente da maneira que eu realmente estava deitado (isso acontecia comigo algumas vezes, eu sonhava que estava deitado no lugar em que realmente estava). De repente, no sonho, entraram duas pessoas no meu quarto. Eu queria olhar pra elas, mas não conseguia manter meus olhos abertos; era como se cada pálpebra pesasse uma tonelada, tudo que eu conseguia era ver alguns flashes. E, nesses flashes, pude perceber que se tratava de pessoas muito feias, desdentadas, quase desfiguradas. Não conseguia distinguir se eram homens, ou mulheres, ou um casal. Se aproximaram de mim e começaram a passar uma mão grossa, áspera, em meu rosto, num afago hediondo e satírico. Como já disse, eu quase não conseguia abrir os olhos, mas, em determinados momentos, eu via aproximarem seus rostos medonhos da minha cara numa espécie de riso repulsivo, e podia sentir aquele hálito podre e gotas de saliva caindo em meu rosto e causando náuseas quando caíam em minha boca. Mas eu não podia fazer nada. Tava paralisado, impotente, a mercê daquelas criaturas grotescas. Não conseguia mexer um músculo, mergulhado numa inércia profunda. Pude senti-las se deitando em minha cama, uma de cada lado, e balbuciando coisas ininteligíveis em meus ouvidos. Até que, impulsionado por uma angústia profunda, consegui me mover. Então, não havia mais criatura alguma. No entanto, o quarto era exatamente o mesmo, eu tava deitado exatamente na mesma posição do sonho. Mas talvez isso nem seja tão incomum assim, ou talvez seja, só sei que esse tipo de sonho sempre foi o pior que já tive. Fiquei um tempo nesse estado (estado deplorável, por sinal). Algumas pessoas já haviam batido na minha porta, e tive a impressão que alguém tinha chamado o meu nome, mas não tinha muita certeza. Eu nunca sabia quando estava realmente acordado, ou em qual momento iria acordar. No entanto, de uma coisa eu sabia, a qualquer momento o Robs ou o Indy (ou os dois juntos) colocaria abaixo a porta da minha kitchenette. Eles já deviam estar preocupados com o meu sumiço; por mais que ainda não estivessem, a Helena acabaria obrigando o Robs a tomar alguma providência. Então eu levantei. “Por qual motivo? _ talvez você tenha pensado (se você não pensou, me desculpe; eu detesto falar pelos outros, mas, algumas vezes, me sinto obrigado)”. Por pura e simples conveniência. É verdade, só por conveniência. Sempre fui prático nesse aspecto, se uma coisa teria que acontecer, eu não ficava retardando. Eu sabia que, a qualquer momento, alguém me encontraria naquele estado (não pense que foi por vergonha; eu tava na contramão da vergonha. A vergonha, a timidez, geralmente ocorrem naquelas pessoas que têm um excessivo amor próprio, que zelam pelo seu “eu”, pela sua imagem; enfim, chega de querer bancar o psicólogo). Se alguém me encontrasse, ficaria chocado. Dependendo de quem fosse, talvez fizesse um grande alarde, chamasse um médico, uma ambulância... sei lá. Sei que, se alguém me encontrasse, a situação seria inconveniente. Sei que, neste livro, já me intitulei como “o cúmulo do inconveniente”; mas eu me contradigo bastante. Talvez devesse ter me intitulado “o cúmulo da contradição”, ou melhor, “o cúmulo da coerência”, porque aí seria mais contraditório.

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Tudo bem, suspendendo as divagações (dessa vez sem contradições, ou já me contradizendo, pelos simples fato de ter aberto este parênteses), optei pela saída mais prática. Levantei porque, mais cedo ou mais tarde, acabaria levantando. Antes de levantar completamente, fiquei um tempo sentado na cama, pra que meu cérebro se acostumasse novamente com aquela posição, uma tentativa de atenuar a inevitável tontura. De qualquer forma, consegui evitá-la (tô brincando, mais uma brincadeira insistindo com a contradição). No primeiro impulso, levantei e caí sentado novamente na cama. Depois, me apoiando primeiro na cabeceira e depois na parede, consegui ficar em pé. Mas meu estômago não suportava tudo aquilo girando incessantemente e começou a se contrair em espasmos. Fui dominado por uma sucessão de ânsias e cheguei a vomitar um líquido incolor e viscoso, semelhante à saliva; aquilo era tudo que havia em meu estômago. Enfim, cheguei ao banheiro. O processo de recuperação pelo qual passei foi muito semelhante àquele que havia passado da outra vez, por isso, acho que não vale a pena relatar tudo de novo. A primeira coisa que fiz (não necessariamente a primeira, mas uma das) foi ligar pra Helena. Ela tava realmente muito preocupada. Disse que já tinha feito de tudo pra conseguir notícias minha (isso que nem fazia tanto tempo assim que eu tinha “sumido”). Mas eu consegui tranqüilizá-la; disse que eu tava muito ocupado com a universidade e que faria o possível pra ir na casa dela naquele final de semana. Com o Robs foi diferente, eu sabia que ele não engoliria direito aquela história de estar muito ocupado, e realmente não engoliu. Ele não questionou nada, não comentou nada, mas eu sabia que ele não tinha acreditado. Perguntou se eu não havia pensado em nada pra uma próxima missão. Eu disse que não tinha nada muito claro em mente, mas que gostaria de conversar melhor com ele, pessoalmente, quando fosse visitar a Helena. Eu esperei uns dois dias pra ir na casa deles. Queria tá mais recuperado. Esperei mais ou menos o mesmo tempo pra aparecer na faculdade, mas aí foi mais por falta de disposição mesmo. Eu não agüentava aquelas aulas. Acho que você já percebeu que eu não gosto de falar daquela droga de universidade, mas dessa vez é inevitável. Eu cheguei lá com aquela mesma empolgação de sempre, como se tivesse indo pra cadeira elétrica. Mal tinha começado a primeira aula, uma daquelas secretárias bem vestidas (que você nunca sabe exatamente em que setor trabalham), que sempre dão os recados nas salas veio me chamar. Eu estranhei aquilo. Nunca tinham me chamado pra nada até então. Ainda no corredor, a moça disse que o professor Stuart queria me ver em seu gabinete (tô inventando pra ele um nome aleatório, o cara era tão chato que não merece que eu fique pensando num pseudônimo que tenha a ver com a sua personalidade). “Caramba! O que será que aquele véio qué? _ pensei comigo”. Eu tinha aquela sensação de que não podia ser boa coisa, aliás, eu tinha essa sensação em relação a tudo que estava por vir; se você não cria expectativa, o que vier é lucro. Eu já tinha me frustrado muito por criar expectativas. Pior ainda é criar expectativa em cima de expectativa, ou seja, planejar algo em decorrência daquilo que ainda não se realizou. Eu já fiz isso muitas vezes. O professor Stuart era um dos professores com os quais eu menos simpatizava. Ele era baixo, tinha uma barriga saliente e já devia tá na casa dos 60. Tinha o cavanhaque e o cabelo grisalhos e usava uns óculos redondinhos. Andava sempre bem vestido, bons ternos e bons blazers, sempre combinando com camisa, calça e sapato. Nunca havia tido muito contato com ele, mas me parecia ser um cara de muito bom gosto. Aquele típico cara que, se for jantar fora com você, você pode deixar ele escolher o vinho que não vai ter erro.

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Mas a questão é que ele não era nenhum pouco simpático. Ele se achava o último dos intelectuais, perdido no meio de um monte de selvagens. Quando tava dando aula, dava pra perceber que ele se impressionava com a própria inteligência. Devia amaldiçoar sua má sorte todos os dias, por não ter nascido rico o suficiente pra fazer suas viagens ao redor do mundo sem precisar trabalhar no meio de universitários estúpidos, que nunca conseguiriam captar um milésimo de seu conhecimento. Eu apostaria qualquer coisa como a sua linha de raciocínio era mais ou menos essa. A secretária bateu na porta e entrou sozinha no gabinete dele. Depois ela saiu e mandou que eu entrasse. Ele tava de costas pra mim, olhando pela janela, com uma mão segurando a outra atrás das costas. Ele devia ter ensaiado aquela pose. Eu posso imaginá-lo, primeiro, sentando na sua poltrona e cruzando as pernas, depois, apanhando o jornal e abrindo ele, como um complemento. Insatisfeito, apanhou um charuto ou um cachimbo numa gaveta e acendeu-o (realmente havia cheiro do tabaco no local). Mas aquilo não produziria o efeito que ele desejava, ficava com um ar meio de máfia. Talvez ele tivesse apagado o charuto no cinzeiro e deixado ele ali dentro (infelizmente, o cinzeiro, acho que era de bronze, tava tampado), ou então, guardado ele de novo na caixa, ou ainda, guardado o cachimbo dentro da gaveta (quem sabe eu tava viajando, e ele só tava fumando antes de eu chegar). Então, teria tentado outras poses até achar a ideal. Ao meu ver, aquela pose realmente se encaixava bem no contexto. Dava um aspecto de indiferença; ele nem olhou pra mim quando eu entrei. Como se a minha presença ali fosse algo insignificante, como se ele tivesse me recebendo meio que a contragosto, como se tivesse me fazendo um favor. - Bom dia, seu Prometeu _ disse, alguns segundos depois que eu havia entrado e finalmente se virou pra mim. _ Sente-se, por favor. Sentei sem devolver o cumprimento e sem frases de boas maneiras, no estilo “com licença”. Eu não simpatizava com ele e não via por que fingir isso. As pessoas que se dizem educadas geralmente são hipócritas. Normalmente eu devolveria o “bom dia” porque acho que até o professor Stuart tem direito a um. Mas a minha intuição tava me dizendo que ali tinha coisa; o cara nunca tinha notado a minha presença e, de repente, me chamava pro seu gabinete. - Sei que o senhor deve estar achando estranho eu tê-lo convocado à minha sala, portanto, vou ser direto e explicar o que está acontecendo. Eu vi a exposição das obras dos alunos e o seu trabalho impressionista me “impressionou” muito, se é que o senhor me entende (ele riu sozinho daquele trocadilho horrível, devia ter se achado o máximo quando bolou ele; pra mim, aquela era mais uma prova de que ele havia treinado o que ia dizer. Definitivamente, o professor Stuart não era espontâneo. “Lógico que entendi o teu trocadilho idiota, mas você não espera que eu dê risada, né? _ foi o que tive vontade de dizer, mas acho que a minha expressão disse tudo”). Deu pra ver que ele se constrangeu um pouco com a minha seriedade, mas continuou falando: - Vi nele os traços de um mestre. Algumas aptidões são uma dádiva, um presente da natureza, um dom. Sempre admirei muito o impressionismo, mas nunca tive muito talento com o pincel, e confesso que o seu talento me parece único. Não quero tomar muito do seu tempo (“já tomô _ pensei na hora”), portanto, vou direto ao ponto. Gostaria de encomendar ao senhor uma tela. Gostaria que reproduzisse uma tela de Seurat. Obviamente que será muito bem remunerado.

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- Ótimo! (pude ver toda a ansiedade que havia em seu rosto, desmanchando sob a forma de um sorriso). - Então, o senhor está de acordo?! Sabia que poderia contar com o senhor, sempre foi meu aluno mais inteligente. - Só tem um porém (pude ver aquela alegria se decompondo num semblante que se contraía). Não vou reproduzir um Seurat, a obra será de minha autoria. O senhor sabe que qualquer artista que se preze não se submete a fazer cópias, isso é um insulto a sua criatividade, um desrespeito à obra original, além do que, é um crime. - Ora, o senhor está sendo muito radical. Creio que seja uma honra para um artista conseguir reproduzir um Seurat com perfeição. Não acredito que seja errado reproduzir o que há de belo e, dessa forma, aumentar a beleza que existe no mundo (não acreditei que tinha ouvido aquilo, foi o argumento mais “mais ou menos” que ele podia ter usado). E, afinal de contas, seria somente a realização de um desejo pessoal, e ninguém, muito menos o senhor, jamais seria punido por isso. - Sem dúvida é uma honra, e um prazer, pra qualquer artista poder usar as técnicas usadas no impressionismo. E eu concordo que as coisas belas não devem ser restritas a poucos. - Então, não vejo por que não fazer o que estou pedindo. A não ser que o senhor não se considere apto a... (meu Deus! Ele me surpreendia a cada instante; agora tava usando uma psicologia infantil. Insinuava que eu tava inseguro pra que eu quisesse provar o contrário e fizesse o que me pedia. Me poupe!). - Se o senhor quer uma réplica, eu o entendo e vejo uma solução mais fácil. É só o senhor ir numa loja qualquer, pode ser no shopping que fica aqui perto, você encontra réplicas de todos os artistas. O senhor só gasta uns 15 ou 20 dólares e tem uma cópia perfeita, e imediata. A não ser que o senhor tenha um motivo em especial pra querer uma cópia em tela. Se for isso, talvez possamos conversar quando o senhor tivé disposto a contar tudo. Até mais! Levantei da cadeira e saí. Sabia que aquela era a atitude certa. Apesar de não ter muito que apostar, eu apostaria qualquer coisa como aquele velho não tava me falando a verdade. Ele tava me pedindo uma falsificação e me chamando de burro na maior cara-depau. Se ele tivesse sido direto, eu não teria me revoltado. Se ele sentasse e falasse: “Tô querendo falsificá um quadro pra faturá algum dinhero”; eu não me revoltaria. Mas pensar que eu ia acreditar naquela lengalenga de realização pessoal realmente me ofendeu. Eu tinha certeza que ele ia me procurar de novo. “Se não me procurá, que se dane _ pensei”. Eu sabia que eu pintava bem. No final, sempre ficava insatisfeito com o meu trabalho, mas isso é natural pra qualquer artista. Nunca pedi a opinião de ninguém especializado sobre o meu trabalho (meu conselho, nunca faça isso) e nunca dei ouvidos aos que deram sem eu ter pedido (independentemente se eram críticas ou elogios). Se eu gostava do que tinha feito, tudo bem (ficar satisfeito era impossível, no máximo, eu podia gostar), se não, eu jogava o trabalho num canto e esquecia dele. Esse negócio de não pedir opinião de críticos, professores ou até mesmo de algum amigo que acha que entende do assunto, é verdade. Se você pede a opinião deles, eles acham que você quer ser criticado e que eles têm o dever de te criticar (como se fosse um protocolo que deve ser seguido). Quer um exemplo mais palpável? Se você vai a um médico fazer um check-up, ele se sente obrigado a encontrar algum problema (por mais que isso seja desagradável, ele acha que é o dever dele). Ele nunca diz que você não tem nada, que tá 100 por cento. Ou, se disser, no final, ele acaba receitando alguma coisinha: um Ginseng, Ginko - 102 -

Biloba, ou algo do gênero. Ele acha que se disser: “Você tá ótimo, não precisa de nada”, não vai tá cumprindo o seu dever. A mesma coisa é com o dentista, se ele não arranjar uma restauração, sem pelo menos uma aplicação de flúor você não escapa. Outro bom exemplo é o oftalmologista. Ele nunca vai dizer que a sua visão tá perfeita (ainda mais que, se você o procurou, é porque sentiu alguma anormalidade). Alguma coisa ele vai te receitar. Talvez seja um colírio, um óculos 0,25, ou alguma outra coisa. Por essas e outras que eu não pedia opiniões (por mais que, no fundo, ficasse curioso) e não dava ouvidos a elas. Aqueles elogios repentinos do professor tinham me preocupado. As críticas não são tão perigosas quanto os elogios; pelo contrário, se você recebe uma crítica negativa, teu ego fica ferido e você tenta provar o quanto você é bom (ou então desanima e não tenta mais nada). Mas os elogios te deixam cego. Fazem você pensar que é exatamente aquilo que queria ser, que não há mais nada pra ser corrigido. Geralmente, fazem você se sentir mais poderoso do que é na realidade, então, você falha por excesso de confiança. Ou talvez não seja nada disso e eu só teja falando besteira. De qualquer forma, eu tentava me proteger do meu próprio ego, ainda assim, me perguntava se eu realmente tinha um talento incomum. “Afinal, o cara podia pedi pra qualqué um pintá o quadro, por que ele veio pedi pra mim? _ pensava comigo”. Fiquei o resto da aula pensando naquela conversa. Se o cara realmente queria que eu falsificasse, era negócio grande; se ele só queria um quadro pra pôr na parede, eu tava fazendo um dos papéis mais ridículos da minha vida. Mas fazer um papel ridículo era algo que não me preocupava já havia algum tempo, ser enganado por medo de parecer idiota não tava nos meus planos. Muita gente faz isso, sente essa vergonha de tá fazendo um papel de bobo. É impressionante o quanto as pessoas querem zelar da própria imagem. Não perguntam o significado de termos que não conhecem, ainda que seja essencial pra compreensão de determinado assunto, por medo de que seja uma coisa trivial, que todos conhecem. Eu apostaria qualquer coisa como você mesmo deve ter deixado de esclarecer alguma dúvida em sala de aula, com medo de que os outros colegas soubessem a resposta e fosse alguma coisa óbvia. Não se acanhe, isso é natural, assim como aquele pavor de falar em público, com medo de cometer alguma gafe, de dar um “branco” e esquecer tudo na hora. Esse tipo de coisa só mostra que você é normal (no sentido bom da palavra). Talvez, não se preocupar com esse tipo de coisa seja uma das poucas vantagens da carência de amor-próprio. Se você não tenta se tornar um ícone, você tá se lixando pra tua imagem, não tem nada pra esconder. Lembra que eu disse que ia abrir as portas do meu banheiro pra você, pois é, eu tô contando tudo, sem omitir, ou mentir, nada pra tentar dar uma de nobre. Na verdade, as pessoas tentam parecer o menos humanas possível. Tentam esconder umas das outras coisas que ambas fazem; na minha opinião, o zelo pela imagem e a hipocrisia tão separados por uma linha muito fina. Já tô viajando demais, deixa eu voltar pra história. Acredito que o professor Stuart não imaginava que eu ia agir daquela forma. Qualquer aluno da classe ia ficar pulando de alegria com os elogios e ia se sentir lisonjeado em pintar um quadro pro professor (ainda mais, faturando um bom dinheiro por isso). Quando a aula acabou, fui direto pra casa da Helena. Engraçado, enquanto eu tava “vegetando” em casa eu não sentia saudade dela, mas, no caminho pra casa dela, parecia que eu não ia agüentar mais um segundo sem vê-la, era como se eu sentisse um medo de nunca mais encontrar ela, cheguei até a correr. Eu já tentei várias vezes compreender o que era aquela necessidade da Helena que eu sentia às vezes. Vou tentar explicar a teoria que mais me convenceu, vai parecer meio piegas, vai parecer que eu tô tentando bancar o herói, o mocinho; mas eu disse que ia contar tudo, e tudo inclui isso. Eu acho que a verdade é que, no - 103 -

fundo, eu gostava muito das pessoas, às vezes, eu ficava meio confuso, mas eu gostava mesmo. Quanto a elas, sempre achei que a recíproca não era idêntica, que não chegava nem perto disso. Eu precisava desesperadamente que alguém gostasse de mim tanto quanto eu era capaz (por mais que eu não quisesse admitir, eu era humano); eu encontrava isso na Helena. O portão tava trancado. Apertei o interfone, ela abriu a cortina e deu um sorriso. Imediatamente, o planeta voltou à órbita e todas as coisas voltaram aos seus lugares. A visão do sorriso dela me tranqüilizava completamente. Ela destrancou o portão e ficou me esperando na porta. Ficamos parados, olhando um para o outro por alguns segundos. Ela tentou ficar séria e fazer cara de braba, mas não agüentou e acabou rindo. - O que foi isso? _ perguntei. - Quase não te reconheci; fazia tanto tempo que você não aparecia. O que que aconteceu? - Negócios. No Haiti (até hoje não sei direito por que falei “Haiti”, foi a primeira palavra que veio à minha cabeça). - Do jeito que você tá pálido, parece que foi na Sibéria. Sério, o que que aconteceu? - Eu fiquei dias esperando pelo menos por um abraço, e só recebo um monte de pergunta. Devia tê ficado dançando hula-hula. Ela me abraçou bem forte, chegou a doer o meu pescoço, mas, ainda assim, eu poderia passar o resto da vida daquele jeito. - Eles não dançam hula-hula no Haiti, é no Havaí _ disse ela, ainda agarrada no meu pescoço. - Era um intercâmbio. Um grupo do Havaí foi dançar hula-hula no Haiti, e um do Haiti foi fazer “coisas que se faz no Haiti” no Havaí. - “Coisas que se faz no Haiti”?! _ disse ela rindo. - Eu amo você, Helena. - Eu sei disso, apesar de você não fazê questão de dexá isso muito claro. - Desculpa... por tudo. - Sem drama, você não fez nada tão grave assim. Vamo entrá _ disse ela, me levando pela mão até a sala. O Robs não tava em casa, confesso que fiquei satisfeito. Eu queria um tempo pra conversar só com ela. Eu queria ouvir, ouvir tudo que havia acontecido com ela, o que tava acontecendo e o que ela queria que acontecesse. Só o fato de ouvir a voz dela já fazia eu me sentir bem. Ela podia passar o dia todo falando palavras aleatórias, desconexas, que eu ficaria ouvindo. É óbvio que eu me interessava pelo que ela pensava e era muito melhor ouvir suas idéias e seus planos. Normalmente, quando eu ia conversar com alguém, eu fazia um monólogo. Só as minhas preocupações eram importantes; só as minhas opiniões eram válidas; só as minhas teorias eram as corretas. Eu me considerava o único desperto numa terra de sedados (sempre há algumas exceções, mas, nesse caso, eram raríssimas). Nunca estava disposto a ouvir ninguém. Se alguém se dispunha a me ensinar alguma coisa ou tentava me convencer de algo, eu o considerava um arrogante que se achava o dono da verdade (que ironia, as pessoas que eu considerava insuportáveis, muitas vezes, eram parecidas comigo) e o deixava falando sozinho. Com a Helena era diferente, principalmente dessa vez. Eu queria ouvi-la a noite toda, queria que a sua voz ficasse gravada no meu subconsciente. Eu devo ter ficado horas fazendo perguntas pra que ela falasse mais e mais, até que o Robs chegou.

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Ele me cumprimentou com a maior naturalidade. Tava usando uma já tradicional camiseta de um supermercado, o que rendeu um comentário por parte da Helena: - Eu não entendo vocês. O Robs tem um monte de camiseta e só usa essas... Eu e ele nos olhamos e rimos. - O bom gosto é um dom das mulheres. O mau gosto é um direito dos homens, principalmente, dos loucos _ comentei. - Você não devia se preocupá com isso, Helena. Pense no contraste, quanto mais mal vestido eu tivé, mais bem vestida você vais parecê. - Vocês falam como se eu fosse uma patricinha, dessas de butique. - Como se fosse?! _ falei de forma irônica, franzindo a testa. - Meu Deus! É só o Robs chegá que você já começa de palhaçada. - Tô brincando. Mas aquela idéia do Robs, do contraste, é uma boa. Você pode virá modelo, Helena. Você já é linda, aí eu e o Robs pedimo autorização pra desfilá com você, um de cada lado. Do jeito que a gente tá acabado, você vai parecê mais bonita ainda. - Cada um fala por si _ disse o Robs. _ Se você se julga acabado, eu não posso fazê nada. - Ah, é? Qué dizê que você não se julga acabado? _ perguntei. - Não é o que a classe feminina diz. - Que classe feminina? Só vejo você andá com um monte de home _ disse a Helena, causando o nosso riso. - Robs, eu tava conversando com a Helena, e a gente queria te dizê que te dá a maior força. Você tá certo, no desfile, você não precisa sê o “cara do contraste”. Quem sabe, você pode sê o estilista, maquiador... sei lá (não tô insinuando que todo o estilista ou maquiador seja gay; quem sabe, haja alguma galáxia em que eles não sejam) (isso foi uma brincadeira) (viva os estilistas e maquiadores! _ isso foi uma tentativa de retratação). - Tá certo, tá certo. E vocês deviam virá comediante. A Helena levantou pra ir pegar um CD e o Robs me disse: - Tô precisando conversá um negócio sério com você, Prometeu. - Não hoje, Robs. Vamo só conversá bestera e dá risada. Amanhã ou depois, você fala o que tem pra dizê. - Beleza. Ela voltou e colocou o CD no som. Era Nirvana, nós três gostávamos. Começou a tocar um rife, ela começou a chacoalhar o cabelo caído na frente do rosto. - Meu Deus, Gorda! Que atuação, hein?! Você me surpreende a cada dia. Apesar de só tá eu e o Prometeu aqui, tô me sentindo constrangido. - As minhas amiga disseram que parece o Kurt _ disse ela, um pouco ofegante. - Se interne. - Pior que parece _ falei. - Ah, viu como parece _ disse ela, olhando pro Robs com um ar de triunfo. - Tô brincando, não parece não. - Ah, viu como não parece _ agora era a vez do Robs. - Tô brincando, parece sim. A Helena pegou uma almofada e começou a me bater, o Robs aproveitou o embalo e começou também. No fundo, eu sentia que talvez aquele dia fosse uma despedida. Sabia que veria eles mais vezes, mas achava que não seria como antes. A situação muda, você muda. Sempre detestei esse determinismo. Deveria ser ao contrário: você muda, a situação muda. Pra mim, adaptações consecutivas sempre foram um sinal de fraqueza. Alguma coisa sempre - 105 -

dita as regras, e várias coisas sempre se adaptam. Liberdade é uma piada. Que tipo de liberdade existe? É mais ou menos assim, você tem dois caminhos, um deles leva à morte, à destruição, o outro não. Qual deles você escolhe? A resposta é óbvia; parece humor negro, mas isso é a liberdade de escolha.

IX Passei aquela noite na casa do Robs. De certo modo, ele e a Helena haviam se tornado a minha família. Uma das coisas que eu mais gostava neles era aquele espírito de juventude. Não basta ser jovem pra ter aquele espírito, eu diria que a grande maioria dos jovens não o tem. Os velhos falam mal dele por inveja, porque já o perderam; se é que um dia o tiveram.

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Não sei direito como definir esse espírito, mas eu diria que não é não ter responsabilidade, é não precisar dela. Não é não levar as coisas a sério, é rir da seriedade. É conseguir ser livre, mesmo sem existir liberdade alguma. Não vou negar que meus olhos ficam úmidos quando me lembro de alguns momentos nos quais pude sentir esse espírito. Se você perde alguma coisa, você pode tentar encontrar; mas, se alguma coisa perde você, como fazer pra que ela queira tentar te encontrar? Talvez a evolução do pensamento seja a coisa mais irônica que exista, talvez seja descobrir todas as preciosidades que você tinha sempre alguns momentos após perdê-las. Se você ganha algo, você perde algo; e aquilo que perdeu sempre vai parecer mais valioso do que aquilo que ganhou. Isso é a insatisfação. Isso é a vida (acho que não vou mais pra autoajuda). Logo pela manhã, o Robs tentou tocar novamente no tal assunto sério; eu evitei. Eu sabia do que se tratava, era óbvio que era alguma missão. Provavelmente ela já devia estar até em andamento. Eu havia parado, o MS2 não. Eu disse que precisava resolver algumas coisas e que voltaria mais tarde; eu passaria mais aquela noite na casa deles (eles insistiram bastante e eu tava com vontade mesmo) e não iria pra aula no dia seguinte (dormir é menos perda de tempo do que ir pra aula). - Que que cê vai fazê? Cê anda muito cheio de mistério, hein, Prometeu? _ disse a Helena. - Eu já disse... negócios... hula-hula... - Tô até te imaginando com aquelas sainha... _ disse o Robs. - Por favor, Robs, guarde as tuas fantasias pra você. - Mas eu não falei que ia te emprestá as minhas saia havaiana. - Acho que não era esse tipo de fantasia _ disse a Helena. - Qual então? _ disse o Robs. _ Coelhinha da Play Boy? - Não _ falei. _ Aquela de enfermeira Darth Weider. Ninguém agüentou essa. Todo mundo riu. Eu já havia dito que a surpresa é o que faz a piada, e é exatamente aí que a aleatoriedade encontra o seu espaço. A Helena e o Robs não ficaram insistindo no assunto e deixaram eu ir resolver os meus “negócios”. Eu tava indo pra casa do Indy. Fazia algum tempo que eu não via ele. Mas não seria uma visita pra pôr a conversa em dia. Eu lembrei que ele fazia as entrevistas pra aliciar novos membros sempre usando um gravador, e eu precisava de um. Algumas vezes, eu gostava de caminhar, mas aquele sol tava me matando. Nem acreditei quando cheguei no apartamento do Indy. - Salve! Salve! Se não é o nosso saudoso fundador! - Me poupe, Indy. E aí, beleza? - Melhor do que nunca, ainda assim, não muito bom _ disse ele, entrando no apartamento e dando a entender que eu deveria entrar também. Eu sentei numa poltrona que tinha uns rasgos no forro, deixando a espuma aparecer em alguns lugares. Não sei por que, por um momento, me perguntei como aqueles rombos teriam sido originados; é que a lona parecia ser bastante forte, não rasgaria com facilidade (não procure gravar isso, achando que é uma peça crucial pra montar um quebra-cabeças e que, mais adiante, lembrando dos buracos da poltrona, tudo fará sentido) (talvez os buracos na poltrona sejam realmente uma peça crucial e eu só teja querendo te enganar). O lugar tava uma zona. Havia copos, amendoins e batatas fritas por toda a parte.

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- Que chiquero, hein?! _ falei sem muita cerimônia. _ Eu não ia me surpreendê se encontrasse um pernil num desses buraco _ disse, enfiando os dedos indicador e médio em um dos já famosos buracos da poltrona. - Não. Nesse buraco aí só tem costela. No da tua esquerda tá o molho tártaro e nesse rasgo maior tem um engradado de cerveja. - E não esquenta? - Só quando o meu cachorro foge. - Você tá andando muito com o Robs _ falei, rindo. _ Você não era assim. - Não tô entendendo aonde você qué chegá. - Antes, você nunca dexava o teu cachorro fugi. Se você não tá entendendo nada, não se preocupe, e nem procure sentido algum. A gente não tava falando por código; tava só falando coisas sem sentido. Eu prometi no início do livro que ia contar tudo, mas não posso negar que eu fico um pouco constrangido ao narrar diálogos como esse. Eu acho que eu tive algumas das conversas mais doidas do mundo. - O Robs te falô dos planos? Do projeto black-out? Falando nisso, onde que cê tava? A gente andô te procurando. - Eu tava resolvendo alguns negócios, em algum país que dançam hula-hula _ falei com um riso no rosto. - Tá certo _ ele percebeu que eu não contaria o que realmente havia acontecido. _ E resolveu, pelo menos? - Negócios complicados. Digamos que, pelo menos por um tempo, tô livre deles. - Isso é bom, ou menos pior. E o projeto, o Robs te falô? - Não, não. Eu não quero ser chato, mas é melhor você não contá. Ele tava bem ansioso pra falá sobre isso, ia ser sacanage se eu viesse aqui e você me falasse tudo. - É uma pena. Eu tava querendo te mostrá umas planta. - Planta? Tipo hortênsia, samambaia, margarida...? - Não, planta arquitetônica mesmo. - Poxa, vocês tão evoluindo, hein! Vai dizê que você manja de arquitetura também? - Não, pra falá a verdade, não. É só um esboço bem precário. Eu chamo de planta só pra parecê que é uma coisa decente, você me entende. Mas não tem como eu falá disso sem você sabê o esquema intero. - Mas e de quem foi a idéia pra essa missão? - Na verdade, foi tua. Minha! Eu nunca tinha falado nada sobre “projeto black-out”. Das duas uma: ou o Indy tava de sacanagem ou ele tava de sacanagem. - Cara, cê tá viajando. Eu nunca falei nada desse negócio aí. Eu nem sei o que tá se passando. Como que a idéia foi minha? - É, a gente elaborô o plano baseado num negócio que você falô uma vez. Você vai entendê quando o Robs te falá. É quase uma homenage a você. - Bom, então tá. Agora eu queria te falá uma otra coisa. Cê ainda tem aquele gravador? - Tenho sim, por quê? - Eu queria vê se você me emprestava. - Beleza. Qué que eu pegue agora? - Não precisa não. Será que cê tem uma fita pra me emprestá também? - Tenho sim.

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A gente ficou mais um tempo conversando sobre coisas que, confesso, não lembro as quais. Mas não culpo a minha memória por isso; afinal, já faz alguns anos que isso tudo aconteceu e ainda me lembro de muitos detalhes (claro que os diálogos não tão na íntegra, nem ao pé da letra, mas tão o mais fiel possível). Peguei o gravador e a fita e voltei pra casa da Helena. Dessa vez, eu tava um pouco mais distante, com alguns pensamentos martelando a minha cabeça o tempo todo. É claro que eu me divertia e ria bastante com eles, mas alguma coisa impedia que eu me entregasse por completo ao momento, eu me sentia preso a alguns planos e considerações a respeito do futuro. E isso não é bom. Não mesmo. Pensar no futuro, fazer planos e considerações, é criar expectativa. E você lembra o que eu disse sobre a expectativa (pelo menos, espero que lembre). O Robs propôs que fôssemos comer alguma coisa fora. Eu estranhei um pouco, porque tínhamos virado fregueses do restaurante chinês que fazia entrega a domicílio, mas não dei muita importância. A Helena foi se arrumar e, então, acho que compreendi o porquê da proposta, ele queria um tempo pra conversar a sós comigo. O assunto, acredito que você já saiba, projeto black-out. - E então, acho que agora dá pra gente conversá um poco sobre a missão? - Projeto black-out? - É. Acho que é a maior e a mais arriscada missão que a gente já fez. - Que negócio é esse de eu ter dado a idéia? - O Indy te falô alguma coisa? - Ele só disse que a idéia tinha sido minha. - Lembra que você odiava semáforos? _ disse o Robs, com aquele sorriso estranho nos lábios. Você deve lembrar dessa minha implicância com semáforos, eu devo ter comentado alguma coisa; tenho certeza que comentei. A verdade é que eles não saíam da minha cabeça, eu realmente detestava eles. Sei que parece loucura (aliás, o que neste livro não parece?), mas, no íntimo, eu achava que os semáforos representavam uma espécie de despotismo, de ditadura. Uma porcaria de sinal, que sintetizava a vida contemporânea; um objeto estúpido que dizia, todos os dias, a bilhões de pessoas quando elas deveriam parar e quando deveriam seguir em frente. E todas obedeciam. Acho que o semáforo sintetizava, pra mim, aquela liberdade de escolha, aquele arbítrio, oferecido pelo sistema. Você continua tendo alternativas, só que, se você escolher a “errada”, você morre. Você pode atravessar no sinal vermelho, mas... - Semáforo... _ falei meio que num transe reflexivo, daqueles em que o cérebro processa a informação. - A gente achô um jeito de neutralizá eles. A gente plantô umas bomba nuns lugar estratégico de distribuição de energia, quando elas explodirem, tudo apaga, inclusive os semáforo. - Como assim? Que tipo de bomba? Que lugar? - Material casero. A gente já embalô os explosivo e colocô nos lugar certo. Usamo cigarro como estopim. Ficô perfeito, a gente ganha tempo pra se distanciá. Eu tava impressionado. Realmente era uma boa idéia. Não pense que é a minha arrogância se manifestando, porque eu nem considerava que a idéia tivesse sido minha. Eu tinha feito alguns comentários, eles tinham aprimorado e bolado todo o resto. - Nossa... é uma boa. E quando vai sê? - Não dá pra dexá os explosivo muito tempo plantado, a gente vai explodi amanhã.

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- Amanhã? _ falei surpreso, como um menino que descobre que o seu presente chegou antes da data que os pais tinham prometido. _ E você acha que vai abrangê a cidade intera? - Ninguém sabe direito qual vai sê o efeito, mas a gente acredita que pelo menos o centro vai ficá no escuro. Eu fiquei empolgado com o tal “projeto black-out”. Talvez você ache que isso é errado. Mas o conceito de certo e errado depende exclusivamente de que lado você está. Por isso, o conceito de justiça é, em si, algo absurdo. Simplesmente porque nunca haverá um juiz ou júri completamente neutro. Ou seja, se você acha que o “projeto black-out” era algo errado, só quer dizer que você se encaixaria no outro lado, que você vê as coisas de uma maneira diferente. A justiça contemporânea e as noções de moral continuam as mesmas da selva: cada um só quer aquilo que é melhor para si, a velha busca pela sobrevivência e poder. - E que horas vai sê? _ perguntei. - Não sei. Às 7:30, a gente vai acendê os cigarro... - É curto ou longo? Que marca é? - Sei lá, eu não vi essa parte. Participei de uma otra etapa. - Porra, cê tá de sacanage _ falei, rindo. _ Pelo menos, alguém deve ter pensado em pegá os cigarro de um único maço, pra que exploda tudo mais ou menos na mesma hora. - Tomara que sim. - Tomara?! Cê tá caído hein, Robs? Cê não era assim. Se não é eu pra organizá tudo, o negócio não sai direito. - Cê tá certo. Se tem um ser humano insubstituível nesse mundo, esse ser é você _ disse ele de forma irônica. - Dexando a palhaçada de lado, pelo menos, você tem certeza que todo mundo vai acendê pontualmente às 7:30? - Tenho sim; os lugar onde tão as bomba são de poco movimento. E os cara conseguiram ropa de uma companhia de energia, ou de TV a cabo, sei lá, sei que é um uniforme que permite que eles subam nos poste sem chamá a atenção. Agora eu tinha um programa pra aquela segunda-feira. Admito que não era um programa normal, como ir ao cinema, ou ao teatro, por exemplo. Mas, convenhamos, tudo que é normal é um saco, começando pelas pessoas. Se você se julga normal, não se sinta ofendido(a), eu andei refletindo melhor sobre essa teoria. Eu particularmente não conheci nenhuma pessoa completamente normal (o que não quer dizer que não conheci nenhuma que fosse um saco), daquele jeito padrão e estereotipado que querem que acreditemos que os outros são, e que realmente acreditamos. Ou seja, encontrar uma pessoa normal é algo anormal; talvez, porque as pessoas ditas normais são as mais anormais de todas. Moral da história, não sei ao certo que gênero de pessoas é um saco (talvez sejam aquelas que ficam divagando cansativamente sobre assuntos sem fundamento, por exemplo), talvez seja esse mesmo o gênero delas: pessoas que são um saco, só isso. A Helena já tava pronta e não tinha como o Robs falar: “Agora que eu já pude conversá em particular com o Prometeu, a gente pode pedi uma comida chinesa mesmo”; nem o Robs seria capaz disso. Digo “nem o Robs” porque ele não era o cara mais preocupado com conveniências (não tava nem entre os cinco, pra retomar a expressão). Mas uma coisa era inegável, ele adorava a irmã. Eu e ele já havíamos discutido sobre a família ser uma das principais deficiências da sociedade, como uma precursora das instituições reguladoras e protecionistas, no entanto, há determinados instintos e sentimentos mais fortes que razões e ideologias (se você tá se perguntando: “que discussão sobre família?”, me perdoe, mas eu não - 110 -

poderia colocar todos os nossos diálogos neste livro, mesmo porque, acabaria se tornando algo cansativo, tanto pra mim, quanto pra você. Além disso, tendo em vista que meu objetivo principal era relembrar alguns pontos de minha juventude para dar seqüência à história, acho até que já me excedi um pouco). Acabou que, mesmo nenhum de nós estando muito disposto, fomos jantar num pequeno restaurante. A Helena tava indo porque o Robs tinha convidado; o Robs tinha convidado porque queria falar comigo; e eu tava com fome, mas preferia pedir comida chinesa, porém, por motivos que até aqui acho que já tão bem claros, acabei indo também. Sei que não foi o caso, mas tentar ser muito agradável, muitas vezes, acaba te tornando um chato. Como fazer um programa estilo filme, jantar ou coisa que o valha. Você convida a tua namorada, teu amigo, tua amiga, enfim, quem quer que seja, pro tal programa numa tentativa de ser agradável (mesmo sem tá com a mínima vontade de fazer nada). A pessoa aceita na tentativa de ser gentil. Vocês acabam saindo e fazendo algo que ambos não tavam com nenhum pouco de ânimo pra fazer. É por essas e outras (várias outras) que eu não entendo esse mundo. O nosso programa não foi tão ruim assim. A comida era boa e barata (barata era um ponto muito importante na época). O lugar não tinha muita gente, o que dava uma sensação de privacidade e nos deixava mais à vontade. Rimos bastante de tudo aquilo que pudesse ter a mínima graça e, talvez até principalmente, daquilo que não tinha graça nenhuma (pelo menos, não para a maioria das pessoas). A Helena tinha resolvido se arriscar no vinho novamente. Ela não tava embriagada, no máximo, tava alegre. Tava mais solta, falando mais (não que fosse hábito dela falar pouco). Se tem uma coisa que me faz apreciar as bebidas alcoólicas, é a capacidade de fazer as pessoas soltarem a língua, admito que, às vezes, isso é uma desgraça, mas, às vezes, é uma dádiva. Foi num desses rompantes de fala que a Helena disse algo marcante. Um pequeno detalhe, que podia passar despercebido, mas que acaba fazendo toda a diferença. Como disse um dos precursores da Teoria do Caos, o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas. Foi assim, como as ágeis asas de uma borboleta, que os lábios da Helena deram origem a um tornado: - Sabem o que é felicidade pra mim? _ disse ela com aquele inconfundível sorriso no rosto. - Espere _ falei interrompendo a fala dela. _ Espere só um pouquinho _ tomei um gole de vinho. _ Pode continuá. - Um restaurante qualquer, uma mesa qualquer, um vinho qualquer _ disse ela, pegando uma garrafa e olhando o rótulo _, uma comida qualquer... e dois caras. Mas esses caras... esses caras não podem ser dois caras quaisquer. Eles precisam ser os dois homens da minha vida. Houve aquele silêncio. Não um silêncio constrangedor, eu diria que talvez um silêncio de comoção. Aquele silêncio que ocorre quando algo de verdadeiro sai de uma pessoa e atinge outra, tomando conta dela lentamente. Você sabe que, normalmente, nesse tipo de pausa, eu diria: “meu cérebro processando a informação”. Mas, eu não sei, é estranho... eu sempre quis dar prioridade à razão, a um pensamento lógico, mas algo me diz que não era só o meu cérebro processando a informação. Algo me diz que a maneira mais correta de expressar aquele momento seria: meu coração processando a informação. - Helena?! _ falei. _ Não acredito! Você marcô um encontro e não avisô a gente? Que horas que esses cara vão chegá? - No final parecia fala de filme europeu: “... os dois homens da minha vida”. - 111 -

- Vocês são dois babacas _ disse ela, rindo. - Tá bom então _ disse o Robs. _ Agora eu também vô falá sério. Felicidade, pra mim, não é muito diferente do que você falô, tirando aquela parte de “dois homens da minha vida”. Felicidade é ter à minha direita o amigo mais doido e mais extraordinário do mundo, e, à minha esquerda, a minha Gorda _ disse ele, abraçando e beijando a Helena. _ Meu Deus! É preciso tá bêbado pra falá coisas desse tipo. O garçom deve tá achando que eu sô gay. - Robs, acho lindo o que você falô _ disse a Helena. _ Só tem um problema: ou você vai tê que virá de costas, ou vai tê que trocá de lugar, porque eu tô à tua direita e o Prometeu tá à tua esquerda. - Ah, muito engraçado. Você entendeu o que eu quis dizê, não entendeu? Os dois se viraram pra mim e ficaram me olhando. - O que vocês tão esperando? Acho que não vai tê como eu escapá de uma manifestação também. Eles não disseram nada e continuaram me olhando. - Bom, acho que isso qué dizê que não tem escape. Então, lá vai. Felicidade pra mim é parecida com o que vocês disseram. Pode ser qualqué restaurante, com qualqué vinho ou qualqué prato, aliás, nem precisa ter restaurante, nem vinho e nem prato. Só precisa ter as duas pessoas com as quais eu mais me identifico nesse mundo. De um lado, um amigo que tem algumas idéias e alguns pensamentos parecidos com os meus, mas que tem outras idéias e outros pensamentos diferentes, como se fosse o que faltava pra mim. Do outro, uma pessoa que não é tão parecida assim comigo, que não tem a mesma ideologia, mas de quem, de uma forma curiosa, eu não posso me afastá. Eu preciso da presença dela, como eu preciso respirá ou comê. Ela tem uns olhos de menina, ri como menina, brinca como menina, e, acho que é por isso mesmo, é a mulher mais fantástica que conheci. Mas isso ainda não seria o suficiente pra ser felicidade pra mim. Ainda seria preciso que a minha presença fizesse eles felizes também, porque a felicidade deles é tão importante pra mim, quanto a minha própria. Isso já me garantiria momentos felizes. Mas, pra ser felicidade, eu não deveria nunca mais cruzá aquela porta _ falei, apontando pra porta do restaurante _, porque, lá fora, as coisas mudam. Só Deus, se Ele existe, é que pode ri pra sempre. Eu acho que nós podemos guardá na memória nosso melhor riso, como uma lembrança única, extraordinária, mas carregando também o peso de sabê que nunca mais teremos ele outra vez. Eu realmente queria nunca ter que cruzar aquela porta. Se eu tivesse um único desejo a ser realizado, eu pediria que aquele momento durasse pra sempre. Mas não durou.

X Não sei quanto a você, mas, quando eu deito na cama, é quase impossível não pensar, pelo menos, sobre o dia que tive. Geralmente, eu penso sobre mais coisas, sobre alguns planos e possibilidades, mas o vinho só me permitiu pensar sobre o dia. De leve, houve algum vulto de pensamento a cerca daquela estranha proposta do professor Stuart. Também pensei um pouco sobre o tal projeto black-out, que seria executado no dia seguinte.

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Pela manhã, tratei de organizar os meus pensamentos. Não iria para as primeiras aulas, mas, ainda assim, apareceria na universidade, mais pra ver se o professor tinha uma nova proposta a me fazer. Vesti a mesma calça que eu tava no dia anterior, que tava com o gravador no bolso, e saí. Lembrei de dar uma conferida nos botões pra que, quando eu fosse gravar, encontrasse o REC só pelo tato. Acabei me arrependendo de não ter faltado à aula. Não fui chamado ao gabinete do professor e tive uma seqüência de aulas terríveis. A universidade era, definitivamente, uma perda de tempo. Eu podia tá fazendo muitas coisas várias vezes mais produtivas, mas não, eu tava ali, definhando numa cadeira, perdendo horas, que acumuladas se tornariam dias, que acumulados se tornariam meses; um tempo que me faria falta, como costuma fazer a todos. No caminho de volta pro pensionato, passei numa lojinha e comprei uma fita virgem, pra usar no gravador. Troquei as fitas e guardei a velha no bolso. Cheguei em casa completamente desanimado. “Que merda é essa? _ pensava comigo”. Eu detestava a sociedade. Ela te obriga a entrar num treinamento pra se tornar um medíocre, depois, quem sabe, você pode se pós-graduar em como se tornar um babaca completo. Quanto mais tapado você for, mais aceito você será. Depois de algumas reflexões improdutivas, acabei dormindo um pouco. Eu não gostava e, ao mesmo tempo, gostava de dormir à tarde. Gostava porque, na maioria das vezes, eu dormia mal à noite. E, depois do almoço, quando o sono parece se fortalecer, uma dormida se torna quase irresistível. Não gostava porque, quase sempre, acordava com um sentimento de culpa. Me sentia culpado por ter desperdiçado um tempo útil com uma coisa inútil (como acontecia com a universidade). Eu tinha uma infinidade de coisas mais úteis pra fazer do que dormir (pelo menos, achava que tinha). Quando acordei, peguei um caderno e passei algumas idéias pro papel. Eu tinha alguns momentos em que as coisas vinham à minha cabeça e eu precisava escrever antes que elas se perdessem. Às vezes, era só um alarme falso e eu escrevia por alguns minutos e já parava, acabava me dispersando. Mas, em alguns momentos, não paravam de surgir idéias e eu passava horas escrevendo. Nesse dia, eu tava realmente inspirado. O tempo passou sem que eu percebesse; quando me dei conta, eram 5:30. Resolvi ir ver a Helena, não pensei duas vezes e saí de casa. Quase uma hora depois, eu chegava na casa dela. Depois de uma breve conversa, perguntei: - E o Robs? - Não sei, nem vi ele hoje. Era de se esperar, ele tava supervisionando aquela missão e devia tá bastante ocupado. Uma coisa que eu sempre gostei nas minhas amizades com o Robs e com o Indy é que não havia cobranças. Eu tava interado a cerca do projeto black-out, mas ninguém me obrigaria a participar dele, não me pressionariam nem mesmo pra assistir às conseqüências. Se eu quisesse ficar em casa dormindo na hora do apagão, ótimo. Mas não aquele ótimo com um fundo de ressentimento. Aliás, esse espírito de “participa quem quer” era a base do MS2. Quando eram umas 7:00, eu convidei a Helena pra dar uma volta. Fomos àquele parque que costumávamos ir. Havia algumas pessoas por lá, fazendo caminhada ou só dando um passeio pra espairecer. Olhei pro meu relógio, eram 7:27. Os caras deviam tá acendendo os cigarros. O parque era bastante iluminado, a distância entre os postes de luz era mínima. - O progresso e o romantismo são inversamente proporcionais _ comentei. - Por quê? - Por várias razões. Uma delas é essas luz. Como a gente pode ficá olhando as estrelas com uma lâmpada de trocentos watts em cima da cabeça. - 113 -

Quinze minutos depois, tudo apagou. Era como se a energia, antes usada pra manter as lâmpadas acesas, agora tivesse sendo usada pra acender o céu, que surgiu estrelado, como se realmente tivesse sido ligado numa tomada. - Prometeu... _ disse a Helena, me olhando assustada. - Parece que o meu desejo se realizou. Ela não disse mais nada. Caminhamos por algum tempo ao redor do parque, olhando aquelas estrelas, que há pouco estavam escondidas pelo véu da modernidade. Quem, num grande centro urbano, pode admirar o céu? E, se pode, quem faz isso? Me senti pequeno e fascinado diante daquela imensidão. E, novamente, retornou aquele sentimento de culpa. Me senti culpado por me preocupar com coisas tão insignificantes quando o infinito sempre esteve ao meu redor. Infinito. Essa palavra me alegra e me assusta ao mesmo tempo. Acho que, um dia, todas as pessoas se sentem, ou deveriam se sentir, culpadas por terem se preocupado com o aluguel, ou com uma conta de luz, ou com uma prova, quando sempre tiveram o infinito ao seu redor. Talvez as pessoas sejam pequenas demais até pra pensar sobre algo que não tem fim, e o melhor seja realmente se preocuparem com suas vidas, igualmente pequenas. Devemos continuar mentindo pra nós mesmos que sabemos de tudo, enquanto, com o passar do tempo, nossas verdades absolutas vão tombando, uma após a outra, e vão dando lugar a novas verdades, igualmente absolutas, que certamente um dia tombarão também. Esse negócio já tá ficando muito filosófico. A verdade é que aquele dia nunca sairá da minha memória. Na hora, eu tentei esquecer de todo o resto, MS2, projeto black-out... e aproveitar ao máximo aquele momento com a Helena. De repente, pensei que a qualquer instante a energia poderia voltar sem que eu tivesse visto os semáforos apagados. O centro ficava bem próximo dali, óbvio que havia uns semáforos ali por perto, mas era no centro que o efeito tinha sido maior. - - Vamo dá uma andada por aí _ falei. - - Vamo. - Dava pra ouvir um barulho ensurdecedor de buzinas. Esse era o inconveniente do apagão. Sem o semáforo pra regular, havia um choque de vontades, um choque de egos. - No momento em que eu vi o primeiro semáforo apagado, não consegui conter um riso. Era a queda de um mito. Sim, eles podiam apagar. Daqui a milhões de anos, quando a humanidade tivesse sido extinta, eles não continuariam funcionando, oscilando eternamente entre vermelho, verde e amarelo (não se preocupe, eu não cheguei a considerar que isso fosse possível). - Mas a minha realização se deu mesmo quando chegamos a uma grande avenida e lá estavam eles, todos alinhados e apagados, como um pequeno exército derrotado. É claro que havia o efeito colateral, fileiras e mais fileiras de carros parados, e motoristas, assinando suas declarações de estupidez quando grudavam as mãos nas inúteis buzinas. Havia também alguns guardas de trânsito, tentando organizar aquela confusão; eu, definitivamente, não queria tá no lugar deles. - Eu tava pensando, retomando um pouco aquela parte da buzina, por que as pessoas buzinam quando tão no meio de um congestionamento? Se a situação já não tá boa, por que piorar ainda mais com aquele barulho horrível? Será que os motoristas pensam que os outros vão abrir passagem, amedrontados, porque, até então, ninguém conhecia buzina. Todos vão jogar seus carros pras calçadas, então, aquela criatura medonha, que faz um barulho característico poderá passar livremente, poupando a vida dos outros condutores. Ou será que é por que eles não têm nada pra fazer? Já tentaram dominó e jogo da velha - 114 -

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com a pessoa que tá no banco de passageiro. Não tendo mais nenhuma alternativa, começam a apertar repetitivamente suas buzinas, enquanto sacodem freneticamente suas cabeças, soltando gargalhadas diabólicas e espumando pelos cantos da boca. Ou ainda, talvez seja uma reação em cadeia. Depois que alguém buzina pela primeira vez, é impossível evitar as outras. Mas, algo mais impossível (se é que existe algo mais, ou menos, impossível) do que evitar essa reação em cadeia é descobrir quem foi o desgraçado que buzinou pela primeira vez. Você pode encontrar respostas para todas as perguntas (quando digo “todas”, refiro-me a todas realmente), exceto uma, quem é o primeiro sujeito a buzinar num congestionamento (há quem diga que ele sempre esteve lá) (mentira ninguém diz não, eu inventei isso), aquele que dá o empurrãozinho que os outros motoristas necessitam. Como sempre, tô viajando demais. O principal é que foi ali, quando vi todo aquele monte de semáforos apagados, que percebi que o sistema não era intocável. Talvez fosse isso que “ele quisesse” que pensássemos, que era inatingível, mas não era isso que ele era. Não, o sistema não era tão poderoso quanto Deus, nem tão assustador quanto o diabo. Era só um velho, se degenerando por dentro, mas com mais plásticas que... (no lugar dessas reticências, pense na pessoa com mais plásticas que você conhece; assim evitamos que eu seja processado), só pra continuar mantendo a imagem. Não sei quanto tempo a luz demorou pra voltar. Eu tava com a mente muito ocupada com outras coisas pra ficar olhando pro relógio e contando os minutos. Eu sei que, quando as lâmpadas dos postes acenderam, eu e a Helena já távamos voltando pra casa. Tive que admitir que, às vezes, o destino também reserva algumas surpresas agradáveis. Um dia que desde o início parecia ser uma porcaria, acabou sendo concluído de uma forma única. A Helena não fez nenhum comentário sobre o que tinha acontecido. É claro que ela sabia que eu tinha alguma coisa a ver com aquilo, apesar de nem eu ter muita certeza disso. Deixei ela em casa e disse: - Fale pro Robs que eu retiro o que eu disse sobre a competência dele. - Vocês são loco. Um dia, vocês ainda vão acabá indo preso. - A gente nasceu preso; a gente só tá tentando se libertá. Mas eu sei que não era sobre isso que cê tava falando, você tava falando de í pra cadeia mesmo. Quem sabe até lá a gente já teja formado e aí o diploma sirva pra alguma coisa. Eu não cheguei a me encontrar com o Robs naquele dia, por mais que tivesse querendo conversar com ele. Sabe como é, depois de uma ação dessas, não falta assunto. Cheguei tarde em casa, tava um pouco cansado, mas também tava muito contente. Tem alguns dias que você se sente como se tivesse num outro mundo, onde as coisas são, ou podem ser, diferentes. Nesses dias, você se sente livre daquela previsibilidade que faz a rotina. Nada é pior do que chegar ao fim do dia e perceber que ele foi igual ao dia anterior, e que o dia seguinte também será a mesma coisa. Aquele dia tinha sido um dia diferente, e os dias diferentes nos dão a coisa mais perigosa do mundo, esperança; ou, em outras palavras, expectativa. Talvez você teja achando que eu sô um cara muito pessimista por sempre falar dessa forma sobre a expectativa, mas, como costumo fazer questão de frisar, este não é um livro de auto-ajuda. Também não tenho nada contra os livros de auto-ajuda (na verdade, talvez tenha), mas acontece que nem sempre as coisas vão dar certo, nem sempre os seus sonhos e planos vão se realizar. Você pode continuar tentando, no entanto, isso não é garantia nenhuma, as coisas podem continuar dando errado. Eu não queria ter que dizer isto, mas nem todos os finais são felizes. - 115 -

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Tomei um banho e fui deitar. Teria que acordar cedo no dia seguinte. Não tava querendo faltar à aula, tem uns caras que dão um tempo pra fazer o que querem e gostam de deixar os outros na expectativa, acho que eles pensam que tão te testando; sei lá. Nunca entendi direito essas viadagens, mas sei que isso me parecia típico do professor Stuart. Acabei dormindo como há muito tempo eu não dormia, e quando o despertador tocou, senti que poderia continuar dormindo por mais umas 12 horas. Ainda assim, levantei. - Coloquei outra vez o gravador no bolso e saí. Como sempre, a aula tava horrível. Bateram na porta uma vez, eu fiquei meio animado, mas era só um aluno de uma outra turma, querendo dar um aviso sobre uma festa numa república qualquer. “Vai pro inferno com a tua festa _ balbuciei comigo mesmo”. Uma menina que sentava do meu lado acabou ouvindo e ficou me olhando com uma cara de assustada. Eu não tinha nada contra o cara, só que não era pelo recado dele que eu tava esperando. Eu detestava aquelas festas estúpidas. Elas só eram um bom tema pra aqueles filmes holywoodianos porcos, estilo comédia adolescente. Nessas porcarias de filme, eles insultam toda a juventude, com uns estereótipos ridículos e com umas histórias piores ainda, completamente repetitivas e previsíveis. Sempre me perguntei quem escreve essas drogas de roteiros e quem aprova eles. Concluí que o cara que aprova deve ser o pai do roteirista. - Eu já tava quase virando um repolho de tanto vegetar, quando bateram na porta outra vez. “Não se anime, não é pra você _ pensei”. Era uma secretária, o que poderia ser considerado um bom sinal. - - Eu poderia falar com o seu Prometeu por um instante? - - Claro _ respondeu o professor. _ Seu Prometeu. - Tá certo, agora sim era um bom sinal, mas eu ainda pensava: “Eles podem tá te chamando por otra coisa”. Que outra coisa, eu me pergunto hoje. Os caras só tinham me chamado uma vez, e, depois da conversa com o professor Stuart, tavam me chamando de novo. O que mais poderia ser? - - O professor Stuart quer ver o senhor _ disse ela quando já tínhamos saído da sala. - De novo? _ disse, fingindo surpresa, sei lá por quê. _ Eu preciso í no banhero antes. - Ele tava com pressa. Como assim? O que ela tava querendo sugerir? Que eu deveria segurar o xixi porque o excelentíssimo professor Stuart queria me ver imediatamente. Ela devia tá de sacanagem. Só faltou ela falar: “Dá um nozinho que vai ser só uns minutinhos”. - Eu acho que o professor ia preferi que eu mijasse no banhero do que naqueles tapete dele. O que que cê acha? É só o no 1 mesmo, se quisé, pode cronometrá _ falei, entrando no banheiro sem dar a ela chance de resposta. Eu não queria ser grosso com a secretária, mas, naquela, ela tinha pegado pesado. Ela queria me negar o direito de ir ao banheiro. Se bem que, depois, me arrependi de ter entrado. Na verdade, eu entrei no banheiro cogitando a possibilidade de esconder o gravador dentro da cueca (sem piadinhas, eu ia colocar na parte da frente). Mas logo percebi que seria absurdo. Primeiro, por questão de higiene mesmo, tanto pra mim, quanto pro Indy, que usaria o gravador depois. Segundo, como eu faria pra ligar ele, o melhor seria ligar ali mesmo, mas e o desconforto? Terceiro, o professor não iria me revistar antes de começar a conversa. No final, liguei e coloquei ele no bolso mesmo. Saí do banheiro. A moça tava me esperando do lado da porta. - Viu, não fugi, nem fiz cocô. Ela me deixou esperando um pouco na frente da porta do gabinete do professor. Tinha ido anunciar a minha presença. Em seguida, voltou: - 116 -

- Por favor, pode entrar. Lá tava ele, naquela mesma pose que tava da outra vez. Olhando pela janela, dando uma impressão de indiferença. Parecia que eu tava tendo um de jà vú. - Sente-se, por favor. Sentei sem dizer nada. - A conversa que tivemos da outra vez me parece que foi pouco produtiva _ disse ele. _ Portanto, decidi que, desta vez, não vou poupar franqueza. Ele se virou pra mim e continuou com o discurso: - Sr. Prometeu, o senhor sabe quanto ganha um professor? (ele tava falando do bolso dele). O senhor sabe quantos artistas são reconhecidos em vida? (ele tava falando do meu bolso; pensei em responder 7, só pra avacalhar, mas achei melhor me conter). - Tá certo, professor, aonde que o senhor tá querendo chegá? Ele ficou um tempo em silêncio. Me arrependi de ter interrompido a fala que ele devia ter ensaiado. Mas, agora, eu não tinha como remediar, o que eu diria? “OK, pode continuá com a embromação”; era melhor não. - Muito bem, vejo que o senhor é um homem de poucas palavras. Então, vou ser direto. Eu fiz muitas viagens e, em algumas delas, conheci homens com muito dinheiro, mas, também muito rudes, toscos. Conversei com alguns deles sobre arte, eles mostravam um falso interesse. Para eles, ter uma tela de um mestre é só sinal de status. Mantive contato com alguns desses sujeitos, enfim... o que eu preciso é que o senhor faça a tal tela pra mim. Percebi que o senhor tem uma habilidade notável e... enfim... Aquilo era um pedido descarado pra mim falsificar um quadro. - E se eles perceberem? _ perguntei. - Eles não notariam a diferença entre um rótulo de cerveja e um Picasso (essa frase ele tinha pronta, aposto). - O senhor vai vendê pra eles como se fosse um original? - Ora, por favor, senhor Prometeu. Já começo a duvidar da sua perspicácia. O que o senhor acha? É óbvio que venderei como um original. Ele não duvidaria da minha perspicácia por muito tempo, eu tinha acabado de gravar a declaração mais clara o possível de que ele queria falsificar uma obra de arte. Quase dei um abraço nele. - O senhor qué que eu pinte um Seurat? - Isso mesmo. Se o resultado for satisfatório, podemos fazer mais negócios. Por esse primeiro quadro, se tudo correr como o esperado, o senhor receberá trezentos mil dólares. “Trezentos mil?! Caramba! _ pensei na hora”. Isso era mais dinheiro do que eu imaginava que ganharia durante toda a minha vida. Eu nunca tinha recebido nenhum salário. Até então, todo o dinheiro que eu tinha manipulado era uma pequena quantia que o meu pai me enviava mensalmente, a qual eu tinha que fazer render ao máximo. Fiz o possível pra não demonstrar o quanto eu tava impressionado. Se eu ganharia tudo isso, significava que o professor Stuart ganharia muito mais. - Então, tá certo, professor. Acho que era isso que o senhor tinha pra me falá. Eu vô pensá a respeito da proposta e até o fim semana eu dô uma resposta. Eu tava saindo quando ele me interrompeu: - Prometeu, pense bem. Algumas oportunidades só aparecem uma vez na vida. “Me poupe _ pensei. _ Será que ele acha que mandô bem com essa frase? Pra sê mais clichê, só se ele tivesse dito: “Hasta la vista, baby””.

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Saí sem falar mais nada. Naquele momento, eu senti que a minha vida iria mudar. Sinceramente, eu achava que coisas como essa não aconteciam. Eu mesmo custei a acreditar. Tudo me parecia muito fantasioso, muito pouco palpável. O trabalho, a quantia... eu cheguei a pensar que aquilo fosse um trote, o pessoal da universidade não ia muito com a minha cara e podia tá querendo me fazer de palhaço. Ou, quem sabe, fosse um teste. O professor tava testando a minha ética, se eu recusasse a oferta, ganharia uma boa nota. Mas essas hipóteses me pareciam mais fantasiosas do que a proposta em si. Entrei na sala só pra pegar o meu material e saí. Eu tava na iminência de ganhar uma fortuna (uma fortuna, pelo menos pra mim), nunca conseguiria assistir àquela aula. Não sei o que aconteceu dentro da sala, se as pessoas ficaram me olhando; se alguém me perguntou alguma coisa; não sei nem que professor tava dando aula. Assim que saí pra fora da universidade, conferi a fita; tinha gravado tudo. Eu fiquei o resto do dia pensando naquela conversa, pensando o que deveria fazer. Perdi as contas de quantas vezes eu ouvi aquela gravação. Se eu aceitasse fazer o que ele tinha me pedido, problemas com a consciência eu não teria. Esse mundo é muito hipócrita, eles te dizem: “Fazer assim é errado” e não te oferecem nenhuma alternativa. Quando eu teria oportunidade de fazer a minha própria exposição? Quando o meu trabalho seria reconhecido? Talvez, depois que eu tivesse morto. Exemplos disso é que não faltavam. E se tudo desse certo, o que eu faria com o dinheiro? Eu deveria contar pra Helena e pro Robs o que tava acontecendo? Eram muitas perguntas e poucas respostas. Na minha vida, já tinham acontecido muitas coisas doidas, mas essa era, de longe, a mais doida de todas. Pra usar uma comparação desgastada, a minha vida era uma montanha-russa, mas não com altos e baixos, e sim com baixos e muito baixos. Eu diria que agora eu tava entrando no looping, eu subiria e todas as coisas pareceriam ter virado de cabeça pra baixo, quando quem taria de cabeça pra baixo seria eu. Resolvi que, pelo menos por enquanto, eu não comentaria nada com ninguém. Naquele dia, não consegui organizar meus pensamentos. Tudo que eu fazia era ouvir aquela fita, uma vez após a outra, ponderando o que eu disse que não deveria ter dito, e o que faltou eu dizer. Nem sei quando eu peguei no sono. A possibilidade de ir pra aula no dia seguinte já tava completamente descartada. Eu tinha outras coisas pra resolver, não sabia direito quais, mas sabia que tinha. Pela manhã, enquanto eu tomava banho, decidi que a primeira coisa que eu deveria fazer era descobrir quanto custava em média uma tela de Seurat, pra saber quanto mais ou menos o professor Stuart tava levando nessa. A melhor saída era a internet, o que me levava novamente à universidade. No entanto, alguns sacrifícios precisavam ser feitos, afinal de contas, aturar aqueles babacas metidos a intelectuais não deveria ser o maior martírio do mundo (será?). Acabei sobrevivendo aos meus queridos colegas e conectei à internet. Imagine a minha surpresa quando descobri que as obras de Seurat custavam em média algumas dezenas de milhões de dólares! Imaginou? Tá bom, porque nem teve tanta surpresa assim, eu já desconfiava disso. Agora a questão era: aceitar a quantia que o professor havia me proposto ou usar a fita pra conseguir um pouco mais? Ou seja, não havia questão nenhuma, é claro que eu usaria a fita, ainda mais se tratando do professor Stuart. O cara era um porco. A única questão que continuava me atormentando era o que fazer com o dinheiro. Mas isso eu resolveria depois, eu nem sabia quanto eu ganharia, se é que eu ganharia alguma coisa. Ainda havia a possibilidade do negócio não dar certo; de tudo aquilo ser uma brincadeira de mau gosto ou ser o tal teste de ética (eu devia tá louco quando achei que algum dia a palavra ética - 118 -

poderia ter alguma relação com o professor Stuart). Pensando de uma forma bem pessimista, eu poderia até ser preso. Eu tava confiando inteiramente no professor (o que, nem de longe, era a coisa mais prudente). Seria natural que o cara que comprasse a tela pedisse algum aval de um especialista, mas também seria natural que o professor Stuart tivesse pensado nisso e já tivesse dado um jeito em tudo. Não se pode negar que ele era esperto. Dessa vez, eu tinha o tempo pra pensar na resposta, pra ensaiar o discurso, pra escolher os gestos e as palavras. Mas achei melhor nem pensar em nada, deixar as coisas fluírem naturalmente. Lógico que eu tinha uma idéia do que discutiria, mas não fiquei imaginando que resposta ele iria dar pra, a partir de então, formular uma contra-resposta. Esse negócio de querer ensaiar demais as coisas não funciona, sempre acaba surgindo algum imprevisto que muda toda a situação. Sei que eu já falei isto, mas improvisar e adaptar são a arte de viver. Quando tudo tá muito linear e você acha que já tá completamente adaptado, surge algo e muda tudo. Achei que o melhor a fazer era continuar indo pra aula nos outros dias. Com certeza, o professor tava atento aos meus passos e eu queria parecer o mais normal possível. Se antes eu já ficava viajando nas aulas, imagine agora. O tempo parecia tá passando devagar, mas quando chegou o dia de eu dar a resposta, pareceu que os dias tinham passado num piscar de olhos. Dessa vez, não esperei que ninguém fosse me chamar. Fui direto à sala do professor. Eu tava tão calmo que até me surpreendi, acho que ele também se surpreendeu. - Senhor Prometeu, estava à sua espera. Espero que o senhor tenha uma boa notícia a me dar. - Aceito _ frases curtas têm um bom efeito nessas horas, soa de forma seca, direta, como um soco no estômago. Houve aquele silêncio pesado, em que ele ficou esperando que eu complementasse o que eu tinha dito. Permaneci calado. Pra quebrar essa atmosfera, as pessoas geralmente falam qualquer coisa, às vezes, até coisas ridículas. Se isso acontece, acabam ficando embaraçadas e se tornam vulneráveis. - Aceita o quê? A proposta? (não, um café com 5 gotas de adoçante; era óbvio que era a proposta). Que bom... veja... não sei nem o que falar. Ele tava eufórico. O sonho dele devia ser se tornar um homem rico; agora tava a um passo do bilhete premiado. Mas aquele risinho sem graça deixou claro que ele também tava constrangido. Você nunca fala: “não sei o que falar...” numa situação como essa. Se você não sabe o que falar, não fala nada, mas ele não tinha conseguido resistir ao silêncio. Por um momento, quase senti pena dele; mas logo lembrei quem é que tava na minha frente, era o professor Stuart. - Só tem um problema, 300 mil é poco. Eu quero 5 milhões. Tinha concluído que não adiantava pedir em porcentagem porque eu não sabia a que preço ele ia negociar. Se eu dissesse: quero 50%; ele podia dizer: “Muito bem, o preço a ser pago é 600 mil, ou seja, o senhor já tá levando 50%”. Eu sabia que 5 milhões não era metade do valor que ele cobraria, mas já tava de bom tamanho pra mim. - O quê? O senhor só pode tá brincando. Nem em sonho eu pagaria essa quantia pra você. Qualquer um que tenha uma noção de pintura pode fazer esse trabalho pra mim. Já disse, os compradores são rudes. Se eu pegar os rabiscos de um garotinho e disser que é um Picasso, eles acreditam (ele não tinha dito isso, ele tinha feito aquela comparação com o rótulo de cerveja; talvez, ele tivesse descartado essa do garotinho). O senhor devia estar erguendo as mãos pro céu por eu ter lhe escolhido; em vez disso, desperdiça sua chance _ ele - 119 -

tava vermelho, falando num tom alterado, tava visivelmente irritado. _ Muito obrigado, farei negócio com outra pessoa. - Talvez não _ falei, calmo e sério; como se fosse um pai, falando com um menininho que chora num supermercado porque quer levar um brinquedo sem autorização. - Não seja insolente! Se retire da minha sala! Tirei o gravador do bolso e coloquei sobre a mesa. Apertei o play e o diálogo começou; eu sabia aquelas falas de cor. Olhei pro professor Stuart e vi suas sobrancelhas se franzindo, suas narinas se abrindo, junto com os lábios, que não tinham palavra pro momento. - O que é isso? _ falou finalmente. - Isso é uma cópia (cópia é o caramba, era a original mesmo) da fita que gravou o nosso diálogo. A original tá com uma pessoa de minha confiança. Se alguma coisa acontecer comigo (o professor não me parecia o tipo de pessoa que chegaria a esse extremo, mas eu não sabia o que se passava na cabeça de uma pessoa quando se falava em milhões), a fita vem a público. - O senhor está... me chantageando _ disse ele com uma falsa surpresa. - Por favor, professor, não me venha falar em ética a essas alturas. Quando o senhor tivé a resposta, mande me chamá. Coloquei o gravador no bolso outra vez e saí. Sabia que eu tinha feito tudo certo, o professor não tinha outra alternativa, e nem precisava de outra. Se ele me desse os 5 milhões, ainda sobraria muito mais pra ele. Não fiquei com nenhum tipo de remorso, só tava pedindo um pagamento mais justo (se é que se pode falar em justiça nesse tipo de negócio). Aquilo tudo ainda me parecia muito surreal. Eu poderia ganhar 5 milhões de dólares. Eu tratava do negócio, mas ainda não conseguia acreditar nele. Dessa vez não precisei pegar as minhas coisas na sala de aula, eu tinha ido pra universidade só pra conversar com o professor. Fui embora. Se “ir embora” significa ir pra casa, então, acho que não fui embora realmente. Comecei a caminhar pelas ruas sem destino certo. Eu queria ir ver a Helena, mas ela ainda devia tá em aula. Então, continuei caminhando. De repente, passei em frente a uma igreja, olhei pra dentro dela e continuei andando. Eu tinha percebido que ela tava vazia, portanto, resolvi voltar. Entrei nela. Não sei direito por quê. Acho que pelo silêncio, talvez. Fazia um bom tempo que eu não entrava numa igreja (talvez nem tanto, a última vez tinha sido naquela missão do suposto alcoolismo do padre). Aqueles anjos, tanto nos afrescos quanto as estátuas, pareciam tão bonitos, tão puros, tão justos, tão corretos, que, se eles não existiam de verdade, seria muito bom que existissem. Lá na frente, no altar, como não poderia faltar, uma imagem de Jesus crucificado. Sempre me perguntei por que colocar uma imagem tão triste? Por que a imagem imortalizada não poderia ser a de Jesus repartindo o pão, ou ressuscitando ou qualquer outra coisa? A verdade é que nada atrai tanto as pessoas quanto o sofrimento dos outros. Não sei por que essa necessidade quase instintiva de ver alguém sofrendo, se você perguntar a um estudioso do ramo, ele vai te dar mil justificativas do porquê a imagem símbolo ser Jesus crucificado. Pra mim, o motivo é o mesmo que leva as pessoas a pararem o carro quando passam ao lado de um acidente de trânsito, ou saírem correndo pra ver um incêndio ou qualquer outra tragédia. Atração pelo sofrimento dos outros. Acho que vendo a desgraça das outras pessoas, nos sentimos mais agraciados. Mas a minha teoria pode tá tão errada quanto qualquer outra, é só a minha opinião.

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Fiquei um tempo em silêncio. É inegável uma sensação de paz quando se entra numa igreja vazia. É claro que eu não era o maior fã da Igreja por motivos óbvios. Mas ali eu não era meus princípios, minhas ideologias, minhas convicções; ali, eu era só uma pessoa confusa, procurando por um lugar calmo. Pensei um pouco sobre as coisas que eu vinha fazendo. É óbvio que eu pensava tá fazendo a coisa certa, procurando algo melhor. Mas, se eu tivesse errado, isso não seria justificativa. Todos procuram fazer a coisa certa, e é dessa forma que cometem os grandes erros. Ninguém pensa: “Agora, só vô fazê merda, ferrá com tudo e me torná o vilão do universo”. Ninguém quer ser o vilão, todos querem ser o herói. Ninguém quer fazer parte do time dos malvados, todos querem ser do time dos bonzinhos. Talvez alguém se pergunte: “E os satanistas, eles não querem ser maus?”. Eu acredito que há exemplos de caras muito mais malvados do que os satanistas, mas, talvez eles se sobressaiam pelo nome impactante. Eu não consigo deixar de achar uma certa graça quando penso em satanistas. A verdade é que eles também gostariam de estar do lado dos bonzinhos. Acredito que o problema deles seja uma sensação de inferioridade. Sabe como é, se você se sente muito pequeno, você tem que dar um jeito de se sentir grande. Se você se opõe a algo grande, conseqüentemente, desperta uma sensação de grandeza. Se você tem um inimigo poderoso, você se sente poderoso. A saída que eles encontraram foi bancar os inimigos de Deus. Acho que, se existe inferno, Deus não condenaria os satanistas a ele. São apenas pessoas inseguras, perdidas, procurando um jeito de se afirmar. Acho que quem deve se preocupar mesmo são aqueles que têm um maior poder de influência. Esses sim têm uma grande responsabilidade; uma maior chance de fazer grandes acertos e também grandes erros. Essa história já tá ficando religiosa demais. Não que eu tenha algo contra as histórias religiosas, só acho que elas não se aplicam muito a este livro. Vou tentar encerrar esta parte de uma vez. Eu tentei dizer alguma coisa a Deus, acho que isso é natural quando se entra numa igreja. Não rezei nenhuma prece dessas decoradas; acho que pessoas diferentes têm diferentes coisas a falar. A minha fala foi bem curta. Uma espécie de desabafo que eu não podia fazer a ninguém. Algo do tipo: “Sô humano; sô igual a todo mundo”; mas não exatamente isso. Saí da igreja e continuei caminhando. Agora eu já ia na direção da casa da Helena, pra aproveitar o embalo. Parei numa lanchonete, comi um sanduíche e tomei um chá gelado. Depois que acabei de comer, fiquei um tempo sentado, pensando mais um pouco. De tanto o garçom insistir com aquele: “Deseja mais alguma coisa?”, acabei indo embora. Pra mim, aquilo era quase como um: “Não vai consumir mais nada, desocupa a cadera e cai fora”. Fui pra casa da Helena, cantando baixinho uma música que não saía da minha cabeça. Mas não era daquele tipo de música chata e sem sentido, que tem um refrão estúpido que fica impregnado no teu cérebro. Era uma música que eu gostava bastante e que, às vezes, eu me pegava cantando. Só era um pouco triste, mas eu também não era a pessoa mais alegre do mundo (não tava nem entre as cinco). Cheguei na casa da Helena. Ela tinha chegado havia pouco tempo. - Tô morrendo de fome. Você almoça comigo? _ disse ela. _ É comida congelada, mas, fazê o quê? - Não, brigado, eu comi um sanduíche por aí. - Você parece meio desanimado, aconteceu alguma coisa? - Acabei de ganhá 5 milhões de dólares _ respondi. - Tô falando sério. - 121 -

- Eu também. Eu compreendo que fosse um pouco difícil de acreditar. O meu comportamento não parecia típico de alguém que ganhou, ou que tá prestes a ganhar, 5 milhões de dólares. Tanto é, que a Helena nem deu atenção ao que eu tinha dito. Ela colocou a comida no microondas e nós dois sentamos à mesa. - Como foi o teu dia hoje? _ perguntei. - Igual sempre. - Como é sempre? - Ah, cê sabe. Aula chata, sono, o mesmo assunto de sempre com as amigas, alguns trabalhos pra entregá... esse tipo de coisa. E o teu? Ah, agora lembrei, você ganhô um milhão de dólares, né? - Cinco. Ela levantou pra ir atender ao alarme do microondas, que indicava que a comida tava pronta. - Tem certeza que não qué um poco mesmo? _ perguntou ela enquanto se servia. - Não, brigado. Quase não agüentei o sanduíche. - Então, teu dia hoje foi igual sempre, é? Cinco milhões, encontro com o presidente, o que mais? Vai dizê que você ganhô cinco milhões e não me comprô nenhuma lembrancinha? - Ainda não. Mas prometo que eu compro. Fiquei olhando ela comer e percebi que era isso que eu queria fazer todos os dias, no café da manhã, no almoço, no jantar... acho que eu nem precisaria comer nada. Me senti um pouco triste ao pensar quantas refeições eu tinha perdido de ver ela fazer. - O que foi? _ disse ela rindo, um pouco constrangida com a minha contemplação. - Qué casá comigo? - Quero sim. Quando? - Hoje. Ela riu, sacudindo a cabeça como se aquela fosse mais uma das minhas brincadeiras. - O que foi? _ perguntei. - Acho que hoje não vai dá, eu combinei de í na casa de uma amiga minha, que tal amanhã? - Eu tô falando sério. Tá bom, hoje não dá, mas que tal mês que vem? É sério. - Prometeu, cê não pode tá falando sério. - Por que não? - Porque eu tenho a minha faculdade, você tem a tua. Nós dois somos dependentes, a gente não tem nenhuma casa e nenhuma renda. Sabe, eu não sô daquelas menininhas chatas e materialistas que falam: “A gente vai vivê do quê?”. Incluindo nesse vivê, coisas completamente supérfluas, como bolsas de grife, carros do ano, salão toda semana, como se isso fosse indispensável pra sobrevivência. Mas a gente precisa realmente de abrigo e alimento. - Mas e o dinhero? Acho que 5 milhões dá pra abrigo e alimento. Ela ficou me olhando por alguns segundos e aí riu outra vez. - Eu sabia que você não podia tá falando sério. Achei melhor não insistir mais naquela história dos cinco milhões. Concluí que eu tinha dado sorte de ela não ter acreditado. É claro que eu confiava nela. Mas eu ainda não tinha feito quadro nenhum; não tinha nem visto qual seria a pintura; não sabia se eu seria capaz de reproduzir ela; não sabia se o professor ia me chamar outra vez (apesar de achar bem provável) e não tinha, muito menos, recebido o dinheiro. - 122 -

- Você é linda. - Pára. Você não dexa eu comê me olhando assim _ disse ela, vermelhando um pouco. - E fica mais linda ainda quando tá com vergonha. Tá bom, eu vô tentá me controlá; não falo mais. Faz de conta que eu não tô aqui e come sossegada. Ela foi até a geladeira e pegou uma garrafa de refrigerante. - Eu não quero ser chato, mas você vai tomá isso aí? Por que não toma um suco? - Por quê? Tá me chamando de gorda? - Esse é o teu apelido, não é? Tô brincando. Não, não é por isso não. - Então, é aquela mesma conversa do Robs. Um produto multinacional, que acaba com a economia de países de tercero mundo... - Eu suspeitei que o Robs não devia tomá isso. Me espanta ele não ter jogado na pia. Mas não é por isso também. É só porque a gente não sabe o que realmente eles colocam aí dentro, não me parece ser a coisa mais saudável do mundo. Mas a gente já tomô tanto, um copo a mais, um copo a menos, não deve fazê muita diferença. - Não, agora eu também não quero mais. Ainda tem um resto de limonada na geladera. - Vai dizê que você vai tomá limonada?! - Por quê? _ ela me olhou com uma cara de espanto. - Tô brincando, não sô tão chato assim. - Por um momento, achei que os limões também guardassem um segredo terrível. Ela encheu o copo com limonada, me pareceu um pouco pensativa, e perguntou: - Qué um poco de limonada? - Não, brigado. - Será que tem alguma religião que não permite comê maçã? Por ser o fruto proibido e aquela história toda de Eva e a serpente. - Sei lá! De onde você tirô essa idéia? _ não consegui conter o riso. - Não sei. Acho que eu também sô meio doida. Era por isso (por isso também) que eu gostava da Helena. Que outra menina (menina é maneira de dizer, ela tinha mais ou menos a minha idade) me perguntaria se existia alguma religião que proibia comer maçãs? - Helena, não sei se eu já te perguntei isso, mas que que cê acha de mim? Como que cê acha que eu sô? Sei que parece o tipo de pergunta egocêntrica, mas eu tô mais preocupado com a tua opinião do que com qualqué otra coisa. Pra mim, um negócio tá bem claro. Uma coisa é aquilo que você é; outra coisa é a imagem que você tem de si próprio; e outra é a imagem que os outros têm de você. - Como assim o que que eu acho de você? - É, não precisa sê uma coisa freudiana. Fala a primera coisa que vem na cabeça quando cê pensa em mim. Não precisa se preocupá com o tempo, pode pensá na resposta. E pode falá qualqué coisa mesmo. - Dexa eu vê... quando eu penso em você, cê não tá por perto, então, a primera coisa que sinto é saudade. O que que eu acho de você? Bom, eu te acho bonito, engraçado, inteligente e meio doido às vezes, mas, como eu sô meio doida também, então, tudo bem. Não sei... eu te acho uma pessoa ótima. Sabe, você me falô algumas coisas... coisas que eu não conheço ninguém mais que se preocupa. Você pensa nos otros, tenta vê a situação da manera que é pra eles. Dinhero não é a coisa mais importante do mundo pra você e, não sei por que, mas eu acho isso tão bonito. Parece que cê tá na contramão do mundo. Enquanto as pessoas fazem qualqué coisa por status, pra se destacá, parece que você não qué nada disso, e - 123 -

isso te destaca ainda mais. Parece que cê é a única pessoa do mundo que ainda tem princípios, que tem as suas prioridades. Sabe, você parece aqueles heróis, aqueles mocinhos das histórias. Eu sô sua fã. Uma vez, o Robs me disse uma coisa, ele tava falando sério, ele disse: “A pessoa da nossa família em quem eu mais confio é o Prometeu”. Eu sei que ele tava certo. Eu confio mais em você do que em mim mesma. Eu tinha sido atropelado por uma locomotiva. E mais uns trezentos vagões. Nunca me arrependi tanto de ter feito uma pergunta. - Helena, não é bem por aí. Eu não sô tão bom samaritano assim. As coisas não são bem assim... - Pára com isso, cê sabe que é. - Helena, eu me conheço e tô te dizendo que as coisas não são assim. - Então, você não se conhece direito. Percebi que não adiantava discutir. Sabe, as pessoas têm algumas concepções que são quase impossíveis de se desmanchar. Se Jesus voltasse ao mundo (eu disse que já tava envolvendo religião demais, mas não consigo pensar num exemplo melhor) e dissesse que não havia falado determinadas coisas, aposto que ia ter algumas pessoas que iam teimar com ele: “Não, não. O senhor disse sim _ mas elas não iam dizer que Jesus tava mentindo, então, iam encontrar uma justificativa _ O senhor deve ter esquecido, afinal, já faz mais de dois mil anos”. Acho que deu pra ilustrar o que eu tô querendo dizer. Há coisas impossíveis de serem tiradas da cabeça das pessoas, por mais contundentes que sejam as provas e argumentos. Eu sei que o que a Helena me disse tinha tudo pra deixar qualquer um se sentindo alegre, lisonjeado; mas aquilo tinha acabado comigo. Principalmente pelo momento. O que eu ia dizer pra ela? “Acabei de vender os meus princípios pro professor Stuart. Mas não se preocupe, eu fiz uma barganha boa e consegui um preço incrível”. Existem coisas que o dinheiro não compra, pra elas, existe uma oferta maior. Essa frase é menos romântica que aquela do cartão de crédito, em compensação, é muito mais realista. Sempre tive medo de formar uma boa imagem e acabar preso a ela. Sabe como é, as pessoas esperam um comportamento de você (lá vem a expectativa de novo) e, se você foge dele, acaba decepcionando muita gente. Todos os outros podem cometer determinados erros, menos você. Isso é revoltante, você é um ser humano como todo mundo e tem direito a fazer as mesmas cagadas que os demais fazem. Esta é a vantagem de ser um desgraçado sem caráter nenhum, as pessoas não esperam nada de bom da tua parte. Se você faz merda, tá fazendo o teu papel. Se você faz algo de produtivo, que ótimo, é uma surpresa muito agradável. O que vier é lucro. Algum tempo depois, o Robs chegou. A Helena disse: - Vocês querem conversá? Porque eu tenho que fazê umas coisa pra faculdade. Eu posso í pro meu quarto e dexá vocês a sós. Eu sei que tem coisas que vocês não gostam de conversá perto de mim. Vocês não precisam se justificá, eu sei que não é por desconfiança nem nada. Vocês não gostam porque... não gostam. A Helena me surpreendia a todo instante. Sem comentários. Fiquei um bom tempo conversando com o Robs. Como de costume, rimos bastante. Ele me contou os pormenores da ação e eu contei o que eu tinha visto. Perguntei se ninguém tinha descoberto nada, se não tinha dado nenhum problema com a polícia. Ele disse que tava tudo tranqüilo, que o negócio tinha sido bem feito e que os caras da polícia eram muito “lerdos”. A propósito, não posso negar que eu nunca simpatizei muito com a polícia (se você é um(a) policial, me perdoe; apesar de eu achar pouco provável que um(a) policial compre um livro intitulado “Apologia ao Caos”). Pra mim, a polícia é um ícone da hipocrisia. “Estamos - 124 -

aqui pra cumprir a lei e manter a ordem, mas, se você tivé dinhero, não se preocupe”. Como já disse, existem coisas que o dinheiro não compra, pra elas, existe uma oferta maior. Isso sem contar os caras que abusam da autoridade, movidos por todo tipo de preconceito. Não gosto nem de falar desse tipo de coisa. Não sei por que, mas tem uma parte da sujeira que parece mais suja que outras. Fiquei até tarde na casa deles. Eles insistiram pra eu ficar e passar a noite; mas eu tava a fim de ficar sozinho. Eu não conseguia parar de pensar naquilo que a Helena tinha me dito (e ainda pensaria sobre isso durante muito tempo, até hoje eu penso). Poucos dias se passaram e o professor Stuart mandou me chamar outra vez. Acho que ele ficou com medo que eu endoidasse e saísse mostrando aquela fita pra todo mundo. Eu me recuso a colocar aqui mais um diálogo com o professor Stuart, eu detestava aquelas frases prontas dele, aquela conversa mecânica e improdutiva. Depois de muita enrolação (achei melhor não cortar ele dessa vez), ele chegou ao ponto. Disse que aceitava a minha contra-proposta. Eu ganharia 5 milhões. E acredite, não fiquei nenhum pouco eufórico. Permaneci indiferente. Não pra impressionar o professor (apesar de ter impressionado) ou qualquer coisa do gênero. Aquela conversa com a Helena tinha mudado muita coisa. Era como se eu tivesse vendo aquela cena de fora do meu corpo. Eu, ali, sentado, negociando com aquele cara, roubando e ajudando ele a roubar um trabalho que não nos pertencia (se a gente tava roubando, acho que é meio óbvio que não nos pertencia), me vendendo. Lembrei de tudo que a Helena tinha falado. Me senti sujo. Imundo. Me senti uma merda. Ele disse qual seria a tela que teríamos que reproduzir. Obviamente, ele me forneceria todo o material e o que mais eu precisasse. Me ofereceu o espaço também, mas eu preferia pintar na minha apertada kitchenette. Se dispôs a me dar uma espécie de ajuda de custo, 600 dólares. Disse que era tudo que tinha na carteira e depois me daria mais se eu precisasse. É claro que eu não peguei; se eu pegasse, aí sim me sentiria como se tivesse me vendendo. Eu receberia os 5 milhões, mas depositados na minha conta, não teria que pegar da mão do professor Stuart. Ele disse que eu não deveria começar a pintar o quadro sem antes discutir com ele algumas técnicas de pintura. “Discutir é o cassete _ pensei comigo”. Acho que nunca na minha vida eu me senti tão aliviado quanto quando eu saí daquela droga daquela sala. Parecia que, se eu passasse mais um segundo lá dentro, eu morreria sufocado. Nem ouvi as últimas coisas que ele me disse. Fui no banheiro lavar o rosto. Eu tinha que tentar alguma coisa pra me recuperar um pouco. Não nego que, quando eu tava ali, sozinho, de frente pro espelho, algumas lágrimas escaparam. Tentei tomar um pouco de água, mas não consegui. Acabei só lavando o rosto mesmo. Meus pensamentos tavam confusos. A escolha que eu tinha tomado era repugnante, mas eu tinha sido guiado por uma espécie de instinto de sobrevivência. Sabe como é, o livre arbítrio oferecido pela sociedade, a ditadura do semáforo. Você pode atravessar no sinal vermelho, mas provavelmente você vai acabar se ferrando. O sinal tinha ficado verde pra mim, se eu não atravessasse agora, talvez nunca mais houvesse uma segunda chance. É interessante que pra ilustrar repressão, venho usando o exemplo do sinal vermelho. Mas o exemplo do sinal verde é tão válido quanto, ou até mais que o vermelho. Se você pára quando o sinal tá verde, você é esmagado pelos carros maiores que vêm logo atrás. Sei que isso tudo não é desculpa pra eu ter aceitado a proposta do professor Stuart. Acho que até hoje eu tento me justificar pra mim mesmo. Às vezes penso: “Cem entre cem - 125 -

pessoas teriam aceitado aquela proposta”. Não importa. Eu precisava ser diferente. Não podia me considerar igual a cem pessoas genéricas. No final, concluí que eu era igual a toda aquela gente que eu sempre critiquei. Nos dias que se passaram, me tornei muito introvertido. Decidi não contar nada pra ninguém (nem pra Helena) e parecia que esse segredo tava apodrecendo dentro de mim. Se é que ele já não era podre desde o princípio. Me reuni outra vez com todo o MS2. Parabenizei todo o pessoal pela operação blackout e fingi interesse pelo processo, fazendo algumas perguntas por pura conveniência (eu realmente tava decadente). Os caras perguntaram por que eu não tinha participado e eu inventei uma desculpa qualquer. Acabamos decidindo que, pelas proporções dessa última operação, era melhor dar um tempo pra agir outra vez (o que, pra mim, veio bem a calhar). Continuei indo na casa da Helena, mas não conseguia mais me sentir muito à vontade perto dela, me sentia indigno. Eu sabia que ela pensava que eu era outra coisa e ainda assim não conseguia me afastar dela. Por isso, quando eu tava com ela, eu não me sentia bem. Sabia que o mínimo que eu deveria fazer era me afastar, mas simplesmente não conseguia. Essa mesma sensação, de ser um traidor, me acompanhava quando eu tava próximo de qualquer um daqueles que eu considerava meus amigos, principalmente do Robs e do Indy. Quando eles faziam alguma piada ou algum comentário, satirizando a hipocrisia da sociedade, eu não conseguia deixar de me ver como um hipócrita. E era justamente isso que eu era. Um hipócrita, talvez o maior de todos (se não fosse, tava entre os cinco). Me encontrei outra vez com o professor. Ele me passou o material (as tintas, os pincéis e a tela). Me passou também uma cópia do quadro em tamanho original, dessas que se encontra em qualquer lugar, e seis cópias segmentadas. Eram ampliações de determinadas áreas do quadro, pra que eu pudesse perceber melhor os detalhes. Se juntasse as seis, como um quebra-cabeças, formaria a pintura ampliada seis vezes. “Por que percebê melhor os detalhes? _ pensei. _ E aquele negócio de Picasso e rótulo de cerveja?” Ele disse que eu não precisava me preocupar em acertar tudo logo da primeira vez. Se a pintura não tivesse ideal, ele me forneceria outra tela e eu pintaria novamente. Faria isso até quando ele julgasse que tivesse boa. Ele devia tá arrependido de ter me escolhido pra fazer a pintura. Tinha falado comigo porque provavelmente ninguém se envolveria numa falsificação pelo valor daquela primeira oferta. Mas, por 5 milhões, ele poderia encontrar caras melhores. Azar o dele, “sorte” a minha (estas aspas eu definitivamente sinalizarias com os dedos). Me ofereceu whisky, vinho, charutos... recusei tudo. Me disse que agora poderíamos discutir algumas técnicas. Agradeci pelo material, peguei tudo e fui embora. Uma coisa era fazer negócio com o professor Stuart, outra era sentar e ficar conversando, como dois amigos discutindo futebol num boteco. Até a minha hipocrisia tinha limites (realmente, eu não era o maior hipócrita do mundo, eu havia esquecido do professor Stuart). Passei um bom tempo envolvido com aquele quadro (não era pra menos). A aula eu praticamente abandonei (acho que já tinha praticamente abandonando havia algum tempo). Durante a produção, continuei indo na casa da Helena. Continuei mantendo contato com o Indy e com o Robs, e com alguns membros do MS2. É evidente que não era como antes. A presença deles, que antes me confortava, agora era tão confortável quanto uma cadeira de pregos. É desnecessário dizer que não era por culpa deles. Eles continuaram os mesmos. Só uma pessoa havia mudado. O Frodo Bolseiro (me perdoe, mas já fazia algum tempo que eu não fazia uma das minhas piadas sem graça; acabei não resistindo). Todos perceberam que eu tava diferente. As minhas visitas eram cada vez mais curtas, ainda assim, eram freqüentes. Eu sabia que, se eu não fosse até eles, eles viriam até - 126 -

mim (este livro seria medíocre (ou ainda mais medíocre) se eu tivesse complementado a frase com “se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”; ou, talvez, fosse ainda pior se eu deixasse você completar mentalmente e só colocasse “se Maomé não vai à montanha...” Eu detesto frases feitas. Os escritores as colocam em seus livros só pra encher linha. Talvez você se pergunte: “E o que você tá fazendo abrindo este parênteses sem sentido?” Você se pergunta coisas demais). Se eles viessem até mim, acabariam vendo o quadro. Talvez você tenha pensado que era só eu inventar uma desculpa qualquer. Eu sei que eu disse que tava decadente, mas eu não queria ter que mentir pra eles. A omissão dá a impressão de ser uma coisa mais limpa que a mentira, só a impressão. Senti necessidade de beber pra suportar aquela situação. Mudando o estado de consciência, alguns problemas não conseguiam me acompanhar. Era fuga? Era covardia? Sim. Era fuga e era covardia; e daí? Por que eu precisaria bancar o herói? Por que não poderia ser um covarde? Por que eu teria que suportar o martírio da consciência? Quando eu tinha que sair pra encontrar alguém, eu não bebia. Se eu fosse pintar naquele dia, eu bebia vinho; se não fosse, bebia vodka. Quando eu queria apagar mesmo, eu bebia os dois. Às vezes, eu sentia o cheiro de álcool exalando pelos meu poros, ou então, impregnado na poltrona, na minha roupa, na cama ou em qualquer outro lugar em que eu já tinha virado o copo (na maioria das vezes, eu nem usava copo, tomava no gargalo mesmo). Quando eu deitava na cama, sentia tudo rodando e ouvia um zunido, que parecia vir de dentro da minha cabeça, como se fosse o grito agonizante dos meus neurônios morrendo. Não lembro de ter vomitado nenhuma vez, eu tinha o estômago forte. Por mais que tenha sentido vontade de vomitar. Não só pra me livrar do enjôo, eu queria colocar alguma coisa pra fora, queria repelir algo que tivesse dentro de mim. Acho que, na verdade, eu queria vomitar a minha alma ou a minha consciência. Queria a tranqüilidade do vazio, mas eu não merecia isso. E não tive. Me dediquei ao máximo naquela porcaria de quadro (não que eu achasse o original uma porcaria). Se eu fazia alguma coisa, independente da importância dessa coisa, eu queria fazer bem feita. Se era algo que envolvia qualquer tipo de arte, então, esse perfeccionismo aumentava ainda mais. Como já disse, não conseguia me sentir satisfeito com aquilo que eu produzia, portanto, eu tentava me sentir o menos insatisfeito possível. Depois que o quadro tava teoricamente pronto, ainda fiz umas trocentas correções. Eu comparava mil vezes aquelas cópias ampliadas com a que eu tinha feito; então, comparava mais uma. Algumas vezes, eu levantava no meio da madrugada só pra olhar a droga do quadro. Aquela imagem tava gravada na minha retina. Se eu fechava o olho, eu via ela. Você sabe que as relações entre o quadro e as atitudes que eu havia tomado não eram as melhores possíveis. De certa forma, ele era a concretização das minhas fraquezas. Por isso, eu bebia. E depois, bebia mais ainda.

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XI Eu não tava completamente sóbrio quando fui falar com o professor Stuart. Eu tinha bebido na noite anterior, mas ainda sentia alguns efeitos, tendendo mais pra ressaca do que pra embriaguez. A pior coisa era aquela dor de cabeça desgraçada. Fazia um bom tempo que eu não pisava na universidade. Aposto que ninguém tinha sentido falta de mim. É claro que perceberam a minha ausência, mas sentir falta é outra coisa. Não falo isso com ressentimento, porque eu também não senti falta deles. Não que eu não gostasse deles, eu não gostava da maneira como eles agiam, como não gosto da maneira como quase todas as pessoas agem. E, a cada dia, tenho cada vez mais convicção de que o problema não deve ser com elas, e sim comigo. Talvez não seja nem comigo, talvez seja eu. Eu tinha levado a tela dentro de um cilindro pro professor dar uma olhada. Bati na porta e entrei no gabinete dele. Sei que eu tinha dito que não queria ter que colocar mais nenhum diálogo com o professor Stuart, portanto, vou encurtar este: - Seu Prometeu, que surpresa agradável! Quais são as novas? - Acabei _ disse, colocando o cilindro sobre a mesa. Um sorriso surgiu nos lábios dele. Tirou cuidadosamente a tela de dentro do cilindro. Colocou os óculos e abriu-a sobre a mesa. Não sei quanto tempo ele ficou observando, sei que não foi uma olhada rápida. Não nego que fiquei um pouco apreensivo, eu tinha gastado um bom tempo naquele negócio, não sabia se agüentaria fazer tudo outra vez. Várias vezes eu tinha sentido vontade de destruir aquela tela e mostrar a gravação pra todo mundo. Eu não conseguia acreditar na veracidade de tudo aquilo que tava acontecendo. Algumas vezes, eu me imaginava entregando a tela pro professor Stuart e, de repente, surgia de uma porta a Helena, o Robs, o Indy, alguns outros amigos (inclusive os de infância), os meus pais, meus familiares e todas as pessoas que algum dia tinham passado pela minha vida. - 128 -

Eles surgiam batendo palmas e rindo. Me diziam que tudo não tinha passado de uma grande brincadeira, que, esse tempo todo, eu tinha sido vítima de uma grande brincadeira; que o mundo não era essa lata de lixo gigante; que a vida não era aquela hipocrisia desgraçada; que você não precisa fazer uma droga de uma faculdade pra conseguir um diploma estúpido por pura burocracia; que a sua preocupação não deve ser ganhar dinheiro acima de tudo e ter que fingir que não é assim, entre muitas coisas que compunham tudo aquilo que eu queria ouvir. Mas, lá tava eu. Tinha entregado a tela pro professor Stuart e não tinha surgido ninguém rindo e batendo palmas. - Perfeito! _ disse ele finalmente. _ Magnífico, brilhante... Seu Prometeu, o senhor é um gênio... é genial! “Gênio é a tua mãe _ pensei”. Não sei por que tanta hostilidade com o professor Stuart. Ele não era a melhor pessoa do mundo (muito provavelmente, não tava nem entre as cinco), mas isso não justificava aquela minha revolta. Acho que eu tentava transferir pra ele a culpa pelo que eu tinha feito, a culpa pelas minhas fraquezas. - Óbvio que essa minha avaliação foi muito superficial . O senhor terá que deixar a tela comigo pra que eu veja se será necessária alguma alteração, algum reparo... você sabe, pra que eu faça uma análise mais detalhada. - Não. Não é bem por aí. O senhor só vai podê ficá com a tela quando o dinhero tivé na minha conta. Não sei por que eu fiz aquilo. Eu tinha a fita, e ela era a garantia de que o professor não podia tentar me enganar. Acho que eu devo ter feito aquilo só pra afirmar meu poder, pra mostrar que eu exigia as condições, e pra deixar bem claro pro professor Stuart que eu não confiava nele. - Isso é um absurdo, as coisas não funcionam dessa forma. - Mas vão te que funcioná. Dê um jeito. Tirei um papel do bolso e coloquei em cima da mesa dele. - O número da minha conta tá aí; embaxo, tá o meu telefone. Me ligue quando o depósito tivé sido feito. - Senhor Prometeu, o senhor não entendeu. Eu já disse que as coisas não podem ser feitas dessa maneira. - O senhor que não entendeu. Eu disse que elas precisam ser feitas dessa maneira. Agora, por favor, enrole a tela e coloque dentro do cilindro. Ele fez o que eu pedi, se mostrando contrariado, sacudindo negativamente a cabeça. - O senhor torna as coisas muito mais difíceis. - Obrigado _ falei, pegando o cilindro. _ É só me ligá que em pocos minutos eu tô aqui. Saí logo daquela universidade. Aquele não era o meu ambiente favorito (não tava nem entre os cinco). Dessa vez, eu não ia poder passar na casa da Helena, por causa daquele cilindro; pra falar a verdade, eu também não tava com muita vontade. Andando pelas ruas, não sei por que, de repente a minha visão ficou embaçada por lágrimas (sei que eu já tava sentimental demais, e você deve tá de saco cheio, mas o que eu posso fazer?). Senti vontade de me jogar no chão (ali, no meio daquela multidão anônima, pra quem eu era só um rosto, sem história, sem alma, sem sentimentos) e chorar o mais alto o possível. O máximo que podia acontecer era alguém chamar a polícia. As pessoas estão cada dia mais frias, mais indiferentes. As definições de solidariedade no dicionário deveriam ser as seguintes: Forma de marketing em que se utiliza outrem como um meio de autopromoção; propaganda que visa a obtenção de carisma disfarçada sob a forma de caridade. - 129 -

Não me joguei no chão, nem comecei a chorar. Continuei andando. Uma mulher passou por mim e o perfume dela me fez lembrar o cheiro da minha mãe. Senti uma saudade enorme dela, saudade de deitar a cabeça no colo dela e esquecer de tudo. Fazia tempo que eu não via a minha mãe, de vez em quando, falava com ela por telefone. Mas eu me sentia cada vez mais distante das pessoas que eram ligadas a mim (Meu Deus! Que narrativa melosa!). Cheguei em casa e deitei na minha cama. Ah, como eu queria poder dormir! Mas não. Fiquei olhando pro forro enquanto mil pensamentos e lembranças passavam pela minha cabeça. Pensei que, se eu dormisse, acordaria em outro lugar e lembraria daquilo tudo como se tivesse sido um sonho, ou nem lembraria de nada. De repente, me senti meio apavorado. E se eu não lembrasse da Helena? E se eu não me lembrasse da minha mãe? É claro que havia outras pessoas importantes na minha vida, mas eu pensei nas duas, não que elas fossem as principais, só sei que pensei nelas. Um outro pensamento passou pela minha cabeça e me deixou ainda mais apavorado. E se as pessoas que me conheciam também não se lembrassem mais de mim? Se isso acontecesse, então, a minha vida toda não teria sentido (não que tivesse até o momento, mas nem refleti sobre isso). O esquecimento seria o maior castigo que eu poderia receber. Pior ainda seria se eu lembrasse delas e soubesse que elas não lembravam de mim. Não sei por que eu tava pensando isso; acho que pensei que, se eu dormisse, eu morreria. É. Foi isso mesmo. Comecei a pensar sobre a morte. E se não tivesse nenhum tipo de vida após a morte, se todo o meu ser acabasse assim, de uma hora pra outra? Como seria não existir? Como seria não existir? Como seria não existir? Essa pergunta martelava a minha cabeça. Me senti completamente insignificante, o existir era o princípio da insignificância, e o deixar de existir era a consumação. Uma coisa só poderia ser grande se existisse pra sempre, ou, se nunca houvesse existido. O existir pra depois deixar de existir era literalmente a personificação da pequenez. Era o passageiro, o efêmero, o esquecível (nem sei se existe esta palavra), era a vida. Mas a idéia de deixar de existir, de se tornar o vazio, acabou me confortando. Se isso acontecesse, eu não teria mais a minha consciência. E, sem a consciência, eu não me faria mais essas perguntas que tanto me castigavam. A consciência era o meu carrasco. Não só a consciência relativa à moralidade, mas também a lucidez e a suposta compreensão das coisas (coloquei suposta porque não sei se compreendo). Me senti aliviado ao pensar que eu poderia acabar com a morte. Me julgava fraco demais para o eterno. Me senti contente pela minha fraqueza; quanto mais forte, mais poderoso, maiores são as suas responsabilidades. Pensei que, se Deus existia, eu definitivamente não queria ser Ele. Imaginei que ter uma consciência como a minha, nas condições Dele, seria um martírio inimaginável. Mesmo que Ele fosse perfeito e nunca tivesse cometido nenhum erro, a onisciência seria insuportável. Eu, que sabia uma fração insignificante das imundícies do mundo, já quase não conseguia suportar, imagine só saber tudo! Se você pensou: “Por isso que você não é Deus”, eu diria que isso é uma conclusão um tanto óbvia, tenho plena consciência de que as condições Dele devem ser bem diferentes e que não cabe a mim compreendê-las. E, partindo da sua conclusão, eu diria: “Por isso que você não é Einstein”. Nem sei por que citei Einstein, nem sei se ele era tão inteligente assim. Sei que me disseram que ele era, e acabei acreditando, a partir disso, poderia dizer: “Por isso que eu não sô Einstein”, mas aí ficaria redundante, porque eu taria afirmando que eu não sô Einstein (considerando ele um cara incrivelmente inteligente) por ter acreditado que ele era um cara incrivelmente inteligente. Se você não entendeu, tudo bem, porque não tem sentido mesmo e nem eu entendi direito (conclusão: “não somos Einstein”). Tá, já viajei demais. - 130 -

Levantei da cama e fui tomar um banho. Costumava tomar banho quando tava assim, aflito, inquieto... Até hoje não parei pra pensar se faz efeito ou não, apesar de continuar tomando banho quando tô nesse tipo de situação. Acho que a água escorrendo pela minha cabeça me dá a sensação de que ela tá tirando certos pensamentos. Ou pela própria sensação de limpeza. Por me sentir mais limpo, mais purificado, após o banho. Sei lá, isso também não vem ao caso. Agora eu já não tava mais com receio de dormir. Como também não precisava continuar pintando, resolvi tomar um pouco de vodka. Acho que eu havia me tornado um alcoólatra temporário. Por favor, não me venha com aquela conversa de: “não existem alcoólatras temporários; o primeiro passo é assumir o vício”. Ou então: “alcoólatra não é um termo politicamente correto, o ideal seria alcoólico ou dipsomaníaco”. Você já sabe o que eu acho do “politicamente correto”, além do mais, acho que o termo alcoólico soaria estranho; dipsomaníaco então, não preciso nem falar. Poderia ter usado bêbado. Mas, como eu já disse, um termo mais técnico ou científico impressiona mais, dá uma idéia de que você domina o assunto, que é um verdadeiro intelectual. Olhando por esse aspecto, eu devia ter usado dipsomaníaco, no entanto, já coloquei alcoólatra. Façamos o seguinte, esqueça aquela parte que você leu e veja como fica desse jeito: Acho que eu havia me tornado um dipsomaníaco temporário. Impressiona mais, não impressiona? (se você disse “não”, você é sem graça). Os médicos sabem se valer muito bem disso, não só os médicos, mas qualquer especialista de qualquer área. Eles falam pra você aquelas palavras que você nunca ouviu na vida (e eles estão cientes disso) e te levam a pensar: “Meu Deus, eu sô mesmo um ignorante, preciso confiar em um cara que sabe uma palavra dessas”. Talvez essa frase não se forme assim, claramente; mas, pelo menos no seu subconsciente, ela se forma. Acabei pegando no sono e, até onde eu sei, continuei vivo. Acordei tarde, perto do meio dia. Tomei um banho e almocei no pensionato mesmo, coisa que há muito tempo eu não fazia. Resolvi que eu ia na casa da Helena naquele dia. Tava me sentindo mais livre, acho que porque eu não tava mais pintando e nem via mais o quadro, que tava guardado dentro do cilindro. Uma parte de mim tentava convencer a outra de que nada daquilo tinha acontecido. Apesar dessa parte não conseguir convencer realmente a outra; a outra fingia que tava convencida. E eu fingia que não sabia que ela tava fingindo. Fingimentos à parte, eu tava realmente confuso. Tava certo de uma coisa, eu queria ver a Helena. Não sabia como me sentiria quando tivesse perto dela, mas sabia que eu precisava tá perto dela. Você nunca parou pra pensar por que a vida é essa merda? Por que as coisas não podem dar certo de uma só vez? Por que quando uma dá certo, dez dão errado? Por que quando você ganha uma coisa, você perde outra? E você só dá valor pra determinadas coisas depois de perdê-las, só quando já não as tem mais. É como ir ao banheiro e perceber que não tem papel higiênico. Você nunca dá valor a ele quando ele tá lá, mas, se ele não tiver, ele parece ser a coisa mais importante do mundo naquele momento. Aliás, acho que o papel higiênico é o objeto mártir da sociedade contemporânea, tanto pela sua função, quanto pela falta de reconhecimento da mesma. Como se não bastasse, depois de ter servido a alguém, ele passa a ser visto como a coisa mais repugnante do planeta. Mas não era meu objetivo fazer uma análise existencial do papel higiênico, foi só um exemplo pra ilustrar algo que nem sei mais o que era. Enfim, fui na casa da Helena. Mas foi tudo muito estranho. Era como se eu não tivesse lá, ou como se não quisesse estar. Mas eu sabia que, se eu realmente não tivesse, aí eu ia querer estar. Era o descontentamento. E eu não podia fugir dele. Ninguém pode. Não conseguia parar de pensar em duas coisas, uma delas não existe e, a partir do momento que - 131 -

existir, se tornará outra (ou seja, nunca é ela mesma). Quando ela se torna a outra, perde todo o seu valor, porque esse “existir”, na verdade, é mais um “existiu”. Os verbos entre essas duas coisas são sempre impalpáveis, uma hora está distante porque será, outra hora está distante porque foi. Meu Deus, não acredito que tô fazendo charadinhas! Eu tô querendo dizer que não conseguia parar de pensar no meu passado e no meu futuro. Enquanto isso, o meu presente ia sendo desperdiçado. O Robs chegou, mas eu não consegui conversar com ele também. Não conseguia me concentrar no que ele dizia, aí ficava só concordando com tudo. Poucas coisas faziam eu me sentir tão mal quanto ficar concordando com uma pessoa sem saber o que ela falava. Então, resolvi que o melhor mesmo seria eu ir embora. E fui. A Helena insistiu pra que eu ficasse, e eu me senti pior ainda. Ela gostava tanto de mim que se contentava até com a minha meia presença. “Como pode ela gostá de mim ? _ fui embora me perguntando”. Concluí que só podia ser por causa daquela distorção de imagens, a maneira como ela me via era diferente da como eu me via, e ambas eram diferentes do que eu era. Passei a visitar a Helena com cada vez menos freqüência, e as visitas eram cada vez mais curtas. Eu não conseguia deixar de ver ela. Já disse que eu precisava da presença dela. O que eu não agüentava era a minha presença na presença dela. Acho que era por causa daquele negócio dos contrastes, que eu cheguei a brincar com ela e com o Robs. Lembra? Quando eu falei que ela devia ser modelo, aí eu e o Robs podíamos desfilar junto, só pra realçar ainda mais a beleza dela. Pois é, mas esse contraste do qual eu falo agora não tem nada a ver com a aparência. Era um contraste de personalidades. A pureza, a inocência e a transparência da Helena faziam eu me sentir mais sujo, mais falso ; ou seja, ela fazia eu me sentir mais eu. E eu queria esquecer de quem eu era. Eu tinha medo de acabar contaminando ela com a pior doença que eu conhecia : eu. Ela não podia nunca ficar parecida comigo. Eu precisava viver sabendo que apesar desse mundo ser uma merda, ainda tinha a Helena. Também fui ver o Indy. Na verdade, eu fui só entregar o gravador dele e caí fora. Não conseguia ser tão cara-de-pau a ponto de discutir sobre um movimento revolucionário quando eu tinha acabado de me vender pro outro lado. Resolvi passar o máximo de tempo que eu pudesse sozinho. Eu e o tédio. Às vezes, me pegava pensando em alguma missão pro MS2. Aí eu lembrava daquele cilindro, que tava jogado em algum canto da minha casa. Os dias passaram assim, uma porcaria que parecia se repetir só pra me torturar. Nada nunca me deixou mais de saco cheio do que a falta de mudança. Qualqué oscilação era mais agradável do que aquela linearidade. Será mesmo? Eu tinha certeza disso até uma oscilação que me fez pensar melhor. A senhora do pensionato bateu na minha porta pra me avisar que tinha alguém no telefone querendo falar comigo. Podia ser os meus pais, havia uma pequena possibilidade de ser a Helena (ela não gostava de falar com estranhos no telefone, e raramente eu atendia) ou podia ser o Robs ou o Indy (eles eram os únicos do MS2 que tinham o meu número). Ou ainda, podia ser “você sabe quem” (não aquele do Harry Poter). E realmente era o “você sabe quem”, ou, para evitar plágio, o professor Stuart. - Alô, Prometeu? (aqui tô eu, colocando outro diálogo com o professor Stuart; mas este vai ser curto, e prometo que só vai ter mais um). - É ele mesmo. - Aqui é o professor Stuart (sério, achei que fosse o Elton John; pensei em algo do gênero, mas evitei o sarcasmo). O depósito tá feito. - Ótimo, daqui umas duas horas eu tô aí. - 132 -

Desliguei o telefone. Agora, retomando aquele pensamento: se a oscilação for uma ligação do professor Stuart, será que ela é melhor que a linearidade? Você pode pensar: “E se a ligação for dizendo que você tem 5 milhões na tua conta?”. Confesso que não pensei dessa maneira. A primeira coisa que pensei foi que teria que ver ele, e isso foi desanimador. Eu tava tão certo de que ele ia ligar (e já não tinha certeza se era isso que eu queria) que não manifestei nenhuma reação de surpresa. Quanto aos 5 milhões, eu já contava eles como meus havia algum tempo. Tempo quase suficiente pra me fazer enjoar deles. Peguei o cilindro e fui pra universidade. Antes, passei no banco pra conferir o meu saldo (não confiava cegamente no professor). O segurança ficou me olhando com uma cara estranha por causa do cilindro, mas, como a porta não travou, ele não fez nada. Fiquei imaginando como ele me trataria se soubesse que eu tinha 5 milhões na conta. Não digo isso naquele estilo porco: “Você sabe com quem você tá falando?”. Eu pensava como eu seria tratado se as pessoas soubessem que eu tinha dinheiro (mais tarde, eu saberia) e que tipo de reação isso despertaria em mim (infelizmente, mais tarde, eu saberia). Conferi a conta. Nunca tinha visto tantos números. O meu saldo era de: US$ 5.000.324,57. Os US$ 324,57 já tavam lá antes, como você deve ter presumido. Não foram nenhum bônus. Por um momento, achei aquilo tudo uma grande palhaçada. Sabe, toda aquela sensação de dependência (não falo dos pais, mas de todo o sistema), de insegurança, de que talvez eu nunca fosse capaz de me sustentar, tudo isso tinha acabado assim, de uma hora pra outra. Me senti um pouco mais livre, como se eu não tivesse que representar um papel ditado pela sociedade, só pra ganhar um salário no final do mês. Senti pena de todos aqueles que não tinham a mesma chance. Me senti culpado por ter tido essa chance quando muitos, que eram muito mais merecedores que eu, não haviam tido. Depois, me senti um porco. Do que eu tava falando? Aquilo era só dinheiro, não era nenhuma benção dos céus. No fundo, eu sabia que só dinheiro, no capitalismo, era toda a diferença. Me senti pior ainda por ter pensado desse jeito, por ter me julgado um felizardo por ter conseguido aquele dinheiro. Eu tinha tentado esconder meu código de barra esse tempo todo. Agora, ele tava estampado na minha testa. Enfim, lá tava eu, chegando outra vez no gabinete do professor. - É bom vê-lo novamente, senhor Prometeu. Creio que, apesar de algumas adversidades, fechamos um bom negócio. O senhor pode conferir como o depósito foi realmente efetuado _ disse ele, me passando um comprovante. - Eu já passei no banco (acho que eu falei isso só pra deixar ainda mais claro que eu não confiava nele, se é que isso era possível). - Ótimo. E havia cinco milhões na sua conta? - Não _ falei. - Não?! _ disse ele, assustado, arregalando os olhos. - Não. Tinha cinco milhões, trezentos e vinte e quatro dólares e cinqüenta e sete centavos (me arrependi amargamente de ter falado isso; o que eu tava fazendo? Piadinhas sem graça com o professor Stuart?! Qual seria o próximo passo? Daqui a pouco, eu taria com ele num bar, tomando cerveja e jogando golfe) (essa foi outra piada forçada, já que os bares que eu conheço não têm campos de golfe). Ele não riu. Acho que ele nem entendeu que aquilo era a tentativa de uma piada. Se entendeu, simplesmente ignorou. - Bom, já que as suas condições já foram cumpridas, creio que eu posso ficar com a tela.

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A tela. Por um momento, quase esqueci que era por causa dela que tudo aquilo tava acontecendo. Entreguei o cilindro pro professor. - Creio que há algo mais que o senhor precisa me entregar. “Algo mais? _ pensei. _ Ah. Claro, a fita”. Tirei ela do bolso e coloquei sobre a mesa. - Tava quase esquecendo... - A cópia e a original _ disse ele. - Espero que o senhor não fique desapontado, mas, o tempo todo, só teve a original, eu inventei aquela história. Ele tava nitidamente desapontado, mas, aposto que não era por ter perdido a chance de eliminar a gravação quando eu mostrei ela pra ele pela primeira vez. Aposto que, na hora, ele nem pensou nisso. É que, tendo uma original e uma cópia (ainda mais uma cópia em poder de outra pessoa), fica uma coisa mais estilo James Bond. E, cá entre nós, o professor Stuart tinha cara de quem já se olhou no espelho e disse: “Meu nome é Bond, James Bond”. Ele devia tá ansioso pra queimá as fitas na lareira enquanto acendia um charuto, se achando o senhor das negociações secretas. O que falar dos dias que se seguiram? O professor não se comunicou mais comigo, eu não fiquei triste por isso. Se foi preciso fazer alguma alteração na pintura, ele deu um outro jeito. Eu não saí por aí torrando dinheiro em carros, roupas, tênis, sapatos e todo esse monte de merda que você se sente obrigado a comprar se você tem “bala na agulha” (eu queria usar a expressão “bala na agulha” neste livro, confesso que forcei a frase pra isso). Acho que o espírito consumista ainda não havia encarnado em mim. Continuei gastando a mesma média que eu gastava antes, continuei morando no mesmo lugar. E acho que nem precisaria eu dizer que não fui mais pra aula. Não fui mais pra aula. Não comentei nada com ninguém a respeito do dinheiro. Como já disse, não por falta de confiança, mas por vergonha. Eu vi o rosto da Helena uma mil vezes enquanto ela ouvia o que eu tinha feito. Claro que só na minha imaginação; algumas vezes, em sonhos também. Imaginei um milhão de formas de contar a mesma história, mas não encontrei nenhuma que parecesse melhor do que as outras. A Helena não era daquele tipo que diria: “Cinco milhões?! Esquece o resto, o que importa é o dinheiro”. Ela era mais pro estilo: “Você se vendeu?! Esquece o resto, o que importa é o caráter”. E era por isso que eu gostava dela. Pelo mesmo motivo que, provavelmente, faria com que ela deixasse de gostar de mim. Peguei um cartão de créditos. Pra mim, aquilo era como se fosse o meu carimbo de: VENDIDO. Mas eu não podia andar com 5 milhões na carteira. A propósito, comprei uma carteira também, porque, até então, eu não tinha uma. Eu achava que já tinha decidido qual seria o meu próximo passo. Afinal, a miséria e a fortuna são duas coisas que não se pode esconder por muito tempo (que frase horrível!). A questão era, como eu diria: “Mãe, não tô mais estudando. O pai não precisa mais mandá dinhero. Quem sabe, qualqué dia desses, eu mande uns 500 mil”. Fui a uma joalheria. A mais famosa da cidade. Nunca tive muito interesse por jóias, mas eu queria dar alguma coisa à Helena que fosse bonita e que tivesse bastante valor. Acho que era uma maneira de eu me desculpar comigo mesmo. Algo do tipo: “Tendo mais dinheiro, posso fazer mais pelas pessoas que eu gosto”. Era deprimente ver a indiferença da atendente. Eu, definitivamente, não parecia o cara com mais dinheiro. “Que se dane _ pensei. _ Ela não conhece a Helena mesmo. Eu posso escolhê melhor sozinho”. Achei um colar, que não era daqueles extravagantes, mas que era muito bonito. Era a cara da Helena. Eu não sabia o preço dele, mas, se ele custasse 5 milhões, eu compraria. A verdade é que ele custou bem menos, mas não vou entrar em detalhes. - 134 -

- Eu vô levá esse colar ali _ falei, apontando pro qual eu queria. - Desculpe? _ disse ela, me olhando com um risinho meio sarcástico. - Olha, eu sei que você acha que eu não tenho dinhero. Mas eu não tô nem aí pra o que você acha. Eu acho que você é uma tapada que deve ficá se derretendo pra essas pirua de butique. Mas você não deve tá nem aí pro que eu acho. - O senhor está sendo mal educado e eu vou ser obrigada a pedir que se retire. Nisso apareceu um cara engravatado, com um cavanhaque grisalho: - O que está havendo? - Esse senhor... _ disse a atendente. - Olha, eu só quero comprá um colar, mas a moça aí não qué me atendê direito porque ela acha que eu não tenho dinhero. Ela podia pelo menos, passá o cartão na máquina e vê se eu posso levá ou não. Será que o senhor pode fazê isso? - Qual é colar? _ disse o cara. - É aquele ali. Ele pegou o cartão, conferiu o meu crédito e disse: - Desculpe qualquer inconveniente, senhor. Eu lhe garanto que isso não vai se repetir. Eu posso lhe oferecer 10% de desconto, como um pedido de desculpas. Olhei pra cara de assustada da moça. Ela tava branca. - Quer que embrulhe pra presente? _ continuou ele. - Quero sim. Ele mandou que a atendente embrulhasse. Falou num tom seco, como se o bicho fosse pegar quando eu saísse. - Foi um prazer atendê-lo, senhor. Novamente, peço desculpas. Quando precisar, disponha. Dou minha palavra que não haverá novos inconvenientes. Peguei o embrulho, pisquei pra moça e falei: - Perdeu a comissão. Depois, me arrependi por ter feito isso. Talvez a coitada já fosse perder o emprego. Mas, na hora, eu tava revoltado, nunca suportei nenhum preconceito. Pelo menos, não corria o risco de ser assaltado. Quem roubaria um pacote pequeno de um cara como eu? Liguei pra Helena e perguntei se ela não queria jantar comigo naquele fim de semana. Ela aceitou. Eu disse que passaria na casa dela e a gente ia junto. Ela perguntou aonde, falei que resolveríamos na hora. Na verdade, eu já tinha um lugar em mente. Era um restaurante de burguês, desses que você tem que pagar só pra olhar a comida. Nunca me senti muito à vontade nesse tipo de lugar, mas eu queria fazer uma surpresa pra ela. Não fiz nada até o fim de semana. Queria olhar outra vez o colar, pra ver se eu tinha escolhido bem. Mas eu sabia que, se eu desembrulhasse, não ia ter coordenação pra embrulhar direito outra vez. Pensei o que ela diria, mas eu não tinha idéia nenhuma. O meu cérebro tava cansado de tanto fazer suposições. Não sei quanto a você, mas o tempo me parece uma coisa bem estranha. Quanto mais você espera que ele passe rápido, mais ele parece demorar. E se você deseja que alguns momentos durem pra sempre, eles duram um piscar de olhos. Parece que, nesse mundo, nem o tempo tá do nosso lado. Finalmente, depois de dois dias (que na minha opinião não duraram só 48 horas), chegou o fim de semana. Agora que ele tinha chegado, eu já não sabia se era isso mesmo que eu queria. Mas não ia dar pra trás agora. Eu já tinha feito os meus planos e tinha que colocálos em prática. Não sei, parece que alguma coisa nos leva a fazer aquilo que precisamos (ou que achamos que precisamos) fazer.

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Tá bom, chega de confundir, de uma coisa eu sei: fui na casa da Helena. Eu tinha ligado pra ela antes de ir e pedi que ela me esperasse pronta, pra gente ir direto pro tal restaurante. Eu me arrumei melhor do que de costume, não porque era um restaurante caro (eu tava pouco me ferrando pro restaurante), me arrumei por causa da Helena, porque era uma ocasião importante pra nós. Nunca chorei tanto durante o banho como naquele dia. Eu não sei... não conseguia segurar as lágrimas. Nem sei direito por que eu chorava. Sentia uma angústia tão grande, uma dor tão forte. Eu chorava por mim, pela Helena e por toda criatura que um dia já havia provado isso que não possui nenhum sinônimo, esta palavra ilhada, completamente sozinha num mar de confusão. Uma palavra, todos os mistérios: VIDA. Chorava porque sabia que nunca teria o controle dela, e, depois, chorava mais porque sabia que era justamente isso que eu queria, que ela fosse essa coisa descontrolada. Queria odiá-la; queria dizer que não precisava dela; queria tremer de pânico ante a possibilidade de perdê-la. Queria inspirar e expirar, achando, ingenuamente, que isso duraria pra sempre; queria me sentir frustrado, aborrecido, sem me dar conta de que, a cada batida do meu coração, me restava uma a menos. Queria me perguntar se eu realmente estive vivo um dia; queria me perguntar se é possível estar vivo um dia. Sei lá se era isso que eu pensava mesmo. Não quero enganar ninguém dizendo que eu me conheço. Acho que a pessoa que eu menos conheço neste mundo sou eu, mas acho que não me conheço o suficiente pra dizer isso. Depois do banho, fiquei me olhando no espelho, como se que quisesse ser apresentado àquela imagem, ou como se ela quisesse ser apresentada a mim. Me perguntei qual de nós era o verdadeiro (se é que existia um) e qual era o reflexo. Às vezes, me pergunto se eu não sou só um personagem, se eu não sou só uma ilusão da mente de alguém. Sei que é uma teoria doida, mas ela é um pouco elaborada. Penso que poderia existir um número enorme de “eus”, um número próximo do infinito, só que todos estaríamos separados um do outro por algo intransponível, pelo tempo. Os meus “eus” que viessem depois teriam conhecimento dos antecessores (uma ilusão de passado), mas jamais conheceriam os “eus” futuros e, tampouco, o eu presente se conheceria. E todos nós, meus “eus”, seríamos parte da ilusão de alguém, seríamos um personagem. Me pergunto que tipo de mente criaria alguém como eu. Eu realmente gostaria de conhecer o meu criador (se ele existir). Penso que se perguntasse a ele (não sei se devo colocar esse “ele” em maiúscula) por que me criou, ele teria uma resposta profunda ou usaria aquela que tantas vezes já usei: “Porque não tinha nada melhor pra fazê (a propósito, não seria essa uma resposta profunda?)”. Talvez eu até fizesse uma piada, talvez dissesse: “Nada melhor que eu? Tem certeza? Você não devia tê nada pra fazê mesmo”. Mas, o que me pergunto é: seria eu que estaria fazendo a piada, ou seria ele através de mim? E se alguém tivesse me criado, eu seria o personagem principal? Confesso que a idéia de ser um mero coadjuvante me assusta mais que a idéia de ser um personagem. E esse sujeito que teria me criado, não seria ele o personagem da história de alguém e assim por diante. Como seria a história dele? Será que aquilo que chamamos de Deus (outra vez, maiúscula ou minúscula?) não é só um cara que não tinha nada pra fazer e inventou uma história? E Ele, por sua vez, foi inventado por outro, que seria o Deus Dele? Nossa, dessa vez tô viajando mesmo! Vou voltar pra história. Fiquei algum tempo olhando aquele pequeno pacote que eu entregaria a Helena. Acho que eu não pensava em nada muito claro, só olhava o pacote. Até que, num determinado momento, peguei ele e saí. Não tava muito longe da hora que eu tinha combinado de passar na casa dela. Enquanto eu

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tava andando, me lembrava do dia em que a gente tinha se conhecido. Aquele tinha sido um dia doido. Ri sozinho, me lembrando de algumas coisas. Cheguei na casa dela. Ela e o Robs saíram pra me atender. Perguntei a ele se queria ir junto com a gente. - Beleza, só vô trocá de ropa _ disse ele. _ Tô brincando, não sô tão sem noção assim. Três é demais. A gente se despediu dele e seguiu andando. A Helena tava linda (sempre teve, mas agora a beleza era tanta que eu quase não conseguia suportar). O perfume dela me entorpecia, me levava a um outro lugar. Tava um pouco frio, ela andava bem junto de mim, com o braço enganchado no meu. Soltei-a por um momento e me coloquei de frente pra ela. Ela parou meio sem entender o que tava acontecendo. - Meu Deus, você tá tão linda! - Ah, não vai começá... Eu beijei ela. Depois, abracei. Tive que lutar pra segurar as lágrimas enquanto tava abraçado a ela (eu tava meio emotivo naquele dia; se ela me visse chorando, ia se assustar). Aquele calor dela... aquele perfume..., ela em si alimentava a minha alma. Sei que isso tudo parece meio piegas, mas talvez a essência humana seja meio piegas. Piegas ou não, eu tava me lixando, só sei que estar abraçado com ela era a melhor coisa do mundo. Eu podia ficar ali, nem precisava mais ir ao restaurante. Mas, não sei por que, o abraço terminou. - Prometeu, o que que tá acontecendo? - Love, love, love ... All you need is love _ cantei. Ela riu. Não sei se ela riu pelo fato de eu ter cantado ou pela minha desafinação. Acabei rindo também, eu tava tão surpreso quanto ela por eu ter cantado aquilo. Eu nem gostava muito de Beatles. Mas acho que aquele refrão era verdadeiro. - Você é doido _ disse ela, ainda rindo. _ Não sei o que esperá de você. A propósito, pra onde a gente tá indo? - Você vai vê quando a gente chegá. - Quanto mistério... A gente continuou conversando e rindo pelo caminho. Até que finalmente chegamos no restaurante. - É aqui _ falei, indo em direção à porta. Ela me segurou pela mão e disse: - Tá bom. Eu não caio nessa... - É aqui mesmo, tô falando sério. - Cê só pode tá brincando. - Por quê? - Porque só falta eles colocarem um cartaz aqui na porta: “Entrada permitida somente para burgueses”. - Não se preocupe _ falei. _ A gente não vai tê que saí correndo depois de comê, nem ficá lavando prato. Digamos que eu tinha planejado isso e tô preparado. - Mas... - Pára com isso, Helena. Vamo entrá logo. Dessa vez, eu puxei ela pela mão pra dentro do restaurante. O lugar era realmente bem bonito. Eu não lembrava de já ter comido num lugar como aquele. Logo que a gente entrou, um cara já veio perguntar se a gente tinha feito reservas. “Caramba, esqueci disso! _ pensei na hora”. Eu disse que não; por sorte, ele falou que não tinha problema, que havia umas mesas disponíveis. Devo admitir que o sujeito atendeu a gente muito bem. Nos levou - 137 -

até uma mesa e mostrou o cardápio. A única coisa que eu conhecia ali eram os vinhos. Pedi um e falei pro cara: - Você pode explicá mais ou menos pra gente o que são esses pratos, ou sugeri alguma coisa? Ele disse mais ou menos o que era cada um, e disse o que ele achava que não era muito recomendável a gente pedir. Depois, trouxe o vinho. Eu e a Helena entramos num consenso quanto ao que a gente deveria pedir como entrada e prato principal. Pedimos as mesmas coisas. Ela quis comentar algo mais sobre os preços, mas eu não deixei. A comida era boa, mas também não era aquela maravilha. Pra mim, os restaurantes caros são mais um mito entre tantos outros. Quando a gente acabou de comer, eu falei pra ela: - Eu comprei um presente pra você. É só uma lembrança, espero que você goste. - Não precisava. Você me dexa com vergonha. Se eu soubesse, tinha comprado alguma coisa também. Entreguei o pacote pra ela. Ela abriu rápido, toda curiosa, e fez uma cara de espanto quando viu: - Nossa, Prometeu, é lindo! Eu te amo _ ela me deu um beijo e continuou _ Parece de verdade! - Algumas coisas falsas parecem verdaderas, e algumas verdaderas parecem falsas _ falei, meio que comigo mesmo. - Não pense que tem alguma diferença pra mim se é verdadero ou não é, se é brilhante mesmo ou não. O que importa é que veio de você, e, se veio de você, então já é de verdade. - Eu amo você, Helena, pra sempre. A imagem dela tentando colocar aquele colar, sorrindo, ficou gravada pra sempre na minha memória. - Eu não consigo colocar. Você põe pra mim? - Claro. Paguei a conta, que no final das contas, nem era nada tão absurdo assim. Deixei uma gorjeta pro cara que atendeu a gente, que realmente merecia, e fomos embora. Enquanto caminhávamos rumo à casa dela, ela me disse: - Brigada, Prometeu. Não sei nem o que dizê. Essa noite foi maravilhosa. Acho que foi a melhor noite da minha vida, não tô falando isso da boca pra fora. Espero que depois que a gente casá continue assim. - Casá? - É, foi você que me pediu em casamento, já esqueceu? - Não, não esqueci não. A gente ficou em silêncio por algum tempo. Não sei se foi impressão minha, mas aquela noite me parecia mais calma do que o habitual, não tinha toda aquela agitação de carros e parecia ter poucas pessoas circulando a pé. Novamente, foi a Helena quem falou: Eu li o teu livro. Já faz algum tempo, não sei por que não te falei isso antes. - E aí, gostô? - Achei ótimo. E não é porque foi você que escreveu, você tem talento mesmo. - Se você não tivesse gostado, você ia me falá? - Não tenho como sabê, já que eu gostei mesmo. Por que, cê não tá acreditando que eu gostei? - Calma, calma. Acredito sim, e fico realmente feliz que você tenha gostado. Se tem uma opinião que importa pra mim, é a tua. Só queria sabê se tinha a possibilidade de você menti pra mim, se julgasse que isso era pro meu bem? - 138 -

- Não sei... você mentiria? - Não. Mas quando eu digo “não”, já posso tá mentindo pro teu bem. - Pára _ disse ela, empurrando o meu ombro e rindo. _ Eu tava pensando, você podia escrevê um livro sobre a gente; acho que ia dá uma boa história. - Eu não sei, nossa história é muito doida. Geralmente, os livros são mais reais do que a vida. Alguns escritores se preocupam tanto que as histórias deles pareçam reais, que elas acabam ficando reais demais. Mas também, eu não tenho nada a vê com os otros escritores. Na verdade, é uma ótima idéia, acho que, um dia, vô escrevê um livro sobre a gente. Só tem um problema... - Que problema? - Que todo mundo acabe se apaixonando por você, assim como eu. - Ah, você não tem jeito mesmo, eu tava falando sério. - Eu também. - Mas, se você fosse escrevê um livro sobre a gente, você não ia podê colocá os nossos nome de verdade; se você colocasse, eu ia morrê de vergonha. - Tá bom, eu podia colocá Gorda, já que é o teu apelido. - Não! Capaz! Todo mundo ia achá que eu sô Gorda de verdade. Não que eu não seja (essa é a típica afirmação de humildade das mulheres; por que uma mulher magra não pode dizer que é magra?). - Tá bom, eu penso num otro então. - Você podia colocá algum anjinho na capa, desses bem fofinho... - Anjinho na capa, Helena? Não fica meio gay? - Meio gay _ disse ela, forçando a voz de uma forma irônica e ao mesmo tempo bem engraçada, que me fez rir. _ Os homens não aproveitam um monte de coisas com medo de parecê gay. Acho isso ridículo. - Você tá certa, não sei por que falei isso. Tá bom, anjinho na capa. Só espero que os cara da editora aceitem, sabe como que é esse pessoal que se julga culto, ainda mais se eles tão no controle da situação. - Você vai acabá esquecendo. - Esquecendo?! Cê tá brincando. Eu vô me lembrá de tudo que você falô hoje pra sempre. - Tá bom, acredito _ ironizou ela. - Você vai vê quando tivé lendo este nosso diálogo na íntegra, você que vai acabá lembrando de um monte de coisa que provavelmente já vai tê esquecido. - Então tá, eu não vô te ajudá a se lembrá. Depois, eu vô vê se tá faltando alguma coisa. E não vai inventá coisa que eu não falei. - Boa idéia, não tinha pensado nisso. - Ah, é? Seu palhaço, se você fizé isso, eu faço você engoli a droga do livro. E não adianta tentá fugi, porque eu vô te encontrá, e você vai comê uma página de cada vez (tô brincando, ela não disse isso, eu inventei essa fala) (Helena, se você tivé lendo, foi só uma brincadeirinha; acho que lembrei de quase tudo). Lembra daqueles momentos que eu falei, que parece que você tá num outro mundo ou que você sente que as coisas podem ser diferentes? Eu tava vivendo um desses momentos enquanto acompanhava a Helena até a casa dela naquela noite. De repente, quando as coisas pareciam estar perfeitas, me batia um certo medo, porque eu sabia que elas não continuariam assim por muito tempo. Como eu sabia? Infelizmente, por experiência própria. Hoje, acho completamente inconcebíveis aqueles finais de contos infantis: “... e eles viveram felizes para - 139 -

sempre”. Não por aquela visão metódica e um tanto óbvia: “como poderiam viver felizes para sempre, se ninguém vive para sempre?”. Não, eu penso de outra forma. A felicidade, considerando qualquer estilo de convívio, ou qualquer noção de vida humana, é algo que não pode durar pra sempre. Se ela durasse pra sempre, ia acabar se tornando algo enfadonho; se ela se tornasse algo enfadonho, deixaria de ser felicidade. Me recordei de uma coisa interessante, hoje mesmo, recebi uma nota de um dólar que trazia escrito o seguinte: “Tudo o que é bom pode durar pouco, mas, acredite, dura tempo suficiente para se tornar inesquecível”. Não pense que eu estou citando essa frase porque tocou o âmago do meu ser, mudou a minha vida. É que, por coincidência, a nota tava em cima da minha mesa enquanto eu tava escrevendo esta parte. Lembro que, quando recebi esta nota, pensei em fazer o caminho inverso até encontrar a pessoa que tinha escrito a tal mensagem. Eu não ia pedir a essa pessoa que me mostrasse o sentido da vida, nem nada. Pensei o que eu faria. Acho que daria uma quantia em dinheiro a ela. As pessoas costumam ficar alegres quando ganham dinheiro, mesmo que já tenham bastante. No final, achei que a única coisa que eu tinha a oferecer (dinheiro) era muito pouco (não pouco em quantia). Logo desisti de fazer o caminho inverso. Vou confessar a você um delírio tão absurdo que passou pela minha cabeça que não tive nem coragem de confessar a mim mesmo. É meio constrangedor dizer isto, mas achei que, se eu fizesse o caminho inverso da nota, eu encontraria a Helena, que seria ela quem tinha escrito a mensagem. Como já disse, um pensamento sem sentido, coisa que só acontece em filme, e ainda, só em filme de quinta categoria. Sei que a frase que eu citei é típica de pára-choques de caminhão, mas, quem disse que pára-choques não podem transmitir conhecimento? De qualquer forma, acho que sempre armazenei uma felicidade latente, condensada sob a forma de lembranças. Geralmente antes de dormir, me recordo de determinados momentos e, se dou sorte, chego até a sonhar com eles. Já divaguei tanto que devo ter feito você se perder na história. Voltando, deixei a Helena no portão da casa dela. - Que noite! _ disse ela. _ Eu não me surpreenderia se eu acordasse daqui a poco. - Eu também não. - Qué entrá um poco? A gente pode conversá mais... o Robs com certeza tá cordado, ele também tava querendo conversá com você. - Fica pra próxima. Eu vô embora mesmo. Ela me deu um abraço e um beijo: - Mais uma vez, brigada. - Tá bom, mas essa é a última vez que você me agradece. Era eu quem tinha que tá agradecendo. - Tem certeza que não qué entrá? - Tenho sim. - Então você me liga? - Acho que sim; qualqué dia eu ligo. - Tchau! - Até amanhã! Eu falei esse “até amanhã!” propositadamente. Dizer “até amanhã” dá uma sensação de segurança, dá impressão de que você tem o controle da situação. Parece que você tem certeza que vai encontrar aquela pessoa no dia seguinte; parece que o teu futuro pertence a você, e não que você pertence a ele. “Até amanhã!” sintetiza boa parte do que não é humano. - 140 -

Me afastei caminhando de costas, olhando pra Helena. Ela abriu a porta pra entrar em casa, acenou e sorriu. Durante muito tempo, essas foram as últimas imagens dela que eu vi.

XII Acho que, em algum momento, eu disse que este livro não seria meloso. Parece que não é bem isso que tá acontecendo. Se você já tava de saco cheio de tanto eu falar da Helena, fique tranqüilo(a), isso acabou (pelo menos, teoricamente, acabou). Eu fui embora. Não naquele mesmo dia em que eu tinha ido jantar com ela, mas poucos dias depois. Não me despedi de ninguém, exceto da senhora do pensionato, que era quase inevitável. O que eu diria pra Helena, pro Robs, pro Indy? Talvez até pudesse dizer alguma coisa, mas novamente não tive coragem. Então, simplesmente, fui embora. Não pra casa dos meus pais. Fui pra uma cidade ainda maior do que aquela em que eu tava. Fui pro coração econômico do país, um lugar onde a selvageria do capitalismo não precisa ser disfarçada, mesmo porque, seria impossível disfarçá-la. Não vou dar muitos detalhes de como se deu a minha ascensão financeira até chegar às condições atuais.(Tudo bem, tô abrindo estes parênteses num lugar aleatório pra concluir um teste que, provavelmente, será mais útil pra você do que pra mim. Inseri propositalmente algumas palavras com a grafia errada neste livro. Se você as encontrou e ficou mostrando elas pra todo mundo (pros teus amigos, pra tua namorada, pro teu irmão) se julgando o cara mais inteligente do mundo por ter encontrado tais erros, eu sei que tipo de cara você é. Você é daqueles caras que ficam procurando erros em filmes; falhas na pronúncia de palestrantes e professores; gafes cometidas em eventos públicos, e também, claro, como não poderia deixar de faltar, erros ortográficos em livros. Isso significa que você tá desesperado pra auto-afirmar a tua esperteza, e que você é um crítico em potencial. Segue-se a lista dos “erros”: Wolksvagen, pág 14, lin 5; Calvin Klain, pág14, lin 10; peneu, pág 10, lins 32 e 36; Thomas Edson, pág 28, lin 4; John Lenon, pág 4, lins 32 e 33; Diasepan, pág 75, lin 16 e Harry Poter, pág 134, lin 22; Darth Weider, pág 108, lin 31. Obs: um eventual erro que não esteja na lista também foi premeditado) (obs2: a observação passada e esta de agora foram péssimas, sei disso). O título deste livro não é: “Aprenda a ganhar dinheiro com Prometeu”, nem “Os dez mandamentos do bom empreendedor”. Posso colocar alguns pontos decisivos. Por exemplo, encontrei um cara que realmente entendia de investimentos financeiros, no entanto, ele não tinha nenhum capital pra investir. Fizemos uma espécie de sociedade. Ele investia o meu dinheiro e ficava com 10% dos lucros. Deu certo. O nosso trabalho era arriscar na Bolsa de Valores. Quando não estávamos trabalhando, o nosso passa-tempo era arriscar na Bolsa de Valores. Também atuei como corretor de imóveis. Posso dizer que fiz bons negócios nessa área. Cheguei a construir alguns edifícios. As pessoas investiam em projetos maiores do que podiam custear (ou então, ocorria algum outro problema) e construíam apenas a fundação do prédio. Eu comprava o terreno e a fundação por uma bagatela e terminava a construção. Mas isso foi no começo, quando meus milhões viraram dezenas de milhões. Também não posso

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deixar de citar que ganhei três vezes na loteria; eu realmente sou um cara de sorte (tô brincando! Nunca ganhei na loteria, nem em rifa de colégio). Aconteceram algumas coisas inusitadas comigo. Uma vez, fui jantar com um executivo oriental, um dos chefões de um keyretsu (tipo de empresa que atua em quase todos os setores), tava prestes a fechar um negócio importante com o cara. Na mesa, estávamos eu, ele e o intérprete. De repente, o tal sujeito começou a rir bastante, de qualquer coisa. Foi aí que percebi um pedaço de alface no dente dele. Caí naquela dúvida cruel: falar ou não falar? Teve uma hora que eu não agüentei mais e disse: “O senhor vai me desculpá, mas tem um pedaço de alface (talvez fosse um outro vegetal) no teu dente”. O intérprete me olhou com uma cara de “tem certeza?” e finalmente traduziu. Na hora que ouviu o que eu tinha falado, o japonês ficou sério, levantou e disse alguma coisa. Obviamente não entendi e fiquei esperando pela tradução, mas já imaginava o que podia ter sido. Na verdade, eu tinha imaginado antes de falar. Pensei numa coisa absurda do tipo: “Alface?! No meu dente?! O senhor tá loco, isso é motivo de desonra na nossa tradição”. Mas a frase que o intérprete disse foi bem mais curta, porém, não menos surpreendente: “Negócio fechado”. O japonês fez aquela típica reverência, depois, apertou a minha mão; em seguida, o intérprete repetiu os mesmos gestos. Acredite, aquilo tinha sido um teste. O sujeito tinha colocado a tal alface propositalmente no dente dele, só pra ver se eu ia falar ou não. Se eu falasse, ele fechava o negócio. Uma outra vez, num outro jantar de negócios, novamente com um oriental, mas não da mesma empresa, não tive tanta sorte. De novo era eu, o cara e o intérprete. O jantar seguia normalmente, até que surgiu uma onda de mau cheiro. A onda passou; depois, surgiu outra. E assim ocorreu sucessivamente até que ouvi um som alto, claro e inconfundível vindo do oriental com quem eu fazia negócio. Aquilo tava explícito demais. “Mais um teste _ pensei. _ Será?”. O som se repetiu, então, acabei falando: “O senhor soltô um gás?”. Dessa vez, o interprete vacilou mais antes de traduzir. Quando traduziu, o oriental levantou, fez uma cara de indignação e disse talvez a única frase que ele sabia na minha língua: “A Sibéria é uma terra fria!”. Tá bom, ele não disse isso, ele falou: “Até logo!” e foi embora. Obviamente, não fechei negócio. Posso não ter fechado esse negócio, mas fechei muitos outros. Chega um momento em que o dinheiro é tanto, que você não sabe mais de onde ele vem. Chega um momento em que você tem tanta coisa, que você não sabe mais o que você tem. Confesso que só fui saber que eu era um dos caras mais ricos do mundo através de uma lista divulgada numa revista. Confesso que não fiz uma festa por causa disso. Eu era o mais jovem da lista, e tava bem próximo do topo. Bem, eu comecei uma nova vida. Como sempre, foi algo muito repentino, bruto, seco. As guinadas que a minha vida deu nunca foram caracterizadas por uma redução de velocidade quando se aproximava a hora da conversão; pelo contrário, parecia que acelerava ainda mais quando chegava perto das esquinas. Agora, eu habitava um planeta chamado aristocracia. Um planeta invejado, desejado pelos que olham de fora; mas deprimente pra quem tá dentro dele. Os habitantes deste planeta, os “aristocracianos”, são figuras pitorescas, cômicas. Às vezes, eu sentia vontade de ligar pro Robs e contar alguma palhaçada desses figuras. Mas eu sabia que isso era impossível. Essa alta sociedade é tão tapada quanto todas as outras classes sociais, as preocupações deles são absurdas. Esse é o problema da sociedade, cada classe é como se fosse um universo diferente, e cada indivíduo parece tá fechado no seu mundo particular.

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Comprar um Rolls Royce ou uma Ferrari, ou, pagar a conta de luz ou de água; a situação é diferente, a alienação é a mesma. Como já disse, eu agora vivia num mundo novo. E, se há uma regra que deve ser seguida dentro da aristocracia, essa regra é esbanjar. Como um bom membro dessa classe, eu esbanjava. Esbanjava muito. No início, era um terno pra cada ocasião diferente; depois, era um carro pra cada ocasião. Casas de luxo em quase todos os lugares que você possa imaginar; algumas delas, eu nem conhecia. Meus imóveis somados deviam chegar na casa dos bilhões. Eu também tinha duas ilhas, ambas no pacífico, lugares fantásticos. Tá, mas eu não vou ficar torrando a tua paciência falando do meu patrimônio. Acho que é relevante dizer que encontrei o Robs mais uma vez. Foi na noite de autógrafos do lançamento do meu livro. Imagine a minha surpresa quando, de repente, o Robs aparece na minha frente. Na hora, eu não disse nada. Achei que seria patético demais dizer: “Oi!”. Mas ele logo falou: - Se você tivesse colocado uma bala na cabeça quando ganhô o teu primero milhão, eu ainda iria no teu enterro (ele não tava me fazendo nenhum tipo de ameaça, só tava me dizendo que eu não valia mais a pena). - Nunca gostei de enterro, não sei se eu iria no teu. Ele tirou alguma coisa do bolso. Era o colar que eu tinha dado pra Helena. Colocou ele em cima da mesa e disse: - Eu e a Helena preferimo acreditá que o teu enterro já passô e que, por algum motivo, a gente acabô perdendo ele. Use esse colar pra levá alguma super modelo pra cama. Ele virou e foi embora. Durante dias, fiquei me perguntando se aquilo era verdade. Se a Helena realmente havia preferido pensar que eu tinha morrido a perceber que eu não era aquilo que ela tinha imaginado. Isso é a vida. Você ganha algumas coisas e perde outras. E aquilo que você perdeu sempre vai parecer mais valioso do que aquilo que você ganhou. Sei que eu já tinha colocado isso, mas acontece que essa constatação é tão verdadeira e tão cruel que precisei repetir ela. Acho que aqui encerro esse flash-back, esse breve (talvez não tão breve assim) relato sobre a minha juventude. Chegou a hora de retornar ao período contemporâneo.

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XIII Você deve se lembrar que, quando iniciei o flash-back, eu havia desmaiado no banheiro de um barzinho. Quando eu acordei, tava num lugar completamente diferente. Não era um hospital, nem nada do gênero. Acordei num quarto meio escuro, só conseguia enxergar a silhueta das coisas. O lugar era amplo, havia grandes janelas de vidro, que permitiam ver alguns prédios e as luzes da cidade. Era possível perceber que o lugar era bem alto, aliás, era bem semelhante à cobertura na qual eu tava hospedado. Eu tava deitado numa espécie de divã, grande e confortável. A minha cabeça doía e, por alguns instantes, tudo parecia tá rodando, como se eu tivesse num carrossel. Quando me recuperei um pouco, pude perceber que tinha alguém, sentado numa poltrona, de frente pra mim, a uns quatro metros de distância. Por causa da pouca luz, não conseguia enxergar o seu rosto. Fiquei um longo tempo olhando na direção daquela figura, e sabia que ela também olhava pra mim. Eu não queria iniciar o diálogo porque sabia que isso seria um sinal da minha desvantagem. Ser o primeiro a falar, numa situação como essa, é sinal de fraqueza, significa que você depende do contato. Qualquer tentativa de estabelecer uma relação, de certa forma, sugere dependência. Quem quer fosse que tava diante de mim sabia disso. E esperava pacientemente que eu dissesse a primeira palavra e assumisse a minha vulnerabilidade. Eu diria que esse alguém sabia até do conflito que se passava na minha cabeça, da minha luta pra não ser o primeiro a falar. Mas ele não precisava de esclarecimentos, eu sim. Isso me inquietava. Não sei quanto tempo esperei até que, finalmente, me rendi: - Isso é um seqüestro? - Não. Resposta curta pra me obrigar a continuar perguntando. Ele realmente sabia aproveitar a posição dele. - O que que cê qué então? - Só quero conversá um poco, só isso. - Sobre o quê? - Você. - Você é gay? _ falei, tentando constrangê-lo. - Nós não vamos falar sobre mim, vamos falar sobre você. De repente, reconheci aquela voz. Quase não pude acreditar. Não podia ser, mas era. - John?! É você? - Assim me apresentei, mas agora você pode me chamá por otro nome, me chame de Freud (esse pseudônimo não fui eu que inventei, foi ele mesmo quem disse). - Então, qué dizê que cê é fã de Freud, é? _ falei, rindo. - Não sou fã de nenhuma pessoa, senhor Prometeu, pelo simples fato de que são todos seres humanos, são apenas isso. Contudo, lembremos que não é sobre mim que devemos falar, é sobre você. - Pra mim, você é só um problemático, querendo bancá o intelectual misterioso.

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- Por favor, não tente transferir o foco. O foco da conversa é o senhor. - O que que cê qué sabê, então? Cê qué dinhero? - Eu quero sabê tudo, mas não quero o teu dinhero. - E se eu não quisé falá? - Nós temos todo o tempo do universo, senhor Prometeu, e um pouco mais. - Me poupe, que frasezinha barata. Cê queria me impressioná com isso? - Talvez, o fato de que eu sei tudo a seu respeito, o ajude a falar. - Tá bom, se você sabe tudo, por que qué que eu fale? - Não estamos aqui pra falar sobre mim, e sim sobre você. - Cê é chato mesmo. Mas essa tua tática é barata, “eu já sei tudo, mas quero ouvi de você”. Vai fazê alguma coisa mais interessante, não quero te decepcioná, mas a minha história não é tudo isso que cê pensa. Agora que eu já tava completamente (ou, quase completamente) recuperado daquela tontura, resolvi levantar. Eu queria ver o que o John faria se eu resolvesse sair, queria ver de que forma ele tentaria me impedir. Quando levantei, ele permaneceu imóvel, não disse uma palavra. Caminhei na direção dele. Foram poucos passos e um impacto. Havia um vidro entre nós, me choquei contra ele. Bati a mão direita e a testa, mas não chegou a machucar. Só me senti um pouco constrangido. - O senhor não pode chegar até mim, e não há nenhuma porta no seu lado da sala. - Ótimo, então, a gente vai ficá aqui pra sempre. - Eu conheço os seus amigos, senhor Prometeu, os seus amigos de juventude. Eu conversei com eles, e eles me falaram tudo. Não há o que esconder. Se o senhor não acredita, remova aquela cortina e veja por si mesmo. Sentei novamente no divã e fiquei pensando. O meu orgulho mandava eu não remover a cortina, por outro lado, a minha curiosidade, ou a necessidade de compreender o que tava se passando, mandava eu removê-la. O cara tinha dito que podíamos ficar ali quanto tempo fosse preciso. Eu não queria descobrir se era verdade. - Sentimos vergonha de sermos humanos, não é mesmo, senhor Prometeu? Não se constranja por isso, esse é o sentimento mais nobre que podemos ter. Era a cortina de uma janela. O que será que a cortina de uma janela, na altura em que a gente tava, podia esconder? O que podia tá do lado de fora? Eu não fazia idéia. - Então, você tem vergonha de sê humano? _ falei. - O que é bastante natural; mas, lembre-se, não falaremos sobre mim. - Tá bom, eu assumo que você tá no comando, vô vê o que tem atrás da cortina. - Nenhum de nós tá no comando, senhor Prometeu, infelizmente, somos humanos. Mas, digamos que eu tenho uma certa vantagem. Levantei do divã. Fui até as cortinas. Elas eram bonitas, acho que eram de seda. Com aquela luz, era impossível dizer de qual cor eram. Segurei elas por um tempo, com receio do que podiam esconder. Então, num movimento brusco, abri. Abri os olhos. Eu tava deitado na cobertura do hotel em que eu tava hospedado. O que eu via era o teto do meu quarto. Tudo não tinha passado de um sonho. Me senti aliviado, eu tava novamente no controle da situação. Não tava mais a mercê de ninguém, não existia mais nenhum mistério e nenhuma dúvida. Me espreguicei e me senti contente por ser eu. Aquela cama era muito confortável, por isso, fiquei mais um tempo deitado. Eu tava naquele estado em que você não tá nem muito acordado e nem dormindo. Resolvi levantar. Fiz uma contagem regressiva mentalmente: “5, 4, 3, 2, 1”. Levantei. Comecei a procurar por uma calça. Eu costumava dormir só de cueca (acho que podia ter omitido este detalhe). De - 145 -

repente, olhei pra trás e vi uma calça jeans, jogada perto dos pés da cama. “Que merda é essa? _ pensei”. Definitivamente, eu me senti tendo um de jà vú. Eu já tinha visto aquela calça, daquele mesmo jeito, naquele mesmo lugar. Tinha sido na manhã anterior. Foi então que, como num castelo de cartas, tudo desabou de uma só vez. Como eu tinha ido parar na cama do meu quarto? O que eu tinha feito antes disso? Eu tinha mesmo desmaiado no banheiro daquele bar, ou também era parte daquele sonho doido? Aquilo realmente tinha sido um sonho? As perguntas se multiplicavam dentro da minha cabeça e parecia que a qualquer momento a fariam explodir. Olhei pra janela. Ela tava fechada por uma cortina. “Abra a cortina e veja por si próprio”, tinha dito o John ou o Freud, ou sei lá quem era aquele cara. Essa era a solução. Eu abriria a cortina e veria que não tinha nada. O que poderia ter lá fora? Fui até a cortina, segurei ela por um tempo, como tinha feito no sonho, tomando coragem pra abrir. Então, abri. Senti meu corpo relaxando. Toda aquela tensão sumiu numa fração de segundo. A única coisa que eu podia ver daquela janela era o prédio que ficava em frente ao hotel, e um outdoor. Ou seja, nenhum deles poderia esconder algum segredo, foi o que pensei. O prédio era só um prédio. O que uma construção poderia me dizer? O outdoor mostrava um lábio, de traços femininos, sorrindo. Era a propaganda de um cosmético. Só isso. Talvez não fosse só isso. Quando li o slogan, pareceu que eu tinha enfiado os dedos numa tomada. Choque. Essa é a palavra que define o que senti. A frase era a seguinte.

AMOR AVON

Porque o amor é doido e Soa Como CaoS Soa Como CaoS! Um palíndromo, escrito de forma simétrica. Eu conhecia aquilo muito bem, MS2. “Meu Deus! Que droga é essa? _ pensei”. “Eu sei de tudo _ o cara tinha me dito. _ Os seus amigos de juventude me contaram tudo”. Eu tava confuso, atordoado. Aquilo tudo era muito doido. Depois de ficar alguns segundos com os olhos no outdoor, mas com a mente vazia, fechei a cortina e sentei na cama. “Que merda é essa? _ me perguntava”. Coincidência. Devia ser isso. Eu havia tido um sonho estranho e a Avon tinha envolvido no seu slogan o nome do MS2. Não era impossível, coincidências acontecem o tempo todo. Talvez eu até já tivesse visto o outdoor e lido o slogan sem dar muita atenção e, sem que eu percebesse, aquele Soa Como CaoS tivesse ficado gravado no meu subconsciente e originado o sonho. Coincidências acontecem, é verdade, mas elas são sempre a última hipótese a ser considerada. Poderiam ser outras coisas. Alguém podia tá investigando uma antiga ação do MS2; podia tá querendo extorquir dinheiro de mim; podia tá investigando a falsificação do quadro... Enfim, havia várias hipóteses. Levantei da cama e fui olhar outra vez aquele outdoor.

AMOR AVON

Porque o amor é doido e Soa Como CaoS Soa Como CaoS, li, da esquerda para a direita. Soa Como CaoS, li, da direita para a esquerda. De repente, a surpresa. Não sei por que, continuei lendo da direita para a esquerda. Descartando a parte sublinhada, formei a seguinte frase: “Soa Como CaoS e/é ódio de Roma, NOVA ROMA. Aquilo não podia ser só mais uma coincidência. Fiquei tão surpreso que não teve aquela “pausa em que o cérebro processa a informação”; foi diferente, por alguns momentos, a minha cabeça simplesmente ficou vazia. Era como se eu não soubesse o que pensar. Como se não pudesse, sequer, procurar cogitar alguma hipótese que fizesse sentido.

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Isso durou algum tempo até que, finalmente, recuperei a consciência. Meu cérebro começou a trabalhar em busca de explicações. O tal Freud (se ele existia) sabia mais do que eu havia imaginado. Certamente, ele não tava blefando quando disse que tinha falado com outros integrantes do MS2. A expressão “Nova Roma” só era usada dentro do grupo, se ele a conhecia, isso sugeria que devia conhecer detalhes. O negócio me parecia grande. Não é qualquer um que tem dinheiro pra colocar um outdoor daquele tamanho numa localização daquelas. Além disso, como ele teria feito pra usar o nome de uma empresa de grande porte? O que ele queria comigo? Por que tava desenterrando o MS2? Essas foram algumas das várias perguntas que surgiram na minha cabeça, mas eu não podia simplesmente ficar parado, me perguntando. Eu precisava encontrar respostas. “O que eu posso fazê? Por onde que eu começo? _ me perguntava”. Concluí que, primeiro, eu precisava saber o que tinha sido sonho e o que tinha sido realidade. Podia fazer isso indo nos lugares em que eu tinha estado (ou em que eu supunha que tinha estado). Isso. Era preciso agir. Comecei a procurar uma camiseta. De repente, uma idéia passou pela minha cabeça. Senti medo. Olhei entre os meus ternos e achei aquela camiseta de banda. Exatamente a mesma, exatamente no mesmo lugar em que eu tinha (ou em que eu supunha que tinha) encontrado na manhã anterior. Parecia uma brincadeira. Primeiro, a calça; agora, a camiseta. Ou eu tava doido, ou o mundo tava doido. Por um momento, me senti feliz. Fazia tempo que nada diferente acontecia comigo. Na verdade, sempre esperamos que algo diferente aconteça. Ninguém agüenta a rotina. Por isso que (no íntimo, sem contar abertamente a mim mesmo) eu sentia uma ponta de contentamento. Eu não podia ficar ali pra sempre, pensando nesse outro de jà vú. Então, desci. Cheguei na recepção, dei alguns dólares pro cara que eu achava que tinha me acordado na manhã anterior e pedi desculpas pela forma que eu tinha agido. - Desculpe, senhor, mas o senhor está enganado. Eu não o despertei ontem pela manhã _ disse ele. - Então, deve tê sido um colega teu. - Não, receio que isso também não seja possível, era eu quem estava de serviço ontem neste horário. - Você tem certeza? Porque... bom, dexa pra lá. Fique com o dinhero do mesmo jeito. - Obrigado, senhor. Tenha um bom dia. - Tomara. Como que ninguém tinha me acordado? Mais uma pergunta sem resposta. Será que eu tava louco? Eu tinha que falar com o Seu Omura e descobrir se eu tinha ido na barraca dele no dia anterior. Sinceramente, eu já tava começando a temer a possibilidade de ouvir outro não. Não deu nem tempo de pensar em muita coisa e cheguei na barraca. - Seu Prometeu?! Bom dia! - Bom dia, Seu Omura, como vai? - Levando como dá. Trabalhando muito, como sempre. Mas, um dia, eu vô consegui descansá. Tô pensando em saí do ramo do cachorro-quente. Eu tava curioso pra saber se eu tinha estado ali no dia anterior, mas eu não podia simplesmente cortar a conversa. Pessoas como o Seu Omura devem ser muito solitárias. Apesar de ter um contato contínuo com todo tipo de gente, esse contato é muito superficial. Uma única fala que se repete incontáveis vezes e que diz muito pouco. As pessoas precisam de conversas de verdade, falar sobre si, seus sonhos, seus planos. Precisam de alguém que as - 147 -

ouça sem interromper com uma frase do tipo: “Que ótimo! Agora, será que o senhor podia me passá a mostarda que eu tenho um compromisso urgente?”. A merda do dinheiro sempre é prioridade, a vida profissional sempre tá acima de tudo. Parece que, antes de sermos humanos, somos professores, taxistas, farmacêuticos, bancários... - Ah, é? E em que ramo o senhor pretende atuá? - Ainda não sei direito. Mas acho que é quase certo que vô dexá esta cidade; não agüento mais este tumulto, esta confusão. - Às vezes, eu também só queria í embora, mas eu tô muito atolado nisso pra simplesmente saí assim, de uma hora pra otra. Mas acho que o senhor tá certo, a gente tem um limite, né? - Isso é verdade, Seu Prometeu, nós temos um limite. Ele pode sê bem maior que a gente imagina, mas ele existe. - Seu Omura, eu preciso perguntá uma coisa pro senhor. É uma coisa meio absurda... - Que isso, Seu Prometeu?! Pode perguntá. - Eu tive aqui ontem? - Que eu me recorde não, não. Se o senhor tivesse aparecido, certamente, eu lembraria. - Mais ou menos neste mesmo horário, com um cara de óculos e camiseta do Che Guevara... - Não, não. Eu não me recordo não. - Então tá certo. Brigado. Eu já tava pensando em partir quando fiz outra pergunta: - Seu Omura, vô fazê mais uma pergunta que vai parecê mais doida ainda. Ele assentiu com a cabeça e deu um sorrisinho. - O senhor consegue lê o que tá escrito naquele outdoor? Ele saiu da barraca, forçou um pouco a vista, olhando pra cima, na direção em que eu tava apontando. - Tá um poco alto _ disse ele _, mas as letra são bem grande. Será que é propaganda pra quem passa de avião? Dei uma risadinha amistosa. Foi por pura conveniência, mas o Seu Omura já tava fazendo muito por mim; o mínimo que eu podia fazer era rir de uma piadinha sem graça. - Sei que já tá parecendo brincadera, mas será que o senhor podia lê pra mim? - AMOR AVON... porque o amor é doido e... Soa Como CaoS. - Ótimo. Brigado mesmo. Por favor, não fique brabo se, mais tarde ou amanhã, eu aparecê perguntando se eu tive aqui e tive essa conversa com o senhor. Ele sorriu e acenou pra mim. Eu tinha sorte de conhecer o Seu Omura. Quem mais ia aceitar ler o slogan de um outdoor pra mim? Parecia que nada daquilo que eu achava que tinha acontecido tinha sido realidade; mas tudo tava absurdamente estranho. O outdoor era uma prova disso. Por mais que o Seu Omura tivesse quase certeza de que eu não tinha estado na barraca dele, com o John ou o Freud, eu precisava conferir no barzinho. Ele não ficava muito longe da barraquinha do Seu Omura, cheguei logo. Um dos caras que tinha (ou que supostamente tinha) jogado contra a gente tava lá. Tem um tipo de cara que você sempre encontra num bar, é como se o bar fosse o habitat natural dele. Sinceramente, tem algumas pessoas que eu não consigo imaginar fora do bar, não consigo visualizá-las num shopping ou num consultório, por exemplo. Acho que há pessoas que só devem existir nos bares. Quando digo “existir”, falo no sentido literal da palavra. Sei que parece absurdo, mas acho que, se algumas pessoas saem dos bares, elas simplesmente - 148 -

desaparecem, somem. É impossível pra mim conceber elas em qualquer outro ambiente. O cara que eu encontrei era esse tipo de pessoa. Ele tava jogando uma partida com um outro cara que também só podia existir dentro de um bar. - Já se recuperô da surra de ontem? _ falei, num tom de intimidade que não correspondia com a realidade. - Hã? Falô comigo? - É, tô falando daquela partida em dupla. Eu tava com um figura de óculos que encaçapô todas. - Não, não. Não foi comigo não. Cê já devia tá meio alto. Cassete! Eu tinha certeza que aquele era o cara. Será que eu não ia encontrar ninguém com quem eu tinha falado no dia anterior? Ainda restava o dono do bar, que atendia no balcão. Me aproximei e ele disse: - Seu Prometeu?! Há quanto tempo?! Perfeito. Não podia começar de uma maneira melhor, “Há quanto tempo?!”. Parecia que ele tinha ensaiado pra me sacanear. - E aí, como é que vai? - Não tão bem quanto o senhor, mas não posso reclamá. - Por que não tão bem quanto eu? - O senhor sabe. Ouvi falá que o senhor já é o home mais rico do mundo. O senhor tem bilhões, tem carro que eu nunca vi nem pela TV, é jovem, boa pinta, tem a mulher que quisé... Eu sô careca, barrigudo, tenho um carango véio, a minha patroa pesa mais que eu e tem mais pêlo na perna do que qualqué um aqui no bar. Ele riu e eu não agüentei e acabei rindo junto. - Cê não lembra se eu tive aqui ontem, jogando sinuca? - Não, o senhor não teve não. - Tem certeza? - O senhor é de muito longe o freguês mais ilustre que aparece aqui nesta espelunca. Se o senhor tivesse vindo, eu ia lembrá. - Bom, então tá. Eu já tava quase indo embora quando voltei atrás. - Será que eu posso usá o banhero? - Claro, não precisava nem perguntá. O banheiro era um ponto decisivo. Era lá que eu, supostamente, tinha apagado. Entrei, eu sentia como se eu tivesse estado ali há pouco tempo. A lembrança de ter desmaiado parecia muito clara e concreta. Olhei pro lado e vi o mictório. À minha frente, tavam as portas dos sanitários. Não lembrava se eu tinha entrado no segundo ou no terceiro. Entrei no segundo. Comecei a olhar as inscrições que havia na parte de dentro da porta. Havia todo tipo de frase, coisas completamente absurdas, mas não encontrei aquela que eu teria lido. Eu sabia mais ou menos em que altura tava escrito. Entrei no outro sanitário. Não demorou muito e achei: “Tem um viado sentado no vaso”. E agora? Eu procurava por essa frase, mas, agora que a havia encontrado, tava mais perdido que antes. Os caras tinham dito que eu não tinha aparecido no bar no dia anterior; o Seu Omura tinha dito que eu não tinha aparecido na barraca dele. Por outro lado, quando abri a cortina do meu quarto, li, num outdoor, uma mensagem envolvendo o MS 2; no dia anterior, eu tinha lido aquela frase no banheiro do bar (exatamente a mesma). Como eu podia ter lido a frase se o dono do bar tinha certeza que eu não tinha estado lá?

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Por um momento, considerei a possibilidade de ele tá mentindo pra mim. Se ele tivesse mentindo, o Seu Omura também estaria. Uma conspiração. Mas por quê? Achei que essa idéia de conspiração era doida demais; me senti um pouco constrangido. “Essa minha mania de grandeza do cassete! _ pensei. _ Quando que eu vô percebê que o universo não gira em volta do meu umbigo?”. Lembra daquele contentamento que surge quando acontece algo diferente? Pois é, ele tava desaparecendo, ou melhor, já tinha desaparecido. Dei um tempo, lavando as mãos na pia, numa tentativa de me acalmar de alguma maneira. Sempre tive a impressão de que a água corrente me acalma. Fiz uma concha com as mãos, juntei um pouco de água e joguei contra o rosto. Fiquei um tempo olhando a minha cara refletida no espelho. Eu sentia que eu tinha feito exatamente aquilo não havia muito tempo, a única diferença é que, da outra vez, tinha finalizado com um desmaio. Fui pegar uma toalha de papel pra me secar, mas o rolo tinha chegado ao fim. No suporte, tinha uma toalha de pano. Peguei ela mesmo. Ela tava um pouco úmida, mas assim mesmo, levei em direção ao rosto. Quando chegou perto do meu nariz, senti um cheiro azedo, lembrava a vômito. Considerando o fato de que eu tava num bar, não seria estranho se realmente fosse vômito. Afastei ela instintivamente. Foi aí que houve uma nova surpresa. A droga da toalha tinha aquela famosa cara do Einstein, com a língua pra fora. Logo abaixo, tinha aquela famosa fórmula dele, E = MC2. “Energia é igual a Movimento Soa Como CaoS _ relembrei mentalmente”. Se havia como me surpreender ainda mais, agora eu tava ainda mais surpreso. A menos que fosse o dia internacional da coincidência, alguma coisa muito estranha tava acontecendo (tá, eu sei, “dia internacional da coincidência” foi podre). Saí do banheiro com o rosto molhado. Por um momento, tive a impressão de que todos esperavam a minha saída e, assim que saí, retomaram suas atividades, tentando disfarçar. “Por favor, sem essa história de conspiração _ pensei comigo mesmo”. Cheguei pro dono do bar, que tava encostado no balcão, e disse: - Eu tenho uma coisa pra falá pro senhor. - Que foi, Seu Prometeu, que que aconteceu? - Gostei da toalha, mas ela tem tanto vômito que acho que encontrei até um pedaço de fígado nela (sei que aprece fala hollywoodiana, mas, qualquer um que já tenha assistido a um filme tá sujeito a este tipo de influência) (se você pensou: “Esse autor é um estúpido, é impossível vomitar o fígado”; você é um gênio! Não sei o que você tá fazendo lendo este livro; um cérebro desses devia tá trabalhando em prol da humanidade). Caminhei até a porta e, quando tava prestes a sair, parei e olhei pra trás. Eu havia tido aquela mesma sensação de que todos tavam olhando pra mim. Acredite, não era uma sensação agradável. Levando em conta as circunstâncias, era pior ainda. Saí do bar. Eu não sabia o que fazer. Coloque-se na minha situação, um dia, você acorda, e o mundo tá doido. Então, acabei fazendo uma coisa sem sentido, voltei pro hotel. Mas, antes de subir, passei outra vez na barraca do Seu Omura. Comprei um cachorro-quente e, enquanto comia, falei: - E aí, Seu Omura, acho que o senhor ainda não esqueceu da conversa que a gente teve. - Que conversa? _ disse ele com um sorrisinho sem graça. Eu ri, ele devia tá brincando comigo. Continuei comendo o cachorro-quente, e ele insistiu: - Desculpe, mas que conversa? - Poxa, o senhor já esqueceu? A conversa que a gente acabô de tê, lembra? Eu pedi pro senhor lê o outdoor... - Que outdoor? - 150 -

Eu ri outra vez, ele só podia tá de sacanagem. Quando me virei pra mostrar o outdoor... “Caralho! Cadê aquela porra?”. Olhei melhor, um outdoor não podia desaparecer assim. Mas tinha desaparecido. Me senti realmente abalado. - Cadê aquela merda? _ falei pro Seu Omura. _ Você ficô aqui o tempo todo, cê sabe o que aconteceu. - Desculpa, Seu Prometeu, mas eu não tô entendendo... - Vai se ferrá, seu disgraçado! _ joguei o cachorro-quente contra a barraca. _ Por que que vocês tão fazendo isso comigo? O que que vocês querem? Entrei no hotel. Subi pro meu quarto. Eu queria deitar e dormir. Abri a cortina e olhei pra fora. No lugar do outdoor, uma parede sem nada. Fechei a droga da cortina e deitei. Mas como eu ia dormir com tudo aquilo martelando a minha cabeça? Peguei o telefone e falei com a recepção. - Manda umas garrafa de Whisky. Desliguei antes que o cara tivesse tempo de falar qualquer coisa. Pra mim, todos tavam querendo ferrar comigo, todos eram inimigos em potencial. Pouco tempo depois, a minha campainha tocava. O cara tinha chegado com umas quatro ou cinco garrafas. - O senhor não especificou a marca, então, trouxe uma pequena variedade. Passou pela minha cabeça que eles podiam ter colocado alguma coisa na bebida. - Tá tudo lacrado? _ perguntei. - Certamente, senhor. - Ótimo, então, pode í. Ele caiu fora. Pensei que o fato das bebidas estarem lacradas não era garantia nenhuma. Se os caras tinham feito o outdoor sumir, eles podiam dar um jeito no lacre. Mas eu ia beber do mesmo jeito. Quem sabe, se eu apagasse, eu acordaria e todas as coisas estariam novamente no lugar. Quem sabe, eu encontraria o tal Freud. Ou, quem sabe, eu ainda tivesse sonhando. Abri uma garrafa. Eu não tava nem aí pra marca, só abri e virei no gargalo mesmo. A minha garganta ardeu um pouco e os meus olhos ficaram lacrimejantes. Tomei mais. Sentei na cama e continuei tomando. Parei um pouco. Já tinha ido meia garrafa. O quarto começou a rodar. De repente, senti uma angústia profunda, como se, de uma vez só, tivesse lembrado de tudo aquilo que fiz de errado. Então, tomei mais. Senti um enjôo. Parei de beber. Deitei. Eu já tava bêbado. Tudo ao meu redor rodava, um zunido no meu ouvido e eu continuava acordado. Me arrependi de não ter comprado um Dormonid ou um Lexotan, se tivesse tomado um deles, a esta altura, já ia tá dormindo. Demorou um pouco, mas acabei apagando. Quando acordei, adivinhe o que aconteceu? Isso mesmo. Eu tava na Escócia, de saia, tocando gaita de foles. Brincadeira. Eu tava naquela sala meio escura, deitado no divã. “De novo?! _ pensei. _ Só essa que me faltava!”. Lá tava o tal Freud (sei que este pseudônimo é clichê, mas eu não tenho culpa; não fui eu que inventei). Tava sentado na mesma poltrona, esperando eu acordar. - Ah, não! Outra vez... “Meu nome é Freud, eu sô o senhor misterioso e a gente tá aqui pra falá sobre você, não sobre mim. Ah, mais uma coisa, a gente tá aqui pra falá sobre você, não sobre mim” _ falei, de uma forma bem irônica, forçando bem a voz. - Cala a boca _ disse ele, de maneira seca. - Opa! Tá ficando nervoso, é? Não gosta que te imitem? Já sei, a gente tá aqui pra falá sobre você. - Você tem sorte de ter esse vidro separando a gente.

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- Agora fiquei com medo. Você é daqueles cara que, se não fosse a jaula, arrebentava o leão. - Dexa eu vê se eu entendi, no caso, você seria o leão? - Porra, cê é inteligente mesmo, hein! Pega as coisa fácil... - E você é modesto até nas analogias, o rei da selva. Muito bem, só que, aqui, você não é rei de merda nenhuma. O cara tava diferente. Muito mais agressivo, usando um vocabulário mais pesado. Parecia até outra pessoa. Ele devia tá fazendo isso pra me confundir. Variando a personalidade pra que eu não pudesse traçar nenhum perfil. - Você acha que sabe tudo sobre mim, né? Acha que me conhece _ falei. - É, eu sei tudo sobre você. E tem mais, controlo o teu futuro e, pior ainda, controlo o teu passado. Ele começou a rir. Quase chegou a gargalhar. - Tô até imaginando você: “Meu Deus, será que aquilo aconteceu mesmo? Será que eu tô loco? Será que o tal Freud existe?”. Você se achava o tal, né? Tava no topo do mundo, olhava pra cima e não via ninguém. Eu sei como você é. Você é o tipo de cara que não qué ser bom, qué ser o melhor. Que não se contenta em ser o segundo. Cê não descansa até sabê que não tem ninguém acima de você. Eis aqui o teu castigo, olhe pra mim. Eu tô muito, mas muito acima de você. Esse é o teu castigo, sabê que não é o ápice da espécie. Você não me enxergava antes porque a tua vista não me alcançava. - Sei lá... essa poltrona, esse ambiente meio escuro, um cara falando um monte de merda, se tivesse pipoca, era melhor que cinema. Se da próxima vez você trouxé pipoca, eu prefiro sabor mantega. - Você não se rende mesmo, né? - Tá bom, eu me rendo, traz refrigerante também. Nós usávamos as armas que tínhamos na tentativa de abalar um ao outro. Eu tentei ridicularizar ele, fazendo aquela imitação. Ele tentou mostrar superioridade, dizendo que sabia tudo sobre mim e que controlava a minha vida. Depois, riu de mim, supondo meus pensamentos (era óbvio que eu pensaria algo daquele tipo). O riso é uma forte arma pra tirar alguém do eixo. Eu devolvi sendo sarcástico, pedi pipoca e refrigerante. O pior é que eu já tava começando a gostar daquela conversa. - Tá bom _ disse ele _, cê já usô o teu mecanismo de defesa e eu já usei o meu mecanismo de ataque. Modéstia à parte, me saí bem melhor que você. Vamo ao que interessa, fale sobre você, fale tudo. - Nossa, assim você me dexa encabulado. Mas, lá vai, moreno, 1,80 de altura, um abdômen de tirar o fôlego... procuro por uma pessoa que não seja ciumenta, mas que também não me deixe solto demais; cê sabe, alguém que saiba o que é seu, mas que também saiba dividir. Uma pessoa responsável, mas que, nem por isso, deixe de aproveitar as coisas boas da vida... - Sem sarcasmo. Abre logo o jogo que, aí, você não vai tê mais que aturá a minha presença, nem eu a tua. No final, todo mundo acaba falando. Foi assim com todos os otros, só o Robs tentô resisti mais, mas acabô cedendo também. - Cê falô com o Robs? - Sim. - E com a Helena?

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- Ah, qué sabê da namoradinha, é? Falei com ela também. A gente conversô bastante. Ela quis me conhecê mais de perto depois. Eu adoro aquela marquinha de nascença que ela tem; sabe aquela, perto do umbigo? A Helena realmente tinha uma marquinha de nascença, perto do umbigo. Eu não gostei nenhum pouco de saber que o cara sabia disso. - Não, não sei não. Mas sei daquela que a tua mãe tem na bunda, cê sabe? - Oh, ficô nervosinho, é? Que romântico! Ela gostava de você, sabia disso? Gostava mesmo. Te idolatrava, achava que você era diferente. Eu falei pra ela: “Helena, não é culpa dele. Só que, no fundo, todo mundo é a mesma merda. A situação muda, a gente muda. A gente é só a porra de um joguete na mão do mundo”. - Ela falô alguma coisa sobre mim? - Que que cê acha? Claro que falô. A gente pode fazê o seguinte, você fala um poco sobre você, que eu falo um poco sobre mim e sobre o que a Helena disse. Se você dissé tudo que eu quero ouvi, eu conto tudo que tá acontecendo. Fiquei um pouco em silêncio, pensando na proposta. - Você não tem nada pra bebê aí? _ perguntei. _ Ou um cigarro, sei lá... tô falando sério dessa vez. - Agora não, mas eu posso providenciá pra próxima. - Então, a gente vai se encontrá de novo? - É bem provável. - E se eu falá sobre mim e, depois, você não falá nada sobre você ou sobre o que a Helena disse? - A gente pode fazê assim, você fala um poco, aí, eu falo um poco. A gente vai por parte. - E como eu vô sabê que você não tá mentindo. - Você vai precisá confiá em mim. Mas que diferença faz se eu vô menti ou falá a verdade? A diferença é você acreditá ou não. Afinal, a verdade é só uma mentira em que a gente acredita. Mas, lembre-se: “Eu não mentiria pra você, mas, quando digo isso, já posso tá mentindo pro teu bem”. Essa frase me trazia lembranças confusas. Eu tinha falado isso pra Helena num período conturbado da minha vida (me pergunto que período não foi conturbado). - Ela te contô? - Contô. Contô isso e muito mais. Eu posso te mostrá a imagem que os otros têm de você, Prometeu. Eu posso dexá você se vê com os olhos da Helena, do Robs, do Homer, do Indy, de qualquer um. Eu posso te levá pra dentro da mente deles. Sei que você sempre quis sabê o que eles realmente pensam de você. E ainda, eu posso te contá o meu segredo. Posso contá quem eu sô. Você só precisa colaborá comigo. - Você qué sabê quem eu sô? Eu sô só um estúpido que ganhô dinhero, só isso. - Não é tão simples assim, Prometeu, e você sabe disso. É melhor que as respostas sejam objetivas, diretas, mas você não pode resumi tudo numa frase só. Ainda mais, numa frase que não é verdadera. - Então, faça perguntas objetivas. - Me fale sobre o MS2, o que ele é? Como e por que surgiu? - MS2... o MS2 é o efeito colateral do sistema. É o fedor do lixo que foi varrido pra baxo do tapete. Ele não era só aquele movimento... ele tá em toda parte. Basta que haja opressão e o sentimento que dá origem ao MS2 tá lá. No princípio, eu não queria dá nome

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nenhum por causa disso, pra não limitá uma coisa que tem uma abrangência muito maior do que aparenta. O que mais você perguntô mesmo? - Por que ele surgiu e como? - Por que ele surgiu? Bom, a essência dele, eu já falei, surgiu da opressão. Mas a ação veio do ócio. Eu não tinha nada pra fazê, resolvi fazê alguma coisa. Eu não vô falá todo o processo. O Robs já deve tê dito. - Eu quero que você me diga. - Tá, eu sabia que eu não ia consegui fazê nada sozinho, precisava da ajuda de alguém. Então, eu fiz uns cartaz e espalhei pela cidade. Primero, só o Robs respondeu. A gente trocô uma idéia e executô a primera missão, a gente pichô umas loja. Depois, o Indy acabô entrando em contato comigo. A gente selecionô mais uns cara e o grupo foi crescendo cada vez mais. - Cê tá resumindo demais, tá omitindo muita coisa; mas, tudo bem, já é um começo. Agora, me diga, como o MS2 acabô? - Sei lá, nem sei se acabô. Me diga você. Cê deve tá mais informado que eu. Falando nisso, e aquele negócio de que eu respondia umas pergunta tua e você respondia umas minha? - Vai. Pode perguntá. - Sei lá, pode sê isso mesmo. Como o MS2 acabô? Se é que ele acabô... - Acabô sim. Não posso negar que fiquei abalado quando ele disse que o MS2 tinha acabado. Se você não faz merda nenhuma, você precisa do consolo de que tem alguém fazendo. Eu precisava disso. - Como? _ perguntei. - Com a tua saída. - Você não espera que eu acredite nisso. O negócio tava estruturado demais pra acabá assim. Cada um agia porque sentia necessidade de fazê alguma coisa. Cada um era capaz de continuá por si próprio. Não tinha hierarquia, mas o Robs e o Indy podiam continuá sugerindo idéias e organizando tudo. - Imagine um exército que vê o seu general se rendendo, como que os cara vão continuá combatendo? Foi isso que aconteceu, você era uma referência e, de repente, essa referência sumiu. Ótimo. Ele não podia fazer eu me sentir melhor. - Mas, não pode. Não pode tê acabado assim, da noite pro dia. - Não adianta tentá se enganá, Prometeu. Acabô assim mesmo, de uma hora pra outra. Senti ódio de todos os membros do grupo. Principalmente do Robs e do Indy. Eles tinham a obrigação de continuar (quem era eu pra pensar isso?). Sabe como é, aquela expectativa que você cria em cima de quem você confia. - Fazê o quê? _ falei, tentando disfarçar a decepção. _ Não ia levá a lugar nenhum mesmo, foi bom que eles perceberam isso logo. O sistema é muito mais que uma dúzia de outdoors ou que alguns semáforos. Não dá pra vivê sonhando pra sempre; uma hora, você precisa encará a realidade. Ele soltou um risinho. - O que foi? _ perguntei. - Nada. É que é estranho ouvi você falando assim. Não parece nenhum poco com a descrição que me fizeram de você. Parece o oposto.

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- Não é você que é o Freud? Cê deve compreendê essas distorção de imagem melhor que eu. - É, eu tô vivendo a queda de um mito. O mito Prometeu. - Ah, é? Acho que vô entrá em crise, descobriram que eu não sô um super-herói. Mas, não se preocupe, qualqué super-herói que se preze tem que ter dupla personalidade. É só eu entrá numa cabine telefônica que já tô pronto pra combatê o mal. Agora, diz aí, o que que o Robs e a Helena falaram de mim? - Acho que não vai dá não _ disse ele, conferindo o relógio _, nosso tempo já tá acabando. Vai tê que ficá pra próxima. Já tá quase na hora de você acordar, ou, dormir. Será que cê tá acordado ou dormindo? - Vai se ferrá. Abri um pouco os olhos e fechei outra vez, naquela típica resistência à claridade. Dessa vez, as cortinas do meu quarto tavam abertas. Um cheiro forte de bebida pairava no ar. Fiquei um pouco deitado. Eu sentia raiva; não sabia ao certo de que, mas sentia. Acho que o que me revoltava mesmo era a possibilidade de alguém tá brincando comigo, era a vulnerabilidade. Eu nem sabia o que era real e o que não era. Levantei. Ao lado da cama, uma garrafa de whisky caída e uma mancha no chão. Pelo menos, aquele fedor de bebida não tava exalando de mim, ou, não só de mim. Achei um relógio, era uma e vinte e nove da tarde. Eu tinha dormido mais do que eu tinha imaginado (na verdade, eu não tinha imaginado droga nenhuma, ou seja, era impossível eu “ter dormido mais do que eu tinha imaginado”; foi só uma força de expressão). Fui tomar um banho. Não sei por que, mas sempre me pareceu mais fácil organizar os pensamentos dentro do banheiro. Enquanto a água caía sobre a minha cabeça, pensei em várias coisas. Não sei a ordem, mas lembro mais ou menos o que eram. Tentei recordar da conversa que eu supostamente havia tido com o tal Freud (não sei por que, mas este pseudônimo não desce; acho que é porque é muito clichê). Acabei lembrando de bastante coisa. Procurei aquilo que podia ser mais significativo. Me veio em mente a citação que ele fez de algo que eu havia dito pra Helena. Quando eu disse aquilo, estávamos só eu e ela, e não havia ninguém por perto. A única maneira de ele saber era ouvindo de mim ou dela. Lembrei de ele ter mencionado o fim do MS2 e ter afirmado que eu tinha sido a causa. Lembrei de ele ter dito que tava muito acima de mim e me perguntei se ele estaria blefando, se era só um jogo psicológico. E lembrei de algo que realmente me deixou preocupado, ele tinha dito: “... controlo o teu futuro e, pior ainda, controlo o teu passado”. Essa frase ficava martelando a minha cabeça enquanto eu lembrava de alguns episódios. Primeiro, o cara da recepção, que disse que não tinha me acordado e era só ele que tava de serviço; depois, teve os caras do bar, que me garantiram que eu não havia estado lá; e, por último, o Seu Omura negou uma conversa que a gente tinha acabado de ter e um outdoor gigante sumiu de uma hora pra outra. Talvez ele tivesse se referindo a isso quando disse que controlava o meu passado. Se eu tava ficando louco, pelo menos, a minha loucura era bem elaborada (nossa! Isso sim é consolo de derrotado!). Outra coisa me ocorreu. No dia anterior, ninguém tinha me telefonado pra falar de negócios, e isso era bem incomum. Geralmente, o meu celular não parava de tocar. Eu nunca precisava ligar, eles sempre ligavam pra mim. Pensei que talvez a bateria do celular tivesse acabado, mesmo assim, normalmente, já iam ter ligado pro hotel. Quando saí do banho, conferi o celular. A bateria não tinha acabado. Fiquei preocupado. Não preocupado com os negócios, mas com o fato de ter ocorrido mais uma

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mudança no curso habitual das coisas. Resolvi telefonar pra um dos meus agentes administrativos. - Jack; boa tarde. - Jack, eu tava querendo falá com você. O que que houve que você não me ligô ontem? Cê não me dava sossego... - Perdão, quem tá falando? “Como assim “quem tá falando?” _ pensei _ O cara era um dos meus agentes mais antigos, trabalhava exclusivamente pra mim e falava comigo todos os dias”. - Quem você acha? É o Prometeu, caramba! _ não falei num tom de irritação, e sim de preocupação. - Prometeu... que Prometeu? Não tive palavras. Só uma coisa me passou pela cabeça: “... pior ainda, controlo o teu passado”. De que outra forma o cara podia ter “esquecido” de mim? Ele concluiu: - Brincadera! Não te liguei porque não foi necessário, tá tudo em ordem. Melhor impossível. Que momento oportuno pra fazer uma brincadeira do gênero! Eu acho que, se existe alívio, foi o que eu senti naquela hora. - Bom, então tá. Parece um milagre, sempre tem algum problema. Mas, se você diz que tá tudo perfeito... - Pode ficá tranqüilo. Aproveite pra descansá um poco. - O que eu acho estranho é que ninguém mais me ligô. Será que tudo ficô uma maravilha assim, de uma hora pra outra? - Bom, eu não queria te falá nada, mas, já que você tá parecendo meio preocupado... o pessoal resolveu te dá um tempo. - Dá um tempo? _ a famosa pergunta de assimilação. - É, você mesmo acabô de falá que não tinha sossego; a gente resolveu dá esse sossego pra você. É claro que é impossível fazê isso por muito tempo. Por isso o meu conselho é: aproveite. - Eu não posso dizê que é ruim ficá um tempo sem ouvi o telefone toca, mas, se surgi algum problema, me ligue. - Tá bom, ligo sim. - Tchau. - Tchau! Eu achei aquilo tudo meio estranho. Eu tinha negócios em vários lugares, como que todas as pessoas que administravam algo pra mim poderiam se conhecer? Sim, porque, pra combinar de “me dar um tempo” elas precisariam pelo menos estabelecer contato com o resto do pessoal. O próprio Jack não conhecia nem um centésimo dos meus negócios, de que maneira ele estabeleceria contato com o resto do pessoal? E sempre surgia algum problema que só eu podia resolver, pelos riscos acarretados em certas decisões. O que quer que fosse que tava acontecendo, eu tinha outras coisas mais preocupantes pra pensar. Por exemplo, eu tinha encontrado o Freud pela segunda vez consecutiva. E já tinha descartado quase que completamente a hipótese de sonho. As possibilidades mais relevantes eram: realidade ou loucura. Sinceramente, não sei qual das duas era pior. E ainda havia a dúvida sobre o que o cara poderia querer comigo e quem realmente era ele (se é que ele existia). Resolvi fazer um teste. Se eu ficasse no hotel, eu seria um alvo fácil. Se aqueles encontros com o Freud aconteciam mesmo, não eram fruto da minha loucura ou algum sonho - 156 -

doido, tava mais do que claro que alguém tinha acesso ao meu quarto. Ou seja, o mínimo que eu devia fazer era sair do hotel. Ponderei qual seria o melhor lugar pra eu ir. Cogitei algumas possibilidades. Eu podia ir pra alguma das minhas casas fora da cidade ou até mesmo fora do país (pensei numa ilha, mas achei meio complicado) (por que nunca usamos a preguiça como justificativa? Pra mim, ela é uma ótima razão pra fazer, principalmente deixar de fazer, várias coisas); podia comprar uma casa nova, talvez o Freud e sua suposta equipe (concluí que era praticamente impossível que ele agisse sozinho) já conhecessem todos os meus antigos endereços, apesar de nem eu saber se conhecia todos eles; podia contratar uma equipe de segurança altamente treinada e pedir que vigiassem o local em que eu dormia durante toda a noite; ou, por último, podia ir pra um lugar bastante seguro e que inspirasse confiança. Escolhi a última opção. Eu tinha uma casa numa espécie de condomínio que parecia uma fortaleza. Definitivamente, podia-se dizer que aquele era um lugar seguro. Acho que tinha mais vigias do que moradores e mais muros e grades do que um presídio de segurança máxima. Às vezes, o dinheiro e a liberdade parecem inversamente proporcionais. É óbvio que havia enormes diferenças entre aquele condomínio e uma penitenciária. Lá, era como se você estivesse preso num estereótipo de paraíso; ainda assim, preso. Por isso eu não gostava de ficar naquele lugar. Sem falar naquela aristocracia, que, por algum tempo, me causava risos, mas, depois, me deprimia. Aquele condomínio era um bom lugar pra se analisar todas as variações de aristocratas. Havia desde senhores e senhoras esnobes de terceira idade, que vivem com um animalzinho de estimação, até famílias felizes, estilo comercial de margarina ou cartão de crédito, sempre com sorrisos de comercial de creme dental. Gramados verdes e impecáveis, arvorezinhas bem aparadas, casas maravilhosas... Às vezes, me dava impressão até que aquele pessoal comprava aquele céu azul, com nuvenzinhas de algodão. Não, aquilo ali não era o mundo real. Era a tentativa de concretização de algum sonho burguês. Algumas vezes, me perguntava se o número de pobres e miseráveis fosse um pouco menor, a dita “classe A” não teria dado um jeito de eliminá-los ou excluí-los (excluí-los fisicamente, porque em todos os outros sentidos, eles já foram excluídos), fazendo algo no estilo do que foi o nazismo. Eles conservariam somente a classe média, não por bondade ou compaixão, apenas porque é preciso uma classe para sustentá-los. Também não tô dizendo que os aristocratas são os vilões do mundo, são só pessoas com poder, o que significa quase a mesma coisa. O fato é que, dentro daquele condomínio, teoricamente, eu estaria seguro. Eu tinha deixado as chaves da minha casa na portaria, se eu levasse elas comigo, certamente, as perderia. Me surpreendi quando cheguei na casa, ela tava aberta. Tinha uma moça limpando os vidros. - Oi _ falei. - Oi. - Você... trabalha pra mim? - Sim, senhor. Acho que tava no contrato do condomínio, lembra? Claro. O contrato incluía alguma coisa tipo uma faxina periódica na casa e os serviços de um jardineiro. - Ah, sim. Lembro sim. Subi pro meu quarto (a casa tinha dois andares). Tomei outro banho, sei lá por quê. Percebi que eu tava com fome. Desci, a moça ainda tava trabalhando. - Você sabe onde eu consigo alguma coisa pra comê?

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- Se o senhor quisé, eu posso verificá se tem alguma cozinhera disponível. Se não tivé, eu mesma posso prepará alguma coisa. - Pois é... aí é que tá. Eu não fiz compra nenhuma; eu não tenho comida em casa. - Não precisa se preocupá. Aqui no condomínio, eles têm uma dispensa enorme e o senhor tem direito a alguns alimentos. Eles fizeram isso pra facilitá um poco as coisas, mas, também, não é favor nenhum. Pela fortuna que eles cobram... Ela riu. Eu ri também e concordei com a cabeça, apesar de não fazer a menor idéia de quanto eu pagava de condomínio. - Ótimo, se tivé tudo bem pra você, você mesma pode cozinhá, nem precisa cozinhera. O único problema é que eu precisava comê alguma coisa agora, digo, nesse momento. Será que tem algum lugar onde a gente arranja comida pronta, ou então, alguma coisa rápida de fazê? - Bom, tem o... nada, nada; dexa pra lá! - Tem o quê? Pode falá. Ela riu meio sem jeito e, um pouco corada, falou: - É que é tão absurdo que eu tenho vergonha até de falá. - Que isso?! Fala logo. - Eu já peço desculpas... mas... mas eu ia falá que tem o refeitório dos empregados. É claro que eu não ia sugeri que o senhor fosse até lá, eu podia apanhá alguma coisa. Mas foi uma idéia sem sentido, o senhor não aprovaria aquela comida, ainda mais requentada! - Aonde você tava com a cabeça quando pensô que eu ia aceitá essa comida?! Se você trabalhava pra mim, não trabalha mais. A coitada ficou branca, aí eu completei: - Tô brincando! (fazia algum tempo que eu não mandava uma brincadeira do tipo). Na verdade, foi uma ótima idéia. Mas sem essa de trazê a comida aqui, como se eu fosse um desses snobs que não gosta de se misturá. Me mostra onde é o refeitório. Ela tava confusa, perdida entre o alívio e a surpresa. - Eu pensei que o senhor não ia aceitá a idéia. - Aposto que a comida do refeitório é bem melhor do que a que esses burgueses comem. Eu também já comi comida de verdade e costumo comê sempre que possível; agora é uma boa oportunidade. A gente saiu e caminhou um pouco até chegar no refeitório. Aquele condomínio podia até não condizer com a realidade vivida pelo resto do mundo, mas era bonito pra caramba! - Senhor Prometeu?! _ disse uma senhora vestida com o uniforme dos empregados. _ O que o senhor faz aqui? Deseja alguma coisa? - O senhor Prometeu quer comer algo _ disse a moça que tinha me conduzido até ali. - E está procurando uma cozinhera? - Não. Na verdade, eu tô procurando comida mesmo. Será que sobrô alguma coisa do almoço de vocês? Ela franziu a sobrancelha, ficou me olhando por um tempo e falou: - Sobrô sim; por quê? Sei que você deve tá pensando: “que mulher lesada!”. E eu entendo o seu pensamento. Se alguém entra num refeitório perguntando se tem comida, é um tanto óbvio que esse alguém quer comer. Mas eu também entendo aquela senhora. Pra ela, era inconcebível que algum dos condôminos fosse procurar comida no refeitório dos empregados. As pessoas não entendem que, se você tem fama e dinheiro, você continua - 158 -

sendo um ser humano; e também não entendem que, se você vive na miséria e não tem um tostão, você continua sendo um ser humano. - Por que eu tô com fome _ respondi. _ Será que a senhora podia esquentá alguma coisa pra mim comê? - O senhor tem certeza...? É que a comida aqui é bem simples..., digo, é diferente daquilo que o senhor é acostumado. - Ultimamente, eu tô acostumado só com cachorro-quente. Pode ficá tranqüila, tenho certeza que eu vô gostá da comida. - Bom, se é assim, o senhor pode se sentar em uma das mesas e esperar um instante. Havia mais alguns empregados no refeitório, que ficaram me olhando com uma cara de espanto. Eu sentei numa das mesas. A mocinha que tinha me levado até lá ficou em pé ao meu lado, parada com as mãos pra trás, parecia um soldado em posição de sentido, esperando por uma ordem. - Senta aí _ falei pra ela. _ Você vai cansá de ficá em pé. - As normas do condomínio dizem que não é de bom tom um empregado mostrar qualquer relação de intimidade com o patrão _ ela falou como se tivesse decorado um manual pra passar em algum teste. - Bom, se as normas do condomínio dizem isso, então, é melhor cê não sentá mesmo _ ironizei. Ela achou que eu tava falando sério e, apesar do pouquíssimo tempo que nos conhecíamos, pude perceber nela um certo desapontamento. - Tô brincando! Que se dane as regras do condomínio! Senta aí. - Se o senhor insiste... Ela se sentou de frente pra mim. Tava meio constrangida, meio sem jeito. - Então, qual é o teu nome? - Julia (como sempre, esse não era o nome dela). - Você gosta de trabalhá aqui? - Gosto pelo dinhero, eles pagam bem; mas o trabalho é um saco. Desculpa, eu não devia falá desse jeito. - Que isso, Julia! Fala do jeito que você fala com os teus amigos. Detesto conversa mecânica, padronizada. Mas, se o trabalho é um saco, por que cê tá trabalhando aqui? Qué dizê, sei que é porque eles pagam bem, mas cê não queria fazê uma faculdade ou esse tipo de coisa? Não pense que eu tô te criticando, porque eu também não fiz faculdade nenhuma. - Queria sim. É óbvio que o meu sonho nunca foi trabalhá de empregada num condomínio de luxo. Mas eu sempre quis ser independente. Tipo... as minhas idéias não batiam com a dos meus pais. Eu queria me virá sozinha; eu sei que eu podia fazê coisa melhor do que varrê casa, limpá vidro... mas eu tive que me virá com o que apareceu. E o salário é muito bom; tem muita gente com diploma que não ganha o que eu ganho aqui. Sempre fui fascinado por esses conflitos e adversidades que envolvem as pessoas. Essa eterna luta pela liberdade, mesmo sabendo que ela não passa de uma utopia. Isso é maravilhoso. Você sacrifica os teus sonhos, condiciona os teus ideais, pelo direito de ser livre. Uma coisa aparentemente simples, mas simplesmente inatingível. Você se escraviza (em tese, temporariamente) pela busca da liberdade, ou por qualquer migalha de algo que se pareça com ela. - Quantos anos você tem, Julia? - Vinte e dois, vô fazê vinte e três em breve. - Até que série você estudô? - 159 -

- Eu completei o Ensino Médio e até ingressei numa universidade. Eu não sô ignorante, seu Prometeu; pelo menos, não completamente. Eu li os seus livros, adorei. Quando vi o senhor, quase não acreditei. Eu queria pedi um autógrafo pro senhor; agora, quero mais ainda. Só não pedi antes por causa dessas normas do condomínio, que exige uma coisa meio impessoal. Pra mim, tava claro que os caras do condomínio tinham ido buscar os empregados na classe média. Eles não podiam pegar qualquer um. Muito provavelmente, todos os empregados tinham um alto grau de escolaridade e deviam até falar mais de uma língua. Digo até que devia ter algum tipo de concurso bastante concorrido pra trabalhar naquele condomínio. Aquela mocinha que tava conversando comigo, por exemplo, parecia uma empregada idealizada. Ela tinha boa aparência, sabia se expressar bem, conhecia as regras do condomínio e parecia até condicionada a “saber o seu lugar” (acho essa expressão horrível). - Até hoje, não consigo vê muita utilidade no meu autógrafo, mas, se você quisé, depois eu posso te dá. Mas me fale que faculdade você começô. - Moda. Tem gente que diz que é meio superficial, meio banal. Mas, quando eu era pequena, eu via aqueles desfiles pela TV... aquelas modelos... aquelas ropas... eu ficava encantada. O meu sonho mesmo era ser atriz, eu até fiz escola de teatro por um tempo. Mas aí... - Mas aí? - Aí eu descobri que era impossível. Acho que as atrizes de sucesso devem vir de otro planeta, as pessoas normais não têm chance. Eu senti uma melancolia cortante naquela fala. Frustração e resistência; aparentemente, era isso que eu tinha diante de mim. Eu sofri ao ouvir aquilo; e sabia que sofreria várias vezes mais tarde. Sempre tive uma memória ótima (sinceramente, não sei se isso é bom ou ruim), coisas que para muitos podem parecer irrelevantes me marcaram pelo resto da vida. - Olha, eu posso te ajudá. Eu tenho ações de algumas grifes e tenho muitos contatos nessa área (que ironia! Quando lembro o que eu pensava sobre moda...). Hoje mesmo, eu posso arranjá um emprego pra você. Ela sorriu e eu pude ver um brilho nos olhos dela; um brilho que eu sabia que meus olhos dificilmente teriam outra vez, se é que um dia já haviam tido. Nisso, aquela senhora que havia me atendido no refeitório (aquela que não conseguia acreditar que eu tava ali pra comer) apareceu. Por um breve momento, ela dirigiu um olhar de reprovação pra Julia, que tava tão... (pra falar a verdade, eu não sei tão o que ela tava; “tão surpresa” não diria tudo) tão alguma coisa que nem percebeu nada. - Senhor Prometeu, acredito que o nosso cardápio está dexando a desejar (era sobre esse tipo de conversa mecânica, padronizada, que eu falava). Sei que nem de longe é o ideal, mas gostaria de averiguar se o senhor não quer que eu frite um hambúrguer ou um ovo? - Não, hambúrguer não. Mas um ovo frito ia bem. - Perfeito; peço que aguarde só mais um instante, senhor. Quando ela saiu, a Julia falou: - Eu não sei o que dizê. Eu esperei a minha vida intera por uma oportunidade, por uma chance, e agora, quando eu menos esperava ela cai do céu. Eu não sei, coisas desse tipo não acontecem. “É, eu também achava isso _ pensei”. - Qualquer coisa que eu faça, nada vai podê recompensá o senhor pela chance que o senhor tá me dando. - 160 -

Eu não sei se ela devia ficar tão grata assim. Não sei até que ponto eu tava fazendo isso por ela. A frustração dela, se eu não fizesse nada, me atormentaria por muito tempo. Então, eu tava me livrando de algo que me atingiria. Mas, se eu pensar que era a frustração dela que me fazia sofrer, talvez fosse por ela mesmo que eu tava fazendo aquilo. Agora que ela tava profundamente grata, nada expressaria aquela gratidão. Mas, se eu desse mesmo uma oportunidade pra ela, algum dia, por alguma razão, ela me amaldiçoaria por ter feito isso. Sabe como é, em algum momento, algo dá errado, não sai como a gente espera; e é nesse momento que precisamos encontrar algum culpado. A minha comida chegou. Era arroz, salada de alface, batata com molho de carne e ovo frito. Tava ótimo. Tenho quase certeza que gostamos mais de certas coisas porque as relacionamos com um determinado período de nossas vidas. Depois de comer, voltei pra minha casa. A moça me acompanhou. Se o condômino estava ausente, ela trabalhava na casa periodicamente; mas, quando ele estava presente, trabalhava em período integral. Pelo caminho, ela me falava alguma coisa, mas não consegui prestar atenção. Não porque eu não tinha interesse pelo assunto sobre o qual ela falava, eu não conseguia me concentrar porque eu tava cansado; profundamente cansado. Eu tinha várias razões para isso. Quando cheguei em casa, fui pro meu quarto e fiz algumas ligações. Achei que era melhor arranjar logo o tal emprego pra moça, se não, eu podia acabar esquecendo (não porque eu achava algo irrelevante, mas porque o meu cérebro tava sobrecarregado). Foi fácil. Com um simples telefonema, eu podia ter mudado a vida de alguém. Sempre achei isso muito doido, esse poder. E parecia muito mais doido quando ele tava em minhas mãos. Eu ia descer e avisar a moça que tinha dado tudo certo; ia dar uma notícia que talvez fizesse ela ver o mundo de outra maneira. Mas eu tava tão cansado que resolvi deitar um pouco. Minhas pálpebras pesavam e eu sentia um receio; receio de algo que sempre me agradou: sono. Ao mesmo tempo que eu queria conversar de novo com o tal Freud, eu não queria encontrá-lo pra não me sentir tão vulnerável. Acabei dormindo (pelo menos, foi o que pareceu). É, outra vez, eu tava naquela sala. Parece que a minha tentativa de escapar daquele encontro (se é que eu realmente queria escapar) não tinha dado certo. A mesma sala, a mesma luz, o mesmo divã e, certamente, quem estava diante de mim era o mesmo cara. - Parece-me que a sua tentativa de faltar ao nosso encontro acabou falhando, senhor Prometeu. Essa frase foi suficiente pra eu perceber que eu tava diante da outra personalidade criada pelo Freud, a personalidade certinha. Sem dúvida, ele tava fazendo isso pra me confundir e aumentar ainda mais a minha vulnerabilidade. - Sem enrolação dessa vez; fala logo, se não, não dá tempo. O que que a Helena e o Robs disseram sobre mim? Não; primero fala quem você é. - Eu? Eu sô o Freud. O cara tava de sacanagem. Pra falar a verdade, não consegui conter o riso (apesar de ter tentado). - É, você é o Freud e o comediante do ano. - O senhor está certo _ disse ele, com um discreto sorriso nos lábios. _ Fui evasivo em minha resposta. Desculpe, mas, no momento, não posso responder a essa pergunta. Se tudo correr bem, quem sabe no nosso próximo encontro, o senhor já possa saber o que deseja. Só depende do senhor. - Por que você tá falando assim, todo formal e respeitoso? Cadê aquele cara agressivo da otra vez? Falando nisso, e o cigarro e o negócio pra bebê, cê arranjô? - Agressivo... cigarro... bebida... desculpe, mas do que o senhor está falando? - 161 -

Que ótimo! Agora eu não podia ter certeza do que tinha acontecido nem nos encontros que podiam ser fruto da minha loucura. - Cê não acha que já chega dessas palhaçada? Ele riu e falou: - Tudo bem, meu objetivo é deixá-lo confuso, não completamente paranóico. O seu cigarro e a sua bebida estão sobre uma mesinha, atrás do seu divã. Quanto à personalidade, o senhor prefere que eu me porte de maneira mais informal, desleixada, como da outra vez; ou prefere que continue mantendo esta postura? Afinal, meu objetivo é deixá-lo mais à vontade. - Eu prefiro a tua mãe. Virei e peguei uma garrafa de whisky, sem rótulo, e um copo. Ao lado, havia alguns cigarros avulsos e um isqueiro. - Receio que não possa atender ao seu último pedido. A minha mãe não poderá vir até aqui para conversar com o senhor. - Então, pára de falá desse jeito. Eu prefiro a tua otra personalidade. Pára de enrolá, conta logo aquilo que eu te perguntei. - Calma. Beleza então. Eu respondo a tua pergunta e faço otra. Dexa eu vê... vô começá pelo Robs. A forma como o Robs te via? Você era uma espécie de ídolo pra ele, mas ele nunca ia admiti isso. Por quê? Porque se você idolatra alguém, você tá assumindo os teus defeito, a tua insuficiência e até uma certa carência. Alguns chamariam isso de arrogância; eu diria que é uma espécie de personalidade narcisista. Ele estimava demais a inteligência e a personalidade dele pra assumi que te idolatrava. Mas, eu posso te garanti, se ele tinha um ídolo, esse ídolo era você. Ele se identificava muito com você, achava que vocês eram muito parecidos; mas achava que você tava à frente dele. Uma vez ele me falô: “Se o Prometeu me dissesse que era preciso dissolvê o MS2, por um fim naquilo tudo, provavelmente, no otro dia, eu ia convocá uma reunião e a gente ia acabá com o movimento. É óbvio que eu não ia aceitá uma coisa dessas sem pedi explicação, mas eu sei que os argumento dele iam me convencê. Ele podia me convencê de qualqué coisa, menos de que a melhor alternativa era se vendê pra aquela merda que a gente sempre tentô combatê. Isso, ele nunca vai consegui me explicá”. Isso que ele falô reflete bem o atual sentimento dele em relação a você, a atual manera como ele te vê. O excesso de confiança depositada quase sempre é sinônimo de frustração, desapontamento. Pra ele, qualqué pessoa podia tê aderido a esse way of life puramente capitalista, exceto você. Ele disse: “Eu achava que o Prometeu era incorruptível, mas ele virô uma prostituta”. Agora eu queria que você me dissesse, mais a título de curiosidade, por que você quis ajudá aquela moça? - Que moça? (eu já sabia que moça era). - A moça que trabalha pra você; por que você ofereceu otro emprego pra ela? A maioria dos condôminos nem cumprimenta os empregados, e você sai oferecendo oportunidade. - Talvez sejam resquícios dos sonhos de juventude, do sonho de consertá o mundo. Ele ficou quieto. Eu olhava pra silhueta dele, através do vidro que separava a gente, e tomava um pouco de whisky. Ele permanecia imóvel, sentado na poltrona. - Você sente culpa por ter tanto dinhero? - Você sentiria? _ perguntei. - Eu tenho muito mais que dinhero, Prometeu. Mas ainda não é a hora de falá sobre mim, antes, você precisa respondê algumas perguntas. Me diga, você sente culpa quando consome coisas completamente supérfluas que custam uma fortuna? Você sente culpa quando compra um carro de um milhão, uma TV de trocentas polegadas ou uma ilha, enquanto há - 162 -

milhões de pessoas vivendo na miséria extrema? Ou você só pega o teu American Express Centurion e sai por aí, gastando sem pensá em nada disso. - Você tá me julgando, Freud? Tá condenando a minha conduta? - Não, não; longe disso. É só uma pergunta. Compreendo perfeitamente que você quera aproveitá o teu dinhero; afinal, ele é teu. Todo mundo que tem sai por aí esbanjando, por que você não poderia? Pra acabá com a crise de consciência, é só fazê uma caridade, colaborá com alguma entidade filantrópica, com alguma ONG... - Não, eu não tenho sentimento de culpa; não tenho crises de consciência e não preciso usá a receita da caridade pra dormi tranqüilo (menti descaradamente). - Engraçado, os fatos parecem ser um poco diferente. Eu descobri uma fundação de apoio intelectual e cultural pra jovens que, ao que tudo indica, foi criada por você. Não vi direito com funciona, mas parece que você pega jovens muito inteligentes e fornece um ensino de primera, além de bancá alguns projetos. Tem quase uma dezena de projetos semelhantes, que investem no potencial intelectual. Além de projetos de combate à fome; de auxílio moradia; de fornecimento de remédios... e por aí vai. Eu diria que você investe muito dinhero nisso. - Isso aí é autopromoção. Hoje em dia, ter uma boa image é essencial, é preciso dá uma de cara solidário. - É? O curioso é que o teu nome não aparecia em nenhum deles; nem tava diretamente relacionado. Eu precisei quebrá o teu sigilo bancário e conversá com algumas pessoas pra descobri. - Então, eu banco o solidário pra esses cara que saem por aí quebrando o sigilo bancário. Vai dizê que não deu certo?! Você ficô pensando que eu era uma nova versão do Papai Noel. - Eu acho que você não tá sendo completamente sincero comigo. Mas eu queria dizê que eu admiro muito algumas das tuas atitudes. É preciso muito mais corage pra abandoná um ideal do que pra continuá com ele, mesmo sabendo que não vai dá em nada. Assumi as fraquezas é superá o orgulho; é mais nobre assumi o verdadero tamanho do que insisti na image do mito. - Não entendi, isso foi um elogio? - No meu conceito, foi. - Tá bom, não precisa me elogiá, nem fazê nenhum relatório sobre alguma investigação a meu respeito, pra prová que sabe tudo sobre mim. Em vez disso, você podia continuá falando sobre eles. - Eles quem? - Quem? O Bob Esponja e o Lula Molusco. A Helena e o Robs, caramba! Sobre quem que a gente tá falando?! Ele riu e disse: - Tá com pressa, é? Tá bom, eu falo. A Helena... é sempre bom falá sobre ela. Que mulher é aquela, hein, Prometeu?! Quando você vê uma mulher tão incrivelmente bonita, você já logo pensa: “Uma mulher dessas não deve ser inteligente, não deve tê uma personalidade interessante”. Por quê? Porque aí seria perfeito demais. Eu confesso que quando eu vi ela, eu pensei isso. Mas, aí, ela me mostrô um espírito irreverente; um senso de humor fantástico, característico; uma inteligência apurada, uma perspicácia... - Tá, isso tudo eu já sei. Você ia mostrá a image que ela formô de mim. - O que foi? Não gostô de ouvi eu elogiá ela? Pode ficá tranqüilo, vamo falá da imagem então. Sabe o que você era pra ela? Perfeição. Ela criô uma espécie de dogma: “O - 163 -

Prometeu tá sempre certo”. Isso é o que todos nós precisamos, um ponto de apoio, uma trilha pra segui, um exemplo do correto. Você era isso pra ela. Você era uma ilha de confiança num mar de confusão. Ela me disse: “Eu sempre tive medo de não entendê o Prometeu, mas acho que foi ele que nunca me entendeu. Eu sempre vi ele como uma pessoa única, e ele só me viu como mais uma pessoa. Meu Deus, eu valorizei ele tanto, tanto! Ele não conseguiu valorizá nem o valor que eu dei a ele”. É, você frustrô algumas pessoas, Prometeu. Mas, com a Helena, foi mais que frustração. Você era a ilha dela e, quando você sumiu, ela se viu sozinha naquele oceano de confusão. Você acha que eu tô culpando você? Não, eu não tô te culpando. Qual seria a tua culpa? Ser forte? Sim, porque uma coisa é indiscutível: você era o forte; ela era a fraca. - Por quê? _ balbuciei, meio sem voz. - Por quê? Eu acho que é um tanto óbvio. Pense, quem dependia de quem? Quem dexô quem? E, depois da tua partida, quem formô um império, conseguiu uma fortuna fabulosa; e quem caiu em depressão profunda, passando de clínica em clínica, de médico a médico, de remédio a remédio? O que pensar nessa hora? Tem horas que nossos pensamentos nos abandonam e só conseguimos sentir. O que eu senti? Nojo. Repulsa por mim mesmo. Autodestruição é um direito; mas, se você destrói o outro, você é uma doença, um verme, um parasita. Se esse outro é a Helena, você é a pior doença, o pior verme, o pior parasita. - Como ela tá agora? Não, por favor, não fala não (além de ser a pior doença, o pior verme e o pior parasita, eu também era o pior covarde). - Fique calmo, Prometeu, eu só vô repondê as tuas pergunta; você só vai sabê aquilo que você quisé sabê. Acho que eu fui um poco direto e inoportuno, mas agora eu vô me controlá. Silêncio. Um incômodo silêncio; mais incômodo pra mim (eu presumo), que remoía a dor que eu havia causado. - Bom, já que o nosso tempo é precioso _ disse ele _, vô te fazê mais uma pergunta. Por que essa obstinação em fazê dinhero? Fiquei um tempo quieto. Não tava nenhum pouco disposto a continuar conversando, mas acabei falando. - Por que você pergunta isso pra mim, como se eu fosse o único? Olha lá fora, por que essa obstinação do mundo em ganhá dinhero? - Eu acho que os motivos da maioria deles eu conheço. Sobrevivência pra alguns... status pra otros... poder... luxo... mas, pra você, eu acho que é diferente. - Por que seria? - Não sei, me diga você. Ah, Prometeu, eu te conheço tão melhor do que você imagina! Mas ainda tem algumas coisas que só você pode dizê. - Por que o dinhero? Por que eu me dediquei e me dedico a isso? - Quando eu ainda não te conhecia direito, pensei: acho que é uma manera dele rompê definitivamente com o passado; buscando tudo aquilo que ele renegava, ele tenta construí uma nova pessoa. Mas aí, acabei mudando um poco a minha teoria. Não descartei o que eu disse, mas somei a uma outra possibilidade. Você tá tentando prová alguma coisa pra si mesmo, prová a tua capacidade, a tua superioridade. Silêncio outra vez. De repente, o cara interrompeu o discurso dele e simplesmente ficou calado. - Eu queria te perguntá uma coisa, Prometeu. Você dispreza toda a raça humana ou só você mesmo? - 164 -

- Desprezo, amor, raiva, revolta, egoísmo... me diga, qual é a verdadera diferença entre esses sentimento? Entre todos eles? Um sempre leva ao otro e nenhum dura pra sempre; a única coisa permanente é a transitoriedade. Se eu desprezo todo mundo? Não sei. Tem coisas sobre mim que nem eu mesmo posso sabê. Eu não me conheço. Eu conheço o eu de hoje, de agora, de já; mas eu olho pra trás e me pergunto: quem foi aquele eu de ontem? Quem vai sê o eu de amanhã? - Vô retomá o meu pensamento. Numa tentativa de prová alguma coisa pra você mesmo, você precisava de um critério de avaliação. Então, que objetivo podia sê melhor do que acumulá ao máximo aquilo que tanta gente se mata pra consegui. Agora, você é bilhões de vezes melhor que muitos. Você tem prova concreta da tua superioridade. O que podia sê maior que isso? Mostrá que isso tudo, que parece um sonho distante pra tanta gente, que é o foco da vida da maioria das pessoas, não vale nada pra você. Aí, você já quase dexaria de sê humano, Prometeu. Quase, porque a origem disso tudo, seria algo completamente humano. - Do que que cê tá falando? Se você existe mesmo, não é locura minha, cê é mais doido que eu. Se você não existe, cê é mais doido que eu pensava. - Me diga, Prometeu, como acaba o clímax desse rotero que você fez da tua própria vida? Sei que depois desse clímax, você vai precisá arranjá otro; um otro sentido pra continuá vivendo. Mas, o final desse ato, como vai sê? - Bom, no final desse ato, você vira uma cegonha e sai voando pela janela. Foi nesse momento que, pasme, ele virou uma cegonha e saiu voando pela janela. Mentira. Ele continuou sentado no mesmo lugar e disse: - Até a próxima, Prometeu. Como você já deve ter imaginado, acordei no meu quarto. A única diferença é que não era mais o quarto do hotel. Pelo menos, aquilo que seria a “vida real” ainda tinha continuidade conexa. Imagine se eu acordasse num lugar completamente diferente daquele em que eu tinha dormido; se eu acordasse no Turcomenistão, por exemplo. Ainda deitado, pensei numa coisa que, até então, não tinha me ocorrido. E se, na verdade, quando eu julgava que eu tava acordado eu tivesse sonhando, e vice-versa. Se você não entendeu, eu explico melhor (se você entendeu, eu explico do mesmo jeito). O que eu pensei foi: e se no momento que eu julgava tá acordado eu tivesse começando a sonhar; se, na realidade, eu tivesse o tempo todo confinado dentro daquela sala, só sonhando com uma vida fora dela. Essa possibilidade era doida, mas, no momento, era aceitável. No momento, qualquer coisa era aceitável. Fiquei um bom tempo remoendo isso. Acabei concluindo que era impossível (momentos atrás eu disse que tudo era aceitável; agora, digo que era impossível), havia muita coesão, muitos detalhes, e isso não combinava com um enredo onírico (gostou de “enredo onírico”, né? Mais meia dúzia de expressões desse tipo e eu conquisto a crítica). Pensando dessa forma, as minhas conversas com o Freud também não podiam fazer parte de um sonho. E isso era o óbvio e o lógico que tava na minha frente: aquilo era real. Quando eu tava naquela sala, eu nunca conseguia organizar muito bem os meus pensamentos; sempre lúcido, mas um pouco confuso. Talvez fosse o efeito de algum sedativo ou alguma coisa do gênero; alguma droga aplicada pra me transportar até aquele lugar, ou, pra me fazer falar mais do que devia. Sempre achei patética e paranóica a teoria de uma conspiração, mas, agora, ela era a hipótese mais racional. Eu tava sendo vítima de uma conspiração, aparentemente, muito bem estruturada. Não tava seguro nem dentro daquele condomínio. Será que ainda havia algum lugar seguro? Me sentia tão ridiculamente manipulado, tão impotente, que não tinha vontade nem de levantar da cama. Mas levantei. Fui no banheiro. Não tive ânimo pra tomar banho. Só - 165 -

escovei os dentes e lavei o rosto. Vi um aparelho de barbear sobre a pia e só então me dei conta de que a minha barba tava por fazer, e continuaria assim. Examinei um pouco o meu rosto no espelho, ele tava sem cor (não exatamente pálido, parece que nenhuma cor podia defini-lo), meus olhos tavam opacos (a minha vista tava um pouco embaçada) e o semblante todo mostrava uma preocupação muito maior do que eu sabia que sentia. Foi olhando o meu rosto que percebi o quanto eu tava preocupado. “Vitória _ balbuciei pro meu reflexo _, vitória é a única coisa que eu aceito de você. Eu preciso confiá em você”. Desci. Eu tava ansioso pra falar com a mocinha que tinha conversado comigo no dia anterior. Achava que, se eu pressionasse ela, ela ia acabar me contando o que realmente tava acontecendo. - Bom dia, senhor Prometeu! _ disse uma voz feminina, ligeiramente rouca, vinda da cozinha. Me voltei pra ver quem era e logo percebi que não era boa coisa que tava por vir. A senhora, que não acreditava que eu tava no refeitório pra comer, vinha trazendo uma bandeja com o meu café da manhã. - Eu levaria o café até o seu quarto, mas não sabia se o senhor já tava acordado _ disse ela, com uma falsa naturalidade. Eu fiquei parado onde estava, enquanto ela se ocupava de organizar a mesa. Tentei abalar ela com o meu silêncio, com a minha inércia. Eu não podia entrar naquele jogo patético e me sentar à mesa com um sorriso no rosto. - O senhor prefere café, chá ou suco de laranja? - Cadê a Julia? - Quem? Suspirei. Soltei um riso de incredulidade e falei: - A moça que tava trabalhando pra mim ontem, onde que ela foi pará? - Acho que o senhor deve tá confundindo... eu estava trabalhando pro senhor ontem. - Tudo bem, tudo bem. Sei que eles devem tá instruindo você a me dizê isso e, talvez até, mais algumas bestera. Só não me peça pra aceitá essa encenação ridícula e dizê: “Nossa! Que cabeça a minha! É claro que a senhora tava trabalhando aqui ontem”. Me diga, quem mandô você fazê isso? - Eu não sei do que o senhor tá falando. Por que o senhor tá agindo assim? - Você não vai falá, né? Eu não culpo você. Só peço pra você não trocá mais nenhuma palavra comigo hoje. Pode dexá o café aí como tá e, se quisé, pode í embora. Talvez amanhã apareça alguma otra pessoa e me diga que você nunca existiu. Ela não argumentou e nem me pareceu muito assustada. Talvez tenha sido impressão minha, mas o olhar que ela me dirigiu parecia carregado de uma certa culpa (talvez fosse pena). Sem dizer uma palavra, ela saiu. O que dizer sobre o resto do dia? Pensei em fazer um monte de coisas; pensei em deixar o condomínio, por exemplo. Podia ir pra um lugar ainda mais inacessível, podia ir pra uma ilha particular, mas acabei descartando a idéia (achei que esse negócio de ficar tentando fugir, de ficar testando a competência desses caras (que supostamente estariam envolvidos numa suposta conspiração) era um negócio meio bobo, meio infantil). Então, os meus pensamentos se concentraram sobre outro problema, eu precisava descobrir se a vida que eu levava ali, enquanto tava naquele condomínio, tava diretamente ligada com os momentos com o Freud ou se havia algo que separava esses instantes (trocando em miúdos, queria saber se ambos os momentos eram reais). Muita coisa passou pela minha cabeça. Se, enquanto eu tava com o Freud, eu realmente tava sob o efeito de alguma droga, quando ela era ministrada em mim? Seria - 166 -

enquanto eu tava dormindo? Eu dormia de forma natural ou era induzido ao sono? Eu podia confiar naquilo que eu comia, bebia? Eu podia confiar em alguma coisa ou em alguém? O Freud tinha influências muito maiores do que eu tinha imaginado; ele tinha dito claramente: “quebrei o teu sigilo bancário”. Quem pode fazer isso, a não ser quando se trata de alguma ação judicial? Quem pode passar por cima de burocracias e de direitos? As minhas ligações com aquelas entidades que ele citou nunca haviam sido descobertas, nem por revistas e programas de fofocas (e essas revistas e programas sabiam coisas sobre mim que nem eu mesmo conhecia). Freud. Quem era esse cara? Ele parecia uma incógnita dentro de uma equação sem lógica. Eu não conseguia relacionar ele a nada. Acabei concluindo que eu não podia fazer nada pra evitar aquele encontro (talvez eu não quisesse fazer nada), então, resolvi aproveitar o dia pra me distrair um pouco. Passeei um pouco pelo condomínio; não vi nem sinal da Julia (também não fiz questão de procurar por ela). Acabei jogando squash com um bando de desocupados de meia idade. “Será que é isso que sobrô de mim? _ me perguntava. _ Será que um dia eu fui mais que isso

XIV Acordar naquele divã, naquela sala, já tava se tornando algo meio habitual. Encontrar o Freud era quase como encontrar um amigo num boteco (não, na verdade a nossa relação não era tão amistosa assim; mas nossos encontros já tavam se tornando rotineiros).

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- Bom, aqui estamos nós otra vez _ disse ele. - Vocês me dão alguma droga? - Ah, Prometeu! Você consome um monte de drogas todos os dias. Aposto que qualqué coisa que você ingere tem algum conservante, corante... e isso é droga. Mas vamo falá sobre otro assunto. O que seria inferno pra você? Qual seria a condição mais torturante, mais insuportável? - Sei lá! Cê faz cada pergunta. - Sabe o que seria inferno pra mim? - Ué, pensei que a gente não tava aqui pra falá sobre você. - Sem sarcasmo... - Tá bom! _ soltei um riso espontâneo. - Inferno, pra mim, seria tá num lugar que tem tudo aquilo que você mais deseja; tudo. Todos os produtos mais fascinantes e sofisticados; as mulheres mais lindas e atraentes que você possa imaginar. Aí, você sente um desejo incontrolável crescendo dentro de você, mas, quando você vai tomá posse daquela beleza que você sente que te pertence, você percebe que vocês tão separados por uma espécie de vitrine intransponível. Pra mim, isso é o inferno. - Pra mim, também é mais ou menos isso. Você podia acrescentá o chero de Cheetos Bola. Aquele negócio chera igual merda. É impossível comer um só porque cê não consegue comê nenhum. Sabe aquelas experiência com armas não letais? Os cara podiam esquecê bala de borracha e gás lacrimogêneo; quando quisessem contê algum protesto, era só jogá Cheetos Bola no meio da multidão que todo mundo ia dispersá. - Eu tô falando sério, Prometeu. - Eu também. - Já tinham me falado sobre isso a teu respeito, é impossível sabê quando cê tá brincando e quando não tá. Então tá, mas sobre esse inferno que eu te falei? Ele tá aí pra muita gente. Toda aquela parcela da população que vê pela vitrine das lojas aquela infinidade de produtos que nunca vai pode tê; que vê pela TV aquela propaganda que seduz, mas que não satisfaz; que vê modelos perfeitos e perfeitas em outdoors e revistas, mas que parecem vivê num otro mundo. Você deve tê esquecido disso, Prometeu, porque você pode tê tudo (se alguém fez uma junção fonológica, formando a palavra tetudo (e ainda achou engraçado), parabéns!) (obs: fui irônico). Mas, lá fora, muita gente vive num inferno. É mais fácil aceitá que não existe paraíso nenhum do que sabê que alguém tem direito a ele e você não. O inferno é uma rua paralela ao paraíso, mas que nunca converge. - Que bonito, hein! Você devia sê escritor; essas frase de efeito funcionam em livro. - Sem ironia, Prometeu. A gente já passô da fase ataque-defesa; pelo menos, já devia tê passado. Eu e você somos corruptíveis, isso é inegável. Talvez a gente nem seja tão melhor que os otros quanto a nossa posição leva a crê. Mas a gente tem um conhecimento único, adquirido pela experiência. A gente conhece a raça humana como ninguém e, aí, tudo parece tão claro, tão lógico. O mundo se torna equacionável. O que parecia absurdo se torna um negócio tão assustadoramente racional. Surgem algumas leis, leis das quais ninguém pode fugi pelo simples fato de sê humano. E todos esses pólos: a esperança e a frustração; a ingenuidade e a malícia; a pureza e a corrupção; a utopia e a realidade... tudo o que adoramos ou odiamos tá separado por um abismo que cabe em duas palavras: teoria e prática, essa é toda a diferença. - É, eu tenho que admiti, cê tá certo, teoria e prática... se você conhece só a teoria, cê não sabe o tamanho da diferença. - 168 -

- E aí, mais no teu caso do que no meu, você consegue resposta pra aquelas pergunta que tanto atormentam; por exemplo, por que o poder vai pará sempre nas mãos das pessoas erradas? A resposta é simples... - Não existe pessoa certa pra tê o poder em mãos. - Isso. Tão simples, mas tão inacreditável se não for comprovado por experiência própria. Você pode pensá: “Não, se fosse comigo ia sê diferente”. Mas não ia. E, talvez, seja melhor até não consegui o poder e vivê sonhando do que comprová isso. Porque, independente de quem fosse, não ia sê diferente. E é por isso que o mundo tem sido assim desde o começo e vai sê até o fim; porque ele é composto de pessoas. - A diferença entre mim e as otras pessoas é que eu tive a teoria e a prática. - Exato. E você não pode sê condenado por isso, porque qualqué um no teu lugar ia tê feito a mesma coisa, ou pior. Qualqué um, Prometeu. Com uma quantia dessas, você é um semideus, você podia derrubá todo o olimpo. Virei no divã e peguei um cigarro e o isqueiro, que tavam em cima da mesinha. Comecei a fumar. - E você? Por que você insiste tanto em dizê que é mais poderoso que eu? Você tem mais dinhero ou o quê? - Não, Prometeu, atualmente, nenhuma pessoa no mundo tem mais dinhero que você. - Cê acabô de dizê que o dinhero é poder; como que cê pode sê mais poderoso que eu então? - Não é a hora. Vamo falá de otra coisa. Vamo falá sobre ordem e caos. É uma prática e um instinto contraditório esse negócio de ordem e caos. Se você derruba uma coisa no chão, você junta e põe no lugar; se você usa o banhero, você dá a discarga; quando você levanta pela manhã, cê arruma o cabelo. Parece que a ordem é um hábito. Mas, se você olha por otro ângulo, o caos é que parece tá no comando. Esgotos atirados em rios; lixo nuclear no mar; uma nova guerra pra mantê a economia; miséria extrema e ostentação lado a lado. O que que cê acha disso, Prometeu? - A ordem tá do poder pra baxo; do poder pra cima tá o caos. Ele ficou quieto. Se curvou até uma mesinha que tinha na frente dele e pegou alguma coisa. Se levantou e, de costas pra mim, acendeu um isqueiro. Quando ficou de frente outra vez, pude perceber pela brasa que ele devia tá fumando um cachimbo. - Quem são os verdaderos senhores desse mundo, Prometeu? Quem são? São os homens, ou, são as corporações? Qual é a média de vida de uma pessoa e qual é a de uma corporação? Nem Jesus Cristo tem o nome em tantos lugares quanto a Coca-Cola. Me diga, Prometeu, como funciona uma grande corporação? - Cê deve sabê. - Me diga você. - É claro que as corporações precisam de uma bateria, de um combustível. Esse combustível é a razão delas existirem. Todo mundo sabe disso, elas existem por causa das pessoas. Eu diria que o que sustenta as grandes corporações é, principalmente, a classe média. - Eu detesto a classe média. Parece um joguinho de palavras, mas ela é realmente composta por medíocres. Eu prefiro a ignorância completa da baxa do que esse meio termo da média. Me diga, pra que que a classe média serve? Não que a alta tenha alguma função importante. Mas a média só serve pra consumi; mais nada. Eu sei que você veio dela, eu também vim; mas a gente é uma exceção. Sei que você não deve se achá grande coisa e, às vezes, eu também não me acho; mas a gente ainda é o que há de melhor. A gente é a - 169 -

evolução da espécie, por isso, a gente tá no topo. Tô viajando demais, continua falando das corporações. - Se você sabe de tudo que cê diz que sabe, eu não tenho nenhuma novidade pra te contá. - Você sabe qual é o objetivo, eu quero ouvi de você. - Eu posso até sabê qual é o teu objetivo, mas não entendo. Também não vô ficá insistindo nessa história, vô falá logo o que cê qué ouvi. As táticas dessas corporações são bem mais elaboradas do que muita gente imagina. Se você qué vendê, a principal arma é a propaganda. Você precisa conferi status à marca, que aí o próprio consumidor faz propaganda pra você, e é ele quem paga por isso. Uma boa manera de dá status pra uma marca é usá uma celebridade. Cê usa um ideal de pessoa pra construí o produto ideal. Mas essa é a propaganda tradicional e qualqué um, por mais tapado que seja, no fundo, sabe como funciona. Você também pode colocá o nome da tua marca em toda parte, pra que a pessoa veja ele em qualqué lugar que olhe. Aí você enfia o teu produto no subconsciente de todo mundo, a tal teoria da Agulha Hipodérmica. O que define se alguma coisa vai vendê ou não, não é o sabor, não é a qualidade; o que define é a propaganda. É preciso sabê mexê com o ego, com a autoestima, é preciso sabê manipulá algumas carências. É preciso sintetizá a superioridade, o status, na forma de um produto. - Me fale um poco mais sobre os métodos menos convencionais. - Eu não sei muita coisa. Qualqué corporação precisa de uma equipe encarregada da publicidade. Eu não me envolvo muito com isso, mas sei que tem sempre um pessoal desenvolvendo novos métodos de propaganda. Acho que aquele velho apelo subliminar já ficô tão manjado que nem se enquadra mais nos “menos convencionais”. Mas a propaganda não é feita só no cinema, na TV, revista, outdoor, faz bastante tempo. O que eu sei é que um cara na rua, falado bem de um filme ou de um livro pra um amigo, ou pra namorada, pode não sê um cara comum. É, essa é uma das inovação. Tem gente sendo contratada pra conversá, vendendo diálogo. Esse pessoal sai caminhando, como pessoas normais, fazendo elogios a algum produto num tom de voz que os otros possam ouvi, mas não muito exagerado. Como você não sabe que o cara é contratado, que aquele é o trabalho dele, o poder de influência da propaganda acaba sendo maior. Já tem empresa contratando esse pessoal pra saí pela rua falando mal de concorrente. E tem mais, num futuro próximo, talvez isso até já aconteça agora, o teu amigo, falando bem pra você de um CD, de uma estréia no cinema, sei lá, de qualqué coisa, pode tá trabalhando pra alguma corporação. Eles vão controlá o que você conversa e vão condicioná cada vez mais a tua opinião. - Eles? Você não se inclui nisso? - Tá certo, nós vamo condicioná cada vez mais a opinião dos otros. Outra coisa que acontece é uma garrafa vazia de vinho em cima de uma mesa de um restaurante; uma mala parada na entrada de um hotel, esse tipo de coisa que parece fruto do acaso, mas que não é. Sempre tem uma marca sendo exposta. Peguei mais um cigarro. A brasa do cachimbo do Freud continuava acesa. - E você, Prometeu? _ disse ele. _ Como que você se sente, fazendo parte disso? - Eu? Eu continuo respirando e isso é tudo. Só espero que ninguém venha me julgá, porque todos nós fazemos parte disso. E ninguém nunca vai consegui mudá isso. É o poder. É o poder que fascina e que parece maravilhoso pra quem tem ele em mãos e que parece horrível pra quem tá distante dele. O poder nunca acaba, ele pode mudá de forma, mas nunca acaba.

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- Então, por que você diz que continua respirando e isso é tudo? Você tem o poder. Bilhões e bilhões de pessoas “sobrevivem” pra que você possa vivê. O teu proveito, o teu gozo, é o que justifica a existência deles. Se não tivé isso, a vida deles não têm sentido. A pequenez dos fracos só tem sentido diante da opulência dos grandes. Levá uma vida extraordinária, fantástica, é o maior favor que cê pode fazê pra humanidade. Olhe pra nossa espécie, Prometeu. Crianças perdidas na imensidão do espaço. Nossa filosofia não é e nunca será concreta, nossa ciência é e sempre será insuficiente. Somos gênios se comparados aos macacos e amebas comparados aos deuses que criamos. O que somos afinal? Gênios ou amebas? A tua obrigação era sê o ponto alto da espécie. Era ficá no mesmo patamar dos deuses; sê invejado secretamente pelas pessoas e ao mesmo tempo idolatrado por cada uma delas, porque você podia quebrá uma barrera imposta à raça. A tua obrigação era ressucitá a mitologia e mostrá aos deuses que você tem tudo, até a morte que eles não podem tê. “Somos grandes se comparados aos nossos ideais”; é isso que queremos dizê. Ninguém qué usá um macaco como referencial. - Meu Deus! _ falei rindo. _ Meu Deus! Primero, qual que é a nossa vantage em relação aos macaco, sabê que a gente é estúpido? Muita gente não tem nem consciência disso. Agora, essa outra locura de mitologia eu não ia nem comentá; mas acho que vô te apresentá um argumento ou dois. Se eu fosse tão poderoso, eu não ia tê obrigação nenhuma, nem a de sê poderoso. Outra questão é: você disse que era mais poderoso que eu, então, assume esse papel aí. - Eu sô mais poderoso sim; mas eu não posso me torná público. Esse é o preço do poder extremo, não pode ser reconhecido. Mas ele me confere o direito de exigi algumas coisas de você, ou melhor, algumas coisas não, uma coisa: que você desfrute do teu poder. - E se eu não quisé? - Aí é que tá, você qué, Prometeu; mas fica se reprimindo. Por isso, usá o teu poder não é nem uma obrigação, é um direito que tá sendo violado por você mesmo. - Sabe de uma coisa. Eu não sô tão troxa quanto você pensa. Eu sei que isso que você tá me falando é só um monte de bestera pra me dexá confuso. Pra mim não sabê o que você qué realmente. Você despeja um monte de discurso conflitante de um monte de manera conflitante. Aí, eu fico completamente perdido. Acertei? - Prometeu... Prometeu... Porra, eu passei o dia todo trabalhando nesse discurso, poder... macaco... deuses, enfim, tudo isso. Achei que tinha ficado bom. Mas, fala a verdade, não fico tão ruim assim. Segui o protocolo, investi na tua auto-estima, no teu ego; te coloquei como um protótipo de um deus. Era pra ter funcionado. Fala aí, quando que eu perdi você? - Aquele negócio de olimpo, mitologia, ter a morte invejada pelos deuses... sei lá! Clichê demais, eu esperava mais da tua parte. - O que você faria no meu lugar? - Bom, no teu lugar, eu ia procurá soltá uma bomba, uma coisa que me desestruturasse. Aí, quando eu não tivesse mais muita defesa, você podia vir com essa conversa mole e reerguê o meu moral. Dependendo do potencial da bomba, até esse negócio de olimpo podia colá. - Tá certo _ disse ele rindo. _ Então, vamo pará de enrolação e vamo falá do que interessa. - E o que interessa? - Apologia ao Caos. Acordei ainda assustado. Não podia acreditar naquilo que eu tinha ouvido. Não conseguia organizar as idéias. Não conseguia me concentrar. De repente, outro choque, outro - 171 -

impacto. Eu não tava mais na casa do condomínio. Eu tava no quarto do hotel. Agora, eu realmente tava perturbado; agora, eu realmente tava vulnerável. “Que merda é essa? _ pensei _ O cara falô Apologia ao Caos!”. Levantei. Eu precisava de um banho. Eu precisava sentir a água escorrendo pela minha cabeça. De repente, o já tradicional de jà vú: no chão, perto dos pés da cama, uma calça jeans jogada. Abri as cortinas. Nenhum outdoor; nenhuma mensagem estranha. Eu tava indo pro banheiro quando o meu hálito me fez lembrar de uma coisa fundamental. Cigarro. Era esse o gosto, o cheiro que tava impregnado na minha boca. Eu nunca tinha sido fumante, aquele hálito chegava a me deixar enjoado. Eu tinha feito aquilo de propósito, tinha fumado dois cigarros na noite anterior pra provar a mim mesmo que os fatos que tavam ocorrendo eram contínuos e reais. Sim, eu tinha estado com o Freud e tinha fumado dois cigarros. Um sonho não pode alterar o teu hálito. Os caras não eram tão espertos assim, eles tinham deixado uma brecha e eu soube aproveitar. Fui logo escovar os dentes, não agüentava aquele fedor na minha boca. Aproveitei e tomei um banho depois. Deixei a água quente escorrer por todo o meu corpo e me senti relaxado. Profundamente relaxado. Aquele vapor que me envolvia parecia criar uma nuvem de tranqüilidade. Acho que, na sociedade moderna, um dos lugares em que se pode encontrar mais paz é o banheiro, míseros instantes de isolamento. Esse é o nosso grande retiro. Mas todo esse meu alívio obviamente tinha sido causado por fatores psicológicos. Agora eu tinha alguma prova concreta (tá bom, não era lá “aquela prova”, mas já servia) de que aqueles encontros não eram nenhum tipo de alucinação. Não, eu não tava louco. Mesmo que toda a população do planeta dissesse o contrário, eu sabia que eu não tava (talvez essa seja uma das características da loucura). Saí do banheiro ainda secando o meu cabelo. Eu tava indo procurar alguma coisa pra eu vestir quando eu enxerguei. Tinha alguma coisa em cima do criado-mudo ao lado da minha cama. Confesso que, na hora em que eu bati o olho naquele negócio, eu não soube o que era. Mas, logo tudo fez sentido, ou melhor, tudo deixou de fazer sentido. Era um maço de cigarros. Me senti um palhaço completo. “Como essa merda veio pará aqui? _ foi a primeira coisa que pensei. _ Os cara não são tão burro como eu tinha pensado, eles devem tê colocado esse negócio aqui pra me dexá confuso”. Contei quantos cigarros tinha no maço, curiosamente, faltavam dois. Mas aquilo não ia me derrubar. A certeza da sanidade tava dentro da minha cabeça, não importava se todas as coisas gritavam: loucura! É claro que fiquei abalado, mas não tanto quanto poderia ter ficado. Eu sabia que eu não podia ficar parado, se eu ficasse naquele quarto, ia ficar pensando em várias coisas e talvez enlouquecesse de vez (se é que eu ainda não tava louco). Saí. Quando cheguei no térreo e passei pela recepção, achei que não viria boa coisa pela frente. Não reconheci nenhum dos recepcionistas; talvez fosse normal que os empregados se dividissem em algum tipo de turno, ou talvez não. Saí do hotel. Percebi outra coisa estranha, a barraquinha do Seu Omura tinha sumido. Há anos que ele ficava naquele ponto, agora, tinha desaparecido. Eu precisava ir no bar, nem que fosse só pra ler aquela frase na porta do banheiro, ou ver se aquela toalha com a cara do Einstein ainda tava lá. Enquanto eu caminhava, tive outra vez a sensação esquisita de que todos tavam olhando pra mim. Pude sentir o peso de todos aqueles olhares sobre o meu corpo. Parei e conferi se eu não tava só de cueca ou alguma coisa do tipo. Não achei nada de anormal. Continuei andando. De repente, outra surpresa. No lugar em que era pra ficar o bar, tinha uma loja de roupas. Me deparei com uma vitrine cheia de ternos e vestidos. Definitivamente, alguma coisa estranha tava acontecendo. Andei mais um pouco pra conferir se eu tava no lugar certo. Todos os outros estabelecimentos continuavam os mesmos; só - 172 -

aquele bar tinha mudado da noite pro dia. Entrei naquela loja pra tentar descobrir o que tinha acontecido (mesmo sem muita esperança de descobrir alguma coisa). - Bom dia! Posso ajudá-lo? _ disse a atendente com um sorriso no rosto. - Bom dia. Na verdade, eu só queria uma informação. O que aconteceu com aquele barzinho que ficava aqui? - Barzinho?! Acho que o senhor tá enganado. Essa loja funciona aqui há mais de um ano. “Que novidade! _ pensei. _ A mesma balela de sempre”. O que mais eu podia dizer pra aquela mulher? Não adiantaria nada eu continuar insistindo. Xingar ela ou dizer que eu sabia que tava sendo enganado também não resolveria o problema (a propósito, qual é a vantagem de saber que está sendo enganado. Saber que você é um trouxa faz de você menos trouxa ou mais trouxa ainda? De qualquer forma, eu prefiro saber). No final, acabei dizendo: - Brigado. Saí da loja. Segui andando sem saber (e sem querer saber) pra onde ia. De repente, não sei por que, me senti mais aliviado. Acho que um pensamento do tipo: “Que se dane! O que que pode acontecê comigo? O que que pode sê a pior coisa que pode me acontecê?” passou pela minha cabeça. Acabei percebendo que eu não tinha muita coisa a perder. Tinha dinheiro; tinha muito dinheiro. Mas a verdade é que, se eu perdesse tudo, não sentiria muita falta. Só uma coisa não saía da minha cabeça, ele tinha dito: “Apologia ao Caos”. Não tinha me afastado muito da loja quando senti uma batida no meu ombro. Eu tava andando distraído e acabei me chocando com alguém. Era uma mulher. Ela juntava as sacolas dela que tinham caído no chão, algumas roupas tinham caído pra fora. Me abaixei e comecei a juntar também. Seria esse um exemplo de caos e ordem dos quais o Freud tinha falado? Sei lá. - Desculpa. Não sei como fui me batê em você... _ falei, num pedido de desculpas quase involuntário. - Prometeu? Ela ergueu o rosto. Eu não pude acreditar no que eu vi. Helena. - Helena! - Não. Desculpa. O senhor deve tá me confundindo; mas eu sô tua fã. Eu te vi pela TV, aí, comprei o teu livro e adorei. - Pára, por favor, pára com isso, Helena. Eu sei que é você. Por que você tá fazendo isso? Ela desviou o olhar como se dissesse: “Sô eu mesma; eu não queria fazê isso”. Mas ela disse: - É melhor eu í andando, o senhor tá muito confuso. Ela deu as costas e seguiu andando. Eu segurei o braço dela. - Por quê? - Desculpa, eu preciso í. Agora, eu era a personificação da apatia. Eu não esperava que a Helena também tivesse envolvida naquilo. Mas o Freud tinha falado (pelo menos, dizia que tinha falado) com muitas pessoas que eu conhecia e talvez tivesse pressionando ela de alguma forma. Ou talvez ela quisesse algum tipo de vingança pelo que eu tinha feito. Qual era o objetivo daquilo? Sem dúvida, era me deixar confuso, perturbado, mas por quê? Qual era o ponto exato no qual eles queriam chegar? A sensação de ver ela outra vez foi bastante estranha. Me senti alegre pelo encontro, mas me senti um pouco revoltado por ela insistir que eu tava enganado.

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XV - Acorde, Prometeu, nosso tempo é precioso _ disse uma voz já familiar. Abri os olhos, tava um pouco perdido, mas logo reconheci o ambiente. - E então, já tava com saudade? _ continuou ele. - Já. Eu ia te pedi uma foto, mas você não mostra a cara. - Hoje vô podê te dá as respostas que você tanto queria. - Por que aquele encontro com a Helena ontem? - Helena... que Helena? Ele riu.

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- Brincadera. Você gostô de revê ela? - Teria sido ótimo, se ela não tivesse insistido que não era ela, fazendo aquilo tudo parecê ridículo. - Ah, Prometeu! Tudo isso é tão absurdo! Tudo isso é tão sem sentido! Você não acha? Aquilo que é a razão da minha vida hoje, amanhã vai sê a prova de que a minha vida não tem razão. Eu te compreendo tão bem, Prometeu. Sei que no fundo você deve tá feliz por essa locura toda tá acontecendo na tua vida. Pelo menos, pode tê uma nova surpresa escondida em qualqué lugar; pelo menos, os dias não são mais tão previsíveis. Antigamente, na tua juventude, você podia sê perigoso porque não tinha nada a perdê; mas agora, você é muito mais perigoso porque não tem nada a ganhá. - Já que você disse que hoje é o dia de esclarecê as coisas, você podia começá dizendo quem você é afinal. Ah, antes que eu me esqueça, gostei daquela do cigarro. - Qual? - Aquela de colocá um maço faltando dois cigarro do lado da minha cabecera. - Ah, sim. A gente precisa pensá em tudo. - Tá, mas chega de enrolá. Abre o jogo aí, fala quem você é. - Tá bom. Tá preparado? Lá vai, eu sô... eu sô o Freud. Momento em que o silêncio ocupou o lugar que, supostamente, deveria pertencer ao riso. - Tá, não teve graça nenhuma _ admitiu ele. - Eu preciso dizê alguma coisa? Continua tentando, você é engraçado, só falta aquele feeling pra percebê o momento certo. Pensando melhor, não leva isso que eu falei a sério, você não é engraçado não. Pensando bem, você é sem graça pra caramba! - Calma aí, também não é bem assim. “Não sê engraçado” é uma coisa, “sê sem graça” é otra e “sê sem graça pra caramba” é uma conclusão muito precipitada da tua parte. - Não, essa conclusão não tem nada de precipitada. Por exemplo, essa exposição sobre diferentes categorias..., sei lá o que é isso que cê acabô de fazê, é típico do cara “sem graça pra caramba”. Muita gente confunde isso. Discuti o que é engraçado e o que não é, é uma coisa muito sem graça. Porque, a partir do momento que você aborda o tema, você se coloca como um expert no assunto, ou seja, o cara “engraçado pra caramba”, o teu oposto. - Já que a gente entrô nesse tema, qual é a tua concepção de “cara sem graça” e “cara sem graça pra caramba”? - Eu já disse que discuti sobre isso não tem graça nenhuma, mas, se você insiste... o “cara sem graça” geralmente é um dos caras mais engraçados que existem. Calma, eu explico, o “cara sem graça” é aquele cara completamente sem noção; aquele que conta o tipo de piada que você fica esperando pelo final, quando, na verdade, ela já acabô; aquele que solta a “piada” (sinalizei com os dedos) no momento mais inoportuno possível, “piada” entre aspas porque só é piada pra ele; aquele que tá sempre tentando parecê engraçado e, justamente pela falta de habilidade pra consegui, acaba conseguindo. Ele é tão sem graça que acaba sendo muito engraçado. - E o “sem graça pra caramba”? - O “sem graça pra caramba” é aquele que se acha o cara mais engraçado do mundo. Ele já chega pra contá a piada dando risada, num estilo: “Nossa! Essa é muito boa mesmo”. As piada dele nunca são simples ou curta. São sempre longa e bem elaborada. São tão longas que você se desconcentra; envolvem tantos personagens que você não sabe mais quem é quem. Quando a piada acaba, você não lembra direito do começo, que era essencial pra graça do negócio. O “cara sem graça pra caramba” é aquele que vai fundo nas atuações, ele muda a - 175 -

voz quando vai fazê personagens diferentes, se sente como se tivesse numa peça de teatro. Ao contrário do “sem graça”, ele nunca conta a piada num momento completamente inoportuno, é sempre um momento “quase” oportuno. Quando ele chega num grupo, já fica aquele climinha meio pesado e, no final, todo mundo dá uma risadinha sem graça da piada dele. Resumindo, as piadas dele não são tão sem graça que chegam a ser engraçadas e nem são tão boas pra te fazê ri de verdade. O “cara sem graça pra caramba” é um meio termo. - E você acha que eu tô classificado nesse grupo? - Talvez eu tenha sido um poco drástico, eu não tenho base suficiente pra te enquadrá nesse ou naquele grupo. - Bom, de qualqué manera, brigado pela explicação. - Disponha. Não, não disponha não. É um saco explicá esse tipo de coisa. E eu nem sei se eu tenho razão mesmo. - Pra mim, foi convincente. - Então vai. Fala aí, quem você é afinal? - Tá preparado? Então, lá vai: Eu Sô o Freud. Eu tive que rir. O cara tinha me surpreendido. - É, nessa você mandô bem. Insisti numa piada infeliz, às vezes, funciona. Talvez você tenha aquele feeling. - Brigado. Só espero que, quando você soubé quem eu sô, isso não atrapalhe a nossa relação. - Que relação? - Porra, e eu que pensei que éramos amigos _ ironizou ele. - Não é você que disse que o nosso tempo é precioso? Então aproveite e faça alguma coisa útil. - Desse jeito, você já tá me magoando; mas, como já deu pra dá uma discontraída, vamo fala sério então. Sei que vai sê um choque pra você, mas eu não sô Freud. Eu sô o Imperador, dessa vez, eu não to brincando. Os pocos que me conhecem me chamam assim; essa é a minha função, proteger o império. “Que império?”, você deve tá pensando. Quais são os limites do meu império? O meu império é o mundo, Prometeu. Em qualqué lugar que tenha uma garrafa de vidro ou descartável; qualqué lugar que tenha um produto de origem petroquímica, que tenha qualqué produto sintético, nesse lugar tá o meu império. Onde tivé uma linha telefônica, uma lâmpada, um livro, um CD, tá o meu império. Onde tivé uma moeda, uma peça de ropa, uma escola ou uma cadeia, lá tá o meu império. O meu império tá no spray que picha uma palavra de ódio contra o que eu represento, e no muro que é pichado pelo spray. O meu império tá na ordem e na desordem; no palácio e na favela; no templo e no prostíbulo. Prometeu, onde tivé uma pessoa, tá o meu império. Você entende agora por que eu disse que tava acima de você? Só há uma coisa no mundo que tem mais poder do que eu, o meu império. Porque César pode morrê, mas Roma precisa continuá. - Do que cê tá falando? Que merda é essa? - Você sabe, Prometeu, eu sei que você já entendeu. Parece doido, mas eu vivo pra isso, pra mantê as coisas como elas tão; pra protegê o que foi conquistado. Não tem mais nada pra conquistá. Agora é só evitá a autodestruição, conservá algumas utopias, fazê uma intervenção ou outra quando for necessário, e pronto! Fácil... muito fácil. Mas o excesso de confiança também é perigoso, muitos já caíram por causa disso. É preciso sabê que tudo é possível. Por isso eu tô aqui, Prometeu, porque tudo é possível... - Eu não tô entendendo. Cê tá de sacanage comigo, não tá? Que império é esse...?

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- Eu sei o que tá se passando na tua cabeça; você já sabe o que é, mas não consegue acreditá. E compreendo que seja difícil de acreditá, se eu tivesse na tua posição, ou em qualqué otra posição que não a minha, eu também não acreditaria. Mas é isso. Por incrível que pareça, é isso. O meu império não é um estado, não é um território, não é uma corporação. O meu império é um sistema... Eu era a estupefação personificada. Era a incredulidade se transformando em espanto. Era o cientista encontrando Deus, ou o sacerdote se rendendo ao ceticismo. Era um sujeito, caminhando numa picada no meio da floresta mais deserta e, de repente, dando de cara com um trem bala. Numa reação quase que involuntária, só consegui dizer uma palavra: - Capitalismo. Ele riu. Eu não podia ver o rosto dele, mas tive certeza que ele riu naquele momento. Um silêncio que não deve ter durado nem dez segundos, mas que foi suficiente pra me fazer transbordar de ansiedade. - Capitalismo. Isso mesmo. Esse é o meu império. Agora, você sabe por que eu tô aqui? - Sei. Qué dizê, acho que sei. Deve sê pela minha conduta na juventude, mas nada disso tem lógica. Esse negócio de Imperador... é uma coisa muito fantástica, muito absurda. Se existisse mesmo, eu saberia. Eu tô envolvido demais nisso tudo pra não sabê de uma coisa dessas. - Pouquíssimos, mas pouquíssimos mesmo, sabem que eu existo. E, os que sabem, nunca diriam nada a meu respeito. Por várias razões. Primero, a grande maioria desses pouquíssimos que conhecem a minha existência trabalha pra mim. Os que não trabalham têm medo de mim porque sabem que eu controlo tudo, além disso, também tem um poco de autopreservação, de medo de passá por ridículo. Imagine você contando uma história dessas, de Imperador, de conspiração, de manipulação... quem ia acreditá? E, mesmo que alguém acreditasse, quem ia podê te ajudá? Eu entendia o que ele tava querendo dizer, lutar contra ele era tão produtivo quanto lutar contra o sistema que ele representava. - Mas... mas o que que cê faz afinal? - Eu já disse, eu protejo o império, de várias formas. Eu estar aqui, conversando com você, é uma delas. Existem otras também. Muitas otras. Pra fazê o que eu faço, é preciso rompê com velhos conceitos de moral, de ética. É preciso analisá tudo com clareza racional, alguns chamam isso de frieza. Eu confesso que o meu dever e sentimentalismo não combinam. Por exemplo, algumas vezes, eu, com a ajuda de algumas pessoas, preciso arquitetá um suposto ataque terrorista. Eu também tenho que eliminá possíveis ameaças, se eu fosse o Kennedy, eu não andaria num conversível, cê me entende? Algumas vezes, eu preciso desencadeá uma nova guerra. Por quê? Porque há uma indústria bélica que precisa sê mantida. Tudo que se produz precisa ser usado. A indústria farmacêutica é outro exemplo. De vez em quando, é preciso criá uma doença nova. A cura definitiva nunca é um bom negócio; é melhor produzi remédios que ajudem no combate, que estabilizem a doença... A AIDS, por exemplo, é claro que, quando a gente criô ela, a gente já tinha a cura. Mas o que é mais produtivo, curá o indivíduo ou fazê ele consumi coquetéis durante anos? Com o câncer não é muito diferente... O que é tecnologia de ponta pra você? Você, e todos os otros, só tem conhecimento da tecnologia que eu permito que vocês conheçam. Eu seleciono o que pode se torná de conhecimento público, e quando pode se torná de conhecimento público. Enquanto vocês tão descobrindo a roda, os ônibus espaciais já me parecem antiquados. E é justamente isso, essa diferença de informação, de conhecimento, que me mantém no poder. Você sabe - 177 -

quem é Deus, Prometeu? Deus é um cara qualqué, desses que tem aos monte aí na rua, com uma metralhadora no período paleolítico. Você me entende? Como vocês vão me enfrentá usando tacapes? Uma vantagem, um acesso a uma coisa que ninguém tem... essa é a diferença. Eu não podia acreditar no que eu tava ouvindo. Eu só podia tá louco mesmo. - Isso tudo é bestera. Como que eu vô podê sabê se é verdade? - É só enxergá os fatos. Quem ia podê fazê o que bem entendesse com o cara mais rico do mundo? Olha tudo que eu fiz, Prometeu, você teve nas minhas mãos o tempo todo. Eu controlo todas as pessoas ao teu redor. Até o teu amigo da barraquinha de cachorro-quente. Se for preciso, eu posso construí uma cidade intera em um dia... o que eu fiz até agora foi fácil. Então, eu fiz a pergunta que eu mais temia, mas que era inevitável: - O que que cê qué de mim afinal? - Você sabe, Prometeu, você sempre soube... Outra vez, acordei no quarto do hotel. Sinceramente, eu não sabia o que pensar, nem o que sentir. Dessa vez, não levantei. Peguei o telefone e liguei pra recepção. - Pois não, senhor, em que posso ajudá-lo? - Oi, eu queria que você me mandasse um Valium. - Infelizmente, não temos medicamentos. - Felizmente, tem umas quinhentas farmácia aqui por perto. Dá um jeito de consegui isso pra mim que você vai ganhá a maior gorjeta da tua vida. - Senhor... infelizmente... - Traz logo o remédio. Eu sei que pra ferrá comigo e tentá me dexá doido vocês são esperto, use um poco dessa esperteza pra consegui arranjá um Valium. Brigado! Desliguei antes que o cara começasse com aquela história de: “não sei do que o senhor tá falando...”. Pior do que te fazerem de trouxa, é te fazerem de trouxa e depois negarem que te fizeram de trouxa. Se te enganam e depois negam que te enganaram, você tá sendo enganado duas vezes. Mas, também, eu nem sabia se o cara tava envolvido naquilo tudo. Eu pedi um Valium porque eu tava querendo apagar. Não tava a fim de ficar pensando, cogitando hipóteses. E a única maneira de evitar isso era apagando. Talvez, se eu dormisse, acordasse outra vez naquela sala com o Freud (eu podia tá adiantando o trabalho deles) e resolvesse de uma vez por todas o que ainda tava pendente. A nossa conversa sempre era interrompida num ponto decisivo, no clímax, e eu tinha certeza que isso era premeditado. Mas, agora, não tinha (pelo menos, eu pensava assim) muita coisa pra resolver. Finalmente, ele tinha dito quem ele era. Era difícil de acreditar, mas, que outra coisa ele poderia ser? Aquele negócio de Imperador soava de maneira absurda, ainda assim, parecia ser a única coisa que se encaixava. Eu não conseguia imaginar quem mais ele poderia ser (aliás, nem tentava). Eu tava ansioso como poucas vezes estive em toda a minha vida. Eu queria pôr um fim naquele negócio com o Freud (Freud ou Imperador?), não agüentava mais aquele mistério, aquele suspense, aquele jogo que parecia tratar de assuntos da maior seriedade com um ar de deboche. O que mais me irritava era aquela tranqüilidade dele, como se tivesse tudo sob controle; como se tivesse apenas brincando comigo. “Você não é uma ameaça real, você não pode me atingir”, era isso que eu ouvia naquele riso descompromissado, naquele ar de descaso. Eu não via a hora do cara chegar com o meu Valium. Acho que, talvez, de alguma forma, a consciência possa te proporcionar algum prazer, algum deleite, mas não tenho - 178 -

dúvida de que, na maior parte do tempo, ela é o teu carrasco. Sinceramente, se fosse colocar numa balança, de um lado o sofrimento, do outro o prazer, não sei se a consciência valeria a pena. Acho que ela é, e sempre foi, um dos maiores paradoxos da humanidade, um caso de amor e ódio. Se você tem ela, ela parece uma pedra no sapato, um pé no saco, e você tá sempre procurando um jeito de se livrar dela; mas todo mundo treme diante da possibilidade de perdê-la em definitivo. Por isso tanta gente tem medo da morte. Esse negócio de “vida após a morte”, na maioria dos casos, sugere que você vai continuar tendo uma consciência, uma personalidade. Eu juro, não tenho medo que a minha consciência acabe um dia; se ela tiver que acabar, fazer o quê? Também não posso dizer que tô livre do paradoxo, por mais que eu pense sobre o assunto, não consigo decidir se é melhor ter uma consciência e sofrer com isso, ou não ter identidade alguma. A verdade é que, como quase todo mundo (eu ia colocar “todo mundo”, mas não posso falar pelos outros; pelo menos, não por todos eles), eu amo e odeio a minha consciência. Não sei direito o que eu pensei até o meu comprimido chegar, não conseguia me concentrar direito em nada e me recusava a ligar a merda da televisão. Tem velhos hábitos impossíveis de se quebrar, o meu repúdio pela TV era um deles. Pode até ser uma visão preconceituosa, mas pra mim, a televisão só passa lixo, e se alguma coisa não é lixo, acaba virando quando passa na TV. Algumas coisas são tão porcas que você ainda pode dar alguma risada. Mas a televisão consegue atingir uma porquice além do humanamente concebível (alguma coisa do tipo; a coisa mais porca do mundo elevada à milésima potência), que chega a te gerar um mal estar. Eu não tenho dúvidas de que alguns programas de TV fazem mal à saúde. Acho que algum dia, num futuro distante, eles vão ser analisados com repúdio por gerações futuras, comparados com a propaganda nazista ou qualquer outra forma de lavagem cerebral. Ou, talvez daqui a cem ou duzentos anos, as pessoas apenas continuem sentando na frente da TV com um pacote de pipocas (ou de algum salgadinho ainda mais fedorento do que esses que já existem hoje), rindo feito uma hiena de toda aquela porcaria sem graça, que alguns se atrevem a chamar de entretenimento. Tocaram a campainha. Quando abri a porta, quase não acreditei. Era o George W. Bush, só de samba-canção e com um palito-de-dente na boca; não era só isso, pasmem, ele tinha a cara do Fidel tatuada no peito. Tá bom, não era o Bush. Era o cara com o meu Valium. Peguei a caixinha e agradeci. Ele ficou parado me olhando. Lembrei da gorjeta. Cada dia, eu tô mais convicto de que não existem gentilezas. Se alguém tá sendo gentil, é porque quer alguma coisa. - Ah, a gorjeta... só um poco. Por que as pessoas nunca pedem diretamente a gorjeta ou coisas do gênero (sei lá o que é uma coisa do gênero das gorjetas!)? Elas ficam paradas, repetindo mentalmente: “gorjeta, gorjeta, gorjeta...”, como se fosse um mantra, mas nunca falam em voz alta: “Cadê a minha gorjeta?”. Alguém deve ter pensado: “Pedir a gorjeta não é de bom tom, é algo rude”. Tá, e fazer algum serviço pensando exclusivamente na gorjeta é de bom tom? Ficar parado, com uma cara que quer dizer: “E aí, seu filho da mãe, cadê a porra da gorjeta?”, não é algo rude? Eu detesto todos esses contratos sociais, eu detesto o politicamente correto, estilo: “Não arrote na mesa, mas seja o vômito do mundo”. Depois de passar algum tempo procurando a minha carteira, dei a gorjeta pro cara. Como eu tinha prometido, foi uma boa gorjeta. O suficiente pra despertar um sorriso naquela cara indiferente, o que acabou me deixando ainda mais revoltado. Fechei a porta antes que ele encerrasse o seu “simpático” discurso de gratidão.

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Peguei a cartela e tirei três comprimidos. Queria acelerar um pouco o processo. Engoli um de cada vez. Eu ainda tava em jejum. Eram onze e trinta e cinco da manhã. De repente, senti uma espécie de frio. Peguei uma coberta no armário e voltei a deitar. Pensei em ligar pra alguém, só pra falar alguma coisa, qualquer coisa. Pra quem eu poderia ligar pra conversar sobre alguma coisa que não fosse negócios? A resposta era simples e imediata: ninguém. Eu não tinha amigos, não mais. Quanto a minha família, já fazia um bom tempo que eu não falava com o meu pai e a minha mãe. O dinheiro muda as pessoas, eu não tinha mais tempo, e eles não tinham mais tempo. A minha mãe devia tá ocupada, comprando móveis novos pra casa, ou em algum chá, discutindo falsa caridade com um monte de peruas. O meu pai devia tá jogando golfe, ou então, andando de lancha, quem sabe ele tivesse na sauna, conversando sobre suas últimas aquisições com outros “senhores ocupados”. No começo, eles nem quiseram saber de onde o dinheiro tinha surgido, ficaram encantados com a transição do “querer” para o “poder”. Não culpo eles, quem não ficaria? Eu não tinha amigos, nem namorada, e não sentia vontade de ligar para os meus pais. Ali, naquele quarto, me sentia sozinho. Completamente sozinho. Enquanto o remédio não fazia efeito, lembrei da Helena. Lembrei do meu último encontro com ela (pelo menos, meu suposto último encontro) e me senti traído. Mas eu só me senti assim porque era ela; porque, pra mim, ela era a imagem da pessoa ideal. Porque era sobre ela que eu mais depositei expectativas. Sempre fazemos isso, castigamos justamente as pessoas que mais amamos com as nossas expectativas. Eu só queria que ela tivesse ali comigo, sem culpa, rancor ou promessas. Eu só queria sentir o calor de um corpo perto do meu, então, eu dormiria tranqüilo. Dormiria por mil anos, acordando de vez em quando, só pra ver que ela continuava ali, bem perto de mim. Talvez, se eu visse ela dormindo, eu ficasse tão fascinado que não conseguiria dormir nunca mais. Ficaria observando ela pra sempre. Mas eu não tinha Helena, nem calor. Eu só tinha Valium. O remédio não demorou muito pra fazer efeito. Quando acordei, percebi que parte do meu plano tinha dado certo, mas boa parte das coisas não tinham saído como eu esperava. Pelo que eu pude perceber, aquela só podia ser a já conhecida sala na qual eu tinha as minhas conversas com o Freud. Só que, dessa vez, tinha algumas alterações. Eu tava deitado num negócio estofado, bem parecido com aquele divã (talvez até fosse o divã no qual eu sempre ficava), mas os meus pés e as minhas mãos tavam amarrados. Eu não conseguia me mexer, e nem tinha forças pra tentar. A minha cabeça parecia que ia explodir a qualquer momento. Eu sentia um pouco de náusea também. Tinha quase certeza que tinham me aplicado alguma droga. O ambiente tava muito mais escuro do que de costume. Eu não conseguia enxergar quase nada. De repente, tudo começou a girar e senti uma enorme vontade de vomitar. Mas o vômito não veio. Ouvi passos. Enxerguei um ponto branco, que foi ficando cada vez maior. Quando chegou bem perto, percebi que era um cara de guarda-pó. Ele tinha uma barba meio grisalha e acho que usava óculos. Ele colocou nos meus olhos uma venda parecida com aquelas que eles usam nos aviões. - Não se preocupe, tudo vai ficá bem. Não consegui dizer nada. Meus pensamentos tavam tão embaralhados que eu não era capaz nem de formular uma pergunta. Pela voz, pude perceber que ele não era o Freud, ou melhor, era bem pouco provável que fosse, mas eu não podia ter certeza de nada. Depois de me dizer aquela frase “tranqüilizadora”, o cara me colocou uma mordaça. Aquilo me pareceu meio contraditório, não parece que “tudo vai ficá bem” quando você é amordaçado. Ouvi o som dos passos do cara se afastando. Alimentei uma vã esperança de que a náusea e a - 180 -

sensação de estar rodando cessassem, mas, pelo contrário, elas só ficaram mais intensas. Perdi a noção do tempo. Não sei quanto tempo fiquei ali, sem manter contato com ninguém. Não sei se foram cinco horas ou cinco minutos. Sei que aquela ânsia, provocada pela vontade de vomitar, aliada à sensação de angústia e impotência por eu estar vendado, amordaçado e amarrado, provocou uma das piores sensações que já experimentei. Pelo menos eu podia ouvir, mas não tinha certeza de que isso era um bom sinal. Definitivamente, a consciência, na maioria das vezes, era um carrasco. Acho que eu daria qualquer coisa pra me livrar dela naquele momento. De novo, eu tive a impressão de ouvir passos. Dessa vez, parecia ser mais de uma pessoa. Os sons pareciam vir tanto do meu lado direito quanto do esquerdo. Inutilmente, eu virava a minha cabeça pra ambos os lados. O barulho foi ficando cada vez mais próximo e nítido. Eu não tinha dúvidas, quem quer que fosse, tava vindo até mim. De repente, silêncio. O som parou. Mas eu sentia uma presença; sabia que eu não tava sozinho. Foi então que uma frase entrou como um punhal pelos meus ouvidos. - Por que você me traiu, Prometeu? _ uma voz sussurrou no meu ouvido. Eu sabia que voz era aquela. Não tinha como confundir. Era a voz da Helena. Ouvi um outro sussurro, no meu outro ouvido. - Por que você me traiu, Prometeu? Houve um breve momento de dúvida, mas reconheci aquela voz também. Era o Robs. - Por que você me traiu, Prometeu?... - Por que você me traiu, Prometeu?... - Por que você me traiu, Prometeu?... Essa frase se repetiu várias vezes, dita por muitas vozes diferentes. Eu reconhecia algumas delas, de alguns antigos membros do MS2 (inclusive a do Indy), acho que também ouvi a voz da Julia (aquela moça que trabalhava no condomínio) e de algumas outras pessoas que trabalhavam pra mim. Não sei... num determinado momento, tive a impressão de ter escutado até uma voz de criança. Às vezes, a frase era berrada em gritos histéricos, ou sussurrada num murmúrio de lamentação. Até que, de repente, como uma banda que cessa num gesto de um regente, a frase parou de ser repetida, dando lugar ao silêncio completo. Também não faço idéia de quanto tempo durou esse silêncio. - Por que você me traiu, Prometeu? _ tornou a dizer a voz da Helena, mas não era exatamente uma pergunta, parecia mais uma lamentação, transbordando de tristeza _ Eu te amei tanto... _ ela falava baixo, bem perto de mim, eu podia sentir o seu hálito morno e suave _ eu confiei tanto em você... Sabe, você não fazia parte de mim como se fosse um membro do meu corpo, porque é possível viver com amputações. Eu fazia parte de você como o membro de um corpo. Agora, me diga, como um membro amputado pode continuá vivendo? Não pode. Um membro amputado sangra, apodrece e se decompõe por completo. Eu tentei te substituí... Prozac, Diazepam, Lithium, álcool, maconha, mescalina, cocaína, morfina, heroína... mas eu precisava de uma droga mais potente. Eu precisava da droga que dá a maior sensação de êxtase e satisfação que eu já experimentei, mas que também é a mais destruidora de todas, a mais nociva de todas. O nome dessa droga é Prometeu; e eu fui destruída pela abstinência. Eu queria dizer alguma coisa. Eu queria gritar alguma coisa. Qualquer coisa. Eu não queria me defender; eu não podia me defender. Eu só podia dizer: “Eu sô o lixo do mundo. Desculpa por ter feito parte da tua vida. Ou melhor, não desculpa não; eu mereço carregá a culpa pelo resto da minha vida”. Mas eu não podia dizer nada. Tinha aquela maldita mordaça tapando a minha boca. - 181 -

- Eu não culpo você, Prometeu, porque a culpa não é tua. A droga não pode assumi a culpa pelo viciado, a culpa é do dependente, que é fraco e precisa se ampará em alguma coisa pra suportá a vida. Aquela venda tava úmida, molhada pelas minhas lágrimas. Lágrimas de angústia, de impotência, de dor e de amor (se é que há diferença entre essas duas últimas palavras). As lágrimas que deslizavam pelo rosto se misturavam com um suor desesperado. E foi na minha testa suada que eu senti o macio e inconfundível contato dos lábios da Helena. Eu queria que ela tragasse a minha alma naquele beijo. Se eu era mesmo uma droga, queria ser consumido ali mesmo, nos lábios dela. Queria proporcionar a ela um último êxtase. - Eu amo você, Prometeu..., até o fim. Essa frase despertou sensações diversas em mim. Parte de mim se sentiu confortada, a Helena continuava me amando, apesar de tudo, ela ainda me amava. Talvez seja um sentimento meio egoísta, uma espécie de alívio que você sente quando sabe que é correspondido. Por outro lado, me senti atormentado pela culpa. Eu sabia que era esse amor que ela sentia por mim o responsável pelo sofrimento dela. - Por que você me traiu, Prometeu? Por que você traiu todos nós? _ era o Robs. _ Tudo acabô quando você saiu. Podia não significá nada pra você, mas pra muitos daqueles cara, o MS2 era uma razão pra tá vivo. Era um sentido pra vida deles, talvez até o único sentido. E o que a gente esperava de você?... A gente esperava que você resistisse até o fim, qualqué fim. Pra gente, você não ia desisti nunca, ia continuá sozinho se fosse preciso. Mas... mas você se vendeu, Prometeu! Você se vendeu! _ dava pra perceber uma certa incredulidade na voz dele. _ É por isso, por causa de gente como você que o mundo tá essa merda e vai continuá assim pra sempre. Por causa dessa porra de gente que tem um preço... e eu que pensava que você era melhor que eu! Eu posso sê um merda, mas você ainda é pior. Se eu sô um merda, você não é nem um peido. Você não tem idéia do que você significava pra gente, e não ia querê sabê o que cê significa agora. Depois, foi a vez do Indy: - Pra mim, você era “o cara”, Prometeu. Antes de te conhecê, eu achava que eu não conseguia mais sê fã de ninguém; achava que esse negócio de ídolo era coisa de adolescente babaca, ou de velho saudosista. Mas, por um tempo, cê foi meu ídolo. As coisa que cê fazia, as tuas idéia, eram simples, mas impressionante. Na verdade, você era o líder daquele grupo, mas parecia sê o único que não sabia disso. E a tua falta de auto-estima acabava se tornando um negócio carismático, porque cê não sabia o quanto cê era importante; porque não tinha um pingo de arrogância em você. Eu entrei no MS2 meio disiludido, entrei mais pra tê algum entretenimento, mas, depois que eu tava lá dentro, eu achei que a gente podia fazê um negócio grande, senti que a gente podia mudá alguma coisa. Só que, como sempre, teve a tão conhecida “falha humana”... Um novo silêncio e seguiram-se frases desconexas: “Por que você me traiu?” “Falá sobre mim? Tudo que acontece comigo é tão chato, tão previsível...” “Alguns são leões, alguns são antílopes. E eu?” “Molotóv!” “Sei que parece meio superficial, mas eu sempre gostei de moda” “Seu Prometeu?! Quase não reconheci o senhor sem o terno” “Esse mundo intero ainda seria poco pra você, da minha parte, eu entrego o mundo pra você; porque eu confio em você, e só em você” “O nosso segundo útero foi uma lata de lixo... ódio dessa Nova Roma” - 182 -

“O teu faturamento aumentô 20% só no ultimo mês... cê já é um dos homens mais ricos do mundo!” “Se você tivesse colocado uma bala na cabeça quando você ganhô o teu primero milhão, eu ainda iria no teu enterro” “Eu sei que eu sô só uma menina meio boba... eu te amo, Prometeu” “Nós te amamos, Prometeu!” “Eu te odeio, Prometeu” “Nós te odiamos, Prometeu!” Eu suava mais do que nunca. Acabei deixando os meus instintos aflorarem, lutei pra escapar dos cintos que me prendiam, mesmo sabendo que não conseguiria; lutei pra gritar alguma coisa, mesmo sabendo que não conseguiria. Persisti um pouco, mas logo me rendi. Eu tava exausto, angustiado, perturbado. Depois de outro período de silêncio, o Freud começou a falar: - Calma... eles já foram. Foram pra nunca mais voltá, foram pra sempre. Por um momento, achei que ele fosse me libertar daquela droga daquela mordaça e daquela venda; mas não, ele continuou falando: - Você os perdeu... perdeu todos eles. Eles eram tudo que você tinha. Quando esses nossos encontros começaram, eu achava que você ainda podia representá algum tipo de ameaça, pelo seu histórico. Sabe como é... um adolescente metido a revolucionário que faz fortuna rápido e, de repente, tá no comando de muita coisa, eu não podia dexá de conferi. Sei que este tipo de comentário não é muito profissional da minha parte, mas confesso que você me decepcionô. Eu tinha ouvido tantas lendas sobre essa tua juventude, que conflitavam de manera muito curiosa com a tua posição atual; acho que isso fez com que eu criasse muita expectativa. Mas aí, eu comecei a falá com esse pessoal que conviveu com você e senti neles tanta frustração, tanta decepção... Sei lá, depois dessas conversas que eu tive com você, apesar de você tentá se escondê atrás desse teu humor meio irônico, meio arrogante, eu pude constatá que você não passa de mais uma ovelha do rebanho, completamente cordial e submissa. Acho que eu vô acabá entrando numa crise existencial, parece que essa minha função é cada vez mais desnecessária, tudo tá tão absurdamente dominando e inerte que eu chego a me achá meio inútil. Ford, Pavlov, Hitler, Holywood, Walt Disney… tudo encaxô tão bem que não sobrô espaço pra nenhuma revolução. Pra mim, uma imagem que sintetiza o atual espírito da humanidade é um menino obeso, se entupindo de refrigerante e, com a boca cheia de batata frita, falando: “Eu amo muito tudo isso!”. E essa é a grande verdade, vocês “amam muito tudo isso!”, por mais que neguem, por mais que tentem resisti, vocês “amam muito tudo isso!”. Esse sistema se encaxô de tal manera com a natureza humana, que, sinceramente, eu não consigo visualizá um dia em que ele possa acabá. Sabe o que fascina tanto no capitalismo? Além do consumismo e tudo que vem embutido nele, o que fascina é a mobilidade social. O Homem e a eterna sede de poder... essa é a grande jogada do sistema. Do coitado que mora num mucambo, mal consegue escrevê o próprio nome e aposta na loteria, ao intelectual meia sola de classe média que procura especialização; cada um da sua manera, todos procuram ascensão. A possibilidade de um dia tá no topo da montanha faz suportá a vida na depressão. E quem tá no topo qué o céu, você sabe como ninguém como funciona. Por mais que você olhe lá fora e tudo pareça um caos, você tá diante da mais perfeita ordem, uma ordem complexa demais pra sê enxergada a olho nu. Cada movimento, cada passo lá fora, é uma pequena equação, que se encaxa numa maior... que se encaxa numa maior... e assim por diante, até compor esse grande sistema. Você também é uma equação, Prometeu, que se encaxa numa maior. Saiba que você pode tê muito dinhero, mas nem por - 183 -

isso dexa de sê uma pequena engrenage; nem por isso você é mais que um pequeno pistão dessa minha máquina fantástica. Minha máquina fantástica não; na verdade, eu também pertenço a ela. Eu só confiro o óleo, vejo se tá tudo OK com o combustível, enfim, cuido da manutenção. Mas, um dia, o meu fim vai chegá, e ela vai continuá a todo vapor. E isso é o melhor que pode acontecê a todos nós, parece que você já entendeu isso. Parece não, você incorporô o espírito do Sistema melhor do que ninguém. Infelizmente, acho que isso qué dizê que os nossos encontros chegaram ao fim. Nós podíamos ser bons amigos, temos muita coisa em comum. Quem sabe, eu te mande um convite pro meu aniversário ou um cartão de Natal. Até a próxima, Prometeu! Os passos dele foram ficando mais distantes, o som da sola tocando o piso foi ficando cada vez mais baixo. De repente, o som começou a se tornar mais próximo e forte. Ele tava voltando. - Quase esqueci, quando você acordá, você vai tá naquela tua casa de praia. “Qual delas?”, você deve tá pensando. Cê vai sabê quando tivé lá. Se você achá que sê classificado como um dos membros do time dos “porcos capitalistas” é um fardo pesado demais pra sê suportado, a solução vai tá embaxo do teu travissero.

XVI Acordei com o barulho insuportável de um celular tocando. Atendi. Eram problemas nos negócios; nem entendi direito o que era. Tomei uma decisão quase involuntária e mandei o cara fechar negócio (acho que era alguma coisa com uma empresa canadense). Fiquei entorpecido com o barulho do mar, o som das ondas parecia levar a minha mente pra um lugar distante e escuro, que aos poucos ia adquirindo um tom esverdeado. Eu tava diante de um deserto verde-musgo, cortado por flashes de um céu, ora laranja, ora violeta. Eu senti paz, ou alguma coisa próxima a ela. Não tinha nenhuma formação sintática na minha cabeça; nenhuma única palavra inoportuna que pudesse me perturbar. Só aquelas imagens, oscilando entre o vazio do escuro completo, e o fascínio de um lampejo colorido. Aquilo tava bom demais pra durar muito tempo. De repente, meu celular tocou. E eu fiz uma coisa que já fazia muito tempo que eu queria fazer. Pulei da cama e comecei a dançar feito um louco ao som do toque do celular; aquele toque tinha um ritmo tão fascinante que eu simplesmente não conseguia parar de me mexer (você não acreditou nisso, acreditou?). Na verdade, eu peguei a

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droga do celular e joguei com tudo contra a parede. Um estalo forte e o fim da poluição sonora. Mas agora eu já não conseguia mais recuperar aquele estado de antes. Tava acordado demais; tava consciente demais. Acabei lembrando do que tinha acontecido no dia anterior. Se é que tinha sido no dia anterior. Percebi que eu tava perdido, não sabia se era manhã, tarde ou noite. Me arrependi de não ter visto as horas antes de quebrar o telefone. O arrependimento não durou muito; do meu lado, tinha um rádio-relógio marcando 8:14 da manhã. Como eu ia saber se aquele relógio tava certo?! Bom, levando em conta as coisas que tinham acontecido comigo, eu tinha mais com que me preocupar. Lembrei de uma fala do Freud, John, Imperador, Homem-pássaro... sei lá quem era aquele cara afinal! O que importa é que ele tinha dito: “... a solução tá embaxo do teu travissero...”. Meti a mão embaixo do travesseiro e adivinha o que eu encontrei? Uma bíblia (tô brincando; essa da bíblia é clássica, né?). Encontrei uma arma (talvez essa da arma também seja clássica, mas foi o que eu realmente encontrei), uma pistola, pra ser mais preciso. Acendi a luz pra enxergar melhor (aposto que teve algum engraçadinho(a) que pensou alguma coisa do gênero: “ não, acendeu a luz pra assá um pão”). Ela tava engatilhada e sem pente. Apenas uma bala. Achei aquilo bem sugestivo. Não sei por que, abri a cortina, acho que porque sempre preferi a luz natural. É, talvez o relógio tivesse certo, pelo menos, era dia. Um dia bem bonito, diga-se de passagem. Parecia que tinha alguma coisa diferente naquele céu, só podia ser por causa do mar. Me perguntei há quanto tempo eu não via o mar; não, na verdade, eu não me perguntei não, eu tava pensando em outras coisas. Mas, de qualquer forma, me pergunto agora: “Há quanto tempo eu não via o mar?”. Não faço idéia, mas parece que fazia uma eternidade. Bom, voltando ao assunto da arma, acho que tava um tanto óbvio o que eu podia fazer com uma única bala. Acho que não dava pra me arrepender da minha conduta e iniciar uma revolução armada. Pra mim, tava claro, o Imperador esperava que eu viajasse pro Oriente Médio, carregando no meu uniforme alguma insígnia ocidental, e, usando aquela única bala, realizasse um atentado contra algum líder político daquela região. Isso era lógico, a exemplo do ocorrido com Franz Ferdinand, eu desencadearia uma espécie de 3o Guerra Mundial (sei que quando você viu esse parênteses você já deve ter imaginado; se você imaginou, você acertou, palhaçada de novo!). Agora, sem brincadeiras, tava na cara que aquela bala era pra eu usar em mim mesmo. Só faltava ter um bilhete anexo: “Suicide-se”. De qualquer maneira, eu acabei cometendo suicídio mesmo. Isso mesmo. Eu ditei esse livro a um médium, que, gentilmente, o escreveu pra mim. Você deve tá pensando: “Mas, então, como ainda restam algumas páginas? Se você realmente se suicidou, como a história não acaba aqui?”. A resposta é simples, eu usei as outras páginas pra narrar minhas aventuras no além, e pra esclarecer algumas dúvidas comuns em relação ao outro mundo (tá, acho que eu já tô bancando demais o engraçadinho; é claro que eu não me suicidei, mas, provavelmente, era isso que as pessoas que colocaram aquela arma ali esperavam que eu fizesse). De repente, me passou pela cabeça que aquela casa devia tá cheia de câmeras escondidas por todos os lugares. Era lógico que eu devia tá sendo vigiado. Aliás, eu devia tá sendo vigiado há muito tempo. Esse pessoal devia tá me vigiando desde muito antes de eu ter o meu primeiro contato com o Imperador. Droga! Será que eles me viram cutucando o nariz? (desculpa, eu falei que ia dar uma trégua com as piadinhas). Meio que por instinto, saí correndo da casa. Mas, quando cheguei do lado de fora, fui reduzindo a velocidade e acabei parando. Não sei se eu parei por admiração ou pra admirar. Como aquela praia era linda! Descobri onde eu tava, eu tava numa ilha, numa das minhas ilhas. Acho que, desde que eu tinha comprado ela, eu só tinha estado ali umas duas vezes. - 185 -

Tirei os sapatos, larguei a arma no chão, tirei a camisa. O calor da areia branca nos meus pés, o barulho e o cheiro do mar esverdeado, as árvores que cobriam um morro ao longe. Tudo isso dava uma impressão de pureza e acabou despertando em mim uma sensação estranha, uma espécie de êxtase. Então, eu corri. Não sei por que, mas corri. Corria pela areia firme e úmida, deixando minhas pegadas no chão pra, logo em seguida, serem engolidas pelas ondas frescas que tocavam meus pés. Pensando melhor, acho que sei por que eu corria. Eu tentava fugir de um pensamento, não eu tentava fugir de um fato, melhor ainda, eu tentava fugir de mim. Tentava deixar pra trás aquilo que eu era. Porque, na hora em que eu vi, e senti, toda aquela beleza, quando me dei conta do paraíso em que eu tava, percebi que eu podia ser feliz, podia sentir um tipo de paz em algum lugar. Sim, eu podia viver tranqüilo, sem me importar se tava havendo alguma guerra injusta, sem pensar na fome que assolava vários países, nem nas crianças aidéticas ou nos porcos arrogantes que acham que são alguma coisa porque têm algum tipo de poder. Pior, muito pior do que se sentir culpado por ter privilégios que a grande maioria não tem, é sentir que pode ser feliz usufruindo desses privilégios. Ninguém tem o direito de ser feliz num mundo de tanto sofrimento (desculpe, já tô falando pelos outros de novo, mas há tempo pra uma retratação), ou melhor (você já reparou que “ou melhor” sempre encaixa bem numa retratação desse gênero?), eu não tenho o direito de ser feliz num mundo de tanto sofrimento; eu não tenho o direito de ter paz num mundo de tantos tormentos. A cada passada, a areia parecia mais pesada. Cada passo foi se tornando mais difícil que o anterior. Até que meus músculos se entregaram por completo, e eu me deixei cair no chão. Não resistiria mais. É difícil aceitar quem realmente somos, mas uma hora isso tem que acontecer. Eu era egoísta, não conseguia compartilhar o sofrimento dos outros. Não era poético, não era heróico, mas era um fato que precisava ser aceito. Temos que aceitar nossos instintos, nossa índole; cada um vive em função de si, e o resto é conversa. Eu tive sorte, podia levar uma vida boa. Mas muitas pessoas não tiveram e passam por várias dificuldades. A grande verdade, que precisava ser aceita, é que eu não precisava sofrer por uma dificuldade que não era minha. O único que pensa em repartir é o que não tem nada, ou, que tem pouco; o único que pensa em igualdade é o que tá em desvantagem. Eu sabia o que isso significava, tava na hora de eu fazer uma coisa que eu vinha adiando há algum tempo (e que eu acabaria sempre deixando pra depois). Tava na hora de “Apologia ao Caos”. A primeira coisa que me ocorreu foi: “Eu tô numa ilha isolada e há poucos minutos atrás quebrei meu celular”. Mas esse pensamento foi meio bobo, meio inocente. Hoje em dia, nenhum lugar isolado é realmente isolado. Tem sempre alguma forma de se comunicar. Aquela ilha não podia ficar abandonada esperando pela mina visita. Havia várias pessoas que moravam ali, o que significava vários celulares, vários computadores e alguns radioamadores; ou seja, comunicação. Deixei a praia e segui caminhando por uma estrada que cortava a mata. Eu devia tá parecendo um turista perdido da excursão, só faltava uma máquina fotográfica, um chapeuzinho tosco e umas camadas grossas de protetor solar logo abaixo dos olhos e na ponta do nariz. Aquela areia tava queimando a sola dos meus pés e me obrigando a dar umas corridinhas desconcertantes à procura de uma sombra. Não precisei caminhar muito e cheguei no heliporto. Pra minha surpresa (não sei se foi tanta surpresa assim), o helicóptero tava lá. Mais alguns metros e eu tava numa espécie de “central administrativa” (essas aspas não seria necessário sinalizar com os dedos, bastaria uma mudança na entonação) da ilha. Tinha um muro relativamente alto e um portão de acesso. Me perguntei qual seria a utilidade dessas medidas de segurança numa ilha deserta, ou melhor (olha o “ou melhor” aqui outra vez!), - 186 -

quase deserta. Talvez fosse pra se proteger de criaturas anfíbias de intelecto apurado que viviam numa civilização clandestina nas profundezas do oceano, ou, talvez fosse pra gastar o meu dinheiro em qualquer merda mesmo. Aliás, é provável que quem compra uma ilha esteja disposto a gastar dinheiro em qualquer merda, mas isso não significa que aquela ilha era uma merda... enfim, isso não vem ao caso (acho que eu sou perito em escrever coisas que não vem ao caso, este parênteses é mais um exemplo disso). Apertei o interfone. Uma voz de mulher disse: - Pois não? - Eu sô uma criatura anfíbia de intelecto apurado, será que cê podia abri o portão? Talvez eu faça algumas experiências com o seu corpo pra descobri a manera mais fácil de submetê os humanos ao nosso poder (acredite, eu realmente falei isso! Tinha pensado em dizer alguma coisa do tipo : “Foi daqui que pediram uma pizza? São quinze dólares, mais dez mil do frete”; mas acabei descartando essa). Houve um já esperado, e compreensível, silêncio como resposta. - Tô brincando, é o Prometeu mesmo. - Seu Prometeu..., eu imaginei que fosse o senhor mesmo, mas a brincadera me confundiu um poco. Pode impurrá o portão _ disse ela apertando, imagino eu, o clássico botãozinho de destrancar. Aquele “eu imaginei que fosse o senhor” me deu a impressão de que vinha balela pela frente. Já tinha uma moça me esperando na porta com um sorrisinho pseudo-simpático no rosto. - Seu Prometeu, que bom revê-lo! Espero que seja o senhor mesmo, e não alguma criatura disfarçada. “Ah, essa foi boa! _ pensei em dizer, mas é sempre melhor poupar a ironia”. Acabei dando um risinho forçado igual ao dela. - Como o senhor passou a noite? O senhor me pareceu um poco cansado ontem. - Tá, então, só pra me situá, supostamente eu cheguei ontem e conversei naturalmente com todo mundo. - Como assim? É claro que o senhor chegô ontem. Já sei, é otra brincadera, não é? - É impressionante, sempre a mesma fala. Mas até que cê foi convincente. Tem algum tipo de curso pra isso? Estilo: “Como fazê o Prometeu de troxa”? _ às vezes, as ironias são inevitáveis. Ela fez uma cara de pseudoperdida, e eu atravessei - Já sei, cê não tá entendendo nada; talvez, daqui a poco, cê comece a ficá assustada também. Então, vamo pulá essa parte. O piloto do helicóptero tá por aí? - Tá sim, senhor. - Será que cê podia chamá ele pra mim? - Claro. Acho que ela não gostou muito de eu ter atrapalhado a atuação dela. Se duvidar, ela devia ter ensaiado e tudo. Eu não ia agüentar ouvir ela falar aquele monte de merda. Eu tava cansado, já havia muito tempo que eu tava cansado. Ela pegou o celular e ligou. - Oi, eu preciso que você venha aqui no escritório. Uma curta pausa e ela finalizou: - Agora; tchau. Me olhando com uma cara de profissional prestativa, e tentando fingir uma ponta de ressentimento, ela disse: - Pronto, Seu Prometeu, acho que, no máximo daqui a meia hora, ele deve tá aqui. - 187 -

- Tá bom, brigado. Desculpa se eu te ofendi. Eu não gosto de ofendê ninguém. É que eu ando com alguns problemas ultimamente... - Que isso! Eu imagino que alguém que mexe com tantos negócios, assim como o senhor, deve ter muitas preocupações. Nisso ela tava certa. Mas não era porque eu mexia com muitos negócios, é assim com todo mundo. Sempre muitas preocupações, muitas dúvidas e muita insegurança. Infelizmente, acho que isso é normal. A nossa cabeça tá, quase sempre, cheia de um monte de porcarias insignificantes que parecem problemas sem solução e que, depois de uma semana, você nem lembra mais o que era. Mas, os problemas que eu tinha no momento não eram do tipo que você esquece depois de alguns dias. Eu sempre senti quando alguma coisa grande, realmente relevante, tava pra acontecer. Sei que tudo aquilo que tava acontecendo comigo já era uma coisa grande; mas sabia que algo muito maior tava por vir. O piloto chegou com a mesma conversa da mocinha que tinha falado comigo antes, “O senhor já vai voltá? O que que aconteceu?”. Me esforcei pra não ser rude, não queria ficar criando um clima pesado. O cara me deixou na cidade mais próxima que tinha aeroporto. Fiquei sentado, naqueles bancos de espera com um pacote de pipocas na mão, pensando pra onde eu devia ir. Se eu quisesse descansar, recuperar meu equilíbrio, talvez o melhor lugar fosse o campo. Mas, talvez eu não quisesse descansar, nem recuperar meu equilíbrio. Talvez eu quisesse me sentir ainda mais perturbado. Acabei optando por um grande centro urbano. Você acha estranho? Pra mim, parece natural. Muitas vezes, quando começamos a ler algum livro, devido a algum conhecimento prévio, já sabemos que aquela leitura pode nos deixar angustiados, confusos, amargurados; o mesmo vale pra algum filme ou peça de teatro, ou qualquer coisa do gênero. Apesar de sabermos que esses sentimentos tendem a ser despertados, ainda assim, não hesitamos. As pessoas sempre se sentiram atraídas pela tragédia, por um grande sofrimento. Dormi um pouco durante a viagem. Eu sabia o que me esperava, e não gostava. Buzinas, conversas misturadas, ronco de motores, musicas horríveis e todo tipo de poluição sonora que se possa imaginar. Publicidade. Qual é a diferença entre publicidade e poluição visual? Não precisa ser um grande centro, basta que seja uma cidade de médio porte, e pra todos os lados que você olha há marcas, slogans mal feitos, rostos conhecidos sorrindo num outdoor, produtos sendo empurrados pro teu consciente e subconsciente. Há pessoas fazendo propaganda por livre e espontânea vontade, usando com orgulho a camisa, a calça, a bolsa ou o sapato que têm estampada a marca que garante o status. Tava quase esquecendo das pessoas. Não se pode generalizar, mas grande parte dos moradores dos grandes centros são egocêntricos, apressados, ignorantes (não o tipo de ignorância que se elimina com um diploma) e vivem num mundo particular, delimitado por suas preocupações e problemas estúpidos. Assim que saí do aeroporto, peguei um táxi. Dessa vez, eu tava indo pra um hotel de uns trocentos andares, no centro da cidade, que era inteiro meu. Pela primeira vez, dentro daquele táxi, me perguntei por que eu tinha aquele hotel? Claro que era uma boa fonte de renda, ele me rendia uma fortuna. Mas não era por isso, eu tinha muitos outros negócios que rendiam infinitamente mais, de modo que um hotel não faria uma diferença. Se não era o dinheiro, poderia ser o status. Mas, se eu já era um dos homens mais ricos do mundo (se não o mais), um imóvel a mais, apesar da magnitude, não me concederia uma diferença significativa em termos de status.

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Acho que descobri qual era o motivo. Era o mesmo que levava os faraós a construírem pirâmides, o mesmo motivo que erguia arranha-céus nas metrópoles. Poder. Eu queria ver um símbolo que desse a dimensão material do meu poder. O meu ego queria ser exaltado. Lá tava a minha pirâmide, me separando dos outros homens, me distinguindo dos comuns. Me senti mal. Não é fácil encarar a verdade. Não é fácil assumir que você não é o bonzinho. Quem poderia me dizer que meus motivos eram errados? Os meus sentimentos. Eu me sentia errado, eu sentia vergonha. Mas, quando o táxi parou em frente àquele edifício imenso, tudo passou e deu lugar ao êxtase. Eu senti o poder. Senti o meu poder. Status? Eu não precisava dele. Status era pros medíocres, pra aquele bando de carentes babacas. Eu tava cagando pro status. Não precisava me afirmar pra uma sociedade estúpida. O meu negócio era comigo. Eu precisava provar pra mim mesmo quem eu era. Aí é que tá a ironia de tudo isso, eu, que no íntimo sempre me julguei tão superior, era seduzido pela auto-afirmação. Logo a auto-afirmação, que eu tanto critiquei e sempre considerei uma das mais lamentáveis manifestações psicológicas da espécie humana. Pra mim, essa minha mania de superioridade tava bem explícita na minha juventude, justamente por tentar se esconder atrás de um ideal de igualdade. Eu me achava tão superior a ponto de abdicar da minha superioridade. Eu não queria a coroa de louros que achava que eu merecia, minha maior exaltação íntima era ser tido como igual àqueles que não eram iguais a mim. Entrei no hotel. Naquele hotel que era tão grande, mas que era menor que eu, porque pertencia a mim. Parei na recepção pra pegar a chave. Como já disse, eu não tinha aquele hotel com o objetivo do lucro, por isso, a suíte presidencial nunca era locada, nem pro presidente (eis aqui o pior trocadilho do livro; sei que eu já mandei uns horríveis, mas esse foi o pior de todos). Ela era exclusivamente minha. O rapaz me entregou a chave procurando ser o mais simpático possível, acho que até fez alguma brincadeirinha que levaria a supor que ele tinha alguma intimidade comigo. Não tô falando isso no estilo: quem ele pensa que é pra ter alguma intimidade comigo. A questão é, por que querer ter alguma intimidade comigo? Por que querer ser meu amigo? Se ele me conhecesse como eu me conheço, não ia querer ser meu amigo. Aliás, se as pessoas conhecessem umas as outras como conhecem a si mesmas, ninguém ia querer se aproximar de ninguém. Entrei no elevador, apertei o botão e subi. Por sorte, ninguém mais entrou. Nunca gostei daquele clima de “mais alguém no elevador”. Aquela típica desacelerada e o elevador parou. Saí, sentei numa poltrona, coloquei os pés sobre uma mesinha e tentei relaxar um pouco. Devia ter whisky no barzinho; eu pegaria depois. De repente, todo aquele êxtase e aquela sensação de grandeza desapareceram. Eu era novamente aquele jovem apático e deprimido, definhando numa kitchenette. Só que dessa vez eu tava na suíte presidencial do meu hotel, o que, na prática, não fazia diferença nenhuma (a não ser pelos whiskies). Que caminho doido tinha me levado daquela kitchenette até aquela suíte. Quanta loucura, quanta improbabilidade. Isso sem contar os últimos dias, os encontros com John/Freud/Imperador, e aquela sessão com o Robs, Helena e etc. Fui olhar pela janela pra ver se eu me animava. Tinha uma visão panorâmica da cidade. Só uma coisa passava pela minha cabeça: “Que merda de mundo! Até eu merecia coisa melhor”. O jeito era me acabar nos whiskies. Há muito tempo que eu não tinha um programa melhor que esse. Mas não podia reclamar muito, pelo menos eu ainda tinha os whiskies (esse é o típico consolo de derrotado, estilo: “Levanta essa cabeça, as coisas poderiam estar piores”). Eu tinha passado a minha vida inteira mentindo pra mim que as coisas iam melhorar (provavelmente, você também fez isso). É isto que faz a gente suportar o tédio de viver, a vã - 189 -

expectativa de que o amanhã vai ser melhor que o hoje. Eu me iludi. Me iludi muito. Eu desejei, busquei, consegui, perdi. Desejei outra vez, conquistei, fiz... e nada. Nunca satisfeito. Eu precisava de oportunidades. As oportunidades vieram, mas nunca mudou nada. E isso castiga, sentir que nunca muda nada. Sentir e perceber que hoje, apesar de tudo, não é melhor que ontem, e que amanhã vai ser a mesma coisa. Me perguntei o que seria esse “melhor” que eu tanto esperava. Concluí que a melhor definição do “melhor” era uma mudança consistente. Uma definição bastante vaga, por sinal. Como sempre, concluí que o problema não devia ser com o mundo, e sim comigo. Quantas pessoas não desejariam estar no meu lugar? (digo isso porque a grande maioria das pessoas só pensa no dinheiro, e isso eu tinha bastante). É possível, até provável, que uma outra pessoa no meu lugar seria feliz, ou, pelo menos, mais feliz que eu. Conhecia pessoas em condições parecidas que me pareciam bem alegres. Comecei a remoer aquela última sessão que eu havia tido com o Imperador (confesso que me sinto meio estúpido ao escrever “Imperador”). Só uma coisa passava pela minha cabeça, eu havia destruído a vida da Helena. Essa última constatação gerou uma mudança nas minhas teorias. O amanhã pode não ser melhor do que hoje, mas o ontem pode ser pior do que hoje. As minhas atitudes passadas tinham gerado conseqüências bem piores do que eu havia suposto, ou seja, acabei descobrindo que o ontem havia sido pior do que o hoje. Sei que parece contraditório, ainda assim, continuo descartando a possibilidade do amanhã ser melhor do que hoje (apesar de dizer que descarto essa expectativa, eu a conservo bem no íntimo; se não, não teria razão pra continuar vivo). Que droga de parágrafo confuso! Vou encerrar ele aqui mesmo. A primeira dose de whisky provocou uma leve quentura ao chegar ao meu estômago vazio. Depois da segunda, já senti um agradável torpor. Comecei a beber mais devagar. Eu queria pensar um pouco. Se eu bebesse demais, não conseguiria organizar meus pensamentos. Eu pensei. Ponderei. Depois, pensei e ponderei mais ainda. Então, bebi. Bebi pra esquecer quem eu era, a maneira como pensava e ponderava. Passei a noite toda acordado. Peguei um champanhe no frigobar e fui pra hidromassagem. Enquanto aquela água morna massageava o meu corpo, as borbulhas de champanhe massageavam suavemente o interior da minha boca. Como eu odiava aquilo! Como eu odiava ser um burguês estúpido e arrogante! Como eu odiava toda aquela burguesia! Odiava aquele champanhe caro, aquela hidromassagem, os lençóis de seda, os tapetes persa e todo aquele monte de merda que as pessoas passam a vida sonhando ter. E odiava as pessoas por sonharem ter aquilo. Naquela noite, eu queria que o mundo explodisse. Queria que a espécie humana fosse varrida do universo. Por quê? Porque eu adorava e odiava ela ao mesmo tempo. Talvez, o fim fosse a única maneira de unir num único ato os burgueses das hidromassagens e os miseráveis marginalizados. Mas, ao que tudo indica, meu desejo não se realizou.

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XVII Acordei com a palma das mãos e a sola dos pés enrugados e com uma garrafa de champanhe boiando do meu lado. Que desperdício, eu só tinha tomado um ou dois goles, o resto vazou na banheira. E tomar banho com um champanhe de 300 dólares (na verdade, eu nem sei o preço daquele champanhe, mas acredito que tenha custado pelo menos isso) não é nem de longe a coisa mais inteligente do mundo. Os pilotos de F1 que me perdoem. Os pilotos de F1 que se danem, quem manda eles terem uma profissão tão inútil? Se fosse qualquer outro cara que derramasse na cabeça um champanhe que custa mais do que a renda mensal de muitas pessoas, seria um babaca; mas se é um piloto, então, é um herói. Tá, o champanhe não é a questão. Na noite anterior, eu havia tomado uma decisão que mudaria a minha vida, e a vida de muitas pessoas. E interferir na vida dos outros sempre me deixou preocupado. Se for só com a tua vida, você faz o que bem entender e o problema é teu, só que se envolve mais alguém, a coisa complica. Mas eu não podia adiar mais aquela decisão; se eu não fizesse aquilo naquela hora, talvez não fizesse nunca mais. Talvez eu me acomodasse e adiasse pra sempre. Eu já tava acomodado. Eu precisava dar o impulso que me tiraria da inércia. E daria. Levantei daquela banheira. Eu precisava saber que horas eram. Saí andando, inteiro molhado, enrolado numa toalha. Tinha um relógio pendurado na parede, de frente pra cama.

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Eram dez e meia da manhã (sinceramente, não sei se arredondei esse horário ou não; eu tava tão preocupado com outras coisas que nem dei atenção a isso). Não era muito tarde. Ainda era possível que desse tempo de fazer o que eu precisava, bastavam algumas ligações. Me dei conta de que eu tava com uma fome desgraçada. Definitivamente, eu precisava comer alguma coisa. Sempre depois que eu bebo, sinto necessidade de comer alguma coisa doce ou beber um refrigerante. Liguei pra recepção e pedi que me mandassem alguma coisa doce pra comer, um bolo, bombas de chocolate, sei lá, o que eles tivessem (depois pensei que se eles enviassem todos os tipos de doce que tinham, eu passaria o dia todo comendo e não experimentaria tudo). Também pedi uma Coca. Não sei por que, mas na hora que eu pedi a Coca, pensei o que o Robs acharia daquilo. Pensamento estúpido; eu já era um ícone do capitalismo, acho que beber uma Coca-Cola não faria muita diferença. A moça da recepção pediu um milhão de desculpas, disse que já haviam enviado alguém com o meu café da manhã; que depois de terem apertado algumas vezes a campainha, haviam achado melhor não me incomodar. Eu precisei explicar mais de uma vez que eu não tava me queixando de nada. Sempre detestei aqueles burgueses emergentes, que acham que uma maneira de provar que têm dinheiro é sair reclamando de tudo; que tentam se afirmar humilhando as outras pessoas. Eu era um burguês, admito, mas não saía por aí humilhando quem tinha menos dinheiro que eu. Pelo contrário, muitas vezes, eu sentia vergonha por ter mais dinheiro que os outros. “Parabéns, Prometeu _ pensei _, dos teus consolos estúpidos, esse foi o pior. Eu sô um burguês, mas não sô da pior espécie. Você me surpreende a cada dia”. Me trouxeram o que eu havia pedido, e mais algumas coisas. Trouxeram alguns bolos, as bombas de chocolate, uns brioches e mais uns negócios que eu nem sei o que eram, mas que eram gostosos. Me mandaram duas garrafas de Coca-Cola de 2 litros, muito mais do que o suficiente. Depois de me empanturrar, dei continuidade aos meus planos. Liguei pra uma rede de TV na qual eu era acionista majoritário. Era uma das líderes de audiência em território nacional, além de ter a programação exibida no mundo todo. Falei com o departamento de produção, disse que eu participaria de um programa ainda naquela noite. O pessoal disse que era impossível. Eu pressionei, falei pra eles darem um jeito. É sempre horrível ter que apelar pra tua influência, ter que dizer que é você que tá no controle, mas eu não tinha outra escolha. Depois de passarem e repassarem a minha ligação, tudo tava resolvido. Naquela noite, eu estaria ao vivo num dos mais famosos talk shows do mundo. Sempre detestei talk shows. Aqueles apresentadores toscos, querendo parecer mais inteligentes que os convidados; aqueles convidados babacas, que acham que são bons demais pra guardarem suas histórias e suas opiniões para si (eles precisam que todos vejam o quanto eles são extraordinários); e, por último, claro, aquela audiência estúpida que acha que assistir talk show é sinônimo de intelectualidade. Eu já havia sido convidado várias vezes a participar de talk shows. Tinha recusado todas. Eu tinha encontrado outras maneiras de exaltar o meu ego (maneiras não menos deploráveis). Mas, dessa vez, o talk show me parecia a melhor escolha. Só podia ser esse o momento que eu tava pressentindo, aquele momento decisivo, aquele momento que provocaria uma nova mudança na minha vida. Eu não agüentava mais aquela pasmaceira (tudo bem que esses últimos dias haviam sido agitados; mas, se eu pegasse os últimos anos, havia uma linearidade deprimente). O tédio é a mesma droga em qualquer país, em qualquer classe social e em qualquer faixa etária. Eu devia estar no estúdio às 20 horas, o programa ia ao ar às 22. Eu sabia que não devia beber, precisava estar o mais sóbrio possível. Então, me deparei com um problema - 192 -

aparentemente sem importância, mas muito incomodativo: o que fazer até a hora do programa? Resolvi sair, caminhar um pouco, sei lá, fazer qualquer coisa fora daquele hotel. Enquanto eu tava descendo no elevador, achei estranho que ainda não tivessem me encontrado no hotel, pra me encher o saco com problemas nos negócios, decisões a serem tomadas e todo aquele monte de merda. Quando passei pela recepção, o recepcionista e um outro cara interromperam a conversa. Quando olhei pra eles, desviaram o olhar. Diminuí ritmo do passo e eles começaram a falar sobre um assunto banal pra disfarçar. Saí do hotel. Tava perto da esquina quando resolvi voltar. Queria ver qual seria o comportamento deles se eu os surpreendesse outra vez. Entrei no hotel. Os dois não perceberam que era eu. Caminhei na direção deles. O outro cara entregou um envelope pro recepcionista. Não consegui ouvir o que eles falavam. Pareceram se assustar na hora que notaram a minha presença. - Seu Prometeu..., o que houve, algum problema? - Como vai, Seu Prometeu? É um prazer conhecê-lo, adorei os seus livros _ disse o outro. - Brigado; o prazer é meu. - Esse é o meu irmão mais velho, Seu Prometeu, ele veio me trazer uma correspondência. Ele disse o nome do cara, mas confesso que logo esqueci. Normalmente não esqueceria, mas naquele dia eu tava com a cabeça em outros assuntos. Estranhei o fato do sujeito da recepção começar a dar explicações sem eu ter perguntado nada. Depois, ponderei melhor, afinal, ele trabalhava pra mim e tava em horário de serviço. - Devo admitir que ainda há poco falávamos sobre o senhor _ disse o outro. - É mesmo? Eu tive essa impressão. - Eu comentava o quanto admiro o seu trabalho. - O quanto admiramos _ corrigiu o rapaz da recepção. - É sempre muito bom ouvi isso _ essa frase saiu meio involuntária, eu sempre dizia isso diante de um elogio. _ Mas eu preciso í andando. Voltei só pra dexá a chave. Tenho um dom incrível pra perdê chaves. Eles deram aquela risadinha forçada, comum diante de comentários sem graça, que, supostamente, teriam a intenção de descontrair. Eu entreguei a chave e arrematei: - Até a próxima! - Até breve! _ responderam (tudo bem, os dois não responderam da mesma forma, mas achei melhor resumir). Eu não tinha engolido direito aquela história de irmão e correspondência. Aquela conversa não tinha fluído de forma natural, me pareceu muito mecânica. Mas havia sempre a possibilidade da paranóia, e eu me sentia ridículo só de lembrar dela. Pra mim, paranóia é sinônimo de egocentrismo, arrogância e megalomania. Eu achava horrível a possibilidade de alguma coisa ser paranóia minha pelo fato de que eu era arrogante demais pra admitir que não era humilde. Por outro lado, deixar passar alguma evidência, vendar os olhos para os fatos apenas pra não passar por paranóico, também seria estupidez da minha parte. Fui a um shopping center. Tinha um bem próximo ao hotel, eu precisava matar tempo, então, resolvi ver alguns livros. Pelo caminho, tentava me convencer da minha pequenez. “Relaxa, você não é grande coisa. Não precisa se cobrá muito, pára de se achá tão importante assim. Olha pra tua espécie; olha pra essa espécie arrogante por natureza e decadente a qual você pertence e, admita, você é igual a todos os otros. Enquanto as estrelas têm uma média de vida de bilhões de anos, na melhor das hipóteses, você chaga na casa dos - 193 -

cem. O universo tem bilhões de anos de existência, a tua espécie, que parece se julgar a senhora do cosmos, tem só alguns milhares. Nunca saberemos as respostas das perguntas mais importantes que já nos fizemos. Estamos atordoados, perdidos entre o fanatismo das religiões, as divergências da filosofia e a insuficiência da ciência. Por isso, Prometeu, por mais que você seja o melhor dos homens, ainda assim, você não vai sê grande coisa”. Nunca gostei de shoppings. Nunca gostei de comerciantes que têm lojas em shoppings, aliás, nunca gostei de comerciantes em geral. Apesar de ter usado a expressão “em geral”, não gosto de generalizar. Mas é inegável que a grande maioria deles são tapados, uma reminiscência daquela burguesia medieval. Não conseguem pensar em nada que se afaste num raio muito grande do próprio umbigo. Aumentar os lucros; esse é o ideal administrativo deles. Aumentar os lucros; esse é o ideal filosófico deles. Aumentar os lucros; essa é a religião deles. Aumentar os lucros; esse é o plano que eles têm para os seus filhos. Não quero me aprofundar muito nesse assunto, mas também tem os(as) atendentes das lojas. Não tenho muita coisa contra eles(elas), só tão tentando ganhar a vida. Mas seria hipocrisia dizer que não me sinto insultado por aquele excesso de falsa simpatia, de falsa gentileza. Ninguém é gentil daquele jeito. Não consigo deixar de me enxergar como uma comissão monetária refletida naqueles sorrisos largos (a propósito, você já viu algum(a) atendente de loja de shopping center desdentado(a)?). Entrei no shopping. Mais um exemplo de obra faraônica narcisista. Passando pela praça de alimentação, lembrei de mais um ponto importante dos shoppings: os freqüentadores. Nada me impressiona mais que uma juventude vagando sem destino certo dentro de um shopping. Isso me leva a uma conclusão: essa deve ser a juventude mais improdutiva da História. A minha geração já caminhava pra isso, mas essa é ainda pior. É provável que a próxima ainda supere essa, e assim por diante. Que ironia, a geração mais informada (sim, porque quer você queira, quer não, essa droga de mídia vomita informação pra dentro da tua cabeça) e informatizada de todas é também a mais anestesiada, a mais sem propósito. O único propósito desses jovens é consumir. Talvez essa geração só tenha incorporado da melhor maneira possível o verdadeiro propósito da espécie humana, ou seja, propósito nenhum. Talvez esteja na hora de relevarmos a possibilidade de não termos uma grande finalidade. Talvez o nosso grande objetivo seja fazer com nós mesmos o que fazemos com os nossos produtos, nos consumirmos e depois nos descartarmos. Fui ver os livros. Lógico que não conhecia direito aquele shopping, então, não achei uma livraria logo de cara. Enquanto eu perambulava lá dentro, algumas pessoas vieram me pedir autógrafo. Até hoje não me acostumei com isso, até hoje me sinto meio constrangido quando escrevo uma dedicatória. Tive que tirar foto com três adolescentes. Enquanto uma fotografava, as outras duas ficavam ao meu lado, e o pior de tudo é que pareciam estar realmente empolgadas por estarem tirando uma foto comigo. Me mostraram como a foto tinha ficado no visor da câmera digital. Aquele sorriso artificial naquela minha cara sem ânimo tinha ficado algo bizarro, algo que contrastava de forma crua com o sorriso das duas. O pior foi que tive que repetir a dose, a que tinha ficado com a câmera também queria aparecer na foto. Me perguntei se alguma delas realmente teria lido algum livro meu, era bem improvável (não tô sendo preconceituoso, só tô sendo sincero), acho que tudo que elas queriam era mostrar que tinham tirado uma fotografia perto de alguém conhecido. Depois de autografar a mochila de uma delas, perguntei se não sabiam onde tinha uma livraria. Me senti um palhaço quando apontaram pra uma loja quase na minha frente. A verdade é que eu não tava muito concentrado na minha procura. É diferente quando você pensa “aquele livro deve sê interessante, amanhã vô numa livraria e aproveito pra dá - 194 -

uma olhada naquele otro que eu queria já faz tempo”, de quando você pensa “não tenho nada pra fazê, acho que vô numa livraria”. Não preciso nem dizer em qual dos dois estilos eu me enquadrava. Dei uma olhada em alguns lançamentos, mas não tinha nada interessante. Os melhores livros continuavam sendo os mesmos de 50 anos atrás. Os meus também tavam lá. Tentei lembrar da sensação de quando vi pela primeira vez um livro meu numa livraria. Era impossível. Aquela sensação tava distante demais, parecia até que eu nunca tinha experimentado ela. Era como se aquela lembrança tivesse morrido, ou, como se a pessoa a quem ela pertencia não existisse mais. Pra me livrar da nostalgia, eu precisava de um pouco de comédia, precisava ver alguma coisa realmente engraçada, então, fui pra famosa sessão de auto-ajuda, dar uma olhada em alguns títulos. Posso garantir que isso realmente funciona. Saí de lá com o astral renovado. Os caras que escrevem esses livros têm um senso de humor fantástico. Olha que eu só li os títulos, hein. Já pensou ler um capítulo inteiro? De qualquer maneira, se o objetivo desses livros é fazer você se sentir melhor, eles são eficientes. Se você parar pra pensar, este mundo é uma grande palhaçada, acho que não tem conclusão melhor. Dos livros de auto-ajuda aos títulos consagrados, no fundo, tudo é uma grande comédia. Parei um pouco pra refletir sobre mim, eu mesmo era uma grande piada. Duvido que você seja diferente. Se pararmos pra analisar, com a maior clareza racional possível, até a nossa melancolia não passa de uma comédia pastelão. Tipo aqueles filminhos de quinta que foram feitos pra serem sérios e, por isso mesmo, só acabam se tornando mais engraçados. As partes das nossas vidas que deveriam ser sérias são as mais engraçadas. Cansei de livros. Fui conferir os CDs. A literatura sempre foi mais cansativa que a música. É só ver os caras viciados em literatura e os viciados em música; geralmente os dois tipos são chatos, ficam tentando mostrar que dominam o assunto, mas os primeiros são os mais pé no saco. Umas das maiores enrascadas em que você pode se meter é iniciar uma conversa com um cara que quer provar que manja de literatura. Já tô fugindo do assunto (um cara que manja de literatura diria que eu cometi uma digressão; termos técnicos pra mostrar que domina o assunto). Vendo algumas capas de CDs, lembrei de certos períodos da minha vida; períodos de menos de uma década atrás, mas que pareciam parte de uma outra encarnação. Primeiro, senti saudade; depois, uma certa nostalgia; por último, recordando da minha recente teoria, achei aquilo tudo engraçado. Caí fora. Não agüentava mais shopping. Não sei como tem gente que praticamente mora nesses lugares. Não sei exatamente o que eu não gosto nos shoppings, mas acho que é, principalmente, aquela impressão de artificialidade, de um modelo de vida enfiado goela abaixo. Eu precisava de um carro. Liguei pro hotel e pedi pra mandarem o motorista trazer o meu, que sempre ficava por lá. Eu podia voltar pra pegar, mas tava com preguiça. Falei o lugar aonde ia tá esperando e uns 8 minutos depois o cara chegou. Disse pra ele passar pro banco do passageiro e voltei deixar ele no hotel. Eu queria ficar sozinho com o carro. Depois de deixar o cara, comecei a dirigir sem destino certo. Olhei pro relógio, não eram nem duas da tarde. O tempo tava demorando a passar. Eu tava preso numa droga de um congestionamento. Concluí que nada que aumenta em excesso é saudável: carros, células, populações... o resultado de grande aumentos é grandes desequilíbrios. Pensando de uma maneira lógica, eu só podia ser um pivô do desequilíbrio. Sim, o aumento fabuloso do meu dinheiro talvez fosse uma espécie de câncer, um câncer social, o câncer da desigualdade.

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No meio de todos aqueles carros, me senti pequeno outra vez. Eu não passava de um ponto aliado a outros pontos, que ocupavam outro ponto entre vários outros pontos, e assim por diante. Eu pensei na morte. Acho que nada faz você se sentir menor do que a idéia de um fim. Ainda por cima, um fim imprevisível. Não é como escrever uma história, que você decide como e quando acaba (se for uma história que ocorreu, você não decide o “como” e o “quando”, mas conhece a ambos). Você se sente vulnerável, insignificante, transitório, passível de substituição, ou seja, você se sente humano. Nada, acredite, nada é mais cruel pra qualquer ser da nossa espécie do que se sentir humano. A nossa natureza não nos agrada, por isso, criamos ídolos e heróis com características diferentes das nossas. Admiramos as virtudes que não temos, às vezes, fingimos tê-las, mas sempre soa algo muito artificial. Depois de algum tempo naquele congestionamento, eu já não conseguia organizar meus pensamentos. Meus olhos tavam abertos, eu via tudo o que acontecia ao meu redor, continuava acelerando e freando conforme o ritmo ditado por aquele tráfego angustiante, mas meu cérebro parecia tá adormecido. Liguei o som, procurei uma rádio que tocasse alguma coisa razoável. O número de rádios existentes e a qualidade do que elas tocam, definitivamente, são inversamente proporcionais. Um modismo musical porco toma conta da programação. E, se aquilo era a moda, é porque havia muita gente que gostava daquilo. Se muita gente gostava daquilo, aquela geração realmente tava comprometida. Não gosto de sair por aí criticando, além do que, o gosto é uma coisa muito subjetiva. Mas nada é mais covarde do ficar em cima do muro; portanto, vou expressar a minha opinião. Que tipo de indivíduo gosta de um hip hop sem propósito, ou, de um pop grotesco interpretado por cantoras com vozes robóticas e agudos desagradáveis (aliás, deve ser justamente pela qualidade musical que elas se apresentam seminuas)? Resposta: o tipo de indivíduo que representa o futuro da espécie humana. Sei que é impossível medir uma geração pelo gosto musical, mas são as pequenas coisas que unidas compõe uma personalidade. Ou seja, se você é um(a) daqueles(as) que acha que o mundo tá uma merda, saiba que, provavelmente, ele vai piorar. Comecei a procurar algum CD no carro. Achei um porta-CDS. Ao que tudo indicava, o motorista era viciado em música country. Depois de dar uma boa procurada, achei uma daquelas clássicas coletâneas de rock, cheia de músicas dos anos 60 e 70. Coloquei no som. A primeira era: “with a little help from my friends”, dos Beatles, interpretada por Joe Coker. Essa não podia faltar num CD daquele estilo. Eu não gostava muito de Beatles (acho que já falei isso), mas essa era aceitável. Finalmente saí daquela droga de congestionamento. Tava saindo do centro. Queria ir pra qualquer outro lugar em que meu carro pudesse se mover a mais de 3 metros por minuto. Cheguei num lugar mais tranqüilo e continuei dirigindo. De repente, passei por uma praça. Sempre gostei de caminhar em praças, não sei, elas parecem passar uma certa tranqüilidade. Não resisti e resolvi dar uma parada. Caminhei um pouco. Tinha alguns pombos procurando por pipocas que tinham passado despercebidas ou insetos na grama. Simplesmente a necessidade de se alimentar, talvez a mais básica de todas. Nenhum daqueles pombos queria parecer melhor do que o outro, ainda assim, estavam competindo por alimento. Não era uma competição agressiva, mas não deixava de ser uma competição. Me perguntei qual seria a verdadeira, a mais pura, finalidade do status que as pessoas tanto perseguem. Procurando exemplos em outras espécies do reino animal, concluí que só poderia ser a reprodução. Basicamente, o status serve pra impressionar o sexo oposto. Como a cauda do pavão e o duelo travado entre certos tipos de veados. Tanta tecnologia, tanto progresso movidos por uma causa tão primitiva. A humanidade parece ser tão sutil e tão primitiva ao mesmo tempo. Mas, numa análise aprofundada, a sutileza parece ser só uma ilusão e, com a exceção de um - 196 -

intelecto que fornece mais alternativas e criatividade, o Homem é só mais um animal como qualquer outro, porém, existe mais uma exceção: ele é muito mais nocivo que os demais. A praça tava quase deserta, o que era ainda mais agradável. Se você parar pra pensar, “o outro” é a causa de quase todos os nossos sofrimentos, e o mais cruel é que até a ausência dele nos faz sofrer. Mas, ficar quase sozinho naquela praça por alguns instantes, me trouxe mais paz do que qualquer outra sensação. Não resisti ao balanço. Claro que não me embalei como fazia quando era um menino. Não por vergonha, por medo de passar por ridículo, mas pelo simples e deprimente fato de que eu não era mais um menino. Pelo simples e deprimente fato de que eu nunca mais veria ou usaria um balanço da mesma forma de quando era um menino. Não tenho dúvidas de que a infância foi a melhor fase da minha vida. Acho que pela inocência, pela pureza. É óbvio que essa inocência não tem nada a ver com a sexualidade. Tem a ver com aquela fumaça de obrigações e ambições que vai te sufocando à medida que você cresce. Quando eu era menino, minha única preocupação era se ia tá chovendo no dia seguinte pra mim poder brincar lá fora. Agora, tanto faz se vai ter sol, chover ou nevar, eu passo quase todo o dia dentro de um escritório. Enquanto eu ia e voltava naquele embalar apático, queria ver um meteoro cruzando o céu em direção à Terra ou os anjos do apocalipse descendo... qualquer coisa que simbolizasse o fim. Um fim que me privasse de todas as responsabilidades e decisões que pesavam sobre meus ombros. Mas não adiantava eu tentar me refugiar na pseudo-harmonia de um movimento pendular quando o que me esperava eram os movimentos bruscos de uma montanha-russa. Não teve meteoro, nem anjos. Enfim, só mais um desejo entre tantos outros não realizados (a propósito, você já deve tá cansado de me ouvir desejando o fim do mundo).

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XVIII Matar tempo já é uma coisa entediante, escrever sobre esse tema é algo mais entediante ainda; agora, ler alguém descrevendo uma “matada de tempo” dispensa comentários. Acho que você já teve paciência comigo por ter lido até aqui, e agradeço por isso. Não vou mais te aborrecer narrando o que eu fazia nas horas que eu não tinha nada pra fazer. Vamos direto ao ponto: o talk show. Finalmente, chegou a hora. Às 17:30 me encaminhei pro estúdio. Como já disse, devia tá lá às 20. Passei pela segurança e fui bem recebido pela organizadora do programa. Eu tinha pensado que era mais de um entrevistado por programa, mas eu tinha me enganado. Eu seria o único da noite. Compreendi melhor o porquê de tanta relutância pra me encaixar no programa. Eles deviam ter um cronograma bem organizado e certamente não devia tá sujeito a alterações (salvo raríssimas exceções). Fui levado a uma salinha onde me serviram suco e alguns biscoitos. Alguns minutos depois, a organizadora apareceu me dizendo que eu deveria ser maquiado; eu dispensei. Ela insistiu bastante, mas, muito a contragosto, acabou desistindo. Então, ela resolveu me explicar as normas do show, o protocolo que deveria ser seguido. Interrompi ela logo no começo e expliquei quais seriam as normas naquele dia. Não importava o que eu fizesse ou dissesse, a transmissão não deveria ser interrompida. Se alguém interrompesse, todos estariam despedidos. Disse também, numa tentativa de tranqüilizá-la, que não se preocupasse, eu não faria nada muito grave. E, além do mais, uma polêmica ou outra sempre aumenta a audiência. Parece que ela não se sentiu muito confortada, ficou me olhando com uma cara de espanto, como quem recebe de um médico a notícia de que tem só mais alguns meses de vida. A coitada não conseguia nem formar frases direito. Aquele show devia ser a vida dela e eu tava ameaçando ele. Ela disse que precisava fazer uns acertos finais e saiu. Alguns minutos depois, o apresentador (ou entrevistador) do programa chegou pra conversar comigo. - Seu Prometeu, como vai? - Bem, e você?

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- Quero que o senhor saiba que, apesar de ter sido pego de surpresa, fico muito contente em recebê-lo em meu programa. O senhor sabe que eu já queria isso há muito tempo. Felizmente, o senhor mudou de idéia e resolveu aceitar o convite. - Eu não tenho certeza de que eu tinha sido convidado dessa vez. - Que isso! O convite não tinha prazo de validade. - Espero não ter atrapalhado os teus planos. Imagino que o programa exija uma preparação prévia. - Eu já tô nesse meio há muito tempo; além disso, eu sempre soube que perguntas gostaria de fazer ao senhor. “Só receio que você não tenha tempo de fazê-las _ pensei”. - O senhor tá nervoso? _ perguntou ele. - Não. Nenhum poco. - Ótimo, o senhor não precisa se preocupá. Eu não vô fazer nenhuma pergunta que possa vir a complicá-lo. Não vô colocar o senhor numa sinuca de bico. Mesmo porque, eu gosto do meu emprego _ típica piadinha sem graça, que me obrigou a dar uma risadinha constrangida; ele riu com vontade, pra me obrigar a rir também. Depois de conferir o relógio, ele falou: - Já tá quase na hora. Acho que eu vô pra maquiagem, o senhor não vem? - Não; dispensei. - Admiro o senhor. Mas, confesso que, na minha idade, mostrar o rosto pra mais de cem milhões de pessoas gera uma certa insegurança. Será que ele quis me botar medo (interrogação)? - E quanto ao traje? _ insistiu ele. _ O senhor dispensou o terno também? Não disse nada. Só fiz uma afirmação com a cabeça, mostrando todo o meu enfado. - Boa escolha! Vai aumentar a sua popularidade entre os jovens _ (por que eu ia querer ser popular entre os jovens? Nunca ia fazer propaganda de refrigerante nem chinelo). _ Eu costumo dizer que daqui a alguns anos os ternos serão coisa do passado. - Os talk shows também. Até hoje, não consigo deixar de achar graça quando me lembro desse momento. Não acredito que falei aquilo. O cara pagando o maior pau pra mim e eu soltei aquela. Essa é uma das poucas coisas que me orgulho de ter feito. O momento que se seguiu foi um tanto deplorável e não nego que cheguei a ficar com pena do sujeito. Acho que pela primeira vez vi aquele sorriso falso desmanchar (o cara não tinha olhos, nariz e boca; ele tinha olhos, nariz e sorriso). Ele forçou um risinho sem graça logo em seguida e não soube o que falar. Eu não ajudei ele. Aposto que ele ficou morrendo de medo que eu dissesse alguma coisa do tipo no ar (se você perguntou: “Por quê? Antes você tinha dito no vácuo?”; saiba que você é sem graça). - Bom... eu já vô indo... fique à vontade. Daqui a pouco alguém virá chamá-lo. - Tá certo. Uma assistente insistiu comigo pra que eu fizesse uma maquiagem. “Só alguns retoques _ dizia ela”. Eu já tava a ponto de ser rude outra vez, mas consegui me controlar. “Então, vamos mexer um pouquinho no seu cabelo”. O silêncio foi a minha única resposta. Ela acabou desistindo, pediu que eu a acompanhasse até o set. Os câmeras já tavam a postos. A organizadora, ou coordenadora (ou qualquer coisa do tipo) do show também tava lá. Ela parecia passar umas instruções finais pro pessoal, mas acho que tava querendo só mostrar serviço. Sentei numa cadeira de frente pra uma mesinha;

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do outro lado, tinha uma cadeira vazia. Aquele clássico cenário de talk show. Não demorou muito e o apresentador/entrevistador chegou. - Muito bem, Seu Prometeu, faltam 5 minutos pro programa começar. O senhor tem preferência por algum tema a ser discutido? Política, economia, literatura, ONGs... - Não, não tenho preferência nenhuma (pensei em fazer alguma piadinha, mas achei melhor não). - A gente pode começar falando sobre o início da sua carrera, sua ascensão meteórica... que tal? “Bem original _ pensei”; mas dispensei a ironia. - Eu não sei, você escolhe qualqué tema, tá bom? Ele fez uma cara estranha. Com certeza ele tava com medo que eu aprontasse alguma. Entendo ele. Um entrevistado instável, diante de mais de cem milhões de pessoas, quem não ficaria nervoso? Na realidade, há quem não ficaria, mas foi uma pergunta retórica. Ele ainda tentou puxar uma conversa sobre alguma banalidade, pra tentar dar uma descontraída, mas nem ouvi direito o que ele falou. - Um minuto pra ir ao ar _ disse o diretor. - O senhor continua tranqüilo? _ perguntou o entrevistador/ apresentador. - Continuo. - Se o senhor não quiser se aprofundar em algum assunto, é só dar uma resposta curta, eu vô entender. - No ar em dez segundos _ tornou a dizer o diretor. Silêncio. Quase houve um certo conforto, uma certa calma. - No ar em 3... 2... 1... “Boa noite! Hoje o programa conta com a presença mais que especial do Seu Prometeu, que, além de nosso convidado, é também o meu chefe. Boa noite, Seu Prometeu”. - Boa noite. - Eu não posso negar que estou bastante curioso quanto a uma questão, o senhor foi convidado várias vezes a participar do nosso programa, e a programas do mesmo gênero em outras emissoras, mas recusou todas. O que o levou a mudar de idéia agora? Perdeu a timidez? - Não... posso falá a verdade mesmo? Ele ficou com medo nessa hora. Tenho certeza. Não importa se ele tinha 30 anos de experiência e o diabo a quatro, ele ficou com medo. - Claro que pode _ a frase afirmativa era totalmente destoante da hesitação da voz. - Eu sempre quis sabê o que vocês serviam nessas canecas _ falei levantando uma caneca do programa, igual a do apresentador. _ Mas não vô contá pra você aí de casa, porque esse é o tipo de curiosidade saudável e motivadora _ ironizei. O apresentador/entrevistador soltou um risinho nervoso e continuou: - Muito bem, mudando de assunto... - Só mais um momento _ interrompi _, eu não tava brincando quando mencionei as canecas. Mas há um motivo mais forte que me levou a aceitar o convite, ou melhor, me convidar ao seu programa. O sujeito tava tenso. Caras experientes assim sabem quando vai dar merda. - Pois não, Seu Prometeu, estamos todos curiosos. Que motivo foi esse? _ dava pra perceber nele um: “Por favor, não ferre comigo”. - Esses dias eu conheci um cara... eu nem sei por onde começá. Bom, acho que na verdade eu queria dá um recado. Esse cara me tratô como se eu fosse um burguês porco, - 200 -

como se eu fosse um tapado metido à besta porque tenho dinhero. Cê sabe, como se eu fosse uma prostitutazinha desse sistema, uma prostituta que acha que tá mandando bem. - Seu Prometeu, por favor... - Não, só mais um instante. Eu queria dá o meu recado pra esse cara, e pra essa burguesia e projeto de burguesia, que tá com a bunda colada no sofá, assistindo TV, se intupindo de amendoim e coca-cola. O meu recado é basicamente este: Eu vô enfiá o meu pé nessa tua bunda gorda. Não importa como, eu vô ferrá com esse sistema em que vocês mamam. Por isso, aproveitem pra assisti TV, tomá refrigerante, comprá microondas, e todas essas coisas que os burgueses fazem, enquanto há tempo. Por que você não me convida pro teu aniversário agora, seu palhaço? Na minha frente, um apresentador atônito. Do meu lado, organizadora/coordenadora, diretor e câmeras atônitos. Imagino que, nas casas, alguns milhões de telespectadores(as) atônitos(as). Eu tava saindo quando lembrei de uma coisa e voltei: - Robs, essa é pra você (em seguida, falei uma série de palavrões, partindo dos mais pesados). Eu devia essa pro Robs. Achei que não era necessário escrever os palavrões aqui. Imagine você mesmo(a) alguns dos piores que você conhece. De repente, alguém saiu daquele transe de estupefação e gritou: “Corta!”. Tarde demais, eu já tinha maculado alguns milhões de lares com embaraçosas palavras de baixo calão, que todos falam, mas que fingem não falar. Isso não tinha sido o pior, num desabafo contra aquele tal Imperador, eu tinha declarado guerra abertamente ao capitalismo. Um oponente teoricamente (e provavelmente) indestrutível. Os aliados dele seriam desde a classe que tinha renda suficiente pra ter uma TV na sala e fazer um churrasco um final de semana ou outro até os presidentes das maiores corporações e nações mundiais. Em suma, os que poderiam me apoiar seriam os oprimidos e frustrados do mundo inteiro, que provavelmente não detém nenhum tipo de poder, nem bélico, nem político ou econômico. Ou seja, aparentemente, eu tava em desvantagem. Enquanto eu passava pelos corredores, saindo do estúdio, ninguém disse uma única palavra. Todos os olhares me seguiam, com várias indagações implícitas, mas nenhuma proferida. Era como se tivessem diante de um alienígena e não soubessem o que dizer ou de que maneira se comunicar. Eu só andei, passando com minha nave por universos diferentes; universos que, até hoje, me pergunto se são ordinários ou extraordinários. Tudo bem, chega dessa conversa metafórica. Desci algumas escadas e cheguei ao estacionamento. Não foi exatamente um rejúbilo do meu ser, mas aquele ar fresco do estacionamento subterrâneo me trouxe um tipo de alívio; apesar do ar condicionado, o estúdio tava muito quente, bem, talvez o desconforto fosse por aquela situação em si... Não posso negar que eu tava sentindo um certo remorso por ter feito aquilo que tinha acabado de fazer. Se eu avaliasse a situação como um todo, ainda achava que tinha feito a coisa certa, mas não conseguia deixar de sentir pena do apresentador/entrevistador e de todo o pessoal da produção. O que eles teriam feito depois que eu saí? O que eles estariam fazendo enquanto eu caminhava até o meu carro? Muitos autores conceituados trataram esse “peso na consciência” como um sinal da fraqueza humana. Eu discordo, eu acho que é um sinal da espécie humana e, de alguma forma, me confortava senti-lo. Me confortava saber que eu sentia realmente aquela compaixão que (eu preciso acreditar) é inerente a nossa espécie. De repente, um pano embebido em éter em meu nariz e na minha boca e as imagens perderam a forma pra logo em seguida darem lugar à escuridão.

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XIX Eu tentei prender a respiração instintivamente quando colocaram aquele pano na minha cara, mas não adiantou muito. Acordei com a cabeça doendo um pouco e com um pouco de enjôo também. Apesar de sentir que tava com os olhos abertos, tudo continuava escuro. Comecei a me mexer, senti que tava com os punhos amarrados atrás do respaldo da poltrona. - Solta ele e tire o capuz também. Eu conhecia aquela voz. Apesar de não acreditar que ela pudesse pertencer a quem ela pertencia, eu conhecia ela. Robs. - Hora de esclarecer as coisas, Prometeu. Hora de surgirem os conectivos e tudo fazer sentido. Meu coração tava disparado. Eu tava desesperado pra enxergar de uma vez o que tava ao meu redor. Quem sabe assim eu pudesse acreditar que era real (se o conceito de realidade ainda estivesse ao meu alcance). Porque eu conhecia aquela segunda voz também, que tava mais próxima de mim, acatando a ordem da primeira. Era o Imperador! Se eu já tava confuso e surpreso, fiquei ainda mais quando tiraram o meu capuz. Eu tava na sala presidencial de uma das minhas companhias. E, quando meu cristalino acertou o foco, se formou na minha retina a imagem do Robs e (não sei por que isso me surpreendeu tanto, mas me surpreendeu) da Helena. Soltando os meus punhos, tava um sujeito de estatura média, de olhos pequenos e com umas entradas que mostravam um princípio de calvície. - Pronto _ disse ele. _ Melhor agora? - Não acredito! Você é o Imperador? - Por que a surpresa? Será que eu não tenho nenhum quê de nobreza? - Não _ respondi prontamente. O Robs riu. - Sinceridade acima da conveniência, esse é o Prometeu que eu conheço. - E você? O que que cê tá fazendo aqui? E você, Helena? A Helena parecia ter um olhar meio envergonhado; por outro lado, o Robs tinha um risinho que ficava entre o triunfo e a arrogância. - Você já sabe, Prometeu _ disse o Robs. _ Você só não qué acreditá, mas já conhece boa parte da história. Talvez ainda não conheça os objetivos e alguns detalhes...

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- E você, Helena? - Eu o que, Prometeu? Por que esse olhar acusador, esse tom de indignação? Eu só tô ajudando. Ajudando você, o Robs e todas as pessoas que até hoje vem sendo sufocadas por essa sede de poder, por esse sistema de castas e dinastias... Tava explícito que tinha dedo do Robs naquela fala. Ele tinha feito uma lavagem cerebral na irmã (não digo que tenha sido uma lavagem ruim, mas foi uma lavagem). Talvez a Helena seja a pessoa mais fascinante que eu já conheci, mas, acredito que pela própria inocência dela, é inegável que ela é um tanto vulnerável... como explicar? Digamos que ela seja suscetível a bons argumentos. - E aquilo que você disse quando eu tava vendado, era verdade? Tipo... sobre você tê usado um monte de medicamento e drogas... - Não... Alívio. Só depois que você tá ferrado essa palavra tem valor. Se tua bexiga não tá explodindo, não tem graça dar aquela urinada. - ... eu fiquei arrasada, óbvio. Mas o máximo que fiz foi tomar um porre com meia taça de vinho. Que engraçado! Típico dela. - Que romântico! _ interveio o Robs, fazendo uma cara de besta. _ Mas vamo voltá à realidade. - Tá certo. E quais são os objetivos? Onde eu me encaxo nisso? Onde vocês se encaxam nisso? E esse cara aqui, ele é mesmo o tal Imperador ou é tudo lorota? - Lorota... _ disse o Robs rindo. _ Por isso que eu gosto de você, Prometeu, quem mais usa expressões como essa hoje em dia? Essa juventude só usa gírias relacionadas às genitálias, de forte apelo sexual, mas sem graça nenhuma. - Tá bom, Robs, otra hora a gente discute gírias, termos e gerações. Agora, será que cê podia respondê o que eu perguntei? - Esse cara? Imperador? Olhe pra cara dele... _ disse o Robs rindo. Eu não agüentei e acabei soltando um riso. É que o sujeito definitivamente não tinha cara de Imperador. - Não tem jeito, a humilhação do “outro” sempre será uma coisa engraçada _ concluiu o Robs, sem sinalizar as aspas com os dedos. - Até tu, Brutus? Olha como cê fala comigo, eu sô perigoso, hein! - Perigoso, com essa cara? _ falei. Rimos outra vez. Se não fosse por um milhão de fatores, poderia dizer que estávamos de volta a nossa adolescência. - Não entendo como vocês podem ser tão infantis numa hora dessas _ disse a Helena. _ Por favor, o negócio é sério. - Salvos pela maturidade feminina. Como alcançá-la com tanta testosterona circulando pelo corpo? Mas a Helena tem razão, ela sempre tem razão. Vô pedi que o Júlio César se retire. Por favor, dexe a gente a sós. - Ingrato! Depois de tanto tempo de ménage à trois, você me descarta assim? _ o cara riu espontaneamente. Ele passou pelo Robs e deu um aperto de mão camarada. - Valeu, cara _ disse o Robs. Depois ele cochichou alguma coisa no ouvido do outro e finalizou: - Me espera lá fora, com os otros.

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Pode ter sido impressão minha, mas a Helena (que, a propósito, não respondeu a reverência feita pelo sujeito) olhou pra ele com uma cara de poucos amigos. Depois que o cara saiu, insisti: - E então? Será que alguém pode me dizê o que que tá acontecendo? - Fala de uma vez, Robs _ disse a Helena. - Vamo lá. Esse cara que acabô de saí agora, e que se apresentô pra você como John, depois Freud e por último Imperador é um membro do nosso grupo. Os encontros que você teve com ele aconteceram de fato, assim como aquelas coisas doidas: o outdoor que sumiu, a toalha no bar, o bar que sumiu, a trombada com a Helena... enfim, tudo foi real. Não nego que senti um certo alívio. - Mas como vocês conseguiram? - A gente tem um poder enorme, uma influência fabulosa. A gente podia fazê o mundo pará se quisesse. Na verdade, a gente vai fazê mais, vai fazê ele girá ao contrário. Mas, continuando, quando você achava que tava falando com o Imperador, ou Freud ou John, você tava falando comigo. Havia microfones... enfim... eu ouvia tudo que cê falava; quando era na sala eu via tudo que cê fazia, e o cara tinha um ponto no ouvido pra eu dizê pra ele o que ele devia falá. Ou seja, os diálogos eram entre eu e você. Mas a questão principal é que a gente tinha, tinha não, a gente ainda tem, um problema gravíssimo, talvez o maior problema da humanidade. E esse problema se chama instituição. Desde sempre essa opressão ao indivíduo, tá na hora da gente se libertá. Eu ia sê um idiota se fechasse os olhos pras milhões de possibilidades negativas que a ausência de uma instituição implicaria. Mas por que não tentá? E se dé certo? Se a gente tivé uma chance em um trilhão, pra mim, vale a pena. Quais eram as chances de um dia a Terra se torná um planeta apto a produzi vida, e dessa vida evoluí à espécie humana? Quais eram as chances de um determinado espermatozóide do teu pai fecundá o óvulo da tua mãe? Quais eram as chances de a gente ter se encontrado há alguns anos atrás e dos fatos terem levado a este nosso encontro de agora? O impossível acontece, Prometeu, sempre. Se a gente não tentá, qual é a nossa outra alternativa, vivê nessa merda pra sempre? Esperá que um dia as coisas mudem sozinhas? Que uma solução caia do céu? - Espera aí, espera. E se não for uma merda, Robs? - Como? - Já passô pela tua cabeça que pode existi no mundo pessoas que, na medida do possível pra nós seres humanos, são felizes? Pessoas que não olham com olhos revoltados pro sistema, pros vizinhos, pros logotipos, pras corporações... já passô pela tua cabeça que pode tê um cara que chega cansado do trabalho, encontra a esposa e os filhos, istora uma pipoca, assiste um filme e se sente satisfeito? - Cê sab... - Espera! Ainda não acabei, já passô pela tua cabeça que o motivo da nossa revolta é que nós não somos esse cara? Que eles não são um bando de tapado, mas que a gente tá correndo atrás de uma mirage, de uma utopia impraticável. - Bons argumentos. Um poco desgastados, mas bons. Cê acha que isso só passô pela tua cabeça? Não, passô pela minha também. Mas, primero, eu confio mais em mim do que nessa descrição do típico cidadão de classe média alienado. Segundo, agora saindo do egocentrismo pra democracia, será que esse bom cidadão é a maioria? Nem preciso respondê. E, antes de eu chegá nos otros argumento, você tá no meio dessa merda toda e sabe como funciona. Transnacionais, neoliberalismo, globalização... tudo isso significa lucro de pocos e prejuízo de muitos. Paraíso pra dois ou três, inferno pra bilhões. - 204 -

Eu sabia que não ia conseguir mudar a maneira do Robs pensar. Nem sei se queria isso. Ele prosseguiu: - Voltando à Instituição, veja o quanto ela é ridícula! Olhe essas leis ridículas que a gente é obrigado a segui. E, se as infringimos, nós somos punidos, como se nós estivéssemos errados, e não aquilo que foi aprovado por algumas dezenas de boçais. - Boçais, na maioria das vezes, eleitos pelo povo – argumentei. - Por um povo despreparado. - O que você sugere? Uma ditadura? - Não. Se a gente não tá preparado pra constituí uma instituição, então, que ela simplesmente não exista. Não que a gente tenha que se curvá a uma merda mal feita. Eu tenho uma vida, Prometeu, e ela não é tão longa assim. Eu só quero sê livre pra, depois, tentá buscá a minha satisfação. Eu sei que não vô encontrá ela, mas, tendo liberdade, eu vô chegá muito mais perto. Eu só quero podê andá nesse mundo que pertence a nós e a todos que estão vivos, sem precisá de uma merda de passaporte. Eu só quero não tê que andá com uma droga de identidade na cartera, aliás, eu só quero não tê que andá com uma cartera. Eu não quero que o poder seja medido por quantas nota de papel com a cara de um figurão você tem no bolso. Eu quero vê o fim dessa burocracia estúpida. O fim de toda instituição, religiosa, financeira, estatal, industrial e até familiar. Sim, até a familiar. Nós todos somos uma grande família, esqueça esse vínculo animal estúpido com os teus próprios genes. Esqueça esse negócio ridículo de herança. Todos nós nascendo iguais, na mesma situação e com as mesmas oportunidades, isso é justiça. As crianças não precisam sê obrigadas a convivê só com os seus familiares biológicos. A família é irracional. Num exemplo ilustrativo, se um indivíduo tivesse que escolhê entre a vida de um irmão, filho ou pai e a vida de um novo messias ou de um gênio, quem você acha que ele escolheria? Ele optaria pela vida do parente dele. Eu não quero muito, Prometeu, eu só quero o orgânico acima do concreto, a pele acima do látex, o sangue acima do petróleo... - Fala a verdade, essa última parte cê tinha ensaiado. O problema é que isso tudo que cê falô é muito bonito, meio romântico e não dexa de tá certo, mas você tá esquecendo dos otros. Eu posso tê esquecido dos “otros” quando falei do “bom cidadão”, mas cê tá cometendo o mesmo erro. Cê tá esquecendo que nem todo mundo é igual você, a Helena e eu... A Helena continuava em pé, assistindo àquilo tudo com uma certa admiração, como se tivesse vendo uma peça de teatro pela primeira vez. O Robs tava em pé também, mas o ar dele era bem diferente do da irmã. - Senta, Helena _ falei automaticamente, como se aquele fosse um encontro qualquer _, desse jeito cê vai cansá. Tem cadera aí; você também, Robs. Eu não vô amarrá nem encapuzá nenhum de vocês _ fiz uma piadinha infeliz. - Brigada _ disse a Helena, sentando meio sem jeito. O Robs também sentou, e eu retomei o assunto: - Continuando... onde eu tava mesmo? Ah, sim, cê tá esquecendo dos “espírito de porco”. Se não tivé polícia, se não tivé um poder judiciário, imagine que zona isso tudo vai virá. Tem gente que só não faz merda por medo da punição. Por medo desse negócio mais forte que o indivíduo e habilitado a puni, a Instituição. E otra, a indústria pode sê uma merda, mas como mantê a atual população sem ela? Tudo bem, a gente pode vivê sem celular ou DVD, mas ela também fornece os itens mais básicos pra nossa sobrevivência. - Eu sei, eu sei. Primero vai havê o caos, depois as coisas vão se ordenando naturalmente. Acho até que, a longo prazo, vão surgi novas instituições. Mas não iguais a - 205 -

esse lixo que existe hoje em dia. No início as coisas vão sê um poco difíceis, vai parecê uma lei primitiva. Você não vai fazê mal ao indivíduo temendo a reação dele ou do grupo ao qual ele pertence. Vão surgi grupos, gangues e pequenas sociedades... Não nego, é provável que falte alguns elementos necessários à sobrevivência, mas tem bilhões que sobrevivem sem esses elementos hoje. A única alteração é que não vai tê diferença entre elite e plebe. As pessoas não vão tê acesso a um monte de serviços a que tavam habituadas, vai acabá o conforto e a comodidade de alguns, mas talvez também sejam atenuados o desconforto e a miséria de muitos. E a indústria, depois do primero impacto, ela vai ressurgi. Mas não vai pertencê mais a meia dúzia de capitalistas, nem a um estado autoritário. Ela vai pertencê a cada um de nós, vai sê um bem comum. Só serão fabricados os produtos que podem chegá a todos. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. - Você tá viajando, Robs. É impossível prevê esse tipo de coisa. - É por isso mesmo que a gente vai tê que tentá a sorte. - E como que cê acha que a gente vai chegá nessa situação, cê tem algum plano? É impossível criá um colapso desse porte. - Pra falá a verdade, você tem um plano. Você sempre teve os melhores planos. Como assim eu tinha um plano? “A não ser que... _ pensei”. Um espasmo na boca do estômago e um amolecimento na curva das pernas, como acontece quando a gente passa com o carro em alta velocidade por uma elevação na pista (sabe aquele clássico “sobe-desce”?). O Robs riu. Olhei pra Helena, ela continuava com aquele aspecto de admiração, misturado com susto ou pena, não sei. Eu devia ter ficado pálido. - “Apologia ao Caos” _ disse ele. _ “Projeto Apologia ao Caos”. O Robs tava certo, o impossível acontecia a todo momento. - É... é impossível... como? - Foi alguns anos depois daquela tua saída repentina. A gente ainda tava puto com você. Lembra que o Indy tinha aquela folia de hacker, e não sei o quê? Pois é, ele teve a brilhante idéia de invadi o teu PC particular, só pra te sacaneá, pra ferrá com tudo. Mas aí ele achô um documento interessante, o título era: “Apologia ao Caos”. Ele leu e depois mostrô o documento pra mim. Eu quase não acreditei. Era fantástico, era genial. E tudo fez sentido, o teu comportamento, as tuas atitudes aparentemente incompreensíveis, a tua sede de acumulá cada vez mais e mais bens, mais e mais ações... A nova revolução não podia sê política, não podia sê armada, não podia sê popular. A nova revolução só podia ser econômica. É claro, depois daquilo, tudo que cê fez era tão compreensível. Basicamente, a idéia do teu projeto era bastante simples, acumulá o maior número de ações, das principais empresas mundiais, e depois, quando cê tivesse uma quantia considerável, colocá todas elas à venda de uma só vez. Você pensava que essa superexposição ia provocá uma queda brusca nas cotações e um grande crash. Mas, mesmo assim, esse crash não ia fazê nem cócega no mercado. Por isso, a gente criô um projeto paralelo, o “Projeto Big Bang”, qué dizê, quase paralelo, porque, num determinado momento, o projeto “Apologia ao Caos” vai se acoplá ao “Big Bang”. - É impossível. Eu já tinha decidido retomá o “Apologia ao Caos” e, realmente, vô colocá ele em prática. Eu não suporto mais esse estilo de vida. Eu cheguei a pensá que o resultado seria maior, mas, o máximo que pode acontecê é eu consegui quebrá algumas empresas. Só isso... - Você tá certo, com o “Apologia ao Caos”, isso é tudo que pode acontecê, mas não com o “Big Bang”. O MS2 se expandiu muito, cresceu de forma extraordinária, o movimento existe no mundo intero. Sei que tem otros movimentos que existem no mundo intero, mas nenhum como o MS2. O MS2 não é um movimento aberto, nós escolhemos a dedo os nossos - 206 -

membros. Só entra a nata, o inteligente entre os inteligentes, só entra o forte entre os fortes. E, durante anos o foco do nosso movimento é um só: “Projeto Big Bang”. Muitos membros venderam tudo que tinha pra subsidiá esse projeto; não existe medíocres entre nós, não existe hesitação. Eu e a Helena vendemo aquela casa dos nossos pais, o exemplo precisa ser dado. Alguns caras, selecionados entre esses integrantes seletos, passaram a freqüentá a alta roda com esse dinhero arrecadado. O objetivo? Convencê os maiores magnatas do mundo a queimarem suas fortunas, como você vai fazê com a tua. Realmente, não era uma tarefa fácil. Mas quem disse que a gente queria que fosse fácil? Nós éramos os melhores e queríamos o maior desafio que pudesse existi. Os métodos de persuasão empregados foram os mais diversos, a grande maioria foi parecida com o que a gente usô com você. Na época foi muito mais difícil, a estrutura que a gente tinha nem se compara com a que a gente tem agora. Mas teve métodos muito mais simples, alguns caras só precisaram de dois ou três copos de whisky numa festa, algumas frases de efeito e pronto! Parece mentira, mas não é. Esses véio que já tiveram de tudo na vida, e sabem que a morte não tá longe, não suportam o tédio, a monotonia da vida deles. Eles topam qualqué coisa diferente, querem parecê jovens, ousados. Pra isso, aceitam até jogá todo o dinhero deles numa grande foguera. - Isso não tem cabimento, esses cara não iam aceitá se desfazê do dinhero deles assim, cê tá inventando. - É verdade, Prometeu. Eu mesma já falei com um monte desses caras que saem nas listas dos mais ricos do mundo. Eu também não entendo como eles aceitaram, só sei que é verdade. Eu acho que, de alguma forma, era pras coisas acontecerem desse jeito. Os ventos sopraram a nosso favor de um jeito quase inacreditável. Por mais que eu quisesse, eu simplesmente não conseguia duvidar da palavra da Helena. - Quem tá com vocês? Bill Gates? - Uuuooouu!!! Pexe grande. É claro que esse não podia faltá, eu cuidei dele pessoalmente. Mas tem muito mais; a gente tem trilhões pra queimá, pra fazê a maior foguera do mundo. A gente vai quebrá as principais Bolsas do mundo... as nota de cem só vão servi pra limpá a bunda. Adeus sistema bancário! A gente tem uma porrada de banquero do nosso lado também. Dá pra acreditá, Prometeu, a nossa geração vai fazê a maior revolução que este mundo já viu. - Pra falá a verdade, não dá pra acreditá não... esse sistema é muito forte, muito bem estabelecido. - Esqueça os mitos, Prometeu. Olhe pro passado, todo sistema quebrô. Veja a realidade, todo o sistema quebra. Chegô a vez desse. - Mas tem muita coisa que não faz sentido... tem coisa que não se encaxa... Por que vocês fizeram isso tudo comigo, se fui eu que tive a idéia do projeto? - A gente precisava confirmá que cê não tinha mudado de idéia. Mas não era só isso. Toda revolução precisa de um ícone, cê sabe, precisa daquele símbolo. E, convenhamos, o Bill Gates não cairia muito bem nesse papel de figura humana que representa o movimento. Cê acabô facilitando demais as coisas pra gente. A gente tinha mais um monte de sessão programada. A idéia era justamente impeli você a fazê uma declaração pública, aliás, a que você fez foi perfeita, ou até mesmo provocá o suicídio. - Você não tinha me falado isso. Cê não tinha dito nada sobre suicídio. Por que você me trata assim, como uma menina boba? Aposto que se ele se suicidasse você não ia me dizê que fazia parte dos planos. Ia menti pra mim. Ia dizê que tinha sido um acidente. Por que você faz isso comigo, Robs? - 207 -

- Calma, Helena. Isso seria em último caso. Se nada desse certo, a gente ia conversá abertamente com ele e pedi pra ele fazê uma declaração. - Dane-se você, Robs. Como você pode sê desse jeito, uma vida não é nada pra você. Essa droga de revolução ia sê sem mortes, sem violência. Como a Helena era ingênua! Sem mortes? Sem violência? Se aqueles planos dessem certos, que cenário ela esperava ver depois? - Deve sê por isso que vocês me colocaram naquela ilha junto com uma pistola que, de forma sugestiva, tinha só uma bala. - Que isso, Prometeu? Eu te conheço, eu sabia que cê não ia se matá. A tua personalidade é muito forte pra se entregá assim... aquela arma era só pra criá um clima. - Ah, claro, desculpe. Eu tinha esquecido que cê sabe o que eu sinto melhor do que eu. Que você sabe exatamente o que vai acontecê. - Como você pode sê tão arrogante, Robs? - Que isso? É um complô contra mim? - Você vai me falá de complô. Como você aceitô participá disso, Helena? - Então tá, como cê pôde í embora sem me falá nada, Prometeu? Como você pôde ficá esse tempo todo sem me telefoná, ou mandá uma carta, um e-mail, qualqué coisa... - É diferente, eu só quis te poupá dessa lama toda, desse papel ridículo que eu tive que encená esse tempo todo e que quase acabô se tornando eu de verdade. - Ótimo, você só esqueceu de perguntá se eu queria sê poupada. Engraçado, porque vocês sempre se esquecem de me contá alguma coisa, de pedi a minha opinião, de permiti a minha participação. Será que eu sô tão insignificante assim? Será que vocês conseguem me enxergá...? - Iiiii... essa conversa tá ficando muito violenta, muito pessoal, pro meu gosto _ disse o Robs com aquele seu habitual ar de deboche. _ É melhor a gente lavá a ropa suja otra hora, com mais calma. Quem sabe você enxergue otro possível problema que eu não vejo. Desculpe, vocês enxerguem, já que a Helena tá com um complexo de excluída. - Eu enxergo bilhões de possíveis problemas que você não vê, Robs. - Tá certo, então, cê podia me ajudá a encontrá possíveis soluções. Só não vá tomá nenhuma atitude precipitada. Todas as ações têm que sê colocada no pregão na mesma hora. Se você fizé alguma locura, a gente vai sabê, e a única diferença é que as coisa vão saí menos planejada. Se elas saírem menos planejada, vai sê pior pra todos. - Como assim? Como que as coisas ficam? A gente vai se encontrá mais tarde como se nada tivesse acontecido, como bons amigos? _ fingi indignação. - É _ disse ele demonstrando estranheza, como se eu tivesse feito uma pergunta besta. _ Por quê? Cê tá de mal? Da minha parte, bons amigos é suficiente, agora acho que a Helena qué algo mais. Acho que ela passô esse tempo todo esperando você, dá pra acreditá?! Nunca teve nada sério com ninguém. E olha que não faltô pretendente... - Cala a boca, Robs! Aqueles dois não mudavam nunca. Não posso negar que senti uma ponta (tô mentindo, senti muito mais que uma ponta) de alegria por ter ouvido o Robs dizer aquilo. Ele continuava conduzindo as coisas da mesma forma: “Ou você tá do meu lado, ou tá fazendo papel de ridículo”. - Bom, então, acho que é melhor a gente í mesmo... _ disse a Helena, ainda meio envergonhada. _ Desculpa por tudo que a gente fez, Prometeu. - É, foi mal, Prometeu, acho que a gente pegô meio pesado. Mas aposto que você gostô. - 208 -

- Eu tô à disposição, quando vocês quiserem testá novos tranqüilizantes, mordaças e formas de tortura... Eles deram um risinho meio sem graça e já tavam saindo quando eu interrompi: - Esperem; só um poquinho, tem uma fita que eu quero mostrá pra vocês. - Fita? _ a Helena franziu a sobrancelha. - É, uma fita de áudio. - Se for do Prince, você deve repensá o negócio do suicídio _ disse o Robs. - Não, não é do Prince. Eu tenho uma cópia dessas em todo canto, em todas as minhas casas e nos lugares em que eu passo mais tempo. Eu já devo ter ovido isso um milhão de vezes. Talvez vocês já tenham ovido também, já que cês tinham acesso a quase tudo que é meu. - Eu não lembro de fita nenhuma, só se o Robs escondeu isso de mim também. - Pára, Helena. Eu também não sei de fita nenhuma. O interesse musical do Prometeu não era minha prioridade. Aliás, fita é uma parada bem anos 80; já ouviu falá em CD? Abri a primeira gaveta, procurei e nada. Depois, abri a segunda, nada também. Tava na terceira, embaixo de uns papéis. Coloquei a fita no sistema de áudio da sala, o que rendeu um comentário do Robs: - Que coisa de burguês, hein! Logo em seguida, começou a tocar “Dancing Queen”, do ABBA (brincadeira). Assim que a fita começou a rodar, deu pra ouvir umas vozes distantes e misturadas, bem no fundo da gravação. Aquela típica conversa misturada de locais com muita gente. De repente, a minha voz surge nítida, logo após, aparece a voz do Robs e uma risada da Helena. - O que que é iss... - Calma, vocês já vão entendê. A gravação que se seguiu continha o seguinte: “- Um restaurante qualquer, uma mesa qualquer, um vinho qualquer _ era a voz da Helena _, uma comida qualquer... e dois caras. Mas esses caras... esses caras não podem ser dois caras quaisquer. Eles precisam ser os dois homens da minha vida”. Um silêncio na gravação. Eu tentava decifrar o que os dois estariam pensando naquela hora, enquanto ouviam aquilo. Mas, dessa vez, eu não fazia a mínima idéia. “- Helena?! Não acredito! Você marcô um encontro e não avisô a gente? Que horas que esses cara vão chegá? _ era a minha voz”. - Que estúpido! – falei sacudindo negativamente a cabeça. Os dois riram. - Boa, Prometeu _ ironizou o Robs. - Fiquem queto, vamo ouvi _ advertiu a Helena. A gravação seguiu; agora, era a voz do Robs: “- No final parecia fala de filme europeu: “... os dois homens da minha vida””. - Boa, Robs _ não perdi a oportunidade. “- Vocês são dois babacas _ dava pra sentir o ar de riso na voz da Helena”. “- Tá bom então _ era o Robs. _ Agora eu também vô falá sério. Felicidade, pra mim, não é muito diferente do que você falô, tirando aquela parte de “dois homens da minha vida”. Felicidade é ter à minha direita o amigo mais doido e mais extraordinário do mundo, e, à minha esquerda, a minha Gorda. Meu Deus! É preciso tá bêbado pra falá coisas desse tipo. O garçom deve tá achando que eu sô gay”. “- Robs, acho lindo o que você falô. Só tem um problema: ou você vai tê que virá de costas, ou vai tê que trocá de lugar, porque eu tô à tua direita e o Prometeu tá à tua esquerda”. - 209 -

- Você também tava engraçadinha, Helena _ falei. - É, essa foi ótima, Helena. - Que vergonha! _ disse ela cobrindo o rosto com as mãos. “- Ah, muito engraçado. Você entendeu o que eu quis dizê, não entendeu?” Mais uma pausa e a minha voz surgiu: “- O que vocês tão esperando? Acho que não vai tê como eu escapá de uma manifestação também”. Outro período de silêncio. “- Bom, acho que isso qué dizê que não tem escape _ continuei (é sempre meio constrangedor ouvir a própria voz numa gravação, você não acha?) _ Então, lá vai. Felicidade pra mim é parecida com o que vocês disseram. Pode ser qualqué restaurante, com qualqué vinho ou qualqué prato, aliás, nem precisa ter restaurante, nem vinho e nem prato. Só precisa ter as duas pessoas com as quais eu mais me identifico nesse mundo. De um lado, um amigo que tem algumas idéias e alguns pensamentos parecidos com os meus, mas que tem outras idéias e outros pensamentos diferentes, como se fosse o que faltava pra mim. Do outro, uma pessoa que não é tão parecida assim comigo, que não tem a mesma ideologia, mas de quem, de uma forma curiosa, eu não posso me afastá. Eu preciso da presença dela, como eu preciso respirá ou comê. Ela tem uns olhos de menina, ri como menina, brinca como menina, e, acho que é por isso mesmo, é a mulher mais fantástica que conheci. Mas isso ainda não seria o suficiente pra ser felicidade pra mim. Ainda seria preciso que a minha presença fizesse eles felizes também, porque a felicidade deles é tão importante pra mim quanto a minha própria. Isso já me garantiria momentos felizes. Mas, pra sê felicidade, eu não deveria nunca mais cruzá aquela porta. Porque, lá fora, as coisas mudam. Só Deus, se Ele existe, é que pode ri pra sempre. Eu acho que nós podemos guardá na memória nosso melhor riso, como uma lembrança única, extraordinária, mas carregando também o peso de sabê que nunca mais teremos ele outra vez”. A gravação tinha acabado, mas a gente continuava em silêncio, olhando sei lá pra onde. Acho que a gente tava olhando pro passado. Eu não sei quanto a você, mas, pra mim, as lembranças parecem bem pouco reais. Parecem um sonho, os momentos longos parecem curtos, e os relativamente recentes parecem ter ocorrido há um século, e o oposto também. As lembranças boas são as que mais castigam, porque parece que você nunca mais vai se sentir como se sentia numa determinada época, nunca mais vai ter aquilo outra vez. O contraste das melhores memórias com um presente estagnado, repetitivo, é um dos maiores castigos que o nosso cérebro pode nos aplicar. - Prometeu, acho que eu tô apaixonado _ disse o Robs. O Robs sempre soube como quebrar certos climas, mas aquele tava difícil de ser quebrado. O comentário dele só provocou um risinho desanimado da minha parte, e nem isso por parte da Helena. Eles tavam de saída quando eu coloquei a gravação, mas, depois de ouvir, nenhum dos dois se manifestou pra ir embora. Eu também não queria passar por aquela porta depois de ouvir o que eu tinha falado. Parecia que o pouco que tinha restado acabaria se um de nós saísse, era só uma impressão besta, mas sei que eles sentiam o mesmo. Era o pavor do “pra sempre” e do “nunca mais”, no nosso vão conceito dessas palavras. Nunca mais ter aquilo outra vez; pra sempre sem aquilo. Finalmente, depois de não sei quanto tempo, o Robs levantou: - Vamo, Helena _ tinha uma certa hesitação na voz dele, não dava pra dizer se era uma frase no imperativo ou se era uma pergunta. - Vamo _ acatou ela, quase num sussurro, algum tempo depois. - 210 -

Os dois se levantaram. Eu levantei também, não sei por quê. Houve um momento daqueles em que ninguém sabe o que fazer, até que o Robs se virou e andou até a porta. A Helena seguiu ele. - É... uma hora a gente tem que cruzá a porta _ ele disse sem se voltar pra trás, saindo da sala. A Helena tava saindo quando se virou pra mim, os olhos meio úmidos tinham um brilho triste. Então, ela disse uma só palavra: - Tchau. - Tchau – falei tão baixo que mal pude ouvir a minha voz. A porta se fechou. Eu tava sozinho outra vez. Acho que eu sou uma das pessoas que mais estiveram sozinhas. Mesmo quando tinha outros comigo, quase sempre, era como se eu tivesse sozinho. É estranho, mas você acaba acostumando com a sensação. Naquela sala, foi um dos momentos em que o futuro mais me pareceu incerto. Acho que finalmente tá chegando o momento de acabar este livro. Eu tinha pensado em encerrar ele com uma frase de efeito, que também fosse conotativa, estilo: “Prometeu roubou o fogo dos deuses pra que, tempos depois, Nero incendiasse Roma”. Mas ia ser um negócio forçado demais, clichê demais e ia destoar muito do resto do livro. Então, achei melhor acabar com um aviso. O meu aviso é basicamente este: Eu vô enfiá o meu pé nessa tua bunda gorda. Não importa como, eu vô ferrá com esse sistema em que vocês mamam. Por isso, aproveitem pra assisti TV, tomá refrigerante, comprá microondas, e todas essas coisas que os burgueses fazem, enquanto há tempo (por que será que eu coloquei “comprá microondas”? Não tem nada a ver, que exemplo porco!).

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