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TEOLOGIA NOVO UMA

DO

TESTAMENTO

A

« FR AN RA I K

EM

CANÔNICA

B

SINTÉTICA

TH1ELMAN

E S T E L I V R O F O I E S O R I T O para suprir a necessidade de alunos engajados em um estudo sério do Novo Testamento professores, pastores, estudiosos ou leigos—tanto na orientação teológica de cada livro do Novo Testamento comõ no panorama do Novo Testamento como um todo. Estudar a teologia do Novo Testamento pode ser uma tarefa m uito árdua. Cada um dos vinte e sete livros, escritos por vários autores, tem sua própria nuança e ênfase teológica. Como podemos extrair uma mensagem coerente diante dá diversidade teológica? Frank Thielman apresenta uma teologia do Novo Testamento cuidadosa para responder a essa questão, levando em consideração o âmbito cultural e as. circunstâncias históricas que compreendiam cada livro e o Novo Testamento como um.todo.~Ele examina o conteúdo teológico de cada livro individualmente, mas também em relação ao restante do Novo Testamento. Essa analise é feita, principalmente, no contexto de três unidades teológicas que compõem o Novo Testamento: os evangelhos e Atos, as epístolas Paulinas e as epístolas gerais ou católicas e Apocalipse, Esta abordagem canônica e sintética honra tanto a diversidade teológica dos vários livros como a unidade teológica entre os livros. No final, Thielman apresenta uma visão, teológica unificada do Novo Testamento, ancorado na centralidade de Jesus Cristo.

\

FRANK THIELMAN é Professor Presbiteriano de Novo Testamento da

Beeson D ivinity School, Samford University, Birmingham, Alabama.

TEOLOGIA NOVO

DO

TESTAMENTO

UMA ABORDAGEM

CANÔNICA E SINTÉTICA

Todos que são beneficiados pelo que faço, fiquem certos que sou contra a venda ou troca de todo material disponibilizado por mim, infelizmente depois de postar o material na Internet não tenho o poder de evitar que “alguns aproveitadores tirem vantagem do meu trabalho que é feito sem fins lucrativos e unicamente para edificação do povo de Deus. Criticas e agradecimentos para: mazinhorodrigues(*)yahoo. com. b r Att: Mazinho Rodrigues.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Thielman, Frank Teologia do Novo Testamento: uma abordagem canônica e sintética / Frank Thielman ; tradução Rogério Portella, Helena Aranha. —São Paulo : Shedd Publicações, 2007. Título original: The New Testament Theology : a canonical and synthetic approach Bibliografia. ISBN: 978-85-88315-59-4 1. Bíblia. N.T. - Crítica canônica 2. Bíblia. NT. - Teologia I. Título. 07-5843

CDD- 230.0415

índices para catálogo sistemático: 1. Novo Testamento : Teologia bíblica 230.0415 2. Teologia bíblica : Novo Testamento 230.0415

TEOLOGIA NOVO u m a

A

DO

TESTAMENTO

b o r d a g e m

FRANK

c a n ô n i c a

e

s i n t é t i c a

THIELMAN

Originally published in the U.S.A. under the title: Theology of the New Testament Copyright © 2005 b y F r a n k S. T h ie l m a n Grand Rapids, Michigan Ia Edição - Agosto de 2007 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por S h e d d P u b l ic a ç õ e s L t d a - M

e

Rua São Nazário, 30, Sto Amaro São Paulo-SP - 04741-150 Tel. (011) 5521-1924 Email: [email protected] www.sheddpublicacoes.com.br Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em bajico de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. P rinted in Brazil I Imçresso no Brasil ISBN 978-85-88315-59-4 T

Lena Aranha & Rogério Portella Lena Aranha & Vivian Nunes do Amaral D i a g r a m a ç ã o : Edmilson Frazão Bizerra C a p a : Júlio Carvalho

radução:

R e v is ã o :

Crédito: Mazinho Rodrigues. Doação Exclusiva para: http ://entretextosteologico s.blogs pot. c om.t

A saudosa m em ória d e C alvin T hielm an ÔÍKaiOÇ T£T£À£lCOll£VOÇ*

\ MAZINHO RODRIGUES justo aperfeiçoado] alusão ao texto de Hebreus 12.23. [N. doT.]

Sumário

P r e f á c i o ............................................................................................................................................................................9 A

b r e v i a t u r a s ............................................................................................................................................................... 1 5

INTRODUÇÃO 1. Teologia do Novo Testamento: questões básicas..............................................23 PARTE 1 O S EVANGELHOS E A T O S

2. A tenacidade e a importância do evangelho quádruplo..................................53 3. Marcos: a morte do Filho de Deus como boas novas...................................... 69 4. Mateus: vinho novo em vasilha de couro velha........................................... 103 5. Lucas—Atos: o lugar dos cristãos no curso da história da salvação........ 135 6. João: fé em Jesus como meio de vida eterna ...................................... 181 7. Quatro testemunhas diferentes do evangelho único de Jesus C risto...... 217 PARTE 2 As

C a r t a s p a u li n a s

8. A coerência e o cerne da teologia de Paulo .................................................. 261 9. lTessalonicenses: manutenção da fé, da esperança e do amor em meio ao sofrimento................................................................................................ 279 10. 2Tessalonicenses: perseverança a despeito da perseguição e do falso ensino......................................................................................................297 11. Gálatas: a graça de Deus e a verdade do Evangelho.................................... 311

12. ICoríntios: um pedido de paz, santidade e fidelidade ...............................327 13. Filipenses: a importância do curso do Evangelho ...................................... 365 14. 2Coríntios: poder aperfeiçoado na fraqueza...................................................385 15- Romanos: o Evangelho da justiça de Deus ................................................... 407 16. Colossenses: Cristo preeminente no cosmo e na história...........................447 17. Filemom: a prática da reconciliação..................................................................461 18. Efésios: a unidade da igreja e do cosmo em C risto......................................469 19. lTimóteo: a igreja como pilar e fundamento da verdade................... 487 20. Tito: conhecer a Deus, praticar o bem e tornar a salvação atrativa....... 507 21. 2Timóteo: fidelidade para com o Evangelho.................................................515 22. Ênfases comuns e convicções centrais das cartas de Paulo.........................525 PARTE 3 C

a r t a s n ã o - p a u l in a s e

A

p o c a l ip s e d e

J o ão

23. Unidade nas cartas não-paulinas e no Apocalipse......................................577 24. Tiago: a sabedoria da vida indivisa...................................................................593 25- Judas: lutar pela fé contra a perversão da graça divina................................613 26. 2Pedro: ética e escatologia................................................................................... 625 27. ljoão: a verdade sobre Jesus, sua morte e o mandamento para amar ..................................................................................................................... 643 28. 2João: evitar os que abandonaram a verdade e o am or............................... 667 29. 3João: trabalhar unido com a verdade.............................................................675 30. IPedro: sofrer como cristão................................................................................ 685 31. Hebreus: Jesus, o aperfeiçoador da fé e guia dos fiéis.................................. 705 32. Apocalipse: significado em meio da opressão................................................ 739 33. Colisão de cosmovisões de Hebreus a Apocalipse......................................785 CONCLUSÃO 34. Unidade teológica do Novo Testamento..................................................... 819 Obras citadas................................................................................................................. 871

Prefácio

Escrevi este livro por duas razões: para prestar um serviço e resolver uma questão. Espero que o livro supra as necessidades dos estudantes sinceros do Novo Testamento (NT) com uma sucinta orientação teológica para cada um dos 27 textos. Também espero ter argumentado de maneira convincente que, apesar de cada texto estar enraizado em seu ambiente cultural, todos os textos, lidos em conjunto, estão teologicamente unidos. No primeiro momento, portanto, espero que o livro forneça uma introdução teológica aos textos do NT interessante ao leitor, quer seja estudante de um curso básico sobre o evangelho de João, quer seja pastor principiando uma série de sermões sobre Romanos, quer seja professor preparando um curso sobre o Apocalipse. No segundo momento, espero que o livro seja útil para o leitor obter dele a visão geral dos interesses teológicos do NT, ao perceber sua coerência teológica e apreciar a natureza convincente de sua cosmovisao. M inha abordagem do assunto se encontra em algum ponto entre quem opi­ na que a teologia do NT é constituída basicamente de histórias teológicas do cristianismo primitivo e os que se apegam às preocupações teológicas do cânon do NT.1 Tentei evitar as críticas de W illiam Wrede que afirmou que a mera dis­ cussão sobre as afirmações do texto do NT a respeito de uma variedade de tópicos corria o perigo de desarraigá-los de sua cultura, de sua política e das tradições religiosas que o ligavam à vida real. Mas também levei a sério a perspectiva de Adolf Schlatter, e de vários outros, de que não é irracional nem exorbitante ler os textos em conjunto — como eles desejam ser lidos — sob a perspectiva da fé cristã que os reconhece por Palavra de Deus. Tentei, portanto, produzir uma teo­ logia do NT, e não uma história teológica do cristianismo primitivo; busquei

'V. e.g., Klaus Berger, Theologiegeschichte des Urchristentums. Theologie des Neuen Testaments. 2. ed. (Tübingen:: Francke, 1995), e Georg Strecker, Theology o f the New Testament, ed. e concluído por Friedrich Wilhelm Horn (New York: Walter de Gruyter/Louisville. Kv.: Westminster John Knox, 2000).

também descrever as preocupações teológicas de cada livro, e de todo o NT, pela perspectiva dos tempos e das circunstâncias nos quais cada texto foi escrito. M inha abordagem também se encontra em algum ponto entre as pessoas que escreveram teologias sintéticas nas quais os vários autores do NT dialogam cons­ tantemente entre si, e aqueles cujos estudos teológicos se concentram apenas em um autor ou texto.2 Procurei fazer as duas coisas. Na tentativa de demonstrar a unidade teológica fundamental do texto do NT, lidei com as três maiores divisões do cânon como unidades teológicas. Nos capítulos introdutórios de cada unidade, enca­ minho o leitor à questão principal que afeta a descrição teológica das três seções, quer seja a questão do Evangelho quádruplo, quer seja a coerência e a centralidade da teologia de Paulo, quer seja o “catolicismo primitivo” do NT. Também escrevi um capítulo sintético para concluir as três maiores seções nas quais tentei fazer os diversos textos dialogarem entre si. No capítulo final do livro, traço um breve resumo da unidade teológica fundamental que permeia o NT. Para dar a devida atenção às contingências históricas de cada texto e oferecer a cada um seu espaço teológico, dediquei a todos os documentos do N T um capítulo próprio. O fantasma da coerência obrigou-me a separar em capítulos diferentes Filemom, Tito e 3João, por exemplo, mas o mesmo não aconteceu no caso de Atos e Lucas, pela minha crença de que Atos dos Apóstolos foi escrito junto com o evangelho — uma espécie de obra em dois volumes. A questão sobre como dispor os capítulos em cada documento do NT tornouse parte do problema. Parecia possível escolher dois caminhos: eu poderia seguir a ordem estritamente cronológica, começando pelas cartas paulinas e finalizando com a literatura joanina. Todavia, a cronologia textual do NT é incerta, e posicionar o evangelho de João em um lugar anterior ao Apocalipse, 2Timóteo ou 2Pedro, por exemplo, parecia quase arbitrário. Como alternativa, eu poderia seguir a ordem textual canônica encontrada na maior parte das versões bíblicas modernas, en­ tretanto, esse ato pareceria privilegiar a referida ordem em detrimento das se­ qüências igualmente sensatas e antigas dos textos encontrados em algumas das edições mais antigas do NT. Por fim, decidi seguir, a grosso m odo, a abordagem cronológica, não tanto pela suposição de que os próprios textos sejam a história do cristianismo prim iti­ vo. Portanto, comecei pelo Jesus conhecido a partir dos quatro evangelhos; em seguida, passo para os textos de Paulo e, depois, para os documentos não-paulinos, respectivos aos problemas causados por heresias e pela perseguição da igreja incipiente. Nas duas primeiras seções, nas quais a cronologia relativa dos textos pode ser mais que um palpite, alistei-os segundo a ordem em que opino terem sido compostos. 2A respeito da abordagem sintética, v. e.g., G. B. Caird, New Testament Theobgy, ed. e concluída por L. D. Hurst (Oxford: Oxford University Press, 1994), e François Vouga, Une théologie du Nouveau Testament (Le Monde de la Bible 43; Genève: Labor et Fides, 2001), e para o livro exclusivamente ou a abordagem do autor, v. e.g., os volumes da série “New Testament Theology”, ed. James D. G. Dunn (Cambridge: Cambridge University Press, 1991-2003).

* No caso dos evangelhos, considero Marcos o primeiro; Mateus e Lucas se valeram de Marcos, e João foi o último e, talvez, ele conhecesse os outros três. * Organizei as cartas paulinas em ordem cronológica, levando em considera­ ção as evidências do ministério de Paulo a partir de suas cartas e de Atos dos Apóstolos. * Na terceira parte do cânon, quase todas as tentativas de seguir um esquema cronológico falham pela falta de evidências, e, só nesse ponto aqui, demons­ tro alguma preocupação com relação à cronologia (o capítulo sobre 2Pedro, por exemplo, precede o texto de 1Pedro, não obstante 2Pe 3.1) e organizo os textos de forma temática — tratando em primeiro lugar aqueles predomi­ nantemente preocupados com heresias e, depois, os demais, nos quais a per­ seguição é o tema primário. Tentei usar um estilo de linguagem compatível com estudantes cujo foco primário é a teologia e com pastores com formação teológica. Parto do pressupos­ to de que o leitor leia cuidadosamente o texto bíblico sob apreciação e o manten­ ha aberto e à mão. Portanto, não cito extensivamente passagens bíblicas.3Também pressuponho conhecimento básico da disciplina de In trodu ção ao N T e, portanto, apenas uma vez ou outra menciono questões como autoria, data e origem dos documentos do NT. Sou muito grato a muitos amigos que se interessaram por este livro e os quais me deram uma ajuda substancial para escrevê-lo. O dr. Timothy George, deão da Beeson Divinity School (da Universidade de Samford), encorajou-me durante todo o processo e, entusiasticamente, apoiou minha solicitação de uma licença sabática junto ao Conselho Diretor da Universidade durante o outono de 2002 para eu poder trabalhar no livro. Desejo agradecer ao Conselho Diretor pela aceit­ ação de meu pedido. Os professores Marcos Strauss do Bethel Seminary, Sigurd Grindheim do Trinity Evangelical D ivinity School e Thomas R. Schreiner do Southern Baptist Theological Seminary leram a totalidade, ou a maior parte, do manuscrito com muito cuidado e escreveram páginas com comentários úteis so3Ao transcrever citações bíblicas, uso a NVI— Nova Versão Internacional (São Paulo: Vida, 2001) sempre que possível, apesar de também apresentar minhas traduções ou de modifi­ car a NVI quando a discussão demandar uma tradução mais literal do texto. Indico as ocorrências por meio do grifo “autor”. As citações dos livros apócrifos são da B J— Bíblia de Jerusalém-, edição revista e ampliada (São Paulo: Paulus, 2002). Citações de fontes grecoromanas não-cristãs, a menos que indicadas de outra forma, provêm da tradução corres­ pondente à Loeb Classical Biblioteca. As citações dos pais da igreja primitiva são de Alexander Roberts e James Donaldson (eds.), The Anti-Nicene Fathers, 1885-1887, 10 vols. (repr. Peabody, Mass.: Hendrickson, 1994), com a exceção das citações dos pais apostólicos e de Eusébio, nas quais usei as traduções de Kirsopp Lake e J. E. L. Oulton, nas edições de Loeb. As citações de Celso On the True D octrine são da tradução feita por Henry Chadwick da obra de Orígenes Contra Celsum (Cambridge: Cambridge University Press, 1953).

bre diversas questões. Os professores Edward P. Meadors da Taylor University, Karen Jobes do Westmont College, Jeffrey A. D. W eima do Calvin Theological Seminary, meu irmão Samuel B. Thielman (M .D ., Ph.D.), os membros do Curso Intensivo sobre R eligião na A ntigüidade da Universidade de Samford e os alunos de quatro semestres da Beeson Divinity School leram partes do manuscrito, auxi­ liando-me e encorajando-me muito. Michael Garrett e Cheryl Cecil da Bibliote­ ca Davis da Universidade de Samford localizaram incansavelmente numerosos livros e artigos necessários. Os editores da Zondervan, incluindo Stan Gundry, Jack Kuhatschek, Katya Corvett, e Verlyn Verbrugge, foram gentis ao convidarme para escrever este livro e também muito prestativos no acompanhamento do manuscrito nos estágios finais de produção. O dr. Bruce W in ter, deão da Tyndale House, Cambridge, Inglaterra, discutiu partes do manuscrito comigo em diversas ocasiões durante suas diversas visitas à Beeson Divinity School e encontrou para mim um lugar entre os tesouros bibliográficos da biblioteca da Tyndale House Library, quando eu fiz uma viagem de uma semana até aquela localidade. O dr. Richard e a sra. M artha Burnett do Erskine Theological Seminary, o prof. eméri­ to M artin Hengel da Universidade de Tiibingen, Alemanha, e o dr. Rolfe Hille, diretor da Albrecht Bengel Haus em Tübingen, acomodaram-me e foram muito hospitaleiros durante a visita para a realização de pesquisas em sua cidade. Beate Martin concedeu-me uma mesa de estudos na Evangelische Stift com sua incom­ parável biblioteca e localizou um grande número de livros para mim com alegria e eficiência. Todos esses amigos generosos, e vários outros, dedicaram a mim gra­ ciosamente seu tempo e energia para tornar este livro em bem melhor do que seria sem a ajuda deles. Meus sinceros agradecimentos a todos. Sou também profundamente grato a m inha família imediata e ampliada, incluindo minha mãe, Dorothy Thielman, e meus três filhos, Jonathan (que me ajudou muito com o computador), Sarah Jane e Rebekah. Com seu calor e âni­ mo, especialmente quando o trabalho em vários pontos tornou-se difícil, aju­ daram a manter o trabalho na perspectiva correta. A principal auxiliar, entretanto, foi minha maravilhosa esposa, e mais queri­ da amiga, Abigail. Ela, com freqüência, deu-me conselhos sábios para não me sobrecarregar com outras tarefas menores a fim de eu poder terminar esta maior. Ela também me fez lembrar, constantemente, de enxergar este trabalho através das lentes das coisas mais importantes da vida — amar a Deus e ao próximo. A teologia sobre a qual tanto falo aqui e em minhas aulas é vivida por ela todos os dias, recordando-me, como Tiago diz: o que conta não é o mero assentimento intelectual com a doutrina correta, mas basear a própria vida sobre a verdade do Evangelho. Seria necessário um outro livro para enumerar as formas específicas pelas quais minha mulher tem sido um exemplo desse tipo de fé em ação para mim e para nossos três filhos. Eu tinha a intenção de dedicar o livro a ela. Entretanto, após meu pai ter passado desta vida para a presença visível de Deus em 17 de agosto de 2002, Abby e eu concordamos que eu deveria dedicar o

livro à memória dele. Ele foi simplesmente um pai maravilhoso. A seus olhos, meus pequeninos passos em direção à especialização em NT tornaram-me um gigante no campo. Em nossas conversas telefônicas semanais, ele sempre me deu conselhos a respeito deste projeto, extremamente encorajador e sempre desejoso de preencher cheques para comprar os livros que eu necessitasse para dar pros­ seguimento. Eu estava no meio de uma sentença no capítulo sobre 3João quando chegou a notícia de que ele teve um colapso e perdeu a consciência. Assim que cheguei ao Apocalipse, foi estimulante pensar que papai estava entre aquelas pes­ soas da grande multidão de todas as nações, tribos, povos e línguas, louvando o Deus a quem servira fielmente durante tantos anos. Possa este livro conduzir seus leitores ao melhor entendimento do Deus do NT e auxiliá-los a unir suas vozes a esse louvor. Frank T hielm an Quaresm a d e 2 0 04

Abreviaturas

A21 AB ABR ABD ABRL ACCS AGJU AJP AnBib ANTC ANRW ARA ARC ASNU a u tor BBB BBR BBET BDAG BECNT BETL BSac BJ BJRL BNTC BTB BZET BZNW BV

Almeida século 21 Anchor Bible A ustralian B ib lica l R eview A nchor B ib le D iction ary Anchor Bible Reference Library A ncient Christian C om m entary on Scripture, New Testament. Editado por Thomas C. Oden Arbeiten zur Geschichte des antiken Judentums und des Urchristentums A m erican J o u rn a l o f P h ilology Analecta biblica Abingdon New Testament Commentaries A ufstieg u n d N ied ergan g d er röm ischen Welt Almeida Revista e Atualizada Almeida Revista e Corrigida Acta seminarii neotestamentici upsaliensis tradução do autor Bonner biblische Beiträge B ulletin f o r B ib lica l Research Beiträge zur biblischen Exegese und Theologie A Greek English Lexicon o f the N ew Testament a n d O ther Early Christian L iterature, 3. ed. Walter Bauer. Rev. e ed. por Frederick W illiam Danker Baker Exegetical Commentary on the New Testament Bibliotheca ephemeridum theologicarum lovaniensium B iblioth eca sacra B íblia d e Jeru sa lém B ulletin o f the Jo h n Rylands Papyrus Library Black’s New Testament Commentary B ib lica l T heology B ulletin Beiträge zur evangelischen Theologie Beihefte zur Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft Biblia Viva

CBQ CJA CNBB ConBNT CSEL CST CSHJ CGTC DCB DDD EBib EDNT EKK EP ESV FF FRLANT GGBB GNS H BT HNT HNTC HTKNT HTKNTSup HTR HTS H UT ICC Interp IRT ISBE ITC JBL JPSTC

JR

C atholic B ib lica l Q uarterly Christianity and Judaism in Antiquity Bíblia Sagrada — Tradução da CNBB Coniectanea neotestamentica Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum Contemporary Studies in Theology Chicago Studies in the History of Judaism Cambridge Greek Testament Commentary D iction ary o f Christian Biography. Editado por Henry Wace e W illiam C. Piercy D iction ary o f D eities a n d D em ons in the Bible. Editado por Karel van der Toorn, Bob Becking e Pieter W Van der Horst Etudes bibliques E xegetical D iction ary o f the N ew Testament. Editado por Horst Balz e Gerhard Schneider Evangelisch-katholischer Kommentar zum Neuen Testament Edição Pastoral English Standard Version Foundations and Facets Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments Greek G ram m ar B eyo n d the Basics: An E xegetical Syntax o f th e N ew Testament. Daniel B. Wallace Good News Studies H orizons in B ib lica l T heology Handbuch zum Neuen Testament Harper’s New Testament Commentaries Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testament Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testament: Supplementband H arvard T heological R eview Harvard Theological Studies Hermeneutische Untersuchungen zur Theologie International Critical Commentary In terpretation Issues in Religion and Theology The In tern a tion a l S tandard B ible E ncyclopedia, ed. rev., 4 vols. Geoffrey Bromiley et al. (eds.) International Theological Commentary J o u rn a l o f B ib lica l L iterature Jewish Publication Society Torah Commentary Jou rn a l o f R eligion

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J o u rn a l o f R om an Studies Jo u rn a l f o r the Study o f Ju daism in the Persian, H ellenistic, a n d R om an Periods, S upplem ents J o u rn a l f o r th e Study o f the N ew Testament Journal for the Study of the New Testament: Supplement Jo u rn a l o f T heological Studies King James Version Library of Christian Classics Loeb Classical Library Library of Early Christianity A Greek-English Lexicon, Henry G. Liddell e Robert Scott. Rev. e aum. por Henry S. Jones Lutherbibel. Revised 1984 L u ther’s Works. E dited b y J a r o s h v Pelikan S eptuaginta Le M on de d e la B ible Meyers kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament The Vocabulary o f th e Greek Testament. James Hope Moulton and George M illigan Moffatt New Testament Commentary Monographien und Studienbücher Marburger theologische Studien N ovum Testamentum Graece. Editado por Eberhard Nestle, Erwin Nestle e Kurt Aland. 25. ed. N ovum Testamentum Graece. Editado por Barbara Aland, Kurt Aland. 27. ed. New American Bible New American Commentary New American Standard Bible New Century Bible N ag H am m adi Library in English. Edited by James M . Robinson. New International Commentary on the New Testament New International Commentary on the Old Testament New International Greek Testament Commentary N ovum Testamentum Novum Testamentum Supplement New Revised Standard Version Neutestamentliche Abhandlungen Das Neue Testament Deutsch New Testament Library N ew Testament Studies

NTTS N vr OBT OTL OTP PG PL PNTC PRSt REB RNT SBEC SBT SCH SJLA SJT SAC SANT SBLDS SBLMS SBLSBS SBLSymS SBLTT SCH N T SFSHJ SJLA SNT SNTSMS SN TW SP Str-B StudBib SubBi TANZ TDNT THKNT TLG

New Testament Tools and Studies N ova Versão In tern a cion a l Overtures to Biblical Theology Old Testament Library The O ld Testament P seudepigrapha. 2 vols. Editado por James H. Charlesworth P atrologia graeca. Editado por J.-P. Migne Patrologia latina. Editado por J.-P. Migne Pillar New Testament Commentary P erspectives in R eligious Studies Revised English Bible Regensburger Neues Testament Studies in the Bible and Early Christianity Studies in Biblical Theology Studies in Church History Studies in Judaism and Late Antiquity Scottish J o u rn a l o f T heology Studies in Antiquity and Christianity Studien zum Alten und Neuen Testaments Society of Biblical Literature Dissertation Series Society of Biblical Literature Monograph Series Society of Biblical Literature Sources for Biblical Study Society of Biblical Literature Symposium Series Society of Biblical Literature Texts and Translations Studia ad corpus hellenisticum Novi Testamenti South Florida Studies in the History of Judaism Studies in Judaism in Late Antiquity Studien zum Neuen Testament Society for New Testament Studies Monograph Series Studies of the New Testament and Its World Sacra Pagina K om m en tar zum N euen Testament aus Talm ud u n d M idrasch. Hermann Leberecht Strack e Paul Billerbeck Studia Biblica Subsidia biblica Texte und Arbeiten zum neutestamentlichen Zeitalter T heological D iction ary o f th e N ew Testament. Edited by G. Kittel e G. Friedrich Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament Thesaurus lin gu a e gra eca e: Canon o f Greek A uthors a n d Works. Editado por L. Berkowitz e K. A. Squitier

TLNT TM TN TC TynNTC TRu TynB TZ VCSup W BC WUNT ZN W ZTK

T heological Lexicon o f the N ew Testament. By Ceslas Spiq Texto Massorérico The New Testament in Context Tyndale New Testament Commentaries T heologische R undschau Tyndale B ulletin T heologische Z eitschrift. Vigiliae christianae Supplement Word Biblical Commentary Wissenschaftliche Untersuchungen zum Alten und Neuen Testament Z eitschrift f ü r d ie n eu testam en tliche W issenschaft u n d d ie K u n de d er älteren K irch e Z eitschrift f ü r T heologie u n d K irch e

As abreviaturas dos textos antigos seguem as Convenções de Patrick H. Alexander et al., eds., The SBL Handbook o f Style: For A ncient Near Eastern, Biblical, an d Early Christian Studies (‘Peabody, Mass.: Hendrickson, 1999), e as fontes clássicas não mencionadas ali, Henry George Liddell e Robert Scott, A Greek English Lexicon, rev. e aum. Henry Stuart Jones, 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 1940). O índice d e outras literaturas antigas também contém uma extensa lista de abreviações — acom­ panhadas do título completo e, quando necessário, da tradução desses títulos — de trabalhos clá ssicos utilizados n e s te livro.

IN T R O D U Ç Ã O

Capítulo 1

A teologia do Novo Testamento: questões básicas

A partir do século XVIII, a disciplina “Teologia do N T” passou por um es­ crutínio severo. Essa disciplina deveria ser abandonada? Alguns responderam afir­ mativamente. Ela precisa ser só reestruturada? Outras pessoas ofereceram novos modelos. Na discussão, dois problemas relativos à disciplina surgiram repetida­ mente como os mais importantes. O primeiro problema dessa disciplina, conforme se afirma, está na mescla perigosa de dogmática com questões históricas. De um lado, convicções teológi­ cas influenciam os teólogos do N T nas conclusões extraídas sobre o sentido do texto do NT, e eles insistem em examinar apenas os documentos canônicos. Por outro lado, os teólogos do NT, embora a igreja valorize muito esses documentos por causa das afirmações históricas feitas por eles, opinam que devem atuar da mesma forma que quaisquer outros historiadores a respeito desses textos antigos. E possível unir fé e razão dessa forma, ou devem os teólogos do NT delimitar suas pressuposições dogmáticas acerca da importância do NT e colocar os textos canôni­ cos no mesmo patamar que os demais textos antigos? Se for assim, eles deverão, desse modo, mudar sua ênfase da pesquisa teologicamente parcial a respeito da “teologia do N T ” para a tarefa mais objetiva e universalmente aceita de descrever a história do pensamento cristão primitivo. O segundo problema tem origem na diversidade teológica dos textos do NT. Os documentos do NT não somente expressam grande variedade de temas teológi­ cos, mas também falam de formas diferentes sobre o mesmo tema. Seriam essas diferenças tão grandes a ponto de, às vezes, contradizerem-se? Caso a resposta seja negativa, por que é tão difícil encontrar a coerência teológica do NT? Assim, será correto falar-se sobre a “teologia do N T”, como se o todo fosse coerente? T e o l o g ia o u h is t ó r ia ? Desde o século XVI, os teólogos bíblicos têm debatido sobre o relaciona­ mento entre a interpretação da Bíblia com a finalidade de encontrar apoio para os

ensinamentos teológicos tradicionais de determinada igreja e a interpretação da Bíblia em seu contexto histórico sem considerar as convicções teológicas da igreja. Pelo fato de a igreja ter tradicionalmente mantido a primazia da Escritura sobre suas tradições (ainda que certas tradições extrabíblicas recebam muita importân­ cia), teoricamente nenhum conflito deveria surgir. De fato, as tradições eclesiásti­ cas e as ênfases teológicas da Bíblia, não raro, são incompatíveis e, portanto, os estudos da teologia bíblica são caracterizados pela tensão entre convicções teológicas e análises históricas. A teologia bíblica surgiu no princípio da era da Reforma como a disciplina que pretendia corrigir as especulações teológicas antibíblicas da igreja e acelerar sua reforma. A ênfase desse tempo era mais sobre a reforma teológica que em relação à sensibilidade a condições históricas nas quais os documentos bíblicos foram escritos. Mais tarde, a teologia bíblica foi seduzida pela magia do racionaíismo iluminista, e alguns de seus adeptos começaram a definir a disciplina em termos de um estudo da Bíblia historicamente motivado e teologicamente inde­ pendente que poderia usar a razão humana para arbitrar não somente os ensina­ mentos da igreja, mas também o próprio conteúdo da Bíblia. Além dessa ligação entre a teologia bíblica e o Iluminismo, surgiu uma crítica da própria disciplina. Por que se deveria falar sobre teologia “bíblica”? Se o estudante dos textos bíblicos deve ser um verdadeiro historiador, será necessário, portanto, falar apenas sobre a história do pensamento e da religião de judeus e de cristãos — falar sobre a Bíblia, ou sobre o NT, já consiste no uso de uma linguagem dogmáti­ ca que o historiador interessado no estudo objetivo do passado deve considerar inaceitável. Nos últimos trezentos anos, três críticas da disciplina, com mais base teológi­ ca que histórica, têm sido particularmente influentes. Johann Philipp Gabler, W illiam Wrede e Heikki Rãisãnen escreveram entre os séculos XIX e XXI, respec­ tivamente, exigindo a libertação do estudo da história da Bíblia, ou do cristianis­ mo primitivo, das questões dogmáticas da igreja. O desafio fundamental de Gabler difere do de Wrede e do de Rãisãnen por ser simplesmente um apelo em prol da clareza metodológica na pesquisa teológica, e não a depreciação do estudo da Bíblia teologicamente motivado. Entretanto, Wrede e Rãisãnen declaram-se fun­ damentados na obra de Gabler. É importante, portanto, considerar o desafio de Gabler à disciplina antes de avaliar os ataques mais diretos de Wrede e Rãisãnen. A fim de entender os três pensadores e avaliar seus desafios de acordo com uma perspectiva histórica, é necessário, em primeiro lugar, resumir as raízes históricas da teologia bíblica e, especificamente, da teologia do NT.

A história da disciplina O desenvolvimento da “teologia bíblica” está fundamentado no eterno com­ promisso da igreja de guiar sua teologia e prática pelos escritos canônicos do

Antigo Testamento (AT) e NT. Uma das mais importantes preocupações da Re­ forma foi a reforma eclesiástica da doutrina e da adoração para torná-la mais fiel aos padrões estabelecidos na Bíblia. Em 1521, Filipe Melâncton, amigo e colega de Lutero na Universidade de Wittenberg, publicou um dos mais antigos tratados teológicos da Reforma — um breve tratamento de importantes tópicos teológicos baseados nas palestras de Lutero sobre a carta de Paulo aos Romanos proferidas no verão de 1519 e repetidas no ano seguinte.1 Esse tratamento dos L oci com m u n es rerum th eo h gica ru m (ou “Temas teológi­ cos fundamentais”, como Melâncton o designava) forneceu uma lista de temas teológicos importantes, explicando brevemente o ensino da Escritura, e apenas da Escritura, sobre cada tópico.2 Melâncton estava fatigado da leitura de especu­ lações cansativas dos teólogos escolásticos medievais sobre a teologia cristã e dese­ java, em vez disso, descobrir como a própria Bíblia, e particularmente “o compêndio paulino de doutrina cristã” em Romanos, descrevia a religião cristã.3 Esse ímpeto de incitar os teólogos especulativos e levá-los de volta à Bíblia permaneceu um tema constante nos primórdios da história da teologia bíblica como uma discipli­ na discreta. Melâncton o descreve desta forma: Discuto todos os pontos de forma moderada e breve porque o livro deve servir mais como um sumário que como um comentário. Eu simplesmente apresento uma lista de tópicos aos quais as pessoas que vagam por entre a Escritura devam ser dirigidas. Além disso, estabeleço em poucas palavras os elementos sobre os principais pontos básicos da doutrina cristã. Procedo des­ sa forma não para desviar os estudantes das Escrituras para pontos obscuros e argumentos complicados, mas, ao contrário, para convocá-los em direção à Bíblia, se for capaz.4 A Reforma amadureceu e se transformou no protestantismo; entretanto, pen­ sadores protestantes começaram a refinar seus compromissos teológicos e a de­ senvolver argumentos teológicos intrincados. Em suas obras, a Escritura era mais usada não tanto para estabelecer sua agenda teológica, mas para demonstrar que os vários princípios teológicos considerados importantes pelos protestantes, que cresciam nesse momento com incrível complexidade, eram, de fato, bíblicos. As 'V. a nota de Wilhelm Pauck na edição de Loci communes theologici, em Melancktbon and Bucer (LCC 19; Philadelphia: Westminster, 1969), p. 18 n. 2. Todas as outras referências aos Loci communes são dessa edição. A respeito da importância dos Loci Communes a respeito da origem da teologia bíblica v. o apanhando histórico de Ferdinand Christian Baur, Vorlesungen über neutestamendiche Theologe, F. F. Baur (ed.) (Darmstadt. Wissenschaftliche Buchgesell­ schaft, 1973; ed. original 1864), p. 2, e Otto Merk, Biblische Theologe des Neuen Testaments in ihrer Anfangszeit (MTS 9; Marburg. N. G. Eiwert Verlag, 1972), p. 12. 2A tradução de “Fundamental Theological Themes” pertence a Wilhelm Pauck. V. sua introdução aos Loci Communes Theologici, p. 3. }Loci Communes, p. 22. 4 Ibid., p. 19.

primeiras pessoas que usaram o termo “teologia bíblica” para descrever seus estu­ dos, passaram a usar o texto bíblico para confirmar sistemas teológicos preexis­ tentes.5 Um novo tipo de escolasticismo protestante começou a desenvolver-se tendo a “teologia bíblica” como criada. Sob a influência do pietismo alemão, por um lado, e do racionalismo, por outro, a teologia bíblica começou a libertar-se desse papel como um esteio para a teologia sistemática. O pietismo objetivava recordar a ortodoxia protestante tanto da preeminência da Bíblia na fé e na prática cristã e do lugar da experiência reli­ giosa no compromisso cristão. Ele concebia o retorno ao estudo da Bíblia como o antídoto necessário contra os debates teológicos estéreis aparentemente predomi­ nantes no escolasticismo protestante, de forma muito semelhante à ocorrida no cenário teológico anterior à Reforma.6 Em 1758, Anton Friderich Büsching la­ mentou em um panfleto típico daquele tempo as preocupações pietistas: “M inis­ tros jovens, de volta aos púlpitos das vilas após terem completado sua formação teológica”, conforme escreveu, “tornaram-se péssimos pregadores. Eles não leva­ vam ao púlpito a pura teologia bíblica, mas uma ‘teologia avançada que nem eles nem suas igrejas entendem’”.7 Ao mesmo tempo, o racionalismo começou a influenciar o estudo da Bíblia.8 Na Inglaterra, filósofos como John Locke (1632-1704) e John Toland (1670­ 1722) elevaram a razão acima da fé, alegando que apenas os elementos das Escri­ turas e do cristianismo que passassem pelo teste da inquirição racional deveriam ser mantidos.9 Na Alemanha, esse pensamento influenciou estudiosos da Bíblia

5Outra vez, v. Baur, Neutestamentliche Theologie, p. 2,3, e, além disso, o panorama histórico de Martin Kahler, “Biblische Theologie”, Realencyklopädiefurprotestantische Theologie und Kirche, 3. ed., 24 vols. (Leipzig. J. C. Hinrichs’sche Buchhandlung, 1896-1913), vol. 3, p. 192-200, (essa citação é da p. 193); Merk, Biblische Theologie, p. 15-7; Gerhard Hasel, New Testament Theology. Basic Issues in the Current Debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 17. 6Kähler, “Biblische Theologie”, p. 193; Merk, Biblische Theologie, p. 18-20. O famoso líder pietista Philipp Jacob Spener (1635-1705), na terceira parte do manifesto, Pia desideria, publicado em 1675, estabeleceu um programa de seis pontos para a reforma da igreja alemã. O primeiro ponto urgia a leitura e o estudo renovados da Bíblia toda —■e não apenas dos textos apontados nos lecionários — por indivíduos, grupos e famílias. V. Philipp Jacob Spener, Pia desideria, Kurt Aland (ed.) (Kleine Texte fur Vorlesungen und Übungen 170; Berlim: Walter de Gruyter, 1964), p. 53-8. 7“Gedanken von der Beschaffenheit und dem Vorzug der biblisch-dogmatischen Theolo­ gie vor der alten und neuen Scholastichen, und von theologischen Aufgaben” (Lemod: Meyerschen Buchhandlung, 1758), p. 15. 8V. esp. Baur, Neutestamentliche Theologie, p. 3,4, que não cita o pietismo, apesar de men­ cionar Büsching de passagem. ’V. Werner Georg Kümmel, The New Testament, the History o f the Investigation o f Its Pro­ blems (Nashville: Abingdon, 1972), p. 51-61; W. Neil, “The Criticism and Theological Use of the Bible, 1700-1950”, em The Cambridge History o f the Bible, S. L. Greenslade, G. W. H. Lampe, P. R. Ackroyd & C. F. Evans (eds.), 3 vols. (Cambridge: Cambridge Univer­ sity Press, 1963-70), vol. 3, p. 238-93, (essa é uma citação das p. 238-41); e William Baird, History o f New Testament Research, 2 vols. (Minneapolis: Fortress, 1992), vol. 1, p. 31-43.

como Johann Salomo Semler (1725-1791), que começou a dizer abertamente que partes das Escrituras canônicas eram teologicamente inferiores e, portanto, não inspiradas.10 Junto com essa convicção, havia a insistência de que a análise histórica de cada escrito bíblico deveria preceder qualquer tratamento teológico a seu respeito. Apesar de Semler ter sido oponente do pietismo por pensar que esse movimento estimulava a leitura bíblica pessoal e subjetiva sem levar em conside­ ração a exegese histórica, tanto os pietistas quanto Semler concordavam que o estudo das Escrituras deveria preceder a especulação teológica.11 A obra de GotthilfTraugott Zachariá (1729-1777), professor de teologia em Gõttingen e Kiel, revela as preocupações do pietismo e do racionalismo até certo ponto.12 Zachariá não era racionalista no sentido comum do termo, pois ele cria que os milagres registrados na Bíblia realmente teriam acontecido e que a Bíblia era a Palavra de Deus; tampouco ele desejou polemizar contra a teologia sistemática ao escrever sua teologia bíblica.13 Todavia, ele estava convicto de que o estudo da teologia sistemática necessitava da correção salutar da exegese bíblica cuidadosa.14 Essa exegese, conforme ele argiiia, deveria estar ancorada no tempo e lugar nos quais cada autor bíblico a escreveu e deveria ser sensível às diferenças históricas entre as circunstâncias dos escritores bíblicos e as circunstâncias da igreja moder­ na.15 A apresentação da teologia bíblica, além do mais, não deveria seguir as cate­ gorias sistemáticas familiares ou os títulos dos compêndios teológicos, mas deveria seguir um plano originário da própria Escritura e a ordem da salvação revelada a partir dela.16

10Semler leu a literatura deísta inglesa e, até mesmo, traduziu algumas dessas obras para o alemão. A respeito disso, v. Kümmel, History, p. 415 n. 63, e Baird, History, vol. 1, p. 118. nA respeito de Semler, criado em um lar pietista, v. Kümmel, History, p. 62-9; Baird, History, vol. 1, p. 117-27; e G. Hornig, “Semler, Johann Salomo”, em Dictionary o f B iblicalInterpretation, John H. Hayes (ed.), 2 vols. (Nashville: Abingdon, 1999), vol. 2, p. 456-7. 12Biblischer Theologie, oder Untersuchung des biblischen Grundes der vornehmsten theologis­ chen Lehren, 4 pts. (Göttingen und Kiel. Verlage Victorinus Bospiegel und Sohn, 1771­ 75). 13Merk, Biblische Theologie, p. 24, 25. 14Baur, Neutestamentliche Theologie, p. 4-6, apesar de reconhecer a obra de Zachariä como “a mais importante desse primeiro período da teologia bíblica”, critica, implicitamente, sua falha de conduzir a disciplina à independência da teologia sistemática. O serviço crucial que ela provia à teologia sistemática, no conceito de Zachariä, significa que ela era, a despeito de sua crítica, ainda dependente da teologia sistemática para sua legiti­ mação. 15Heinrich Hoffmann, “Zachariä, GotthilfTraugott”, Realencyklopädiefi ir protestantische Theologie und Kirche, 3. ed., 24 vols. (Leipzig: J. C. Hinrichs’sche Buchhandlung, 1896­ 1913), vol. 21, p. 587-8. 16Zachariä, Biblischer Theologie, vol. 1, p. xcvii-xcviii.

Os desafios de Gabler, Wrede e Rãisãnen Johann Philipp Gabler A cena estava montada para a declaração muito importante de Johann Phi­ lipp Gabler (1753-1826), devotado aluno de Johann Jakob Griesbach, estudioso do NT e professor de teologia em Altdorf e depois em Jena.17 O sentido histórico de Gabler para a disciplina da teologia bíblica é desproporcional ao tamanho físico de sua obra publicada sobre o assunto. Diferente de Zachariã, cuja B iblis­ ch er T heologie [ Teologia bíblica] compreende quatro grandes volumes, Gabler não produziu nenhuma teologia bíblica, apenas fez uma preleção sobre o assunto por ocasião de sua nomeação para a faculdade da academia alemã de Altdorf, em 31 de março de 1787.18 Evidentemente, ele, nessa preleção, fez o uso exato das pala­ vras que várias outras pessoas julgavam aplicáveis.19 A preleção funcionou como um tipo de declaração de independência para o estudo da história da Bíblia, insistindo em sua libertação dos grilhões impostos a ela pela teologia sistemática. Gabler tentou descrever a diferença entre a teologia bíblica e a dogmática e afirmar que ambas possuem objetivos próprios. Pelo termo “teologia bíblica”, ele se referia ao estudo da história das convicções religiosas dos autores bíblicos; e, por “teologia dogmática”, designou os sistemas teológicos e filosóficos dos tem­ pos mais modernos. Ele cria que os teólogos dogmáticos tinham imposto sua leitura teológico-sistemática moderna aos textos bíblicos e, portanto, distorciam seu significado. Isso resultou em um grande número de diferentes sistemas dog­ máticos, todos alegando possuir autoridade bíblica; entretanto, eles contribuíram para a desunião da igreja. Os teólogos dogmáticos, disse Gabler, deveriam deixar a tarefa histórica de investigar o significado dos textos bíblicos para os teólogos bíblicos e deveriam esperar pelos resultados da pesquisa teologicamente desvincu­ lada dos textos do contexto histórico-cultural originário antes de construírem sistemas teológicos modernos.20

17Para mais informações a respeito da vida de Gabler, v. o rico artigo de E. L. T. Henke, “Gabler, Johann Philipp”, in Realencyklopädiefiir protestantische Theologie und Kirche, 3. ed., 24 vols. (Leipzig: J. C. Hinrichs’sche Buchhandlung, 1896-1913), vol. 4, p. 720-2, e para a análise completa das raízes e dos compromissos intelectuais de Gabler, v. Merk, Biblische Theologie, p. 29-140. 18Uma tradução inglesa da preleção de Gabler em latim, intitulada: “On the Proper Dis­ tinction between Biblical and Dogmatic Theology and the Specific Objectives ofEach”, aparece em John Sandys-Wunsch e Laurence Eldredge, “J. P. Gabler and the Distinc­ tion between Biblical and Dogmatic Theology: Translation, Commentary, and Discus­ sion ofHis Originality”, S JT 33 (1980): 133-58. 19Já em 1825, E A. Lossius pôde dizer em Biblische Theologie des Neuen Testaments oder die Lehren des Christenthums aus einzelnen Schriften des N. T. entwickelt (Leipzig: C. G. Kayser, 1825), p. 8, que “Gabler foi o primeiro a entender a idéia da teologia bíblica”. 20“Distinction”, p. 142.

Os teólogos bíblicos, disse Gabler, devem assumir responsabilidade dupla. Precisam, inicialmente, pesquisar o significado dos textos bíblicos no contexto original, primitivo, e chegar às suas conclusões à parte de quaisquer considerações dogmáticas. Eles devem, portanto, pesquisar seus resultados históricos relativos às verdades universais e puras expressas por eles. Essas verdades devem ser cuida­ dosamente extraídas do mundo pré-científico dos autores bíblicos, e, a seguir, os teólogos bíblicos deveriam passar essas doutrinas purificadas para os teólogos sistemáticos.21 O teólogo sistemático poderia usar esse destilado precioso para construir uma teologia moderna.22 Pelo fato de que todas as coisas poderiam ser feitas de acordo com princípios racionais claramente delineados e amplamente reconhecidos, os resultados tanto do teólogo bíblico quanto do teólogo sistemáti­ co devem ser aceitos por todos, e a igreja deveria ser capaz de apresentar uma frente unida contra seus detratores.23

William Wrede Pouco mais de um século depois, em 1897, W illiam Wrede escreveu outro ensaio famoso no qual ele tentou ressuscitar a distinção feita por Gabler entre a teologia bíblica e a dogmática, dessa vez com referência específica à teologia do NT.24 Entre Gabler e Wrede surgira um número de teologias do NT, mas elas falharam, pelo menos na opinião de Wrede, ao preservar a distinção feita por Gabler entre teologia bíblica e dogmática. A maior parte dos teólogos do NT, conforme Wrede afirmou, exaltam (da boca para fora) a distinção feita por Ga­ bler entre a teologia dogmática e a bíblica. Mas, na realidade, conforme ele la­ mentou, o método seguido pelos teólogos do NT trai sua percepção de que os teólogos apenas se repetem.25 Só essa preocupação com os olhos observadores dos 21Cf. Martin Kahler, The So-Called HistoricalJesus and the Historie Biblical Christ (Philadel­ phia: Fortress, 1988; (ed. original 1896), p. 67: “A dogmática, em um sentido muito real, serve como o mediador entre o passado e o presente; ela estabelece o que é genuíno e indispensável no passado a serviço do presente. Essa obra de mediação, portanto, pertence à dogmática, após ter realizado um estudo completo e sério daquilo que o estudo da história pode realizar e de ter aprendido com a história o que é suficientemente importante para garantir apreciação pela dogmática”. “ “Distinction”, p. 140-4. V. a discussão da distinção de Gabler entre a “verdadeira teologia bíblica” e a “pura teologia bíblica” em Hendrikus Boers, What is New Testament Theology, the Rise o f Criticism and the Problem o f a Theology o f the New Testament (Philadelphia: Fortress, 1979), p. 33-5. ^"Distinction”, p. 134-8. Über Aufgabe und Methode der sogenannten neutestamentlichen Theologie (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1897). Naquela época, Wrede era professor de exegese do NT em Breslau. -'William Wrede, “The Task and Methods o f‘New Testament Theology’”, em The Nature o f New Testament Theology. The Contribution of William Wrede and Adolf Schlatter, Robert Morgan (ed.) (SBT 25; London: SCM, 1973), p. 68-116, (essa citação é da p. 69V Novamente, cf. Baur, Neutestamentliche Theologie, p. 8-10, comenta-se que a preocupação de Baur em demonstrar a essência racional da fé cristã o impediu de produzir uma teologia do NT orientada apenas por preocupações históricas.

teólogos sistemáticos pode explicar por que eles limitam suas pesquisas ao cânon do NT, em vez de usar toda a evidência a seu dispor para construir a história completa do cristianismo primitivo.26 Só esse cuidado em relação à dogmática pode explicar a razão pela qual suas teologias do N T são um pouco mais que comentários entediantes sobre uma lista de conceitos doutrinários.27 Wrede concluiu seu ensaio com uma expressão que se tornou famosa: “O nome teologia do NT está equivocado em ambos os termos”. Os historiadores do cristianismo primitivo não deveriam lim itar seus esforços investigativos ao NT canônico, não deveriam se preocupar com a suposta expressão de conceitos teológi­ cos no NT. Em vez disso, eles deveriam tentar descrever a “história cristã prim iti­ va da religião”, expressão usada por Wrede com o seguinte significado: “o q u e era crido, pensado, ensinado, esperado, ex igido e p e lo q u e as pessoas se d ed ica va m no período mais antigo do cristianismo”.28 Se a refeição servida pelos historiadores de acordo com essa receita não agradar ao paladar dos teólogos sistemáticos — por ser condimentada — , então qual será o problema dos teólogos sistemáticos? O s historiadores devem ser deixados sozinhos para alcançar seus objetivos sem qualquer exigência de que a igreja julgue os resultados de seu trabalho palatáveis.

Heikki Rãisãnen Como Wrede assumiu a causa de Gabler um século mais tarde, H eikki Rãisãnen fez o mesmo em relação a W illiam Wrede em um trabalho que já passou por duas edições em dez anos. Na primeira edição de B eyon d N ew Testament Theo­ logy [Ale'm da teologia d o N ovo Testamento], Rãisãnen lamentou, de forma muito semelhante à de Wrede, que ninguém jamais produzira o tipo de estudo da história da religião cristã primitiva imaginado por Wrede.29 Na segunda edição de sua obra, ele foi capaz de modificar esse lamento — obras que exemplificam o con­ ceito de Wrede de forma muito importante já foram lançadas — mas ele ainda opina que deveriam dar atenção à parte de seu trabalho original.30 Diferentemente de Wrede, que não via legitimidade, teológica ou histórica, na limitação dos esforços de ninguém relativos ao cânon do NT, Rãisãnen con­ corda que dentro dos limites da igreja, o estudo dos conceitos teológicos dos 27 26Wrede, “Task and Methods”, p. 70-3. 27Ibid„ p. 73-84. 28V., ibid., p. 116 e 84, respectivamente. 29Beyond New Testament Theology. A Story and a Programme (London & Philadelphia: SCM & Trinity Press International, 1990; 2. ed., 2000). A respeito da ausência da verdadeira abordagem histórica idealizada por Wrede, cf. a primeira edição, p. 89-90. Rãisãnen está esperançoso (p. 78-9) de que Klaus Berger produzisse o cumprimento necessário do pro­ grama de Wrede, esperança realizada parcialmente, apesar de também apresentar alguns dissabores, na publicação posterior da obra de Berger Theologiegeschichte des Urchristen­ tums-. Theologie des Neuen Testaments (Tübingen: Francke, 1994). V. a resenha de Räisänen sobre o livro de Berger em Beyond New Testament Theology, 2. ed., p. 134-6. 30P. 134-47.

livros do NT pode ter algum valor para a pregação ou a catequese. Entretanto, os historiadores que não lim itam sua audiência à igreja não podem resumir seus esforços analíticos ao cânon do NT. Por sua visão humanitária mais ampla e sua independência da igreja, eles devem se concentrar na história do cristianismo primitivo de forma geral, não apenas em olhadelas a esmo da história disponível no NT.31 Apesar de a intrusão dos pressupostos na pesquisa histórica ser inevitá­ vel, Gabler e Wrede estavam certos em sua ênfase nos perigos de permitir que pressupostos teológicos determinem os resultados da pesquisa histórica.32 Os estu­ diosos do NT, portanto, não deveriam se preocupar com a proclamação, mas com a descrição histórica do pensamento do NT, com a experiência e a influência do cânon na história.33 Seu valor humanitário emergirá à medida que os textos considerados portadores de autoridade forem expostos como opressivos e as pes­ soas forem libertas deles.34

Elementos comuns aos três desafios Gabler, na virada do século XIX, Wrede, no século XX, e Raisãnen, no século XXI, pedem a separação entre a análise histórica e a proclamação teológica no estudo do NT. * Gabler era otimista em relação à separação dos elementos eternos, univer­ sais e, por conseguinte, divinos das Escrituras daqueles elementos que são contingentes, específicos e humanos, para que a teologia pudesse livrar-se de ser atacada. “Exatamente dessa forma nossa teologia será mais acertada e mais firme, e nada mais haverá para ser temido mesmo em meio aos ataques mais ferozes dos inimigos”.35 * Wrede não estava preocupado com os ataques contra a religião cristã; pare­ cia, entretanto, exageradamente otimista ao pensar que a simples preterição das questões dogmáticas poderia causar a composição de um registro históri­ co mais puro da religião cristã primitiva.36 * Raisãnen, cônscio da presença de pressupostos em toda tarefa histórica, descreve a separação com mais cautela; entretanto, como Wrede, preocupa­ va-se que a fé crista não distorcesse os textos, pois “o intérprete incauto tenderá a descobrir a própria imagem em pontos possíveis e impossíveis das fontes”.37

31Ibid., 1. ed., p. 100-3, 121; 2. ed. p. 154-6, 160-2. ''Ibid., p. 106; 2. ed., p. 166. 3JIbid., p. 97-100, 103-4; 2. ed. p. 157-9, 162-4. MIbid., p. 112; 2. ed., p.178-9. " “Distinction”, p. 138. -^“Task and methods”, p. 69. ' Beyond New Testament Theology, 1. ed., p. I l l ; 2. ed., p. 177.

Os três estudiosos afirmavam que essa separação da questão histórica da teológica implica a prioridade da tarefa histórica. Gabler a definiu da seguinte forma: Quando essas opiniões dos santos tiverem sido cuidadosamente coligidas da Sagrada Escritura e compiladas de modo adequado, submetidas de forma cuidadosa aos conceitos universais e comparadas entre si com atenção, a questão de seu uso dogmático poderá, nesse momento, ser estabelecida com proveito, e os objetivos tanto da teologia bíblica quanto da teologia dogmáti­ ca serão corretamente apresentados.38 Em outras palavras, assim que os historiadores tenham analisado o texto com esmero, os teólogos podem se valer dos resultados. Wrede não é tão explícito; mas ele também alega que se teólogos cristãos sentem por razões teológicas que também devam ser historiadores, eles devem reconhecer que os historiadores seguem princípios próprios. Historiadores com motivação teológica podem realizar sua tarefa só depois de terem posto de lado suas convicções teológicas. No todo, não se encontra no âmbito do poder do pesquisador histórico servir à igreja mediante seu trabalho. O teólogo que tem no objeto histórico um mestre não se encontra em posição de servir à igreja valendo-se apropriada­ mente de um trabalho científico-histórico, ainda que ele tivesse interesse pes­ soal em realizá-lo.39 Isso implica que o teólogo desejoso de dar continuidade ao cristianismo primi­ tivo deve esperar até que os historiadores (e ele pode ser um deles) tenham termina­ do a análise da história cristã primitiva antes de engajar-se na tarefa teológica. Rãisãnen, de forma similar, crê que o perigo da distorção do significado históri­ co dos textos bíblicos é grande demais quando o historiador religioso tenta reali­ zar a tarefa histórica e a de “narração realística” ao mesmo tempo. Historiadores do cristianismo primitivo podem selecionar textos sobre os quais se concentrar, tomando por base as preocupações modernas, ou eles podem arranjar suas apre­ sentações para torná-las acessíveis a quem deseja colocar homens e mulheres mo­ dernos em contato com o cristianismo primitivo, mas eles devem interagir com as preocupações modernas do estágio teológico de seu trabalho, e nada além disso: Tudo isso acontece na esfera da interpretação histórica (a “verdadeira” teolo­ gia bíblica de Gabler). Depende do próprio estudioso o desejo de avançar, no segundo estágio do trabalho, para questões propriamente teológicas, i.e., para reflexões a respeito do que suas descobertas históricas podem significar para homens e mulheres de hoje.40

38“Distinction”, p. 142. 39“Task and Methods”, p. 73. i0Beyond New Testament Theology, 1. ed., p. 109; 2. ed., p. 171.

Outra implicação da separação da tarefa teológica da histórica, pelo menos para Wrede e Raisãnen, é a ilegitimidade do confinamento dos esforços históricos de uma pessoa em relação ao cânon cristão. Wrede afirmava que os 27 livros do cânon do NT não alegam nenhuma prioridade histórica sobre outras evidências literárias respectivas à religião cristã primitiva. A noção do cânon é uma afirmação dogmática de bispos e concílios cristãos do século II ao IV. Wrede concluiu: “Por­ tanto, quem quer que aceite sem questionamentos a idéia do cânon se coloca sob a autoridade de bispos e teólogos daqueles séculos”.41 Pelo fato de os historiadores dificilmente se limitarem por essas decisões, eles não restringiriam seus esforços a esses livros. Raisãnen também crê que quem lim ita seus esforços à teologia do N T e não aplica empenho idêntico ao estudo da religião cristã primitiva de forma geral permitiu que a igreja defina seu trabalho. Ainda que de sob a perspectiva da fé cristã ela seja “relevante”, “no trabalho histórico ela é, ao contrário, arbitrária”.42 Ele trabalhou muito para ser justo com os teólogos cristãos ao reconhecer que seus esforços na igreja para explicar a teologia do NT podem ser legítimos. En­ tretanto, ele também afirma que os estudiosos cristãos que tentam unir a análise histórica do N T com a teológica insistem, de forma geral, na ultrapassagem dos limites da igreja e declaram que seu trabalho exegético, teologicamente motivado, sobre o texto canônico possui implicações para toda a vida. “Com espantosa facili­ dade”, conforme ele se queixa, “a Vida’ é simplesmente reduzida à Vida cristã’ ou ‘vida na igreja.’ ”43 Se as preocupações de alguém compreendem a sociedade em sentido mais amplo e toda a humanidade, conforme diz Rãisãnen, tal perspectiva é muito tacanha. Ao prover informações precisas sobre o cristianismo primitivo, o historiador pode desfazer mitos usados a serviço da opressão, aumentando o entendimento e a tolerância entre diferentes culturas, ajudando a tornar o futuro da humanidade mais positivo.44 Em resumo, nos últimos três séculos, Gabler, Wrede e Raisãnen propuseram um desafio significativo para quem tenta compreender simultaneamente o NT tanto de forma histórica quanto teológica. Os três apoiaram a separação da tarefa histórica da pesquisa teológica e deram prioridade à história (em detrimento da teologia). Para Wrede e Rãisãnen, isso significava que os cristãos que restringem seu trabalho ao cânon do NT punham em perigo sua exatidão histórica e, ao menos para Rãisãnen, dim inuía seu valor humanitário.

' "Task and Methods”, p. 71. ~-Be\ondNew Testament Theology, 1. ed., p. 100; 2. ed., p. 160. “Ibid., 1. ed., p. 94; 2. ed., p. 152. “ Ibid.. 1. ed., p. 97-100; 2. ed., p. 156-9.

Uma resposta aos desafios de Gabler, Wrede e Rãisãnen A questão do cânon Wrede e Rãisãnen estavam certos ao dizer que a decisão metodológica de estudar a teologia do NT, em vez de a história da religião cristã primitiva, reflete a perspectiva da fé cristã. Os historiadores do cristianismo primitivo usarão todo texto a seu dispor para a reconstrução de crenças, pensamentos, ensinos, espe­ ranças, requisitos e objetivos dos cristãos primitivos. Além do mais, eles avaliarão os textos não por sua perspectiva teológica, mas pelos dados brutos que podem fornecer para a reconstrução desse mundo complexo. A canonicidade de certos textos nada significa para o historiador do cristianismo primitivo até que o status de autoridade dos textos canônicos torne-se por si só importante para o cristianis­ mo primitivo. Nesse ponto, todavia, o interesse do historiador muda do contexto histórico no qual os textos foram inicialmente produzidos e interpretam a história de sua influência como uma Escritura detentora de autoridade.45 Contrastando com isso, os teólogos que priorizam os documentos do NT o fazem porque eles falam sobre Deus com uma autoridade não possuída por outros textos. Portanto, a seleção da teologia dos textos canônicos, com atenção especial, resulta do compromisso cristão do intérprete, reconhecido há séculos pelos cristãos. A Confissão d e f é ga lica n a (1559) a expressa da seguinte forma: Sabemos que esses livros são canônicos, e a regra exata de nossa fé, não tanto pela concordância e pelo consenso da igreja, mas pelo testemunho e pela iluminação interna do Espírito Santo que nos capacita a distingui-los dos demais livros eclesiásticos, os quais, embora úteis, não contêm qualquer arti­ go de fé.46 Alguns estudiosos do NT, todavia, tentaram justificar o estudo da teologia do NT a partir de uma perspectiva histórica. Peter Baila produziu a mais comple­ ta defesa dessa abordagem.47 Ele afirma que os autores de pelo menos alguns

45Ibid., 1. ed., p. 103-4; 2. ed., p. 162-4. 46Art. 4; Philip Schaff, The Creeds o f Christendom, 3 vols. (New York: Harper & Brothers, 1877), vol. 3, p. 361-2. Cf. João Calvino, Institutos da religião cristã (1559), 1.7.5; a Confissão belga (1561), art. 5; a Confissão de f é de Westminster (1647), 1.5. 47Challenges to New Testament Theology. An Attempt to Justify the Enterprise (WUNT 2.95; Tübingen: Mohr, 1997). Outros casos, mais fracos, incluem a afirmação de que os documentos do NT são as mais antigas testemunhas da história cristã, ou que eles são os documentos mais influentes da história cristã. V., e. g., Christian Friedrich Schmid, Biblical Theology o f the New Testament (Edinburgh: T. & T. Clark, 1882), p. 8-9, e Leonard Goppelt, Theology o f the New Testament, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1981-82), vol.l, p. 271, 272 [Publicado em português com o título Teologia do Novo Testamento (Sao Paulo: Teológica, 2002, 2 vol.)]. Cf. os comentários de Räisänen, Be­ yon d New Testament Theology, 1. ed., p. 72, 103.

documentos do NT, quando os textos foram compostos, poderiam ter a intenção de serem usados junto com o cânon judeu como Escritura possuidora de autori­ dade. Os autores do NT citam o AT de um modo que revela uma “percepção canônica”.48 Se os membros da irmandade de Cunrã puderam produzir um cânon próprio em adição às Escrituras judaicas, e se o autor do livro de 4Esdras poderia ter colocado certos livros secretos de escatologia no mesmo patamar de autori­ dade que as Escrituras judaicas, então por que pareceria improvável que os cris­ tãos dos primeiros tempos entendessem que certos documentos possuíam status canônico?49 Ele conclui que os historiadores podem escolher legitimamente o cânon de um grupo antigo particular para realizar estudos históricos; eles podem escolher o cânon de Marcião, por exemplo, ou o cânon do cristianismo orto­ doxo.50 Apesar de Baila contribuir de forma positiva para a discussão com sua idéia sobre quando exatamente alguns dos autores do NT passaram a considerar seus textos parte das Escrituras, é difícil perceber como esse ponto — que lida com autores, individualmente, e com seus textos — pode justificar o estudo completo do cânon do N T como um conjunto discreto de literatura. Ninguém nega a legitimidade histórica da pesquisa sobre a teologia dos autores do NT individual­ mente. A questão é se os 27 textos que compreendem o cânon do NT possuem uma unidade teológica coesa. Baila é de grande auxílio ao argumentar sobre a possibilidade do aprendizado de algo a respeito dos grupos religiosos antigos a partir do estudo de seus cânones. O P entateuco Sam aritano fornecerá muitas afirmações a respeito da crença dos samaritanos, e o cânon marcionita apresentará informações importantes sobre a religião dos seguidores de Marcião. Mas isso meramente legitima o estudo da influência de um cânon particular, não o estudo individual dos autores canônicos (e de nenhum outro) em seus contextos históricos originais. Em outras palavras, os teólogos do N T não se interessam em descobrir a teologia do grupo dos cris­ tãos primitivos que mantiveram a totalidade dos documentos do NT como escri­ tos canônicos. Eles estão interessados, de maneira geral, em descrever a teologia dos autores individuais dos documentos canônicos e depois, mediante seu com­ promisso de fé, encontrar alguma coerência interna entre essas teologias. ’1 Wrede e Rãisãnen, portanto, estão certos. A necessidade de estudar a teologia do NT surge de dentro da comunidade cristã, não de fora dela. "'Baila, Challenges, p. 101. 4'Ibid., p. 106-14. '' Ibid., p. 116. ' Brevard S. Childs, The New Testament as Canon: An Introduction (Philadelphia: Fortress, 1985), p. 39, observa que alguém que não partilha da perspectiva teológica sobre o texto canônico pode, entretanto, descrever o testemunho do cânon para a fé cristã, mas, admite: “é raro encontrar uma exegese teológica expressiva do NT feita por quem tem pouco ou nada em comum com a fé proveniente dessa literatura”.

Rãisãnen não se encontra em uma posição menos confortável, todavia, quan­ do critica os teólogos do NT, por seu apego ao cânon, devido ao seu foco eclesiás­ tico reduzido. Apesar de desejar reconhecer que o trabalho acadêmico sobre o NT a serviço da igreja pode ser útil a quem está na igreja, ele apela para que todos os estudiosos do NT evitem identificar a vida da igreja com a vida em sentido mais amplo e levantar seus olhos para focalizar o horizonte global. “Teologia e exege­ se”, conforme alega, “necessitam de uma perspectiva global, um horizonte ecu­ mênico’, na acepção original da palavra”.32 Essa seria uma crítica válida, com a exceção de que vários teólogos do NT compreendem seu serviço prestado à igreja também como um serviço prestado ao mundo. Ao auxiliar a igreja a entender as afirmações do NT sobre o povo de Deus e sobre o mundo criado por ele, ajudavam a igreja em seus esforços de anunciar o evangelho. Muitos teólogos do NT criam que o evangelho é o que o mundo precisa escutar. Isso pode parecer imperialista, dependendo da perspectiva indi­ vidual, mas o horizonte desses estudiosos não é estreito. Wrede entendeu de forma equivocada a natureza da decisão dos estudiosos cristãos de limitar seus esforços ao cânon do NT. Wrede imagina que essa decisão implique submissão aos bispos e concílios da “igreja dos séculos II ao IV”, porque apenas seus pronunciamentos levaram à seleção dos livros que agora compreen­ dem o cânon do NT. Essa imagem, todavia, reflete um mal-entendido sobre o processo que criou o cânon. E verdade que o Sínodo de Laodicéia (c. 363) e os bispos do século IV como Cirilo de Jerusalém, Atanásio, Gregório de Nazianzo, Rufino e Agostinho declararam que apenas determinados livros eram canôni­ cos.53 Mas, em pelo menos quatro quintos da literatura citada, essas listas e pro­ nunciamentos meramente reconheceram de modo oficial os livros cuja autoridade já fora estabelecida nas comunidades presididas por essas autoridades.54 Os teólo­ gos do NT que observam os limites do cânon nao se curvam à autoridade de bispos e concílios, mas à vontade das comunidades cristãs que nos séculos passa­ dos usaram esses escritos para moldar a identidade da igreja.55 51Beyond New Testament Theology, 1. ed., p. 95-6; 2. ed., p. 155. 53Metzger, The Canon o f the New Testament: Its Origin, Significance, an d D evelopment (New York: Oxford University Press, 1987), p. 209-47. 54V. Kurt Aland, The Problem o f the New Testament Canon (CST 2; London: Mowbray, 1962), p. 18-24, e as pesquisas de Franz Stuhlhofer, Der Gebrauch der Bibel von Jesus bis Euseb: eine statistische Untersuchung zur Kanonsgeschichte (Monographien und Studien­ bücher 335; Wuppertal: Brockhaus, 1988). 55V. Luke Timothy Johnson, The Writings o f the New Testament. An Interpretation (Phila­ delphia: Fortress, 1986), p. 542, e cf. Childs, New Testament as Canon, p. 3-33, 39-40. Em última instância, a autoridade desses escritos procede do próprio Jesus, quem comis­ sionou os apóstolos a pregar o evangelho. A tradição de sua pregação, de seu testemu­ nho e de seu ensino está contida no NT e, portanto, a tradição possui autoridade apostólica. Sobre esse ponto, v. Herman N. Ridderbos, Redemptive History and the New Testament Scriptures (Phillipsburg, N.J.: Presbyterian and Reformed, 1963).

A questão dos pressupostos Gabler, Wrede e Rãisãnen, individualmente, apoiaram a separação da tarefa histórica da teológica. Quem funde as duas tarefas, eles afirmavam, obterá, por fim, a distorção dos resultados da pesquisa histórica. Por isso, Gabler atacou um estudioso de seu tempo, sem revelar-lhe o nome, por ter ousado “imprudente­ mente” a “atribuir algumas de suas mais inconsistentes opiniões aos escritores sacros”.56 Wrede cria que tão logo os teólogos do NT considerassem os escritos analisados como “normativos”, eles estariam psicologicamente inclinados a inves­ tigar minuciosamente os textos até que eles atingissem suas expectativas teológi­ cas.57 Rãisãnen está cônscio dos problemas hermenêuticos e filosóficos decorrentes da adesão às afirmações de alguns estudiosos bíblicos do século XIX sobre a pos­ sibilidade de o historiador descrever a história de forma pura, livre de precon­ ceitos pessoais; entretanto, ele cria que o instinto desses homens estava certo: O estudioso pensa, provavelmenre, tanto no passado quanto no presente o tempo todo (ou na maior parte dele). Mas ainda é possível distinguir os horizontes. E seria muito útil mantê-los separados ao apresentar os resulta­ dos aos leitores.58 O teólogo do NT deve aplaudir essa preocupação. Da mesma forma que o historiador do cristianismo primitivo, o teólogo do NT está interessado nos acon­ tecimentos históricos, aos quais o texto do NT oferece acesso parcial, e em ouvir com atenção os textos com o mínimo possível de predisposição pessoal. O pró­ prio NT liga suas afirmações teológicas às históricas. Se as afirmações históricas forem inverídicas, o edifício teológico deverá ruir necessariamente.59 Além do mais, os teólogos do NT que crêem na autoridade teológica dos textos do NT têm interesse em ouvir os textos com cuidado e não lhes impor algum sentido predeterminado. Krister Stendahl definiu a situação desse modo: Quanto mais intensa a espera pela liderança normativa, e mais rigorosas forem as afirmações de santidade das Escrituras, tanto mais indispensável é a atenção dada ao significado da Escritura no tempo de sua escrita e ao exame das possíveis intenções dos autores.60 Gabler, Wrede e Rãisãnen estavam certos ao demonstrar com que freqüência os estudiosos do N T falham por não viver à altura desses ideais, mas nenhum dos três reconhecia, aparentemente, o fato de as convicções teológicas dos teólogos do 'b“Distinction”, p. 135. ' “Task e Methods”, p. 69. ''Beyond New Testament Theology, 1. ed., p. 106; 2. ed., p. 166. Cf. idem, “Liberating Exegesis”, BJRL 78 (1996), p. 193-204. ' Cf. James Barr, The Scope and Authority o f the Bible (Philadelphia: Westminster, 1980), p. 28-9. '‘ Meanings: The Bible as D ocument an d as Guide (Philadelphia: Fortress, 1984), p. 7.

NT exigirem que eles também fossem bons historiadores. Tanto os pietistas ale­ mães, que escreveram teologias bíblicas nos séculos XVII e XVIII, quanto os par­ ticipantes do Movimento Bíblico Teológico de meados do século XX, desejavam evitar a imposição de convicções teológicas sistemáticas predeterminadas aos tex­ tos bíblicos.61 Eles podem ter continuado a impor sua teologia aos textos sem perceber, mas esforçaram-se para evitar essa situação. Reconheceram que a pessoa desejosa, honestamente, de acomodar-se sob a autoridade da Escritura deve ouvir a Escritura independentemente de quão perturbadora sua mensagem possa ser para as normas herdadas. Wrede estava errado ao dizer que teólogos e historia­ dores realizam seu trabalho com base em princípios diferentes. Os teólogos, por causa das afirmações históricas dos textos com as quais trabalham, e motivados pela submissão aos textos como a Palavra de Deus, precisam ser historiadores e, por isso, devem trabalhar com os recursos dos historiadores.62 Ao mesmo tempo, existe uma enorme diferença entre o historiador do cris­ tianismo primitivo não-cristão e o teólogo do N T que realiza o trabalho histórico a serviço da igreja. Apesar de o teólogo do NT e o historiador secular estarem interessados na história transmitida pelos textos canônicos, eles possuem opiniões divergentes sobre a importância de suas perspectivas acerca dos próprios textos. Os historiadores não-cristãos empregam todos os meios disponíveis para neutra­ lizar mentalmente as perspectivas dos textos canônicos. Os textos fornecem ape­ nas os dados com os quais o historiador secular tenta reconstruir a história do cristianismo primitivo sob outra perspectiva. O teólogo do NT, todavia, por causa do conceito básico da fé, deseja entender as perspectivas dos textos a respeito dos acontecimentos que fomentaram sua composição.63 As perspectivas dos textos sobre a história do cristianismo primitivo não são cascas dispensáveis a fim de o historiador poder enxergar mais claramente. Elas não são meramente dados históri­ cos que oferecem informações sobre a religião cristã primitiva. Para os teólogos do

61Sobre o papel do piestismo alemão no desenvolvimento da teologia bíblica, v. Hasel, New Testament Theology, p. 17-8; sobre os objetivos almejados e alcançados pelo Movi­ mento de Teologia Bíblica v. Steven J. Kraftchick, “Facing Janus: Reviewing the Biblical Theology Movement”, em Biblical Theology. Problems and Perspectives: In Honor o f J. Christiaan Beker, Steven J. Kraftchick, Charles D. Myers Jr. & Ben C. Ollenburger (eds.) (Nashville: Abingdon, 1995), p. 54-77. 62A síntese da obra histórica e teológica proposta por James Barr na aula inaugural de Interpretação da Sagrada Escritura, da Universidade de Oxford (Oriel College) (“Does Biblical Study Still Belong to Theology”) é mais satisfatória. Para ler o texto dessa aula, v. Scope an d Autority o f the Bible, p. 18-29, de Barr. 63Esse raciocínio fundamental, operando de forma diversa da razão, não é irracional. Ele foi reconhecido por uma ampla gama de filósofos. V., e.g., William James, “The Will to Believe”, em William James-. Writings: 1878—1899 (Library of America; New York: Li­ brary Classics of the United States, 1992), p. 457-79; C. Stephen Evans, Faith Beyond Reason-. A Kierkegaardian Account (Reason & Religion; Grand Rapids: Eerdmans, 1998); e Alvin Plantinga, Warranted Christian B elief (Oxford: Oxford University Press, 2000).

NT que consideram os textos portadores de autoridade, as perspectivas dos textos falam de seu verdadeiro significado. Eles são, em outras palavras, objetos de fé. Seria a fé do teólogo do NT um tipo de preconceito que tornaria inválida a análise histórica plausível do texto do NT? Com certeza,ela não é mais influente que as perspectivas dos historiadores seculares e seus esforços para realizar uma análise histórica. Gabler, Wrede e Rãisãnen aparentemente não entenderam isso No caso de Gabler e Wrede, que escreveram nos séculos XVIII e XIX, com relati­ vamente poucos recursos hermenêuticos, isso é perfeitamente compreensível. Já no caso de Rãisãnen, é mais inquietante, perceber que uma pessoa tão cuidadosa no reconhecimento da influência inevitável dos pressupostos na reconstrução histórica do cristianismo primitivo, tenha afirmado que os estudiosos da religião devem separar a transmissão da informação acerca das origens cristãs de qualquer tentativa de proclamação.64 O objetivo da transmissão de informações sobre o cristianismo, conforme ele afirma, deve pavimentar o caminho para o entendi­ mento, elucidar a identidade do ocidental moderno e, de forma geral, contribuir para a melhora da sociedade.65 Por ser esse seu objetivo, é difícil compreender em que sentido isso não constitui um tipo de proclamação.66 Todo historiador possui uma perspectiva, e todo historiador que escreve ou ensina história subscreve uma perspectiva.67 O teólogo do N T proclama a perspectiva dos textos, isso, porém, ^Raisãnen, Beyond New Testament Theology, 1. ed., p. 97-100; 2. ed., p. 156-9. Francis Wat­ son atribui a noção curiosa em círculos acadêmicos de que a interpretação bíblica e as questões teológicas devem ser mantidas separadas em prol da “privatização acentuada do compromisso religioso nas sociedades ocidentais modernas”, “a crença que questões teológi­ cas distorcem inevitavelmente os processos autônomos da exegese bíblica' e "a indisposição para aceitar a existência e o significado da teologia como disciplina, por direito, inaliená­ vel”. V. Text and Truth: Redefining Biblical Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), p. 4. Raisãnen, Beyond New Testament Theology, 2. ed., p. 116-7, pode apenas lamentar a conversão de Watson, anteriormente um brilhante historiador crítico, ao “dogmatismo”, mas parece desconhecer o fato de que Watson, mesmo antes de sua mudança, valia-se de um conjunto de conceitos básicos regidos pela cultura racionalista da academia. V. Evans, Faith beyond Reason, p. 32, e o material correlato nas p. 94, 121-2, a respeito da deficiên­ cia de sua cultura para reconhecer os próprios pressupostos. 6'Raisanen, BeyondNew Testament Theology, 1. ed., p. 96; 2. ed., p. 155; cf. “Liberating Exege­ sis”, p. 199. A tentativa de Raisãnen, na segunda edição (p. 155), de explicar por que “os resultados das análises não devem ser adaptados nem mesmo para as necessidades globais” não envolvem nenhuma proclamação, não responde de forma adequada à preocupação. "Aqui existem alguns paralelos com o argumento de William James em “Will to Believe” contra o conhecidíssimo ensaio de W. K. Clifford, “The Ethics of Belief”, The Contem­ porary Review 29 (1877): 289-309. Clifford declarou que crer em algo sem as bases empíricas adequadas para fazê-lo é imoral. James demonstrou com sucesso que seu con­ ceito jazia sobre a pressuposição não comprovada de que era melhor sustentar um pare­ cer sobre uma questão de fé a ser ingênuo. :~V. Rudolf Bultmann, “Is Exegesis without Presuppositions Possible”, em Existence and Faith: Shorter Writings o f R udolf Bultmann, Schubert M. Ogden (ed.) (Cleveland. World Publishing, 1960), p. 289-96 (essa citação é da p. 292).

não quer dizer que haja alguma perda de suas qualidades de historiador por fazêlo. Adolf Schlatter declarou o seguinte: É claro que o trabalho acadêmico, sem a tentativa honesta de deixar de lado todas as preocupações e opiniões de uma escola ou partido, e considerar os fatos seriamente, degenera em hipocrisia. Mas até essa tentativa honesta não pode se sobrepor ao fato de que um observador vê com os próprios olhos apenas o que suas certezas internas lhe permitem perceber.68 Além disso, não há razão para se pensar que a perspectiva da fé, ou qualquer outra, seja um obstáculo à pesquisa histórica. O partido desinteressado raramente é o melhor candidato para descobrir a verdade sobre qualquer questão. W illiam James fez a seguinte afirmação: Quem quiser obter um resultado falso em uma pesquisa, deve, depois de tudo, escolher o homem que não possui nenhum tipo de interesse pelo re­ sultado. Ele é absolutamente incapaz, o tolo por excelência. O pesquisador mais útil, por ser o observador mais sensível, sempre é aquele com o interesse sincero em um lado da questão, contrabalançado por uma nervosidade igual­ mente aguçada a fim de não ser enganado.69 Os estudantes da teologia do NT têm um interesse entusiástico por “um lado da questão” — o lado que informa e instrui acerca da fé. Eles necessitam ter cuidado para não serem enganados quando lêem o NT apenas para encontrar apoio para seus conceitos anteriores, ainda que a necessidade desse cuidado surja de seu interesse pelo N T como um texto sob cuja autoridade eles devem per­ manecer.

A legitimidade da teologia do NT Resumindo, os desafios que Gabler, Wrede e Rãisãnen apresentaram para os teólogos do NT auxiliam na elucidação do motivo pelo qual é possível estudar a teologia do NT e o propósito pelo qual esse estudo deve ser realizado. Wrede e Rãisãnen argúem vigorosamente que o estudo da teologia do NT, graças ao foco primário sobre o cânon cristão da Escritura, é fundamentalmente uma empreita­ da cristã, empreendida a partir da igreja. 68“The Theology of the NewTestament and Dogmatics”, em The Nature o f New Testament Theology: The Contribution o f William Wrede and A dolf Schlatter, Robert Morgan (ed.) (London: SCM, 1973), p. 122-3. Rudolf Bultmann concordava com Schlatter acerca do fato de o teólogo do NT não poder separar sua forma de pensar do jeito como vive. Entretanto, ele se posicionou ao lado da Escola da História das Religiões contra Schla­ tter no tocante à questão de os textos deverem ser objeto da fé. Os textos, conforme afirmou, por vezes, testemunham de forma vacilante e são culturalmente sobrecarrega­ dos a respeito do kerygma, e o kerygma deve ser o objeto da fé. V. Theology o f the New Testament, 2 vols. (New York: Charles Scribner’s Sons, 1951-55), vol. 2, p. 248-51. 69James, “Will to Believe”, p. 471.

Isso não significa, todavia, que o estudo da teologia do NT seja um ato de submissão ao Concílio do século IV e aos bispos que canonizaram os documentos do NT. Os cristãos que se dedicam ao estudo da teologia do NT dão continuidade às comunidades que estimaram esses livros desde os tempos primevos como a pedra de toque da identidade cristã. Sua decisão de tratar exatamente esses livros também procede de uma convicção interna e espiritual de que eles são a Palavra de Deus. Tampouco, a decisão de trabalhar o cânon para a igreja é mais desleal que o foco global. Os teólogos do N T crêem, de forma geral, que o evangelho anuncia­ do por ele mediante seu trabalho pode ajudar as pessoas que estão fora da igreja ao tornar-lhes as Escrituras inteligíveis para conduzi-las a um encontro com Deus. Gabler, Wrede e Rãisãnen também afirmam tenazmente que os intérpretes, para que se dê atenção ao texto do NT, devem trabalhar para sobrepujar seus conceitos anteriores sobre o que os textos deveriam dizer. Esse é um princípio com o qual os teólogos do N T devem concordar, apesar de os historiadores nãocristaos estarem interessados pelo cristianismo primitivo por razões diferentes. Os historiadores do cristianismo primitivo esperam reunir seus pressupostos na ten­ tativa de ouvir o texto a fim de poderem descobrir as informações históricas com as quais devem elaborar a história do cristianismo primitivo. Os teólogos do NT que trabalham a partir da igreja e para ela esperam escutar o texto, em vez de fazer ecoar a própria voz, porque eles acreditam que a perspectiva do texto, e nao que seus pressupostos, deva delinear a identidade da igreja. Wrede e Raisãnen duvidavam que os teólogos do NT que escreviam a serviço da igreja, com o propósito de proclamar sua mensagem, pudessem restringir a in­ fluência de seus pressupostos o suficiente para conceder a esses esforços legitimidade histórica e, ao tentarem empreender essa tarefa, apontar com justiça exemplos de falhas diversas de teólogos do NT. Contudo, não há motivo para justificar a suspeita de que teólogos do NT não possam ser tão bem-sucedidos ao ouvir os textos como os historiadores seculares. Todo historiador, incluindo o que argúi contra o viés teológico, está engajado de alguma forma na proclamação. O estudo da teologia do NT não é, portanto, um empreendimento tacanho, ou que leve ao próprio fracasso. Quando realizado pela igreja, sob a autoridade dos textos, pode prover os meios pelos quais a voz profética dos textos seja ouvida claramente na igreja moderna e, mediante a igreja, no mundo. Mesmo que seja possível, a princípio, analisar o NT teologicamente, todavia, as tendências teológicas rivais internas do NT tornariam possível a composição de uma “Teologia do N T”? D i v e r s i d a d e o u C o n t r a d iç ã o ?

O problema Todo cristão que já se engajou no estudo sério do NT ficou aturdido pela diversidade de suas afirmações teológicas. Algumas vezes, ao menos à primeira

vista, parece que elas alcançam o ponto da contradição. Como Pedro pôde dizer que Deus não deseja que ninguém se perca, quando Marcos declara que Jesus contou parábolas para evitar o arrependimento de alguns de seus ouvintes (2Pe 3.9; Mc 4.12)? Como Jesus pôde anular as leis dietéticas de Moisés no evangelho de Marcos (Mc 7-15,19) e, ao mesmo tempo, afirmar, tanto em Mateus quanto em Lucas, que nem o menor traço da Lei desapareceria (Mt 5-18; Lc 16.17)? Como Tiago pôde usar Gênesis 15.6 (“Abrão creu no S e n h o r , e isso lhe foi creditado como justiça”) para demonstrar que a fé de Abraão “foi aperfeiçoada pelas obras” (Tg 2.22), quan­ do Paulo usa o mesmo texto para provar que “Deus [...] justifica o ímpio” (Rm 4.5)? Como Paulo pode dizer que não é livre, em Gálatas 3.28, mas que os escravos devem obedecer a seus senhores terrenos com temor e tremor em Efésios 6.5? Os estudiosos do NT produziram uma lista mais sofisticada e longa. A teolo­ gia do Jesus histórico não coaduna com a teologia que os autores dos evangelhos colocaram em sua boca. A teologia da glória advogada em Lucas—Atos contradiz a teologia da cruz encontrada em Paulo. A teologia da “fonte de sinais” de João contradiz a teologia do próprio João. Paulo se contradiz muitas vezes acerca da lei mosaica. A imagem institucionalizada, “católica primitiva”, da igreja, extraída das cartas pastorais contradiz a versão pouco organizada e guiada pelo Espírito da igreja das cartas autênticas. E essa é apenas a ponta do grande iceberg. Como veremos nas páginas seguintes, diversos “problemas” teológicos do NT evaporam-se sob o escrutínio cuidadoso histórico e literário. Mesmo assim, está claro que o N T é uma coleção de escritos caracterizados pela diversidade teológica. Como os cristãos devem lidar com ela?

Um cânon dentro do cânon? Desde o Iluminismo, tornou-se praxe resolver o problema da diversidade teológica no NT definindo um “cânon no cânon”. Essa abordagem especifica um conjunto de ensinamentos teológicos no NT que todos os cristãos devem aceitar e que serve como um padrão teológico segundo o qual teologias rivais no NT podem ser medidas. Essa abordagem sobre a diversidade teológica no NT possui uma longa história, mas suas raízes modernas parecem estar amparadas na afir­ mação de Martinho Lutero de que “justificação pela fé” é a pedra de toque de toda a teologia, incluindo a teologia representada pelo cânon cristão.70 Lutero, de "Intérpretes tão diferentes quanto Rudolf Bultmann, Theology o f the New Testament, 2 vols. (New York: Charles Scribners’ Sons, 1951-55), vol. 2, p. 238, e Luke Timothy Johnson, The Real Jesus: The M isguided Quest fo r the H istojical Jesus and the Truth o f the Traditional Gospels (San Francisco: HarperSanFrancisco, 1996), p. 69, reconhecem isso. Lutero, porém, também se diferencia dos defensores mais recentes do cânon no cânon de formas muito relevantes. Paul Althaus, The Theology o f Martin Luther (Philadelphia: Fortress, 1966), p. 82-6, destaca que o critério de Lutero para a discriminação dos docu­ mentos canônicos não era a razão, a ciência, ou uma teoria sobre a existência humana, mas o evangelho da graça de Deus em Cristo, que ele encontrara na própria Escritura. Agradeço ao dr. Sigurd Grindheim por trazer esse ponto à minha atenção.

acordo com seu padrão, considerava quatro livros canônicos — Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse — deficientes e relegou-os a um apêndice em sua tradução da Bíblia. Ele era especialmente hostil em relação a Tiago por causa de sua afirmação de que a fé sem obras está morta e de sua aparente falta de ensino acerca de Cristo. Falando aos estudantes da Universidade de Wittenberg, ele comentou: “Devería­ mos lançar a epístola de Tiago para fora desta escola”. 1 O evangelho de João, as cartas de Paulo e 1Pedro, ao contrário, formavam “o verdadeiro cerne e a essência de todos os livros”.72 Essa abordagem floresceu no século XVIII, especialmente na Alemanha, e reapareceu na famosa aula inaugural de Gabler. Como vimos, Gabler argiiia que após os estudiosos da Bíblia terem compreendido o material bíblico em seu con­ texto original, eles devem separar o que nas Escrituras é culturalmente condicio­ nado, vinculado ao tempo e inútil das verdades teológicas universais que podem ser garimpadas de suas páginas. Assim que essas verdades univeçsais tenham sido cuidadosamente colhidas e buriladas de seu ambiente histórico original, elas po­ dem ser entregues aos teólogos sistemáticos, que, desse modo, poderão usá-las para elaborar uma teologia moderna aceita universalmente. Essa não é simples­ mente uma questão de transferir o princípio teológico subjacente a certos textos culturalmente condicionados ao mundo moderno, mas pode englobar a distinção entre o reconhecimento das “opiniões dos apóstolos” e o que é “verdadeiramente divino”, as verdades dogmaticamente úteis da Escritura.73 Muito tempo depois, Rudolf Bultmann afirmou que os escritores do NT obscureciam, com freqüência, seus mais profundos insights teológicos com mito­ logias antigas e adornos culturais. Conforme ele afirmou: “Os teólogos do NT devem usar o conhecimento enciclopédico da cultura antiga e o entendimento apurado do problema perene da existência do ser humano a fim de separar o mito do in sight no N T ”.74 Bultmann denominou esse procedimento “crítica de con­ teúdo” (Sachkritik) e acreditava que, mediante sua implementação cuidadosa, se­ ria possível obter-se um conhecimento dos escritores do NT mais completo até do que eles possuíam acerca de si mesmos. Por exemplo, Bultmann cria que Paulo, ao falar sobre a ressurreição dos mortos em 1Coríntios 15, inevitavelmente envolveu o conteúdo verdadeiro do que ele tinha a intenção de dizer no “mito oriental da salvação do Homem Original”.7’ 'LW, vol. 54, p. 424-5. 'Martin Brecht, Martin Luther, 2 vols. (Minneapolis: Fortress, 1990), vol. 2, p. 50-2. Gabler, “Distinction”, p. 143. A., e.g., a resenha de Bultmann (de 1926) da obra de Karl Barth Die Auferstehung der Toten, em Faith and Understanding, Robert W. Funk (ed.) (Philadelphia: Fortress, 1987), p. 66-94, esp. p. 72, 86, 92-3. Um resumo desse elemento da hermenêutica de Bultmann aparece em Erich Grässer, “Der Schatz in irdenen Gelassen (2 Kor 4,7). Existentiale Inter­ pretation im 2. Korintherbrief”, ZTK97 (2000): 300-16 (essa citação é das p. 301-3). 'Bultmann. Faith and Understanding, p. 82.

Ainda que não mais possamos aceitar o mito da forma transmitida por Paulo, podemos transfixá-lo no ponto básico: “Quando Paulo fala da ressurreição dos mortos, torna-se claro que ele fala a nosso respeito, sobre nossa realidade, nossa existência, e da realidade na qual estam os inseridos”. 76 As vezes, Paulo se desvia do caminho desses insights transcendentes, como nas vezes em que ele faz uma apolo­ gia da ressurreição de Jesus dentre os mortos como um fato histórico e crível (IC o 15.3-8). Esses desvios do conteúdo real, feitos por Paulo, devem ser deixa­ dos de lado — junto com os adornos culturais nos quais seu significado verda­ deiro é expresso — como algo irrelevante para a igreja de nossos dias.77 Um dos alunos de Bultmann, Ernst Kásemann, usou termos ainda mais radi­ cais para descrever a abordagem de seu mestre relativa ao texto, chegando tam­ bém a conclusões mais radicais. Ele afirmou que o NT contém “contradições teológicas inconciliáveis”.78 Por causa delas, ele declarou que algumas tendências teológicas importantes do NT como o movimento em direção à estruturação institucional e a aceitação inconteste da autoridade (“catolicismo primitivo”), deveriam ser rejeitados.79 Algumas feministas e alguns teólogos ligados à Teologia da Libertação seguiram essa linha ao afirmar que a experiência dos oprimidos deve receber o status de revelação divina e que essa nova revelação deve julgar elementos do cânon supos­ tamente patriarcais, elitistas e homofóbicos.80 Por isso, Neil Elliott afirmou que as seis cartas do N T falsamente atribuídas a Paulo descrevem um apóstolo “aburgue­ sado” que defende a escravidão e a opressão das mulheres. O próprio Paulo ensi­ nara a libertação dos socialmente oprimidos, mas a igreja permitiu, com muita freqüência, que o “falso” Paulo desses pseudepígrafos tomasse o controle do ver­ dadeiro Paulo das cartas autênticas. A igreja deveria, portanto, rejeitar o Paulo “burguês” das cartas pastorais e retornar ao Paulo original que possuía um progra­ ma contendo mudanças sociais radicais.81 76Ibid„ p. 81. 77Ibid., p. 83-4. 78Kâsemann, Essays on New Testament Themes, p. 100. Cf. idem, “The Problem of a New Testament Theology”, NTS 19 (1972-73): 235-45 (essa citação é da p. 242), e The Testa­ ment o f Jesus: A Study o f the Gospel o f John in the Light o f Chapter 17 (Philadelphia: Fortress, 1968), p. 76. 79Ernst Käsemann, New Testament Questions o f Today (Philadelphia: Fortress, 1969), p. 236­ 51. Uma perspectiva similar aparece em, e.g., W. G. Kümmel, “Notwendigkeit und Gren­ ze des neutestamentlichen Kanons”, ZTKA7 (1950): 227-313; LIerbert Braun, “Hebt die heutige neutestamentliche-exegetische Forschung den Kanon auf?” Fuldaer Hefie 12 (1960): 9-24; e os comentários de Robert Morgan sobre a necessidade que a Sachkritik possui da interpretação teológica do evangelho de João em “Can the Critical Study of Scripture Provide a Doctrinal Norm?”/Æ 76 (1996): 206-32 (essa citação é da p. 221). 80V. o levantamento abrangente de algumas dessas abordagens no livro de John Riches: A Century o f New Testament Study (Valley Forge, Penn.: Trinity Press International, 1993), p. 219-22. 8,Neil Elliott, Liberating Paul: The Justice o f God and the Politics o f the Apostle (Maryknoll, NY: Orbis, 994), p. 25-90 [Publicado em português com o título Libertando Paulo: a justiça de Deus e a política do apóstolo (São Paulo: Paulus, 1998)].

Esse método, há muito utilizado, de lidar com a diversidade teológica do cânon é insatisfatório por duas razões. Primeira, ele é subjetivo e individualista. E capaz de proclamar a inexistência de autoridade maior que o juízo de um indi­ víduo ou de um grupo de pessoas que julgam determinado texto como nao-autoritativo.82 Por essa razão, é difícil saber como as pessoas que defendem o cânon dentro cânon podem responder aos intérpretes que consideram seu cânon exata­ mente os textos que outros rejeitaram por serem pré-científicos ou opressivos. O que Rudolf Bultmann diria à pessoa que preferisse adotar a mitologia arcaica de Paulo em lugar do existencialismo de Bultmann? O que Ernst Kasemann diria da pessoa que desejasse tornar o “catolicismo primitivo” do NT normativo? E qual seria a base para Neil Elliott afirmar que o Paulo histórico é mais autenticamente cristão que a versão burguesa das cartas pastorais? O que é desprezado por uma pessoa pode ser muito bem aceito por outra, e é difícil dizer como a abordagem do cânon-no-cânon pode elevar de modo legíti­ mo a força teológica de um texto como autenticamente cristão, mas descartar outro como ofensivo.83 A afirmação de Kasemann: “A autoridade do cânon nunca é maior que a autoridade do evangelho que deve proceder dele” não soluciona o problema.84 Essa asserção apenas inspira a pergunta: “Qual definição do evange­ lho deve ser aceita, e com que autoridade devemos aceitá-lo?”. Segunda, essa abordagem falha ao não reconhecer a antiguidade e universa­ lidade do cânon. Uma parte do cânon que possa parecer inútil, em certas condições, a uma geração de cristãos ou a todos os cristãos pode ser uma voz profética de Deus para outra geração de cristãos ou àqueles que estão em outros moldes. Como diz Luke Timothy Johnson: “A medida que pode ser alterada pela adição ou sub­ tração a qualquer momento e lugar não pode ser aplicável a todos os tempos e lugares”.85 A exclusão dos textos do NT supostamente primitivos ou opressivos, portanto, não é a resposta adequada ao problema da diversidade teológica interna. Em resumo, o foco em um conjunto teológico irredutível do NT e a rejeição dos elementos que falham em manterem-se uníssonos com esse conjunto não 5~Essa é uma crítica comum e legítima do catolicismo romano. V., e.g., a análise cuidadosa da posição de Käsemann no livro de Hans Küng, Structures o f the Church (New York: T. Nelson, 1964), p. 152-67, esp. seus comentários na p. 162. i?Cf. Wayne A. Meeks, “The ‘Haustafeln’ and American Slavery: A Hermeneutical Cha­ llenge”, em Theology and Ethics in Paul and His Interpreters: Essays in Honor of Victor Paul Furnish, Eugene H. LoveringJr. e Jerry L. Sumney (eds.) (Nashville: Abingdon, 1996), p. 232-53. P. 248: “O problema é este: se tudo é ideologia, torna-se difícil perceber como o opressor será persuadido por qualquer compunção moral que possa ser partilhada com os revisionistas. O pessimista pode concluir, por fim, que apenas o poder conta. Os aboli­ cionistas foram incapazes de persuadir os donos de escravos; a escravidão deixou de ter um apelo ético na sociedade americana pelo fato de uma guerra ter sido vencida e perdida”. '"Käsemann, The Testament o f Jesus, p. 76. "Johnson, Writings o f the New Testament, p. 545. Cf. Metzger, Canon o f the New Testa­ ment, p. 279-82, e Childs, The New Testament as Canon, p. 30.

constituem uma estratégia bem-sucedida para competir com a diversidade teológica do NT. Ela seria bastante subjetiva e míope. E necessário seguir outro caminho.

Um caminho melhor Uma estratégia mais promissora para lidar com a diversidade existente no NT é reconhecer seus principais temas teológicos e, depois, seguir duas vias quan­ do surgirem desses temas desvios relevantes. Algumas vezes é necessário olhar mais de perto para os textos que supostamente vão de encontro à tendência teológica predominante. Não raro, esses textos são desclassificados de forma rápida sem a avaliação adequada do relato de seu contexto literário ou histórico. Quando ins­ pecionados mais detidamente, e havendo boas razões históricas, esses textos po­ dem não ter se desviado da tendência teológica predominante do NT. A afirmação de que o NT contém contradições teológicas fundamentais pode ser rebatida com contra-argumentos razoáveis. Esses se baseiam tanto no entendimento de que os textos do N T são a Palavra de Deus quanto em bons procedimentos histórico-críticos. Outras vezes, porém, mesmo a melhor reconstrução histórica do texto parece apresentar um significado que contradiz a tendência teológica predominante do cânon. Quando isso acontece, parece ser necessário considerar as aparentes di­ vergências teologicamente significativas. Se tentarmos minimizá-las mediante a poda do cânon até resultar no tamanho que nos satisfaça teologicamente ou por meio da realização de harmonizações implausíveis, empobreceremos nosso enten­ dimento sobre Deus. A diversidade teológica do N T nos mostra que Deus está, simultaneamente, próximo de nós, e também além de nossa compreensão.

A tensão como evidência da imanência de Deus A tensão nos mostra que Deus está próximo de nós porque as divergências teológicas aparentes do cânon resultam, muitas vezes, da natureza profundamente contingente dos escritos do NT. Se Lucas e Marcos tivessem escrito em co-autoria um tratado sobre a lei mosaica, é bem provável que soubéssemos com absoluta certeza que Jesus não invalidara nenhuma parte da lei mosaica, ainda que tenha declarado a anulação da lei concernente aos alimentos. Se Paulo tivesse escrito um livro sobre escatologia, é provável que entendêssemos claramente como Jesus pode vir de forma inesperada — como um ladrão à noite — e ainda o aparecimento de certos sinais precedendo sua vinda. No entanto, Lucas e Marcos escreveram evan­ gelhos, e Paulo escreveu cartas às primeiras comunidades cristãs. Seu propósito não era a reflexão teórica, mas convocar pessoas ao arrependimento e prover su­ pervisão pastoral para diversas igrejas locais. Por esse motivo, não se pode ter certeza absoluta a respeito da harmonização de algumas declarações teológicas tensivas, o que, por vezes, pode nos desconcertar. Perde-se, portanto, o conjunto mais amplo de conhecimento que provê a chave para obter a coerência.

Seria mais fácil lamentar nossa perda. Antes de fazê-lo, entretanto, devemos nos lembrar da vantagem teológica de ter um conjunto de Escrituras fundamen­ talmente evangelísticas e de natureza pastoral. O fato de Deus ter se revelado a nós dessa forma demonstra seu caráter gracioso e sua iniciativa de se aproximar de seu povo em meio à sua existência diária. Ele está interessado nos problemas enfrentados por Onésimo, o escravo fugitivo, por Epafrodito, o mensageiro doente, e por grupos sociais marginalizados como os pobres, a respeito de quem Lucas e Tiago expressam grande interesse.

A tensão como evidência do caráter transcendente de Deus A diversidade teológica do NT deve, por um lado, mostrar-nos a proximi­ dade de Deus; porém, por outro lado, ela deve nos apresentar também o fato de que as pessoas são incapazes de compreender a Deus plenamente. A resolução de algumas tensões teológicas do N T ultrapassa, certamente, o entendimento do cristão que afirma que o NT é a Palavra de Deus. Isso não significa que as tensões não possuam explicações plausíveis, mas apenas que elas estão além da capacidade humana de raciocinar, por esta ter sido maculada pelo pecado e pela fraqueza. Se isso for fideísmo, então será aquilo que o filósofo C. Stephen Evans designa “fideísmo responsável” — o conceito de que a razão possui papel importante a desem­ penhar na compreensão de Deus e de sua Palavra, apesar de ser razoável reconhecer suas limitações, ultrapassáveis apenas pela fé.86 Essa forma de entender diferentes aspectos da revelação divina aparentemente em tensão uns com os outros possui precedente no próprio NT. Em Romanos 9— 11, por exemplo, Paulo lida com um problema que parece opor as promessas de Deus a Israel, encontradas nas Escrituras, ao evangelho explicado por Paulo em Romanos 1— 8. Paulo argumentou extensivamente nesses capítulos a respeito da pecaminosidade e da queda sob a justa condenação divina tanto de judeus quanto de gentios. Por causa disso, conforme Paulo afirma, o judeu não possui nenhuma vantagem sobre o gentio no dia do juízo — à parte da fé em Cristo Jesus, ambos permanecerão condenados. Além do mais, o evangelho obteve grande sucesso entre os gentios, em vez de entre os judeus. Isso significa que não somente os judeus permanecem condenados da mesma forma que os gentios sem Deus, mas que muitos gentios experimentaram a graça de Deus e se tornaram parte de seu povo, ao mesmo tempo em que muitos judeus foram cortados do povo de Deus e incorreram em sua condenação. Mas se isso for verdade, o que terá aconEvans, Faith beyond Reason. Evans afirma que apesar de o termo “fideísmo” ser comumente usado de modo pejorativo, filósofos tão diversos quanto Tomás de Aquino, William James e Immanuel Kant encontram um papel para a fé chegar à verdade que ultrapassa tudo o que a razão é capaz de alcançar por si mesma. Em sentido oposto, Kierkegaard, geralmente considerado defensor de uma forma irracional de fideísmo, revela a preocupação de que a razão pudesse desempenhar algum papel na busca pela verdade. Todos esses pensadores rodem ser descritos como advogados do “fideísmo responsável”.

tecido com as promessas divinas, particularmente as encontradas nos livros proféti­ cos, de que Deus daria a seu povo um novo coração, estabelecendo com eles uma nova aliança, e restaurando-os ao estado anterior? A carta de Paulo parece estabele­ cer uma contradição irreconciliável com as promessas divinas de caráter profético. A explicação de Paulo acerca dessa tensão é complexa e, com base nas Escri­ turas de Israel, inesperada. Paulo afirma em Romanos 11.7-32 que, apesar da aparência contrária, Deus se manterá fiel a Israel, seu povo, e um dia todo o Israel será salvo mediante a fé em Cristo. De forma contrária às expectativas, Deus planejou fazê-lo ao trazer um grande número de gentios para a companhia de seu povo, de forma tal que eles ultrapassariam o número de judeus. Entretanto, isso não significa que os judeus serão excluídos. Ao contrário, os gentios incitarão ciúmes nos judeus por causa das promessas feitas por Deus em suas Escrituras, e estas, por sua vez, os conduzirão a aceitar o evangelho. Ninguém poderia ter predito, com base nos escritos de Paulo, que Deus atuaria dessa forma para cum­ prir suas promessas, mas ele revelou a Paulo o mistério de sua atuação para atingir esse objetivo. A natureza inesperada desse plano conduziu Paulo à doxologia en­ contrada na parte final do capítulo 11 (v. 33-36) de sua carta aos Romanos. Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos! “Quem conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro?” “Quem primeiro lhe deu, para que ele o recompense?” Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém. Paulo não afirma nesse ponto que Deus é irracional, mas que a racionalidade divina está às vezes além da compreensão do ser humano até que ele se mostre de forma mais clara.87 Portanto, quando encontramos tensões teológicas aparente­ mente irreconciliáveis no NT, precisamos ser relembrados da “profundidade da riqueza da sabedora e do conhecimento de Deus”.

87Carson, “Unity and Diversity in the New Testament: The Possibility of Systematic Theo­ logy”, em Scripture and Truth, D. A. Carson e John D. Woodbridge (eds.) (Grand Rapids: Zondervan, 1983), p. 93-4.

Se uma tensão tão profunda entre as promessas dos profetas e a mensagem final do evangelho pode ser resolvida de forma tão surpreendente, então podemos esperar que outras dificuldades relativas ao próprio NT possam ter soluções simi­ larmente surpreendentes. Os estudantes do NT devem, portanto, resistir à ten­ tação de rebaixar a diversidade teológica do NT ao patamar de uma série de declarações lógicas tão rígidas que a ponto de perder o sentido do mistério da grandeza de Deus.

Teologia do Novo Testamento e diversidade teológica: um resumo A diversidade teológica do NT não pode ser usada como arma nas mãos da razão humana para forçar os intérpretes cristãos do N T a desistir de seu estudo da teologia do NT. A própria razão deveria reconhecer sua utilidade e limitações e perceber que a fé lida com seus limites. Os intérpretes cristãos têm razões filosó­ ficas muito bem embasadas para, desse modo, conceder a seus textos o benefício da dúvida. Os cristãos não devem explicar a diversidade teológica do NT ao afir­ mar que ele possui tendências teológicas incompatíveis e usar uma dessas tendên­ cias para desqualificar as demais. Ao mesmo tempo, os cristãos devem honrar o antigo compromisso da igreja com a diversidade teológica dos textos, compromisso estabelecido por volta do fim do século II mediante o lugar de destaque concedido aos quatro evangelhos, como veremos no próximo capítulo. Os que minimizam o escândalo da diver­ sidade textual mediante a harmonização dos textos foram rejeitados de forma cabal, e talvez tão rápida, quanto os que reduziram radicalmente o número de textos. E necessário que a diversidade canônica permaneça como testemunha da imanência e da transcendência de Deus que, a despeito de sua sabedoria infinita, veio ao nosso encontro onde estamos por meio de sua Palavra. H is t ó r ia , t e o lo g i a , u n id a d e e d iv e r s id a d e n o e s tu d o TEOLÓGICO DO

NT

O estudante de teologia do NT enfrenta dois desafios críticos: o desafio do historiador que crê na tendenciosidade do trabalho histórico dos teólogos do NT, e o desafio de quem crê que a teologia do NT possui uma diversidade irreconcil­ iável. Muitos opositores da disciplina da Teologia do NT, pelo menos praticada por cristãos professos, alegam que ela é metodologicamente falha. Formulam afir­ mações históricas, mas elas são tão ligadas a pressupostos teológicos que as afir­ mações históricas são de pequeno valor exceto, talvez, para quem já está convencido delas. Essa é uma crítica séria porque, se for verdadeira, o teólogo do NT deixará de afirmar uma das convicções mais importantes do cristianismo — que suas

alegações de veracidade são baseadas em fatos históricos — coisa que nenhum historiador incrédulo aceitaria. Neste capítulo vimos que os cristãos aceitam o conceito básico de que o NT é a Palavra de Deus e, portanto, um conjunto especial de literatura cujas perspec­ tivas teológicas valem a pena ser estudadas. Isso não significa, todavia, que a teo­ logia do NT é uma disciplina irracional ou completamente invalidada por apoiar-se em pressupostos irracionais. Diversos filósofos de peso reconheceram que uma idéia básica, como a fé, pode desempenhar um papel racional, junto com a razão, para chegar à verdade. A razão possui limitações que sua “razoabilidade” deve reconhecer. Além do mais, a maior parte dos historiadores reconhece até mesmo as abor­ dagens da análise histórica mais objetiva feitas pelos incrédulos com base em motivações pessoais e a partir de pressupostos particulares. A existência de pres­ supostos é inevitável e não deveria atrapalhar o estudo da história, quer para o crente quer para o incrédulo. Os crentes possuem uma boa razão para agrupar, com cuidado, pressupostos que não levantam questões a respeito do conceito básico de que o NT é a Palavra de Deus; eles, quando lêem o NT, são motivados pelo desejo de escutar não o eco dos próprios preconceitos, mas a voz do próprio texto. Procedendo apenas dessa forma eles ouvirão a Palavra de Deus. Pela mesma razão, o crente que estuda a teologia do NT deve honrar sua diversidade teológica interna. Apesar da visão básica de que a fé pode assegurar a conclusão de que as ênfases teológicas dos documentos do NT não são, em últi­ ma instância, contraditórios, essa mesma convicção proíbe a solução do proble­ ma da diversidade teológica, quer mediante a redução do testemunho dos textos a um núcleo harmonioso, quer pela apresentação de harmonizações implausíveis. O conceito básico da fé dita que os 27 documentos do NT encerram um objeto de estudo apropriado. O papel crucial da história na fé cristã dita que os estudantes de teologia do NT considerem esses documentos em seu contexto histórico, a fim de entendê-los de forma tão objetiva quanto possível, dentro dos limites do compromisso cristão, e que eles tentem honrar tanto a unidade quanto a diversidade teológica desses 27 textos. Nos capítulos seguintes, tentaremos honrar a diversidade teológica do NT descrevendo as ênfases teológicas dos 27 textos e também as conexões teológicas entre esses textos diversos resumindo-os em grupos com características literárias e históricas similares (os evangelhos e Atos, as cartas paulinas, as cartas não-paulinas, o Apocalipse) e, no final, com um panorama teológico concludente.

Parte um OS EVANGELHOS E ATOS

Capítulo 2

A tenacidade e a importância do evangelho quádruplo

O NT contém quatro testemunhos narrativos do ministério de Jesus, e todos descrevem o significado teológico de Cristo de formas distintas. Pelo fato de Atos dos Apóstolos ser parte da narrativa em “dois atos”, de Lucas, ele integra o teste­ munho narrativo quádruplo de Jesus. Existe um vasto campo teológico comum entre esses livros — eles descrevem “o evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus” (Mc 1.1) — mas sao também, como sugerem os títulos, testemunhos discretos de quatro autores separados (independentemente de quem sejam) desse evangelho único. A falta de disposição dos diversos cristãos primitivos, pelo menos a partir do século III, de considerar outros evangelhos além dos quatro como testemu­ nhos narrativos primários sobre o significado de Jesus constituiu, e permanece, uma questão apologética para a igreja. De forma similar, a pluralidade e a diver­ sidade das quatro testemunhas têm sido, com o passar dos séculos, o deleite dos críticos da igreja. A despeito da pressão intensa dos oponentes do cristianismo (contando-se os movimentos heréticos que desejam identificar-se com o cristianismo histórico e os próprios cristãos ortodoxos), a igreja se posicionou, posteriormente, contra a aceitação de qualquer das narrativas desses evangelhos ou a redução da plura­ lidade ofensiva dos evangelhos a uma narrativa simples e controlável. A maioria dos cristãos insistiu, no decorrer dos séculos, que essas quatro narrativas do evan­ gelho, com toda a sua diversidade, e apenas essas quatro, portam o testemunho totalmente confiável do evangelho único de Jesus Cristo. Portanto, antes de pes­ quisar as intenções teológicas peculiares dessas quatro narrativas e discutir o que as une nos capítulos seguintes, será de grande ajuda refletir sobre as razões da igreja antiga, relativas a seu compromisso com esses quatro evangelhos, e também sobre a relevância de seu raciocínio contra os desafios mais recentes contrários à sua autoridade.

A DIVERSIDADE ENTRE OS EVANGELHOS: UM PROBLEMA DA IGREJA PRIMITIVA

Os esforços para reduzir ou harmonizar os evangelhos Já no início do século II, alguns seguidores de Jesus perceberam que a diver­ sidade dos quatro evangelhos mais aceitos constituía um problema. Em meados do mesmo século, Marcião afirmou que os quatro evangelhos refletiam tendên­ cias judaizantes corruptas de seus escritores. Ele tentou restaurar o evangelho pauli­ no, único, a toda a sua pureza mediante a edição radical do evangelho de Lucas (dos quatro, o mais diretamente ligado a Paulo).1Alguns anos mais tarde, os seguidores de Marcião declararam que as diferenças entre sua edição do evange­ lho e os evangelhos da igreja ortodoxa assinalavam a falsidade daqueles.2 O E vangelho d e P edro também apareceu por volta desse tempo e ele, apesar de não possuirmos seu texto integral nem conhecermos os motivos que originaram sua composição, pode ter sido uma tentativa de combinar elementos dos quatro evangelhos mais aceitos (além da adição de materiais de outras fontes) em uma única narrativa.3 Ela seria, dessa forma, atribuída ao preeminente apóstolo Pedro. Embora seja impossível afirmar com certeza absoluta isso, o editor desse texto pode ter desejado produzir o evangelho único, detentor de autoridade, para subs­ tituir os quatro evangelhos amplamente conhecidos pela igreja.4 Tentativas mais ortodoxas de harmonização foram feitas por Justino M ártir e Teófilo de Antioquia, mas o empenho de Taciano, discípulo de Justino, foi mais a

'Martin Hengel, The Four Gospels and the One Gospel o f Jesus Christ (Harrisburg, Pa.: Trinity Press International, 2000), p. 31-3. 2Tjitze Baarda, “DIAFWNIA-SUMFWNIA: Factors in the Flarmonization of the Gos­ pels, Especially in the Diatessaron ofTatian”, em Gospel Traditions in the Second Century: Origins, Recensions, Text, and Transmission, ed. William L. Petersen (CJA 3; Notre Dame, Ind.: University of Notre Dame Press, 1989), p. 133-54 (essa citação é da p. 127), — citação de Dial. Adam. 7.1. 3Ibid., p. 141. Cf. Flengel, Four Gospels, p. 13. Contra a idéia de que o evangelho de Pedro, ou parte dele, fosse mais velho que os evangelhos canônicos, v. R. E. Brown, “The Gos­ pel of Peter and Canonical Gospel Priority”, NTS 33 (1987), p. 321-43; John P. Meier, A M arginal Jew : Rethinking the Historical Jesus, 3 vols. (ABRL; New York: Doubleday, 1991-2001), vol. 1, p. 116-8 [publicado em português com o título: Um ju deu margi­ nal: repensando o Jesus histórico (3 vols. Rio de Janeiro: Imago, 1996-2004)]; e James D. G. Dunn, Jesus Remembered (Grand Rapids: Eerdmans, 2003), p. 164, 170. 4V. Oscar Cullmann, The Early Church, A. J. B. Higgins, ed. (London: SCM, 1956), p. 47, que também sugere a composição de o Evangelho segundo Basilides e o Evangelho dos Doze, mencionados por Origenes (Horn. Luc. 1 sobre Lucas 9.5), foram escritos com a mesma intenção. Para mais informações sobre o Evangelho segundo Basílides, v. tb. Hengel, Four Gospels, p. 57-8.

experiência esmerada e amplamente conhecida.5 Taciano teceu uma narrativa rica e longa da vida de Jesus a partir dos quatro evangelhos mais aceitos e designou-a “evangelho a partir dos quatro”, ou, em grego, [to] d ia tessarôn /eu an gelion ]: o D iatessaron.6 Ainda que não se possa descrever exatamente a motivação de Ta­ ciano, sabemos por meio de sua obra Logos p ros ellem nas [D iscurso aos gregos] que ele valorizava, tanto na religião quanto na narrativa histórica, a simplicidade e a unidade como sinais da verdade. Esse compromisso filosófico pode ter sido a razão da tentativa de promover a igreja mediante a criação da harmonia das qua­ tro diversas, mas amplamente aceitas, narrativas do ministério de Jesus. O empenho de Taciano encontrou boa aceitação da parte de muitos cristãos. Seu D iatressaron tornou-se tão popular na igreja de língua siríaca que passou a ser lido nas celebrações, e os quatro evangelhos avulsos foram traduzidos para o siríaco apenas no final do século III ou início do século IV.8Eusébio, escritor da primeira parte do século IV, disse que cópias do D iatessaron ainda circulavam em seu tem­ po, e que, no século V, o bispo de Cirro, Teodoreto, sentiu-se compelido a orde­ nar a destruição de cópias dessa obra e sua substituição pelos quatro evangelhos. Descobertas de manuscritos e inferências literárias sugerem que o D iatessaron tenha existido em árabe, persa, armênio, latim, alemão antigo, holandês e inglês medievais.9 Mesmo que tudo isso tenha ocorrido abertamente, poucos escribas que preser­ varam os textos dos quatro evangelhos demonstraram a tendência obstinada de harmonizar as leituras. Aqueles com tendências para a harmonização considera­ vam particularmente ofensivas as diferenças entre os evangelhos a respeito das narrativas da paixão e ressurreição e planejavam meios sutis para atenuar o que consideravam discrepâncias.10 A seção final, mais longa, de Marcos é uma das

'A respeito da atividade de harmonização de Teófilo e a respeito da possibilidade de Justi­ no ter se engajado na tarefa de harmonizar, pelo menos, os evangelhos sinóticos, v. Baarda, “DIAFWNLA-SUMFWNIA”, p. 142; William L. Petersen, “Textual Evidence ofTatian’s Dependence upon Justin’s &APOMNHMONEUMATLA”, NTS 36 (1990): p. 512-34 (essa citação é das p. 512-5; idem, Tatian’s Diatessaron: Its Creation, Dissemination, Sig­ nificance, and History in Scholarship, (VCSup 25; Leiden: Brill, 1994), p. 32, 346-8; e Hengel, Four Gospels, p. 24, 55, 56, 245 n. 229. Para o debate acerca da existência ou não dessas primeiras harmonizações, v. Helmut Merkel, Die Widersprüche zwischen den Evangelien: Ihre polem ische und apologetische Behandlung in der alten Kirche bis zu Augus­ tin (WUNT 13; Tübingen: J. C. B. Mohr [Paul Siebeck]. 1971), p. 68 n. 92. Cf. Hengel, Four Gospels, p. 25. Essa é a idéia principal do ensaio de Baarda. Cf. Merkel, Widersprüche zwischen den Evan­ gelien, p. 68, 69, e Stanton, “The Fourfold Gospel”, NTS 43 (1997): 317-46. (Essa citação é da p. 344.) 'Hengel, Four Gospels, p. 25. Cullman, Early Church, p. 49; Petersen, Tatian’s Diatessaron, p. 1, 2; Hengel, Four Gosvels. p. 25, 26. V. Baarda, “DIAFWNIA-SUMFWNIA”, p. 138-40.

tentativas mais antigas e ousadas de harmonizar os evangelhos. Ele foi elaborado, provavelmente, no princípio do século II, a partir dos relatos dos aparecimentos posteriores à ressurreição de Jesus encontrados nos três outros evangelhos.11 Essa adição de Marcos deve ter servido de reparo para o que muitos consideravam a maior discrepância entre Marcos e seus três companheiros. A ausência dos apare­ cimentos posteriores à ressurreição do Senhor.

O uso das diferenças entre os evangelhos na polêmica anticristã Coincidindo com essa evidência do desconforto com o evangelho quádru­ plo, sentido por vários cristãos dos primeiros séculos, está a evidência de que oponentes do cristianismo regularmente apontavam supostas discrepâncias entre os evangelhos como prova da falsidade do cristianismo. Celso, escrevendo por volta do ano 180 d.C., sabia dos esforços cristãos para harmonizar os evangelhos e fazia troça deles: Alguns fiéis, como pessoas embriagadas que se agridem a si mesmas, mani­ pularam o texto original do evangelho três ou quatro vezes, ou até mais, e o alteraram para poderem opor negações às críticas.12 Quer Celso estivesse pensando em Marcião, quer em Taciano, o trabalho de harmonização dos escribas, ou mesmo a diversidade dos evangelhos permanece algo obscuro.13 Está claro, todavia, que ele percebia as variações nos três (ou qua­ tro) evangelhos como um constrangimento para os cristãos e acusava-os de tentar remover esse obstáculo mediante a adulteração dos textos. Cerca de um século mais tarde, o filósofo Porfírio escreveu o livro A dversus Christianas [Contra os cristãos\, uma crítica mais detalhada das incoerências que ele julgava infestarem os quatro evangelhos. Ele destacou, por exemplo, as dife­ renças nítidas da comparação entre os relatos da morte de Jesus. Para Porfírio, especialmente, a ênfase recaía sobre as diferenças nas palavras finais de Jesus e a ausência, nos evangelhos sinóticos, da referência joanina à perfuração do lado de

nIbid., p. 138-40; Hengel, Four Gospels, p. 26, 27. 12Orígenes, Contra Celso, livro II, 27 (São Paulo: Paulus, 2004 [Coleção Patrística, v. 20]), p. 152. A respeito da datação da obra de Do discurso verdadeiro, v. a introdução de Henry Chadwick em Contra Celsum (Cambridge: Cambridge University Press, 1953), p. xxviii, e a respeito da data da resposta de Orígenes (em meados do séc. III), v. ibid., p. xiv, xv. 13Orígenes acha que Celso possa ter tomado conhecimento da manipulação dos evangelhos realizada por Marcião. Ele também menciona Valentim, ou o lucano quase-marcionita, como alguém que poderia ter se unido à atividade descrita por Celso.

Jesus.14 A seriedade do problema apresentado pela crítica detalhada de Porfírio sobre as diferenças entre os quatro evangelhos aos apologistas cristãos torna-se claro pela tentativa laboriosa de Agostinho, um século mais tarde, de refutá-lo. No tratado On th e H arm ony o f th e Gospels [Da ha rm on ia dos evangelhos], Agosti­ nho diz ter assumido essa tarefa porque os adversários do cristianismo “têm o costume de mencionar” como evidência primária que “os evangelistas não se en­ contram em harmonia entre si” (1.10; cf. 1.52; 2.1). Por todo o tratado, ele parece pensar primariamente em Porfírio.15

A resposta da igreja ortodoxa Apesar da pressão exercida por essas forças, de dentro da ortodoxia e de fora de seus limites, e a despeito da excelente qualidade do megaevangelho produzido por Taciano, a maior parte dos cristãos recusou-se a abandonar as quatro testemu­ nhas antigas como marcos fundamentais de sua fé. A insistência de Marcião no evangelho único foi rejeitada. O E vangelho d e Pedro, apesar de ter sido aceito pela igreja de Rosso, na Síria, e ainda que Serapião, bispo de Antioquia do início do século III a tenha tolerado durante certo período, ele não se tornou amplamente conhecido mesmo durante o tempo de Serapião e nunca foi aceito de modo ir­ restrito.16 O D iatessaron de Taciano foi rejeitado posteriormente, mesmo na Síria, como substituto inadequado dos quatro evangelhos. A própria astúcia usada pe­ los escribas para harmonizar forçosamente os evangelhos e tentar ocultar seus ajustes também demonstra sua percepção de que a maior parte dos cristãos passa­ va na prática. Orígenes considerava os escribas que harmonizavam os evangelhos propositadamente uns trapaceiros. “Vil irresponsabilidade” levou-os a harmoni­ zar o texto (C om m . M t 15.14).17 Jerônimo, escrevendo ao papa Dâmaso, no final do século IV, também estava profundamente aborrecido: Os numerosos erros em nossos manuscritos resultaram, em primeiro lugar, e fundamentalmente, do fato de que as passagens dos evangelhos relativas aos mesmos acontecimentos foram preenchidas com os relatos de outros. Para ^Porfírio foi discípulo e biógrafo do filósofo neoplatônico Plotino. Sobre o uso feito por ele entre as diferenças dos quatro evangelhos em seu argumento contra o cristianismo, v. Merkel, Widersprüche zwischen den Evangelien, p. 13-8, e Robert L. Wilken, The Chris­ tians as the Romans Saw Them (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1984), p. 144­ 7. Graham Stanton, “Fourfold Gospel”, p. 321, afirma que os valentinianos gnósticos, segundo Ireneu, Contra as heresias, livro 111.2,1, acusavam as Escrituras de erro, e Stan­ ton crê ser essa a referência aos “erros e contradições dos evangelhos”. 'Wilken, Christians, p. 144, 145. 'A carta de Serapião para a igreja de Rosso, citada em Eusébio, História eclesiástica 6.12.3,4, demonstra o desconhecimento do bispo sobre a obra, como também que ela não era muito conhecida. V. Hengel, Four Gospels, p. 13. Eles alteraram o texto, diz Orígenes, apo tolmês [...] mochthêras. A respeito disto, v. Xavier Léon-Dufour, The Gospels and theJesus o fHistory (London: Collins, 1968), p. 46.

evitar as dificuldades nos quatro evangelhos, alguns homens tomaram por base o primeiro relato lido e, depois, corrigiram os outros para alinhá-los com ele.18 A maior parte dos cristãos desejava que suas quatro antigas testemunhas cons­ tituíssem o evangelho único e permanecessem como estavam, com toda a sua diversidade “ofensiva”. Mesmo Agostinho, apesar de ter escrito especificamente com o objetivo de explicar como os quatro evangelhos podem ser historicamente críveis a despeito de supostas discrepâncias, afirmou a necessidade de preservar o testemunho separado de cada testemunha do “evangelho” e não desejava substi­ tuí-los por uma única narrativa harmonizada (Cons. 1.1-9).

As razões para essa resposta As razões para essa reação contrária às tentativas de remover a diversidade ofen­ siva dos quatro evangelhos eram teológicas. Três razões parecem ter sido particular­ mente importantes.

A necessidade teológica de uma história fidedigna Os cristãos primitivos eram constantemente desafiados a comprovar a pre­ cisão histórica do relato do ministério, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. Seu evangelho único fazia afirmações históricas, e formas fraudulentas do evan­ gelho também faziam suas afirmações. Era extremamente necessário, portanto, que os cristãos primitivos e ortodoxos radicassem profundamente suas convicções teológicas nas testemunhas mais antigas de Jesus e seu significado. Os esforços de Marcião, Taciano, e dos escribas harmonizadores foram inúteis nesse sentido — eles não possuíam a Antigüidade do seu lado. Mateus, Marcos, Lucas e João, todavia, eram cronologicamente anteriores — considerados pela maioria dos parti­ dos as melhores testemunhas do Jesus histórico. Ireneu, escrevendo na segunda parte do século II, declarou que tanto cristãos ortodoxos quanto os heréticos lutaram tenazmente para obter o controle sobre os quatro evangelhos por causa da convicção geral de que eles eram as melhores testemunhas do Jesus histórico e de seu ensino: “O valor dos evangelhos é tão grande que recebe o testemunho até dos próprios hereges, os quais tentam confir­ mar as suas teorias apoiados nalguns dos seus textos”.19 Ele, portanto, escutou quatro grupo heréticos, e cada um deles se valia espe­ cialmente de um evangelho. Os ebionitas preferiam Mateus, os marcionitas Lu­ cas, os docetistas Marcos, e os valentinianos adotavam João. Ele concluiu essa seção com a seguinte observação: “A partir do momento que os nossos adversários 18Léon-Dufour, Gospels, p. 46, 47, traduzindo uma carta de Jerônimo para o papa Dâmaso a respeito da dificuldade de usar manuscritos gregos dos evangelhos para corrigir manuscritos latinos (PL 29.560). 19Contra as heresias, livro III. 11,7 (2. ed. São Paulo: Paulus, 1995 [Coleção Patrística, v. 4]), p. 282.

usam esses evangelhos, dando-nos o testemunho e fazendo uso deles, é maior o valor da nossa argumentação baseada neles”. Todos eles, em outras palavras, eram obrigados a apelar a esses quatro textos por serem comumente aceitos como as melhores testemunhas do Jesus real. Inde­ pendentemente da batalha teológica, ela deveria ser travada no campo dos evange­ lhos, porque eles eram considerados vozes cheias de autoridade a respeito de Jesus. A validade da afirmação de Ireneu sobre o reconhecimento geral dos quatro evangelhos é confirmada quando regressamos à primeira metade do século II. Justino Mártir, ao escrever por volta de 136 d.C., falou das “Memórias, que eu digo terem sido compostas pelos Apóstolos ou por aqueles que os seguiram”.20 Isso implica ter Justino conhecido pelo menos os quatro evangelhos, dois com­ postos pelos apóstolos e dois por seus discípulos.21 Parece razoável concluir que ele falava de Mateus e de João (apóstolos) e de Lucas e de Marcos (discípulos dos apóstolos), e o fez na ordem correspondente à seqüência da ocorrência dos quatro evangelhos em várias coleções antigas dos evangelhos.22 Essa conclusão torna-se absolutamente correta quando percebemos que Jus­ tino faz citações dos três sinóticos e, provavelmente, alude ao evangelho de João, porém, jamais cita dos evangelhos não-canônicos. Ele não sente, além do mais, nenhuma necessidade de confirmar a autoridade desses evangelhos, apenas toma por certa sua autoridade. A análise estatística do uso real dos evangelhos na lite­ ratura crista dos primeiros séculos demonstra a razão pela qual Justino poderia agir dessa forma: A partir dos pais apostólicos, os quatro evangelhos, mais tarde canonizados, foram citados e aludidos com uma freqüência bem maior que ou­ tras obras também chamadas evangelhos.23 A intensidade respectiva com a qual a literatura cristã do séculos II e III cita e alude aos evangelhos canônicos também corresponde à ordem dos evangelhos inferida a partir de Justino: Mateus aparece com mais freqüência, a seguir João, e depois Lucas e Marcos.24 A autoridade ampla dos quatro evangelhos canônicos é também tacitamente confirmada pela composição dos evangelhos não-canônicos do século 2, como o ~Diálogo com Trifão, II Apologia, 103,8 (São Paulo: Paulus, 1995 [Coleção Patrística, v. 3]), p. 270. -'Martin Hengel, Studies in the Gospel o f Mark (Philadelphia: Fortress, 1985), p. 68; idem, Four Gospels, p. 19, 20; Stanton, “Fourfold Gospel”, p. 330. —Essa ordem “ocidental” (Mateus, João, Lucas e Marcos) não é mais comum que a ordem “cronológica” (Mateus, Marcos, Lucas e João). Apesar disso, ela se encontra em P45, alguns manuscritos da Velha Latina, nas Constituições Apostólicas, e nos códices de Beza e de Washington e no Codex Monacensis. A respeito da ordem dos evangelhos em várias listas antigas, v. Hengel, Four Gospels, p. 42. -John Barton, Holy Writings, Sacred Text: The Canon in Early Christianity (Louisville: Westminster John Knox, 1997), p. 17, citando a análise estatística de Franz Stuhlhofer, Der Gebrauch der Bibel von Jesus bis Euseb: Eine statistische Untersuchung zur Kanonsge­ schichte (Monographien und Studienbücher 335; Wuppertal: Brockhaus, 1988). -‘"Sruhlhofer, Der Gebrauch der Bibel, p. 19, 20, 98.

E vangelho d e P edro e o E vangelho d e Tomé. Esses evangelhos imitavam os títulos dos quatro evangelhos comumente aceitos e usavam muito do conteúdo deles porque Mateus, João, Lucas e Marcos eram simplesmente as fontes melhores e as mais amplamente aceitas e disponíveis sobre o Jesus histórico.25 A única esperança dos autores e dos editores desses textos para obter aceitação para essas obras estava na imitação dos evangelhos aceitos por todos. Tanto cristãos ortodoxos quanto hereges reconheciam a importância dos quatro evangelhos. Uma ampla gama de cristãos reconheceu esses textos como as testemunhas mais antigas sobre Jesus, e quem esperava traçar suas convicções teológicas até o Jesus da história teve, de alguma forma, que se atracar com esses evangelhos. Portanto, pelo fato de sua teologia precisar ancorar-se em registros históricos verossímeis, a igreja primitiva não desviou sua atenção centrada nos quatro evangelhos para apenas um deles ou para a harmonização de todos eles. Os quatro, com sua pluralidade ofensiva, deveriam ser mantidos.

A unidade teológica do evangelho quádruplo É possível exagerar as qualidades desagradáveis derivadas da pluralidade dos evangelhos. Grande parte dos cristãos mais antigos não se impressionava com as discrepâncias entre os evangelhos, mas com sua unidade teológica. Mesmo a despeito de sua diversidade, essas quatro vozes falam em uníssono sobre os princí­ pios teológicos tidos na mais alta conta pelos cristãos ortodoxos primitivos.26 Desde os primeiros dias, a igreja denominou o conjunto desses princípios “o evangelho”. Naquele que é provavelmente o texto cristão mais antigo, Paulo mencionou “o evangelho de Deus” (lTs 2.2,8,9), o “evangelho de Cristo” (lT s 3.2), e o “nos­ so evangelho” (lT s 1.5; cf. I C o 15.1,2). Alguns anos mais tarde, Paulo está pro­ fundamente aflito, porque desordeiros da Galácia haviam pervertido o “evangelho de Cristo” em algo que não é o evangelho (G1 1.6,7). A isso, Paulo responde: “Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, seja ele amaldiçoado! Como já dissemos, agora repito: Se alguém lhes anuncia um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja amaldiçoado!” (G1 1.8,9; cf. 2Co 11.4). O evangelho, em outras palavras, possui 25Cf. Hengel, Four Gospels, p. 59, 60. Alguns, e.g., Ron Cameron, The Other Gospels: NonCanonical Gospel Texts (Philadelphia: Westminster, 1982), p. 24, 25; John Dominic Crossan, Four Other Gospels: Shadows on the Contours of Canon (Minneapolis: Winston, 1985), p. 35-7; e Richard Valantasis, The Gospel o f Thomas (New Testament Readings; London: Routledge, 1997), crêem que o Evangelho de Tomé, de forma geral, preserva a forma dos ditos e das parábolas de Jesus de forma independente e tão primitiva quanto se pode encontrar nos quatro evangelhos canônicos. Todavia parece mais provável que esse evangelho dependa ao menos de Mateus e de Lucas, como uma comparação, por exemplo, entre Mc 3.35, Lc 8.21, Mt 12.50 e o Evangelho de Tomé 99 demonstra. V Michael Fieger, Das Thomasevangelium: Einleitung Kommentar, und Systematik (NTAbh 22; Münster. Aschendorffsche Verlagsbuch­ handlung, 1991), p. 6-8, e Meier, MarginalJew, vol. 1, p. 134-36. 26Cf. Cullmann, Early Church, p. 53.

uma essência firme e inalterável e precisa ser pregado por instrumentos humanos. Alguns desses mensageiros o fazem de forma conveniente, e alguns deles o alte­ ram de modo perverso para que sua mensagem não possa mais ser identificada com a verdade do evangelho (G1 2.5, 14). Essa idéia do evangelho único que as pessoas podem citar em versões dife­ rentes provavelmente reaparece não muito depois da morte de Paulo no título do evangelho de Marcos. M artin Hengel sugeriu, com certa plausibilidade, que o primeiro copista do evangelho de Marcos para a circulação mais ampla fixou-lhe o título “o evangelho segundo Marcos”, ao tomar emprestado o termo “evange­ lho” da primeira linha do texto de Marcos (1.1). Se foi assim, então a partir do tempo em que o evangelho de Marcos começou a circular amplamente, os cris­ tãos reconheceram que o “evangelho de Jesus Cristo” poderia ser narrado fiel­ mente em mais de uma forma e que essa narrativa particular continha “o evangelho segundo Marcos”.27 Pode-se dizer o mesmo dos outros evangelhos: mencionar “o evangelho segundo Mateus”, “o evangelho segundo Lucas” e “o evangelho segun­ do João” implica a existência de um evangelho inalterável servindo como funda­ mento dessas expressões variadas.28 Essa convicção torna-se ampla no séculos II e III. No fim do século II, lia-se no Cânon muratório'. “o Espírito único informa” nos quatro evangelhos. Ireneu, escrevendo quase no fim do século II, disse de modo similar “quando [ele] se manifestou aos homens, deu-nos um evangelho quadriforme, sustentado por um único Espírito”.29 Orígenes, no século III, respondeu ao ataque de Marcião con­ tra a lealdade ortodoxa aos quatro evangelhos diferentes com este comentário: “existe um que é pregado por todos, portanto, o evangelho registrado por muitos é um em poder, e o evangelho procedente dos quatro [to... dia tessarôn] é verda­ deiramente único”.30 Ireneu afirmou com veemência que o testemunho comum do evangelho úni­ co interliga os quatro evangelhos, e que nenhum outro evangelho pode ser adicio­ nado a esse testemunho comum, ou mesmo suplantá-lo. Os valentinianos, ao adicionarem aos evangelhos “escritos particulares” e produzirem o E vangelho da Verdade, desviaram-se do evangelho único sustentado pelos quatro evangelhos amplamente aceitos. O E vangelho da Verdade, escreveu Ireneu, “é completamente diferente dos evangelhos dos apóstolos, de tal forma que entre eles [os valentinia­ nos], sequer o evangelho está isento de ser blasfemado”.31 - Hengel, Studies in the Gospel o f Mark, p. 83. ;sEssa é uma observação comum. V., e.g., Cullmann, Early Chruch, p. 40; Brevard S. Childs, The New Testament as Canon: An Introduction (Philadelphia: Fortress, 1984), p. 152; Stanton, “Fourfold Gospel”, p. 332; Hengel, Studies in the Gospel o f Mark, p. 64­ 84; e idem, Pour Gospels, p. 48. -Ireneu, Contra as heresias, livro III. 11,8, p. 283. '"'Orígenes, Comm. Jo. 5.7. Sou devedor a Cullmann, Early Church, p. 48, n. 26, e p. 53, n. 38, por trazer esse parágrafo importante à minha atenção. Contra as heresias, Livro 111.11,9, p. 286.

Nesse ponto, Ireneu apresentou em seu argumento o testemunho da segunda parte da obra de Lucas. O livro de Atos dos Apóstolos é valioso por demonstrar que uma fonte teológica comum unia os quatro evangelhos e também representa­ va a pregação dos primeiros cristãos. Pedro, João, Filipe, Paulo, Estêvão e Tiago juntam-se ao testemunho dos quatro evangelhos na apresentação de uma frente unida contra as afirmações teológicas de Marcião e Valentim.32 Desde os dias de Paulo, os cristãos afirmam que a ortodoxia de quem alega saber quem Jesus é e o que ele ensinou é medida pela semelhança ao evangelho único de Jesus Cristo. Pelo menos no tempo em que os títulos de Marcos, M a­ teus, Lucas e João foram fixados, muitos cristãos criam que esses evangelhos eram narrativas diferentes dele, com seu cerne inalterável. Nos dias de Ireneu, e provavel­ mente antes, o terreno comum entre essas quatro testemunhas tradicionais tor­ nou-se o padrão pelo qual os cristãos aferiam declarações religiosas. Tentativas de adicionar outros escritos a seu número ou de corromper-lhes o sentido com uma versão única era o método dos que ensinavam erros teológicos.

A vantagem teológica do testemunho pluriforme A igreja primitiva cria que as diversas ramificações do evangelho não poderiam ser adequadamente apreciadas pela aceitação de qualquer forma inferior da en­ contrada, de forma geral, nos quatro evangelhos aceitos. Apesar de considerarem as variações teológicas do evangelho quádruplo um obstáculo, eles também per­ cebiam suas vantagens. Em primeiro lugar, a pluralidade dos evangelhos era muito importante para a prevenção de heresias ao reconhecer o evangelho único por trás dos quatro evangelhos. Ireneu comentou que os hereges erravam não apenas ao adicionar seus textos divergentes aos quatro evangelhos, mas também ao escolher uma das quatro narrativas evangélicas excluindo as outras três.33 Marcião o fez ao aceitar apenas uma forma truncada do evangelho de Lucas34 e ao separar o evangelho de Lucas de Atos dos Apóstolos, o que demonstra claramente não ter sido Paulo o único apóstolo a pregar a verdade do evangelho.35 Os valentinianos e antipaulinistas cometeram o mesmo erro quando usaram o evangelho de Lucas, mas ignoraram sua segunda parte. Entretanto, se eles tivessem prestado atenção à ver­ dade expressa na continuação do evangelho de Lucas, teriam permanecido na cor­ reção e seriam salvos de seu erro. De acordo com Ireneu, uma teologia completa e correta demanda a aceitação não apenas dos evangelhos considerados mais adequa­ dos segundo nossas noções preconcebidas, mas também pelas que as desafiam e corrigem. Portanto, focalizar apenas um evangelho, ou talhar os evangelhos exis­ tentes para que caibam em nossas idéias preconcebidas é teologicamente perigoso. 32Ibid., 33Ibid., 34Ibid., 35Ibid„

Livro 111.12.1-14. Livro III. 11.9. Livro III.11.7, 9; Livro III.14.4. Livro III.13.1-3; Livro III.14.4.

Segundo, alguns cristãos primitivos, provavelmente, compreenderam as varia­ ções teológicas entre os quatro evangelhos como vantajosas por demonstrarem que o evangelho único de Jesus Cristo possuía mais implicações que a capacidade de expressão alcançada por apenas um deles. Pelo menos dois, talvez três, dos quatro evangelhos podem sugerir isso. Ao incorporar o texto de Marcos aos seus, Mateus e Lucas subentendem a concordância com Marcos. Eles aceitam a vali­ dade de seu testemunho (de outra forma não o teriam incluído nos próprios textos), mas não criam na sua suficiência por si só e, por isso, parafraseando Lu­ cas, parecia-lhes correto também escrever relatos ordenados (Lc 1.3). O provável conhecimento de João sobre os evangelhos sinóticos é uma questão não resolvida, mas se ele os conhecesse, como presumia Clemente de Alexandria com base em uma tradição antiga,36 então ele também teria sentido que havia mais coisas a serem ditas (cf. Jo 20.30; 21.25). Alguns anos mais tarde, Orígenes exaltou o que considerava discrepâncias entre os evangelhos, porque elas apontavam para os imensos tesouros espirituais encontrados sob a superfície do entendimento literal do texto. Apesar de sua her­ menêutica estar muitas vezes equivocada, permanecia nela um elemento de ver­ dade: Orígenes considerava a diversidade dos evangelhos como testemunho da incapacidade de um único escritor em apreender o significado pleno do evange­ lho único.37 Vários cristãos primitivos criam, portanto, que a tentativa de resumir o evan­ gelho único a uma unidade simples, concisa, seria prejudicial. Eles entendiam, como escreveu Oscar Cullmann, que “a fé clama por diversas testemunhas”.38

A RELEVÂNCIA CONTÍNUA DA RESPOSTA DA IGREJA PRIMITIVA Nos dois últimos séculos intensificou-se novamente a pressão para reduzir as quatro testemunhas primárias ao formato de uma metanarrativa que substitui o Jesus dos quatro evangelhos mais aceitos. Alguns estudiosos o fizeram basica­ mente sob a forma da chamada “procura pelo Jesus histórico”. O início da procu­ ra é geralmente datado em 1778 com a publicação póstuma do livro de Hermann Samuel Reimarus, Von dem Z wecke Jesus u n d sein er J ü n g er [Da in ten ção d e Jesu s e

V! Eusébio, História eclesiástica, 6.14.5-7. 5 Sobre a forma como Orígenes lidou com as discrepâncias entre os evangelhos, v. Merkel, Widersprüche zwischen den Evangelien, p. 94-121, e a respeito do valor teológico das diver­ sas testemunhas, v. Luke Timothy Johnson, The Real Jesus: The M isguided Quest fo r the Historical Jesus and the Truth o f the Traditional Gospels (San Francisco: HarperSanFrancisco, 1996), p. 149. ^Cullmann, Early Church, p. 54. O artigo de Cullmann, “Die Pluralität der Evangelien als theologisches Problema im Altertum”, apareceu originariamente em TZ 1 (1945): 23-42.

d e seus discípulos] .39 Reimarus cria que Jesus fora um reformador religioso convic­ to de ser capaz de libertar os judeus do cativeiro romano e de estabelecer um “reino secular”. Entretanto, ele conseguiu apenas irritar as autoridades, que o prenderam, julgaram-no e crucificaram-no, dando fim a seus objetivos políticos frustrados. Coube a seus discípulos juntar-lhe os pedaços, e eles reabilitaram seu mestre como uma figura espiritual que morreu pelo pecado humano, que ressus­ citou e que retornará. Os evangelhos, disse Reimarus, são o depósito dessa recons­ trução. Em outras palavras, eles são documentos tendenciosos que podem oferecer dados históricos úteis, mas apenas depois de o historiador levar em consideração as intenções enganosas de seus autores. Nas fases iniciais da procura por Jesus, essa abordagem dupla dos evangelhos surgiu como tema constante. Por um lado, os evangelhos eram as testemunhas históricas mais valiosas da vida e do ministério de Jesus e, portanto, o historiador tinha de usá-las. Por outro lado, as pessoas engajadas nos esforços para redescobrir o Jesus histórico suspeitavam da fé religiosa que permeava os evangelhos do começo ao fim como dissimuladora do Jesus real. A história da “procura pelo Jesus histórico” na fase inicial era majoritariamente a tentativa de purificar os evangelhos, mediante o uso de várias ferramentas críticas, de sua tendenciosidade teológica para que pudesse oferecer dados históricos úteis para a reconstrução do Jesus que realmente existiu. As “vidas de Jesus” resultantes das fases iniciais da procura por Jesus asseme­ lham-se aos esforços de Marcião, de Taciano e de outros para sobrepujar a plurali­ dade ofensiva dos evangelhos, substituindo-os por um relato simples de Jesus.40 Da mesma forma que Marcião e Taciano elaboraram uma narrativa singular que combinasse com seus pressupostos filosóficos — a partir de um ou mais evange­ lhos aceitos — , as vidas de Jesus surgidas do Iluminismo e modernismo não raro purgaram os relatos evangélicos de seus elementos miraculosos de acordo com os pressupostos racionalistas e éticos de seus autores. Martin Káhler, em 1892, já havia comentado esse ponto no livro D er soge­ n an n te historische Jesus u n d d er gesch ich tlich e, biblische Christus [O cham ado Jesus histórico e o Cristo bíb lico-histórico]. Ele observou que pelo fato de os escritores da vida de Jesus terem encontrado materiais esparsos para compor uma biografia histórica nos evangelhos, eles tentaram acomodar a evidência disponível de forma 39Esse, pelo menos, é o ponto pelo qual Albert Schweitzer iniciou sua famosa análise de The Quest o f the Historical Jesus (New York: Macmillan, 1968; ed. original 1906), p. 13-26. George Wesley Buchanan traduziu o ensaio de Reimarus para o inglês com o título The Goal o f Jesus and His Disciples (Leiden: Brill, 1970). Esse ensaio era parte, originariamente, de uma obra muito maior, não-publicada, Apologie oder Schutzchrift fu r die vernüftigen Verehrer Gottes, à qual G. E. Lessing obteve acesso. Lessing publicou alguns “fragmentos” dela em sete fascículos entre 1774 e 1778. “On the Intention of Jesus and His Disciples” foi o sétimo e último desses ensaios. O manuscrito completo de Reimarus só foi publicado integralmente em 1972. 40Cf. Johnson, Real Jesus, p. 146-51.

a refletir seus pressupostos ideológicos. “Alguma força exterior trabalhou os frag­ mentos da tradição”, disse Kãhler. “Essa força não é nada além da imaginação de algum teólogo — moldada e alimentada pela analogia de sua vida com a vida humana em geral”.41 Para Kãhler, era impossível alcançar o Jesu s real seguindo os evangelhos. Quem o fez conseguiu apenas construir o “quinto evangelho” segun­ do padrões pessoais.'12 Tentativas mais recentes, pós-modernas, para descrever o Jesus “real” têm dado lugar mais proeminente a diversos textos não-canônicos que as formas ante­ riores da procura por Jesus. A fonte literária hipotética usada por Mateus e Lucas (comumente denominada Q), o E vangelho d e Tomé, e pelo menos partes do Evan­ g elh o d e Pedro, e o chamado E vangelho secreto d e M arcos são às vezes adicionados ao testemunho dos evangelhos sinóticos e, em certas ocasiões, recebem a prima­ zia, na tentativa de descrever Jesus como ele realmente era em vez de o Jesus descrito pelos evangelhos canônicos. O resultado dessa expansão da evidência admissível a respeito de Jesus — relativa aos textos divergentes dos quatro evan­ gelhos — é usada algumas vezes para produzir um relato sobre Jesus com a in­ tenção de substituir os encontrados nos quatro evangelhos e na fé cristã tradicional.43 O argumento da igreja primitiva de que o Jesus real é o Jesus dos quatro evangelhos é quase tão relevante para essas procuras do Jesus histórico modernas e pós-modernas quanto os esforços antigos para multiplicar ou reduzir o número dos testemunhos narrativos a respeito de Jesus. Tendo em vista que a procura pelo Jesus histórico, em suas várias formas, afirma ter-nos apresentado o Jesus real que se contrapõe ao Jesus dos evangelhos, essas alegações necessitam ser avaliadas his­ toricamente, da mesma forma que Ireneu avaliou o método histórico de Marcião, dos valentinianos e dos antipaulinistas de seu tempo. O compromisso cristão com a fidedignidade do evangelho único subjacente às quatro testemunhas diferentes dos evangelhos, portanto, deve precaver os cris­ tãos a respeito da investigação do Jesus histórico ou da negação de que o método

4lMartin Kahler, The So-Called Historical Jesus an d the Historic Biblical Christ (Fortress Texts in Modern Theology; Philadelphia: Fortress, 1964; ed. original 1896), p. 55. 4-V. Carl E. Braaten, “Apocalipse, History, and Faith in Martin Kahler”, em Kahler, SoCalled Historical Jesus, p. 1-38 (essa citação é da p. 20), e reflete os comentários de Kähler, So-Called Historical Jesus, p. 57, 62. -’V., e.g., Morton Smith, Clement o f Alexandria and the Secret Gospel o f Mark (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1973); idem, The Secret Gospel: The Discovery and Interpretation the Secret Gospel according to Mark (New York: Flarper & Row, 1973); idem, Jesus the M agician (New York: Harper & Row, 1978); John Dominic Crossan, The Histporical Jesus: The Life o f a M editerranean Jew ish Peasant (New York: HarperCollins, 1991); idem, Jesus: A Revolutionary Biography (New York: HarperCollins, 1994); Burton Mack, The Lost Gospel: The Book o fQ and Christian Origins (Shaftesbury, Dorset, U.K.: Element, 1993); e Robert W. Funk, Honest to Jesus: Jesus fo r a New M illennium (New York: HarperCollins, 1996).

histórico-crítico pode ser usado para escrever a biografia de Jesus.44 Nas palavras espirituosas da paráfrase de Festo, feita por N. T. Wright, “o cristianismo apela para a história; e para a história deve ir”.45 Pelo fato de o estudo da história possuir importância teológica para os cristãos, eles devem ser capazes de vencer o desafio da procura por Jesus no campo de batalha da historiografia, como Ireneu e Agos­ tinho tentaram fazer ao responder aos desafios historiográficos dos hereges e dos céticos de seus dias. Os resultados desse tipo de pesquisa histórico-crítica tendem a confirmar o juízo da igreja primitiva a respeito do valor histórico dos evangelhos. Os diversos textos não-canônicos trazidos à baila por quem estava envolvido na procura pelo Jesus histórico não podem permanecer em pé de igualdade com os evangelhos canôni­ cos como fontes úteis acerca do Jesus histórico. Com a exceção de Q, conhecido a partir dos textos canônicos, a investigação histórica racional aponta para a con­ clusão de que os textos não-canônicos não são iguais ou mais valiosos que os evan­ gelhos canônicos em seu testemunho sobre o Jesus histórico, mas, na verdade, dependem deles.46 Todavia, tão importante quanto esse tipo de estudo da história é que os cris­ tãos engajados na procura por Jesus evitem a tendência de seus participantes de produzir metanarrativas que suplantem os evangelhos. Mesmo o registro históri­ co vibrante sobre Jesus, teologicamente fiel aos evangelhos e que considera a fé e o método histórico como formas de obter conhecimento, não pode substituir os quatro evangelhos como guia para o Jesus real. O D iatessaron de Taciano, diferen­ temente da edição do evangelho de Lucas feita por Marcião ou do E vangelho da Verdade de Valentim, aparentemente não apresentou nada explicitamente de caráter teológico ofensivo para a maioria dos cristãos. A forma unificadora do D iatessa­ ron implicava, todavia, que Taciano poderia corrigir uma deficiência na forma 44Apesar de terem muitas coisas úteis a dizer sobre o emprego incorreto do método históricocrítico no movimento “vida de Jesus”, Kahler, So-Called HistoricalJesus, p. 57-71, e Johnson, Real Jesus, p. 105-40, move-se nessa direção, como também Etienne Nodet, Histoire de Jésus? Nécessité et limites d'une enquête (Lire la Bible; Paris. Cerf, 2003). Para uma epistemologia que atinge o equilíbrio correto entre a necessidade da plausibilidade histórica e do compromisso da fé para chegar à verdade teológica, v., e.g., C. Stephen Evans, The Histo­ rical Christ and the Jesus o f Faith: The Incarnational Narrative as History (Oxford: Oxford University Press, 1996); Carl E. Braaten, M other Church: Ecclesiology and Ecumenism (Mi­ nneapolis: Fortress, 1998), p. 98-116; Rainer Riesner, “Sollen wir das Neue Testament unhistorisch-unkritisch auslegen?”, em Gotteswort im Menschenwort? Zum Verstehen und Auslegen der Bibel, Sven Grosse e Jochen Walldorf (eds.) (Porta-Studien 30; Marburg: Studentenmission in Deutschland, 1999), p. 22-41; e Alvin Plantinga, Warranted Chris­ tian B elief (Ox.ford: Oxford University Press, 2000), p. 374-421, esp. p. 420, 421. 45Jesus and the Victory o f God (Minneapolis: Fortress, 1996), p. 11. 4 8; 5.23). Por fim, ela deve fazer uso da espada do Espíri­ to, identificada por Paulo como a palavra de Deus (6.17^). Esta é a única arma de ataque na lista da armadura, e refere-se ao uso das Escrituras inspiradas pelo Es­ pírito para combater as tentativas estratégicas do Diabo de arrancar a igreja da posição que lhe foi concedida por Deus (cf. M t 4.1-11; Lc 4.1-13).50 Deus outorgou à igreja a posição de vitória sobre as forças hostis do universo. Ele também a supriu com a armadura necessária para defender-lhe a posição en­ quanto aguarda pelo fim de seus inimigos.51 Se ela não quiser perder o terreno obtido e se desejar que o objetivo divino de fazer todas as coisas convergirem mediante a união de todas as coisas no céu e na terra em torno de Cristo seja bemsucedido, ela deverá, então, vestir essa armadura e permanecer firme.

A IGREJA UNIDA COMO MODELO DO UNIVERSO UNIFICADO No empenho de encorajar os cristãos abatidos do sul da Ásia, Paulo lembroulhes do plano de Deus para o universo e da posição fundamental da igreja dentro desse plano. Sua carta esboça a figura da nova criação na qual forças celestiais hostis e invisíveis jazem conquistadas sob os pés de Cristo. Nessa figura, a igreja consiste em judeus e gentios assentados com o Cristo ressurrecto nos céus, tomando parte em seu triunfo. Esse é o objetivo, Paulo diz, em direção ao qual Deus está movendo o universo — para fazer convergir todas as coisas no céu e na terra em Cristo. Todavia, antes de “os tempos” serem “cumpridos”, os poderes cósmicos hos­ tis continuarão a lutar contra a igreja e, portanto, os cristãos devem vestir-se com a armadura de Deus para resistir ao ataque — a verdade, a justiça, o evangelho da paz, a fé e a salvação. Por meio da união de uns com os outros nessa armadura, eles se tornarão a “multiforme sabedoria” de Deus “conhecida dos poderes e autori­ dades nas regiões celestiais” mediante a reconciliação de judeus e gentios para for­ mar um novo ser humano pela instrumentalidade do evangelho. A igreja, portanto, proclamará a esses poderes hostis que na morte, ressurreição e ascensão de Cristo ao céu, Deus derrotou os esforços deles para frustrar seu propósito da criação. Portanto, a igreja desempenha um papel crítico no plano de Deus de fazer convergir todas as coisas em Cristo. Ela é a nova humanidade que substitui a antiga, fragmentada, e é a evidência de que o plano de Deus para reunir todas as coisas em Cristo está chegando ao fim rapidamente. A igreja da Ásia romana deveria ter esperança pelo que Deus, em seu grande amor e rica misericórdia, fez a favor deles. Eles deveriam procurar com zelo renovado sua vocação e permane­ cer fortes e unidos contra o Diabo e seu reino enquanto Deus encaminha seus propósitos cósmicos ao fim glorioso.

50Hoehner, Ephesians, p. 853. 5IBest, Ephesians, p. 597.

Capítulo 19

Primeira Timóteo: a igreja como coluna efundamento da verdade

Depois de Paulo ter pedido a Festo para ser ju lg a d o diante do imperador em Roma, Festo organizou uma audiência preliminar perante o rei judeu Herodes Agripa II. Desatento aos pontos mais refinados do judaísmo, Festo teria a desa­ gradável incumbência de explicar a Nero o motivo de alguns judeus destacados de sua província desejarem a execução de Paulo. Agripa, ele esperava, poderia ajudálo a sair dessa situação potencialmente embaraçosa ao interpretar as reclamações dos judeus e dar ao governador algo para ser comunicado ao imperador (At 2 5 .13­ 27). Festo não deve ter-se agradado dos resultados, porque após ter ouvido as explicações de Paulo a respeito dos acontecimentos que envolveram sua prisão, Agripa concluiu: “Ele poderia ser posto em liberdade, se não tivesse apelado para César” (At 26.32). Parece provável que Nero tenha inocentado Paulo das acusações contra ele e o libertado da custódia. Isso, no mínimo, é o testemunho unânime da igreja primitiva.1Depois de cinco anos preso, os planos de Paulo para visitar Roma e, então, evangelizar a Espanha (Rm 15.24, 28) foram alterados — ele não previra a “visita” a Roma durante dois anos como prisioneiro (At 28.30). Na expectativa de ser solto, ele pediu a Filemom que lhe preparasse um quarto de hóspedes em Colossos (Fm 22), e parece provável que ele tenha navegado em direção à Ásia depois de ter sido isentado das acusações feitas contra ele.2

•A evidência é apresentada de modo exaustivo in J. B. Lightfoot, Biblical Essays (London: Macmillan, 1893), p. 423-7. Até mesmo Pelágio, que duvidava de Paulo ter chegado à Espanha, cria que ele fora liberto do aprisionamento em Roma registrado no livro de Atos. V. Lightfoot, ibid., p. 427 n. 1. E importante reconhecer, com a devida vênia a Luke Timothy Johnson, Letters to Paul's Delegates: lTimothy, 2Timotby, Titus ( NTC; Valley Forge, Pa.: Trinity Press International, 1996), p. 10, que a teoria do segundo aprisionamento em Roma não exige a missão de Paulo na Espanha. Sobre este assunto, v. Herman Ridderbos, De Pastorale Brieven (Commentaar op het Nieuwe Testament; Käm­ pen: Kok, 1967), p. 12-3. 2A respeito do debate desta possibilidade, v. Ridderbos, Pastorale Brieven, p. 12-3.

A despeito das alegações de vários estudiosos a respeito de as Cartas Pastorais não serem cartas autênticas de Paulo, ele provavelmente as escreveu durante esse período de seu ministério.3 Isso não significa que a circunstâncias históricas preci­ sas que envolveram sua composição estejam esclarecidas.4 Um cenário provável é que Paulo tenha viajado de Roma para Creta com Timóteo e Tito, onde eles estabeleceram igrejas em várias cidades, mas também viram, infelizmente, uma variação não ortodoxa de seu ensino enraizando-se entre alguns convertidos do judaísmo.5 Paulo deixou Tito na ilha para presidir sobre a indicação de líderes nessas igrejas e para instruí-los com mais pormenores na fé. A seguir, Paulo partiu com Timóteo para Efeso. Ali eles encontraram uma igreja tão desordenada que o termo “naufrágio” lhe veio depois à mente (lTm 1.19). Certas pessoas estavam defendendo ensinos estranhos, similares àqueles que Pau­ lo e seus colaboradores haviam encontrado em Creta, e dois efésios, Himeneu e Alexandre, incorreram de form a, tão séria n o er ro que Paulo o s e x co m u n g o u (1.20). Paulo incumbiu Timóteo dessa situação e deu prosseguimento às suas via­ gens, talvez, dirigindo-se inicialmente a Colossos para visitar Filemom, mas dei­ xando claro a Timóteo que antes de ele partir, tinha a intenção de ir a Macedônia (1.3). Ele provavelmente escreveu lTim óteo na Macedônia, e sua preocupação primária na carta é o falso ensino pernicioso que infectara a igreja de Efeso.6 3John Ashton, The Religion o f Paul the Apostle (New Haven, Conn.: Yale University Press, 2000), p. 77, crê que “as chamadas Cartas Pastorais não são mais atribuídas a Paulo, com exceção de um punhado de conservadores extremistas”. Entretanto, seria difícil rotular como “conservadores extremistas” estudiosos como Luke Timothy Johnson, Letters to Paul’s Delegates-, idem, The First and Second Letters to Timothy (AB 3 5A; New York: Dou­ bleday, 20Ò1); Bo Reicke, Re-examining Paul’s Letters: The History o f the Pauline Corres­ pondence, David P. Moessner e Ingalisa Reicke (eds.) (Harrisburg, Pa.: Trinity Press International, 2001), p. 52-6; e Jerome Murphy-O’Connor, Paul: A Critical Life (Ox­ ford: Oxford University Press, 1996), p. 357-9 (que nega a autenticidade de lTm e Tt, mas aceita a genuinidade de 2Tm). 4De vez em quando são feitos esforços para incluir as Pastorais no período do ministério de Paulo coberto pelo livro de Atos. V., e.g., Johnson, First and Second Letters to Timothy, p. 135-7, 319, e Reicke, Re-examining Paul’s Letters, p. 51-9, 68-74, 85-91. A respeito da refutação decisiva dessa posição, v. Lightfoot, Biblical Essays, p. 399-410. 5Gordon D. Fee, 1 & 2Timothy, Titus (GNC; New York: Harper & Row, 1984), p. xviii. Lightfoot, Biblical Essays, p. 430-5, considera que Paulo viajou de Roma diretamente para a Ásia a fim de cumprir a promessa feita a Filemom. Então ele teria evangelizado Creta, ido à Espanha e mais tarde voltado para o Oriente. Entretanto, esse cenário é desnecessariamente complicado pelo desejo de Lightfoot de incorporar a missão à Es­ panha às viagens de Paulo. 6Lightfoot, Biblical Essays, p. 434, localiza a escrita de lTm por volta do tempo em que Paulo estava na Macedônia. Como veremos no capítulo seguinte, Paulo provavelmente escreveu para Tito nessa mesma oportunidade. Saber qual das duas cartas foi escrita primeiro não é algo possível nem necessária, apesar de Fee, 1 &2Timothy, Titus, p. xxiv, especular que Tt foi escrita depois de lTm porque Tt possui um tom menos urgente e parece mais concentrada na prevenção que na cura.

A natureza do falso ensino é de difícil descrição, e isso é provavelmente um resultado direto da intensa antipatia de Paulo por ele.7 Ele é chamado “discussão inútil” (1.6), “fábulas profanas e de velhas” (4.7, nota de rodapé), e “conversas inúteis e profanas” (6.20; 2T m 2 .16 ). Seus advogados são meros “faladores” (Tt 1.10) que, a despeito do ar de confiança, não entendem sobre o que estão falando (lT m 1.7; 6.4). No conceito de Paulo o falso ensino é tão baixo que não merece o comprometimento intelectual sério; na verdade, levá-lo a sério é ser enredado em um debate tolo e inútil (6.20; 2Tm 2.14, 23; Tt 3.9) que parece não ter fim e nunca progride na direção da verdade (3.7).8 Diferentemente dos mal­ entendidos a respeito de seus ensinos, que Paulo enfrentou emTessalônica e Corin­ to, a oposição intelectualmente desafiadora da Galácia, ou mesmo a filosofia de conteúdo apocalíptico que criava confusão na igreja de Colossos, o falso ensino nas Pastorais aparentemente é incoerente ou surgiu de uma cosmovisão tão dife­ rente da de Paulo que ela não tem sentido.9 Não obstante, Paulo apresenta mais alguns pensamentos a respeito dos méto­ dos empregados e seus resultados na vida de quem adere a eles. A característica mais proeminente do conteúdo do falso ensino surge das cartas no que concerne à lei mosaica. Os defensores da heresia, Paulo diz, “querem ser mestres da lei” (lTm 1.7) e se engajam em “contendas a respeito da Lei” (Tt 3.9). Eles estão preocupados com “lendas judaicas [e] mandamentos de homens que rejeitam a verdade” (1.14). Alguns dos falsos mestres são judeus (1.10). Outros aspectos desse ensino, entretanto, não se encaixam perfeitamente nos moldes judeus. Os falsos mestres proíbem o casamento (lT m 4.3) e afirmam que

'Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p. 7, 108-9, resiste à afirmação de que o erro pres­ suposto nas três pastorais seja idêntico. Entretanto, esse falso ensino nas três cartas pos­ sui diversas características comuns, e a melhor explicação para isso é que o erro era basicamente o mesmo. As três variações dele eram espalhadas de casa em casa (1Tm 5.13; 2Tm 3.6; Tt 1.11), e nas duas cartas a Timóteo, as mulheres haviam se tornado especial­ mente suscetíveis a ele (lTm 4.17; 5.13; 2Tm 3.6). Em lTm eTt, o falso ensino envolve a lei mosaica (lTm 1.7; Tt 1.9). Diferenças sutis encontram-se presentes, tais como a identificação dos heréticos com “a circuncisão” em Tt 1.10, a única referência à abs­ tinência do casamento em lTm 4.3, e a afirmação de que a ressurreição já ocorrera em 2Tm2.18, mas essas diferenças representam provavelmente ênfases diferentes das três cartas. Cf. Lightfoot, Biblical Essays, p. 412. 8Sobre o caráter sério dos comentários depreciativos de Paulo sobre a natureza do falso ensino, v. I. H. Marshall, The Pastoral Epistles (ICC; Edinburgh: T. &T. Clark, 1999), p. 42-3. Como Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p. 109, destaca, Paulo às vezes faz mais do que apenas repudiar o ensino de seus oponentes (lTm 1.8-10; 4.3-5, 7,8; 6.5­ 10), mas o choque de palavras apresentado nessas passagens não concorda com o caráter intenso e profundo da argumentação de Paulo presente em outras cartas. 9A natureza intelectual desinteressada da oposição de Paulo pode ajudar a explicar a brandura incomum observada na argumentação de Paulo nessas cartas quando comparadas, por exemplo, com Gálatas.

a ressurreição corporal futura já aconteceu (2Tm 2.18). Além disso, eles parecem valer-se do uso da magia, porque Paulo os compara a Janes e Jambres, nomes dos mágicos que se opuseram a Moisés na corte do faraó (2Tm 3.8; cf. Ex 7.11, 22), e ele adverte Timóteo de que “homens perversos e feiticeiros irão de mal a pior” (2Tm 3.13, au tor)} 0 Essas aberrações provavelmente significam que sua abstinên­ cia de “alimentos” (lT m 4.3) e de coisas “impuras” (Tt 1.15) envolvia algo mais que as regras alimentares e de pureza da lei mosaica. A descrição de Paulo sobre esse ensino como uma série de “mitos e genealogias intermináveis” (lT m 1.4; cf. 2Tm 4.4; Tt 1.14; 3.9) podem ser especulações a respeito da origem do cosmo baseada em uma exegese de Gênesis — o primeiro livro da lei mosaica. Esse tipo de especulação aparece no século III em um tratado gnóstico de Nag Hammadi, Sobre a origem do m undo. O autor desse documento entrelaçou imagens da narrativa da criação de Gênesis em seu relato genealógico dos deuses que habitam o cosmo. De acordo com o autor, a deusa Pistis Sofia criou o deus de Gênesis (“o governante”) e então voltou para sua região de luz, deixando “o go­ vernante” com a impressão de que “existia apenas [ele]”. As ações seguintes do governante assemelham-se às ações de Deus em Gênesis 1.6-9: O governante separou a substância líquida. E o que era seco foi dividido em outro lugar. E da matéria ele fez para si mesmo uma habitação, e a chamou céu. E da matéria, o governante fez um escabelo, e o chamou terra (II.101).11 Podemos trabalhar a partir da leitura de Gênesis e do relato de Ireneu, do início do século II, a respeito do herege Saturnino, que ensinava terem sido sete anjos que pronunciaram a frase “Façamos o homem à nossa imagem” em Gêne­ sis 1.26. Esses anjos criaram o mundo e tudo o que há nele, incluindo o primeiro homem, porém eles executaram seu trabalho às pressas e sem cuidado, e o homem que criaram era incapaz de permanecer ereto. Felizmente, o maior “poder supe­ rior” sentiu pena do homem e ao implantar uma centelha de sua essência divina nele, capacitou-o a pôr-se em pé e a viver (Contra as heresias 1.24.1). Evidente­ mente, pelo fato de o mundo ser um lugar mau e o corpo material o produto de divindades inferiores e ineptas, os seguidores de Saturnino opunham-se ao ma­ trimônio e à procriação e evitavam a ingestão de carne (Contra as heresias 1.24.2). Se tomarmos outro exemplo do relato de Ireneu, encontramos Menandro, o sucessor de Simão, o Mago, de Atos 8.9-11 (Contra as heresias 1.23.1, 5), e, de acordo com Ireneu, o primeiro gnóstico (Contra as heresias 3.4.3).12 Menandro afirmava que, por meio de sua mágica, “conferia [a] o poder de vencer os próprios

'“Sobre a tradução da palavra goêtes por “feiticeiros” v. LSJ, p. 356. Cf. Lightfoot, Biblical Essays, p. 412, 415, que traduz o termo por “magos” e “encantadores”. nA tradução é de NHL, p. 173. 12J. Fossum, “Simon Magus”, DDD, p. 781, alega de forma persuasiva que o ensino de Simão era, na verdade, uma forma embrionária de gnosticismo do século II.

Anjos, criadores do mundo” e que “seus discípulos, pelo batismo no seu nome, recebe[ra]m a ressurreição e já não podem morrer, mas permanecem para sempre jovens e imortais” ( Contra as heresias 1.23.5).13 Encontramos aqui a especulação sobre a origem do mundo (apesar de não existir nenhuma referência explícita a Gênesis) acoplada à crença na ressurreição como algo já ocorrido, pelo menos para os membros da seita. O uso de magia também aparece.14 Apesar de nenhum desses sistemas apresentar-se como par exato da heresia por trás das Pastorais, e todas elas serem posteriores à escrita dessas cartas, o falso ensino em Éfeso e em Creta pode ter sido uma forma primitiva dessas religiões.15 As três revelam o fascínio pelos mitos e traçam a genealogia de vários poderes cósmicos retrocedendo até o poder último do deus ou dos deuses que criaram o mundo. Aparentemente, todos acreditavam que o mundo criado era em essência um lugar imperfeito, envolto em dificuldades pela inépcia do deus descrito nos capítulos in icia is d e G ênesis, o primeiro liv ro da lei mosaica. M en a n d ro, ao m en o s, fazia uso da magia e pensava que seus seguidores já haviam sido ressuscitados. Seu sucessor, Saturnino, opunha-se ao casamento, à procriação e ao consumo de carne.

!3Ireneu provavelmente obteve essa informação de Justino Mártir, que descreveu Menandro sucintamente em sua Apologia (1.26; cf. 1.56). No mesmo parágrafo em que Justino mencionou sua obra contra as heresias nas quais poderiam ser encontradas mais infor­ mações (cf. Eusébio, História eclesiástica 3.26). Infelizmente, a obra de Justino contra as heresias não existe mais, porém Ireneu provavelmente a conhecia e derivou dela seu relato mais detalhado. Sobre este ponto v. G. Salmon, “Menander”, DCB, p. 722-3. l4Inácio de Antioquia também apresenta evidências do sincretismo entre o judaísmo e o docetismo na Asia, no princípio do século II. Acerca disto v. C. K. Barrett, “Jews and Judaizers in the Epistles of Ignatius” in Jews, Greeks and Christians: Religious Cultures in Late Antiquity, Robert Hamerton-Kelly e Robin Scroggs (eds.) (SJLA 21; Leiden: Brill, 1976), p. 220-44, esp. p. 237 e 241, onde Barrett comenta a respeito da importância da evidência apresentada por Inácio para a compreensão do contexto das Cartas Pastorais. TJustino Mártir menciona Saturnino em uma lista de hereges em Dialogo com Trifão, 35, escrito aparentemente um pouco depois da guerra de Bar Cochba (132-136 d.C.). Sa­ turnino deve ter vivido, portanto, algum tempo antes do fim do século I ou no início do II, e Menandro, um pouco antes dele. Apesar de Saturnino ter vivido bem depois da década de 60, quando as Pastorais foram compostas, Menandro estava mais próximo de Paulo. Mesmo Simone Pétrement, A Separate God: The Christian Origins o f Gnosticism (New York: Harper, 1984), p. 315, que afirma ter o gnosticismo se desenvolvido a partir do cristianismo e está inclinada a datar sua origem como algo mais tardio, crê que Menandro pode ter ensinado já “nas últimas décadas do século I”.

Algo semelhante a este amálgama de especulação cósmica, escatologia realizada, magia e ascese provavelmente influenciaram o falso ensino descrito nas Pastorais.16 O falso ensino começara a espalhar-se como um câncer (2Tm 2.17), e seu sucesso surgiu aparentemente dos esforços inteligentes de seus mestres para desa­ fiar os lares cristãos onde o cabeça da casa estava ausente ou era negligente para com as obrigações familiares. Por isso Paulo diz que os falsos mestres estão “arrui­ nando famílias inteiras” (T t 1 .1 1 ).17 Eles o faziam aparentemente ao se in­ troduzirem pelas casas e conquistarem mulheres instáveis com seu falso ensino (2Tm 3.6). Talvez possamos também ligar a afirmação de Paulo de que o desejo por dinheiro motivasse os falsos mestres (lT m 6.5; cf. 6.6-10, 17-19), sua preo­ cupação de que as mulheres vivessem com modéstia, sem ostentar sua riqueza (2.9) e sua preocupação relativa às mulheres não ensinarem na igreja (2.11-14). Mulheres ricas de Efeso podem ter sustentado os falsos mestres como seus tutores e, então, comunicado o falso ensino aprendido às igrejas que se reuniam em suas casas.18 Em lTim óteo Paulo está especialmente preocupado com as jovens viúvas que estão sob o cuidado da igreja de Efeso. Algumas viúvas “viviam para os prazeres” (lT m 5-6), ele escreve, e aparentemente algumas viúvas desse tipo haviam sido alistadas entre as que recebiam apoio da igreja. Paulo adverte contra o alista­ mento de jovens viúvas. “Aprendem a ficar ociosas, andando de casa em casa; e não se tornam apenas ociosas, mas também fofoqueiras e indiscretas, falando coisas que não devem” (5.13). A expressão “falando coisas que não devem” (lalousai ta m ê deontá) asseme­ lha-se a “ensinando coisas que não devem” (didaskontes ha m ê dei) de Tito 1.11, onde Paulo descreve como os mestres arruinam casas inteiras. A expressão de lTimóteo, portanto, refere-se provavelmente não só à simples e inofensiva tagare­ lice, mas ao ensino herético que havia transtornado a igreja de Efeso.19 Pelo fato 16Isso não significa que o gnosticismo seja uma religião pré-cristã, independente, como muitos estudiosos a partir de Richard Reitzenstein (1861-1931) e Wilhelm Bousset (1865-1920) têm considerado. V. Pétrement, A Separate God, p. 1-26. Entretanto, é importante levar a sério o comprometimento do falso ensino com “mitos e genealogias sem fim” (cf. lTm 4.7; 2Tm 4.4; Tt 1.14; 3.9). Este elemento do falso ensino aproxi­ ma-se ideologicamente (se não de forma cronológica) dos sistemas gnósticos posteriores que os problemas da igreja de Corinto ou do cristianismo de Atos de Paulo. Acerca dos problemas da igreja de Corinto e da religião apresentada em Atos de Paulo como ante­ cedentes das Pastorais, v. respectivamente, Philip H. Towner, The Goal o f Our Instruc­ tion: The Structure o f Theology and Ethics in the Pastoral Epistles (JSNTSup 34; Sheffield: Sheffield Academic Press, 1989),p. 21-45, e Frances Young, The Theology o f the Pastoral Letters (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 13-20. l7William D. Mounce, Pastoral Epistles (WBC 46; Nashville: Thomas Nelson, 2000), p. lii, observa que em At 20.20 Paulo diz ter ensinado os efésios “de casa em casa” (kat’ oikous). lsAlan Padgett, “Wealthy Women at Ephesus: lTimothy 2.8-15 in Context”, Lnterp 41 (1987): 19-31, (esta citação é da p. 23). 19Fee, 1 & 2Timothy, Titus, p. 83; Lorenz Oberlinner, Die Pastoralbriefe. Kommentar zum ersten Timotheusbrief (HTKNT 11.2; Frieburg: Herder, 1994), p. 240; Marshall, Pasto­ ral Epistles, p. 603.

de essas viúvas receberem o sustento da igreja, e!as não tinham a necessidade econômica de casar-se, ter filhos e cuidar de uma casa, e o falso ensino que elas difundiam desencorajava a domesticidade afirmada pelo relato da criação. Em lugar de cuidar dessas atividades, elas passavam o tempo aprendendo falsos ensi­ nos e espalhando-os de casa em casa (lT m 5.13; 2Tm 3.7). Aqui também surge uma ligação com as formas posteriores de gnosticismo.20 Ireneu menciona uma mulher chamada Marcelina que chegou a Roma em mea­ dos do século II (“nos tempos de Aniceto”) e “arruinou a muitos” com seu ensino gnóstico (Contra as heresias 1.25.6; cf. Orígenes, Contra Celso 5.62). Tertuliano comenta como os hereges gnósticos estendiam privilégios às mulheres não conce­ didos a elas pelo cristianismo ortodoxo. Entre eles encontram-se os privilégios de ensinar e debater (P raescr. 41). Quaisquer que sejam os detalhes do conteúdo do falso ensino e dos métodos de seus mestres, Paulo não poderia ser mais claro a respeito de suas motivações e re­ sultados. Eles são motivados por cobiçarem o dinheiro (lTm 6.10; Tt 1.11), pelos próprios desejos (2Tm 4.3), pela mente depravada (2Tm 3.8; Tt 3.11) e pela cons­ ciência cauterizada (lTm 1.9; 4.2). Os resultados de seus esforços são divisões na igreja (Tt 3.10) e o naufrágio na fé dos que são convencidos por eles (lT m 1.19). Paulo escreveu 1Timóteo para outorgar a seu colaborador o mandato de res­ taurar a ordem na igreja de Efeso, corrompida por esse ensino. Dentro do con­ junto das cartas de Paulo, esta é incomum. O cumprimento não é seguido, como nas demais cartas de Paulo, por uma oração ou pelo relato de uma oração, mas pela descrição do comissionamento de Timóteo por Paulo para pôr fim ao falso ensino em Efeso. A carta continua com seções alternadas de instruções específicas a respeito da ordem de restauração e orientações pessoais para Timóteo. Cartas desse tipo eram comumente enviadas na Antigüidade por oficiais do governo para pessoas subordinadas pelo fato de terem assumido alguma nova responsabilidade pública. Talvez o melhor exemplo existente desse tipo de carta seja o Papiro Tebtunis 703. Um administrador do governo enviou esta carta no século III a.C. a um administrador que havia sido incumbido de um distrito administrativo no Egito.21 A carta foi escrita como um memorando (hypônêm a) para relembrar o administrador das coisas que o administrador conversara com ele antes de este assumir seu novo posto (11. 258-61). Os detalhes da carta mos-

:oCom a devida vênia a Towner, The Goal o f Our Instruction, p. 26-7, apesar de sua suges­ tão ser convincente (39) de que a emancipação feminina visível no Império Romano durante o século I possa ter influído nos problemas da igreja de Efeso. V. tb. Bruce W. Winter, “The ‘New’ Roman Wife and lTimothy 2.9-15: The Search for a Sitz im Le­ ben”, TynBul^l (2000): 285-94. - O texto da carta com introdução, tradução e comentário detalhado pode ser encontrado em Arthur S. Hunt e J. Gilbart Smyly, The Tebtunis Papyri, vol. 3, parte 1 (London: Oxford University Press, 1933), p. 66-102. Faço uso da tradução de Hunt e Smyly, e as ênfases pertencem à edição do texto grego.

tram que ele deveria lidar com problemas específicos, como as reclamações dos fazendeiros contra os oficiais das aldeias (11. 40-49) e o roubo do rendimento do azeite por causa de contrabando (11. 141-45). Admoestações pessoais são interca­ ladas com instruções práticas detalhadas sobre como administrar o nomo.22 A carta é finalizada com uma admoestação geral à conduta exemplar: Seu dever primordial é agir com cuidado, honestidade e da melhor maneira possível [...] sua obrigação seguinte é comportar-se bem e ser irrepreensível em seu distrito, manter-se longe de má companhia, e evitar qualquer confli­ to, acreditando que, se você permanecer irrepreensível em tudo isto, será considerado merecedor de funções mais altas, mantendo as instruções que lhe foram dadas e agindo em tudo conforme lhe foi ordenado (11. 261-80). Esta carta assemelha-se a um manual escrito para o administrador à medida que ele inicia seus deveres do novo ofício.23 Ao falar sobre a situação do Império Romano no século I a.C., Dio Cássio diz que “o imperador dá instruções [entolê\ aos procuradores, aos procônsules e aos propretores, a fim de que eles obedeçam a ordens definidas quando partirem para suas províncias” (H ist. 53.15.4). O conteúdo desses “mandatos reais” dirigiase à ampla divulgação para que por meio deles o público soubesse o que se espe­ rava desses novos oficiais e que as ações tomadas por eles baseavam-se na autoridade do imperador.24 O imperador Trajano, por exemplo, escrevendo no início do século II d.C. ao governador Plínio, o instrui a tornar conhecida sua ordem impe­ rial aos súditos da Bitínia: Creio que o povo dessa província entenderá que tenho seus interesses em meu coração. Você cuidará para que isto fique muito claro para eles, de sua escolha foi feita especialmente para me representar (Plínio, Ep. 10.18). A carta de uma ordem oficial, portanto, servia como lembrete ao subordinado de seus deveres e como seu comissionamento público.25 Em lTim óteo 6.14 Paulo diz a Timóteo para “guardar este mandamento [entolê] ”, significando o mandato que ele lhe concedera por meio da carta. A 22E.g., 11. 158-63. “Se você for negligente nisto [...] esteja certo de que além de não receber os pagamentos [...] você se tornará objeto de desprezo incomum”, e 11. 254-57. “Se você agir deste modo, cumprirá seu dever legal e sua segurança estará garantida”. 23Hunt e Smyly, Tebtunis Papyri, p. 69, descreve a carta “como um tipo de vade-mécum” para o administrador e “sua carta de nomeação”. 24Michael Wolter, Die Pastoralbriefe ais Paulustradition (FRLANT 146; Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1988), p. 164-70. 2,V. Hunt e Smyly, Tebtunis Papyri, p. 66-73; Ceslas Spicq, Les Epitres Pastorales, 2 vols., 4. ed. (Ebib; Paris: Lecoffre, 1969), vol. 1, p. 34-7; Benjamin Fiore, The Function o f Personal Example in the Socratic and Pastoral Epistles (AnBib 105; Rome: Biblical Insti­ tute, 1986), p. 79-84; Wolter, Die Pastoralbriefe, p. 161-70; e Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p. 106-7.

natureza precisa desse mandato surge em vários pontos. Cabe a Timóteo ordenar aos falsos mestres que parem de ensinar (1.18) e destacar a conduta apropriada na igreja (3.15). Pessoalmente, ele deveria fornecer o exemplo de comportamento diligente (4.12, 15), certificando-se de que sua conduta e seu ensino não recaís­ sem no padrão estabelecido pelos falsos mestres (4.16; 6.20). A pureza da igreja, na conduta dos que pertencem a ela e no ensino de seus líderes, é muito impor­ tante porque o verdadeiro evangelho é encontrado na igreja, e o evangelho é o único meio para a salvação (2.1-7; 3.15; 4.7^-10,16). Se homens da igreja estiverem envolvidos em disputas inflamadas, eles não podem levantar mãos' santas na oração, e se seu comportamento é um empecilho para suas orações, então ele também impede o avanço do evangelho (2.1-8). Se mulheres da igreja abandonam a modéstia e, à semelhança de Eva, sucumbem à oferta de Satanás de conhecimento pecaminoso, e ensinam esse erro a outras pes­ soas (2.9-14-, 5.15), sua saWaçao está ameaçada (2.15). A igreja é coiuna e funda­ mento da verdade que todos devem conhecer e ser salvos (3.15; cf. 2.4-6). Por essa razão Timóteo deve conduzir a igreja em Efeso de volta à doutrina e conduta corretas. D o u t r in a correta Em diversos lugares da carta Paulo resume elementos fundamentais do ensi­ no cristão como forma de recordar Timóteo, junto com a igreja que ouvirá esse mandato ser lido, desses elementos do evangelho. Timóteo recebera a comissão de permanecer fiel a esse “depósito” da verdade quando ele foi separado para a obra do evangelho (6.12, 20).26 O falso ensino desafia em vários pontos o ensino cris­ tão tradicional, e Paulo deseja fazer Timóteo — seu oficial subordinado — recor­ dar e a igreja sob seus cuidados desses pontos fundamentais nos quais o evangelho e o falso ensino se separam. Primeiro, Paulo destaca em dois lugares que Deus é o único Deus verdadeiro (lTm 2.5; 6.15, 16). Esta era a confissão básica do judaísmo antigo (e.g., Dt 6.4; Is 44.8; 45.5, 6) e do cristianismo primitivo (Mc 12.29; Rm 3.30; ICo 8.1; Ef 4.5, 6; Tg 2.19), que serviu em um contexto politeísta para afirmar a soberania exclu­ siva do Deus das Escrituras dos judeus sobre o universo. Como Paulo diz em ICoríntios 8.4: “sabemos que o ídolo não significa nada no mundo e que só existe um Deus”. É possível que ao fazer uso dessa linguagem em lTim óteo, Paulo esteja usan­ do apenas uma expressão judaica tradicional como lembrete da soberania univer­ sal de Deus em um contexto onde as pessoas afirmavam coisas similares a respeito do imperador e de outros governantes (cf., e.g., 2M acabeu s 12.15; E clesiásti26A “boa confissão na presença de muitas testemunhas” (6.12) de Timóteo é, portanto, equivalente à “ordenação”. V. George W. Knight III, Commentary on the Pastoral Epistles (NIGTC; Grand Rapids: Eerdmans, 1992), p. 264-5-

co. 46.5).27 Paulo também pode ter usado a linguagem tradicional contra a afir­ mação gnóstica de que o Deus judeu é uma divindade inferior de um grande panteão. Ele poderia estar afirmando que Deus não é o Criador criado quem se esqueceu de sua origem e que jaz abaixo dos “poderes superiores”. Ao contrário, ele é “o bendito e único Soberano” (dynastês ), o único Deus acima de todos os outros governantes terrenos.28 Em segundo lugar, Paulo destaca que Deus é o Criador do mundo e que a criação é boa. Paulo afirma a criação divina de Adão e Eva em 2.11, e ele implica a bondade de Deus na criação ao colocar a responsabilidade pela transgressão em Satanás (que está por trás dos verbos na voz passiva em patêthê e exapatêtheisa em 2.14).29 Este conceito reaparece em 4.3-5, onde Paulo contrasta os elementos do falso ensino com seu resumo da verdade sustentada pela igreja em 3.15, 16. Em 4.3-5, Paulo faz uma referência à profecia cristã de que no fim dos tem­ pos alguns abandonarão a fé por darem ouvidos a ensinos enganosos inspirados por demônios. Ele menciona dois desses ensinos — a proibição do casamento e abstinência de certos alimentos. Pelo fato de ele refutar o conceito de que o casa­ mento é mau em diversos pontos da carta (2.15; 3.2, 12; 5-9, 14), ele se concen­ tra, no capítulo 4, sobre a idéia da rejeição de alguns “alimentos”.30 O alimento, ele argúi, como todo o mais criado por Deus, é bom, santificado mediante a palavra criadora de Deus e as orações feitas pelos crentes antes de comê-lo. Deus o criou, além do mais, para o benefício dos que crêem e reconhecem a verdade — ele foi criado para ser recebido com gratidão (cf. ICo 10.30). Aqui Paulo repete o relato da criação de Gênesis, e especificamente a declaração culminante de que no final dos seis dias de atividades da criação: “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Mais tarde, Paulo descreverá Deus como aquele “que a tudo dá vida” (6.13) e “que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação” (6.17). De forma seme­ lhante a 6.15, 16, a descrição de Deus como origem da vida é, possivelmente, o golpe polêmico contra uma característica algumas vezes atribuída aos imperadores 27A referência a Deus como o único imortal pode ser uma alusão à prática comum, desde os dias de Júlio César, de fazer declarar a honra divina da suprema autoridade de Roma. Sobre esta prática, v. Mary Beard, John North e Simon Price, Religions o f Rome, 2 vols. (Cambridge: Cambridge University Press, 1998), p. 206-10; a respeito deste entendi­ mento da expressão de 2Tm 6.16 v., emtre outros, J. N. D. Kelly, The Pastoral Epistles (BNTC 14; Peabody, Mass.: Hendrickson, 1960), p. 146, e Spicq, Épitres Pastorales, vol. 1, p. 573-4. 2SCf. E. F. Scott, The Pastoral Epistles (MNTC; London: Hodder and Stoughton, 1936),p. 79, e, a respeito de 2.5, Kelly, Pastoral Epistles, p. 63. Com a devida vênia a Towner, The Goal o f Our Instruction, p. 50 e 84, que conecta a linguagem do “Deus único ao universalismo de Paulo (cf. Rm 3.29, 30; G1 3.20; Ef 4.5, 6). 29Andreas J. Köstenberger, “Ascertaining Womens God-Ordained Roles: An Interpreta­ tion of ITimothy 2.15”, BBR 7 (1997): 107-44, (esta citação é da p. 123). 30Knight, Pastoral Epistles, p. 190; Marshall, Pastoral Epistles, p. 542.

romanos. Cada súdito deveria considerar o imperador “a fonte de sua vida e exis­ tência” (Inscriptiom fr o m P rien e 105.10.32).31 Paulo enfatizou com tanta vontade que Deus criou todas as coisas em 4.3-5, que provavelmente ele quis dizer o mesmo em 6.13, 17 ao afirmar que o único Deus soberano é também o Deus que deu a vida a tudo, e que a criação feita por ele é boa. O Deus máximo, em outras palavras, é o Deus de Gênesis 1— 3, que criou e agora envia o sustento de suas criaturas.32 Terceiro, Paulo destaca a obra graciosa de Deus na salvação da criação humana por meio do mediador plenamente humano entre Deus e os homens, Cristo Jesus. Paulo reafirma o relato da origem do pecado humano encontrado em Gênesis 3.1­ 19 (lTm 2.14) e presume que, como resultado do primeiro pecado, todos necessi­ tam de salvação (lTm 2.4 ,6; 4.10). Ele dá ênfase especial, todavia, ao caráter gracioso de Deus e de Cristo, sobre o papel de Cristo como mediador entre Deus e a hu­ manidade, e sobre a humanidade de Cristo em seu papel de mediação. Portanto, Paulo dá a Deus o título “Deus nosso Salvador” e diz que Deus deseja salvar a todos (2.3, 4). Ele é, portanto, “o Salvador de todos os homens, especialmente dos que crêem” (4.10). Deus salva os que crêem por meio de Cristo, e ele é um Salvador gracioso e misericordioso, disposto a salvar mesmo o pior dos pecadores, indepen­ dentemente de seu nível de ignorância e incredulidade (1.13-16). Em duas confissões tradicionais (2.5, 6; 3.16b), Paulo destaca o papel de mediação de Cristo entre Deus e a humanidade.33 Como há um único Deus, diz o primeiro credo, também há um único mediador entre Deus e a humanidade — Cristo Jesus (2.5)- O segundo credo também fala de Cristo como aquele que se movimenta entre o mundo visível e o invisível — Cristo foi vindicado pelo Es­ pírito, visto por anjos, e recebido na glória, mas ele também foi manifestado na carne, pregado entre as nações e crido no mundo (3.16). Ele foi, em outras pala­ vras, “o mediador entre Deus e a humanidade” (2.5). Ambos os credos também enfatizam a natureza humana de Cristo como me­ diador. “O homem Cristo Jesus” que faz a mediação entre Deus e seres humanos (2.5). Ele também foi manifestado ao mundo “na carne” (3.16, nota de rodapé). 5:Spiq, Épitres Pastorales, vol. 1, p. 570. ?:Cf. Walter Lock, The Pastoral Epistles, 3. ed. (ICC; Edinburgh: T. & T. Clark, 1952), p. 71, sobre 6.13> e Marshall, Pastoral Epistles, p. 672, sobre 6.17. O particípio zôogonountos de 6.13 está no tempo presente, indicando que Deus presentemente sustenta a vida que ele criou. Sobre isso, v. Marshall, Pastoral Epistles, p. 662. ?3Os comentaristas, de forma geral, tomam essas duas passagens como citações de um material tradicional já existente, apesar de existir certa controvérsia a respeito de 2.5, 6. Acerca do posição de que 2.5, 6 é uma “obra litúrgica” e não um “credo” ou “confissão”, v. Martin Dibelius e Hans Conzelmann, The Pastoral Epistles (Hermeneia; Philadelphia: Fortress, 1972), p. 41, e Spiq, Epitres Pastorales, 366. Sobre o conceito de que 2.5, 6 é composição do próprio Paulo, v. Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p. 127. A retórica equilibrada da passagem provavelmente indica tratar-se de uma declaração tradicional de algum tipo e, se o Shema (Dt 6.4,5) sobre o qual ela está baseada pode ser designada credo, certamente esta declaração qualifica-se também para receber esse título.

Por que a ênfase tripla na graça de Deus, no papel de Cristo como mediador e na natureza humana de Cristo? Paulo está, provavelmente, relembrando Timó­ teo e a igreja de Efeso exatamente desses pontos do ensino cristão tradicional como a refutação mais eficiente das alegações dos falsos mestres. Cristo não é, como os hereges do tipo de Saturnino afirmavam, o ser celestial desprovido de carne que se desviou dos criadores angelicais do mundo e faz a mediação entre o Deus desconhecido e os seres humanos que possuem uma centelha divina im­ plantada em si. Ele é o mediador plenamente humano entre o único Deus e suas criaturas humanas, e seu poder para salvar é eficaz para todo o que nele crê.34 O Deus que criou o mundo, além do mais, não se encontra separado dos “poderes superiores” que tiveram piedade do homem miserável, produzido por atos espa­ lhafatosos e criativos de anjos. Em vez disso, o Deus que criou os seres humanos é também aquele que, por meio da graça e da misericórdia de Jesus Cristo, reali­ zou a saivaçao d eles. C onduta co rreta A maior parte de lTim óteo lida com a conduta correta na igreja. O falso ensino produz um comportamento que parece fluir de uma consciência cauteri­ zada — a proibição do casamento, restrições alimentares ascéticas, discussões in­ termináveis sobre tolices baseadas na narrativa da criação de Gênesis, disputas violentas suscitadas por essas discussões e o desejo incontrolável pela riqueza. Mulheres — particularmente as mulheres ricas que poderiam pagar para serem tutoradas pelos falsos mestres e as jovens viúvas sustentadas pela igreja a partir de um fundo de assistência comum — estavam aparentemente entre as principais defensoras da heresia que as levara a esse comportamento. As mulheres ricas talvez ensinassem a heresia enquanto os homens gastavam o tempo das reuniões da igreja não com oração, mas com disputas raivosas a respeito da heresia.35 As jo­ vens viúvas, isentas das responsabilidades do casamento e da criação de filhos — coisas nas quais elas não acreditavam — , pela bondade da igreja, podiam gastar seu tempo visitando a casa de crentes e espalhando o falso ensino.36

34Isto parece ser mais provável que a sugestão de Towner, The Godl ofO ur Instruction, p. 54, que Cristo é considerado nessas passagens apenas o mediador de uma aliança. E verdade que o termo mesitês possui nuanças relativas à aliança em outros usos dessa palavra no NT (G1 3.20; Hb 8.6; 9.15; 12.24), mas nessas passagens o contexto destaca essas nuanças. 35Cf. Padgett, “Wealthy Women”, p. 22. 3éEsta parece ser a melhor explicação para a advertência de Paulo da “inscrição” {katalego} exclusiva de viúvas de idade avançada (60 anos ou mais) e que não tenham parentes que possam cuidar delas (5.3-9^, 16), e para “excluir” (paraiteô) as jovens viúvas (5.11, au­ tor) porque algumas delas desejam casar e outras aprenderam a ficar ociosas, “ficam andando pelas casas [...] dizendo o que não deviam” (5.12, 13, autor). V. Marshall, Pastoral Epistles, p. 574-81, 591-2, 601-3.

As casas cristãs nas quais a igreja se encontrava estavam, portanto, em con­ fusão doutrinária e, como conseqüência, a “casa de Deus” estava em desordem. O conceito de que Deus e seu povo estão separados da ordem criada ameaça a base bíblico-teológica do evangelho. O foco na importância do conhecimento mítico para a salvação oculta o tema do evangelho da salvação mediante a misericórdia divina e a mediação sacrificial de Cristo Jesus. As disputas ácidas dos homens e a negligência do arranjo apropriado do lar tanto da parte dos homens quanto das mulheres faz a igreja incorrer em uma censura justificável por parte dos de fora. Como resultado, o testemunho da igreja a respeito do evangelho está seriamente comprometido.37 Diante de tudo isso, Paulo dá a Timóteo o mandato de exortar os cristãos de Efeso à conduta digna tanto na casa de Deus com em seus lares. Ele parece espe­ cialmente preocupado pelo que acontece quando a igreja se reúne para a adoração e também sobre a necessidade de líderes qualificados na igreja de Efeso. Na moti­ vação de seus comentários sobre ambas as questões está o abuso perpetrado entre os cristãos efésios pela conexão complexa entre a igreja e o lar.

A igreja unida para a adoração Em 2.1-15 Paulo dá a Timóteo instruções sobre a conduta da igreja quando ela se reúne para adorar. Aparentemente, quando a igreja se reunira no passado, disputas inflamadas entre os homens levaram à negligência da oração (2.8), e essas disputas provavelmente surgiram por causa do ensino grosseiro da heresia pelas mulheres (2.12). Paulo insta Timóteo e a igreja a restabelecer a oração como foco primário {protos) da adoração (2.1, 8), e especialmente a que eles orem pelas pessoas que ocupam posições de autoridade no governo, para que os cristãos pos­ sam viver de forma tranqüila e pacífica (2.2). Essas condições não são apenas desejáveis por tornaram a vida cristã mais fácil no sentido de agradar a Deus (2.3), mas também porque elas facilitam a proclamação do evangelho, feita pela igreja, ao mundo incrédulo (2.4-7).38 Paulo também deseja que os respectivos papéis dos sexos na adoração da igreja espelhem de forma positiva a ordem da criação e de modo negativo a ex­ periência da Queda descritas em Gênesis 1— 3. Os homens deveriam dar fim à ira e às disputas entre si e, em vez disso, levantar “mãos santas” a Deus em oração. As mulheres deveriam levar ao lugar de adoração a vida adornada pelas boas obras

? Cf. Towner, The Goal o f Our Instruction, p. 169-99. Towner enfatiza por todo o seu estudo, que essa preocupação pela missão e não pelo conceito de christliche Bürgerlich­ keit (“cidadania cristã”), como Dibelius e Conzelmann, PastoralEpistles, p. 8, 39-41, o descreve, dão a razão da ética social das Pastorais. ''A respeito da nuança causal do pronome relativo hos (“que”) que dá início a 2.4, v. Marshall, Pastoral Epistles, p. 425. Marshall chama a atenção para as construções parale­ las em 4.10 e Tt 2.14.

em vez da ostentação de riqueza ou trajes sem modéstia (2.9, 10). Paulo provavel­ mente não deseja excluir as mulheres da oração durante a reunião da igreja, da mesma forma que ele não exclui os homens da vida adornada com boas obras, mas a implicação de sua ordem direta aos homens a respeito da oração é que eles tomem a iniciativa nessa atividade.39 Além disso, Paulo proíbe às mulheres o ensino ou o exercício de autoridade imprópria sobre os homens na adoração da igreja (2.12a).40 Elas devem aprender em silêncio e com “toda a sujeição” (2.11, 12b). Paulo não diz a quem ou a que as mulheres devem se submeter, mas pelo fato de tê-las proibido do ensino, parece provável que ele tivesse a intenção de que elas se submetessem aos bispos ou presbíteros, que devem ser homens com a habilidade de ensinar (3.2; 5.17).41 Por que essa preocupação em separar os papéis de homens e mulheres e silen­ ciar as mulheres como mestras na adoração da igreja? De forma muito prática, o silêncio das mulheres cortaria o falso ensino pela raiz — as mulheres ricas, que como vimos, provavelmente financiavam os falsos mestres e disseminavam suas heresias, bem como as jovens viúvas, desobrigadas dos cuidados relativos à família, que iam de casa em casa ensinando a heresia. Torna-se aparente a partir da disposição de Paulo de separar o papel dos sexos na adoração 2.8, 9 e silenciar as mulheres em 2.12, todavia, que uma questão teológica mais profunda está sendo tratada nessa ordem específica a respeito da adoração. Paulo confirma essa questão explicitamente em 2.13-15. Deus criou os seres humanos em dois gêneros, masculino e feminino, e a ordem na qual ele os criou implica papéis distintos na igreja para cada gênero. Os homens devem tomar a iniciativa na oração quando a igreja se reúne para o culto, e as mulheres devem se submeter à autoridade da liderança masculina da igreja porque “primeiro foi formado Adão, e depois Eva” (2.13). Os homens, e não as mulheres, devem ensi-

39Marshall, Pastoral Epistles, p. 447. 40O verbo raro authenteô, parafraseado nesta expressão como “exercendo autoridade inapropriada”, tem sido objeto de intenso debate, quer ele se refira, em sentido negativo, ao uso impróprio de autoridade ou, em sentido neutro, ao uso de qualquer autoridade. V. os debates contratantes de, e.g., Andreas J. Kõstenberger, “A Complex Sentence Struc­ ture in ITimothy 2.12”, in Women in the Church: A Fresh Analysis o f l Timothy 2.9-15, Andreas J. Kõstenberger, Thomas R. Schreiner e H. Scott Baldwin (eds.) (Grand Ra­ pids: Baker, 1995), p. 81-103, e Marshall, Pastoral Epistles, p. 456-60. A natureza incomum do termo indica que Paulo deseja dizer algo diferente de “as mulheres não deverem exercer autoridade sobre os homens” (cf. Marshall, Pastoral Epistles, p. 458). Paulo po­ deria ter formulado facilmente a sentença para valer-se de um termo mais comum, comoproistêm i (cf. 3.4, 5; 5.1), se ele quisesse lhe dar esse significado. Portanto, Paulo provavelmente diz que as mulheres não devem exercer autoridade imprópria sobre os homens, não simplesmente que elas não devam exercer qualquer tipo de autoridade sobre eles. 4,Os “presbíteros” de 5.17 são obviamente homens porque Paulo, que já mencionou^mbyterai (5.2), não obstante escolhe a expressão masculina boi [...]presbyteroi aqui.

nar porque Eva foi a primeira vítima de Satanás no engodo que conduziu à deso­ bediência descrita em Gênesis 3.6, e não Adão. A implicação é clara: Adão e Eva descumpriram o mandamento divino a respeito dos gêneros quando Eva levou Adão a desobedecer a ordem de Deus. De um modo reminiscente a ICoríntios 11.2-16, Paulo alia a atividade da adoração da igreja com a ordem apontada por Deus em relação aos sexos na criação. As mulheres serão salvas do falso ensino de inspiração satânica (lT m 2.15; cf. 5.15) — e, portanto, serão salvas escatologicamente — se elas derem fim às práticas e ao ensino ascético e se dedicarem aos deveres que confirmam a ordem da criação: o casamento, a geração de filhos e o cuidado do lar (2.15; 5.14).42 A razão para a imposição paulina da ordem na igreja de Efeso que espelha positiva e negativamente a ordem encontrada nas narrativas de Gênesis sobre a criação não é difícil de encontrar se o falso ensino corrente em Efeso se assemelhar ao gnosticismo de Saturnino. A desvalorização do “deus judeu” descrito em Gêne­ sis 1— 3 como o Criador do universo e, portanto, o Criador de Adão e Eva con­ duzira a uma violação das convenções da adoração da igreja, convenções que Paulo acreditava estarem enraizadas nessa narrativa. Essas convenções precisavam ser restabelecidas, como uma forma de afirmação da ordem criada contra as ale­ gações da heresia e também como forma de restaurar a ordem na adoração corpo­ rativa da igreja.43 Paulo espera que a igreja siga essas instruções, experimentando três resulta­ dos: Primeiro, a oração voltará a ser feita a favor das autoridades governantes, refreando o tempo da perseguição e ajudando a preservar um ambiente social no qual o testemunho do evangelho, feito pela igreja, possa florescer. Segundo, os principais propagandistas do falso ensino serão silenciados. Terceiro, a conduta da igreja na adoração anuncia o Deus de Gênesis 1— 3 como o Deus verdadeiro.

’-Cf. Mounce, Pastoral Epistles, p. 130-43. Sobre o significado intensamente debatido da declaração de Paulo: “a mulher será salva dando à luz filhos” em 2.15, v. o apanhado geral de interpretações e observações exegéticas in Kõstenberger, “Ascertaining Women’s God-Ordained Roles”, p. 107-44. -'O fundamento do apelo dessa heresia para as mulheres pode ter sido estabelecido pela “nova” atitude entre algumas viúvas no período posterior da República romana que procura­ vam exercer domínio sobre seus maridos. Nos dias de Augusto, esse comportamento era comum, mas ainda considerado escandaloso. Sobre este ponto v. Towner, The Goal o f Our Instruction, p. 39, e Winter, “‘New’ Roman Wife”, p. 285-94. Talvez em 2.9-15 Paulo procure preservar a igreja do escândalo público sobre este assunto por causa de propósitos evangelísticos, como ele o faz em relação aos escravos em 6.1, 2 (cf. Tt 2.5, 10).

Liderança da casa de Deus A liderança da igreja de Éfeso está nas mãos de um grupo chamado por Paulo alternadamente “bispos” (3.1-7) e “presbíteros” (5.17-20).44 Esses líderes provavel­ mente eram assistidos em seu trabalho pelos “diáconos” (3.8-13). A igreja sobre a qual eles presidiam encontravam-se, aparentemente, em diversas casas de pres­ bíteros ou bispos. Entretanto, isto não significa que cada bispo ou presbítero tivesse uma igreja em seu lar pelo fato de Paulo instruir Timóteo em 5.20 a repreen­ der os presbíteros pecadores (plural) em público, diante do grupo todo.45 Parece razoável concluir que o presbítero ou bispo dono da casa onde a igreja se reúne possuía um papel proeminente na liderança da igreja que se reunia em sua casa — ele teria que ser rico e, portanto, ter certa medida de status social natural na igreja.46 Se este entendimento da estrutura da igreja de Efeso estiver minimamente correto, então, o falso ensino só pode ter ganhado força se os presbíteros das casas nas quais a igreja se reunia estivessem desatentos aos assuntos domésticos e eclesiás­ ticos de seus lares. As famílias que viviam nesses lares e as assembléias que se reuniam neles estavam passando por dificuldades morais e doutrinárias. A desor­ dem doméstica e corporativa que atingia a igreja maculava a fé aos olhos dos incrédulos e impedia a proclamação do evangelho (2.1-7; 3.14, 15; 6.1). Um propósito importante do mandato de Paulo a Timóteo, portanto, é colocar diante dele e da igreja uma lista de qualificações pessoais para os que devem servir nesses ofícios e para instar Timóteo a ser um exemplo para todos sobre como deve se comportar em relação aos assuntos domésticos e eclesiásticos. Os estudiosos destacam com freqüência a similaridade entre as listas de Paulo sobre as qualificações para bispos e diáconos em 3.1-13 e as listas de qualificações encontradas nos filósofos helenistas e nos teóricos morais desse período. As listas de Paulo são semelhantes quanto à forma e algumas qualidades mencionadas, como a lista de qualificações para o posto de general que Onasandro, um contem-

44V. Tt 1.5, 7, onde os dois termos parecem designar o mesmo ofício. O termo “bispo’ (iepiskopos) está sempre no singular nas Pastorais (lTm 3.1, 2; Tt 1.7) e por essa razão alguns estudiosos têm proposto que o “bispo” e os “presbíteros” (presbyteroi) desempen­ hem funções diferentes. R. Alastair Campbell, The Elders: Seniority within Earliest Chris­ tianity (SNTW; Edinburgh: T. &T. Clark, 1994), p. 176-205, por exemplo, acredita que as Pastorais reflitam um período de transição no qual um “bispo” era escolhido em cada cidade para presidir sobre os “presbíteros” (Tt 1.5, 7) locais. Porém, como Marshall, Pas­ toral Epistles, p. 179, observa, Tt 1.5 menciona a eleição de “presbíteros” em cada cidade, não de um “bispo”. Entretanto, parece mais acertado, com Marshall, ibid., p. 181, consi­ derar o “bispo” um título descritivo da função e “presbítero” um título descritivo de status. 4;iIsso torna improvável a alegação de Cambell (Elders, p. 193) de que os “bispos” haviam começado como líderes das igrejas que se reuniam em suas casas. 46V. Davi C. Verner, The Household o f God: The Social World ofth e Pastoral Epistles (SBLDS 71; Chico, Calif.: Estudiosos Press, 1983), p. 133, 152.

porâneo de Paulo, produziu.47 O general deveria ser prudente e não amante do dinheiro, deveria ter filhos, ter a idade correta — nem muito jovem nem muito velho — e ter uma boa reputação (além de várias outras qualidades); essas carac­ terísticas são idênticas às da lista de Paulo ou parecidas com elas. Isto não é sur­ preendente pelo fato de uma das principais preocupações de Paulo em 1Timóteo ser a de restaurar a reputação pública maculada da igreja para que o testemunho do evangelho para os de fora fosse eficaz. Portanto, ele conclui a lista de qualifi­ cações para o ofício de “bispo” com a seguinte declaração a respeito daquele que serve: “também deve ter boa reputação perante os de fora, para que não caia em descrédito nem na cilada do Diabo” (3.7; cf. 2.1-6; 6.1). Entretanto, além dessas qualificações, Paulo inclui entre as qualidades de bis­ pos e diáconos algumas que aparentemente dizem respeito à manutenção de lares calmos, justos e ordeiros, e ao ensino da sã doutrina nas assembléias cristãs que se reuniam em seus lares. Tanto bispos quanto diáconos deveriam ser fiéis às mulheres (3.2,12), não apegados ao vinho (3.3, 8) e deveriam governar bem a própria família, particularmente os próprios filhos (3.4, 12). Os bispos devem ser sóbrios, modera­ dos e hospitaleiros, e em lugar de usar de violência física, ser gentis e irênicos (3.2, 3) — qualidades especialmente apropriadas para um lar exemplar. Além disso, o bispo deve ter experiência no ensino da fé e, com diáconos, ter a consciência limpa em relação à exatidão de suas crenças (3.2, 9). Os respon­ sáveis pela condução dos lares também são responsáveis pela veracidade do ensino quando da reunião da igreja para a adoração. Por que Paulo está tão preocupado com o fato de que os líderes da igreja sejam os cabeças responsáveis pelos lares? Os falsos mestres, além do recrutamen­ to de viúvas jovens (5.13), também podem ter alvejado casas onde, segundo o costume greco-romano, o homem mantinha a autoridade formal, mas na verdade encontravam-se desordenadas. Aparentemente eles também pilharam casas nas quais mulheres corruptas (2Tm 3.6) não cuidavam de seus parentes (lT m 5.4, 8, 16). Eles também obtiveram sucesso em casas onde o ensino herético não era questionado (2Tm 3.6; T t 1.11). Chefes dos lares que também eram donos das casas nas quais as congregações se reuniam para adorar podem ter sido indiretamente responsáveis por grande parte dessa desordem devido à sua indisposição de assumir a responsabilidade pelo que acontecia em suas casas. Talvez a bebida (lT m 3.2, 3, 8, 11), a infideli­ dade conjugal (3.2, 12), a falta de habilidade para ensinar (3.2), ou a falta de sinceridade para com o conhecimento obtido (3.9) impedissem o exercício de suas responsabilidades. Talvez o sucesso financeiro dos falsos mestres os impres­ sionasse (3.3; 3.8; cf. 6.3-10; Tt 1.11). Tais pessoas, Paulo diz, não devem assu4 Onasandro (às vezes grafado Onosandro) era um fdósofo platonista que escreveu du­ rante o reinado de Cláudio (41-54 d.C.). V. o texto com a tradução de sua obra De impemtoris officio 1 in Dibelius & Conzelmann, The Pastoral Epistles, p. 158-60.

mir posições de liderança na igreja, porque “se alguém não sabe governar sua própria família, como poderá cuidar da igreja de Deus?” (3.5; cf. 3.12). Os pres­ bíteros que persistem nesse tipo de conduta devem ser repreendidos em público (5.20).48 Ao contrário, os que presidem bem merecem receber um reconhecimen­ to especial (5.17). Paulo deseja que o próprio Timóteo sirva de exemplo não apenas aos líderes da igreja, mas a todas as pessoas. “Seja um exemplo para os fiéis”, Paulo lhe diz, “na palavra, no procedimento, no amor, na fé e na pureza” (4.12; cf. 4.15). Timó­ teo deve considerar todos os membros da igreja de Efeso como seus familiares e tratar a cada parente de sua casa metafórica com respeito (5.1). Ele também de­ veria evitar a ordenação precipitada de pessoas para desempenhar responsabi­ lidades eclesiásticas (5-22), manter-se longe da ascese dos falsos mestres, “tomar um pouco de vinho” (5.23), fugir dos males provenientes da ganância e buscar “a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança e a mansidão” (6.3-11). Acima de tudo, ele deve guardar “o depósito” — a “sã doutrina” — confiado por Paulo a seus cuidados, abandonado pelos falsos mestres (1.13; 6.3).49 Em outras palavras, à semelhança dos homens que recebiam mandatos régios, ele deve ser um exem­ plo do tipo de comportamento que trouxe ordem ao mundo e que a mantinha, no caso de Timóteo: “promover a obra de Deus” (oik onom ian theou, 1.4).50 O CUIDADO PARA COM A CASA DE D e ü S EM É f ESO Em 1Timóteo Paulo está preocupado com a restauração do testemunho evangélico de uma igreja atingida pelo ensino protognóstico. Esse ensino pre­ conizava um conceito desordenado do universo, tirava vantagem de lares pro­ blemáticos para propagar seu ensino e deixava um rastro de confusão na igreja. As pessoas de fora da igreja notavam o estado caótico em que ela se encontrava e não tinham, dela, uma boa impressão. A despeito do desejo de Deus “que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (2.4), a igreja era incapaz de testemunhar eficazmente a respeito da bondade de Deus na criação, a decadência da humanidade, e o caráter gracioso dos propósitos salvíficos revela­ dos na obra de mediação de Cristo Jesus. O afastamento desses pontos funda­ mentais da fé levou mulheres a abandonar a administração (oikodespoteô, 5.14) de

“*80 particípio hamartanontas (“esses que pecaram”) está no tempo presente e, portanto, refere-se aos que persistem em pecar. 49V. Ceslas Spiq, “iTapa0r|Kr|” , TLNT, vol. 3, p . 27. ,0A respeito desta tradução, v. Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p. 112.

seus lares e a exercer a autoridade imprópria no ensino sobre a liderança masculina da igreja. O cuidado para com a casa de Deus, como resultado, foi abandonado.51 Mas a casa de Deus — a igreja — é “a coluna e o fundamento da verdade”. A verdade deve ser evidente tanto no ensino da igreja quanto na forma em que ela e os responsáveis por suas reuniões conduzem seus assuntos. Deus criou homens e mulheres e designou a cada gênero papéis separados. Paulo diz a Timóteo que a ordem na adoração da igreja e nos assuntos do lar deve espelhar o trabalho de Deus como Criador. Se mulheres e homens na igreja de Efeso alinharem seus assuntos domésticos e eclesiásticos com a verdade que Deus criou o mundo e disse que ele era bom, então eles demonstrarão, pela forma como vivem, que os conceitos do falso ensino estão errados. Os incrédulos não caluniarão mais o ensi­ no da igreja (6.1). A igreja funcionará como o repositório da verdade a respeito de Deus, da humanidade e do resgate divino da humanidade mediante o único me­ diador entre Deus e a criatura humana, o homem Cristo Jesus (2.5, 6).

' O conceito da igreja como casa de Deus também surge nas primeiras cartas paulinas e não é um sintoma da preocupação pela christliche Bürgerlichkeit (“cidadania cristã”) desenvolvida na igreja depois do tempo de Paulo. V. G16.10; Ef2.19 (cf. 1Co 4.1; 9.17) e o debate in Towner, The Goal o f Our Instruction, p. 133-4.

Capítulo 20

Tito: conhecer a Deus, praticar o bem e tomar a salvação atrativa

Por volta da mesma época em que Paulo escreveu sua carta a Timóteo, em Efeso (i.e., lTm ), ele também escreveu a Tito que, conforme vimos no capítu­ lo 19, ele deixara na ilha de Creta para que resolvesse problemas e escolhesse líderes qualificados para as igrejas da ilha. Como os antigos mandatos reais, des­ critos no último capítulo, essa carta de Paulo a Tito é de um superior a um subor­ dinado, a quem se entrega a responsabilidade de algum grupo social. Como acontece com aqueles documentos, o propósito da carta, aparentemente, é lem­ brar Tito, o subordinado de Paulo, sobre as instruções que este lhe dera oralmente antes que ele assumisse suas obrigações. Da mesma forma que qualquer “mandato real”, a carta de Paulo, embora tenha sido escrita para Tito, é um documento público, dirigido a toda a igreja, conforme o termo “todos” (hym ôn ), na linha de encerramento, deixa claro (3.15). Paulo encarrega Tito de escolher líderes que sejam capazes de refutar o falso ensino que começou a corromper as igrejas de Creta para substituí-lo pela “sã doutrina” (1.5,9). Como comumente acontece com esses mandatos reais, Tito é quem deveria exemplificar o modelo de crença que Paulo espera de toda a igreja de Creta (2.7,8), e a natureza pública da carta demonstra a todos os cristãos cretenses que Tito recebeu o apoio e a autoridade do apóstolo Paulo (3.15). O falso ensino que começou a perturbar as igrejas de Creta parece pratica­ mente idêntico ao falso ensino que criara desordens nas igrejas de Efeso. Esse ensino apela à lei judaica (Tt 3.9; cf. 1.14; lTm 1.7), tem tendências ascéticas (Tt 1.14-15; cf. lTm 4.3) e destaca a importância das “lendas judaicas” (Tt 1.14; cf. lTm 1.4; 4.7) e das “genealogias” (Tt 3.9; cf. lTm 1.4). Os falsos mestres de Creta, como os de Efeso, têm a mente e a consciência corrompidas (Tt 1.15; cf. lTm 4.2), buscam o ganho financeiro (Tt 1.11; cf. lTm 6.10), encorajam con­ trovérsias tolas e provocam divisões (Tt 3.9-11; lTm 6.4). Eles, como também os falsos mestres de Efeso, disseminavam esse ensino de casa em casa, perturbando as famílias dessas casas e, provavelmente, as igrejas que ali se reuniam (Tt 1.11; cf. lTm 5.13).

As diferenças básicas entre esses dois grupos dizem respeito à origem étnica e geográfica deles. Sabemos que o grupo de Creta era formado de nativos judeus da ilha (1. 10, 12, 13), ao passo que Paulo não explicita a origem dos grupos de Éfeso.1 Também em Creta, como em Éfeso, o falso ensino é provavelmente uma forma primitiva do gnosticismo judeu e, certamente, também continha elemen­ tos mitológicos e ascéticos que vieram à tona nos sistemas gnósticos posteriores de Saturnino e Menander.2 A preocupação primária de Paulo na carta é a possibilidade desse ensino perverso continuar, o que, por sua vez, faria com que a “mensagem fiel” sobre Deus caísse em descrédito público. Essa preocupação sobre a conexão entre a qualidade do conhecimento sobre Deus e a qualidade do comportamento indi­ vidual permeia a carta. O falso ensino sobre Deus leva, inevitavelmente, à cons­ ciência corrompida e às ações maléficas. Por sua vez, a sã doutrina de que Deus, por intermédio de Jesus Cristo, livra as pessoas do comportamento maléfico e lhes dá a esperança da vida eterna deve levar à pureza moral e às boas ações. O falso ensinamento que infestava as igrejas de Creta é muito pernicioso, porque a compreensão de Deus que ele apresenta leva ao comportamento perverso, o que mina a habilidade dos cristãos de atrair os incrédulos à fé cristã por meio de sua mensagem — a mensagem de que Deus ofereceu a salvação dos pecados e a espe­ rança eterna por intermédio de Jesus Cristo. Neste capítulo, examinaremos a conexão que Paulo faz entre fé e comporta­ mento, e depois discutiremos as origens e as implicações — tanto sociais quanto teológicas — da crença de Paulo de que o comportamento maléfico obstrui o ensinamento de Deus como Salvador. C o n h e c im e n t o e c o n d u t a A ligação entre conhecimento e conduta permeia a carta e explica a diferença básica entre a “sã doutrina” do evangelho paulino e a mensagem enganosa dos falsos mestres. Conforme Paulo afirma na abertura da carta: “... conhecimento da

’Creta era a maior ilha do mar Egeu, a residência de uma grande minoria judaica. Josefo registra que durante o reinado de Augusto, Alexandre, um impostor que se assemelhava vagamente ao filho de Herodes, foi capaz de convencer todos os judeus que encontrou na ilha de que as ordens de Herodes para executar seus filhos Alexandre e Aristóbulo jamais foram levadas a cabo, e de que ele era Alexandre (A. ]. 17.327; cf. B. J. 2.103). Josefo casou-se também com uma mulher cretense que, conforme se afirma, era prove­ niente de uma família proeminente da ilha (Vit. 427). Tácito, estranhamente, identifica os ancestrais dos judeus com o povo de Creta (Hist. 5-2), e Atos 2.11 enumera Creta como um dos locais de onde os judeus vieram para celebrar o festival de Pentecoste em Jerusalém. Tudo isso indica que havia uma grande população judia na ilha. 2V. os comentários sobre Saturnino e Menander no capítulo 19.

verdade que conduz à piedade [eu sebia]” (1.1).3 Mas a qualidade da vida dos falsos mestres equipara-se à falsidade da afirmação de que eles conhecem a Deus (1.16). Eles são insubordinados (1.10), gananciosos (1.11), irascíveis (3.9) e fac­ ciosos (3.10). Eles têm a mente maculada e a consciência corrompida (1.15).4 A conexão que Paulo faz entre o conhecimento de Deus e ética explica, pelo menos em parte, sua citação do poeta cretense Epimênides: “Cretenses, sempre mentirosos, feras malignas, glutões preguiçosos” (1.12).5 Essa não é apenas uma repetição de um estereótipo, uma falha, da parte de Paulo, em seguir seu próprio conselho oferecido em 3.2: “dando provas de toda a cortesia” (ARA).6 Na Antigui­ dade, muitos consideravam que os cretenses mentiam especificamente sobre Zeus, pois afirmavam que ele era um homem divinizado em razão dos benefícios feitos à sociedade e cujo túmulo poderia ser visto na ilha de Creta. O provérbio liga a mentira dos cretenses a respeito de Deus com o comportamento deles. Portanto, a citação do provérbio, feita por Paulo, é uma tentativa de dizer que, pelo menos, os falsos mestres se ajustam a esse estereótipo dos cretenses, porque eles têm uma falsa compreensão de Deus, e essa falsa compreensão se ajusta como uma luva ao estilo depravado deles. 7

-’Nas cartas pastorais, o termo eusebeia (“reverência, piedade, santidade”) significa o co­ nhecimento de Deus que dá origem à conduta correta. Sobre o assunto, v. Hermann von Lips, Glaube-Gemeinde-Amt. Zum Verständnis der Ordination in den Pastoralbriefen (FRLANT 122; Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979), p. 80-84. Essa com­ preensão do termo pode ter surgido em virtude de seu uso na lxx e no judaísmo helenista de forma geral. V., e.g., Is 11.2 e 33.6, em que eusebeia é traduzida por “o temor do Senhor” (cf. Prov. 1.7), e a discussão em Philip H. Towner, The Goal o f Our Instruction: The Structure o f Theology and Ethics in the Pastoral Epistles (JSNTSup 34; Sheffield. She­ ffield Academic Press, 1989), p. 88, 147-54; I. H. Marshall, The Pastoral Epistles (ICC; Edinburgh. T. &T. Clark, 1999), p. 135-44, e Jerome D. Quinn, The letter to Titus (AB 35; New York: Doubleday, 1990), p. 282-91. 4Talvez aos falsos mestres de Creta, de forma similar aos falsos mestres de Colossos, acre­ ditavam que Deus e os seres cósmicos abaixo dele deviam ser aplacados com práticas ascéticas — “mandamentos de homens que rejeitam a verdade”, conforme Paulo se refere a eles aqui (1.14; cf. Cl 2.18, 22-23). 'Epimênides foi professor de religião que viveu em Creta por volta de 500 A.c. Nada do que escreveu foi preservado, mas essa citação foi atribuída a ele por Clemente de Alexan­ dria [Strom. 1.591-2) e por Jerônimo [Comm. Tit., 707). 'O autor de Tito, com freqüência, dá-se ao trabalho de fazer comentários. As observações de Alexander Souter e de Emil G. Kraeling são bastante características: “Essa vituperação não deve ser levada tão a sério. Os antigos eram dados a isso, o que, provavelmente, revela muito sobre o gosto e o caráter das pessoas que adotavam esse estilo de vida, como também revela a natureza daqueles que eles atacam”. V. o artigo deles, “Crete, Cretans”, em Dictionary o f the Bible, ed. Tiago Hastings, Frederick C. Grant, e H. H. Rowley, 2° ed. (Edinburgh, T. &T. Clark, 1963), p. 188. "Reggie M. Kidd, “Titus as Apologia. Grace for Liars, Beasts, e Bellies”, H BT21 (1999): 185-209.

Se os falsos mestres demonstram a verdade de que uma compreensão perni­ ciosa de Deus leva a um comportamento perverso, então o antídoto para o falso ensinamento deve combinar a verdadeira compreensão de Deus com o ensina­ mento sobre as boas obras às quais essa verdadeira compreensão deve conduzir. Essa conexão correta entre ensinamento correto e conduta correta aparece em vários momentos críticos dessa carta. Paulo diz que os presbíteros devem se ape­ gar firmemente “à mensagem fiel” e “refutar os que se opõem a ela” porque (gar, 1.9, 10) “há muitos insubordinados, que não passam de faladores e enganadores”. Em outras palavras, o antídoto para o comportamento perverso dos falsos mestres é a refutação do falso ensinamento deles “porque” (gar, 2.11) isso deixa claro o que eles acreditam na graça salvadora de Deus e em sua esperança futura (2.11-13). Tito deve lembrar os crentes de Creta que devem viver em submissão, ser ho­ nestos e pacíficos (3.1,2) “porque” (gar, 3.3) Deus resgatou todos os crentes para que abandonassem esse tipo de comportamento quando lhes mostrou sua gentileza e os justificou pela graça. Os cretenses não eram apenas “mentirosos, feras malignas, glutões preguiçosos”, mas todo cristão, antes de abraçar a verdade sobre Deus, vivia dessa maneira: “... na maldade e na inveja, sendo detestáveis e odiando uns aos outros” (3.3).8Deus resgatou dessa maneira de viver todo aquele que confiou nele e acreditou na sã doutrina do evangelho ortodoxo. Aqueles que ele resgatou devem, portanto, se empenhar “na prática de boas obras” (3.8; cf. 3.14). T o rn ar atraen te o S a l v a d o r Vimos, no capítulo 19, que Paulo, em lTimóteo, disse a Timóteo que a vida pacífica e calma dos cristãos agradava a “Deus, nosso Salvador, que quer que todas as pessoas sejam salvas e cheguem ao conhecimento da verdade” (lT m 2.4, autor). Essa afirmação implica que Deus quer que seu povo viva pacífica e calma­ mente na igreja para que as boas novas de Deus — a salvação para a humanidade — possam alcançar os que estão fora dela. Mais tarde, Paulo disse a Timóteo para que ensinasse as jovens viúvas a repudiar os falsos ensinamentos sobre o avilta­ mento do casamento e, em vez disso, orientá-las para que “se casem, tenham filhos, administrem suas casas e não dêem ao inim igo nenhum motivo para maledicência” (5.14). Os escravos também devem servir seus mestres de forma honrada e respeitosa “para que o nome de Deus e o nosso ensino não sejam blas­ femados” (6.1,2). Paulo apresenta essa mesma preocupação para Tito. Ele diz que os cristãos, por causa do resultado do comportamento transformado deles, devem silenciar aqueles que “se opõem a você [para que] fiquem envergonhados por não poderem falar mal de nós” (2.8). Antes, os cristãos devem tornar “atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador” (2.10). Se as mulheres mais jovens amarem o 8Cf. Kidd, “Titus as Apologia", p. 200.

marido e os filhos, forem prudentes e puras, ocuparem-se diligentemente dos afazeres da casa, forem bondosas e se sujeitarem a seus maridos, então ninguém será capaz de difamar a “palavra de Deus” (2.5). De forma similar, se os escravos forem submissos a seus senhores, se tentarem agradá-los, se não discutirem com eles nem os roubarem e se honrarem a confiança que os mesmos depositam neles, eles farão com que o ensino da igreja de que Deus salva as pessoas dos pecados (cf. 3.3-5) se torne atraente aos de fora (2.10; cf. lTm 6.2).9 Paulo, tanto em ITimóteo como em Tito, parece dar atenção especial àque­ les que, por não terem poder social, são vulneráveis à opressão de seus superiores. As mulheres, em ITimóteo 2.11, devem aprender em total submissão e, em Tito 2.5, devem se sujeitar a seus maridos. Os escravos, em ITimóteo 6.1, 2, devem servir a seus mestres de forma submissa e respeitosa — e mais ainda se os mestres forem irmãos em Cristo. Em Tito 2.9, 10, os escravos devem se submeter a seus setvkotes em tudo e yÃo serem impettine.srt.es. Muitos estudiosos das pastorais entenderam essas diretrizes como uma capi­ tulação do autor das pastorais à opressiva estrutura social de sua época — uma acomodação conveniente da igreja àquela situação cultural, claramente malévola, para que a igreja pudesse sobreviver como instituição.10 Alguns deles acreditam que esse aspecto das pastorais as separa do autêntico Paulo, cujas tendências eram muito mais igualitárias.11 Outros acreditam que elas representam apenas o forta­ lecimento de uma tendência que já caracterizava as primeiras cartas de Paulo.12 A preocupação de Paulo, entretanto, não é a sobrevivência institucional da igreja, mas a sobrevivência da pregação do evangelho. Seu propósito, por meio dessas instruções, é evangelístico.13 Isso fica muito claro por meio de um exame mais minucioso de ITimóteo 2.1-7. Aqui, Paulo aconselha a igreja de Efeso a orar por todos, especialmente aqueles em posições governamentais de autoridade, para que levem uma vida calma e pacífica. A razão para esse conselho é que Deus é Salvador e quer que todos “os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade”. Paulo, portanto, resume o evangelho — de que Jesus é o mediador

9Sobre a razão missionária da ética social das pastorais, v. Towner, The Goal o f Our Instruc­ tion, p. 169-99. I0V. a descrição compreensiva desse desenvolvimento como uma necessidade social após a frustração das expectativas escatológicas da igreja em Dibelius e Conzelmann, Pastoral Epistles, p. 40-41. P a» uma leitura inflexível das pastorais e sua alegada ética burguesa, v. Neil Elliott, Liberating Paul: The Justice o f God and the Politics o f the Apostle (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1994), p. 25-31. nV„ e.g., Elliott, Liberating Paul, p. 25-54. I2V., e.g., John M. G. Barclay, “Paul, Philemon and the Dilemma of Christian Slave-Ownership”, NTS 37 (1991). 161-86, e idem, “Ordinary but Different. Colossians and Hi­ dden Moral Identity”, um ensaio lido em “Theology of the Disputed Paulines Group” no encontro anual da Society of Biblical Literature, em Boston, Mass., Nov. 20-23, 1999. !3Cf. Luke Timothy Johnson, Letters to Paul’s Delegates: I Timothy, 2Timothy, Titus (Valley Forge, Pa.: Trinity Press International, 1996), p. 235-36.

entre Deus e a humanidade e de que ele entregou a si mesmo como resgate por todos (lT m 2.5,6). Ele sabe que esse evangelho é para todos, pois Deus o chamou para ser apóstolo das nações gentias (2.7). Portanto, o comportamento calmo e pacífico da igreja em Efeso facilita a pregação desse evangelho a todos os homens na esperança de que eles possam ser salvos. De forma similar, em Tito 2.7, 8, os propósitos evangelísticos desses conse­ lhos às mulheres e aos escravos, e não a mera acomodação, ficam claros quando Paulo diz a Tito, alguém que não é mulher nem escravo, para que seja um exem­ plo de comportamento apropriado e de fala irrepreensível. Como o conselho para as mulheres e para os escravos, essa orientação tem como objetivo fazer com que os oponentes do cristianismo sejam envergonhados e não tenham nada de ruim para falar sobre os cristãos. Deus, para o Paulo das pastorais, é o Salvador da humanidade, a única esperança que os cretenses (1.12), ou quem quer que seja (3.3), têm para viver de uma forma aceitável a Deus (2.11-14; 3.8) e herdar a vida eterna (1.2; 3.7). Paulo considera de suma importância que essa mensagem alcance aqueles que estão fora da igreja. Portanto, embora os senhores de escravos cristãos sejam também seus irmãos (lT m 6.2), ele insta os escravos a serem submissos àqueles com o objetivo maior de levar o evangelho a toda a sociedade. Exatamente em razão das tendências igualitárias, o evangelho, conforme Paulo o pregava, atraía, em especial, os mais fracos da sociedade — mulheres, crianças e escravos. A crítica de que o cristianismo desestruturava a ordem social devia ser tão comum na época de Paulo como sabemos que foi um século mais tarde, na época de Celso, o qual afirmou que o cristianismo só atraía mulheres iludidas, escravos, cri­ anças, camponeses ignorantes e os ignominiosos (Orígenes, Cels. 3.44; 6.24). O medo de que a religiosidade sancionasse a desestruturação social, subja­ cente a essa afirmação, tinha uma longa história no Império Romano, conforme demonstram a supressão dos ritos a Baco em Roma, no século II a. C., e o relato de Lívio deste fato (39.8-19), cerca de um século e meio após.14 Em sua narrativa sobre a supressão das celebrações a Baco, Lívio revela um medo aparentemente comum de que os ritos noturnos secretos do Oriente promovessem a imoralidade e corrompessem os jovens.15 O lugar destacado que o culto dava às mulheres (39.13.9; 39.15.11) e às crianças (39.13.14) ameaçava o poder do pai sobre sua família e, portanto, a estrutura da sociedade.16 Conforme Lívio afirma em um “discurso” sobre o assunto proferido pelo cônsul romano diante do Senado: Se vocês soubessem em que idade os meninos são iniciados, vocês não só sen­ tiriam pena deles, mas também vergonha. Cidadãos, vocês acham que os jovens 14Cf. Johnson, Letters to Paul’s Delegates, p.235. 15Se a prática dos cristãos da Bitínia, em 117 d.C., era similar à dos cristãos em Roma, em 64 d.C., então os cristãos romanos também se reuniam “em um dia determinado antes do alvorecer” (stato die ante lucem). V. Plínio, Ep. 10.96. 16Mary Beard, John North e Simão Price, Religions o f Rome, 2 vols. (Cambridge: Cam­ bridge University Press, 1998), vol. 1, p. 93-96.

iniciados com esse juramento devam se tornar soldados? De que armas devam ser confiadas a homens recrutados nesse infame santuário (39.15.13-14)? A perseguição em alta escala dos cristãos que aconteceu em Roma, em 64 a.C., no governo de Nero — talvez apenas alguns meses antes de Paulo escrever essa carta a Tito — deve ter tido algum fundamento legal na perseguição anterior dos seguidores de Baco, principalmente das mulheres.17 Sabemos, de qualquer forma, que Nero conseguiu pôr a culpa pelo grande incêndio que destruiu Roma em “uma classe de homem detestável por causa de seus vícios, a quem as m ulti­ dões chamam de cristãos” (Tacitus, Ann. 15.44.). Como já vimos na carta de Paulo a Filemom, o apóstolo sabia que as desestruturações sociais seriam inevitáveis sempre que o evangelho fosse fielmente prega­ do e vivenciado. O apóstolo que proclamou a desintegração da barreira entre judeus e gentios dificilmente poderia insistir que as opressivas barreiras sociais existentes entre senhores e escravos permanecessem intactas. Mas ele tinha de navegar entre as sereias Cila e Caridbe, entre deixar de honrar as implicações sociais do evangelho e criar essa desestruturação social na qual a mensagem salvífica de Deus em Jesus Cristo não poderia ser ouvida. A preocupação de Paulo, tanto em lTim óteo como em Tito, refere-se a esse segundo problema. Se as mulheres e os escravos fossem insubordinados, a mensa­ gem sobre a obra salvífica de Deus em Jesus Cristo não alcançaria aqueles que estão fora da igreja, pois estes não seriam capazes de ver além das ameaças que o cristianismo representaria para suas posições de poder e de privilégio. Paulo acre­ ditava que o cristão deveria enxergar além de sua posição social, com freqüência de subordinado, para que tivesse uma visão panorâmica na qual se incluísse a necessidade que todos têm do evangelho. O que fundamenta a noção de Paulo de que a reputação de Deus aos olhos dos incrédulos deve ser uma das preocupações do povo de Deus? As raízes dessas convicções provavelmente estão nas Escrituras de Paulo. Em Êxodo 19.3-6, Deus entra em aliança com seu povo fundamentado no resgate dele, pela graça, da escravidão no Egito (19.4). Se Israel obedecesse à aliança de Deus, conforme ele diz, eles seriam o “tesouro pessoal” do Senhor e “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (19.5,6).18 A lei mosaica — a aliança que seu povo deveria obedecer — separaria o povo de Deus de outros povos, bem como mostraria aos outros povos da terra seu caráter diferenciado.19 Eles deveriam ser santos, conforme o livro de Levítico muitas vezes afirma, porque Deus é santo (Lv 11.44-45; 19.24; 20.7, 26; 21.8). ’"V. Hugh Last, “The Study of the ‘Persecutions’”, JRS 27 (1937), p. 80-92; W. H. C. Frend, Martydom and Persecution in the Early Church: A Study o f a Conflitfrom the M acca­ bees to Donatus (Grand Rapids: Baker, 1981), p. 109-11; e Robert L. Wilken, The Chris­ tians as the Romans Saw Them (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1984), p. 17. 18Na lxx , além desse texto, veja Ex 23.22. l9Cf. J. Philip Hyatt, Exodus (NCB; London: Marshall, Morgan & Scott, 1971), p. 200, e John I. Durham, Exodus (WBC 3; Waco, Tex.: Word, 1987), p. 262-63.

Conforme as Escrituras de Paulo revelavam, Israel não permaneceu santo, e Deus, por causa do pecado de seu povo, usou primeiro os Assírios e depois os Babi­ lônios para enviá-lo ao exílio. No exílio, o nome de Deus foi profanado quando aqueles que conquistaram Israel e Judá assumiram que o Deus deles era fraco como seu povo (Ez 36.20-36; cf. Is 52.5). Esse comportamento impróprio do povo de Deus os afastou de sua verdadeira vocação de mostrar o caráter de Deus para o resto do mundo, resultando, ao contrário, em uma compreensão equivocada de Deus. Paulo parece estar ecoando essas preocupações bíblicas sobre a vocação do povo de Deus em 2.1-14. Aqui, ele fundamenta seu ensino ético, aos vários gru­ pos sociais, na graça de Deus, a obra redentora em Jesus Cristo. O padrão teológjX c o que ele segue espelha o padrão em Êxodo, em que a aliança de Deus coijfíSey^vpovo foi fundamentada no resgate, pela graça, deles do Egito. O proj^içõTáa) obra redentora de Cristo em favor de seu povo é também idêntico ao-f n ó ^ fíp a e Deus para resgatar Israel e “purificar para si mesmo um povo