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José Geraldo Vieira A RONDA DO DESLUMBRAMENTO E O TRISTE EPIGRAMA Editora Descaminhos São Paulo 2016 Edição André Car

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José Geraldo Vieira

A RONDA DO DESLUMBRAMENTO E O TRISTE EPIGRAMA Editora Descaminhos São Paulo 2016

Edição André Caramuru Aubert Produção editorial Clélia Aubert Assistência editorial Leda Botton Capa João Henrique Lear Revisão Aline Silva Foto de capa Theatre Normand, Londres, autor desconhecido. Acervo da New York Public Library. Copyright © 2016 by José Geraldo Vieira Todos os direitos desta edição reservados à Editora Descaminhos SP | 11 3062 9057 [email protected] www.editoradescaminhos.com.br

Sumário O NASCIMENTO DE UM MESTRE A RONDA DO DESLUMBRAMENTO O milagre do gesso A casula de ouro O enxoval A coroa de espinhos A IX Sinfonia A prima Lúcia O Monte Tabor Os pombos do claustro Uma operação gratuita João Lágrima O filho de Maria Bárbara O sacrilégio Martha das Terras Baixas Quando as ciganas passam... À maneira de Verlaine O segredo A taça de champagne Oscar Wilde Van Dongen

Carola Marwenga Baixo-relevo em lápis-lazúli A mandíbula A andorinha crucificada A princesa Salomé O TRISTE EPIGRAMA I II III IV V VI VII

O NASCIMENTO DE UM MESTRE

“Somos ainda tão moços e já arrastamos conosco uma renda de coisas mortas” José Geraldo Vieira, “A prima Lúcia”, em A Ronda do Deslumbramento, Rio, outubro de 1919.

José Geraldo Vieira preferia datar sua estreia como escritor em 1931, quando publicou A mulher que fugiu de Sodoma (escrito, na verdade, durante o Carnaval de 1924). Enquanto romancista, isso é verdade. Mas ele já tinha, naquele momento, dois livros publicados, O triste epigrama e A ronda do deslumbramento. O primeiro foi editado no Rio de Janeiro em 1920, quando José Geraldo acabara de concluir o curso de medicina e se preparava para deixar o Brasil com destino à Europa, onde faria especializações em Paris e em Berlim. O segundo saiu em 1923, justamente quando ele voltava ao Brasil, já médico radiologista, uma especialidade então nova e bastante promissora. Ao desprezar estes dois volumes inaugurais em sua carreira, José Geraldo Vieira estava aplicando a si mesmo, ou à sua obra, o rigor do esteta maduro que já havia publicado obras-primas da literatura brasileira, como A Ladeira da Memória (1950) e O albatroz (1952). Mas, do nosso ponto de vista de leitores, quase cem anos após o aparecimento daqueles dois diminutos volumes, a perspectiva deve ser naturalmente outra. É provavelmente devido a esse menosprezo do autor por seus dois livros da juventude que eles, ao contrário do que ocorreu

com os romances posteriores, jamais tenham sido, até hoje, reeditados. Para piorar a situação, as edições iniciais foram limitadas a poucos exemplares, o que faz com que os hoje sobreviventes sejam consideravelmente raros. O triste epigrama é um poema em prosa, curto e bastante inspirado na estrutura de Balada do Cárcere (Ballad of the Reading Gael), escrito na prisão por Oscar Wilde — cuja obra, aliás, era uma das maiores influências sobre José Geraldo naquele início de carreira —, e recebeu elogios de gente influente, como Ronald de Carvalho e Gilberto Amado. É livro que se lê rápido e com inegável prazer. A trama se passa no porto do Pireu, na Atenas clássica, e conta a história — a tragédia — de um rico comerciante que perdeu a memória e se tornou mendigo. Já ali estava um José Geraldo Vieira que, aos vinte e poucos anos de idade, preferia situar suas histórias em sítios distantes do Brasil, desfilando, sempre que possível, sua erudição a respeito da arte universal. João do Rio, um dos mais influentes críticos daqueles anos, não deixou de chamar a atenção para o fato, afirmando que, embora o livro fosse fruto de um autor promissor, faltava a este, ainda, a erudição necessária para arriscar a reconstituição de eventos passados na Grécia Antiga. Se por um lado é verdade que José Geraldo, após ter cursado o colegial na Suíça e ser já então um leitor voraz em várias línguas, era mais culto do que quase todo mundo de sua geração (e da anterior), por outro é inegável que João do Rio tinha alguma razão no que dizia. Afinal, como é que um médico carioca recém-formado, quase imberbe, se atrevia a escrever um poema em prosa à moda de Sófocles? Não consta, porém, que aquela crítica tenha afetado muito o jovem escritor, uma vez que, nos anos seguintes, suas

obras iriam cada vez mais em direção a um exacerbado cosmopolitismo. E se O triste epigrama, ainda imaturo enquanto livro, não pode ser comparado a qualquer dos romances posteriores de José Geraldo Vieira, é, no entanto, leitura bastante agradável, na qual já se pode identificar, como o fez então João do Rio (apesar das ressalvas), a fagulha do gênio. Alguns anos (e uma longa temporada na Europa) depois, José Geraldo Vieira publicaria A ronda do deslumbramento, volume com 24 contos. A evolução é notável. Todos os contos do livro foram escritos entre 1919 e os últimos dias de 1921. Aqui novamente a receptividade foi mais do que boa, mostrando que o ambiente intelectual do Rio de Janeiro, no início dos anos 1920, já reconhecia em José Geraldo um escritor promissor. O maior exemplo disso foi a entusiasmada acolhida de Agripino Grieco, então talvez o mais influente e respeitado crítico literário brasileiro, que dedicou nada menos do que 27 páginas de seu livro de ensaios Caçadores de Símbolos (1923) ao volume de contos de José Geraldo Vieira. O fato de um jovem e quase estreante ser colocado por Grieco ao lado de autores consagrados, entre os quais Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde e Raul de Leoni, já não seria pouca coisa. Mas é ainda mais emblemática — e de certa forma premonitória — a maneira como o crítico abre o capítulo em questão: “A Ronda do Deslumbramento”, do Sr. José Geraldo Vieira, é um livro feito para lisonjear o gosto dos artistas. Há nessa obra qualquer cousa que lembra as palpitações de uma auriflama ao vento. Percorrer uma tal coletânea de contos, depois de percorrer os trabalhos dos africanistas e indianistas que andam por aí a garatujar em dialeto de Luanda ou em jargão de tabajaras, é como sair de uma mina, de uma caverna subterrânea (...) para vir adorar, cá fora, numa colina ridente, os milagres do taumaturgo Sol. Lendo-se escritores assim, deixa-se de ser troglodita e fica-se quase ateniense.

Pois bem: estava apontada ali, por um crítico consagrado, no comecinho da carreira de José Geraldo, uma das principais marcas registradas de sua obra, um cosmopolitismo erudito (já sentido em seu livro de estreia), que, se por um lado daria a ele um papel absolutamente único na literatura brasileira, por outro o condenaria ao ostracismo nos seus anos de velhice e, principalmente, após a morte, por não combinar com aquele traço nacional-regional-popular que acabaria se impondo, especialmente após os anos 1950, como o padrão exclusivo a ser seguido por um autor que se pretendesse “brasileiro”. Ainda seguindo a observação de Agripino Grieco, é evidente que um dos aspectos a destacar em A ronda do deslumbramento é que os contos passam ao largo da estética modernista, de viés nacionalista, ou, mais ainda, regionalista, que se estabelecia cada vez mais como dominante nos anos seguintes à Semana de 22. Ora, José Geraldo estava completamente embebido de modernismo, mas, tendo passado aqueles anos no Velho Mundo, o seu modernismo era o europeu, pois ele pouco contato teve, naqueles anos, com as vanguardas literárias brasileiras, especialmente as de São Paulo, das quais se aproximaria mais tarde. Ou seja: ainda que influenciado por autores do século XIX, como, mais do que qualquer outro, Oscar Wilde, José Geraldo conviveu com não poucos artistas ligados às vanguardas europeias, e esse universo não só marcaria a sua literatura, de A ronda do deslumbramento em diante, como ajudaria a fazer dele, nos anos 1950 e 1960, um dos críticos de arte mais respeitados do Brasil, figura-chave do projeto de criação da Bienal de Arte de São Paulo.

Os contos mais antigos de A ronda do deslumbramento (onze deles) foram escritos no Rio de Janeiro, e os demais na Europa (seis em Paris, dois em Berlim, dois na Itália, dois em Coimbra, um no sul da França). Ao ler hoje essas histórias, não conseguimos evitar uma abordagem que, na falta de palavra melhor, eu classificaria como “arqueológica”. Pois, como em toda boa arqueologia, há mais de uma camada. Explico. A primeira das camadas, a mais superficial, nos informa a respeito da vida pessoal do autor. Os contos mais antigos, escritos no Rio antes que José Geraldo — que até aquele momento havia sido, mais do que qualquer outra coisa, um estudante de medicina — embarcasse para a Europa, estão repletos de menções à vida dos médicos e a seus dramas morais, com inevitáveis referências à Gripe Espanhola, aquela epidemia de alcance verdadeiramente apocalíptico que deu a volta ao mundo bem no momento em que chegava ao fim a Primeira Guerra Mundial. Depois, já com um pé no Velho Mundo, surgem referências a Lúcia (na verdade, a prima Elizabeth Câmara Vieira, com quem se casaria: a paixão infantil, incentivada pela família, mas que acabaria não resistindo, no futuro, à evolução pessoal e intelectual do autor) e também uma espécie de homenagem às origens familiares dele, açorianas. Finalmente, nos contos escritos quando José Geraldo já estava devidamente aclimatado à vida europeia, vemos o dândi brasileiro, rico, se apropriando com tranquilidade daquele universo, tanto em seus aspectos artísticos e intelectuais quanto também nos boêmios. A segunda camada interessará especialmente a quem já leu os livros mais conhecidos de José Geraldo Vieira. Porque aqui e ali, em um conto e outro, estão questões, cenários e personagens que

aparecerão mais tarde, naturalmente que com outro tratamento, em seus romances. Porque, diga-se, muitas das histórias têm tantos lances autobiográficos quanto boa parte de suas criações posteriores. Assim, é inevitável ler e concluir: “Puxa, isto eu já vi em Território humano, ou em Terreno baldio”, e assim por diante. Na mesma linha, vemos nos trabalhos da juventude os dilemas morais, cristãos mesmo, que estarão presentes em toda a obra madura de José Geraldo. Finalmente, ainda nesta “camada”, um aspecto — destacado na epígrafe desta introdução — que identifiquei com surpresa nos contos de A ronda e que vemos com frequência nos livros maduros do autor, apesar de não ser tão comum em obras de juventude: a questão da passagem do tempo, do envelhecimento, das perdas de pessoas e lugares, da saudade. Numa terceira camada arqueológica, identificaremos o nascimento de traços estilísticos de José Geraldo Vieira, como, por exemplo, a preferência da Europa ao Brasil como cenário para as histórias, o gosto por listas, a escolha de palavras pouco usuais e a exibição sem constrangimento de sua erudição caleidoscópica. Vejamos este trecho, do conto “A taça de champagne”, que nos apresenta um pouco disso tudo: “É uma cidade, um trecho de Sodoma, Gomorra, Pompeia e Lesbo, dentro de Paris. Tem a fisionomia antiga, as ruas estreitas, tortas como Suburra. Mulheres ao lado de frutas e cestas de peixe... Mulheres e estrangeiros. Restaurantes ao lado de restaurantes. Cabarés ao lado de cabarés... Álcool. Prostituição, escravatura branca, cocaína, luxo, miséria.” Juntam-se a isso as frases em francês, os dilemas morais e espirituais dos personagens, e estamos diante, em muitos dos contos, especialmente nos escritos na Europa, de todos os

ingredientes que seriam, mais tarde, utilizados de maneira ampliada nos romances mais conhecidos do autor. Finalmente chegamos à quarta e última camada arqueológica, aquela que evidentemente é a mais importante para qualquer leitor: a qualidade intrínseca das histórias e o prazer que se experimenta ao lê-las. Percebe-se nos contos, é verdade, uma certa irregularidade. Embora não haja um único do qual eu pessoalmente não goste, de uma maneira geral, não posso negar, prefiro os contos escritos na Europa, com aquela temática mais urbana — ou cosmopolita — que tanto caracteriza o José Geraldo das décadas seguintes. O que não quer dizer que não considere “O sacrilégio” — apenas para citar um exemplo, que é um dos contos escritos ainda no Rio, em 1919, cuja história se passa em uma ilha não identificada (que, pelo contexto, podemos situar nos Açores) — como uma verdadeira obra-prima, daquelas que poderiam tranquilamente figurar em qualquer lista do tipo “os cem melhores contos brasileiros de todos os tempos”. É natural, algumas das histórias agradarão mais a determinados leitores, outros terão preferências distintas. Mas não há, entre os 24 contos de A ronda do deslumbramento, um único que não se leia com prazer. Definitivamente, José Geraldo Vieira não estava sendo justo consigo mesmo quando situava a sua estreia literária com A mulher que fugiu de Sodoma, em 1931, pois é inegável — como bem percebeu Agripino Grieco — que a estrela do gênio já vinha cintilando havia um bom tempo. André Caramuru Aubert, outubro de 2016

A RONDA DO DESLUMBRAMENTO

O milagre do gesso

Minha mãe era tão moça e tão linda que parecia minha irmã mais velha. Tinha nos olhos um trecho de veludo, e as suas mãos finas, sem anéis, lembravam, quando eu as beijava, duas hóstias que, por uma suave transubstanciação, tivessem tomado a forma de mãos... Minha mãe tinha uma voz dulçorosa, de um timbre tão inesquecível que, muita vez, ouvindo-a cantar, diante de meu pai paralítico um trecho qualquer, eu sentia uma opressão de lágrimas na garganta. O coração da nossa casa era uma sala Diretório, de cor cereja, austera, com manchas de Chabas, pelas paredes fidalgas. Arrases e Gobelins pendiam do Hall e uma pêndula carrilhão, de mogno e bronze, arquejava sempre, subdividindo, dia e noite, o tempo da nossa vida. Um piano de cauda húngaro, de aspecto boêmio e grave, posto a um canto, sob o lustre Sheffield, suntuoso, era a paixão recatada de todos nós, embora tivéssemos móveis e preciosidades herdadas através de gerações mais felizes. E, sobre ele, entre telas espanholas, num halo de estuque, a pouca altura, ovalar, simétrica, amarelada, em pujante relevo, pendia, colada à parede, uma máscara de Beethoven. Eu nunca vi cousa morta com tanta vida assim... Aquela máscara encardida, sempre a encarei no titubeante respeito duma vaga religiosidade. E, quando ela, sobre o velho piano húngaro,

olhava abstratamente minha mãe interpretar a Sonata ao Luar, e trechos da Missa em ré, eu, encolhido numa cadeira Tudor, diante de meu pai trêmulo e imprestável, horas altas da noite, na meia-luz do abajur Sheraton, ouvia aquele aluvião de êxtases como se me sentisse num outro século, num outro país, entre personagens de gestos taciturnamente simbólicos... E quando minha mãe, vestida de veludo Queen-Anna, heráldica, esguia, a bela cabeça inclinada sobre um ombro, no entusiasmo e na comunhão dos trechos sublimes, toda se curvava sobre o marfim, era tamanha a sensação de tumulto e de doçura dentro de mim, tão real me surgia a felicidade em longos séquitos bíblicos de oferendas imponderáveis, que todo eu, no meu corpo de pajem, tremia num calafrio beatífico, apoiado aos livros da mesa hexagonal, livros de edições magníficas, que meu pai, na sua neurastenia singular, já não podia ver sequer. Depois, quando, antes de deitar, após os estudos de latim e história romana, minha mãe, esbelta, pura, no seu sorriso claro de estame, me beijava os cabelos de pequeno príncipe do Sonho para que o meu repouso fosse abençoado pelos santos patriarcais do meu quarto Carolean (já nessa idade em desordem), eu me retirava absorto, taciturno, enchendo a minha infância de precocidades esquisitas de tédio e de meditação. Os meus olhos largos, azuis, onde uma prima da minha idade, como num espelho, arranjava a fita dos cabelos, estes meus pobres olhos límpidos, sempre se volviam para a máscara carrancuda de Beethoven. E eu dormia no meu leito Chippendale, num vago delírio, vendo a cabeleira revolta e tumultuosa do Gênio farandolar em torno de mim como uma torrente povoada das magnificências da lenda, cascateando símbolos fluídicos na treva paradoxal de uma noite lactescente de astros.

Ora, aconteceu que uma noite meu pai piorou. Ele, que antes de morrer já se ia imobilizando, essa vez delirou todo o tempo e, com ele, deliramos todos nós. Minha mãe sempre que fica triste rejuvenesce. De sua cadeira de martírio, como aquela rainha morta de Ravenna que está sepultada sentada num trono estranho, meu pai pediu a minha mãe que tocasse um pouco, qualquer cousa para espiritualizar aquela hora material e terrena. Ela obedeceu com suavidade tão triste que eu quis chorar... Atravessou a sala, de porcelanas Worcester, sentou-se ao piano. A máscara lá estava, compondo no silêncio uma rapsódia sobrenatural... O gesso encardido, cheio de depressões, relevos, desvãos e saliências de sombra e luz, emergia da parede como uma fonte bizarra e ritual donde gotejasse fel... As mãos de minha mãe, como hóstias que, por um capricho qualquer tivessem a corporização de mãos, começaram a tocar o noturno XIV de Chopin. Todos os vãos do meu espírito se encheram duma poeira impalpável de ouro... Toda a minha alma como uma cidade mágica soçobrou sob a cinza do cataclismo. Ora eu subia, com asas de arcanjo, ora descia com os tocos das asas sangrando... E em vão buscava compreender por que distribuíra Deus tão irregularmente os seus dons pelos homens... Foi então que a grande magia aconteceu... Meu pai entrevado havia dois anos no cadeirão Tudor, surgiu, arrastando-se macabramente como um Lázaro que saísse do retângulo da morte. E, extasiado, lívido, alto, trêmulo, préhistórico, de olhar sangrento, todo transfigurado atravessou a sala...

Minha mãe, sem o ver, pois descera as pálpebras sobre a alma, tentacularmente sorvia o coração de Chopin com os seus dedos em polvo... Não foi alucinação dos meus sentidos!... Pois, ante a ressurreição de teorias e teorias de emoções, saudades, ânsias, entusiasmos, diante de mim, ante a dinâmica maravilhosa da evocação e do arroubo, ante o prodígio patético, ante a dor e a alegria, ante a vida e a morte, ante a placidez e a loucura, ante o silêncio e o urro, ante o humano e o divino, a velha máscara de Beethoven começou a contrair os maxilares, a mover a musculatura da face concentrada, e, como da penha do monte Horeb, dos olhos ocos, de gesso encardido, as lágrimas, quentes, grossas, desvairadas, como borbotões, começaram a cair... Rio, 1920.

A casula de ouro

Com a mão esquerda conseguiu muito lentamente chegar o lampião para o canto da mesa; depois tentando erguer-se quis apanhar na primeira estante uma Theologia Moralis. Para isso, arrastando a metade direita do corpo paralítico, debruçou-se com muito custo sobre os vidros de remédio. Pegou nos dedos tortos, em garra, da mão direita para com eles firmar o livro e com a outra mão folheou, abrindo ao acaso, um trecho litúrgico. Baixou a cabeça branca, maltratada e encarou as letras do título... Passou o dedo em cada sílaba; quis juntar, entender, e repentinamente, com muita brandura começou a chorar... E as lágrimas, grossas e encardidas, como pingos de resina, lhe davam ao pobre rosto de sexagenário um tom quase sinistro. Perdera a memória dos sinais gráficos... Já não sabia ler... ele que tinha passado a mocidade na biblioteca de um seminário real... Com as costas da mão íntegra limpou as pálpebras, num feitio trêmulo, meticulosamente; em seguida, com a polpa dos dedos toscos, palpou a cara onde uma barba de dez dias, crescendo irregular, meio loura e meio branca, lhe dava o aspecto montanhês de certas cabeças de Malhoa. Ofegava e, mais por vício do que por necessidade, respirando, deglutia o ar, abrindo e cerrando a boca torta, suja de febre, onde os dentes luziam muito amarelos entre bolhas de saliva... E chorando, mansamente, no triste recato do seu desespero mudo, tinha patente, nítida, dolorosa e comovente, no seu feitio de hemiplégico atirado para um canto,

uma timidez esquisita que o tolhia, que o acanhava e que lhe dava quase ao busto estreito de raquítico um modo desconfiado de criminoso lorpa. Mesmo sozinho, na tristeza miserável do tugúrio, tinha como um grande medo, um grande respeito, muito vago, muito impróprio e muito estranho. Olhava de soslaio, com a cabeça sempre baixa, e, com a sotaina cheia de manchas, rota, puída, repuxada, com remendos luzidios nas mangas, mais parecia um peregrino maníaco repousando para sempre... do que um triste cônego coadjutor... Fechou o livro. Encheu-o um mau humor, um ódio brusco; olhou o braço morto, rijo encostado ao peito; a mão, em concha, tinha agora e simbolicamente o gesto eterno de pedir... A perna, disfarçada entre as dobras da batina, era como um alfanje, voltada para dentro, dura, pesada, inteiriça e incômoda. E começou a fitar o chão, pensando. Aquilo viera repentinamente, uma noite, no presbitério, depois de um viático. Sentira antes uma nuvem na vista. Um formigamento num lado da cabeça; as veias do pescoço e da testa lhe bateram bizarramente; viera um travor na língua. Alguém o achara numa estala, sentado, com o queixo a escorrer saliva e metade do corpo assim... Depois... alguém, muitos dias depois, lhe notara a falta da voz. Tinha desde então apenas um grunhido. Queria falar, forçava; moía os dentes, entortava a boca; desesperava-se; esbugalhava os olhos, apontava com um tremor horroroso qualquer coisa, ria, chorava, tinha um ar atarantado de pedir paciência aos outros e caía prostrado, numa angústia palpitante; ficava então quieto, com as mãos no colo, a cabeça grisalha caída sobre o peito num gesto quase infantil. E começava a lembrar a explicação do médico. Embolia. Esclerose

renal... Seção de piramidais. Paralisia. Hemiplegia... Artéria meníngea média... E olhava ainda o chão quando alguém abriu a porta, sem um ruído. Era Anna Maria. — Boa noite, padre Estêvão... Está melhor? — Ele quis sorrir. Ficou, como sempre, acanhado, num embaraço muito parvo. Baixou mais o queixo sobre a batina; encolheu-se mais. Relanceou o olhar pela pobreza celular da sala pobríssima; teve vergonha daquele abandono; ao mesmo tempo um pouco de orgulho antigo lhe brilhou no olhar cor de escarro, transmudado em pejo ante Anna Maria, que ali estava, olhando, medindo aquela miséria sinistra. Talvez ela viesse apenas por misericórdia; mentia talvez, achando-o melhor. E, assim, cheia de cuidados e carinhos quase o humilhava, tratando-o com o afago com que se tratam crianças recém-nascidas ou velhinhos entravados. Observou-a, porém, melhor. Ela, magra, pequenina, toda grisalha, na sua virgindade castíssima de beata, assim, toda de preto, com o modo compungido, quase convalescente de quem se suplicia, ela, era a única visita de todos os dias. Sempre, quando o sol se ia embora, Anna Maria entrava. Dava-lhe a cápsula, a colherada de remédio. Punha em ordem, sumariamente, o tugúrio onde as aranhas todavia não tinham trazido felicidade... Padre Estêvão olhou-a bem, como uma irmã. Pobre Anna Maria!... Tinha vindo ao mundo com esse feitio suavíssimo de certas pessoas que não são dele! Tinha o rosto alvo, e os olhos tinham a limpidez dos olhos que costumam fixar, sem temor nem remorso, a toalha dos altares... Tinha nas mãos de morgada um ar de

enfermeira espiritual. A sua voz era longínqua, franca, pastosa, e guardava ainda o timbre dos cantos das comunidades contemplativas... Rodeava-a uma ternura, uma simpatia que a gente não sabia se era por causa do olhar ou da voz. Nela o corpo tinha uma linha neutra, que as vestes estilizavam. Era mulher, mas tinha mais de arcanjo, embora fosse andrógino o seu busto de comungante e o seu quadril de capitel... Padre Estêvão olhou-a bem... Pobre Anna Maria... Quando ele era ordinando, e logo após as investiduras presbiterianas fora nomeado capelão do Orfanato onde ela vivia vestida de azulmarinho, com os cabelos corridos e o rosto felpudo como certas romãs... Dava-lhe a comunhão, ouvia-a no confessionário e sem querer, lhe queria bem, com um respeito tímido. Como se ela estivesse no Flos Sanctorum, nunca julgou, por um momento apenas, que ela não fosse uma santa, uma eleita. Comparava-a aos cordeiros de tão pura, e, quando lhe dava conselhos, na grade da confissão, tinha, nítido, firme e inquebrantável, o deslumbramento de estar polindo uma joia dos sacros tesouros das catedrais de Chambéry de Laon ou de Clermont-Ferrand... Tentou erguer-se; apanhou de novo o livro; chamou Anna Maria. Mostrou-lhe as palavras, as letras, as sílabas; ficou trêmulo, arquejante; remoeu os dentes, fez um gesto triste, sinistro, de uma eloquência turva, quis dizer que não sabia mais ler. E mostrou as estantes onde os trinta volumes de Patrologia, em série, luziam... Mostrou o lombo dos in-fólios de liturgia; palpou os pergaminhos, as cópias, os in-oitavos de encíclicas, de bulas; acariciou os clássicos: São Tomás, Santo Agostinho; olhou atabalhoadamente os volumes de Bossuet e do Padre Vieira. Pegou como uma criança a Teologia

de Sanchez e as Regras de Gury. Indicou as crônicas do abade Hildeberto e de dom Huynes. Sentou-se; começou de novo a enxugar os olhos. Notou, com uma atenção suave e infantil, as manchas e os remendos da sotaina... Então, Anna Maria, baixando a fronte sobre a mesa, cruzando os braços à volta dos cabelos, começou a chorar; os seus soluços eram tão tristes que lhe davam a aparência bíblica de certas santas góticas dos trifórios e tímpanos das catedrais normandas. Padre Estêvão olhou-a bem. Ficou sério, quase severo, a pensar na vontade de Deus. Quando entrara para o sacerdócio pensara em chegar a príncipe da Igreja... Durante as leituras ascéticas sonhava com alvas, murças, dalmáticas, sobrepelizes, casulas, mitras, púrpuras e tiaras... Lia a história de Júlio II. Sonhava com os Sacros Palácios Apostólicos. Via-se em catedrais primitivas, duma arquitetônica de transição. Umas rudimentarmente romanas, austeras. Outras bizarramente espiritualizadas nos requintes bizantinos. Quase todas, porém, gloriosamente pompeando nas suas realengas pompas góticas: São João de Latrão. Santa Maria Maior. São Pedro. São Paulo extramuros. Pisa. Santa Maria Novella. Santa Maria Del Fiore em Florença, na riqueza paradoxal dos seus mármores e frescos da Renascença. O Domo de Milão, maravilha gótica, branco como talhado em cristal de rocha em louvor de Ambrósio e Borromeu. São Marcos, desvairo de estilos. Santa Sofia. Alucinação mental de místicos serralhos. Santa Margarida de Marselha. Nossa Senhora de Paris, sonho apocalíptico de João de Chelles. Reims, ferida vivíssima faiscando

ao sol, ainda cheia do sangue e da alma de Darbois. Leão, Mans. Bourges, a esplêndida, com suas lendas de Ursino, Rodolfo de Turenne e Hugo Capeto. Tours. Ruão. Colônia, varando o céu renano. Os Jerônimos e a Batalha, sonhos de raça, cheirando a mar, caravelas místicas. Salamanca, rude e sombria. Toledo, asfixiada entre becos e vielas. Córdoba, moçárabe e quase leiga. Cantuária e Westminster, aureoladas de brumas e lendárias sugestões... Depois aquilo tudo passara. Viera-lhe o senso comum... Anna Maria soluçava... E ele, que falhara, que, apenas subira a coadjutor numa velha Sé de província, ele, que de grandeza só tivera o ter sido capelão aos vinte e poucos anos, num Internato mesquinho, ele que vestia a batina dos peregrinos medievais e que nem paramentos tinha, já nem poderia rezar o Santo Sacrifício! Nunca! Nunca mais! Nunca mais daria a Divina Partícula ao Coração de Anna Maria!... Ela compreendeu o seu pensamento. Ergueu-se. Tirou da mesa, no saguão humilde, um embrulho. Abriu-o, sorrindo, como se delirasse... Padre Estêvão também se ergueu. Anna Maria estendeu, no ar, alguma coisa, mostrando-a na ponta dos dedos... — Uma casula de ouro! Bordei-a três anos... Quando vossa reverendíssima voltar a dizer missa há de descer do altar, todo paramentado, assim... assim com o cálice nas mãos já boas para dar a comunhão à pobre Anna Maria... não é, padre Estêvão?!... Ele olhou a casula onde um Agnus Dei brilhava... Palpou-a, quis beijá-la... Quis falar... Fez que sim; sorriu, tão triste e tão devagar!... Depois remoeu os dentes; quis explicar... Entrou a repetir os gestos da mão esquerda, numa eloquência incomparável... Fez

que não... que não... que nunca mais... Teve um êxtase, um estupor; sacudiu-o todo uma convulsão: descreveu na meia escuridão da sala um rodopio lúgubre; a mão morta em garra, aquela mão que simbolicamente tinha o gesto eterno de pedir, prendeu a fímbria dourada. Moveu a boca, abraçou a casula, molhando-a com a saliva que lhe empastava o queixo. Depois, tímido, amedrontado, vidrento, caiu, muito rijo e muito esticado, aos pés de Anna Maria, grunhindo que não... que não... que nunca mais!... Coimbra, 1920.

O enxoval

Em nossa casa, apesar dos tempos modernos, imperam ainda velhos hábitos patriarcais. E, à hora da ceia, sob a bênção de Deus e dos olhos de minha mãe, é comum toda a família se reunir ao redor da mesa torneada ao feitio dos móveis seculares. Geralmente antes de nos deitarmos, a prima Lúcia alegra a palestra, com a sua voz quente e franca, abrindo, na sonolência do casarão aquietado, a sua risada feliz de menina e moça. Às vezes, meu pai, no alpendre, aviva questões várias, discutindo, a esmo, com autoridade equívoca, fatos fúteis da vida quotidiana. Minha mãe, numa cadeira renascença, de altas espaldas, borda calmamente, com um movimento igual de dedos, o enxoval da prima Lúcia. E eu, impossibilitado de sair com os meus pobres pulmões, estes pulmões que tanto têm dado que fazer aos meus na melancolia própria que caracteriza os hécticos, quase sempre, nessa hora serena, leio o predileto Romain Rolland, encolhido a um vão da sala. Custa-me, porém, muito, acostumar o meu feitio soturno à frívola alegria dos meus. A prima Lúcia é adorável na ingenuidade da sua meia educação artística e, sem querer, simboliza toda a mediana cultura das famílias do nosso tempo.

Ontem, estando todos nós, como sempre em convívio, notei que os seus olhos quando se encontravam com os meus subitamente se escondiam sob as pálpebras azuladas e lentas. E, não sei como, cheios de rubor, com atarantamentos, notei que nós ambos nos sentíamos enleados, como se por acaso entre nós houvesse, embora tacitamente, uma nebulosa história de paixão. E aquilo começou a me fazer bem, a me aclarar o meu estado como um óleo santo onde brilhasse uma luz votiva. E passei todo o resto da noite, com o livro sobre os joelhos, trêmulo, cheio de um inefável langor, olhando com piedosa humildade a prima Lúcia sentada junto à janela, em frente à larga varanda, sob a noite estival. Meu pai, calado, folheava as suas queridas edições raras de clássicos; e minha mãe, com os seus óculos de ouro velho, bordava, com um sorriso contínuo nos lábios santos. Então, vendo que ninguém nos pressentia, olhei longamente os olhos de minha prima-irmã. Ela, com um feitio esquisito, meio zonza, um tremor ligeiro no lábio e no queixo, baixou a cabeça sobre as mãos e, inesperadamente, com arrancos convulsivos, começou a chorar... — Ó Lúcia... Tomada de um estertor estranho, inclinando o busto sobre o ônix da mesa flamenga, rompeu em novos soluços, entristecendo o silêncio todo que a ouvia... — Ó Lúcia?!... Que é isso?... Ela ergueu aquela adorável cabeça, de cabeleira castanha e fofa, olhou-me com infinita tristeza, e correu a se ajoelhar aos pés de minha mãe.

Cambaleante, aturdido e meio cego, eu, então, me retirei para o meu quarto. A febre, o suor frio e a tosse tomaram de assalto o meu alvoroço; e uma ideia fixa, demais trágica, se abraçou à minha imaginação, como uma erva daninha a um muro que fosse cair... Desde então, comecei a piorar entre os bustos de bronze de Camillo e de Flaubert, e entre as minhas estantes inglesas de literatura passadista. Decerto estes meus pobres pulmões lá se vão, corroendo, numa lenta teimosia, a minha vida soturna de misantropo. Hoje, obedecendo a um teimoso e lúgubre desígnio, esperarei que todos durmam. E, quando, alta noite, maior for a febre, e o suor frio, e a tosse, e o desespero, com cuidados sutis me levantarei e, pé ante pé, sofreando a respiração, irei até à sala patriarcal, forrada de colgaduras solenes. Rasgarei, ou melhor, picarei com a tesoura de minha mãe, o enxoval de casamento da prima Lúcia... porque ela, desde o mês de Maria, mês em que apanhei a tuberculose, é noiva de alguém que está ausente, estudando no estrangeiro... Estraçalharei todo o enxoval, peça por peça, virando-o da arca trissecular do saguão; e, amanhã, quando todos acordarem, saberão o meu segredo... E, quando toda a família se puser a comentar a minha loucura, eu, no meu quarto, com a tesoura de minha mãe, que afiarei toda a noite na pedra da sacada, cortarei as veias dos pulsos como um personagem idiota de romance histórico... E todos, aos meus gritos, acorrerão... E diante de mim que irei morrendo aos poucos, com o meu pobre rosto aporcelanado de

Musset ou de Cesário Verde, minha mãe e a prima Lúcia se santificarão na dor que as alucinará... Com retalhos do enxoval, com sedas, brocados, e rendas vindas do Lanvin e do Poiret, ricos tecidos bordados em Veneza e na Madeira, amparando-me no colo, depois procurarão estancar o sangue dos meus braços, aqui, assim, nos meus punhos cheios de coágulos. E será tamanha e tão dolorosa a cena que os meus olhos, como um óleo santo onde brilhassem dois luzeiros trêmulos, se hão de apagar inundados d’água, nessa expressão patética com que as crianças novinhas olham as mães, morrendo...

A coroa de espinhos

— Felizmente, através do grande sofrimento que é a minha vida tenho ainda uma porção mínima de felicidade!... És tu... Tu não és como as outras mulheres são!... — E beijando a mulher na fronte, mesmo sobre as madeixas castanhas, o maestro bateu a porta e saiu. Era manhã ainda. E o filho do casal, mais do que na noite anterior, manifestava sinais evidentes de haver piorado. No começo aquela maldita doença era apenas uma dor aguda ao redor da cabeça... E a criança, queixando-se, dizia, com o olhar baço dos cordeiros entanguidos: — Mãe... Parece que eu tenho uma coroa de espinhos na cabeça... Uma coroa como a do menino Jesus... Mas, depois, a coisa piorara abruptamente... O médico diagnosticara uma meningite... E daí por diante fora como se um martírio devesse afligir pais e filho. O maestro, em pé, perto do berço, olhava a criança cujas pálpebras já não deixavam ver os olhos, aqueles olhos que eram duas manhãs de primavera no campo... A mãe, solta a larga cabeleira sobre as costas, tinha solicitudes maníacas, carinhos doentios, verdadeira febre em cuidar da criança... Cada hora, porém, a coroa de espinhos apertava mais o abraço estranho... E agora, nessa manhã, a criança já não falava. Movimentos repentinos e desordenados a agitavam toda. Erguia as mãos como

para alcançar qualquer coisa indistinta... Uma paralisia qualquer lhe dera ao rosto um estupor angélico de imagem de cera. Era manhã ainda... Mas uma sinistra manhã mais maldita do que uma noite de trevas infernais... — Filho... Pois tu já nem sequer vês tua mamãezinha?!... O doente entrava já em coma... Abanava a cabeça da direita para a esquerda, incessantemente e, qualquer coisa lhe cantava surdamente no fundo da garganta, como uma corrente de água clara... O capacete de gelo lhe dava um ar extraordinário, um certo feitio macabro... E uma espuma levíssima, em bolhas de brilho irisado, lhe franjava os lábios queimados de febre... No compartimento vizinho cantavam dois canários. E um ruído crescente, o ruído das ruas e do mundo, entrava pela janela... Era a voz dos apregoadores, o rodar dos carros, o deslizar da multidão pelos canais humanos das ruas... Era a vida, a luta, a eterna ninharia do dinheiro, da ambição, do amor... da indiferença... Os quarteirões, como colmeias ao sol, abriam as portas para a trivialidade do comércio... Os carros conduziam senhores graves a caminho dos bancos e das entrevistas. O povo seguia, como um formigueiro, mas um formigueiro estranho que já tivesse teorias de cigarra!... Os edifícios públicos, as estátuas equestres lembravam a pátria, divindade eterna que, como Moloch, devora os próprios filhos. A multidão, no seu conjunto, era uma massa compacta seguindo o destino automaticamente; vista, porém, sob lente mais nítida, mostrava que no mundo ainda há castas, ainda há senhores e escravos, e que a caudal da dor é

paralela à felicidade, costumando até, nas enchentes, misturar ambas o fel que abunda e a linfa que míngua... Era manhã ainda... Morrer assim, antes da noite, na hora fecunda em que o sol alaga as praças e os telhados, morrer assim... A criança abanava a cabeça da direita para a esquerda, como uma pêndula que quisesse dividir o tempo... O gorgulho d’água corrente lhe cantava ao fundo da garganta... Dava vontade de chorar ver coisa assim tão triste... E parecia diabólico, esse canto contínuo dos canários, no compartimento vizinho... De repente a pêndula parou... A fonte d’água clara cessou o seu cantar subterrâneo... E, como por encanto, as pálpebras deixaram ver os olhos, aqueles olhos que, agora, eram duas manhãs turvas de outono... A mulher ajoelhou ao pé do berço... Espargiu sobre o corpo, que ainda estava quente, a larga cabeleira trágica... — Já agora não te magoa mais a coroa de espinhos, meu amor... meu pequenino amor... E a criança sorria com os dentes brancos, de leite, como se olhasse com desvanecimento a teoria de anjos que lhe viera arrebatar a alma... Aos gritos e soluços da mulher acorreram vizinhos. Um pobre pintor de barrete de veludo e calças riscadas à Marcello, beijou a mão do cadáver, remexeu os bolsos e disse: — Vou comprar flores... E saiu... Houve um largo silêncio... Um grande silêncio... Num dado instante ouviu-se alguém subir a escada. Logo depois outras pessoas subiram, falando alto...

A porta se abriu... O maestro entrou com o violino e uma pasta, exclamando com certa ênfase: — Vamos ensaiar a minha marcha... É o único tempo disponível que temos... Mas, num relance, compreendendo a tragédia que enchia aquela saleta, abriu em cruz os largos braços e caiu sobre o berço... Homens de cigarro ao canto da boca entraram trazendo um violoncelo, uma harpa, violinos, um rabecão sinistro e flautas amáveis... Todos se descobriram. Depois, com evidente mal-estar, tentaram sair, abrindo mansamente a porta... — Não... Não... Fiquem, meus amigos... Nessa hora entrou o pintor trazendo num jornal uma braçada úmida de rosas... Cercou o cadáver com as flores... Uniu-lhes as mãos sobre o peito; em seguida ajoelhando, começou a rezar, com mansidão, como se assistisse a algum ofício divino... O maestro abriu o piano. Distribuiu as cópias... Explicou certos trechos, tocando-os, ao piano com a mão direita, ligeiramente. Depois, com os punhos cerrados, limpou duas lágrimas que se alongavam até a barba inculta... — Ó mulher!... Vem daí acompanhar-me ao piano... — Eu?! — Vem daí!... Ela então, olhando o filho, com um olhar que era um abraço, exclamou: — Sim! Será até lindíssimo, tocarmos todos a marcha fúnebre diante do nosso pequeno amor... Sim... Realmente...

Vamos... Sim... O maestro baixou elegantemente o queixo sobre o violino, tomou o arco, olhou em redor, fez um sinal, e os quatro violinos começaram a descrever uma enorme planície coberta de urzes com duas estradas imensas de ciprestes... Depois as flautas acompanharam... E o piano... E a harpa... E o violino e o rabecão... E a planície se povoou de reis... de mártires, de santos, de infantes, de heróis, de papas, de cardeais, de guerreiros... Um vento de borrasca açoitou as duas estradas de ciprestes e chorões... Uma tempestade caiu sobre o mundo... Ergueram-se então preces e súplicas da terra. Deus ouviu... Veio a bonança... Nisto, ao fundo da perspectiva surgiu um cortejo conduzindo um cadáver coroado de espinhos... Archotes descabelados tingiam o ar de amargura... Pombas fugiam perseguidas por grandes bandos de corvos... O cortejo se aproximou... Na beira dum rio de margens retas e fundas uns cavaleiros vestidos como cruzados talhavam com as próprias espadas um túmulo na rocha. O cortejo chegou... Então os papas, os reis, os infantes, os heróis, os cardeais, os guerreiros, os mártires, as rainhas, as princesas e as santas, vestidos todos de púrpuras, dalmáticas, hábitos talares, cotas, mantos e alvas, vieram, em dupla fileira majestosa, beijar a criança e fazer-lhe carícias, levemente, com a polpa dos dedos fidalgos... Donzéis vestidos à Francisco I e damas toucadas à maneira de York desceram, com cuidado infinito o pequeno mártir, depondoo no sacrário do túmulo real. Depois a régia comitiva desfilou ao pé

da tumba reluzente, lançando, ao fundo da cratera, mancheias de rosas, joias e grandes lágrimas que queimavam como fogo... Feito isso, a multidão multicor sumiu. A planície ficou vazia... Nisto surgiu com seu manto doloroso, a mão de Deus e dos Homens, com sete espadas no peito. Após ela vinham duas mulheres: uma era santa e fora, em tempos, grã pecadora e tinha, na Bíblia Nova e na Poesia, o nome de Madalena. A outra era de uma beleza trigueira. As três mulheres retiraram do túmulo o corpo da criança, com o cuidado com que se arranca de um jardim uma roseira nova... Surgiram dois homens de aspecto também bíblico. Eram Arimateia e Nicodemus; abriram um sudário de linho novo, e os cinco transportaram, para além deste mundo, o cadáver do infante!! ... O maestro depôs o violino sobre o piano. Os músicos juntaram-se a um canto, ainda estupefatos de deslumbramento. — Perdeste o filho da tua carne. Esse era mortal. Mas tens, eterno e imortal, o filho do teu espírito. Este certo te dará glória e honra... — Sim... Sim... Alguém exclamou ao lado: — O maestro tem o espírito revolto de Beethoven, embora a sua fisionomia lembre a mansidão de Chopin... — Sim... Sim... — Que enorme coroa de espinhos que eu tenho agora, aqui, neste coração!... disse, com horror, a mulher, debruçando-se, em soluços, sobre o cadáver. O maestro não disse nada. Pôs o chapéu, saiu e foi procurar, em algum bairro pobre, um caixão barato, sem enfeites, onde

coubesse a pequenina joia que era aquele cadáver coroado de espinhos... Berlim — Junho — 1920.

A IX Sinfonia

Como sempre, àquela hora, quando o homem do gás ziguezagueando pela ladeira em direção aos lampiões, virgulava a treva de espaço a espaço, nessa triste noite de bairro pobre, tio Ramalho com o seu pesado capotão cinzento, segurando sob o braço a sacola de camurça do violino, subia, cheio de mau humor, a rampa esburacada. Mas desta vez, caminhando todo curvado e trêmulo, parecia muito preocupado, porque gesticulava com frenesi e até falava sozinho, com uma evidente revolta a sacudi-lo todo; nem mesmo cumprimentava aquelas caras conhecidas que, ou fechando as lojas, ou espreitando das janelas, lhe faziam acenos familiares. Talvez tio Ramalho tivesse bebido... Um homem desgraçado quase sempre bebe quando não pode achar distração menos empírica. Trinta e cinco anos, a dar aulas de música, vejam vocês! trinta e cinco anos, e não havia maior pobre naquela rua, nem criatura que mais se lastimasse com uma tão contínua amargura odienta. Apenas duas preciosidades o exaltavam, insulando-o naquele meio operário, dando-lhe quase um vago feitio de nobre arruinado: a filha e o violino... O violino tinha, porém, o dobro da idade da filha. Um fora adquirido em Cremona, havia quarenta anos, naquela temporada áurea, quando havia público para aplaudir e recompensar. A filha

tinha vindo, porém, quando já a ingratidão, a inveja e a má sorte começavam a acurvar a espinha de tio Ramalho, cavando-lhe o despeito acre nas faces deprimidas, embaciando-lhe, com resignações plácidas, os olhos de mocho e inteiriçando-lhe, com maldosa teimosia, as mãos cabeludas e trêmulas. Tio Ramalho falava sozinho... Mas falava coisas com certo nexo e dizia mais ou menos isto, com aquela voz amarga com que certos mendigos se queixam apenas por vício, sem esperança alguma: — Que mal fiz eu para não ser, como os outros, um bocado feliz?!... A revolta de tio Ramalho chegava ao auge quando repisava com tristeza a principal razão da sua queixa: não poderia ir, nem ao menos de galeria, à nona sinfonia, nessa noite?!... A primeira vez que a levavam na América do Sul, vejam vocês! a primeira vez!... Um teatro repleto, de idiotas de casacas; decotes na plateia; estudantes frívolos nas galerias. E o colosso do Beethoven gemendo... gemendo... Tio Ramalho, porém, vejam vocês! tio Ramalho em casa!... Pois não era de revoltar?... Nem tivera coragem de tentar um adiantamento com a família da menina Adélia... Tinha tanta cerimônia, e, de mais a mais sempre lhe vinha um tamanho acanhamento diante de gente rica!... Entrou em casa. Logo, na escada apertada e escura encontrou um grupo de homens que fumavam discutindo greves. Tio Ramalho deu-lhes as boas-noites. Depois pedindo com ar faceto um cigarro, lhes explicou a grande injustiça que o escaldava, ali, no peito...

— Não poderia ir ao teatro; não poderia formalmente! E essa, hein?! E como o consolassem, subiu resmungando, já um tanto satisfeito, com o cigarro nos dentes... No quarto, no último andar, àquela hora, devia estar já o café prontinho! E a Rosalia devia estar regando com um caneco os tinhorões da janela. Como sabia bem um café feito pela Rosalia! Hum!!... Antes de empurrar a porta da pocilga presenciou uma cena burlesca, donde tirou novas considerações sobre a grande estopada que esta vida é! E viu o seguinte, dilatando com satisfação de escândalo o olhar duro de mocho: uma mulher de cabelo alto e espinhas na cara, toda caiada de pó de arroz, discutia com um estudante capenga, num calão sinceríssimo. Tio Ramalho entrou. O quarto estava escuro e pelas vidraças apenas entrava um clarão tênue e aleitado. — Já me anda a Rosalia co’as vizinhas... Acendeu o candeeiro e foi até a estante onde as pilhas de álbuns, métodos e coleções de música cresciam em maços distintos. A sombra de tio Ramalho, truncada em ângulo entre o teto e a parede, parecia uma caricatura móvel. — Mas que grande desmazelo!... Sobre a tripeça carbonificada, a cafeteira jazia, suja de fuligem, tendo apenas, dentro, uma pirâmide de café, truncada como uma diminuta cratera. Tio Ramalho, em tomando três goles de café, estala logo a língua e as bochechas, com bonomia; os olhos tomam um brilho infantil e no rosto murcho, a pele pregada nos

maxilares começa logo a murchar e a encher, a murchar e a encher, como um fole deglutindo o ar em sorvos. Foi por isso que tio Ramalho fez, ele próprio, o café, ouvindo com os dois pobres ouvidos que Deus lhe deu, uma voz estridente no quarto vizinho, cantar uma ária marcial, com um estribilho revoltoso. Onde andaria a Rosalia?! Era a hora da rapariga estar à janela, devaneando num passeio ideal, o pobre peito ofegante, a boca seca, os olhos de boneca querendo saltar das pálpebras pestanudas, para descer até lá embaixo, às grandes ruas de movimento, onde havia clarões tentadores em fachadas de teatros, cinemas e cafés... — Ah! a nona sinfonia!... — pensou de novo, tio Ramalho; e entrou a passear de um canto a outro da saleta, como um pássaro preso; e andando, esticava o queixo para diante, punha as mãos napoleonicamente na cava do colete encarnado e mastigava, com um ar de roedor, a ponta esfarelada do cigarro. Um artista, vejam vocês, que fazia do violino uma alma de mulher, ali, engaiolado, sim, senhores, enquanto lá embaixo, pra banda do mar, centenas de professores, sob a vareta de Marinuzzi executavam a maior criação musical do mundo! E com coros, efeitos de cena, vejam vocês!... E puxava os punhos, cerrava os dentes e tinha ímpetos de invectivar o próprio Deus que também não se apiedara de Santa Cecília, deixando-a morrer num martírio... Ah! se isso lhe houvesse acontecido na mocidade!... decerto teria chorado uma noite inteira. Mas agora, já tinha por dentro muitas cicatrizes das injustiças do mundo. Trinta e cinco anos havia

que uma perseguição anônima o aniquilava, quebrando-lhe os surtos, fazendo-o falhar, arredando-o, como um zoilo ou como um intruso, dos centros artísticos da cidade, obrigando-o à miséria, ao rancor surdo, a apenas ter de seu, como duas misérrimas muletas, a filha e o violino... Depois de muito passar e repassar perto da tosca mesa de pinho, foi que tio Ramalho descobriu, com certo espanto, um papel dobrado em quatro, saindo como os élitros dum inseto das folhas dum álbum encadernado em percalina. — Que diabo é isto? Era a letra de Rosalia. “Pai, fujo para ser um pouco menos infeliz; mas antes quero o teu perdão. — Rosalia.” Era a letra de Rosalia... pois não!... Vejam vocês, uma letra em pé, perpendicular, aquela, letra aprendida no Asilo das Carmelitas Descalças. Tio Ramalho ficou então, mais ou menos, com a expressão aturdida desses loucos ingênuos e plácidos que vocês devem ter visto nas grades do Hospício, olhando pra rua com insistências idiotas e meigas. Uma espécie de vertigem, com suores gelados, tirando-lhe toda e qualquer mímica da musculatura magra do rosto, durou alguns incertos minutos. Os braços penderam miseravelmente, e tanto pesaram aquelas pernas bambas que tio Ramalho quase caiu de joelhos num entorpecimento estúpido, a consciência baralhada. — E essa, hein, e essa?! Menos calmo, porém mais senhor de si, o velho violinista deu dois passos e com os dedos em garra, despregou o retrato de

esmalte vitrificado da filha, preso à parede. Era um pedaço de rosto atrevido, redondo, com uma pinta magnífica na face esquerda, mesmo ao pé das pálpebras pestanudas. Vinte anos de miséria, de revolta incubada e de fantasia prisioneira com irrequietações de pássaro representava aquela confissão. Tio Ramalho, com a mesma rebeldia com que se insurgia contra o mundo, atirado praí como uma tábua esquecida à flord’água, logo se insurgiu contra a nova emboscada daquela perseguição anônima que o aniquilava, cortando-lhe os surtos, amputando-lhe pedaços do corpo e da alma. Passou em relance uma revista de penitente a toda a sua vida, à cata dum pecado ou dum castigo merecido que lhe dissesse a razão de ser de toda aquela odisseia particular da sua vida. Apenas viu que uma ambição desmedida, como um corvo depenado batia os tocos das asas querendo em vão atingir alguma altura. Fora esse o seu pecado... Depois de voltear pelo assoalho, cabisbaixo e trêmulo, com o pesado capote a lhe cair do dorso, em pregas, teve um gesto de ferocidade, um arreganho de dentes; depois, como se pensasse muitas coisas atropeladamente, ergueu o rosto como a sacudir fantasmas. Mas por que o havia de perseguir, dia e noite, tão continuado castigo?... E olhou fixamente o violino, abrindo a sacola. Era uma bela peça, lembrando, assim, na meia escuridão, uma gigantesca folha de feto retorcida.

Tio Ramalho talvez tivesse bebido nessa noite... Quase todo o desgraçado bebe quando não pode achar distração mais filosófica nesta vida mesquinha... Mas a verdade é que tio Ramalho falando sozinho, com um feitio sinistro estampado na musculatura magra do rosto chupado, de repente, num golpe imprevisto e tremendo, com todas as forças dos seus dois braços descarnados e cabeludos, espatifou o violino sobre a mesa, de encontro ao retrato da filha, dando de cheio, quase diabolicamente, traçando no ar escuro um raio luminoso e curto, cujo zunido estrídulo cortou a atmosfera espessa. Do esmalte, quebrado em três pedaços, começou a cair, da mesa ao chão, uma poeira branca; e, do instrumento, fendido em três frestas que riam no bojo oitavado, saiu um lamento duplo, um grito e um eco, um soluço e uma gargalhada, uma voz rouca e uma voz metálica, um grunhido de demônio e um suspiro de arcanjo... Como se o teto se abrisse, pareceu a tio Ramalho que podia agora respirar melhor e que um ar menos empestado lhe entrava pelas gretas da alma em carcaça... E aquele cérebro, que um amolecimento invadia, não presidiu mais a ato algum, de mímica ou de expressão. Apenas um ríctus severo, um termo médio entre a alegria irônica e o rancor selvagem, sulcou simetricamente aquele rosto inculto e esquálido, como dois vincos de vida humana, animalizando um pedaço encardido de gesso anatômico. Foi assim, com essa aparência de velho caduco, que tio Ramalho chegou até a janela, arrastando os pés, como esses sentenciados presos a grandes bolas maciças.

Àquela hora, os coros, na imortal música da IX Sinfonia, deviam estar cantando: “Ó divina alegria! Ó divina alegria!” E as cordas e os metais, que Beethoven pôs na epopeia clangorosa da sinfonia, num simbolismo atarantado de temas ousados, deviam, àquela hora, estar vibrando, dentro do ar, como um arquipélago pagão de vozes panteístas cantando num coro homérico, dentro dum mar mitológico... Tio Ramalho olhou embaixo a cidade acesa. Talvez fosse perversão dos seus sentidos... Mas, rasteira como a ingratidão humana, a cidade era uma grande treva esparsa, lá, embaixo, retalhada em quadrados colossais pelas ruas fartamente iluminadas, e figurando, vista de cima, um grande tabuleiro de jogo, em cujos losangos, movidos por uma estranha fatalidade, os destinos dos homens todos, como pedras mortas e passivas, se deslocavam, avançando, recuando e desaparecendo... Rio — 1919.

A prima Lúcia

Escrevo-lhe numa hora de delírio... A estas horas todos dormem. E eu, na biblioteca de meu pai, rodeado de altas estantes, sob a luz azulada de um candelabro, diante da secretária atulhada de livros e papéis, ardo em febre, cheio de alucinações, nervosismos, esgares e desabrimento de louco. Escrevo-lhe numa hora de delírio... Ninguém me vê... Vou, pois, contar todo o segredo, todo o martírio, todo o romance... Vou contar muita coisa horrível... Não pretendo desabafar, não, não!!... A minha dor eu não a repartirei com ninguém; avaramente a abraçarei dentro de mim como um fogo necessário ao meu sangue, à minha vida... De mais a mais os médicos não se comovem nunca... A desgraça alheia os cauteriza... Mas não! Agora, o senhor se comoverá! Hei de pôr de joelhos, diante do meu sofrimento, o mundo todo... O senhor se comoverá! Quanta miséria não viu o senhor?! Quanta agonia?! Quanto drama? Mas o seu ofício lhe criou à volta da alma uma camada de breu, por isso o sofrimento dos pobres e dos ricos, das crianças e dos velhos, das mães e dos filhos, tudo lhe é alheio, indiferente!! Mas hoje, com um ferro em brasa eu lhe queimarei, lentamente, o coração!! E o senhor verá que é inútil, que a medicina é uma falaz esperança, que o homem sem o médico ou por ele assistido, continuará a ser o expurgo dos jardins de Deus...

Todos os seus livros e aparelhos, toda a sua ciência, toda a sua vocação são um simples dedal para o imenso mar de sofrimentos da humanidade... Hoje, como um sinistro desabafo, eu lhe mostrarei com cores tão sinistras a desgraça humana, que o senhor tremerá... Escrevo-lhe numa hora amarga... para amaldiçoar a sua profissão, chamando-a de franca quimera! Inda há pouco, nesta cidade, o senhor viu, pelas ruas, nas horas sinistras do mês passado, caminhões abarrotados de cadáveres a caminho dos cemitérios onde, em pilhas, ficavam à espera das covas... O senhor viu metade da população delirando como eu agora deliro... Nas casas dos seus clientes, quantos não morreram?... E o senhor inda se julga um sacerdote? E o senhor ainda fala nas luzes do século, nos gênios da medicina?! Ah! O senhor era pobre e hoje é rico... No seu consultório o senhor ganhou fortuna... Mas a sua consciência não lhe diz nada? A sua arte médica modificou a vida dos clientes que moram no seu bairro? Mas... perdoe-me, doutor... Eu lhe estou escrevendo fora de mim... O senhor é um santo... Eu estou injustamente a clamar contra o irremediável... O que é humano o senhor e todos os médicos fazem... A culpa não é sua! A culpa não é de ninguém... Estarei delirando?! Que horas serão? Por que lhe estou eu escrevendo? Aqui em casa todos dormem... Só eu não posso dormir... Uma excitação horrível... me perdoe!... Creio até que lhe estou a escrever sofismas, paradoxos, contradições... O senhor que é célebre, que é estudioso, vai concordar comigo... Vou contar todo o romance, toda a tragédia... Vou lhe

chegar ao peito o ferro em brasa, lentamente... E o senhor vai, ao menos por um instante, descrer da sua carreira, dos seus livros, de tudo, doutor, de tudo... Lembra-se bem da Lúcia, pois não?! Ela era tão linda que muita vez, estudando, eu lhe via o rosto no lugar das folhas do livro... Ela era tão alva que o seu corpo parecia duas asas fechadas sobre a sua alma!... Ela ria tão francamente, que muita vez, longe dela, no meu quarto de estudo, ouvindo-a rir na sala com minha família, eu fechava os livros, os cadernos e começava a chorar sem saber por quê!!... Não sei se estou ainda ardendo de febre... Não sei se estou ainda delirando... Lembra-se bem da Lúcia, a prima Lúcia?! Ela era de uma elegância de Ex-Líbris, tinha a serena compostura das aves reais... E o seu olhar tinha um brilho tão úmido, que até parecia um profundo lago de fogo líquido... As suas mãos fidalgas nasceram para um constante ofertório de harmonias em louvor de Chopin e Bach!... A sua cabeleira, em trança dupla, caindo airosamente ao longo do torso, tinha reflexos de serpente e o seu nariz aquilino, trêmulo nas aletas, lembrava recortes de estudos acadêmicos. Lembra-se bem da Lúcia, doutor?! Da prima Lúcia?! Uma vez estávamos ambos a um canto da grande sala. Já devia ser bastante tarde porque no alto céu sereno os astros eternos tombavam para a orla escura da floresta. Diante da janela muito aberta as alamedas em dupla perspectiva, tinham a imobilidade decorativa dos cenários felizes. Dentro, na grande biblioteca austera, a mobília envolta na penumbra e na treva gradativa daquela hora, guardava um tácito

feitio de testemunha insigne. Apenas o tom malva de uma única lâmpada recortava, sobre o assoalho de basalto, um disco pálido de luz. Estávamos ambos a um canto da grande sala suntuosa. Eu falava serenamente, em voz baixa, com aquele sussurro das orações inefáveis. E ela, com a cabeça castanha pousada no balaústre de mármore do balcão, ouvia tudo com um fervor de comungante. Às vezes, a voz me tremia num timbre feliz de evocações perturbadoras; e, então, sob o silêncio estagnado da grande noite, ela soluçava... mas tão baixo, tão recatadamente que a sua dor parecia se alargar sobre as coisas à maneira de uma bênção... E eu dizia: — Repara bem, meu amor, na calma sugestiva desta noite santa; de memória, não sei de uma tão oportuna hora para evocar o passado. Somos ainda tão moços e já arrastamos conosco uma ronda de coisas mortas. E a minha voz foi ressuscitando o passado... lentamente, numa volúpia minuciosa. Em dado instante o luar abriu nos largos tanques de nenúfar um espelho muito baço. Certos trechos do jardim surgiram, caiados de luz, como numa fantasmagoria. As escadas brancas e fidalgas mancharam-se de sombras de madressilva. E uma lufada morna fez palpitar, lá longe, o rosal que, como um ninho cândido, dormia sob a égide de um fauno de pedra. Então eu me ergui para sorver o perfume da madrugada; e nisto, nos olhamos. Com muito carinho nos debruçamos sobre a pedra do espaldar, calados, olhando ao longe.

— Qual é a melhor lembrança que guardas do nosso passado? — perguntou ela. — A melhor? — Sim! A mais viva... a inalterável... a melhor... Respondi a esmo: — A melhor? E como ela se inclinasse sob os meus olhos com uma avidez fervente, comecei a recordar... A voz era tão lenta, tão trêmula, tão religiosa, que ela se via obrigada, num meio êxtase, a chegar o rosto junto ao meu, como os sedentos que afloram a fonte com os lábios. — Naquele tempo, eu tinha dez anos e tu apenas oito, e, não sei por quê, nessa idade eu já tinha a certeza de que o meu destino era paralelo ao teu. Lembra-me... sim... A melhor impressão... Sim... Tu eras mais loura do que hoje. Tinhas a voz um pouco nasal, recitavas fábulas às visitas, e, sem razão, armavas rixas e teimas contra mim. Tão pequenina, já tinhas o instinto preponderante de mulher. Chamávamo-nos de primos sem o sermos, e, quando íamos ou vínhamos da escola, tínhamos a mania vaidosa de nos fazermos notados. Em casa, de manhã e à noite, estudávamos juntos, à cabeceira da grande mesa. E, como meu pai, nesse tempo, viajasse muito, minha santa mãe amenizava as saudades vigiando o nosso estudo. Não sei por quê... mas, uma noite errei todo o exercício; a tua presença ao meu lado, insensivelmente perturbava a minha atenção. Às vezes, eu parava de escrever para te olhar, às escondidas. Mamãe cochilava, na cadeira de balanço, com um jornal ou um bordado esquecido no colo. E eu, inclinado sobre o

caderno, fingindo escrever, eu... então começava a olhar a prima. E como te visse, tão loura, tão pequenina, tão pedante, “fazendo a tarefa”, um nervoso estranho me atacava, e então, ah!... então eu roía as unhas... Nas horas de recreio era a mesma coisa. Certos dias eu te queria mais que em outros. Era quando punhas um vestido encarnado, de babados... Davas-me a impressão de uma personagem da história de França. Comecei, em segredo, a querer muito bem à Lúcia... Uma vez, na hora do estudo, o meu olhar encontrou o teu. Fizeste-me uma careta e continuaste a conjugar o teu verbo ativo. Durante toda a hora do estudo, não pude firmar na cabeça as ilhas do Japão. Sentia um prazer infinito em te olhar, bastante, horas inteiras. Tu, não sei se percebeste alguma coisa. Eras uma criança, assim, deste tamanho, como as tuas bonecas. Depois do estudo, tomávamos chá e íamos deitar. Às vezes, do meu quarto eu ouvia as tuas gargalhadas, longe, no primeiro andar... E então, que tristeza... Inclinava a cabeça no travesseiro e começava a roer as unhas... Finalmente um dia... tu tinhas decerto oito anos... falamos em casamento. De então em diante, tinhas amabilidades catitas para comigo; íamos e vínhamos da escola, de braço dado apesar das vaias dos garotos. Mas o nosso amor parava nisso... Enfim, certa vez... Lembrame muito bem, enquanto minha mãe, na cadeira de balanço conversava com uma visita, sorrateiramente, tapando com o livro a tua mão m’a estendeste com um risinho feliz. Mas logo a retiraste, amedrontada. Zanguei-me porque m’a negavas... Fiz uma cara séria

e tu para contrapeso, armaste um beicinho de pouco-caso. Durou isso alguns minutos só, porque de novo m’a estendeste. E eu, sentindo aquela polpa macia entre os meus dedos, todo me esmerei em acariciar os teus dedos pequeninos como pétalas. Tinhas de vez em quando, como agradecimento, um sorriso ao mesmo tempo brejeiro e nervoso, que te dava ao rosto duas covinhas graciosas. Nisto minha mãe, virando-se para mim, repentinamente, pediu que lhe trouxesse água, eu próprio, visto as criadas estarem ausentes. Que susto! Retiraste tão desastradamente a mão, que derramaste a tinta toda sobre a coberta da mesa. Ah! Que repreensão!... Então, importante, augusto, com uma arrogância de gesto, declarei que eu, eu sim, fora quem virara o tinteiro. Tive como castigo duas refeições sem sobremesa. E nem calculas, no dia seguinte, à hora do almoço e do jantar, como eu me sentia feliz, orgulhoso, embora meio vexado, em encarar, com sacrifício, a compoteira azul, a que eu não tinha direito por vinte e quatro horas... E tu, airosamente, com um certo desdém feminino, nesse dia não tiveste a abnegação de recusar prato algum... Anoiteceu. Houve o habitual serão. Reparei, porém, que havia uma singular ternura nos teus olhos, quando me olhavas. Trazias o teu vestido encarnado, à Maria Stuart e o teu rosto de oito anos tinha a mesma seriedade do teu rosto de hoje... Notei que tinhas pó de arroz, um tanto exageradamente, no vão dos olhos e ao redor dos lábios. E, em teu cabelo louro, havia uma fita azul,

donairosa e importante. E em certo momento, baixinho me chamaste, passando-me um bilhete com cuidadoso deslizar de mão. Fiquei encarnado. Se vissem... Guardei-o no dicionário. Abrio depois, sob a mesa, disfarçando muito. Tinhas escrito, pela prosódia do teu lógico soletrar, a seguinte pergunta: “Quando usarás calças compridas? já é tempo?!” Fiz-te sinal que não sabia, num ar desolado. Efetivamente, o meu terno à marinheira me dava um feitio infantil. E a custo reprimi o vício de roer as unhas, pensando no caso. Depois do chá, beijamos mamãe, que nos deu as santas boas-noites e seguimos pelo corredor afora. Mas como não houvesse luz na segunda metade do corredor, senti uma opressão esquisita na garganta. Como fosses adiante de mim, chamei-te baixinho. Paraste. Então, segurando-te nas mãos a cabeça loura e assustadiça, dei-te um grande beijo, tão bom, tão puro e tão rápido que toda a noite não consegui dormir... Lembro-me ainda do teu susto... No dia seguinte, mamãe te surpreendeu diante da penteadeira, às voltas com pó de arroz, carmim e perfumes... E é mister dizer que durante dois longos dias não tivemos coragem de trocar ao mesmo tempo um curto olhar... Embora muito e muito nos examinássemos às escondidas um do outro. Pois bem! Atenção! O senhor já não está acostumado a chorar, a entristecer, a sentir um êmbolo na garganta! Os médicos têm todos uma camada de breu ao redor da alma... Mas agora, atenção! Quero chegar-lhe aos olhos uma visão sangrenta,

flamejante e horrível!... Na penedia da sua alma de médico hão de nascer lágrimas, agora, como cáctus!... A Lúcia era sua cliente... Na ocasião da gripe, o senhor andava de casa em casa, distribuindo a sua ciência... Muita vez ao acompanhá-lo até a porta o senhor e eu vimos os enterros que passavam... E eu ficava pálido e o senhor abanava a cabeça, seriamente... Os jornais traziam as estatísticas diárias. No dia tal, 800 mortes, no dia tal 500 mortes... Ilustres e anônimos morriam... Havia até um tom trágico pelas ruas da cidade... Todos sabem o que houve... E eu tenho horror desse tempo... Eu não posso recordar esse tempo. Agora, professor, ouça... A prima Lúcia esteve mal... O senhor visitou-a sempre... Ela conseguiu melhorar... O senhor por isso lhe deu alta... Ficamos assim os dois ela e eu, as únicas pessoas da casa, porque as mais estavam todas de cama, varadas de febre, com dores pelo corpo... Uma noite, eu lia um romance qualquer de um autor russo... Aqui nesta biblioteca, nesta cadeira... Nessa noite o silêncio era profundo, talvez porque àquela hora estivesse morrendo muita gente... Todos os doentes de casa, felizmente iam bem, melhorando gradativamente... Mas, não sei se estou delirando... Eu dizia que... Ah! sim, perdão, eu lia, um romance qualquer... Nem era possível dormir numa época de tamanha excitação... Num dado tempo ouvi passos no corredor... Conheci o andar de Lúcia. Voltei a cabeça... Ela entrava, na biblioteca... Esperei-a, estranhando a sua presença àquela hora.

Lembra-se bem da prima Lúcia, doutor? Ela costumava falar fitando a gente nos olhos, longamente... Às vezes, escutando o que a gente lhe falava ela torcia os botões da própria blusa ou encaracolava os cabelos, com muita graça, cheia de naturalidade... Pois nessa noite de outubro, a prima Lúcia, vestindo apenas um largo peignoir, atravessou o salão, chegou-se até a minha poltrona e com a maior naturalidade, fitando-me longamente nos olhos, indagou o que lia eu, àquelas horas... Depois, passando as mãos, aquelas mãos esguias e fidalgas pela testa, disse: — Pois eu não estou bem. Sinto-me outra vez doente... — Vai deitar, prima, vai deitar... Ela, muito pálida, com fundas olheiras, disse então: — Boa noite!... — Depois, olhando-me de um jeito, perguntou vivamente: — Tens quinino no teu quarto? Estou com febre... Como eu respondesse afirmativamente, ela saiu... Eu a acompanhei com o olhar até à cortina do corredor... Depois... depois, não sei como, adormeci... A febre não será uma espécie de exagero de vida que a gente sente em si?! Ouça, ouça, caro Professor... Um grito lancinante me acordou... Ergui-me de um salto, atravessei a biblioteca e vi meu pai a correr pelo corredor, gritando: Lúcia! Lúcia!! Lúcia!!!... Ao entrar no quarto de Lúcia vi que... Perdão, doutor... Preciso de ar, de muito ar! Como o peito é pequeno para o ar, meu Deus! Nunca mais eu serei aquele antigo estudante risonho, independente e feliz de outrora! Há coisas na vida tão decisivas que

desviam as normas traçadas... Por que devo eu arrastar pelo resto da vida esta dolorosa visão?! Por que tenho memória?! Fora melhor que um delírio, um insulto da natureza, qualquer coisa enfim me isolasse do mundo, como esses espelhos aberrantes que não refletem... Ah! Mas não! Bendita seja a dor, a dor que penetra bem profundamente... Porque agora, mais do que nunca, eu tenho o resto da minha vida santificado pela desgraça... Ah! doutor! Realmente o fogo purifica tudo! Mas por que falo eu em fogo? Perdão! Eu desviei sem querer o fim da tragédia... Ao entrar no quarto de Lúcia vi que um clarão a envolvia toda e minha mãe com um largo edredom buscava aflitivamente envolvê-la... Ah! Os meus pobres olhos bem quiseram sair das minhas órbitas! Minha mãe e eu rolamos sobre o corpo de Lúcia procurando com mantas e cobertores apagar as chamas que a envolviam... E que chamas tão altas, tão violáceas, tão coleantes... Meu pai, combalido da doença, assistia, com uns olhos de horror tão grandes, que inda hoje os vejo... Preciso de ar. Tenho febre... Perdão, doutor... Ouça ainda este resto... Ouça... Quando conseguimos extinguir o fogo e depor Lúcia na cama, ela com o busto em carne viva e dois carvões no lugar dos olhos, gemia tanto como um rebanho inteiro de agonizantes!... A pele toda franzida e cheia de vesículas se tinha dilacerado deixando à mostra um todo vermelho, úmido, gotejante quase... Os seus seios puríssimos de virgem pareciam duas crateras mirradas... E os seus olhos, meu Deus!... eram dois carvões, sob as pálpebras comidas...

Ela gemeu toda a noite embora o senhor tivesse chegado, doutor, e lhe tivesse dado aquelas injeções... De madrugada, ao sair, o senhor explicou: — Foi a febre; é relativamente comum acontecer isso... Foi um acesso... Inda no outro dia a senhora de um colega meu, num acesso de febre... Depois, a prima Lúcia começou a agonizar... E das suas queimaduras se desprendia um cheiro equívoco... Depois, a prima Lúcia começou a gangrenar de quando em quando, pedindo que a matassem pelo amor de Deus... No dia seguinte, morreram nesta cidade mais de trezentas pessoas... Todos sabem como isso foi... A prima Lúcia obteve (porque nós éramos importantes!), um lugar aberto pelos correcionais na encosta de um cemitério... Naquele mês de outubro não havia acompanhamentos nos enterros... E, mesmo que houvesse, eu estava petrificado na minha dor e força alguma me conseguiria arrancar do meu quarto... Agora, confesse, doutor, a profissão que o senhor exerce, há trinta anos, não é um calvário que o senhor sobe, inconscientemente, há trinta anos, arrastando nas suas pegadas uma multidão de mártires?! Outubro — 1919.

O Monte Tabor

— As últimas aves, pressentindo a tormenta, fogem das ruínas!... — disse o escultor, vendo sair juntos, pela porta da biblioteca, o médico e o padre. Depois, apoiado em suas muletas luzidias, ficou ao centro do quarto, velando o poeta moribundo. Anoitecia. O enfermo estava pior, e como nunca, o rosto azulado lembrava, agora, nas saliências, uma porcelana pálida, com um brilho úmido; a musculatura do pescoço, como nesses crucificados de cabeça pendida, ressaltava em tiras descarnadas e salientes que, descendo de sob as orelhas transparentes, se vinham encontrar no peito, cavando entre si depressões escuras onde os cordões venosos se encarquilhavam, desenhados sob a pele flácida. O nariz adunco tinha um tal palor e um retículo azul tão minucioso nas aletas trêmulas, que causava uma impressão dolorosa de mau presságio. As mãos longas, descarnadas nos dedos e edemaciadas no dorso, cheias de um lustro gorduroso, mostravam como uma arborização carbonificada, a trama já calcária das veias cilíndricas. — Feito à imagem e semelhança de Deus!... — observou, com suave ironia o poeta, descobrindo-se e mostrando um trecho do corpo que o anasarca tinha deformado. O escultor então, disfarçando, com entoação quente e vibrátil, começou a distrair o enfermo.

— Não sei... Mas tu és, agora, mais do que nunca, o retrato vivo e perfeito de um Pafnucio que vi em Milão, numa noite de Thaïs. Esse nariz adunco, essa barba siríaca, esse ar místico de cenobita, esse cansaço de quem atravessou o deserto, esse olhar fixo de quem viu a vida... O doente pareceu alegrar-se. E então, com certo alvoroço, disse, como se falasse consigo próprio: — Afinal a glória não foi muito ingrata para comigo... Eu quase cheguei a realizar a norma do meu sonho luminoso... E, mais cansado, com lentidão: — Os poetas, até, em regra geral, neste século, não morrem como eu vou morrer, isto é... E erguendo a mão traçou um gesto elegantíssimo de ascensão... O escultor concordou. — Tu estás consagrado... Os velhos da tua geração, os poucos que ficaram dessa plêiade boêmia e rija, estão quase sempre ao redor de ti... Os novos, os poucos dessa geração futura e promissora, anseiam pelo teu restabelecimento. — Tu és a parte mais genuinamente espiritual desse povo ainda não materializado de todo. Como ninguém, até a época atual, conseguiste renome primário desde as camadas de escol até o povo estratificado que discerne pouco, que não logra compreender as riquezas profundas, mas que só vê o deslumbramento superficial, o esplendor que cresce acima do nível costumeiro das coisas... O cantor da Morte de Ícaro balançou a cabeça e disse, sorrindo com esforço:

— Eu lá me vou, como uma tocha que se derretesse... Ah! A vida é o único bem da terra, principalmente quando nos quer deixar... Será a morte iconoclasta? Durará a glória?! Terá sido vã e mortal a Arte?! Então, chegando-se ao leito do enfermo, o escultor falou com solene tristeza, arrastando as palavras: — Se tu morreres, pensa bem comigo, meu caro... Se tu morreres jamais se verá apoteose tamanha... Esta casa, como um templo, se encherá de velhos e moços, homens e mulheres, artistas e povo... E o teu enterramento ostentará a magnificência discreta daquelas festas sagradas que já se não realizam no mundo senão uma vez ou outra, desde vinte séculos... Junto ao teu corpo, velando-o, e mais ardentes que os tocheiros, almas preclaras, inteligências pujantes e vocações admiráveis se apresentarão numa romaria compacta... Homens que em ti beberam a maior lição de beleza e êxtase virão ver o teu cadáver... E, olhando o teu semblante de esfinge, sairão, depois, olhando de leve para o mundo para que a impressão não lhes fuja do cérebro. E dirão: “Vi a mão que escreveu o Sursum Corda! Beijei a fronte úmida do poeta latino que pensou o sonho de Dido!” E, taciturnos, como as crianças levadas, a crismar diante de um príncipe purpurado da Igreja, sairão num recolhimento confuso, meio órfãos e meio mortos, compreendendo bem que não é só de pão e água que vive o homem. Mulheres que nunca viste, mas que durante dez e vinte anos, cheias de rubor, conversaram com os teus versos, trarão flores, num gesto esplêndido, suave e dannunziano. E virão também magistrados, representantes dos poderes... E, com a solenidade augusta que o tempo às vezes tem, olharão o patrício que cantou a

pátria despertando um povo, avivando forças latentes; o homem que num gesto luminoso e fecundo levantou uma mocidade apática, levando-a à compreensão dos seus destinos cívicos incomparáveis... Terás assim, ao mesmo tempo a consagração oficial e a consagração anônima, como um Deus que, na sua imobilidade de ídolo, recebe impassível o holocausto dos sacerdotes e a ovação litúrgica do povo... E dirão de ti, todos, que és imortal, porque tinhas no cérebro o milagre das fontes sonoras e inexauríveis, quando tu, morto, entre duas alas de povo, seguido de discípulos, embalado pela alma taciturna de Berlioz e pela alma êxul de Liszt, deres a toda a multidão uma profunda impressão de vácuo... E depois, quando o tempo passar e muito acima da planície e da aresta das cordilheiras, o teu nome resumir quase um quadrante no zodíaco do céu pátrio, entrarás o ádito das lendas incorpóreas e serás como essas sombras cristãs, armadas de gládios ígneos, e que tendo sido no mundo, precursores, apóstolos e paladinos, vagueiam, após a morte entre as fronteiras do mundo, tangendo os zoilos, os corruptos e os gnomos da arte para a treva rasteira dos fossos... Houve um longo silêncio de vergar espáduas... Tinham ido longe demais os dois... Nisto entrou, irrequieto como sempre, o exuberante autor de Sodoma Convertida. — Falávamos do meu enterro!... — explicou o poeta. E havia uma tremura cavernosa na sua voz. E repentinamente ajuntou: — Tu és o indicado para falar nessa ocasião. — Eu?!

— Naturalmente... Quero saber o que dirás de mim quando o meu corpo for por aí uma custódia sem hóstia... O romancista sorriu, desconcertado. Mas era tão sincero e veemente o tom das palavras do enfermo que, como hipnotizado, obedeceu. — Dá-me uns minutos para pensar... Pensar e escrever... Ao fundo do corredor um pequeno carrilhão Westminster encheu de tristeza as divisões da casa. O escritor atravessou o quarto recolheu-se à biblioteca do amigo. Sentou-se e começou a pensar. Na parede um monge em oração de Zurbarán, tinha sob a cogula, uns olhos de êxtase beatífico e na escrivaninha, num pedestal, a ironia de Rabelais ria pela boca semiaberta de um Eça acurvado. Hirsutos, como uma trindade de mendigos sublimes, de cãs lanudas, Ibsen, Tolstói e Rodin tinham através dos blocos de mármore escuro uma sagração litúrgica de três magos oficiando. Algum tempo depois a porta de cristal da biblioteca riquíssima se abriu e o romancista, pálido, com tiras de papel entre os dedos, entrava cabisbaixo e comovido. — Lê!... meu amigo... No quarto meio escuro, as pessoas e a mobília tinham recortes de penumbra. O poeta fechou os olhos, o escultor firmou-se melhor nas muletas luzidias e o romancista, como quem se adiantasse para um pavês, deu três passos à frente e começou a ler... — “Não falo aos teus ouvidos e nem sequer por milagre quero que me ouças, pois tu, morto há vinte e quatro horas, como as múmias mortas há vinte e quatro séculos, já nem cérebro tens que se compare ao gesso, apto para a impressão... Mas falo como

fala o mar, entrando pelas lucarnas e impostas de um farol que se apagou... Falo em vão e todavia a minha voz se encapela, toma rugidos e reboa pelo teu corpo como a água espadanando e fervendo pelas reentrâncias de uma caverna... Como aquele oráculo, prisioneiro num ilhéu do mar Egeu, pergunto à Divindade por que os destinos humanos não coincidem com os desígnios divinos... Perco a noção do tempo, recuo séculos e séculos, e os meus sentidos e o meu cérebro associam ideias atropeladamente; embora siga este féretro lentamente através das ruas de uma cidade; embora haja os edifícios de um século prosaico estrangulando o ar e as almas; embora as ruas se continuem áridas, como cortadas a sílex num planalto vulcânico; embora haja rumores sacrílegos de indústria, podridões envolventes de mercantilismos, hipocrisias e aparatos, parece-me que estamos todos muito aquém da época atual. Somos coevos da multidão que viveu na terra bíblica, no tempo do tetrarca. Não há um ataúde... Tão somente se vê um homem que segue descalço, a túnica ao vento, a barba pontiaguda e o gesto breve. Esse homem segue para o monte Tabor, onde as coisas agrestes parecem purificadas num suave recorte, destacando-se do céu que abençoa as doze tribos. Não há um túmulo à espera de cal, mas um cume onde tremulam sarças cor de incêndios... — Tu, poeta excelso, não morreste, mas, transfigurado, cheio duma inefável beleza, tu te elevas, entre a terra e o céu, conversando com dois profetas preclaros, o Amor e a Morte. Voltarás a viver entre nós, sereno e augusto, embora incorpóreo, lentamente nos impregnando a todos da altíssima emoção da arte

eterna... A morte nunca porá na tua boca a mão ressequida e convulsa do silêncio pois...” Inesperadamente, o escultor se debruçou sobre o leito e sacudiu o poeta... O romancista ficou preso ao chão, com as mãos paradas no último gesto... Nisto, lentamente, sob a noite augusta que caía sobre o mundo, a alma do poeta na forma branca dum remígio apertado numa coroa de louros, subiu farfalhando, em parábola, para a grande transfiguração. Rio — 1919.

Os pombos do claustro

No claustro forrado de azulejos moravam dois pombos tão íntimos de frei Luiz, que até na capela entravam sem que ninguém da comunidade os proibisse de arrulhar entre os castiçais do altarmor. Dormiam num postigo perto do longo corredor do refeitório e costumavam passar o dia sobre a nora do poço, num idílio bucólico. Um dia, porém, frei Luiz, rezando a missa conventual, ao virar-se para os fiéis e dizer “Orate fratres” caiu pesadamente sobre os três degraus do altar. Em seu lugar, dias depois, chegou um superior antipático, gordo e vermelhão. Na cela do pobre frei Luiz, outrora tão branca e asseada, os irmãos leigos pregaram prateleiras e armários. Frei Leonardo era alquimista, e por isso instalou no seu quarto de servir a Deus alambiques, retortas, frascos e até um motor cujo zunido horas a fio intrigava as beatas da capela. Com seus óculos pretos, o novo abade, alheio ao expediente da casa, passava os dias e as noites, debruçado sobre uma mesa, combinando líquidos, aquecendo provetas, examinando lâminas e acumulando numa estufa coleções estranhas de tubos em cujo interior coalhavam pouco a pouco substâncias diabólicas... Por isso frei Leonardo até estava em evidente atraso nos seus ofícios. Com mais interesse do que os próprios frades, os pombos do claustro seguiam a arte mefistofélica do abade de óculos pretos...

Mas, eis que inesperadamente, uma manhã, frei Leonardo, com intenção velada e pecaminosa, chegou-se até o poço, e com pedacinhos de pão doce os atraiu, sussurrando cariciosos apelidos. A princípio, os pombos, receosos, fugiam, recuando... recuando... Mas como serpentes aqueles óculos negros magnetizavam e quando os pombos deram acordo de si estavam trancafiados numa caixa com portas de arame. Estiveram assim surpresos toda a manhã. Ao entardecer, frei Leonardo, friamente abriu a estufa, tirou de um tubo um grumo sangrento e gelatinoso e, com um estranho instrumento, aspirou dum cadinho uma espécie de caldo; em seguida, assobiando mundanamente, abriu a caixa, tirou a pombinha e com a maior naturalidade, depenando-lhe uma coxa, injetou profundamente, demoradamente aquele veneno todo. Repetiu a operação com o Calçudo, com certa dificuldade porém, porque ele se debateu com valentia, obrigando o beneditino a imprensá-lo entre a borda da mesa e o ventre obeso. Minutos depois, sós, no caixote, desconfiados e taciturnos, os dois pacientes cochichavam quase não sentiram nada, no começo; mas logo depois, gradualmente, começaram a estranhar as coisas como se uma vertigem os tomasse suavemente. Sentiram-se mal, meio cegos e uma ânsia esquisita lhes corria pelo corpo. Decerto iam morrer... E ficaram tristes e arrepiados. Como único consolo puseram-se a pensar em frei Luiz... Anoitecia. Àquela hora, antigamente, o bom do abade costumava trazer-lhes castanhas assadas... E eles as comiam sobre a venerável manga de estamenha do santo amigo!... E que intimidade!... Como tudo mudara depois da morte do velhote... Até mulheres apareciam agora no corredor da comunidade; outrora

sempre fora isso tido como abuso; com o novo abade isso era comum para gáudio e consolo dos noviços... Que falta não fazia frei Luiz com aquela sua voz austera, hrr! hrr!... Durante a noite a coisa piorou... Os pombos esqueceram tudo para só se aterrorizarem com a doença que crescia, crescia... O Calçudo ia sem pioras, mas a pombinha, essa, coitada, ia bem mal. Tremia de frio e entre o bico e os olhinhos redondos tinha aparecido uma inchação encarnada donde escorria uma água pegajosa... — Que diabo seria?! E o frio aumentava... Sentia por dentro, pelo corpinho de meio palmo, um esquisito mal-estar, como uma tonteira, ou o quer que fosse, horrível, angustioso, incalculável... Tinha sede, muita sede... Ah! Aquela hora o poço do convento, refletindo as estrelas do céu e os galhos das nogueiras brilhava ao luar, como um espelho bendito da terra de Israel, tentando ovelhas e caravanas... E ela, ela porém, tinha sede, queimava por dentro, como uma brasa coberta de cinza branca... O Calçudo, encolhido a um canto, olhava-a sem compreender nada. Ela então, na sua dulcíssima linguagem, explicou o que sentia. Ele, pressuroso, com seu andar de valsa, chegou-se então, beijou-a muito, deu-lhe coragem e ânimo. — Seria feitiço do frade? — Talvez, talvez... Mas o tremor continuava... E a sede sempre a aumentar, sempre, sempre... Então o Calçudo começou, irado e heroico, a investir contra o arame do caixote.

Amanheceu... Quando o sino badalou, lá no velho côncavo do campanário, a pomba olhou angustiosamente o Calçudo; torceu horrendamente o níveo pescoço e caiu ao fundo da caixa com os pés para o ar, os pobres olhinhos chagados, escorrendo uma aguadilha fétida... O Calçudo correu até o pequeno cadáver e o ficou velando com o seu trágico passo de valsa fúnebre. Amanheceu de todo... Na capela, mulheres e crianças comungavam àquela hora... E o Calçudo continuava a velar a pequenina hóstia do seu amor... como um círio ardendo... Como ela não estava horrível assim, com as pernas para o ar como duas garras amaldiçoando!... As penas tinham perdido o brilho e a cabeça úmida de pus começava a enegrecer... Um galo cantou... Outros o imitaram e os sinos no convento e longe, na torre da Sé, começaram a badalar... Então o Calçudo não pôde mais resistir e começou a chorar. Ah! A sua mulherzinha! Três anos viviam eles no forro do claustro; nunca tinham conhecido a tonteira dos pombais que eram como casas operárias, habitações comuns de pombos pobres... Eles, não, viviam sós, como gente rica... Ah! a sua mulherzinha!... Que corpo tão lindo! Que plumagem! Que cabecita ágil! Que bico elegante e que topete orgulhoso!... Tinha a mania de andar saracoteando como os patos do repuxo... E como era engraçada quando se metia a imitar o andar de frei Leonardo!... Tão boa companheira! Uma vez voara um pouco longe, para além dos muros do convento. Só voltara horas depois... Talvez algum amor, alguma tentação, algum segredo... Fora esse o único pecado. Tinham vivido por isso três longos dias alheios um ao outro, como os casais

humanos quando voltam de bailes e teatros... Mas ao fim do terceiro dia a Calçudinha, muito desapontada, deu um voo rasteiro até o poço; lavou-se cuidadosamente; fez-se bonita; alisou-se toda; e sonsa, irresistível e graciosa, depois de secar a plumagem ao sol, pediu perdão ao Calçudo, roçando-lhe com malícia, pela asa, diversas vezes o peito alvíssimo de arminho. E o Calçudo perdoara, perdoara... Só entre os homens é que existem códigos... Pensava isso tudo quando frei Leonardo, antipático como nunca, com seus óculos negros cercados de arame, assobiando mundanamente, abriu a caixa e, com mão rápida, tirou o cadáver. O Calçudo atirou-se àquela garra maldita, bicando-a com desespero. Mas, calmamente, frei Leonardo fechou a portinhola, e depois, com um canivete afiado, diante da janela, começou a abrir o corpo da pombinha, esfarelando entre os dedos com atenção as vísceras turgescentes... O Calçudo fechou os olhos e pediu à alma boníssima de frei Luiz que o levasse também com a sua amiguinha, dizendo: — Haverá no céu mártir maior do que ela, coitadinha, haverá?!!... Mas, em vez de frei Luiz, apareceu frei Leonardo, agarrou o pombo e com força, zás... repetiu a injeção com dose dobrada... — Que dor, seu víbora! — parecia gritar o Calçudo, debatendo-se entre os dedos gigantescos do abade. Solto, depois, pelo mosaico do claustro, o pombo, inteiriçado já não tinha dúvidas sobre o seu fim. Decerto ia morrer, alar-se ao grande pombal azul do céu com a sua companheira e o bom frei Luiz. Começou a ficar tonto, como se estivesse a rolar no espaço duma grande altura. Voou com dificuldade e foi pousar na platibanda

da capela. Uma espécie de embriaguez o fazia tiritar num vago torpor. Abriu a custo as asas encardidas e entrou pelo vitral no interior augusto da capela. Pousou na toalha do altar-mor, diante do sacrário; olhou beatificamente os santos e o candelabro; em seguida, pôs-se a rezar a sua tímida oração de criatura. Vivendo na companhia dos frades, aprendera a achar um suave conforto na oração mental. Nisto, no coro, um órgão começou a chorar uma espécie de “réquiem”. Talvez fosse a alma de frei Luiz que estivesse movendo aquele teclado e aqueles registros... O Calçudo perdeu aos poucos o entendimento das coisas. Pareceu-lhe no seu delírio que o Espírito Santo gravado no altar era a sua adorada companheira de asas abertas, cercada dum fulgor, brincando com o Menino Deus à porta do sacrário... Sorriu... Tombou sobre a asa esquerda: a agonia durou um curto sorriso e o Calçudo, sobre a toalha alvíssima do altar, ficou tristemente a olhar o sacrário, morto, frio, com os pés para o ar, implorando... No coro, ao fundo daquele cenário sagrado, o órgão continuava a gotejar grandes lágrimas de saudade... Rio — 1919.

Uma operação gratuita

— Não é por ser meu filho, não, não é!... Mas juro que nunca vi criança mais linda neste mundo! Até já m’o compararam ao Menino Deus. E beijava o filho, dizendo-lhe tolices, satisfeita, um orgulho sereno a irradiar da fisionomia franca e agradável de mulher do povo. Dói-me muito ter de deixá-lo aqui; mas, afinal, é pro bem dele, ora não?! Inda se a gente fôssemos ricos... E, com um olhar esquisito, muito bem educado, onde as lágrimas punham enevoamentos suavíssimos, entregou a criança à enfermeira. Chegando, depois até a porta curvou o busto para o lado de dentro, olhando com interesse o salão. Abrindo então um riso claro, exclamou, batendo palmas: — Ai! Que ricas caminhas! E com cortinados... Essas grades à volta não magoam os corpinhos desses anjos, ora não?! É que eu, eu nunca me separei desta alminha!... Há ano e meio que aqui no meu colo o carrego dia e noite. Às vezes esqueço tudo, o olhar pra ele, a modos encantada, meio zonza. O médico é aquele senhor que está chegando? Fale-lhe do meu filho. Diga-lhe que não é uma criança como as outras, não... O interno do serviço, com palavras esquisitas e gestos severos explicou então à pobre mulher o que os senhores médicos iriam fazer.

— Seu filho será operado quinta-feira, às 9 horas. Coisa ligeira, coisa sem importância... À voz de operação a operária arregalou uns olhos muito brancos, tornou-se de uma lividez acentuada, e a custo pôde dizer: — Pois inda bem, meu senhor, inda bem. Os senhores hão de ter a paga dos céus. E agradecia com humildade, muito confusa na sua sinceridade espontânea. Convidaram-na então a sair. Era proibido gente estranha ali, na clínica. Saiu. E chegando ao pátio, depois de atravessar o corredor enorme, viu, em tétrica exposição, crianças descarnadas pelo jejum, envoltas em coletes de gesso, apresentando, umas, grandes tiras de gaze pelos braços, outras talas rijas ao longo das pernas. Um repentino pavor fê-la tremer de angústia muito tácita e muito resignada. Aparelhos estranhos, cadeiras, e objetos de ginástica infantil e reparadora fizeram-na parar, estatelada. — É lá possível a gente corrigir o que Deus fez?... Voltou a olhar as crianças cujos olhos mortiços procuravam o sol. Ah! Nenhuma delas era como o seu filho! Nenhuma sequer que tivesse os olhos assim rasgados, grandes demais para um rosto tão pequeno! Nenhuma que tivesse a cabeleira tão espessa e castanha, dando àquela criaturinha a majestosa beleza de certos príncipes reais como os que, às vezes, a gente vê em retratos de dinastias!... — Que coisa tão esquisita...

Um tremor crescente começava agora, e, aumentando, aos poucos lhe invadia o pescoço e o queixo, espraiando-se-lhe até a boca, em contrações tortuosas e instantâneas. Um pranto sereno e mudo, feito de uma angústia velada e humilde, cavava naquela face, como em cera cristã, expressões humaníssimas. — Que coisa tão esquisita... Mas ele ficará bonzinho, ora não?! — E ela própria respondia, imitando a voz do interno: Coisa ligeira, minha senhora, coisa ligeira. Saiu, e, quase ao fim da rua, olhando para cima, lá para trás onde o casarão amarelo do hospital lembrava uma coroa sobre o morro esverdeado e barrento, sentiu que, maior que a resignação, e mais forte que o amor, a saudade, como uma hera daninha a envolvia, agora, estrangulando-a sem piedade, como um começo de agonia muito longa. — Que coisa tão esquisita... E era quase sublime, essa mulher taciturna, de andar muito trêmulo e de expressão muito tímida olhando, sob as pálpebras úmidas, o mar, lá, longe, rente à amurada, como um grande plano cheio da cor bendita da esperança. — Ó Deus grande! Deus justo! Deus infinitamente bom!... Na manhã de quinta-feira, ao sair de casa, foi como se acordasse duma hibernação. Uma vontade mal definida de chorar, como um peso líquido, lhe abafava a alma, como se, intimamente se acumulando, nunca transbordasse aquele fel... — Que coisa tão esquisita... E, de novo, subindo a ladeira, toda acurvada e diminuída, mal tinha ânimo de olhar, no topo do monte aquele casarão sinistro erguido como uma coroa sobre uma calva...

Estudantes de ar bisonho, órfãs uniformizadas e garotos de ar brejeiro e atrevido, não viram decerto e nem repararam nessa mulher cujo rosto macerado tinha o tom sereno de certos sudários abençoados. Ao chegar teve logo uma primeira contrariedade. Não viu, como dias antes, crianças doentes, brincando ao sol, lentamente alisando feridas com afagos trêmulos de dedos, numa exposição inocente e alvar de chagas, aparelhos e risos claros... — A operação demora, meu senhor, demora a operação? Vão lhe dar aquele cheiro pra dormir, ora não?! Rapazes de ar circunspecto calçavam luvas de borracha, inclinados sobre uma pia. Junto deles, cerimonioso e augusto, com uma barda de cenobita, um médico velho e calvo lavava com cuidados extremos, quase maníacos, os largos dedos nodosos. A operária, como quem se surpreendesse diante de um altar, parou. Os médicos entraram numa espécie de pavilhão envidraçado. — É ali, pensou ela. Ai, que é tal e qual uma estufa de plantas. Intimidou-se, não teve coragem de entrar; decerto era proibido. Uma enfermeira baixa e vesga veio ter com ela, disse-lhe coisas sem interesse, e, como quem concede por alta deferência um favor muito custoso, disse: — Bem; a senhora, por um minutinho pode vê-lo que ele inda está na cama, na sala... — Tiraram-lhe, porém, logo, o filho. Era hora, não podiam esperar. Era uma sala pequena, envidraçada, abafadiça e branca. Estudantes sussurravam agrupados em conciliábulos, emitindo

diagnósticos, observações e anedotas e, tinham, nessa concentração postiça um feitio pernóstico e irritante de mentores e testemunhas. Uma atmosfera profana e leiga amornava o recinto, muito embora, na parede alvíssima, um Cristo dulçoroso olhasse, com igual compaixão e cansaço, vítimas e algozes. A operária, junto à porta, inclinou-se a olhar. Pareceu-lhe um bom sinal, um muito bom agouro o feitio indiferente e tíbio daqueles rapazes todos. — A gente deita-se ali e fica todo desengonçado como um polichinelo. Também a posição do doente ajuda o médico, pois não ajuda? Disseram-lhe que sim. A criança, debatendo-se toda, ria com risadinhas curtas e entrecortadas diante da enfermeira que lhe fazia arreganhos. A um canto da sala, um cilindro de metal polido rangia, todo suarento e, um vaporzinho tênue em espirais, saía duma torneira, cantando quase. Cheio de cautelas e trejeitos um doutorando tirou daquela fornalha, um mundo de coisas de cirurgia, pinças, tesouras, bisturis, agulhas, afastadores, ruginas, gaze, pastas de algodão iodoformado, santo Deus, e rolos sem conta de ataduras; e tudo isso ficou depositado numa bandeja que mais parecia um pequenino esquife. — Ah! não e não!... exclamou ela, abrindo os braços como se rasgasse a tela duma visão negra. Entrou, porém, exatamente nesse instante o sábio de longas barbas de cenobita.

Olhou-a com severidade e importância, depois, grave e rígido de semblante, disse, secamente, quase com desdém: — A senhora faça o favor de sair. Saiu, acurvada, diminuída, com um grande pesar em ter desgostado o senhor doutor; mas um pedaço dela própria, íntegro e pulsátil, tinha ficado lá dentro, com esses senhores majestosos, sérios, de muito saber e de alto preparo. O chefe do serviço, contrafeito, um mau humor desenhado na face cardinalícia, exprobou, com duas frases vagas, a balbúrdia dos hospitais nesta terra. E, com uma espécie de saudade mística nos olhos, como quem vê retrospectivamente a glória de um passeio por conta do governo aos centros cultos e adiantados da Europa, ajuntou com superioridade levemente ridícula: — Os senhores precisavam assistir à ordem e à disciplina dos serviços de Cozzolino e Kirmisson. — E nisto, como acólitos dum rito cruento, três rapazolas recém-formados, iniciaram a operação sob as vistas do chefe. A mulher sentou-se num banco do passadiço. As paredes do edifício, vistas do pátio, subiam como muralhas coloniais recortando no ar azul um quadrado de céu muito remoto. Num pórtico escuro, atrás de pilastras claustrais, órfãs de ar angelicamente estúpido, com fitas de devoção a tiracolo, limpavam os quadros foscos do vitral da Comunidade. E, trepadas sobre os travesseiros e mesas de exame, crianças riam gostosamente, com acenos enigmáticos, espiando através de postigos e óculos da enfermaria geral. — Bom e com a saudinha é que o quero eu. Depois será pra aí um homem forte, com forças para sustentar a mãe, ora não

será?! Na sala de operações, porém, tinha acontecido qualquer coisa grave. Anormal e tétrico era o olhar de gesso dum Ambroise Paré erguido a um canto da sala. Um dos médicos, em dado momento erguendo no ar uma pinça hemostática, muito assustado, gritara, olhando o anestesiador: — Mas, seu doutor, essa criança não está respirando!... — Está, ora essa, está! — Então o senhor sabe ou não sabe dar clorofórmio! Fechou-se em torno da mesa um círculo apertado de curiosos. — Esse moço pensa que anestesiar é somente pingar, pingar e pronto. Eu não posso ter quatro olhos, é claro, não posso!... Estatelado, como um sonâmbulo, junto da criança, o estudante mal pôde falar. Quis, depois, mais calmo explicar, dar um parecer, que diabo! porque aquilo era um acidente, uma síncope, uma coisa inevitável; era até relatado em livros, ninguém poderia evitar, com qualquer aconteceria o mesmo. As opiniões dividiram-se. Teve, então, início o seguinte espetáculo. Começaram a abaixar e erguer, ritmicamente, os braços da criança; o chefe da clínica, com uma pinça tendo preso a língua da criança, movimentava-a de acordo com os movimentos dos outros. Durou bastante tempo esse desespero; esbaforida, a enfermeira fazia massagem no peito abaulado da criança. — A quantidade de anestésico não era capaz de uma intoxicação...

— Era, como não? — E quase todos comentavam, criticando abertamente. Um tempo enorme e precioso aquela gente gastou curvada sobre a criança exigindo quase um milagre da ciência. A energia desesperada de todos apenas violentou um cadáver que começava a enrijar. — Mas é impossível, mais, mais... O corpo da criança, começava agora a criar certas nódoas violáceas, e uma auréola azul à volta dos olhos fundos ampliava aos poucos a trama escura das olheiras pisadas. — Mais, mais... Por fim, calados, como três cúmplices, os auxiliares do serviço, muito lentamente, recompuseram o cadáver. Para moralizar o caso e salvaguardar a responsabilidade, o velho cirurgião falou aos presentes meio alto, com uma amabilidade covarde, explicando o acidente, lembrando princípios de fisiologia, e inocentava o “estudioso auxiliar” que em má hora se vira a braços com uma fatalidade não muito rara na vida hospitalar e civil do médico. Houve um sussurro, um mal-estar completo sobre todas aquelas cabeças. Olhares entrecruzaram-se, voltou o silêncio, e um embaraço profundo pregou-os a todos, naquele chão, sem lhes dar ânimo para um passo ao menos. Finalmente, aberta a porta de vidro fosco, saíram todos, como réus espiados por uma multidão silenciosa. A operária ergueu-se logo. — Então agora tenho que esperar três semanas? — Sim, minha senhora, isto é... — Mas se eu o pudesse levar já, hein? Era um favor tão grande!... Havia de o colocar na posiçãozinha que o doutor

ordenasse; era um favor tamanho!... Já agora não é proibido, posso lá ir, ora não? E encaminhou-se para a porta. Fitou depois o médico e a sala, e, abrindo os braços em cruz para logo em seguida os fechar sobre o peito começou a chorar com muita brandura. — É lá possível a gente corrigir o que Deus fez?... Nesse instante, porém, saiu do pavilhão o interno soluçando alto, com um lenço na boca; a enfermeira, ao lado dele, dizia, repetindo sempre: — O senhor não teve culpa, doutor, o senhor não teve culpa... Ouviu-se então naquele terraço um grito lancinante. — Oh! Meu Deus! O meu filho... Mas eu, eu mato-me, olá se não! Mato-me... — Minha senhora, o que estava nas nossas mãos, o que era humano, nós fizemos; em vinte e seis anos de trabalho nunca tive um caso assim. Deploro, deveras, deploro essa fatalidade — disse lentamente o chefe, deixando cair os braços pesados sobre o avental. Ela teve um olhar de desprezo profundo. — Estudou vinte e seis anos nos livros e não soube salvar o meu filho... Por que me disseram então que era coisa rápida?... Tanta gente naquela sala, tanta gente e ninguém m’o soube salvar, ninguém... Horas depois, sentou-se no mesmo banco, no passadiço da enfermaria e dos internos. Veio, porém, um velho enfermeiro que, com muito jeito e carinho convenceu a mulher. — É melhor pra senhora...

Descendo a rampa em zigue-zague, os dois, como mendigos descendo ao povoado, conversavam baixo; o velho, com unção muito religiosa na voz, dizia: — A vida é isso mesmo. Eu, assim como aqui me vê, perdi dois netinhos num desastre; dois netinhos já grandes, dois gêmeos. A senhora leu, com certeza, nos jornais, todo mundo leu; eram quatrocentas crianças com os padres do colégio e iam aí pra dentro, pela baía; de repente... A senhora leu, com certeza, os jornais trouxeram... — Não é por ser meu filho, não, não é! Mas juro que era a criança mais linda deste mundo!... E, ofegante, contava, com um clarão no rosto: — O meu Júlio tirou inda não há cinco meses o primeiro prêmio de robustez naquela beneficência, ali... naquela rua que vem dar num largo onde há um imperador de ferro mesmo ao centro do jardim, sabe? — Tantas crianças e o meu filho foi o primeiro, veja, o primeiro... As outras mães cercavam-me a mim que o tinha aqui apertadinho ao seio. Um médico, todo de preto e com muita cerimônia leu alto o nomezinho dele, deu-me nas mãos o diploma, a medalha e um cumprimento muito amável, dizendo ao meu menino: — Viva, “seu” Júlio, parabéns... E os retratistas dos jornais vieram ao depois, tiraram a caretinha da criança muito séria e educada no meio duma mesa encostada à parede... E ao depois, oh! ao depois, nos jornais do sábado, lá estava o meu filho, ele mesmo tal e qual com uma carinha zangada, estranhando aquela festança!...

E, recordando, a fisionomia ainda se lhe avivava à lembrança daquele orgulhoso triunfo. Chegaram; o enfermeiro disse-lhe adeus, sorrindo. Havia um portão largo, e o necrotério como uma capelinha, estava ao lado. Entrou. A princípio não viu quase nada, estava um pouco escuro aquele inferno... Numa escrivaninha, em frente da operária, um sujeito despropositadamente gordo, carimbava papeletas, com ar de pouco-caso. Inclinadas na parede, caixas alongadas, de madeira crua, fechadas a prego, davam aquela sala semiescura o aspecto subterrâneo duma catacumba. — Custa muito?! — Como diz a senhora? — Se custa ainda muito... — Isso é conforme; a senhora é parenta do morto, do homem da gangrena?! A operária então, numa algaravia, explicou o seu caso, com muita paixão, maldizendo aquilo tudo: — Coisa ligeira, coisa ligeira e deixaram o meu filho morrer... — Mas, afinal, a senhora tem a guia para levar para sua casa a criança?! É preciso ver isso. O melhor é o enterro sair daqui; de outra forma é difícil nós nos entendermos. — ’Stá bem, meu rico senhor, ’stá bem. Pois eu vou, eu vou. E como um espectro, saiu, vacilante e vagarosa. Raparigas passavam com frascos de remédio, saindo da “sala do banco”. E um cego repelente, cuja expressão tinha qualquer coisa de comum com um buldogue, increpava a filha, que o guiava: — Pois

se eu sei que o botequim é do outro lado da rua “sua burra!”... Se eu sei... E com os borrões sinistros dos olhos parecia olhá-la com rancor selvagem. A pequena, malvestida, com grandes pernas roliças à mostra, atravessou a rua; e o pai, seguindo-a, abria muito as órbitas; e uma espécie de sorriso trêmulo punha um clarão satisfeito naquele focinho oleoso. A rua, nesse trecho, em frente ao velho casarão da Misericórdia, fechada por um túnel, de árvores retorcidas e seculares, lembrava um caminho, dantesco, uma garganta infernal semelhante às ilustrações de Parma e Doré. Fileiras de carros esperavam os médicos, e, entretidos em palestra, grupos de pobres, junto a uma escadaria encardida esperavam a hora regulamentar da visita. Pelo passeio, entre a linha da alameda, a mulher seguiu automaticamente, sem erguer os olhos do abismo da sua dor desconhecida. Longe, diante dela, do outro lado da rua, além da amurada, o mar espelhava um sorriso irônico todo cheio de cor falaz da esperança... Duas lágrimas, veiadas de sangue, rolaram mansamente, cavando um brilho estranho na cera daquele rosto. Crianças passavam pela mão de velhas silenciosas e sujas. — Ah! Nenhuma, porém, que, como ele, tivesse uns olhos tão grandes, rasgados demais para o rosto tão pequeno!... Diante dela, surgiu agora uma rua apertada, tortuosa como um beco napolitano, só transitada por pescadores e soldados. Entrou pela viela adentro, lentamente. E seguiu, acurvada e diminuída, descrevendo linhas trêmulas no calçamento úmido...

Ao fim da viela bateu a uma porta; uma rapariga morena, com um corpete túrgido no busto bronzeado apareceu na meia escuridão do portal. Olharam-se as duas mulheres; a que entrava teve um gesto indecifrável, abaixou mais o busto, e sumiu como uma feiticeira numa gruta. Fecharam de novo a entrada, e agora, na fachada humilde e amarela do casebre, a porta, negra e retangular, lembrava um túmulo em pé, embutido numa galeria subterrânea... Rio — 1919.

João Lágrima

Como um trecho de sombra que se fragmentasse da massa espessa da multidão, João Lágrima saiu do grupo, aos empurrões, assustado e furioso, resmungando e investindo, de cara franzida, contra os operários que o apupavam. Depois, olhando para trás, seguiu, a caminho da rua deserta, raspando o solo irregular com os pés tortos, movendo-os como dois alfanjes. — Que a gente, pobre como nasce, é que morre. E ainda sob as vaias e assobios da assuada alegre, entrou na Cooperativa, chegou-se até o balcão e pediu uma dose. — Ó “seu aquele”, isso vem ou não vem?... E, repetindo os goles, fitava com amizade o vendeiro, esboçando um sorriso alvar e ronronando como um gato interesseiro. Lá fora, junto ao muro da Companhia, um homem aloirado continuava a falar diante do grupo descrente dos operários. E citava os recentes triunfos do “trabalho” sobre o “capital”; fazia comparações entre a situação do proletariado no mundo, apostrofava os patrões, os especuladores, e exaltava o santo suor dos pobres que era cimento para a grandeza dos ricos. Marcava para breve a data da liberdade que viria igualar as condições humanas, pondo-as rasas como aquela praça; e, sacudindo nas mãos um jornaleco subversivo, aconselhava as resistências, os processos russos, e sobretudo, teóricas adesões a III Internacional.

E, discursando, o homem abrigava as orações no parêntesis dos braços muito abertos, virando-se para todos os lados, medindo astutamente o efeito do falatório, e olhando de revés, ressabiado, o portão largo da Manufatura. João Lágrima, em pé, na soleira da Cooperativa, olhava os companheiros estatelados como uns paspalhões diante do anarquista. — Miolo podre é que este idiota tem!... E então o destino da gente?... Se as coisas corressem assim como manteiga em focinho de cão, já não havia pobres, homem!... Cuida então que cá somos uns palermas?! Saiu. E pela rua adiante, andando quase aos tropeços, tinha curiosidades malucas, parando diante de cancelas toscas onde assomavam garotos sujos e cães lázaros. Prosseguindo, parava de novo, para, meio apoiado a um portal, olhar com estupidez o interior pobre de qualquer casa. Durante isso cantava, baixo, em tremolo, um samba obsceno; de vez em quando parava, ria sozinho, aplaudia-se a si próprio. — Aí, “seu bicho”! Tenor velho cansado... Perto da via férrea, operárias, resguardando-se do sol com lenços ramalhudos nas cabeças branquejantes de algodão, atravessaram o riacho e, dando repentinamente de frente com o bêbado, recuaram. — Ó João Lágrima! Ó João Lágrima... E ele as encarou, disse blasfêmias com ar grotesco e, de indicador no nariz, com arreganhos de carnívoro, gritava, provocando-as: — Lágrima, hein, súcia?! Hein, canalha?!

Junto a uns montões de carvão de pedra, sentiu que um peso, como um tronco, o derrubava, arrastando-o pelos dormentes da linha. Estirado no pedregulho, depois teve um gesto de sobressalto, ergueu a cabeça, virando-a para a direita e para a esquerda como um camaleão; arrastou-se por fim até a vala onde um lençol azul de água apodrecia ao sol. E então percebeu o que aquilo tinha sido, pois pôde ver, já, a certa distância, como um pulmão colossal respirando, uma locomotiva muito lenta, de cujo tênder saía uma cara risonha e cínica, rindo a bom rir... — Quase, hein, Lágrima! Quase... Quis erguer-se, mas não pôde: estava tonto, pesavam-lhe as pernas e um fio de sangue se lhe alargava na testa empastada de suor e de fuligem. Com um risinho desavergonhado, estirou-se beatificamente ao pé do barranco, e cantando de novo a ária faceta, dispôs-se a dormir. Agora, todo encolhido sobre o jaleco, da cabeça apenas se lhe via o cabelo cor de palha. As pernas, em flexão sobre as coxas, tinham repuxado a camisa, deixando à mostra um trecho cabeludo de ventre móvel, pausadamente acompanhando a respiração. Horas depois, já de tarde, o gerente da fábrica, passando para o chalé, parou a caleça, desceu, e a custo despertou o tecelão. — Isso é lá modo de vida, homem?!... João Lágrima desenrolou-se como um animal que acordasse duma longa hibernação penosa; e, erguendo-se preguiçosamente, com uma baba a lhe empastar os bigodes de bárbaro, mal encarado, um estupor profundo ante a silhueta de corvo do gerente, deu de andar. A princípio não compreendeu bem onde estava; olhou em torno, com longos bocejos de lorpa, e, soerguendo as calças

bambeadas, seguiu, raspando o solo com as foices convergentes dos pés tortos... Passando de novo pela Cooperativa, entrou, bebeu, discutiu e tomou rumo de casa. Defronte da cancela, no terreiro, tinha já a cara menos enfarruscada; os olhos, como cortados num tecido crespo, tinham tonalidades de estanho; e a tez, cor de terra, revestindo a ossatura deprimida em altos e baixos, apresentava grandes manchas avermelhadas, ásperas e oleosas como nas inflamações crônicas. Ao subir os três degraus, já no pequeno alpendre onde pintainhos ciscavam, topou, de súbito, com um homem que saía. — Que é lá?... O outro, com uns ombros fortes, de cor cobreada, à mostra, arqueou o corpo e com impulso de touro arremeteu contra o operário... — Que é lá, patife?... E nos olhos, mortiços como contas de vidro, luziu um facho de sangue. O homem, depois de derrubar o ébrio com um safanão, deitou a correr, atravessou a linha férrea e galgou o muro, olhando para trás com espanto. João Lágrima, ergueu-se, limpando com brutalidade, rispidamente, a roupa empapada de lama; e, logo depois, com um pasmo imbecil nas ventas arreganhadas, estendeu os punhos, ameaçando. — Ó maroto! Oh!... E aos poucos, aquela estampa animal recobrou sombreados torvos e linhas incisivas, brilhando como uma chapa engordurada

que se aquecesse. Quis raciocinar, mas as ideias lhe fugiam numa escuridão. Entrou. A mulher, num alvoroço comprometedor em arranjar os cabelos e fingir serenidades estudadas, acusou-se logo, sentando-se em frente da máquina de costura. Estava muito escarlate e apenas uma ideia lhe acudiu ao cérebro: “Por um caso assim, numa dominga de Ramos, o agulheiro da estrada matara a mulher, esganando-a.” E toda ela se prendia a um horror súbito vendo, ali, o marido em pé, na sala, trêmulo, oscilando como uma pêndula invertida, a olhá-la sempre com o carvão sinistro daqueles olhos empapuçados e oblíquos. Ao fim de muito tempo, não suportando mais aquele silêncio sufocante, tomou uns ares de provocação e, torcendo a costura nas mãos, perguntou: — Que é, João? Que é? — Ahn... E ergueu uma cadeira; quebrou-a de encontro à parede, e, ficando só com o espaldar na mão, investiu contra a mulher... — Como anda bem tratadinha, cá a patroa... Então, sabe-lhe bem uma variação, pois não acha?! E, com um hálito podre, cercava-a dum sarcasmo obsceno e brutal, olhando-a de alto a baixo, como a querer ver as “diferenças”, os “rastos” daquela desavergonhada pândega... — Racho-a, sua imunda... E ameaçava o golpe, com ensaios cambaleantes, cuspindo para os lados, soerguendo as calças frouxas e mal se equilibrando nas pernas em X.

— Aquela imunda era pois a sua mulher! Mas que belo papel, sim senhores... Um “estupor” que, em pequena, andava a secar o algodão nos pátios da Companhia, mostrando a todos, numa pouca-vergonha, as pernas nuas e as ancas moles... Casara com “aquilo”, casara, para quê? para quê? Mas, ah!... Tudo ia raso, agora... Tinha nojo, “a grande burra”, de dormir com o João Lágrima, e então... então dormia, a sesta, com fedelhos... Que alta pândega aquela... e que alta pândega esta agora, porque tudo ia dançar... co’ pau... Racho-a, racho-a, sua imunda... Mas, repentinamente, uma espécie de convulsão o abalou; como de vez em quando, agora lhe vinha aquela maldita tremura dos braços e das pernas; a própria cara, repuxada de um lado, entrou também a tremer, abrindo os cantos dos lábios num esgar, o que lhe mostrava os dentes podres. — Racho-a, sua imunda... E ela, então, com firmeza, começou a gritar... — Pois gosto dele, pronto. Gosto, gosto... E defendia o corpo atrás da máquina com aquela cara atrevida e sardenta, cheia de brio, o buço sob o nariz afilado, cheio de suor. Mas a esse tempo, começou a crescer um ruído arrastado, vindo do fundo da rua; e aumentava, já transformado em alarido, despertando a vizinhança. Distinguiam-se gritos de mulher e vozerios de garotos. A avalanche rolava, varrendo o caminho, engrossando, e a revolta chegava até o chalé do gerente. Era a greve. João Lágrima assustou-se. Ainda com o espaldar da cadeira na mão, abriu a porta, para ver o motim que passava.

— Ó João Lágrima... Ó João Lágrima... E uns homens o agarraram. — Entra conosco nisto!... E, erguido aos ombros de dois, debatendo-se todo, distribuindo golpes irados, o bêbedo quis fugir, ensaiando arrancos. Rasgaram-no todo. E ele, como um Tonny de circo, vendo que era inútil reagir, entrou a chorar como era seu hábito quando entrava no último grau de embriaguez. — Ó Lágrima! Ó ’stupor!... Mas, contorcendo o corpo que o tremor ainda sacudia num sinistro shimmy, de coreia, o borracho teve, inesperadamente, um riso cínico; cumprimentou os “mais”, e descobrindo, à porta, num grande pasmo, a mulher, desgrenhada e boquiaberta, voltou-se para ela, numa barretada jocosa, o chapéu amarfanhado. A celeuma continuou, como uma lufada, varrendo tudo, aos repelões. E embora gritasse, também, dançando e estalando as pontas dos dedos em castanholas, João Lágrima seguia deslumbrado, naquele triunfo todo, ora impelido à frente do grupo, ora esmagado entre centenas de ombros que lhe davam a impressão de aspas de touros chuçando-lhe o corpo magro. Naquela altura, os seus olhos de boçal distinguiam, numa alucinada apoteose, lá, junto à fábrica, a “Cooperativa” acaçapada, com as três portas abertas, como um templo dominical, atraindo o operariado, explorando-lhe a miséria, alimentando-lhe o vício, impunemente, como se o álcool fosse por ventura, a aspiração genérica daqueles corpos brutos e daquelas vidas acanhadas de reses estúpidas.

A usina, toda em relevo negro na atmosfera, surgia ao fundo, metálica, luzidia, cortada de cabos aéreos de aço, erguendo postes, reservatórios, cúpulas giratórias entre a floresta das chaminés cilíndricas, isolada toda ela dos campos estéreis pela dupla cinta dos trilhos atravancados de vagões. E um cheiro de inferno químico subia, encardindo o nevoeiro. Era para lá que aquela torrente o arrastava, como a um vórtice... E o bêbado batia palmas, distribuía carícias e agradecimentos canalhas aos murros, aos pontapés e aos berros. E sobre aquelas cabeças todas que se condensavam numa sombra única, estrangulada entre os muros da rua, João Lágrima seguiu a trote, sacudindo os ombros e os braços, como um espantalho despertando revoadas e gritarias. Rio, 1919.

O filho de Maria Bárbara

Ele ia a um canto da chalupa, entre os mais imigrantes, com o saco de quadrados às costas e as galochas sobre os joelhos, olhando com ternura os homens do remo. A noite era tão densa que mal se podia distinguir na massa ecoante do mar a sombra acachapada do “San-Miguel”; apenas três ou quatro luzes no dorso do barco, rentes ao mar, davam a certeza de que ele lá estava à espera dos bois e dos imigrantes para Ponta Delgada. — Ó filho da Maria Bárbara!... Hé!... — gritou uma voz longínqua, de terra. O mostrengo encolheu-se mais atrás dos outros homens entre rodilhas podres de corda e montões de ananases. Atrás, dentro da noite, como uma coisa que desaparecesse, ficava a ilha de Santa Maria, com o seu farol muito débil piscando... piscando como uma estrela à flor-d’água. — Levanta-te, homem. A modo que ’stás vexado... Ir uma pessoa ganhar pão na “Amárica” sempre é “bum”... Isto é uma terrinha pobre, esquecida de “Deis”, que nan dá nada pra suster o cadáver duma pessoa! — dizia o arrais, em pé, na popa, consolando o palerma. — Ao despois, aquilo por lá é, parece-me a mim, uma terra de liberdades; até pros padres, homem, até pra esses maganões aquilo é uma pechincha... Olha! Os Inácios da lomba da Cruz, aqueles três irmãos vieram de lá assim, cheios, cheios... E

sem nenhum ajudar o “oitro”. Hás também tu de ser f’liz. Por lá sempre há quem recebe, da parte do governo, os que chegam; a modos que é um serviço perfeito!... Até o governo ajuda. Inda t’hei de ver, com brilhantes e uma corrente no jaleco, saltar do “SanMiguel” com esses pés calçados e duas arcas atulhadas de roupa para a Maria Bárbara. Digo-te que é uma mulher que merece. Quem anda o dia todo na eira e na pia dos porcos, e à noite na “mánica” de coser, bem merece dó de Deis, homem! Bem merece ter um dia, na canada de San Martinho, uma casa, uma atafona, uns cerrados pro trigo, a burra cheia de milho e vasos à janela, ora nan?... — Eu digo que sim, pois então?!... Um clarão frouxo batia agora de esguelha nas ondas, fazendo-as brilhar como azeite. Os mais homens iam calados; alguns fumavam, olhando com maneira tímida e resignada para o bojo do “San-Miguel”. — Tu nunca pisaste num navio? Pois é como um palácio de fidalgos. Uma pessoa até fica tonta. Há os que vão como morgados e há os que vão como desgraçadinhos. Esses, então, vão na proa. — Quantos vão na proa e ao depois voltam no meio!... — ponderou um velho com entoação concentrada, como a dar ânimo aos que o ouviam. — Sim, dizia eu, — continuava o mestre — na proa, na frente, como o gado, olhando a ver quando chega. De noite é dormir embaixo dos toldos ou nos corredores, ao longo do assoalho emporcalhado e frio, todo encolhido na manta e no saco, fazendo cálculos com a bola: “Voltarei como morgado ou como filho da Maria Bárbara?!” Ser pobre nan desonra ninguém, mas ir a gente como cão e ver os “oitros”, como republicanos e formigas do Rocio,

arrotando dinheiro sempre dá pena e ódio... Sabes? É sempre de noite que a tristeza vem... A gente está encolhido entre as pernas dum companheiro, sem poder pregar olho. O vento assobia. O frio entra p’lo corpo adentro; de quando em quando, no meio da escuridão, a sineta da ponte dá horas. Depois, se a gente tem o ouvido no assoalho todo o tempo, ouve o motor do navio, chec, chec, chec; se a gente está assentado ouve só o barulho da água que a proa vai cortando... cortando... Outras vezes, quando menos uma pessoa espera, o bruto dá um mergulho; então a cabeça começa a andar à roda. Há quem enjoe sempre; é um vexame, uma náusea, uma tonteira tal e qual como quando a gente convalesce duma doença ruim... Então se há cheiro de óleo, a bordo, é um horror... E vendo só água e céu, ouvindo a música e as risadas nos salões e passadiços dos ricos, vendo, ao pé da gente, mulheres e crianças dormindo à beira do abismo, geladas de frio e de mau trato, então, meu menino, é que, sem querer, pouco a pouco, a gente começa a pensar na ilha de Santa Maria, na boa terrinha... E a gente diz assim com os próprios botões: “A estas horas, na minha aldeia, todos já recolheram. Estão talvez ceando, ao redor da toalha limpinha, o bom pão de cevada com chicharros e vinho da Graciosa.” E a gente se alembra dos amigos, um por um. Dos amigos e dos inimigos... Dá uma saudade! Uma cousa... Um malestar, um nó na garganta... E a gente se recorda da casa, dos cômodos, da mesa, do oratório, do armário, da arca, do moinho, da estrada, das outras casas, das pessoas que passam falando alto atrás dos bois mansos. E se a gente tem uma mulher... Uma prometida ou mesmo, entendes?!... Ha! Ha! Ha!... Então, ha! ha!

ha!... Estou a rir, mas o que a gente sente, sabes, é uma vontadinha bem forte de chorar... Então, olha-se assim pros lados, com cautela... Se ninguém vê, toca a desabafar... E é um regalo, um alívio sentir as lágrimas pela cara... Faz um bem tamanho!... Olha-se depois com mais calma, pro mar. Vê-se o grande céu estrelado, ouve-se o mar, assim, em volta. Lá na ponte, no alto, o homem de quarto canta o 31, embuçado no seu capotão, como um militar... E eu, e tu, e todos, então, meu caro, temos uma força, um ânimo, uma coragem, uma vontade de chegar, de meter mãos à obra... O filho da Maria Bárbara olhava com a doçura dos seus olhos tristes para o patrão, aprovando com a cabeça, automaticamente. — Põe-te em pé, homem. É esse o bruto! Uma b’leza, ora nan?... — Digo que sim, que é muito “perfeito”, muito “perfeitinho”!... — Perfeitinho, ó ’stúpido?! — atalhou um outro. — Um demônio é que esse estafermo de barco é! Em vez de nos trazer açúcar de Lisboa e da Madeira só nos leva os bois pra Ponta Delgada e os homens para os navios da Fabre. Inda um dia virá que nan haverá mais rapazes cá nos Açores; é uma cousa que eu, se fosse homem dos poderes, havia de pôr cobro. Os agentes na Terceira e em Horta estão podres de rico a exportar homens como se isso de homens fosse colheita em grão!... E então a África! E então as colônias? Nan é à toa que os ingleses mais os alemães têm conversado... Vai tudo pra América... pra América!... Já o filho de Maria Bárbara, em pé, na borda da barcaça, com o saco de quadrados às costas e os socos nas algibeiras,

segurava a corda da escada. Uma gritaria, em cima, o atordoou. Um refletor muito forte, com uma luz muito branca, pregado na muralha, aclarava a escada, facilitando o serviço. Havia, nos passadiços muita gente debruçada para o mar, folgando alto; e um rapazola, no portaló, dirigia o movimento. — Cadeiras de vime... vime... vi-me... gritavam dum barco, na treva, ao redor do “San-Miguel”. Homens de bordo falavam para os barcos aglutinados embaixo; um guindaste barulhento e velho, com suas molas primitivas, enrolando e desenrolando uma tira enorme, ora baixava ora descia o cadernal, carregando e descarregando. Caixas, malas, fardos e sacos subiam baloiçando; depois, vagarosamente, com estrupido, trepidando, sumiam na abertura lôbrega do porão, mesmo ao centro da terceira classe. Passageiros assistiam o trabalho, debruçados, com um ar neutro, feliz, despreocupado curiosidade frívola.

de

muita

paciência,

ostentando

uma

— Subam... E eles subiram todos, um por um, como um rebanho atravessando o portal dum ovil. — Adeus. Diga a Francisca que eu volto com o saco tinindo ou me dano por lá... — disse um homem abraçando o pai já trêmulo. — Vamos! — gritou o oficial do portaló. O filho de Maria Bárbara olhou espantado e subiu, por último, com humildade, muito receoso, meio zonzo, equilibrando o corpo aturdido; e ele que era ilhéu, entrevendo pelos degraus de corda a água que bulia, teve medo do mar. — Os seus papéis.

— Saiba o senhor que sim — disse com muita compostura, procurando-os nas algibeiras. Repentinamente uma opressão o tomou. Apalpou-se melhor. — Essa agora... Mas juro que os trazia. Era o papel encarnado da passagem, o papel do governo, como o “oitro” que diz o passaporte... o atestado da freguesia, da escola e trinta coroas, sim senhor, trinta coroas. Ah! Pronto... Hum!... — Bem. Passe. E ele entrou, mergulhando a mão calosa nos bolsos, guardando com carinho a papelada. E um sorriso bom, honesto, ingênuo, como um prêmio íntimo, lhe arreganhou o focinho de cretino no largo contentamento de quem vai viver uma vida nova. Atabalhoadamente, com cerimônias tímidas, deu três passos. Do alto do passadiço um soldado lhe gritou: Arreda, animal! jogando-lhe à cara gomos de laranja podre. Olhou para cima, sorriu com docilidade servil, envergonhado sob os apupos grosseiros duns homens que fumavam. — Ó seu lorpa! Com essa cara e esses membros que é que vais fazer, à América?! Riu de novo, mas já agora com uma onda de sangue e de raiva até às orelhas, um feitio normal de bruto na venta desconfiadiça. — Ponha-se ao fresco. Nan vê que estorva o serviço? gritoulhe o marinheiro que dirigia a manobra do guindaste ao pé da abertura do porão. O filho da Maria Bárbara se afastou para um lado, sem jeito, espantado, já arrependido de ter vindo, cheio dum pânico que o oprimia, dando-lhe até ganas de chorar. Lá atrás, na treva difusa,

com o seu farol de óleo, lembrando uma estrela rente à água, a ilha de Santa Maria ficava frouxamente visível entre a noite. E o monstrengo com a roupa justa, comprada na véspera na vila, o tronco à mostra sob o jaleco de almocreve, o chapéu ruço de saloio, as mãos felpudas de mono, com as unhas grossas e altas de terra, começou a olhar para a treva, para o mar, para o recorte dúbio dos montes de Santa Maria. Na cara estúpida e mal desenvolvida como a dos fetos, de grandes orelhas transparentes e pequenos olhos mortos de boçal siamês, uma carranca se esboçou, oscilando do cômico ao piedoso, numa expressão pueril de medo e de choro. E o bronco impúbere entrou a alimpar as lágrimas com os grossos dedos curtos, sob o pavor do isolamento, lembrando-se da mãe como os borrachos do ninho. Ah! A Maria Bárbara!... Como pudera ela, forte, rija e perfeita conceber aquele monstrozinho, a modos corcunda, meio torto, meio gago, estúpido e repelente como o fruto dum incesto? Embalde ela lhe dizia: Por que o meu pobre filho nan há de ser como os “oitros”? Por que há de andar assim tolhidinho, a modos envergonhado? E ele sorria, com um sorriso alvar; esticava-se, queria ser como os outros, mas era impossível!... Tinha uma voz falha que lhe sumia diante das pessoas como certas fontes ao verem o sol. Às vezes, falava, ria com tonalidades desmedidas, atoleimadamente; em seguida emburrava, fechando o cenho, contraindo as maxilas proeminentes, uma viscosidade contínua a lhe escorrer das narinas chatas e dos dentes em serra. E era esse exemplar que agora ia para a América, para a Califórnia... Como custara à pobre da Maria Bárbara esse sacrifício!...

— Ó alminha de Deus! És feio, és aleijadinho, tens medo das pessoas, és selvagem, mas és meu filho. Quero-te como se fosses um primor de criatura!... E ele a ouvia sem emoção, anestesiado pela imbecilidade, alheio, de olhos franzidos voltados para o chão como os criminosos. Inda assim partira... O padre-cura dissera, em conversa, ao pé do chafariz: — Dessa gente não se pode esperar nada; é raça ruim, podre... — Inda assim ele partira, ao anoitecer, com o saco de quadrados às costas, os socos nas algibeiras e as trinta coroas. Os outros, os que também partiam, tinham parentes e amigos na hora do adeus. Ele não! Como os bastardos ia sozinho. Apenas o padrinho, ríspido e seco, o viera abraçar, aconselhando: — Ânimo, ’stupor... Saíra de casa, deixando no cerrado, ao pé dos funchos, a Maria Bárbara a acenar com uma toalha. Seguira a pé pelo caminho afora. Mulheres, pelas janelas e muros o espiavam com indiferença... E ele, às vezes, queria cumprimentar uma ou outra cara conhecida, mas receava, tinha vergonha. E andando, despedia-se com os olhos dos montes cobertos de faias e de álamos; dos cerrados e dos campos cheios de papoulas e tremoços; das lombas onde os moinhos giravam airosamente, e da estrada onde as casas tristes e baixas lhe pareciam dizer adeus. Pressentia no interior das salas pobres a voz conhecida de raparigas da sua idade. Cabras, recolhendo dos montes, afastam-se do caminho, badalando os guizos nostálgicos. De quando em quando a ideia da mãe lhe cavava nas bochechas de lorpa um tremor de pranto nervoso.

— Ânimo, ’stupor... — Lembrava-se agora do padrinho, da América, da vida. Mas um peso qualquer, tolhendo-lhe os surtos, lhe esmagava a alma. Encostou-se na amurada. Na terceira classe o guindaste suspendia os bois, um por um, amarrados por uma barrigueira de couro cru. Os animais enfileirados na chalupa eram pouco a pouco guindados. Esperneavam: mugiam, encarando a treva com os grandes olhos muito vivos: depois desciam, inertes para o vão lôbrego da proa. — Coitados. Vão morrer em Ponta Delgada os pobres bois de Santa Maria! — exclamou alguém. Ninguém sabe se o filho de Maria Bárbara ouviu essa exclamação, nem se a entendeu ou se a tomou como alusão. Mas o fato é que, quando o “San-Miguel” rompeu a caminho do alto-mar, o filho de Maria Bárbara, com seu feitio selvagem e receoso de novilho, a um canto, perto duns homens que tocavam guitarra, chorava mansamente como uma rês pressentindo que a vão abater... Rio — 1920.

O sacrilégio

No meu país as velas dos lugres têm cores tão bizarras que até parecem estandartes de romaria... Os promontórios, ao longo do litoral entram tão longos e tão tristes pelo mar adentro que dão a impressão de braços da aldeia dizendo despedidas aos poveiros... E os barcos todos têm, no bojo, listões tão vivos que lembram, uns, o sangue dos homens, outros, os olhos das mulheres do meu país... De memória, procurando bem, só me lembra um lugre que não tinha listões no bojo nem Imaculadas coloridas nos mastros. Era um barco enorme, feio, de uma linha muito bruta, todo negro de betume e que, olhado de frente, pela proa, parecia, sem tirar nem pôr, um esquife... Perto do

farol,

emergindo

da

água

estagnada

do

ancoradouro, o “Esquife” levava vários dias recebendo carga de madeiras e frutas e quando partia, era sempre para o sul; ao voltar tinha o aspecto mais sinistro talvez porque trouxesse, habitualmente, de terras alheias, punhados de emigrantes que se tinham desiludido lá para longe... Parece incrível que um barco, como aquele, tivesse o áspero destino que teve... Ora, calculem lá... Quando veio, pelo mundo afora, aquela peste estranha que matou tanta gente rica e tanta gente pobre, que, começando nos campos da guerra se alastrou pelo resto das nações, matando de verdade, sem respeito e sem dó, no meu país, como no de vocês,

ricos e pobres pagaram largo tributo... Cuido até que isso foi pra aí, algum castigo, alguma lição, mesmo porque o flagelo veio num tempo em que a humanidade andava tonta... Pois na minha aldeia, que é um largo penhasco, o campo santo se abarrotou de cristãos... Era uma miséria... Pelos barcos, pelos cais, pelos casebres, cada dia morria um amigo, um parente... e a gente até quase já não sentia porque tinha a cabeça no ar... Vai então, uns senhores que vieram da parte do governo, começaram a distribuir remédios, uns pós e rações... Mas a coisa piorava... Apodreciam os pobres nas sarjetas e foi preciso vir de longe uma comissão, uns bons senhores para dar tento àquela ruína... E a primeira coisa que fizeram foi mandar vir uns presos das colônias agrícolas para enterrar os mortos e desinfetar as vielas, os becos, as casas, os barcos e até as pessoas... E um dia já não havendo lugar no cemitério, e sendo a terra em derredor penha bruta, tisnada de sol, os homens resolveram, todas as tardes, jogar ao mar, lá longe, os cadáveres dos nossos irmãos... E então, fretaram o “Esquife”... Todos os dias, ao entardecer, os correcionais ajuntavam os mortos em duas pilhas. À direita os homens, na outra banda as mulheres e as crianças... O “Esquife” recebia aquela carga e o patrão, aproveitando o vento da noite, ia despejar no oceano, lá no mar largo, aqueles pobres coitados que ele conhecia pessoalmente, um por um... Na ponte já havia até uma nódoa, no lugar da carga lúgubre... Mas o patrão, insensível, com seu feitio adunco de corvo, cumpria estoicamente o seu “contrato” com a mesma indiferença

com que recebia madeiras, frutas e gado... Pelos flancos do lugre escorriam desinfetantes, aguadilhas e até um marujo era preciso para raspar uma espécie de gordura sólida que com o correr dos dias crescia nas tábuas da ponte... No mar alto, atiravam-se os corpos presos a blocos de lastro; e, uma vez ou outra, o mar deu à costa uns corpos murchos de raparigas e anciãos... Declinou porém, com a graça de Deus, tamanho horror... Também, pudera! Com tantos votos, com tantas lágrimas!... Na ermida, quando o bom tempo voltou, era uma dor de cortar o coração aos penhascos... Os poveiros de luto, cumpriam promessas... E muito custou à gente acostumar-se à falta de certos homens que se tinham ido no “Esquife”... Apareciam caras estranhas, gente de fora que fugira do horror das suas terras, pois o mal quando acabava num sítio começava noutro, como uma foice que vai ceifando... Homens esqueléticos, aventuravam-se a sair à rua, ainda combalidos, e parecia que aquela impressão maldita augurava o fim do mundo... Talvez não me acreditem, vocês. Mas sempre há gente no mundo que, como os corvos, vive do repasto dos mortos... Um mês depois, quando a vida se normalizou, e os barcos começaram, com outros donos a faina da pescaria ao atum; quando a gente já se começava a resignar, com as cicatrizes de dores pela alma, e quando o “Esquife” limpo e desinfetado pelos homens do porto, recomeçou a carregar madeiras, frutas e cortiça para o sul, aconteceu um fato que se a mim me encheu de pavor, aos homens

todos da aldeia encheu de ódio, transformando-os em feras de vingança... Foi assim... Corria, à boca pequena, que o patrão do “Esquife” roubava os mortos antes de os despejar para a água... Passava-lhes uma sistemática revista, tirando-lhes anéis, cordões, amuletos, santos de metal, correntes e até a roupa que estivesse em condições... A tripulação era formada de treze homens, arrendados em Vigo e Bilbao, treze bandidos, misto de contrabandistas e piratas, bronzeados, maltrapilhos, com cicatrizes, tatuagens, maldições, blasfêmias e sombras nas caras aziagas de milhafre. Antes de atirar o morto ao mar, abriam-lhe os maxilares, quebravam-nos a murro para desencravar os dentes postiços de ouro ou coisa que o valha... Despiam os que iam com roupas e farpelas janotas. E como todos nós sempre calçamos botas novas aos defuntos tiravam-lhas... Tamanho sacrilégio, só sob o testemunho de Deus, numa época tão triste, tinha, por força que clamar vingança! Numa viagem do “Esquife”, houve uma altercação qualquer entre o mestre e um homem da tripulação. Quando o lugre voltou, o despeitado, na taverna, bêbedo e meio aturdido, contou, aos gritos, como era feita aquela “função lúgubre”. A princípio ninguém acreditou, pois que diante de um nosso irmão morto, rijo, vestido decentemente para a outra vida, não há coração de chacal que o profane, valha-nos Deus!! De mais a mais aqueles infelizes eram conhecidos do patrão... Mas o destino, às vezes, tece coincidências, prepara

verdadeiras armadilhas e quando uma pessoa menos espera vai ter com seus próprios passos ao castigo que merece... Uma noite o patrão, desembarcando no cais, completamente bêbedo com uma caixa de ferro sob o braço, diante de uma pouca de gente que o andava espiando, começou a dar risadas sinistras, e tonto, cambaleante, apoiado em duas mulheres de má nota (por sinal que não eram cá da terra, Deus seja louvado!) seguia para o posto da Alfândega, escandalizando os poveiros com aquela esquisita bebedeira... E eis senão quando, ao atravessar a sarjeta de um beco, onde as pedras tinham limo, o patrão escorregou, caiu de borco na lama. Ao erguer-se, um pescador, que ninguém sabia quem era, arrebatou-lhe das mãos a caixa e saiu a correr... Em seguida, na praça, onde havia ajuntamento domingueiro de gente rústica, o pescador mais outros homens arrombaram o cofre espatifando-o na pedra do chafariz... E então, pelas juntas e fendas saíram, as joias, os amuletos, as moedas dos defuntos do “Esquife”... Como se um tufão passasse, uma onda de ódio varreu a aldeia toda desde o rocio, no adro dos Miguéis, até Atafona, junto aos Expostos. Há coisas que se transmitem tão vertiginosamente que parecem prodígios... Uma multidão compacta se ajuntou em torno do chafariz... Os parentes dos mortos, aos poucos reconhecendo as joias. — Veja o anel de Martha, coitada... Inda traz a data do casamento... — Este broche era de Maria Júlia... a que morreu primeiro.

— Oh! A corrente do pai de Maurício, toda cheia de ferrugem... E todos abalaram ao encalço do bêbedo... Se não fora a autoridade de um senhor, recém-chegado na terra, tinham feito o mestre do “Esquife” em postas... — Ladrão! Sacrílego... E o vento do mar repetia, em eco, o soluço agudo das mulheres, relembrando os mortos... — Roubou ao meu homem o santinho que trazia ao pescoço... Um santinho; que miserável!... E os braços se alevantavam, mostrando joias. Esbofetearam o ladrão e quase o puseram liso como uma folha, de encontro ao umbral da taverna... Ele, na sua meia inconsciência, abria e rolava nas órbitas uns olhos tão estarrecidos que pareciam contas de pus veiadas de sangue... Mas, inesperadamente um velho que perdera na peste a filha, erguendo à face do poltrão, uma pulseira de ouro maciço, sacudindo a joia com furor, perguntou: — Sabes de quem era isto?! Isto, homem!? O outro fez que sim... — Ah! Bem sabes... Vamos para bordo... Uns quinze homens pularam para o “Esquife”, impelindo o patrão. — Ao largo... E, após um curto espaço, o lugre, de velas inchadas, começou a andar.

Nervoso, rangendo os dentes o patrão fitava o assoalho da ponte, já meio lúcido, compreendendo o peso todo da situação. Duas lágrimas lhe rolaram pelo rosto escaldante. — Onde atiravas os mortos... Em que sítio... — Além. — Pois é para lá que vamos... Perto dos penhascos, na altura em que se perdia a terra de vista, o patrão, acobardando-se, quase de joelhos, disse: — Era por aqui, assim — E mostrava o mar, em volta dos arrecifes... Então o velho, chegando-se à amurada, solenemente atirou ao mar, uma por uma, as joias todas... O mestre chorava, implorando, ora a um, ora a outro, perdão, pelos mortos que decerto o estavam vendo àquela hora, pagar o seu crime... — Se fosses um homem, tu te atiravas lá baixo... pois não?! — Sim, sim — balbuciou... — se eu fosse um homem eu me atirava lá baixo. E de um salto atirou-se ao mar. Foi tão rápido o movimento que os quinze homens apenas conseguiram ver, atabalhoadamente que uma coisa qualquer descia entre as vagas, como um demônio articulado ou como um réptil mergulhando... — Encalhemos este estafermo — disse um dos homens... E aproaram contra o areal que, em dunas, se levantava da banda ocidental das penedias... Depois, descidas as velas, atiçado o fogo nas madeiras e na dispensa, taciturnos, sem olhar para trás, a largas remadas, em dois

barcos da Póvoa os homens do meu país, do meu pobre país onde os promontórios parecem braços atraindo os poveiros que voltam da pesca, afoitamente voltaram à terra, ao doce remanso em cujas águas buliçosas as velas ostentam cores tão bizarras que até parecem estandartes de romarias... Rio — 1919.

Martha das Terras Baixas

Ela estava sentada no chão, entre o homem da guitarra e o banco das esmolas. Como houvesse pouca luz, a sombra cinzenta do reposteiro, no portal interno da taverna, lhe roía o tom malva do busto, dando-lhe desde a cabeleira até os braços, uma gradação dúbia, sem recorte visível de rosto. Apenas, profundos e metálicos, os olhos, redondos, com palhetas multicores na íris misteriosa, provavam que ali estava uma mulher ou um felino. O homem da guitarra tocava qualquer cousa triste, e os seus dedos grossos, nodosos, encordoados e trêmulos, tinham o dom de fiar, em torno das cordas, uma teia de superstições, saudades e amarguras. Ele tinha o rosto estúpido, porque era nas mãos que Deus lhe pusera o sentimento. E a boca, severa, torta, em vírgula, muito cerrada, tinha uma eterna mudez estoica, uma mudez antiga, profissional, forçada quase, porque a filha, à custa de cantar tão lindas cousas, insensivelmente emudecia os outros, num grande pasmo. Ora, não se sabe por quê, nessa noite, o velho da guitarra tinha o rosto mais estúpido do que de hábito; os seus dedos tremiam mais. E a filha, com a sua voz de meridional, e os seus olhos de boêmia, cantando, entristecia mais que habitualmente, num mudo recolhimento, os homens que bebiam e jogavam sob a luz mortiça. Ninguém reparou mesmo que o próprio olhar do fadista tinha a névoa langorosa do olhar morto de certos bêbedos pacíficos.

Fora, na viela um mendigo dormia em pé, num vão de pilastra, sob o oratório medieval duma Nossa Senhora. Reinava um grande silêncio na ladeira batida de luar. E como, quase sempre, aquela noite, o luar esbatia nos lajedos, numa sombra exagerada e oblíqua, a grande cruz de pedra do Arco Mouro. Longe, para os lados da praça de touros, ouvia-se um pandeiro abafado em risadas. Em dada hora, os homens se retiraram, descendo a congosta, fumando... O taverneiro, corcunda como um bobo do Paço, apagou o candeeiro de três bicos e deu as santas boas-noites ao velho e à Trigueira. — Essa tua guitarra é com’as mulheres. Tem dias que irrita... E tem dias que bole com o coração da gente. O velho agradeceu com um movimento de ombros, pôs a capa de três palas aos ombros e saiu. A Trigueira, contando o dinheiro do prato de folha, a guitarra sob o braço, saiu também, mas tão vagarosamente que, vendo-a cosida ao muro, contra a treva das arcadas, o pai lhe gritou: — Pareces uma velha... Ânimo... Anda daí... Mas, nesse instante, vendo a sombra larga, e perfeita como um desenho, da cruz, o fadista parou, tirou o chapéu braguês de duas borlas, benzeu-se e continuou o caminho com o silêncio dos que fomentam uma ideia sinistra. A Trigueira passou pela sombra. Puxou a mantilha sobre o rosto, encarou a lua com a doçura cândida dos cães mendigos e românticos, e começou a cantar.

E como a filha cantasse, até chegar em casa o fadista não disse palavra, acompanhando estoicamente a própria sombra no chão... Atravessaram o largo da Sé, silenciosa, onde os plátanos, de folhas já amareladas, davam ao chafariz a ilusão dum abrigo de tapada. Desceram e subiram ruas estreitas de fachadas austeras com adufas mouriscas onde os vasos de alecrim recebiam a bênção do orvalho. No fim do bairro pobre, junto a um casarão de colunas e escadas, o guitarrista parou, remexeu nos bolsos da jaqueta saloia e no vão da faixa vermelha, e abriu uma porta lúgubre, tão lúgubre que parecia um túmulo em pé, embutido numa muralha. Mas a Trigueira não entrou. Apoiada ao muro das Escadas-Velhas, cantava ainda, com os olhos dilatados, para a ruína cinzenta das muralhas e da ponte. Para além, sob a noite lactescente, o rio serpenteava com um rumor arrastado entre os salgueiros. Havia um brilho úmido nas ínsulas de areia espelhante; a massa dum convento sobre um monte, que se estreitava para o céu em três penhascos, lembrava uma coroa aberta, pousada sobre uma calva. E a casaria irregular do burgo, como em gravuras e águas-fortes de sabor antigo, placidamente dormia sob a tutela cristã dum brasão audaz. Foi então que a Trigueira deixou de cantar, porque uns suores frios, como sempre, todas as noites, desde a última Páscoa, começaram a lhe umedecer as têmporas sob as pastas luzidias dos cabelos à andaluza. Aquela tosse habitual, que vinha sempre em arrancos como soluços, sacudia-a toda. Ficou triste, mais provocador. A doçura do rosto alongado, que uma pinta satanizava, se acentuou, tomando a suave tonalidade dos sudários. Os olhos, grandes e redondos, se encheram de mistério. Todo o seu ser

pareceu se preparar para um segredo. Uma avidez, que sabia a pecado, e quase a petulância, lhe alvoroçou o busto. Desceu um trecho da calçada com um trá-lá-lá nervoso de chinelas no bico dos pés e olhando receosa para trás. Bateu a uma janela. Apareceu um homem... A luz duma lanterna deu, por um momento, um clarão sanguíneo à parede. Houve um silêncio. Depois um rumor de passos. Novo silêncio. Abriu-se uma porta, uma larga porta secular de aldraba quase monacal. — Ó minha cigarra cantadeira!... — exclamou alguém da parte de dentro. Pela fresta da porta que ficou aberta, se pôde entrever um jardim com oliveiras cinzentas, bíblicas... Houve um rumor decrescente de passos. Parece que a guitarra caiu no mosaico do passadiço, porque se ouviu uma queda sonora que ao mesmo tempo parecia um símbolo de dor e de alegria... Fora, a casaria irregular do burgo dormia placidamente sob a tutela cristã dum brasão audaz. As torres heráldicas, as muralhas encardidas, a ponte romana, as ruas características, as praças religiosas, as estátuas reguengas e os jardins fidalgos tinham um mudo recolhimento de fanatismo ante a hóstia alvíssima, manchada no centro, da lua nova que subia atrás dum pinhal... Nisto, como por milagre, pôs-se a guitarra, lá embaixo, de novo, a dizer umas cousas de estraçalhar a alma. A Trigueira, dentro do quarto, teve um grande susto. O homem, na treva, começou também a escutar, com um grande assombro. — Mas não deixaste a guitarra no pórtico, antes de subirmos?!

Ela disse que sim, com a cabeça. E estava branca, tremia toda, com uns grandes olhos de terror. — Deve ser alguém que nos surpreendeu e que com um grande sangue-frio achou um modo deveras extravagante de... — Olha... Escuta... Abraçaram-se os dois, a respiração suspensa. As mãos de alguém, lá embaixo, no jardim das oliveiras cinzentas e bíblicas, teciam ao redor das cordas da guitarra, uma teia de encantos, à maneira cigana... e onde havia doçura e crime, abandono e fúria... Há momentos em que a música arranca da alma verdadeiras visões de melancolia; e surge então, como num delírio, um grande trecho da felicidade que cai sobre as pálpebras como os dedos duma sagrada unção. Há, então, qualquer cousa de inefável entre a alma e o corpo, que ao mesmo tempo é martírio e gozo. Há uma apoteose de sentidos; a alma ascende, turbilhona e sofre; depois desce, e como o corpo, se estira na posição da morte e do amor, para o grande repouso dos êxtases. Inesperadamente a Trigueira abriu a janela que dava sobre o pátio; debruçou-se sobre os vasos floridos, deu um grande grito, arrancou a mantilha e começou a chorar, dizendo, com a mão estendida lá para fora: — Vê, vê quem é... Ou eu estou doida... O homem, que tinha ao mesmo tempo algo de toureiro e de estudante, debruçou-se. — Sim. É ele!... É bem ele... — sussurrou. Desceram então com infinita cautela. Mas a guitarra continuava... continuava...

A Trigueira, chegando ao pórtico, estacou; abriu os braços; alongou a cabeça contra a parede e viram-se-lhe os soluços, descendo e subindo pelo colo robusto. O velho guitarrista, com a jaqueta e a faixa, aquele mesmo rosto estúpido, porque era nas mãos que Deus lhe dera o sentimento, tocava sempre. — Meu pai! Pelo santo amor de Deus... E o fadista tocava... tocava... A boca severa, em vírgula, torta, continuava muda, porque a Trigueira, à custa de cantar tão lindas cousas, insensivelmente obrigava os outros ao grande silêncio dos pasmos comovidos... — Meu pai!... Oh!... Mas, gradualmente, o rosto do músico começou a ficar mais estúpido, numa deslumbrado.

impassibilidade

sinistra

de

idiota

ou

de

A guitarra, como uma cousa que se humanizasse, pareceu soluçar como uma garganta e caiu ao chão. A Trigueira, ainda com o seio a descoberto, os cabelos soltos e a mantilha aos ombros, sacudiu muitas vezes o velho da cara paralítica; depois, como o largasse, ele oscilou, dolorosamente, num rodopio lúgubre, que tinha ao mesmo tempo qualquer cousa de dança e de desmaio. As mãos curtas, nodosas, grossas e encordoadas, sempre na altura do peito tinham ainda a ilusão de tocar, arranhando... os botões da jaqueta beirã. E como era nelas que Deus lhe pusera o sentimento, teciam ainda, teciam sempre uma meada de amarguras, superstições, saudades, ânsias e mágoas, numa grande confusão de desvairo.

Depois, sob a luz vermelha da lanterna que ensanguentava a parede, pouco a pouco, instintivamente, com um grande pasmo nos olhos cor de fel, o fadista, como se procurasse a guitarra, caiu de bruços, sem uma palavra, porque, mais do que nunca, a dolorosa canção de amor em que vibrara a Trigueira, lhe obrigara a boca torta, em vírgula, ao silêncio das emoções estrangulantes. Coimbra — 1920.

Quando as ciganas passam...

— Repara bem lá para baixo... Assim, vistas através da névoa, as mulheres e as crianças que recolhem à aldeia têm um feitio quase bíblico, um certo ar nômade, como um rebanho atarantado. — Elas vêm a passo... E é muito triste, chega mesmo a apertar o coração, entrar em casa como elas entram... Acender os candeeiros sobre as mesas toscas, diante da Senhora dos Poveiros... E, alta noite, ter ainda os olhos muito abertos, firmes no teto... E isso porque os maridos, os filhos e os irmãos acabam de partir para a pesca, num grande bando silencioso. Já nem se lhes pode distinguir a fieira sangrenta dos barcos com as suas grandes velas coloridas... — E eles vão para longe? — Sabem lá?!... Vão a esmo... Obedecem a uma tentação... — Deve ser bom seguir assim, sem rumo, sobre as águas do mar, alta noite, em grandes bandos, silenciosamente, com a gravidade religiosa das superstições... — Partir... — Há muita gente, muito coração que parte só para o mistério augusto de ter saudades... — Eu às vezes tenho o romantismo pueril de querer ser poveiro, como António Nobre...

— Os poveiros... Às vezes, no alto-mar, vão todos calados... Outras vezes, algum canta; e os companheiros ouvem... Mas geralmente o mar abafa, espiritualiza, retalha os trechos da canção... E é estranho... Têm um sabor profundamente amargo essas rajadas arrastando um pedaço de voz, sobre as águas, dentro da noite... Parece até quando a gente ouve uma voz isolada, assim, vinda dum ou doutro barco, parece até, sei lá! uma coisa religiosa, de mau presságio às vezes; outras vezes trazendo esperanças... — Tu sabes histórias de alto-mar? Há muita poesia sempre nessas aldeias do litoral... Os promontórios, os rochedos, e esses cemitérios cavados na pedra procuram em vão chamar os filhos pródigos que um dia partiram e nunca mais quiseram voltar... — Ouve lá... Senta-te aqui. Desta nesga decerto podes ver o porto, o cais de madeira podre, a massa pardacenta do farol secular e o trecho escuro das casas e da capela no vão das penhas... Já todos recolheram. A esta hora rezam, nas coroas luzidias, pela segurança dos que se foram à ventura das águas... Deve haver mesmo alguém que chore... Chorar, quando a saudade nos dá um feitio místico de desesperados, é ainda um grande consolo... Ouve lá... Deu-se isto, meu amor, há muitos anos. Havia aqui, na aldeia, numa viela, um homem cujo feitio obrigava à simpatia instantânea. Era moreno, queimado do sol, e andava sempre sozinho, como os maníacos... Era sempre alta noite, mormente se havia prenúncio de borrasca, que ele saía para o mar. Quando voltava ia sempre pagar os votos que fizera nas águas... Mas a sua rede, a sua boa rede, vinha sempre vazia, dobrada junto ao púcaro e às cordas.

Mesmo de longe se podia saber quando ele partia ou quando ele voltava... porque o seu barco tinha uma vela triangular, tão vermelha, tão viva, tão palpitante que os homens da terra o apelidaram a “Asa de Sangue”... Um dia, na taverna, estavam todos a combinar uma saída para as bandas das ilhas. Ele também estava, mas só ouvia; não falava, fumando o seu cachimbo de espuma. E vai, então, começou-se a ouvir uma canção bárbara, cujas palavras não se entendiam... — As ciganas que passam... — disse um velho... — As ciganas... Coisa rara, cá na costa, observou alguém. — Estão na terra, há três dias... Decerto vieram roubar e ler a sina das pessoas... — disse o taverneiro. E as ciganas passaram cantando, com os filhos pela mão e os jumentos e os carros atrás, numa colônia triste de boêmios sinistros. Tinham roupas bizarras, de cores vivas, os xales lhes cobriam as pastas negras dos cabelos, apenas deixando ver os brincos em disco. Traziam todas um ar atrevido na cara brejeira, e respondiam com blasfêmias sonoras aos que as apupavam. Apenas a Tuberculosa, uma trigueira de jeito adunco de ave mal-agourenta, apenas essa sorria e pedia para ler o passado, o presente e o que havia de vir... Mas ninguém quis. Apenas ele, sabes? ele apenas estendeu a larga mão leal, firme, com tatuagens no dorso. E a Tuberculosa olhou, seguiu com a unha os riscos da mão, olhou, olhou e começou a tossir e a chorar... — Que é lá, isso, mulher?...

E a cigana, diante dele, com a saia muito tufada, em dobras iguais, de cores vivas, tornou a olhar, com uns olhos muito baços, a polpa da mão leal, firme aberta entre os seus dedos aporcelanados de balcânica vagabunda... — “Vejo que aquela que tu amas, pobre, humilde e linda como as santas pobrezinhas das capelas, será em breve coroada princesa...” Todos riram... E as ciganas passaram, cantando, com os filhos à volta, seguindo, à beira do mar, sob o sol do verão, como uma romaria que Zuloaga pintasse. À noite, os homens, com os seus oleados e capuzes, embarcaram. O último a seguir na “Asa de Sangue” foi aquele cuja bem-amada, “pobre, humilde e linda como as santas pobrezinhas das capelas, seria em breve princesa...” E eis que, ao vir da madrugada, quando dos promontórios cor de limo escorrem fios de água, uma vela vermelha, quase viva, quase palpitante, dobrou a ponta do farol, e veio parar junto ao molhe de madeira podre. Mulheres e crianças desceram, com suas coifas brancas, imaculadas, saindo das vilas humildes e das ladeiras escuras... num grande atropelo, porque a notícia do prodígio tinha corrido desde a praça do chafariz até às congostas medievais do fim da rua maior. O poveiro, com o olhar dos que enlouqueceram, arrastava a sua rede para terra... Era a primeira vez... E, arrastando-a, ele tinha os cabelos numa grande confusão, caído em vírgulas, e, em trejeitos trágicos, gritava que se arredassem todos, que ninguém lhe bulisse no tesouro...

Porque, dentro da rede, daquela boa rede nova, virgem de pescarias, uma grande coroa real, uma grande coroa aberta, resplandecia com as suas flores-de-lis douradas e uma fieira de aljôfares à roda do ouro maciço... Depois, ajoelhado na areia, com os braços em cruz, o homem começou a chorar, num grande estupor. E a paixão assombrada de todos era tamanha que as horas passaram... passaram... Por fim, cambaleante, com um fulgor de pedra preciosa nos olhos estupefatos, o homem foi em busca de sua bem-amada, abrigando no peito a coroa bizantina que o mar lhe dera... E a multidão o acompanhava, majestosamente. — A cigana adivinhou... A Tuberculosa... A Tuberculosa... E chegando ao pé da Porta Romana, aquela que era pobre, humilde e linda, foi cingida sobre a cabeleira negra e abundante, com a coroa real, embora trouxesse no corpo um vestido de sirga muito asseado. Ninguém entendeu, porém, o símbolo que o mar, o grande mestre, quisera mostrar... Foi apenas, dois dias e duas noites depois que se entendeu qual era o reino, o grande reino, o reino augusto que aquela coroa representava... ... Porque, ao fim de dois longos dias e de duas longas noites, o poveiro, ainda alucinado, havendo cismado em partir à cata de mais tesouros e baixelas reais, foi pescado à rede, pelos homens da “Arrojada”. Estava ainda, apesar de morto, com um grande ar de estupefação, um braço todo decomposto, com manchas nas órbitas roídas pelos peixes. Tinha chagas verdes, infectas. Apenas a mão, firme, leal, em concha, trazia ainda intactas as linhas do destino...

E, por acaso, conheces tu, meu amor, reino maior, mais poderoso, mais antigo, mais inabalável, mais augusto do que o reino da dor?... Todos nós, mesmo os humildes, temos na fronte a glorificação constante da nossa hierarquia de sofredores de raça legítima... Paris, janeiro, 1921.

À maneira de Verlaine

— Est-ce que par hasard t’aimes pas la noce, toi? — E como eu lhe dissesse que não, longamente, meneando a cabeça, ela continuou a sorver com voluptuosa lentidão o veneno esverdeado. Depois, indiferente, apoiando o queixo nas mãos, começou a cantarolar, rolando os olhos amendoados pelo salão... — Je l’ai tellement dans la peau — c’est fou! — je n’en peux plus, — j’en suis au bout!... Depois ajuntou: Il y a pas mal d’idiots, ce soir!... E com ar de infinito desdém mostrou com um curto gesto de cabeça a atmosfera pesada de luzes e bafios. Ce vieux marcheur, la bas, a gauche s’est foutu dans une chouette. Et vous, est-ce que vous aimez jouer? Eu concordei em silêncio... Ela então, com uma delicadeza que beirava ao sarcasmo, pediu licença, ergueu-se foi conversar com um outro qualquer. Notei depois que ambos falavam olhando-me com piedosa atenção. Achei-me ridículo, sem jeito, aparvalhado; quis sair, mas não tive ânimo de atravessar a sala. Todos me olhariam decerto, zombando do meu ar grotesco e estúpido... Pedi, então, qualquer cousa... Uma orquestra enchia o ambiente de novidades canalhas com atordoante profusão de gritos, urros e panteadas. E, ao centro

dum estrado uma silhueta alquebrada de mulher, saracoteava cansadamente, numa equívoca imitação de bailado clássico. Ao pé das janelas que deitavam para a noite silenciosa um agrupamento mesclado jogava em torno de um pano verde. E o cachoeirar das fichas escorria como uma tentação pela sala afora, indo entristecer, lá embaixo, nas escadarias úmidas os mendigos e boêmios que esperavam a caridade frívola dos tresnoitados felizes... Eu comecei a analisar as mulheres. Mas o veneno esverdeado acabando, estalei os dedos, chamei o garçom circunspecto e pedi outro. O homem curvou-se e trouxe outro copo; e com o austero respeito dos interesseiros, indagou se eu não queria conversar com a Estouvada. — Avec qui?! — Avec Suson! On l’appelle la Piquée, car elle a l’air canaille même avec ses beguins. Respondi que não, explicando: J’suis fauché. J’ai pas d’ péses... E notei vagamente que a minha cabeça começava a tontear... — Mais outro... — E comecei a sorver o terceiro copo... Pareceu-me então que, como os globos elétricos a minha cabeça atraía mariposas pois três mulheres lânguidas, pedindo licença, sentaram-se comigo... — Bebam à vontade... minhas filhas!... Elas riram do meu estado. Beberam licores, com estalidos de língua, cochichando, olhando-me com profunda brejeirice, ágeis,

como ratinhos brancos. Depois, calmamente saíram com um rapaz elegante do Brasil. Um sono esquisito me pesava sobre as pálpebras e eu só percebia de quando em vez a gargalhada clownesca de um velho dançando com uma criatura que podia ser sua neta... Sem saber por quê, comecei a ficar alegre, a provocar um estafermo que cochilava diante de mim, e que abraçava garrafas e copos numa atitude dolorosa de quem quer esquecer alguma coisa triste. Foi então que a Estouvada, abrindo e fechando o leque chegou até à minha mesa e me perguntou alguma coisa secreta, fixando os olhos amendoados no meu copo de absinto... — Mais bien sure!... E, diante da minha figura verlainiana começou a beber aos goles, o resto do meu copo, tomando muito o gosto. Sacudindo-me depois, com ambas as mãos, exclamou com uma gargalhada de escândalo: — Eh! Dit donc!... On va danser un p’tit peu; j’ai le cœur gros. E, como se a fosse estrangular, agarrei-me a ela, e, como um gnomo piedosamente ridículo, fixando-a, urrando, sem direção, sob a chacota unânime do mulherio, o arranhamento desbragado da orquestra chula e a irônica compostura dos garçons, dei três voltas cambaleantes pelo salão... Um punhado de cínicos formou um cordão em torno de nós dois e, obedecendo exageradamente ao compasso da orquestra, puseram-se todos a bater palmas, estrepitosamente, em arrancadas ocas, iguais e reboantes...

Depois perdi a noção de tudo... Apenas me lembro que um homem de casaca verde me entregou brutalmente o chapéu e a pasta dos meus versos, dizendo: — M’sieur! On va vous congédier; vous vous êtes trompé d’adresse. Nous ne sommes pas au Café de La Rotonde... E desci aos tropeções a escadaria de degraus atapetados. Em cima, no patamar, a Estouvada ria, ria a perder, atirando-me às costas, numa assuada frenética cravos murchos e guardanapos tintos de vinho... gritando numa liberdade jocosa de montmartroise a son aise: — “Que t’es ridicule mon vieux! en voulant faire ton petit Verlaine!” E lembrava, assim, dentro da sua creation Magdaleine de seda, uma ilustração obscena de Hérouard, na Vie Parisienne. Começava a amanhecer. Chovia. Desci Montmartre e Vichy. Comprei castanhas assadas junto ao Métro e continuei, pensando em Rimbaud e em Jehan Rictus até a Etoile, subindo o boulevard de Courcelles. Sentei-me entre os mendigos e boêmios que esperavam a caridade frívola dos tresnoitados felizes... Abri a minha pasta de versos simbolistas escritos em parigot, e distribuí com serena fidalguia os meus sonetos e noturnos pela sarjeta, soltando-os, como uma revoada, sobre a lama. Nenhum daqueles mendigos quis o meu tesouro... Então, sob a chuva finíssima que me empapava os ossos, segui pela calçada afora, vacilando, como um ponteiro que marcasse fielmente, sobre a fuligem do destino o traçado de febre da minha vida vagabunda... Paris — 1921.

O segredo

Ela estava diante de mim... Sofria a influência do meu olhar e do meu silêncio; tinha os olhos úmidos, o peito anelante e todo o seu feitio era uma tácita confissão de amor. Eu, inclinado sobre a velha mesa, entre livros, bronzes e revistas, o cinzeiro cheio de pontas de cigarro, sofria também o peso daquela situação. Raiava a madrugada e, através dos vidros da janela a minha vista se encantava sobre o parque, lá embaixo, com os tapetes de grama, os repuxos trêmulos e as aristocráticas alamedas de saudosas perspectivas. E continuei a fumar, nervosamente. Então, com uma voz quente, muito devagar, sem tirar os olhos do chão, como se falasse consigo mesma, ela começou a ponderar: — “Amo deveras... sim, com todo o meu corpo e com toda a minha alma... Mas a grandeza deste amor, o fogo que o alimenta e que o purifica não é nem a volúpia dos transportes mútuos nem a tenacidade dos sentimentos... O que dá ao nosso amor um profundo encanto, é o segredo!...” “Sim!... O segredo!... Porque ninguém sabe, ninguém calcula, ninguém imagina... E que estranho que é passar um pelo outro, entre os mais silenciosamente, cerimoniosamente, e sentir, aqui, dentro do peito, a alegria de guardar avaramente o segredo... Estarmos ambos em sociedade e sentirmos que os corações batem

apressados, que um rubor nos cresce ao rosto quando nos entreolhamos, sem que ninguém perceba.” “E que feliz que, é, como faz bem, como alivia, depois, secretamente, com precauções infinitas, pensar no misterioso encontro.” “Como dá sensações bizarras esconder a imensa riqueza do nosso pobre amor... E, em seguida, que magnífico prazer cair um nos braços do outro, longe do mundo, sem o testemunho das cumplicidades teatrais...” “Não!... Decididamente não aceito a tua proposta. Olha-me, bem, assim! Não achas que tenho razão?! Acredita-me; não é medo de quebrar a situação que tenho. Pouco me importa o escândalo. Contigo fugirei porque ser fiel, obedecer-te cegamente é coisa mais que fatal; eu sou a tua pobre companheira, vencida, que te ouço sem raciocinar, que te quero dum modo alucinado... Mas... Pensa bem, pondera, segue o meu pensamento... — Haverá comparação entre os beijos de agora, rápidos, furtivos, ardentes, esmagando os lábios, pobres beijos raros, ousados, que deixam um séquito imenso de recordações estonteantes, e os beijos que tu propões, beijos de toda a hora, beijos calmos, que um dia serão um hábito, uma nova função da nossa vida?!...” “Pode acaso haver comparação?! Não sentes um imenso prazer em esperar? E quando esperas e eu falto porque não foi possível fugir até os teus braços um minuto, dize, não há um secreto sofrimento que se espraia por todo o teu ser quando esperas em vão?! E quando me vês passar?! E quando me segues de longe?! Quando procuras adivinhar onde estou? Tudo, tudo isso não é bem um martírio e, ao mesmo tempo, um gozo? Há nada melhor que

esse alvoroço de sentidos, essa ansiedade permanente, esse eterno estado de inquietação que enche a alma dum constante desejo?!...” “Não! Não virei morar contigo! Não fugirei de casa, não obedecerei ao teu pedido... E é melhor assim... No dia em que me tivesses ao dispor da tua vontade, esse dia seria, tenho a certeza, a morte do nosso amor. Eu seria outra para ti. A regularidade de vida, os hábitos de todos os dias, as pequenas intimidades, o convívio, tudo converteria o nosso grande afeto num monótono vício...” “O sabor do nosso grande segredo, o medo que nos acompanha no pecado, a cegueira que nos turva o alcance da nossa loucura, tudo isso cria ao redor da nossa paixão um não sei quê de ânsia que oprime, que sufoca, que inebria...” “Quando saio de casa em direção ao teu studio sinto qualquer cousa me estrangular. Quando subo os degraus, e penso que tu estás aqui, passeando pela sala, a minha espera, sem saber se virei ou não, quando volvo o rosto temerosa que alguém me haja seguido, palavra de honra, o meu coração bate, o ar me falta e então eu penso comigo, como é dolorosa a felicidade. Caio no teu peito; aninho-me na tua amizade franca; conto-te coisas sensíveis, ouço-te, acaricio-te, olho o relógio, perscruto a noite, e, com uma grande dor na alma, com uma angústia que só a palavra saudade define, desço os degraus, atravesso os jardins onde os repuxos evocam cenários de drama, passo o portão de grades solenes, abaixo a cabeça e volvo à casa com o meu segredo...” “Durmo com ele... e com ele acordo... Bem vês; eu não posso fazer o que me pedes.” Eu ouvia aquelas reflexões todas, sem dizer palavra.

E ela continuava, com a unção piedosa da sua voz quente, as mãos, em gestos calmos, amparando os períodos persuasivos. Lentamente, com uma ruga na testa, ante a claridade da manhã que chegava, comecei a concordar tacitamente. E, com o espírito calmo, os olhos sobre os móveis austeros da biblioteca, recordei, por incidência, certa mulher de cabaré, loura e irrequieta que, numa noite longínqua da mocidade me contara a sua vida, diante de uma taça de absinto. Ela era triste de feitio, tinha olheiras de morfinomaníaca, e falava também com os olhos no chão. E a sua vida era um romance banal de todos os dias. Um homem. Uma fuga. Uma leviandade. Mesquinharias. Tristezas. Amor. Ódio. Com a ruga na testa, o cigarro no canto da boca, fui ponderando sobre as consequências de um passo... Compreendi a esmo, o peso das responsabilidades. Vi, num vago delírio, figuras de mulheres rolando bêbadas de prazer, à roda de uma luz, como libélulas... Tornei a ver a mulher de olheiras violáceas, de vestido negro, inclinada sobre o absinto, falando com amargura da sua vida, ou talvez mentindo para emocionar o meu feitio pateta de romântico... Disse então, erguendo-me: — “Bem, seja como queres. Peço-te perdão da proposta que te fiz... Ouso mesmo dizer-te mais. Se por ventura um dia te arrependeres, se achares que não deves voltar, não te quererei mal. Ao contrário, admirarei com um profundo respeito a virtude da tua alma e a fortaleza do teu ânimo. No fim de tudo, minha adorada amiguinha, o amor é uma grande fatalidade, absorve as consciências e como os grandes sacrifícios faz vítimas. Há sempre,

no amor, um ser que se torna sublime e outro que se rebaixa. Um ascende, mercê da grande transformação purificadora e o outro desce porque apenas cevou um instinto. Entendes?!...” — “Sim.” — “Vais?” — “Adeus.” — “Mas... tornas; sim, tu tornarás?!...” — “Sim, tornarei. Pouco me importa a mim o que dizes sobre o amor. Tenho confiança nos teus sentimentos. Creio na lealdade dos teus olhos; creio na lealdade dos teus grandes olhos que não mentem porque têm a serena doçura das fontes. Tu choraste, hoje, quando me esperavas. E, chorar, quando se ama, sofrer, no amor, é ser leal... Voltarei. E o grande segredo continuará entre nós ambos, como uma grande teia...” Abraçou-me... Olhou-me bem no fundo dos olhos. Baixou a cabeça; puxou a gola do manto sobre o pescoço de garça, atravessou a sala, esboçou no ar, como uma flor exótica, um gesto de adeus, desceu os degraus, atravessou o jardim com a sua silhueta elegante; abriu o portão de grades solenes, e apressou o passo porque o dia era agora claro de mais... e aquele grande segredo, como as pedras preciosas, de brilho discreto, só se dava bem na claridade tênue das noites caridosas... Paris. Dezembro — 1920.

A taça de champagne

Ficou muito branca, embora estivesse pintada de carmim; notei que um tique doloroso, como às crianças quando querem chorar, lhe repuxou os lábios. Olhou-me com um estupor que ao mesmo tempo era uma repreensão; baixou a cabeça e não disse palavra. Só notei que os seus olhos estavam cheios d’água, depois, muito depois... Disfarçou, vendo que eu a encarava; enxugou as lágrimas e continuou a beber. Repentinamente, porém, dois soluços a sacudiram. E, então, algumas pessoas nos olharam. Foi pior; perdeu aquela atitude forçada e constrangida; apertou entre as mãos a cabeça e desatou num pranto calmo. — É isso bem verdade? Realmente partes?... — Sim; volto ao meu país. Olhou então o lenço úmido de lágrimas e exclamou: — Inda, ontem, assistindo, no Ginásio, à “Ternura” de Bataille, eu estava longe de experimentar a verdade daquela frase: Lágrimas e perfume: eis toda a mulher! E sorriu com uma tristeza muito tênue. Depois continuou: — A bem dizer tu não tens culpa. Mas repara em como é sumamente estúpido prender-se a gente de corpo e alma, cegamente, como num naufrágio, a alguém que depois... Entendes, não?!... O que eu sofrerei, bom Deus... Que dias... e que noites...

A situação antiga que voltará... O cabaré... A mesma mesa, a mesma luta, naquela incerteza que é ao mesmo tempo a nossa ilusão de felicidade... Que é que eu vou fazer doravante? Voltar ao que era? Mas tu já me tinhas levantado... Eu já não saberei mais respirar aquele ar, novamente... E arregalando muito os olhos, deixou-se ficar, pensativa: Depois tomando-me as mãos, perguntou: — Eu queria saber uma cousa. Bem vês: há ano e tanto que dura a nossa intimidade. Esses dias em comum, o almoço e as pequenas futilidades em teu apartamento; as meias que eu te remendava. Os gritos com que, vindo de manhã do Hospital, com teus livros, me acordavas zangado por eu dormir até ao meio-dia, sem te lembrares que antes de te conhecer eu dormia até às quatro. O jantar, em casa, com os teus amigos que gostavam de mim. A corrida ao Bon Marché e ao Printemps, a procura duma simples gravata, só para te agradar; as noites de teatro e as de cabaré onde sempre amuavas desconfiando que eu olhasse algum antigo camarada; os passeios em fiacres miseráveis em que conversavas ora com o cocheiro, chamando-o mujique, Tolstói, e ora com o cavalo lastimavelmente magro, chamando-o “meu irmão, o burro”, à maneira de S. Francisco. As tardes em que eu te ia esperar no saguão da Escola, no bairro latino, à saída dos teus cursos; as noites ao longo do Sena, sob o luar, desde a Concórdia e o Palácio Bourbon até Saint-Michel; os versos que fazias à Catedral e ao Louvre, sentado num banco, alta noite enquanto eu cochilava, com frio. Os passeios pelas livrarias do bairro latino, falando-me de simbolistas; dum tal Verlaine, de... de Moréas, de Rimbaud, de Samain, de Rodenbach e Verhaeren... A semana em que visitaste

os museus e as galerias, sério, calado, em êxtase, parando hora e tanto em cada sala e proferindo juízos críticos que eu não entendia. Os dias e as noites de inverno, em casa, de pijama, a estudar os teus tratados junto ao abajur enquanto eu lia Paul Géraldy... As visitas inesperadas, gente da tua terra com quem eu a princípio implicava por falarem diante de mim uma língua que eu não entendia... Tudo, tudo isso criou entre nós qualquer cousa que não se pode quebrar assim. Eu já me vinha acostumando a ter remorso, asco e pesadelo da vida de Montmartre. Oh! Eu não posso voltar ao que era!... E tu, tu te vais embora... Sou na tua vida um episódio que passou... que será esquecido... Por isso quero saber uma cousa: se guardarás de mim uma impressão forte. Se pagarás o pouco de ternura que em mim havia e toda eu te dei, com essa impressão duradoura que na tua língua, segundo me ensinaste, se chama saudade! Terás por mim de quando em quando, ao menos uma lembrança que te faça parar... assim de olhos postos no passado, com esse sentimento respeitoso com que se abrem livros onde há flores secas?! Algum dia, na tua vida por qualquer acaso, por um pequeno nada, porventura, algum dia me desejarás?!... — Farei todo o possível por te esquecer... Foi tão repentino, tão vivo o modo com que ela me fitou, tão claramente lhe vi no rosto um trecho sofredor da alma ansiosa que naquele corpo de há muito se vinha purificando, que uma emoção fortíssima me atarantou. E a esmo, pausadamente, dando às palavras a retidão dos gumes, repeti: — Farei todo o possível por te esquecer. Tu pretendes ocupar um lugar na minh’alma que te não pode pertencer. Porque, afinal, é bem pequeno o coração da gente, tão pequeno (e tão

grande!) que nele não cabe mais de um amor!... E eu muito sofreria se tu quisesses, por menor que ele fosse, ocupar o lugar que há muito sempre pertenceu a alguém. Mas... não falemos mais nisso... De novo os seus olhos se encheram de pranto. Pôs-se a fumar e a beber, com esse silêncio imóvel que certas viciadas de cocaína têm, ao olharem vagamente o próprio sonho. — Então tens um grande amor? Ah!... — E com ternura, ofegando: — É linda? mais linda do que eu?!... — Mais linda, para os meus olhos, do que todas as mulheres que eu tenho visto neste mundo que ando correndo. Mais linda do que todas as mulheres dos romances e das poesias... Mais linda do que as Madonnas todas das telas célebres que ainda ontem vimos... Mais linda, muito mais linda do que tu!... — Loura ou morena? — Loura. — Mais nova do que eu?!... — Mais velha, um pouco. — Ah!... Casada?... — Isso não te interessa... — Então é solteira... — Sim. É quase uma criança e é quase uma mulher... O nosso amor, porém, é já tão antigo! Nasceu conosco quando, pequenos, aprendíamos a ler e a rezar... E conosco de há muito vem crescendo. Um amor delicadeza, todo igual, como duas crianças gêmeas, de tão parecidas e de tão confundíveis... Se não fosse profanação mostrar-te-ia o meu cofre de cartas. Há as com erros de caligrafia, infantis, escritas há anos, assim como também

as há ardentes, sinceramente ardentes, escritas há meses, há dias talvez... — E tu a queres muito? — O nosso amor é gêmeo... E muito diferente do que tu chamas Amor... No teu entender e na tua vida, o amor é uma inesperada sede que absorve principalmente os corpos mesmo quando espiritual. Começa num capricho, num béguin. Há coincidência de simpatias; os hábitos se irmanam. Há paixão que é cevamento de instintos; pouco a pouco, depois quando os sentimentos se nivelam num estado normal, já as almas se impregnam, se prendem. Mas considera lá nesse amor de inesperado encontro, amor-camaradagem, amor-hábito, e vê a diferença... Pondera, calcula, imagina e vê quão diferente não será ele desse amor que tu não conheces... Amor imenso que traz em si o peso de todos os dias e de todas as noites de esperanças, sacrifícios e aperfeiçoamentos. Cada hora que passa a alma de cada um se purifica para merecer a alma do outro. Cada palavra que um ouve do outro, cada pensamento que um pressente no olhar do outro é guardado avaramente e cada dia desejado como o pão que o pobre pede a Deus cada dia... Assim é que ele é... Mas mudemos de assunto. Não quero que falemos mais nisso... Ela continuou no êxtase do seu estupor, olhando vagamente a forma com que as minhas palavras lhe passavam diante dos olhos. — E quando partes? — perguntou. — Dentro de dias. — É longe a tua terra?!...

— Muitos dias de mar, só mar e céu... — Mar e céu... — repetiu ela, esboçando um gesto estilizado. Quando te fores, eu à noite voltarei com minhas camaradas, a Suzon, a Pervenche, a Grande e a Margot, ao RatMort, a beber no copo que os outros pagam, cerimoniosamente com uns, canalhamente com outros. Senhores de idade no Bataclan e nos Bouffes nos dirão seus vícios perguntando se condescendemos... Cada dia acordaremos ao lado dum estranho que será ou bom, ou mau, ou indiferente. Uns nos darão joias, outros pancada!... Ora passearemos pelo Bois na Delage dum novorico, ora iremos até a barreira, em metró. E estaremos, ora no chá do Claridge, ora num bistrot de Richard-Lenoir. No Meurice dançarão conosco uma noite; outras dançaremos brutalmente a valsa chaloupée nos braços de boxeurs e rufiões da Praça da República. Inesperadamente uma manhã iremos parar no Hall do Carlton, em Nice, por favor e amizade levadas por algum poire; será, porém, mais comum pararmos num cais, no Havre, impelidas por algum tipo agenciador!!! — Mas por que não vais trabalhar? — Por que é que todas nós, desde Montmartre e Pigalle até à rue Royale, nós do Scherazade e as desgraçadas do Olympia e do Tabarin não vamos trabalhar? Isso nem é pergunta de psicólogo, meu caro!... Nós, nesta vida, seguimos um certo fatalismo. Vamos à mercê duma força que nos arrasta... Às vezes paramos, arrimadas a alguém, mas logo tornamos à correnteza. Umas encontram quem lhes pague vestidos no Lanvin, capas no Poiret, perfumes no Caron, e carros no Vanden Plas. Mas um belo dia voltam, voltam à roda! Outras arranjam contratos em revistas e chegam a estrelas de

boîtes, mas um belo dia voltam, voltam à roda. Eu, por exemplo, volto, sem grandes mudanças, sem grandes ilusões, mas volto... — Erguemo-nos. Tomamos um carro, como esses que eu outrora escolhia para ir ao Blois, com um cocheiro de máscara de Ibsen ou Tolstói e um pobre cavalo humílimo de grandes olhos nostálgicos. Vamos calados. Na praça da Ópera, no Café de La Paix, no boulevard da Magdalena, uma multidão noturna enche os terraços, sob os clarões de combustores. Nos Campos Elíseos descem e sobem, da Concórdia ao Arco do Triunfo e vice-versa, raros tipos encapotados ao longo das calçadas ou em táxis rouquenhos, porque é a hora de Mistinguett, de Sacha Guitry, de Gémier, de Chevalier, dos teatros, dos concertos, das revistas obscenas, dos cercles, dos dancings. O Grand Palais e o teatro Marigny, cercados de sombras de parque têm silêncios absortos sob o céu constelado e, ao fundo, o obelisco vara a calma da noite, todo branco de luar, como se fosse de marfim... Voltamos. Atravessamos o Sena. À esquerda, longe, o corpo de inseto da torre Eiffel, negro, com seu travejamento de ferro. Descemos; à direita, as Tulherias cheias de silêncio, o Instituto negro, carcomido. O Louvre, em alas de pedras que se vão secularizando... As pontes, velhas amigas de Verlaine, e cujas luzes encarnadas escorrem sobre as águas turvas. A Cité. Um trecho do bairro latino onde sofreu Baudelaire e onde morreu o pobre Wilde... A massa sagrada da Nossa Senhora de Paris, na ilha solenemente escura. Descemos do fiacre. Andamos a pé, em torno da Catedral; aqui e ali passam pares em intimidades. E a catedral, envolta pelo nevoeiro de luz do Sena, toda a recebo dentro dos meus olhos,

empolgantemente. Damos volta à praça onde Esmeralda com a sua cabra bailarina seguia o tilintar dos guizos do saio de Quasímodo. Entramos em pleno coração do bairro latino, com seus cafés de artistas, hotéis com luzes eloquentes, becos característicos, escadas, praças, fontes e legendas. Vamos até Saint Germain, silenciosamente. E súbito, tomando de novo um carro, ordenamos: — Montmartre... Montmartre... Depois de Clichy quanto mais perto do Sagrado Coração, cada rua, cada ladeira cheira à boêmia, esse cheiro misto de mercado e de cabaré... É uma cidade, um trecho de Sodoma, Gomorra, Pompeia e Lesbo, dentro de Paris. Tem a fisionomia antiga, as ruas estreitas, tortas como Suburra. Mulheres ao lado de frutas e cestas de peixe... Mulheres e estrangeiros. Restaurantes ao lado de restaurantes. Cabarés ao lado de cabarés... Álcool. Prostituição, escravatura branca, cocaína, luxo, miséria. Entramos. Dançam, gritam. Bebem. Falam as línguas da torre de Babel. Bebemos. Ela procura esquecer... Entra de novo no seu elemento; a princípio se sente mal. Lembra-se talvez dos trechos da sua vida vagabunda, por ali, a esmo. Recorda misérias alongadas e felicidades fugazes. Vêm-lhe à mente as madrugadas sem ninguém... ao passo que outras saíam de braço dado com americanos bêbados. Às vezes, por causa de pequenas dívidas, de rixas, de ódios, de ciúmes, era preciso esconder de alguma que saía ou que entrava. Mas logo passa o mal-estar. Champagne. Ela começa com aquele olhar trágico das estrelas do Grand Guignol; põe-se a falar, sem nexo. É o primeiro estádio da embriaguez. Mais champagne...

O seu olhar agora é torvo, morto, cercado de olheiras artificiais; a sua voz lenta, intermitente, tem qualquer cousa que lembra balbucios de criança se desculpando; o seu perfil de gárgula é o tipo estéril, o tipo Paris das ilustrações de Hérouard. Ela soma, em si, todas as classes, ordens e subtipos da mulher francesa. Quer dançar. Mas não sei por que eu já não vejo bem as cousas. Há gente que me olha piedosamente. Bailo sozinho com as mãos, as pernas e as pálpebras... Tremo as espáduas, como num shimmy. Canto, soltando dós de peito, cavernosos; ela, ao lado, pensa em qualquer cousa triste. Sacudo-a. Champagne!... Quebro o copo, faço sorrisos canalhas a outras mulheres. Gigolôs me provocam por causa disso, e eu não me importo, bebendo fidalgamente com gestos de Lyda Borelli. Saímos. Os garçons me chamam de Monsieur le Comte e por isso não lhes dou gorjetas. Converso com o cavalo sonolento dum fiacre. Chamo-o de “meu irmão, o burro” como São Francisco. Dou-lhe de comer, na minha mão, bombons que furtei às cocottes. Alguém me ajuda a subir para um táxi de dois cilindros. Em casa, diante do espelho, despindo-me, faço caretas a mim mesmo, cumprimentando-me e despedindo-me de mais uma noite da minha mocidade livre... Entanto, onde está ela? Procuro-a. Arruma as suas cousas em duas malas, nervosamente. Despe-se. Deita-se apenas vestida dum soutien-gorge paradoxal... No seu corpo que Géraldy e Rictus cantariam há vestígios dos sete pecados capitais. Na sua respiração há fadigas e nevoentas saudades de vida burguesa e doméstica. Eu me atiro sobre as vinte almofadas do divã, tonto, com ânsias esquisitas. E durmo, de cuecas, fartamente,

como um boxeur cansado, sem o remorso primitivo de pensar que, longe, alguém me julga estudando, dia e noite... De manhã essa mulher parte... a caminho do seu destino donde eu a tinha procurado desviar. Parte, com os olhos cheios d’água e de olheiras artificiais, mas sem atitudes dramáticas. Parte e sofre sem, todavia, ter sido na minha vida mais do que uma taça de champagne. Paris. 1921.

Oscar Wilde

À hora combinada estávamos os dois à porta do Hotel d’Alsácia, n.º 13, num canto do bairro Latino. Entramos calados, de chapéu na mão como quem entra numa capela, onde a meia-luz e o misticismo criassem um respeitoso e enorme silêncio. — É aqui. Batemos à porta. O violinista abriu, deixou passar pelo vão a austera cabeça de eslavo, sorriu, saudou-nos. Entramos. Sentamonos todos ao redor dum piano Gaveau. Silêncio. Uma luz à esquerda. O quarto, retangular e baixo, com as paredes brancas recortava num trecho do mundo, um pequeno trecho deste mundo, apenas, como as celas dos santos e as prisões dos criminosos suficiente para se esperar a morte. Uma Salomé de Regnault, presa à parede, diante de nós, sorria com a salva de ouro e o cutelo luzidio sobre os joelhos. Pouco abaixo, no lugar onde havia um sinal negro, na mesma parede, alguém tinha posto um ramo de loureiro. Mais nada. O violinista, com a cabeleira sobre os ombros, sorria sempre; a pessoa que estava diante de mim olhava o chão. E eu, com o cenho franzido, o olhar longe, pensava nesse extraordinário Sebastião Melmoth de Berneval, que morrera neste quarto, na noite glacial e longínqua de 30 de novembro de 1900, num começo aziago de sexta-feira.

“— A última vez que o vi, — disse lentamente o compositor russo — foi no Procope. Ele bebia stout porque já não podia beber absinto; estava malvestido e apenas a cabeça, aquela cabeça de lord, com a fronte larga, o olhar profundo sob as arcadas espessas, o nariz fidalgo, a boca irônica e um sorriso que fazia pensar ao mesmo tempo em Mallarmé e em um opiomaníaco, apenas aquela cabeça me podia certificar que era ele, bem ele quem ali estava diante dum copo de stout. Apesar de tudo uma superioridade genuína se evolava de todo o seu feitio de quase mendigo. Tinha os cabelos grisalhos e as mãos, apesar do hard labour, eram ainda finas e, olhando-as, a gente sentia uma religiosa convicção de que elas tinham sido feitas para as harmoniosas obras-primas da Dor e da Estesia. À porta do café, grupos de estudantes do Boulevard Saint-Germain o encaravam; ouvi mesmo que falavam do escândalo de lord Douglas filho. — Mas, alheio a todos, como antes, mistificador, arquipagão, esteta e snob, aquele homem de punhos sujos continuava a criar modalidades da Beleza em todas as formas do prazer e da dor. Foi a última vez que o vi. Dias depois, muitos dias depois, um ataúde descia o boulevard, sob a chuva e, atrás, passo a passo, sobre a lama, alguns homens seguiam o coche. Eu também estava. Alguns eu conhecia: João Lorrain, André Gide, Paulo Fort; os outros, gente de teatro, como Lugné-Poe; algumas mulheres; amigos, enfim, e o mais gente que ele satirizava com maravilhoso engenho nas altas rodas do grande mundo e da literatura... — Depois, desde que ele dorme cristãmente, ele, o grande ateniense, no Père Lachaise, lá, perto do Columbário, na 89.ª

divisão, desde esse tempo, mercê dum esforço, moro aqui, no quarto onde ele morreu. — Convidei-vos a ouvir hoje o meu noturno do C. 33. Eu tocarei violino, o meu amigo me acompanhará ao piano e tu (referindo-se a mim) ouvirás. Quero a impressão. Se o achares mau, sê franco; rasgarei tudo; recomeçarei outro. Mas creio que, enfim, quando o trabalho sai sincero e sentido, quase vivo do pensamento, creio bem que será bom... Vamos. Aqui estão as partes: piano e violino; tenha a bondade, o senhor. E tu, põe-te lá, ao canto, perto da Salomé, nesta cadeira, assim...” Obedeci. O homem da cabeleira fechou a luz. Tomou do violino. Houve um longo silêncio, dentro da treva. Percebi um vulto inclinado sobre o piano. “E todavia todo o homem, neste mundo, mata o que ama. E sabei que uns o fazem com um olhar de ódio, outros com palavras acariciantes, o covarde com um beijo, o bravo com uma espada...” “Uns matam o seu amor quando ainda novo, outros quando já antigo; alguns o estrangulam com as mãos do desejo, outros ainda com as mãos do ouro. Os melhores se servem dum punhal porque os mortos esfriam assim, mais depressa.” Balada C. 33. Era a voz lenta e cantante do eslavo, declarando o motivo da inspiração. “Tudo na minha tragédia é odiento, mesquinho, repugnante; o próprio uniforme nos torna grotescos. Nós somos os jograis da dor, os clowns de coração partido.” “Um dia na prisão, sem chorar, é um dia, durante o qual o coração é duro como as pedras. Toda a parte em que se encontra a

dor é terra santa.” “O segredo da vida é sofrer... A hora do arrependimento é a grande hora da iniciação.” “É com a dor que se constroem os mundos. E, quando nasce uma criança ou um astro há sempre dor.” “Eu disse que atrás da dor existe sempre a dor. Seria melhor dizer que, atrás da dor há sempre uma alma. Aquele que vive mais duma vida deve também morrer mais de uma morte.” De Profundis. Calou-se a grande voz. Alguém acendeu de novo, à minha esquerda, a lâmpada, junto ao quadro de Regnault. E, então, comecei a ouvir o noturno. Firmei as têmporas nas mãos; fechei os olhos e deixei que “o tempo descrevesse um círculo em torno do círculo da dor” já que “nada se move no terreno do pensamento sem que a dor responda com vibrações infinitamente vivas.” Foi então que os meus olhos viram o grande prodígio!... Porque, palavra que lhes não minto e nem julgo ter havido obsessão do meu cérebro!! nitidamente vi, diante de mim, com o seu copo de stout, malvestido, com um grande ar de quem passa a caminho de uma longa jornada, Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde. Mas repentinamente uma bruma o apagou da minha visão e como no desenho de Toulouse-Lautrec, novamente vi que o autor da Salomé, numa casaca irrepreensível, fumando um cigarro dourado, airosamente, numa elegância quase atrevida de tão perfeita, passeava pelo quarto dizendo paradoxos:

“Amo os homens que têm um futuro e as mulheres que têm um passado.” “As mulheres são esfinges sem segredo.” “Só há duas espécies de gente realmente interessante: os que sabem tudo e os que ignoram tudo.” “A alma é uma terrível realidade, pode-se vender, comprar, trocar...” E um sorriso de patrício lhe vincava o canto do lábio ao passo que o olhar, não sei se incompreensível ou de misógino, derramava, ao redor, uma luz que se diria coada através de veludos... Lentamente voltei à realidade depois de ver o grande esteta dar a sua impressão sobre a Salomé de Regnault. Comparou-a a uma cigana que fosse obrigada a subir até um atelier de Montparnasse para posar. E ria-se com desdenhosa piedade... Ria com desdenhosa piedade... Não! Não! Chorava! Chorava, agora, e “tinha, como os jogadores de críquete um barrete”; vestia um uniforme como um CLOWN DE CORAÇÃO PARTIDO. Chorava! E as suas lágrimas, ao longo do rosto belíssimo e viril, tinham uma serena gravidade, porque UM DIA NA PRISÃO SEM CHORAR É UM DIA, DURANTE O QUAL O CORAÇÃO É DURO COMO AS PEDRAS. Não sei se foi alucinação dos meus sentidos. Creio que não ouvi mais o noturno, ou se o ouvi, caí, de bruços, num transporte patético, porque, na parede nua e baixa, vi agora, que a mão infernal de Aubrey Beardsley desenhava, num esoterismo fantástico, vinhetas da Salomé...

Abri os braços, arregalei os olhos; pus-me em pé, diante do muro nu branco, muito branco... Mas... perdão! Há alguém, no muro, como uma sombra ou um fumo violáceo que dança o bailado dos sete véus... Salomé! Salomé!! Salomé!!!... Surge ainda um braço hercúleo com uma salva de ouro por cuja borda escorrem fios de rubi... Uma cabeça hirsuta, com os olhos de água santa, uma horrível cabeça macilenta e feroz, de olhos injetados, cabeleira ruiva e grande barba sangrenta, abre e fecha a boca severa, amaldiçoando... — EU BEIJEI A TUA BOCA, IOKANAAN... EU BEIJEI A TUA BOCA... HAVIA UM GOSTO AMARGO NO TEU BEIJO!... — exclamava, chorando e rindo, dolorosamente triunfante, a sombra violácea da parede, bailando... bailando... sobre um fuste de ônix... E ouço, ouço de novo o noturno. A minha alma se debruça pelo vão dos meus olhos para melhor sentir a dor. Depois, sublime e augusta, como uma ébria coroada de rosas, a minha alma sobe, deixa, na muda adoração de todo o meu espanto e de todo o meu delírio, o meu corpo que se ajoelha, com um ruído surdo de coisa morta... Alguém me sacode brutalmente... Vejo agora os olhos do violinista com um grande estupor fixando o meu rosto. — Vocês não viram?! — pergunto num acento de loucura plácida e cândida. — Vocês, não viram?!... E como ninguém me compreendesse, como eu visse, satisfeito e comovido o violinista enrolar o noturno carinhosamente, com um grande sorriso luminoso, então abri os braços, fechei-os sobre as têmporas e saí em busca da realidade frívola do sol... Paris — 1920.

Van Dongen

Aquilo tinha começado antes, em Paris, na primeira semana, quando ele, absorto, mudo, quase agressivo, cheio de pudor, não ousava transpor a escadaria do Louvre, ou quando, estranho, taciturno, em frente ao gradil do Luxemburgo dias inteiros olhava o edifício austero e negrejante, sem ânimo para subir. Se alguém tentava acompanhá-lo, ele, cheio de um absurdo pavor, delicado mas resoluto, como um profano, negava-se, dizendo que não, com uma certa firmeza quase brusca e incompreensível. E agora, pela Itália, continuava, naquele feitio, atarantadamente, um ar parvo no modo deslumbrado de percorrer a Toscana, lentamente, com cuidados maníacos e devotos, numa concentração quase mística, infantil e surpreendente. Em Siena, apresentara os primeiros sinais evidentes, quando num arroubo, cheio de transporte, sobraçando tudo quanto a literatura mundial tem de célebre sobre a Itália, uma vez, sem razão plausível, arregalando os olhos e falando baixo explicara à amiga que Stendhal e Ruskin tinham confundido o gótico lombardo com o estilo barroco. Outra vez, diante do deslumbramento da capela Médicis, visitando a igreja de S. Lourenço, depois de olhar minuciosamente os mármores, onde as mãos do Gênio tinham deixado arremates brutos, meio à Rodin, ele, de cenho feroz, num riso absurdo onde o sarcasmo brilhava, perguntara à amiga, desordenadamente,

qualquer coisa paradoxal, sinistra, desequilibrada, tão sem nexo e tão sem propósito que ela, a pobre Simone, recatadamente se pusera a chorar, respondendo: — Meu pobre amigo a tua cabeça desde que viu tanta Beleza ficou transtornada... Creio bem que precisas de repouso. Olha, se quiseres, iremos até Garda, ou, então, Santa Marguerita. Tu, desde muito que precisas de um certo sossego. E ele, fitando-a como um ébrio elegante, respondera: Desde que os meus pobres olhos viram a Beleza que estão vendo não podem mais ter o feitio neutro dessa multidão... Achas, meu Amor, que ao chegar a Roma, vindo do norte, da Gália, (ah! ah! ah! da França como tu queres) achas que ao chegar a Roma, por exemplo, sentindo se alevantar em mim, como uma erupção de estesia, como uma chuva de ouro, todo um sedimento de Emoção que se extravasa com o clangor de um cristal quebrando-se em fagulhas, achas que eu possa ficar o que era antes? Então pisar a terra que eu piso, ter nos olhos a visão de Pompeia, apalpar Fiesole, enclausurar-me em Veneza, retrogradar séculos e séculos, sentir o que Mommsen não sentiu, considerar-me igual a Boissier, fazer ressuscitar desde a Ligúria até a Sicília toda essa estranha e assombrosa volúpia religiosa da Renascença guerreira e mística, depois de haver vislumbrado no seu sarcófago de ruína a epopeia severa dos romanos, chegar e ver uma ronda de púrpura e ouro revolutear em torno dos meus cinco sentidos numa reconstituição expressionista e estupenda, sentir dentro de mim todo esse banho lustral que me renova, que me purifica e que me maltrata, encarar, assim, a metro e meio de mim, o Moisés, palpar coisas que o Cellini espiritualizou, ver, minha amiga, ver!... o Rafael e o Leonardo, sentir

a frescura das fontes onde há blocos e bronzes do Bernini, descer, macabramente vestido de gabardine, ao Fórum, saltar os escombros do templo das Vestais, jogar pontas de cigarro sobre o mosaico da basílica Emília, descer em grupo burguês, às catacumbas onde dormiu São Calisto, passear, num Lancia de oito cilindros, pelas lájeas roídas da Via Ápia, indo quase até Óstia, que é uma deplorável saudade do antigo porto Trajano, tendo, lado a lado, o augusto mistério das tumbas e dos ciprestes e em frente a mancha violácea dos montes Sabinos, transpor, à hora noturna, a cidade sistina, passando como uma sombra, anonimamente pela massa sonora das basílicas e dos Palácios, olhar o céu recortado pelo retângulo dos pátios onde as lógias e os poços têm uma cumplicidade histórica, por essa Itália afora, “meu amor”, quando um homem como eu vê, sente, adivinha, apalpa, adora e possui castamente, apaixonadamente toda a Itália, na grande núpcia, naquela grande e suave posse, não pode absolutamente, como um inglês de kodak e baedeker, deixar de abençoar o próprio espírito e agradecer a Deus, veementemente, o dom admirável de ter olhos, o dom sublime de memória e a faculdade sacrílega de reconstruir!... Ela, a meiga e branda Companheira anuiu, por piedoso enlevo, já agora cuidadosa, cheia de cautelas suaves e observações secretas, a estudar o feitio transtornado do amigo. Entrou, então a escrever cartas aos amigos, a contar, prolixamente que ele estava mal, estranho, que naquela cabeça a Beleza tinha aberto clarões tão pujantes que a atordoavam... E, efetivamente, esse pálido escultor de físico à Vigny, passeador elegante e rico, acompanhado de uma moderna e honesta George Sand, trazendo malas dos alfaiates de S. James e

dos costureiros Gori e Lanvin, bem como caixotes de livros em todas as línguas sobre Arte e Literatura, um dia, efetivamente se atordoou ante o clarão deslumbrante demais da Beleza!... E foi isso mais ou menos assim. Ele chegou a Veneza. Instalou-se no Danielli, lá onde se instalava Wilde. — Tu hoje, não estás bem — disse-lhe a Simone acariciando-lhe a testa, com aquela meiguice quente, que a mulher francesa, quando ama, dá às mãos e à voz... — Sim — respondeu ele, desfazendo o laço discreto da sua Lavaliere — eu não estou bem... A Beleza, só porque eu a decifrei, me quer devorar!... Ela é bem como a Esfinge da estrada de Tebas... Nesta Itália, onde as ruínas têm a grandeza sugestiva do Todo, o meu ser, como um todo que é, parece que se martiriza para a augusta transformação da ruína... Saíram ambos, pela Riva degli Schiavoni... A laguna, em frente ao Lido, tinha um modo paradoxal de silenciosamente se identificar com a Cidade... Junto ao cais, uma fieira de gôndolas negras, esguias, tresandando ao limo das escadas nobres dos Palácios do canal Grande, parecia esperar uma comitiva invisível que surgisse da Piazza, roçagante de veludo e púrpura, tintilante de espadas e bainhas meio latinas e meio orientais. A basílica, no seu paradoxal complexo de idades e estilos, erguia para o céu seu corpo de taça invertida, bizantina taça cheia de harmonia letal... Eles entraram depois de silenciosamente fitarem o Palácio dos Doges.

Simone, no seu tailleur Sacha Guitry, ligeira, esbelta, tinha em si, no seu corpo, qualquer coisa daquelas estátuas que ela própria admirava na seção de porcelana da galeria Pitti. Ele entrou com um bizarro atarantamento. Diante dos mosaicos do vestíbulo parou um pouco. Entrou... Todo o ouro, todo o mármore, toda a múltipla beleza da basílica-serralho lhe entraram no espírito como um veneno pelas pontas de espada dos seus sentidos. O alabastro, o ônix, o jade, o pórfiro, a calcedônia, o basalto, todos os painéis em mosaico, forrando, dourando, embriagando, mistificando o corpo sensual e moçárabe daquela grande cruz grega oca e maciça, severa e luxuriante, todo aquele recinto de bizantinos sonhos erguidos em um fundo estridente de exotismos sarracenos, góticos e romanos, tudo o irritou como verdade que é que o ódio é às vezes amor!... Repentinamente bracejou... com passo tardo circundando a nave e as capelas murais; ajoelhando diante da pala de ouro, disse mansamente ao ouvido da Simone... — Lembras-te? Aqueles que eu via em França, no Louvre, e que tornei a ver em Florença, estão de novo aqui. Têm ainda o mesmo intento diabólico... Queriam no Louvre quebrar a martelo a Vênus de Milo, mas com o meu pé pisei-os como répteis que eram. Em Florença, pressentindo-os, rondei três dias e três noites o David de Miguel Ângelo e a galeria dos Ofícios... E, desde San Miniato até a praça da Senhoria, vigiei os tesouros todos da Renascença. ... Porque eles queriam pintar de púrpura e escarlate as telas do Ghirlandaio e até, segundo percebi, ousaram roubar trípticos belíssimos de Santa Maria Novella... E eis que lá estão, eles todos,

lá lá... junto de Van Dongen que ri... ao lado dos futuristas tudescos, entre os dadaístas italianos, de mãos dadas com os extravagantes cubistas de Paris. E gritava, apontando a pala de ouro. — Ei-los, os sacrílegos... meu Deus! A basílica! A basílica! O Fauno de Dardé lá está em lugar do altar! E as paredes, meu Deus, as paredes, o teto e o chão, eles os riscaram com listões modernos, enviesados, numa macabra técnica futurista... Em cem mil gôndolas carregaram para a Laguna os mosaicos todos que forravam São Marcos. Deitaram ao mar toneladas de maravilhas. A catedral como um pagode está toda listada das sete cores do arco-íris, como um ! Meu Deus!... E chorava, chorava tanto que, assim de pé, embora a pobre Simone o abrandasse, ele tinha no seu gesticular piedoso qualquer coisa bíblica, como um rabi, de azorrague nas mãos convulsas, expulsando os escribas, fariseus e zoilos para fora do peristilo sagrado... Veneza — 1921.

Carola Marwenga

Trecho de praça onde desembocam ruas centrais. Multidão que vai e vem; gente que recolhe e que passeia. Aglomeração nas calçadas, diante de mostruários fartamente iluminados. Risadas. Saudações. Sussurros. Blasfêmias. A voz de um camelô. O violino rouco de um cego inválido. Das galerias, passagens, portais e becos entram e saem variados espécimens de tipos que formam a alma indiferente, cômica, dramática, cínica e ingênua da rua. Garotos pedem esmola, oferecendo fósforos. Passa um casal feliz, num tácito escândalo de carícias mal reprimidas. Burguesas com embrulhos, puxando cães sonsos, param, voltam-se para olhar mulheres

sozinhas.

Oficiais

da

Entente

atravessam

despreocupadamente e alguns os olham com rancores jacobinos, mudos. Anoitece lentamente sobre a massa pardacenta dos quarteirões. E, à saída de ateliês e aulas de datilografia aparecem estudantes ruivos à espera de um caso. Começa a chover. A lama empapa a calçada. Brilham as primeiras luzes. Os cafés e as cervejarias regurgitam; o frio aumenta e a multidão cresce, sob os pórticos e à parada dos tranvias e do Underground. É então que a Velha aparece fragmentando-se do bloco do povo, toda encolhida, ressabiada, zonza, com o seu andar arrastado; às vezes, para; alguém, passando a comprime de encontro aos taipais; e ela resmunga, segue, para de novo e

continua, enfim, sob a chuva miúda de inverno que, junto aos clarões vivos dos combustores e lampiões, semelha uma poeira impalpável e multicor. A um canto de rua se arreceia; olha cautelosa, quer atravessar, enche-se de pavor; buzinas a assustam. Lá consegue, enfim, mas... que custo!... E continua. Muito tempo depois entra num portal; o prédio é velho e o bairro é de operários. Atravessa o pátio, sobe vários andares. Caras intrigantes de comadres lhe dão as boas-noites, esganiçadamente. Responde; mostra-lhes o galho de pinheiro murcho, nu, agressivo. A sua Árvore de Natal!... E explica como a conseguira arranjar. Fora a última. Fora lá para baixo, numa esquina. Havia muita gente. Os homens das carroças pediam caro mas todos pagavam... Havia uma grande, alta, encorpada, pontuda, assim! e que todos queriam; levou-a um senhor que altercava com outros dois. Ela conseguira aquela porque, de tão feia ninguém a cobiçara. As mulheres gabaram-lhe a sorte. E ela subiu, devagar, satisfeita, muito apoiada ao corrimão. Abriu uma porta, acendeu uma luz; pousou o galho triste, seco, torto e mesquinho, sobre a mesa; alimpou-se da rua, resmungando. Atiçou o fogo na chaminé e foi alindar a sua árvore de Natal. Escorou-a numa tripeça, ajeitou-lhe as ramagens raras, quebradas; amarrou na haste felpuda, enrolando-a, fitas de tons alegres; peneirou fiapos de penugens e algodão sobre o friso saliente dos ramos, à guisa de neve; prendeu aqui e acolá lantejoulas e suspendeu, entre o tufo verde-escuro as seis velas encarnadas, em círculo duplo. Sob o peso a árvore vergou, numa deselegância murcha. Foi buscar ao armário as caixas de bombons, enfeitadas de junquilho, a torta de chocolate e o anel... O anel antigo, velho duas

gerações; mirou-o de encontro à luz; tornou a guardá-lo no minúsculo aconchego de algodão de uma caixinha pobre... E tudo isso porque a sua filha, a filha do seu coração, como o Menino Jesus, fazia anos na noite de Natal. Ah! a sua filha!... A rapariga mais viçosa, mais viva e mais expedita de todo aquele casarão de cinco andares. Trabalhava no centro, num escritório, escrevendo à máquina papéis importantes que um senhor judeu lhe ditava; só voltava à casa ao anoitecer. Dantes costurava, depois da ceia, contando à Velha coisas de política externa, que ouvira nas conversas. Que o país devia pagar a prestação próxima. Que convinha comprar dólares e não títulos de bolsa porque se os ingleses condescendiam toda a mofina vinha da França que teimava. E a mãe ouvia, emitindo opiniões tolas e falando dos tempos que vão com vozes de lástimas bíblicas. Mas, depois, pouco a pouco, dera em cear fora, com amigas; em ir a teatros, concertos, cafés e bailes, em aparecer em casa com vestidos caros, meias de seda e um certo feitio petulante de quem se anda a modificar em companhias dúbias. A velha entrou a amarrar a cara mas sem ânimo nem autoridade para repreensões. E aquilo continuara... Ora, nessa noite, como todos os anos, havia uma ceia melhor, à maneira da província, “auf tyroler art” com carpas, salsichas, ganso frio, compota, torta “mit sahne”, “baumkuchen”, duas garrafas de vinho do Reno e licores de Innsbruck. Decerto a filha traria amigas. Coisa pobre, com pouca gente, mas tão do coração!... E, beatificamente, estendeu a toalha de linho, dispôs os pratos, cortou o pão, já agora mais branquinho, com recheio de

passas; tirou do armário e da arca velharias singelas para adornar a saleta. Alguém tocou a campainha; era um conviva; a moradora da esquerda, vestida ao velho gosto alemão, naquela falta de jeito das pessoas que têm uma intuição repentina de que são ridículas. Era de um louro aço, grave, compungida, cheia de joias e verrugas na papeira oleosa e nos dedos grossos; o vestido era de meia cauda, com vidrilhos e reflexos furta-cor. Chegou outra amiga; estalou beijocas nas bochechas da velha dos vidrilhos; chamaram-se nomes feios, jocosamente, porque estavam ambas em falta: não se visitavam. Bateram novamente à porta e ao mesmo tempo tossiram. A velhinha conheceu a voz da filha. Com cuidados nervosos e com muito zelo correu a acender as velas; nos pavios delgados as chamas tristes brilharam; e o triste do pinheiro, fúnebre como um cipreste e caído como um chorão, então, ainda cheio do orvalho da chuva, magicamente se acendeu de fulgores baratos. Aberta a porta entrou uma rapariga loura, esguia, desembaraçada, meio tipo de estudante. E um homem de farda severa, seguindo-a, trazia uma grande caixa de uma casa de modas. Desfeito o embrulho todas viram um vestido de veludo bleuroyal, para a noite, com o carimbo caríssimo da casa Michaelis no forro de seda. E tão lindo, tão elegante e tão caro que para o conseguir precisaria uma pobrezinha de Deus de trabalhar meses a fio... ou então... — E toca a vesti-lo. Ah! que pressa!... Pois calculem que me esperam umas camaradinhas. E correu ao quarto. Na sala, junto ao

fogo, ninguém ousara falar, olhando todas o encantamento da árvore. E nisto, ao fundo do corredor, enquanto se vestia, a filha cantava. — “Stille Nacht, heilige Nacht...”, nesse contentamento falso de quem sufoca remorsos veniais... Muda, encolhida, zonza, a velhinha começou a chorar um pranto muito medroso e muito humilde. As lágrimas lhe rolavam pela face, de ruga em ruga, e vinham até aos beiços, lentamente, grossas como mucos; e, escorrendo, tinham, por efeito de luz, o tom verde do fel... A rapariga apareceu, já um tanto acanhada da própria beleza e do próprio luxo. Despediu-se das velhas que tinham sorrisos atarantados e atônitos. Beijou a mãe e vendo-a chorar ficou muito branca, indecisa; quis explicar, gaguejou; viu a mesa posta, tradicionalmente posta junto à árvore santa. Decidiu-se, saiu, bateu à porta mas a descida das escadas lhe custou tanto como uma áspera penitência... E eis que, depois, à mesa, a velhinha, servindo as duas amigas, o bondoso professor, duas crianças e um rapaz acanhado, começou a se queixar. Todos comeram em silêncio, gabando a carpa, o ganso, o vinho. Só depois, à hora dos licores foi que o velho “herr professor” pedindo desculpa, tratou do caso. Não tinha nada que se imiscuir na vida de ninguém. Mais um calicezinho; obrigado. Mas, era velho, vira o mundo, e além do mais a amizade... E todos falaram, lentamente... Trá-lá-lá... Trá-lá-lá... E, enquanto isso, ela pensava no filho que a não podia ajudar porque, quatro anos antes, tendo partido na invasão das terras gentis de França, nunca mais voltara do inferno raso de Verdun...

Pela hora alta da noite, na sala silenciosa, depois que todos após reconfortos e conselhos urgentes se retiraram, a Velhinha começou num vago delírio de ronda, a recordar os natais passados longe da cidade, nas serras altas da Turíngia, lá na sua aldeia de costumes imutáveis... A criançada bailando em torno da árvore que fulgura... O pastor, sisudo, calmo, cantando às raparigas as legendas de Natal da Baviera, os rimances do Tirol, as baladas da Floresta Negra e os corais do Alto Reno que ele lera nos membranáceos livros das bibliotecas góticas... Na aldeia, cada casa, cada azenha, da mais rica à mais pobre, desde o burgomestre ao moleiro, todos tinham, sem exceção, a sua árvore de ao pé da qual ninguém se arredava, numa reunião sagrada, secular, de tradições herdadas. Os casais se vestiam à moda da terra, com suas coifas, seus jalecos, domingueiramente, e o rapazio punha polainas, atirava aos ombros as capas severas que envelhecem como convém a tal ato. E sem querer, a Velhinha vestiu a jaqueta pobre, roída nos cotovelos; calçou as luvas de malha; fechou mais a manta sobre as têmporas de veias sinuosas e saiu a esmo, com a bolsa debaixo do braço. Agora nevava como nos contos do Norte. E, encolhida nas suas mantas provincianas que a faziam corcunda e tortinha, desceu as ruas operárias e entrou no bairro rico... E continuou, continuou, sob a neve que as lufadas semeavam... Ela agora sabia de tudo, mas de tudo porque aquelas amigas e aquele professor tinham posto à mostra, tudo, até as particularidades perversas que podiam ser escondidas.

Chegou. Havia carruagens à porta, e grandes gambiarras no alpendre do cabaré onde os que não têm família faziam o seu Natal profano. Cocheiros de libré e porteiros de capotões com alamares, palestravam, batendo os pés, afugentando as cãibras. Mutilados, com ganchos no lugar dos braços e rodelas de couro e celuloide cobrindo a chaga das órbitas e das ventas, pediam esmola, branquinhos de neve, tiritando... Negaram-lhe a entrada. — Mas preciso dar a chave, entende?!... à minha senhora!... No vestiário e no saguão outras dificuldades. E ela, acanhada, trêmula, explicava a história das chaves; seria apenas um momentozinho... Ir-se-ia logo embora... Que tivessem paciência. No vasto salão, em elipse, decorado ao gosto futurista, num modo bizarro de reentrâncias e saliências, tintas vivas, listões berrantes, candelabros de formatos extravagantíssimos, medalhões de azulejos impressionistas e estátuas grotescas, bárbaras da mais exótica fantasia cubista, a orquestra tocava tangos e shimmies. Mesas fechavam o círculo onde os pares dançavam em estrebuchamentos de caras, tremuras de espáduas e rins e jogos malucos de passos excêntricos. Criados serviam champagne Made in Germany, com mesuras interesseiras; e, ao centro, de tamanho natural, um abeto, com teias de seda e flocos de paina lacrimejante, brilhava, ardia, cheio de lâmpadas e oferendas multicores. A sua filha estava numa das últimas mesas, num camarote com jarras Rosenthal e abajur lilás. Vestia a toilette de veludo de heráldicas golas principescas e heráldicos debruns de ouro velho, florentino. Tinha anéis de pedras bizantinas nas mãos e fumava Ariston de luxo. As outras mulheres a olhavam como se olham

noviças porque a sua beleza quente tinha a transparência alegre das mulheres que ainda não sabem beber. Os criados, ao serviremna, chamavam-na “a senhora condessa”, e o homem que estava ao seu lado era velho, vestia casaca com aprumo militar, via o mundo através de um monóculo e parecia mais um corretor de mulheres do que propriamente um marchante liberal. A Velhinha, a princípio se escondeu, toda tonta e cega, atrás de um biombo dadaísta. De repente o seu rosto murcho se cobriu de uma máscara de bruxa, com olhos de aves de mau agouro; a boca, sem dentes, reentrou mais entre o nariz adunco e o queixo de avozinha, deglutindo sombras trágicas; as mãos de dedos tortos, artríticos, e onde as veias cheias de mau depósito se encarquilhavam, tomaram gestos côncavos, rapaces. Toda a rija construção montanhesa da sua pessoa austera e ainda medieval de hábitos e impulsos, renasceu naquele alforje de ossos e pelancas. A filha por acaso a viu. Saiu da mesa; veio falar, repreender... Tresandava a vinho, tinha os seios metade à mostra, muito brancos, movendo-se com a respiração, e, ao compor o cabelo deixava ver, despudoradamente as axilas de um tom úmido de palha triga. No seu feitio pateta de irresponsável tinha, na sua ebriez loquaz, gestos canalhas, gabando a festança, em calão. Mulheres do guarda-roupa e porteiros internos riam, veladamente, daquele assanhamento. A Velhinha ouviu; puxou mais para o rosto o xale, a cobrir a sua vergonha; uma onda de sangue lhe subiu à cabeça e, atarantadamente, juntando o que de pejo, de autoridade, de orgulho, de direito e de asco ainda lhe sobrava, estendeu a filha no chão, sobre o tapete, com bofetadas ásperas, seguidas, encarniçadas!...

Houve uma grande celeuma. A orquestra parou; criados, convivas de casaca e gigolôs de Charlotemburgo vieram levantar a “senhora condessa”. O senhor de monóculo apareceu marcialmente; indagou, falou com o gerente, ordenou que lhe trouxessem as peles, a bengala, a cartola e que fizessem avançar, incontinenti, a sua Mercedes. E enquanto isso, com sobranceiros gestos de blasé, oferecia à “condessa” a sua marta-zibelina para que, com suas máculas e desdéns, naquela retirada estratégica, se não resfriasse. A orquestra atacou um one-step, para modificar o ambiente já agora jocoso. — Quem é essa mendiga?! — perguntava depois o homem de monóculo, atravessando uma ala curiosa de gente, na sala. A rapariga não respondeu. E, tomando o landaulet, atirou-se ao fundo dos assentos, de perna cruzada, os olhos em brasa, num grande atarantamento. — Era tua mãe?!... — insistiu ele, compondo o cachecol. Ela continuou na sua abstração de êxtase. E ele ajuntou, então, acendendo um cigarro, com as mãos em anteparo, e com aquela inconsciência social dos que já não sabem se são bondosos ou cínicos: — Isto, filha, acontece na estreia, são contratempos da aprendizagem... E a Velhinha que o gerente e os porteiros tinham posto para fora, aos safanões, seguia, agora através das ruas escuras onde as tílias nuas imploravam, desgalhadas, na saudade das folhas. As lufadas semeavam mancheias de neve sobre os quarteirões religiosamente absortos. As calçadas cheias de lama eram como a alma dos homens... E ela foi andando, toda transida, até ao fundo da

perspectiva. Longe, no último andar da casa rica de um “Von” qualquer, crianças cantavam em lieder sentimentais, ao redor de uma árvore de Natal, as legendas velhíssimas dos monacais infólios das bibliotecas vetustas. ... E como já fosse noite alta, as velas, titubeantes, tortas, quase extintas, tinham clarões muito baços... e, sem querer, imitavam essa mulher, titubeante, torta, quase extinta, nos clarões baços da sua dor mesquinha. Berlim — Natal de 1921.

Baixo-relevo em lápis-lazúli

Ao despontar da aurora, o Infante, lindo e grave como um Batista do Pinturicchio, subiu à capela recamada de mosaico vêneto. Ajoelhou em frente ao retábulo que as mãos de Ghirlandaio tinham pintado em três tábuas florentinas; baixou os olhos e, num meio êxtase de luz e de penumbra, dum futuro príncipe do Vaticano, recebeu dum cálice de Bizâncio, a divina partícula. Depois, gradualmente, mais belo e mais grave, com a sua espada que o Cellini trabalhara, apertada de encontro ao saio, naquele silêncio fosco que as Madonas dos mosaicos abençoavam, diante do altar de alabastro, com os olhos piedosos na pala sagrada, ficou longo tempo em contemplação, ouvindo a voz de Deus que lhe borbulhava no peito como a clara fonte da Sabedoria. Quando as infantas suas manas apareceram por trás das colunas de pórfiro e, seguidas de aias majestosas, se assentaram nas estalas do coro e quando o velho e sábio cônego surgiu com a casula lantejoulante e esplêndida como uma dalmática, para o sacrifício, precedido dum pajem brejeiramente devoto, então o Infante se alevantou, persignou-se diante duma pia elegantíssima do Donatello, atravessou o portal, sumiu por instantes no vão azul da cortina de veludo, deslizou pelas galerias forradas de Arrases, passou às salas austeras de tetos deslumbrantes renascença, olhou carinhosamente um São Jorge do Verrocchio, audaz e gentil, e por fim desceu ao pátio onde mulheres e estátuas se aqueciam ao sol.

As seis paredes do Palácio subiam recortadas de janelas e seteiras, prendendo lá em cima, um trecho límpido de céu toscano. E o Infante, com a cabeleira cheia de sol, o punho da espada nas mãos ambas, olhou os pórticos onde os tocheiros de ferro forjado pareciam antebraços amputados; olhou as estátuas, dons de Papas, vindas do Lácio em sucessivas oferendas pagãs em embaixadas opulentas; olhou os escudos fixos às paredes em relevo austero e onde se viam armas, lírios, cruzes, leões, viseiras, guantes, borlas cardinalícias em campos abertos de ouro, púrpura e prata; olhou a escadaria de mármore branco, africano e vermelho, cujos cancelos de ferro, fechos e brasões o Brunelleschi cinzelara em luzidio bronze, com arte e finura tal que se diriam torturados pelo cinzel de Giambologna ou Ghiberti; olhou a lógia literalmente forrada de frescos dum discípulo incompreendido de Tintoretto, e onde se sucediam, como no Camposanto de Pisa, trechos dum inferno mansamente poético; olhou o poço mais formoso que o do Palazzo del Podestà, com sua cinta de bronze, onde as figuras dos apóstolos e da Samaritana, nas suas edículas góticas formavam uma guirlanda quase alada. Em seguida subiu à Sala Magna, de estuque e pintura pompeana. No imenso tapete havia velhos silêncios discretos que sabiam muito mais que os códices membranáceos da biblioteca. Bronzes e mármores pentélicos cheios de secular transporte jaziam em socos de ônix, mesas de ágata e fustes de calcedônia. Cristais, porcelanas, camafeus, baixelas, trípticos, e candelabros dormiam no orgulho das opulências. E o Infante, lentamente, com as mãos brancas onde havia veias de puro sangue azul e anéis bizantinos de dinastias defuntas, abriu a janela que deitava para o burgo.

A manhã transparente, punha no recôncavo das sete colinas tons de jade e incendiava os domos de Santa Maria e da Annunziata. Para a banda do levante era uma vertigem de luz e o ar se fragmentava em escamas de fogo. E ele olhou a cidade que despertava sob a tutela férrea das torres da alcáçova. Então, como a Cristo no deserto, Satanás lhe mostrou o reino da terra e lhe disse com a voz que tinha ainda harmonias de arcanjo: — “Este é o teu Reino. Hoje, à hora das vésperas, receberás a tua coroa, o teu manto e o teu cetro. E das doze cidades onde teus pais mandaram, virão embaixadas, cortejos e ofertórios.” E a mão rubra de Satanás, lhe mostrou, numa ronda multicor, as cidades, os castelos, os burgos, os bosques, os campos louros de trigo, até longe, ao mar, onde cheias de cor as velas de empresas e epopeias se inchavam ao vento da conquista. O Infante fechou a janela, cujo cristal em círculos, encaixados em cairéis de ouro, tinha agora, na mágica do sol, tons de ametista. E cheio de pensares, vergado como um velho, desceu aos seus paços íntimos. Abriu os velhos códices góticos, que pacientes mãos beneditinas tinham enriquecido. Então, com o ânimo forte como a têmpera da sua espada da Ligúria, o Infante leu nas letras nímias e góticas, a lição cheia de sangue dos seus antepassados. Leu os trechos heroicos e leu os trechos dúbios. Leu as intrigas, as mensagens, as bulas; e até conheceu o sentido equívoco de crimes que tinham vantagens de virtudes. E diante do códice de sangue e ferro, com sua encadernação de pregos de ouro e iluminuras de pedras preciosas, o Infante

esperou que chegasse a hora vesperal... E, eis que, à hora de vésperas, atravessando o burgo, os cortejos solenes com seus vexilos subiram a escadaria de mármore, atravessaram o cancelo de Brunelleschi aglomerando-se na sala magna. De novo o imenso tapete sarraceno, dom dum Doge do Adriático longínquo, ouviu a passada histórica dos borzeguins pesados e o deslizar macio das caudas de veludo e dos chapins de seda. Nos braços dos lampadários de Siena e no fulgor dos cristais de Veneza as tochas de novo se enrugaram sob o pavio elegante. Legados de Florença, da casa Médicis, sábios de Pisa, donzelas de Livorno, frades de Lucca, burgueses de Arezzo, gibelinos de Pistoia, procuradores da aristocrática república de Veneza, enviados de Júlio II, em desordenado embaraço se agruparam em frente ao trono. Condes, bispos, nobreza da Senhoria, donas, aias, pajens, pintores, frades, crianças e galgos esperavam junto aos três degraus. Nisto, precedido de gentis-homens, que ostentavam ricos trajes num meio gosto florentino e borgonhês, uns de veludo e sirga, outros de armadura briosa, paramentados uns para o serão principesco, outros substituindo a gala donairosa pela arrogância feudal das vestes ásperas da escaramuça e do torneio, nisto, precedido de corte dupla dos seus nobres e das suas donas altivas, o Infante subiu os três degraus do seu Calvário. E com grande pompa o legado do Papa lhe colocou na fronte moça a coroa anciã da dinastia, metade de ferro, metade de ouro, com pedras preciosas que tinham a cor da esperança e a cor do sangue dos homens.

E o rei de quinze anos sentiu que todos quanto o olhavam eram de agora em diante mais felizes do que ele... Muito mais felizes porque tinham a cabeça apenas pesada de ilusões, ao passo que ele tinha na sua cabeça o peso todo do diadema de ferro e ouro, o peso todo da esperança e do sangue... E foi tão triste, tão augusto, tão acabrunhante, de uma majestade tão dolorosa o rosto do Soberano, que os cardeais com as suas mitras coruscantes, os condes com as suas armaduras luzidias, os enviados da Toscana com seus saios e túnicas, as damas e os cavalheiros com seus brocados e púrpuras, todos cercaram o trono. O Soberano então se assentou diante da corte. E começaram a desfilar as ofertas dos Potentados da Terra, vindas de longe, de terras cristãs e até de portos sarracenos. Passou um pajem trazendo numa almofada, três anéis de pedras tão raras como as que levou a rainha de Axum e Sabá ao rei Salomão. Passou um segundo pajem trazendo numa salva uma relíquia dum mártir, tão preciosa que curava até as chagas do Amor. Passou um terceiro pajem trazendo o dom duma mulher que o Infante amara em segredo: uma lágrima que secando tomara o brilho, a forma e o valor das gemas de Golconda. Passou uma criança trazendo riquezas do mar, numa rede de seda, riquezas dum naufrágio, nunca vistas em costas da Cristandade... Passou uma outra trazendo, no côncavo das mãos, qualquer cousa que ninguém viu o que era, mas que tinha o dom conjugado da mirra, do incenso e do cinamomo...

Passou uma terceira trazendo tecidos tão preciosos, que tinham o dom de tornar as mulheres mais lindas do que se estivessem nuas... Passou um frade trazendo um Livro de Horas, simples, sem fecho de ouro, nem iluminuras, mas que tinha o dom de matar o Tédio... E o segundo frade trouxe no dorso as tábuas da arte de bem gerir o povo... O terceiro trouxe um azorrague, complemento do que trouxera o segundo... E pela noite toda deslizaram os homens e as mulheres com incumbências múltiplas, expondo dádivas tão ricas, que os mordomos, os intendentes, os servos e as cuvilheiras, já não tinham onde receber e foram mandando tudo até para os ergástulos, onde os prisioneiros que não viam o sol começaram a pensar que deliravam ante tanto fausto. E eis que alta noite, quando no céu puríssimo as constelações palpitavam, quando nas suas equipagens luxuosas todos deixaram a porta de bronze que se fechou como um retângulo de treva, na calma do salão, no seu trono de três degraus, o Potentado das Doze Cidades pensava, cheio de orgulho, nas oferendas, que, convergindo das quatro estradas do mundo, tinham vindo repousar no carvalho e no mármore, no ébano e na ágata das suas mesas, dos seus consolos, das suas credências e até no chão do vasto palácio de sete andares de granito trabalhado feito renda. E o Potentado, com as mãos nas têmporas, a coroa oblíqua sobre a cabeleira (porque se tinham aberto vinhos de virtudes antagônicas), sozinho na sala magna, olhando o estuque romano do

teto e os frescos pompeanos dos paredões altivos, pensava no seu povo que ele conduziria como um armento; pensava no gáudio, na pompa a inaugurar, tão grande de deitar inveja a Lourenço o Magnífico e outros mais por toda essa Itália afora... Toda a herança de defeitos e virtudes de seis gerações lhe subiam à tona, no instinto e já não era ele que reinava, mas a sombra de seus avoengos. Na fisionomia já se lhe viam máscaras sucessivas, diversas, e toda a ronda do passado lhe dançava em torno. Lentamente, porém, tremeram as tochas nas argolas de ferro fundido; uma atmosfera como a que envolve as estátuas mutiladas e os bosques de loureiros envolveu a sala toda. E surgiram três mulheres... E todas as três passaram trazendo oferendas imortais... A primeira, a mais linda, cujos seios eram pomos de embriaguez, mas cuja face tinha um tom augusto de Sacerdotisa, trouxe nas mãos, na ponta dos dez dedos alabastrinos, uma coroa de espinhos... E ao oferecê-la o seu rosto era tão triste e o seu corpo tão augusto que o Infante chorou... E arremessando o diadema

sobre

os

coxins

e

almadraquexas, com suas próprias mãos cingiu a coroa de espinhos. A segunda mulher, a mais encantadora, cujas pálpebras violáceas adoçavam o veneno dum olhar esotérico de sibila, trouxe nas mãos, na polpa dos dez dedos, vivos como tentáculos, o Beijo de Judas. E ao oferecê-lo o seu rosto teve num vislumbre a mímica paradoxal de todas as Salomés da Pintura, da Poesia e da Legenda. E o Potentado deste mundo adiantou o rosto ao ósculo da traição.

Dizem crônicas e códices desse tempo que o rosto do Infante ficou tão abatido, tão álgido e tão belamente doloroso que até algumas mulheres o quiseram mimar como uma criança pobrezinha... A terceira mulher, a mais meiga, a mais sobre-humana, tinha semelhanças nítidas com as grandes mulheres da História. Ela promanava do seio augusto dos Épicos... Tinha em si, no seu corpo, o orgulho das colunas... De perfil lembrava Judith, e de frente tinha o tom sidéreo de Beatriz de Ravenna. Os seus gestos tinham a meiguice de Francesca. A sua voz era, na sua boca misteriosa, como os versículos do Cântico dos Cânticos ressoando no Tabernáculo. As suas mãos fidalgas de Mona Lisa eram tão alongadas e tão doces, tinham tal semelhança com as rosas que os anéis sentiam não ter lágrimas com que chorar o consolo dos suavíssimos contatos. A sua túnica litúrgica era como um cofre ofegante justaposto a uma pérola... E na carne do seu corpo a sua alma andava diluída como um perfume palpável. O seu olhar tinha a sinceridade branca das espadas leais... E, em volta dela, abstratamente, velando-a como um tesouro, havia rondas seráficas do céu e da terra, teorias de heróis e círculos de leões apocalípticos. E ela trazia entre os dedos de luz, entre a polpa litúrgica dos dedos vivos como partículas consagradas, uma taça de fel... O pobre potentado deste mundo estendeu a mão trêmula e tomou o cálice de ouro maciço e gemas teodosianas. Súbito esqueceu todas as dádivas, oferendas e dotes. Ordenou em altas e estranguladas vozes que lançassem à multidão os presentes que lhe tinham vindo das quatro pontas cardeais deste mundo. E com grande pasmo, atônitos, os mordomos, procuradores, intendentes,

pajens e aguazis obedeceram àquela loucura. Por isso, nas feiras, nas lógias, nos adros, nos pórticos, nas escadarias, nas congostas do burgo e nas pontes, becos, vielas e escaninhos do bairro judaico houve uma luta fratricida entre mendigos, mercenários, mercadores, bufarinheiros e mais pequena arraia, porque os homens se encheram de ambição à vista do ouro. E o Potentado deste mundo, no seu palácio de granito trabalhado como renda, longe dos seus áulicos e camareiros, obstinado num sereno silêncio que alvoroçou os físicos e os confessores, entrou a velar, com os seus olhos de febre, as três oferendas. E desde então, a coroa de espinhos ele a cinge sempre nas audiências marcadas aos cortejos infinitos da Mágoa e da Saudade... O Beijo de Judas ele o recebe sempre na antecâmara dos seus paços íntimos, pela boca dos seus conselheiros, amigos, ministros e irmãos. Mas a taça de ouro maciço e pedras de Bizâncio, a taça de fel, essa ele a guarda avaramente e só lhe sorve o augusto veneno na hora sublime em que o seu coração ulula abrasado como os nômades sedentos do deserto... Florença, 1921.

A mandíbula

Àquela hora, sem que ninguém o pressentisse, o Louco conseguiu sair de casa. O muito decantado e romântico luar das noites medievais aclarava as vielas, lembrando trechos velhos de oleografias vulgares. E o silêncio, largo e tenso da hora, só de quando em quando era apupado pelo vozear, nalguma taberna, de mulheres e petintais. O Louco, serenamente percorreu a rua, dando ao andar a cadência pomposa dos personagens de Shakespeare; chegando ao chafariz bebeu, com a cara a meio dentro d’água como uma rês cansada; depois, limpando com as mangas de veludo os fios de água dos lábios, pôs-se a subir a esmo a escadaria escura de um templo. Nisto, como entre a dupla fileira de olmos bravos passasse, a galope, uma berlinda de fidalgos, o Louco se coseu ao vão da balaustrada, num feitio receoso de cão mendigo. Ao fundo, na larga sombra do templo, três portas se cavavam, rijas, chapeadas e negras como as de uma alcáçova. E, lá para mais longe, a cúpula, como o seio de bronze das guerreiras e bruxas do além-Reno, espargia sob o céu lactescente a invisível grandeza das criptas e túmulos que cobria... O Louco, então, começou a cantar e a subir os degraus de três lances. Lá do alto, vista em conjunto, a cidade parecia um cancro encravado na víscera dos vales; e, como dos cancros e gangrenas, um cheiro malsão subia, despertando a ira de Deus.

O gnomo abriu os braços, circunvagou o olhar pelas muralhas e estradas que isolavam a cidade dos campos, como as ataduras isolam as partes podres das sãs, e gritou três vezes... Logo depois, como o eco lhe atirasse ao rosto a imprecação, tomouse de ódio, sacou o punhal do cíngulo de couro e seguiu, com ímpeto, sobre as lajes, a própria sombra. Mas como essa se obliquasse aos poucos, cuidou que era ele o perseguido e correu para o pórtico... A pouca altura, na rosácea do coro, uma coruja impassível como um enigma, parecia, sobre a orla da pedra o altorelevo funesto e aziago de um in-fólio metálico. Ogivas estreitas rasgavam, como seteiras, a massa dos paredões carcomidos, e as gárgulas, negras e fumarentas, num hibridismo de mulher e dragão, cortadas em penumbra, aspiravam o silêncio, pelas fauces fantásticas... Em plintos quadrangulares, os quatro evangelistas, mesmo à entrada, sustentavam o Evangelho, guardados por monstros dóceis. O Louco despiu o capeirote; arrojou o barrete; desceu até os olhos uma espécie de cogula; prendeu melhor, ao cinto de esparto, as camândulas e o bulhão. — Isto mais parece um castelo roqueiro!... — disse, trepando, com agilidade espantosa, ao lanço oriental da mó. Agarrando-se, em seguida, às colunas lavradas de lavores, relevos e bastiães, o gnomo alcançou a ourela da platibanda. Como uma criança em folguedo, correu, ao longo da torre e ao redor da cúpula, resvalando pelas laçarias, cantos, cornijas, voltas e fustes do dédalo. Sempre com o andar grotesco e a expressão desconfiadiça, dobrou o busto sobre o vão da torre, onde pendiam dois sinos, como

cabeças decepadas, e invertidas que, por milagre, cantassem, às vezes... Atirou-se às cordas... Com o baque houve um repentino clangor, uma exclamação bárbara que se alongou em onda quase líquida, acordando meio povo, lá embaixo, no triângulo amarelento dos quarteirões quietos... O corpo do energúmeno deslizou pelo espaço, mãos, busto e pés escorregando pela dupla corda... Embaixo, ainda tonto da queda e da vertigem, numa meia náusea, o estupor cambaleou de encontro à concha do batistério; mas logo, a luz violeta do alampadário, em frente ao sacrário, numa capela mural, o despertou do marasmo... Avançou... Estacou, fixando o teto; seguiu; voltou atrás... Não compreendeu bem o que aquilo era... Pilastras delgadas como troncos de palmeira dividiam o recinto em três. E a nave, àquela hora, era suntuosa de silêncio... Ao nascente, havia claustros, um pátio, e muito luar... Da outra banda, na treva dos paredões, santos de pedra, em calmo conclave, fitavam o vácuo... O Louco, cosendo-se aos assentos de carvalho do capítulo, topou, subitamente, sob um dossel negro, com uma urna de mármore; era um túmulo real... Parou. Tocou a pedra. Dois leões de pórfiro sustentavam a urna cujo fecho era de jaspe, com garras reluzentes de alabastro... E sobre a lousa, pousava uma coroa cristã. Mais abaixo, outros túmulos se estendiam. Eram de príncipes, de cardeais, de heróis, de santos, de infantas e de poetas épicos... E lembravam, sob a meia treva do zimbório, vasos enormes que, não se sabe por quê, alguém houvesse enchido de pó!!... Inscrições latinas celebravam a realeza, a piedade, o valor, a

mansidão, a glória e o gênio da raça... Por fora eram vasos riquíssimos, de muito lavor, talhados numa só peça... Por dentro eram lisos, tinham camadas de chumbo, de carvalho, de cetim e de cinza... O Louco franziu o cenho... Disse coisas sem nexo... Esboçou um sorriso de desdém e, tomando uma atitude real e heroica de santo e de épico, deu três voltas solenes ao redor dos túmulos. — Muito me apraz voltar ao regaço da minha estirpe!... — exclamou, acompanhando a voz com a mão em copa. E calmo, soberbo, hercúleo, quase com naturalidade, apoiou as mãos ambas ao bordo do tampo de jaspe do mausoléu real. A pedra não obedeceu ao esforço. O gnomo então, o rosto congestionado, com a força de um touro, servindo-se das mãos e do ombro, começou a vencer... a vencer, porque, aos poucos, a pedra rangeu, desentalhou as bordas, as juntas, os frisos e escancarou a eternidade aos olhos do plebeu... Mas, negando-se ao sacrilégio, repentinamente o bloco cedeu de novo, e de novo tentou encaixarse sobre o mistério... Nesse hiato de tempo o energúmeno tinha baixado a cabeça, para a profanação... Houve, então qualquer coisa horrível, pois os dominicanos, a arraia-miúda, o fidalgo de um solar fronteiro, os aguazis e os lagareiros que atenderam aos sinos só ao romper do dia puderam soltar da estupenda e augusta mandíbula de pedra, um homem vestido de veludo e sangue, em cuja cabeça triturada os ossos dançavam como seixos dentro de um saco... Bayonne, 1920.

A andorinha crucificada

Nessa manhã de outono melancólico, o Príncipe, apertando contra o brial a espada generosa, desceu dos píncaros de basalto onde o castelo luzia como um São Graal precioso. Depois, de novo erguida a levadiça, com o seu cortejo fiel de ricos-homens, cavaleiros, donzéis, monges, alfaqueques, peões, almogáraves, mendigos e até leprosos, quase um exército místico em cuja reçaga seguiam carros, rocins, azêmolas e andas carregando uchotes, arcas, alforjes, lambéis, colgaduras, cafis, almadraques, alparavazes, marlotas, pelotes, armas e trigo, sob o vozerio dos coudéis e eguariços, desceu, caminho de longínquos condados, em missão de guerra e amor. Então a infanta, tomada de saudades, toda vestida de longo veludo litúrgico, subiu à torre albarrã, debruçou-se sobre a açoteia, e estendeu os suavíssimos braços em direção da estrada que as oliveiras entristeciam... E começou a chorar vendo o cortejo estranho. O seu BemAmado senhor à frente dos condes e dignatários, com o guião azul esquartelado erguido, luzindo, ao sol convalescente. E almafres, arneses, fains, ascumas, virotões, gorguzes, adagas, loudéis de sirgo, solhas, balsões, estandartes com caldeiros, falcões e motes ousados, dos cavaleiros e infanções, misturados aos capelinas, cossoletes, cendais, samarras, estamenhas, jórneas e cogulas dos frades, labrostes, mendigos e crianças enchiam as estevas e

adarços do campo, junto a estrada, dum insigne colorido, como nos cenários das epopeias. Nas salas e parques, os mômaros e os truões, com violas e bandurras, doneando airosamente, pretenderam suavizar a mágoa da infanta. Os cisnes, os pavões, os galgos e os açores amestrados, redobraram de amoroso zelo, enchendo de jovial alarido os pátios, os lagos, os claustros, as câmaras e até mesmo os ergástulos do Paço. Mas, à medida que, em lufadas tristes de funeral humilde, as folhas amarelentas iam caindo sobre o mosaico dos balcões rendilhados, a infanta começava a enlouquecer serenamente... Franzina e loura, as duas tranças coleando entre os seios castos, toda de azul-solferino desde o colo aos chapins, numa túnica de grecisco, pelas galerias e terraços, desde a capela ao pavilhão de falcoaria, a louca, num feitio estático e sonâmbulo de andar de ave aquática, ora sorrindo mansamente e, ora acendendo um ódio bizarro no rosto de porcelana viva, começou a falar, em tom de balada palaciana, que o seu esposo e senhor, como um cavaleiro de São Graal, indo travar peleja em longes liças, por lá se perdera, como as andorinhas de Languedoc, que, às vezes, fugindo para os mares da Sicília não tornam mais ao bendito beiral nativo... À noite, sob o céu polvilhado de astros poeirentos, sob a piedade das coisas mudas, desde a larga ponte levadiça até o adro dos túmulos de mármore, a infanta, de olhos estagnados como a tona dos marnéis, arrastando a cauda das roupagens suaves, o dorso nervoso, a cintura móvel, a escarcela tintilante, o quadril coleante, com o seu bobo corcunda, ao lado, tangendo a mandolina estridente, falava do seu bem-amado que, numa manhã de

nevoeiros plúmbeos, se fora vestido de aço, num grande murzelo colgado de panos roxos com uma grande flor-de-lis ao centro... E a lua, da cor pálida das hóstias, como uma aia nutriz, muito boa e muito piedosa, seguia sempre a louca... Não se sabe por que o príncipe nunca mais voltou ao seu castelo... Os ricos-homens, varões dos burgos talvez morressem nas investidas. Os cavaleiros, vestidos de escamas de aço, talvez se prendessem aos encantos das donas daquelas terras distantes... Os donzéis, talvez postulassem, em abadias, para vestir o hábito e cingir o gládio das Ordens... Os pajens talvez seguissem valorosos amos... Os mendigos, de samarras rotas e estamenhas sujas, talvez rojassem as chagas e a humildade nos degraus das estalagens caridosas. Os monges, as cogulas sobre o rosto, talvez peregrinassem pelas vielas e congostas e betesgas, nas arribas do mar longínquo... Então, cada vez mais, a infanta, no seu dulcíssimo delírio, começou a percorrer as salas d’armas, as bibliotecas e as alfurjas do castelo sinistro, chorando como as doces ovelhas a quem roubam as crias. Mas, ao findar o outono, quando maiores se estenderam as névoas pelo vale, quando os plátanos, os freixos, os choupos e os castanheiros de todo abanaram os galhos nus, aconteceu que um dia, na hora malva de um crepúsculo ansioso, inesperadamente, uma andorinha muito meiga atravessou a ogiva, bateu as asas, de encontro ao vitral tríptico, tonteou e caiu no genuflexório de carvalho da cela da Infanta... A louca tomou a andorinha, toda azul e macia, entre as mãos belíssimas de mártir...

Nesse tempo todas as andorinhas deviam, em colônias tímidas, estar veraneando em terras de África, lá para o sul, além do Mediterrâneo, no beiral escuro dos aduares e cabildas dos agarenos... Por isso a infanta, na sua ideia brumosa, cuidou que aquela devia ser a alma dócil e saudosa do príncipe... Riu, deu longas gargalhadas, olhando-lhe os olhinhos vivos, o peito suave, as asas elegantes, o bico em forma de galera diminuta como os palandrias do mar Egeu. O coração da mensageira pulsava sob as penas de um modo tal que o seu rumor lembrava uma concha dos mares interiores... A louca, teve um sobressalto. Baixou as pálpebras violáceas, mirou em seguida um crucifixo de ébano na tristeza de um altar de linho. Riu de novo; ficou séria. Quis chorar. Encarou a andorinha... Ah! Era ele... era bem ele, decerto: aquele coração era o seu... Passeou pela galeria longo tempo acariciando o mimoso entezinho... Embalde emissários, almocadens, uns por dedicação, outros ao preço de zagalotes, maravedis, arcas flamengas de tecidos e promessas de sesmarias, despindo os gibões de guardalates e apertando a musculatura heroica e mercenária nos arneses, coxotes, ferragoulos, bacinetes, avambraços e viseiras, com lorigas, alfanjes e espadas tudescas, derreados no arção das selas tavarenhas, em nucelos, hacaneias, facas e ginetes, de burgo em burgo, de terra em terra, lendo membranáceos avisos em letra tabelioa, a entrada de cidades e condados, desde a Liga das Cem Cidades, atravessando Mogúncia, o Palatinado, Brandeburgo, os castelos da Dieta, até Frankfurt, desde a Flandres, o Brabante, a Ilha de França, o Artois, a Turíngia, os Alpes, até a Nêustria e a

Borgonha, desde Savoia, o Vêneto até Nápoles e o Oriente, em cavalgadas contínuas através de florestas e almuinhas, uns, outros visitando portos de Espanha, Portugal e Algarve, e em bergantins e caravelas, longos meses a bordo, encostados às gáveas, bastardas, burdas, procuraram o Infante que, dizem códices monacais, seguira de Clermont-Ferrand para a cruzada, ao lado de Godofredo. Embalde voltaram, rotos, trôpegos, sem saber novas, apenas trazendo de príncipes e papas, joias de Airão, azabas de pérolas, axorcas e oferendas toscanas, tendo até aprendido dialetos aljamias e algaravias pelas serras que atravessavam. Falou-lhe da saudade com grande eloquência... Falou-lhe do amor com grande carinho... Perguntou-lhe que terras o tinham arredado do seu principado incomparável, onde os vales, as serras, os rios, as searas, os burgos, tudo parecia dom de Deus... Eis, porém, que a andorinha entrou a debater as asas, com fúria, espaventosamente, forçando os dedos que a apertavam a uma flexão irosa. Então a infanta, com os olhos marejando d’água, o rosto oval cheio de martírio, a boca semiaberta, as narinas nervosas, teimou em prender a andorinha que cada vez mais se enrolava na polpa das mãos com intento de liberdade. Enraiveceu-se a infanta. Queria, pois, deixá-la, assim, esse coração por quem perdera a serena razão?! Teimava, pois, em voltar ao destino aventureiro dos outros condados esse príncipe azul de roupagens macias e tépidas?!... Ousava pois tentar voo embora dez dedos nervosos o prendessem na teia de um carinho mansíssimo!... Era pois um réptil asqueroso o que ela cuidava ser uma ave do céu?!...

Prendeu então na mão esquerda a andorinha irrequieta, caminhou até a grande arca da câmara. Abriu o fecho, escancarou o grande cofre entalhado de marfim. Procurou o estojo de ouro, bizantino. E, com maldoso prazer, quase voluptuosamente escolheu três alfinetes finíssimos com estranhas cabeças de esmeralda, opala e topázio... Abriu o Livro de Horas, diante da janela. O ar, lá fora, glacial e fino enchia de tristeza os largos gramados, os repuxos e as estátuas de divindades nuas... O funeral das folhas continuava, sob as lufadas plangentes do vento... Das muralhas e rocas dos cubelos escorria o inverno recém-chegado. A vista mal distinguia as coutadas de caça, no declive sensual das colinas. Dos fossos, ao redor das alas negrejantes do muro de paralelogramos cheios de névoa, subia uma tênue fumaça: a alma da água sofrendo... O céu baixo, côncavo, como uma tiara de catedral imensa, predispunha ao recolhimento das grandes melancolias. Muito, muito mais triste que a natureza era a alma da Infanta, quando, sobre o missal austero, abriu as asas da andorinha, cravando na nervura tênue, entre o osso delicado e a carne rósea um alfinete pontiagudo, assim, assim, lentamente... Muito mais triste que o céu e que o inverno, era o olhar da Louca quando, sobre o madeiro, juntando os pés trêmulos da avezinha, cruzando-os um sobre o outro, os perfurou, inclinando devagar... devagar, o terceiro alfinete de ouro, até cravá-lo na fibra do missal, assim... A andorinha crucificada começou então, na sua rudimentar linguagem, à maneira dum canto, em suaves queixumes, a pedir

misericórdia. — Meu pobre e amantíssimo Jesus!... Meu pobre Jesus!... Pôs-se então a andorinha azul, de asas abertas e pequenos pés cruzados, a olhar tristemente os olhos da Louca. Parecia lembrar-se do ninho na torre da catedral gótica, lá, entre as gárgulas híbridas e as nuvens, perto dum grande sino que às vezes, num delírio bizarro entrava a badalar, a badalar, com grandes lágrimas de som sobre a cidade que os invasores pilhavam, no refúgio da noite propícia... Parecia lembrar-se das grandes viagens, pelo céu da Provença, e do Delfinado, sobre os portos da Itália sagrada, em revoadas enormes, entre a colônia amiga, fugindo ao frio, buscando o litoral do Egito adusto. E, crucificada, com o corpo estendido sobre o missal austero, volvia dum lado e doutro a cabecinha airosa, a procurar o segredo, a razão daquele glorioso martírio que, entre os homens tinha divinizado um deles... Diante dela a infanta, toda de brocado verde, rezava no Livro de Horas, grandes versículos latinos, soletrando com dificuldade as palavras litúrgicas. O Bobo corcunda, com um saio de guizos, chocalhos e crótalos, bailava como um energúmeno, arranhando com as unhas aduncas a bandurra de Damasco. Donas, cuvilheiras, aias, um velho conde de barbas de Moisés, e um tímido frade de maneiras dúcteis, atrás dum tabuleiro de xadrez, olhavam a cena, com estupor. Veio a noite. Na hora nona, quando a treva baixou aos recôncavos do castelo, a andorinha, mártir e imaculada morreu... Pouco a pouco o leve corpo esfriou... A infanta desprendeu então os três alfinetes de ouro com cabecinhas de esmeralda, opala e

topázio... O corpo frio se encarquilhou, tomando mais ou menos a forma e o tamanho dum coração que muito tivesse sofrido neste vale de lágrimas... Pediu então a Louca, em altos brados imperativos, que lhe trouxessem um tumulozinho, lindo como um sacrário e rico como um cofre, para depor o cadáver. Obedeceram aos seus rogos. O mordomo e as donatas trouxeram um cofre de um palmo, forrado de cetim e rendas flamengas. O frade benzeu o pequeno mausoléu. As aias deitaramlhe perfumes e pétalas de goivos. O velho conde de barbas bíblicas acariciou o corpo, ungiu-o com bálsamos olorosos, fechou de encontro ao peito branco as asas sangrentas, beijou a cabeça mimosa e fria, e depôs a andorinha no estojo de ouro, marfim e pedras preciosas. A Louca fechou o cofre. Selou-o com o seu firmal de cabeleira, para que ninguém doravante profanasse aquele mártir que sendo um Príncipe de sangue real, muito amado e muito ingrato, agora ia dormir na nave da capela, entre os antepassados heroicos, sob a forma fantástica e delicada duma andorinha azul... Esguia, solene, arrastando pelos tapetes e escadarias a cauda farfalhante da túnica de ciclatão de seda, as mãos em forma de concha, a Louca seguiu, a passo, lentamente, seguida pelas aias, donas, cuvilheiras, servos e crianças, até o altar da capela, no fundo da ala longínqua do castelo cimeiro... Lá fora no pinhal, um estribeiro com a sua cornamusa bucólica chamava os cães à caça... E a Louca seguiu... O cofre lhe tremia nos dedos afilados... As lágrimas, grossas e quentes, duas a duas, roçavam a porcelana viva do seu rosto belíssimo... escorrendo-lhe pelo colo de garça...

O cortejo atravessou os salões onde os supedâneos, dosséis, colgaduras e tábuas de mosaico, as chaminés e as pêndulas exalavam guerras e glórias; atravessou as galerias de móveis seculares, pesados e tristes; atravessou as câmaras de dosséis graves e oratórios brancos: chegou, enfim, à capela onde o órgão espargia toda a tristeza estrangulante duma música sublime... Na nave, os túmulos brilhavam... A Louca depôs num degrau, diante dum sarcófago de calcário branco, o estojo de ouro, marfim e pedras preciosas. Dois candelabros dramatizavam o recinto... Depois, cândida, serena, de olhar bendito e ingênuo, fixando o cortejo caridoso que a acompanhara na sua loucura tácita, num tom de balada palaciana, explicou que o seu Esposo e Senhor, como um cavaleiro de São Graal, indo travar peleja em longes liças por lá se perdera... mas, como as andorinhas do Languedoc que, às vezes fugindo para os mares da Sicília se tomam de saudade e voltam, regressara ao seu castelo num túmulo de glória, sob o pranto sincero e estrangulado dos seus ricos-homens, cavaleiros, infanções, donzéis, monges, mendigos, coudéis, arrabileiros, menestréis e leprosos. Paris, 1920.

A princesa Salomé

— O prato mais esquisito do festim foi a cabeça do Batista!... — exclamou o escravo, dirigindo-se com o cântaro de cobre para a piscina. Os outros o ouviram taciturnos e cabisbaixos... Sentindo, então, o silêncio alargar a indisposição pelos demais servos, o escravo continuou: — Nem os veios d’água de Hesebon choraram tanto como os olhos da princesa Salomé... — Em verdade os olhos da princesa Salomé são duas fontes suavíssimas que retratam o céu das doze tribos... — murmurou um estrangeiro coberto de pó, dando às palavras uma entoação de salmo. — Tu conheceste o Batista nas ribas do Jordão?... Ele apascentava um rebanho felpudo e deitava a água santa na cabeleira dos peregrinos... O estrangeiro respondeu: — Eu conheci Iokanaan... Tinha o porte dos ninivitas; usava hábitos primitivos e morava no deserto, como uma fera dócil... Os escravos cercaram o peregrino. Então, com a serena voz entrecortada, o peregrino começou a narrar prodígios e maravilhas do deserto... — Naquele tempo, a multidão vinha de longe, abandonava as portas das cidades, desde as faldas do Líbano até às fronteiras

dos Moabitas e vinha dobrar o joelho sob a bênção do filho de Izabel... E ele, com uma concha sonora, derramava, na fronte e nas espáduas de cada um, a milagrosa bem-aventurança... Depois, com a voz cavernosa das grutas reboantes, Iokanaan pregava contra a dissolução da família de Herodes... Foi assim que o Tetrarca, exasperado, o mandou prender nos ergástulos de Maqueronte... Depois, pela voz do povo, eu soube o que todos sabem... A princesa Salomé bailou... E, em prêmio, recebeu, numa bandeja de ouro, incrustada de pedras preciosas, a cabeça do profeta. — O prato mais esquisito do festim foi a cabeça do Batista!... — repetiu o escravo... Houve um silêncio profundo, capaz de vergar espáduas... Os homens emborcaram as âmbulas e hytons na toalha esmeraldina da piscina plácida... Depois, o bando voltou para o castelo de Maqueronte... Amanhecia... E, para as bandas do deserto, sob o céu longínquo da Arábia árida, uma larga cor de incêndio, com raios violetas, subia, toldando o horizonte adusto. Em diagonal, como um recorte de sombra, uma caravana atravessava o confim solitário da perspectiva bíblica... Os homens entraram num caminho de tamareiras esqueléticas. Pelo portal bárbaro da muralha bruta atravessaram o pátio, sumiram... Os guardas, ajaezados à maneira romano-hebraica, jogavam os dados, sobre um escabelo. Camelos, com palanquins entre as corcovas, esperavam os convivas retardados, e um mendigo lázaro, com chagas no lugar dos olhos, enaltecia, num místico clamor solitário, um certo Deus de Nazaré, que curava os cegos, fazia andar os coxos e ressuscitava os mortos.

Foi mais ou menos nessa hora prima que um homem, com aparência de cansaço, ofegante, coberto de pó, com as sandálias rotas, o paludamento esburacado, apoiado a um bastão, inquiriu qualquer coisa dos guardas... Em seguida, com um gesto franco de aborrecimento, falou, erguendo a voz num brado angustioso: — Dizei, porventura já deceparam a cabeça ao Batista?!... — Já; esta noite... Foi, depois, levada numa patena exótica para a câmara da princesa Salomé... E lá ainda deve estar... O corpo do embusteiro jaz sobre a masmorra. Os cães de raça de Herodíades o roerão até os ossos... E o resto, ossos, carne e alma do barbudo profeta, tudo será atirado ao poço maldito, no oásis... O homem tornou a perguntar, desvairado: — Já deceparam a cabeça do Batista?!... Os guardas, então o expulsaram. Ele, ofegante, com um dulçor piedoso no olhar, pediu misericórdia, rojou de joelhos, implorou paciência e continuou com a voz molhada de pranto: — Tendes a certeza de que já levaram a cabeça de João Batista diante de Salomé?!... Tendes a certeza? Um centurião, com ar de mofa, respondeu: — Inda não; devem levá-la em breve... Será uma oferenda opima... Dizem que a princesa ama o pregador... E, louca como é, passará o dia nos seus coxins e tapeçarias rolando, como uma pantera, com a cabeça hirsuta do profeta entre as mãos e a boca... Então o homem de sandálias rotas e vestes esburacadas tirou do cíngulo uma bolsa recheada de sestércios, abriu-a; dividiu as moedas, os ícones e os anéis entre os dois guardiões; tirou do vão da túnica quatro blocos de ouro de Ganges, colares fenícios e

pedras preciosas amarradas num fio de seda trácia... Deu tudo aos dois homens; e, ofegante, com as mãos erguidas, quase de joelhos, soluçando, com lampejos nos olhos suaves, implorou: — Pelo que tendes de mais caro no mundo... Eu amo a princesa Salomé!!! Matai-me, vós!... Deixei crescer a barba para melhor subterfúgio... Cortai-me, vós caridosamente a cabeça... e, pelo que tendes de mais caro no mundo, pelo amor de Jeová, substitui a cabeça do Batista pela minha pobre cabeça... Rio, 1920.

O TRISTE EPIGRAMA

Ação no Pireu — Era pagã

I

Ele costuma seguir e importunar os estrangeiros ao longo do cais... Quando os estrangeiros lhe dão dracmas, ele corre às tabernas e bebe até cair de bruços sobre o basalto. E todo o seu corpo se agita e se alvoroça como um terreno árido beneficiado por uma chuva bendita... Quando as dracmas e os trióbolos acabam, ele se vai postar, humildemente, à sombra dos pórticos e à amurada do Farol, como um cão à espera do amo. E, dentro da túnica estreita e rota, o seu corpo magro e trigueiro lembra uma múmia enrolada em faixas e ataduras... Ele já não sabe andar, porque o vinho, desde muito, lhe deu esse ar titubeante de criança... E é comum os marujos do cais e a malta das vielas zombarem do seu andar grotesco, quando ele passa, mostrando a todos, como uma chaga, a miséria hedionda da sua inconsciência... Ele recebe os motejos da plebe, com um claro sorriso de idiotia dolorosa, e, só muito raramente, os seus lábios tortos proferem blasfêmias sórdidas... Quando alguma frota arriba ao Pireu, ele se toma de amizades com os timoneiros e abusa da frívola liberalidade dos marujos. E, à guisa de recompensa, com feliz habilidade, depois, os

leva a outras tavernas do bairro trácio, onde há abundância de judias e efebos... E, às vezes, em festivais de mercadores e de nobres, os hierodulos o expulsam a bastonadas do recinto, porque, sevil como um gato, ele roça a túnica de linho encardido pelos triclínios e gomis, implorando, com um gesto de sofista, um trago de Samos ou de Quios. À noite, quando, lembrando uma comitiva de bárbaros, os carros dos vinhateiros entram na cidade, ele recolhe das sarjetas, no côncavo das mãos, a água glauca do vinho que se desperdiça; e, se a sede é muita, deita-se de borco e sorve, com roncos impetuosos, a toalha plácida dos sobejos... Ele vive dentro da multidão, pelas praças e dédalos, pelos pórticos e escadarias, dia e noite, ao sol e à chuva, sem rumo, como esses barcos caducos que desconhecem a saudade dos portos e se acostumam ao nostálgico desgarramento do mar alto. Embora os homens o conheçam, ele desconhece todos os homens. Quando abre as pálpebras é para olhar para si próprio. Quando fala, fala sozinho, diz coisas que evidentemente são para os seus próprios ouvidos, pois ninguém ainda entendeu o sentido das suas nênias. Ele não conhece o tempo porque parece que o tempo o esqueceu, muito embora o vinho, na sua garganta, tenha um sussurro lento de clepsidra... Ele não olha o sol porque o sol lhe projeta no chão uma sombra disforme e monstruosa, como um aborto exageradamente impressionante... E isso lhe causa vivo rancor.

Ele não olha a lua, porque quando a lua embranquece os mármores e cariátides das cornijas e platibandas, os seus olhos já não veem, pois, embora muito abertos e esgazeados, são como aquelas pedras foscas, meio azuis, que perdem o brilho quando perto se acende alguma luz. E, todavia, ele parece compreender que o seu destino é o destino dos cães e dos mendigos, visto como, nos intervalos lúcidos, ele chora, esfregando os olhos diante da estátua criselefantina de Hermes Trismegisto. Embora isso vos conturbe na vossa alegria, eu vos declaro que esses intervalos lúcidos duram pouco tempo e são raros como as chuvas no deserto... Instintivamente a sede, a lava se reacende... E ele pede, implora, grita, soluça, agride, rouba; e, quando tem nas mãos um odre de vinho, mesmo saburrento, toda a sua alma, como um verniz, lhe sobe ao rosto... E o vinho, sussurrante, lhe escorre pela garganta como a água do tempo pelo funil das clepsidras... Depois, como um barco caduco que desconhecesse a saudade dos portos, ele se aventura pelo oceano marulhante da multidão...

II

Apesar de tudo eu sei que na Grécia inteira, no mundo inteiro, a humanidade quase toda bebe... Os ricos, os nobres, os patrícios, os mercadores e as cortesãs bebem em copas de ouro e prata. Mas os pobres, a plebe, os mercenários, os marujos, os hoplitas e as prostitutas bebem em odres de argila e cobre... Para os ricos o vinho provém de vindimas opulentas, festejadas sob a tutela de Dioniso, o desejo de Baco e a furtiva assistência das raposas matreiras... Para os pobres o vinho provém de vindimas miseráveis, festejadas em vales áridos, entre urzes e peregrinos que desconhecem o clangor argentino do claro evoé!... Para uns, vinho guardado e envelhecido em subterrâneos aprazíveis. Para outros, vinho acumulado ao fundo das tavernas, tendo, como os pântanos e piscinas, a vasa de impurezas que, às vezes, do fundo sobe à tona... Uns o bebem em festejos, orgias, jogos, amores e loucuras estravagantes... Outros, porém, quase todos, o bebem por uma sede estranha, sinistra, talvez porque ele tenha a cor rubra do sangue humano ou a alvura transparente de certos venenos feminis...

Quase sempre o vinho, com a sua atmosfera de sonhos e rondas, vem abafar o recinto que o amor abandonou... Quase todo o desgraçado bebe quando não pode achar nas lâminas e nos estiletes o clarão deslumbrante da eternidade... Mas o que nem todos sabem é que, se o vinho entristece os alegres e atenua o anseio dos infelizes, é porque ele tem, ao mesmo tempo, no sabor, a frescura aveludada das cantigas bucólicas dos agricultores e o áspero azedume da canção dolorida dos escravos do lagar... Uns o bebem sem razão alguma... Quase todos, porém, para obrigarem o corpo a seguir paralelamente a dança exótica da alma humana...

III

Ele não conhece os homens porque os homens o desconhecem como homem... E, entanto, ele já viveu, em tempos, quando o vinho, com aquela cor de sangue humano e aquela transparência de veneno mortal, ainda lhe não entrara sorrateiramente pela casa adentro... Quem for feliz atire às ondas o seu anel, para que o olhar dos deuses continue desviado para longe... Quem for feliz prepare as lágrimas para o dia seguinte... E não se muna jamais de bastão e sandálias quem seguir pela vereda da felicidade... porque, ao fim do décimo passo, o caminho será um abismo, ao fundo do qual uma grande voz blasfemará zombando da nossa estupidez... Outrora ele não tinha o andar grotesco, nem o sol lhe projetava no chão uma sombra disforme de aborto... O vulcão das suas entranhas ainda não se abrasara... E ele era qualquer coisa na categoria das coisas... Outrora ele tinha um corpo... e, com o aço dos seus músculos, a multidão, muita vez, nos jogos numídicos, o viu fazer assombros, coroado de louros... Outrora ele tinha alma... E, nos papiros, palimpsestos e inscrições murais, o seu espírito ficou gravado desde Atenas até às colônias magnas, como um sulco luminoso aberto em coralina pela aresta dum diamante...

Outrora ele tinha fortuna... E desprezava, entediado, os seus palácios, mulheres, escravos, quadrigas, adegas e rebanhos... E, embora isto vos conturbe na vossa alegria, eu vos direi, confidencialmente, que esse farrapo humano outrora amou alguém, pois Mirtocleia, a tocadora de flauta, carpideira de cerimônias fúnebres, é sua filha, filha do seu amor...

IV

Mirtocleia tem a beleza macia dos frutos que amadurecem ao sol e ao orvalho nos hortos sagrados... Quando alguém morre, nos bairros ricos, os parentes do morto procuram Mirtocleia. E ela, mais as suas sete amigas, todas vestidas de luto e tristeza, ante as caçoilas aromáticas, à roda do morto, inicia a cerimônia, segundo o rito ancestral. E, à roda do morto que, na sua atitude irônica, olha fixamente o teto da casa, as carpideiras se flagelam chorando alto, descabelando-se, num bailado lúgubre... Quando o ataúde sai a celeuma religiosa cresce de entoação e, ao depois, quando os parentes do morto dadivosamente lhes pagam, Mirtocleia e suas sete amigas voltam para casa, nas portas da cidade, conversando calmamente... As sete carpideiras compram, com o salário, perfumes, viandas, especiarias, sandálias, espelhos e pregos de toucar. Mas Mirtocleia, mal chega à casa, guarda amorosamente as moedas num cofre de ébano, um cofre estranho que mais parece um sarcófago de criança. Nesse pequeno esquife Mirtocleia guarda as suas moedas para o amante que está na guerra. Às vezes, quando segue algum cortejo fúnebre, encontra o pai pelo caminho.

Mas ele não a reconhece porque os seus olhos, embora abertos, estão sempre separados da alma por um estranho nevoeiro. Se ela o acaricia, ele a repele. Se ela o arrasta para casa, ele estrebucha, agarra-se aos varais dos postigos, aos fustes dóricos dos vestíbulos e aos balaústres dos templos... Em casa, deita-se como um fardo abandonado ao próprio peso... E, alta noite, ante a beleza da filha que dorme ao pé, na sua meia nudez alvíssima, ele blasfema, horas e horas, delirando, como os cães que ladram à lua. De manhã, quando sai para se ir postar à beira do molhe, geralmente rouba as moedas do abisso de Mirtocleia...

V

E, todavia, esse farrapo humano amou alguém, pois aquela tocadora de flauta, carpideira de cerimônias fúnebres nos bairros ricos, é sua filha, filha do seu amor... Embora fiqueis conturbados na vossa alegria, sabei que, ontem, o bêbado, ao entrar em casa, ao transpor a porta, cambaleou de encontro aos dois degraus azuis, e caiu grotescamente sobre a lâmpada do vestíbulo pobre, espatifando-a de encontro ao lajedo. E, como viesse a filha, na sua meia nudez, assustada, levantá-lo, ele agarrou-se a ela e, rindo dolorosamente, exclamou, a custo equilibrando o corpo esquálido na aldraba: — Tu és esguia como os punhais e, dia e noite, andas cravada, como um punhal, na minha imaginação... Depois, olhando-lhe os flancos luzidios e o ventre penugento, vendo-a, trêmula, cobrir-se, a esmo, com os dedos espalmados, atirou-lhe três imprecações, como salivadas fétidas sobre a nudez de alabastro... E balançando o corpo, abrindo os braços cabeludos e mostrando os seus dentes tão corroídos de limo como os bojos das trirremes, hirsuto, bestial e hediondo, começou a espumar e a rir, com fios grossos de baba pelas comissuras carnosas da boca amendoada, empastando a barbicha faunesca de mercador...

Cingindo-a, depois, pelo flanco, já a vencia e prostrava sobre o tálamo revolto, urrando como certos lobos da Gália terceira de César. Parecia que o grande crime ia acontecer. Mas, subitamente, mercê dos deuses, como o bêbado se abaixasse para desatar as sandálias, Mirtocleia, erguendo, com ímpeto dobrado, o cofre de ébano, franzindo a face na contorção do golpe, o esboroou de encontro ao crânio luzidio do pai. O bêbado rolou sobre o torso... Perdeu a fisionomia num espasmo horripilante... Depois, quase instantaneamente, caiu com os olhos tortos como duas luzes mortiças desencontradas. Espumou três ou quatro vezes, formando bolhas nos lábios visguentos. E, como um terreno árido, beneficiado por uma chuva benéfica, três ou quatro vezes se agitou num repelão esquisito. Depois morreu... E, pelo lajedo, havia sangue e moedas. E uma substância branca como a polpa de certos frutos, escorria da fenda óssea, tremendo como os bolos dos festins de Catinos. Pelo caminho de ciprestes e marcos de pedra, Mirtocleia saiu a correr, com os dois braços abertos, formando no ar uma cruz hebraica... E o seu pranto durou a noite inteira, através das vias escuras e das sendas rumorosas. Ao vir da madrugada, a tocadora de flauta e as suas sete amigas carpideiras, compuseram o cadáver, sobre o leito. Com água de fonte lavaram-lhe as têmporas e a calva lívida... Ataram-lhe à roda dos cabelos pastosos, à maneira dum turbante hindu, uma enorme atadura azul, porque o crânio do bêbado se fendera como um odre...

O morto, branco como o gesso da casa do escultor Filodemo, tinha apenas de humano a auréola cianótica das olheiras pantanosas. E a boca, muito aberta, mostrando um trecho de treva, parecia exclamar: Oh...

VI

Pelo resto da madrugada houve no cubículo pobre um contínuo murmúrio de flauta e um sereno ressoar de epicédio tristíssimo. Era tão triste o luar que os ciprestes se alongaram para o céu num êxtase, e um enxame de abelhas penetrou no cubículo, doidejou em torno do morto e acabou enxameando na boca estranha, zunindo lá dentro com fúria... Um cheiro feliz de arômatas subia até ao teto de inscrições afrodisíacas. Mas o ébrio permanecia insensível, por isso que, em vida, as aletas do seu nariz disforme só tremiam ao ressaibo das adegas e das infusas. Como o delta de luar que entrava pela porta fugisse aos poucos, a cerimônia fúnebre começou a se movimentar. Os montes rochosos, cor de osso de gigantes, cobriram-se de uma tênue penugem de claridade, lembrando as espáduas de certas pastoras da Trácia remota... No porto, em semicírculo, junto ao promontório oblíquo, o farol, como um olho vazado, erguia a sua inutilidade maciça... No mar, quatro velas encarnadas, com desenhos simbólicos, curvaturas nas popas e largos remos paralelos, saíam para o mistério ousado da Itália longínqua... Íbis estranhas, de colos brancos e asas triangulares, perseguiam a noite que tombava para as bandas de Sagunto e

Zaquintos. —

Vamos

atirá-lo

ao

mar



disse

Mirtocleia.



Guardaremos segredo. Diremos que foi a peregrinar, por aí, além. — E a mão de Mirtocleia esboçou no ar uma forma de taça cheia de fel... Envolveram-no num lençol de linho perfumado de nardo. Ataram aos pés um monolito e prenderam os braços e as pernas em ataduras e apodesmas, para que o morto, nas águas, não tivesse os desengonçamentos de quando andava no mundo... — Nem tu sabes como ficas linda quando choras... — disse uma carpideira a Mirtocleia, vendo-lhe as lágrimas até aos seios. Puseram na destra do morto, no côncavo azulado, a senha de Caronte.

VII

Ao longo do promontório a teoria macabra seguiu entre riólitos abruptos e figueiras malditas. Mirtocleia chorava com suavidade delicadíssima e as sete amigas cantavam, em surdina, qualquer coisa de uma tristeza estrangulante... Chegaram ao cimo da escarpa. Amanhecia. O oriente todo se levantava num incêndio... — É melhor assim. E, numa hora em que o mar, como um grande seio, cheio de melodias, subiu, deitaram-lhe o corpo, como quem despeja a consciência para o esquecimento... — Quando o teu amante vier da guerra aos Medos, tu lhe dirás a verdade. E ele te perdoará, e sereis ambos felizes de invejar... Ela respondeu com as olheiras úmidas de pranto: — As nereidas e os delfins vão zombar de meu pai, lá no oceano, porque era um beberrão pior do que Sileno... — Depois, com as mãos dóceis como cisnes, desfolhou aloendros e pâmpanos sobre a espuma sonora... E voltaram todas para casa, pensativas, como oito sombras de dor... Pelo caminho de riólitos e figueiras bravas, o cortejo das carpideiras, contornando o promontório, desceu até o cais, atravessou a ágora, entrou na perspectiva dúbia dos peristilos, e, lá longe, sob a brancura lantejoulante de Palas Atena, diante da

cornija triangular Parthenon, sumiu num desvão de labirinto da cidade augusta... E, nessa mesma tarde, num enterro nobre no bairro rico, Mirtocleia e as sete carpideiras choraram tanto, com tão sincera angústia e com tão patético atarantamento, mordendo de tal forma as falanges roxas dos dedos, e de tal forma desprendendo a alma em bolhas de soluço pela garganta, que os convivas da cerimônia fúnebre exclamaram todos, depois, quando elas saíram: — Nem sabe essa rapariga como fica linda quando chora!...